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A (im) prescritibilidade do crime de tortura

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crime-de-tortura

DIREITO PENAL - 02 dez 2016, 04:30


POR: ENIO DA SILVA MAIA

RESUMO: O presente artigo tem como propósito conduzir o leitor a um questionamento


acerca da prescritibilidade ou imprescritibilidade do crime de tortura no sistema jurídico
interno brasileiro. Em um primeiro momento será analisada a tipificação penal do crime
de tortura e sua definição no ordenamento jurídico pátrio e internacional para
posteriormente averiguar sua prescritibilidade.
Palavras-chaves: crime de tortura; prescritibilidade; e imprescritibilidade.
ABSTRACT: The purpose of this article is to lead the reader to a question about the
prescribability or imprescritibility of the crime of torture in the Brazilian domestic legal
system. At the first moment, it will be analyzed the criminalization of the crime of torture
and its definition in the national and international legal order to later verify its
prescritibility.
Keywords: crime of torture, prescribability and imprescritibility.

INTRODUÇÃO
Tortura é um tema polêmico, desta maneira resolveu-se expor um breve estudo
crítico sobre a prescritibilidade ou imprescritibilidade do crime de tortura.
Após a segunda grande guerra, nasce um movimento mundial de repúdio à
tortura. A tortura ganhou força como método de adquirir provas se perpetuando como
forma de exercício de uma hierarquia, sempre pautada pela demonstração da força. Por
ferir bens como a liberdade e a dignidade do indivíduo, a tortura é um dos crimes mais
repudiados pela sociedade. Foram criados vários tratados, alguns ratificados pelo
Brasil (convenção contra a tortura ou tratamentos cruéis; convenção interamericana
para prevenir e punir a tortura; estatuto de Roma).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, III, proíbe qualquer tratamento
desumano, cruel ou degradante e protege a integridade física e moral da pessoa
humana como direito fundamental de primeira geração, nos termos do artigo 60, §4º,
IV, da Constituição Federal. Mas a principal indagação hodiernamente sobre tortura é
se esta no rol de crimes imprescritíveis.

1. TIPIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO DA TORTURA COMO CRIME NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO
Historicamente, a tortura se apresentou como um instrumento para obtenção de
prova por meio de confissões. No Brasil o golpe militar de 1964 se utilizou
constantemente da prática da tortura como meio de obtenção dessas confissões de
crimes e em busca de informações relevantes para segurança nacional.
Hodiernamente, os atos praticados por meio da tortura ganharam a rejeição do
mundo civilizado, principalmente após a segunda guerra mundial. Com isso,
desencadeou o nascimento de vários instrumentos internacionais que proibiam a
tortura.
A tortura é crime que fere a dignidade da pessoa humana sendo equiparada a
crime hediondo pela Constituição Federal em seu art. 5º, XLIII. O primeiro dispositivo
legal que tipificou a tortura como crime no ordenamento jurídico brasileiro foi o art. 233
do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, vejamos: “Submeter criança
ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura”.
O artigo supracitado foi amplamente questionado, pois o tipo penal em questão
consagrava um tipo penal aberto, não definindo expressamente o que vinha a ser tortura,
como também, não indicava os meios de execução do delito.
A lei de tortura não define o que vem a ser tortura, entretanto, a Convenção da
ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,
em seu art. 1º, vem a conceituar tortura como:
"Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou
mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de
obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de
castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha
cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou
coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo
baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais
dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua
instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se
considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam
consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.
A Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (ratificada pelo Brasil
pelo Decreto 98.386/89) também define tortura, vejamos:
“Art. 2º. - Para os efeitos desta convenção, entender-se-á
por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a
uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins
de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo
pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim.
Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma
pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima,
ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não
causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão
compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos
físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de
medidas legais ou inerentes a elas, contato que não incluam a
realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere
este Artigo”.
Logo após, veio a Lei 9.455/97, a lei da tortura, que revogou o art. 233 do Estatuto
da Criança e do Adolescente, protegendo não somente a criança e o adolescente, mas
também o adulto e o idoso. Vejamos:
“Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou
confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a
intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º. - Na mesma pena incorre quem submete pessoa
presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou
mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou
não resultante de medida legal".
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas,
quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena
de detenção de um a quatro anos”.
Da redação do artigo 1º da Lei 9.455/97 extraem-se as seguintes espécies de
tortura:
- Art. 1º, I, “a” – tortura-prova;
- Art. 1º, I, “b” – tortura-crime;
- Art. 1º, I, “c” – tortura-discriminação;
- Art. 1º, II – tortura-castigo;
- Art. 1º, §1º – tortura própria;
- Art. 1º, §2º – tortura omissão.
As Convenções e Tratados Internacionais (Convenção de Nova York sobre
direitos da criança, a Convenção contra a Tortura, adotada pela Assembléia Geral da
ONU, o Pacto de São José da Costa Rica) definem tortura como crime próprio (somente
pode ser praticado por agente do Estado), mas no Brasil, a Lei 9.455/97, reconhece
crime de tortura praticado por pessoa comum, nos termos do art. 1º supracitado.

2. A (IM) PRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE TORTURA


Prescrição de acordo com Cunha (2016), é “a perda, em face do decurso do
tempo, do direito de o Estado punir (prescrição da pretensão punitiva) ou executar uma
punição já imposta (prescrição da pretensão executória)”.
Funciona como um limitador ao direito de punir do Estado, podendo ser
reconhecido de ofício pelo magistrado por trata-se de matéria de ordem pública.
O ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu como regra a prescritibilidade,
porém a Constituição Federal elenca duas exceções, quais sejam: crime de racismo (art.
5º, XLII, CF/88) e os delitos praticados por grupos armados civis ou militares, contra a
ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF/88).
Entretanto, existe uma corrente que entende ser imprescritível também o crime
de tortura, haja vista que segundo o Estatuto de Roma, os crimes de competência do
Tribunal Penal Internacional são imprescritíveis.
A tortura está elencada no art. 7º, “1”, “f”, do Estatuto de Roma, vejamos:
“Artigo 7o
Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por
"crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes,
quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou
sistemático, contra qualquer população civil, havendo
conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma
população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física
grave, em violação das normas fundamentais de direito
internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição
forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer
outra forma de violência no campo sexual de gravidade
comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa
ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos,
culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo
3o, ou em função de outros critérios universalmente
reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional,
relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com
qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid”.
Daí o entendimento de parte da doutrina sobre a imprescritibilidade do crime de
tortura, pois como o Brasil aderiu ao Tribunal Penal Internacional, que tem seus crimes
como imprescritíveis, torna a tortura imprescritível no ordenamento interno Brasileiro.
O atual Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, é um dos defensores da
imprescritibilidade do crime de tortura, entendendo que o direito internacional, suas
convenções precisam ser internalizadas.
Rodrigo Janot defende a punição na esfera interna brasileira de agentes militares
que cometeram crimes de tortura, além de morte e desaparecimento de militantes de
esquerda durante o regime militar. Para o membro do Ministério Público Federal, o crime
de tortura é imprescritível e não está coberto pela Lei de Anistia, entendimento que não
se enquadra com o Supremo Tribunal Federal.
Os defensores da imprescritibilidade do crime de tortura alegam que o conflito
entre a Constituição Federal e os Tratados Internacionais deve prevalecer à norma que
melhor atende aos direitos humanos.
Porém, a doutrina majoritária entende não ser imprescritível o crime de tortura.
Cunha (2016) defende que o Estatuto de Roma, por ser um Tratado com status de norma
supralegal, não tem como afastar a garantia implícita constitucional da prescritibilidade,
ou seja, a prescrição é um direito fundamental constitucional não podendo ser afastado
nem mesmo por emenda a Constituição quanto menos por legislação ordinária.
Além disso, a legislação penal brasileira não permite uma interpretação
extensiva para possivelmente prejudicar o réu. Portanto, fica claro que a omissão sobre
a imprescritibilidade do crime de tortura na Constituição Federal é proposital. O art. 5º,
XLIII, da Constituição Federal não expressa menos do que deveria sendo explícita e
intencional sua omissão sobre a imprescritibilidade, prevalecendo o postulado da
reserva constitucional de lei em sentido formal.
Vejamos importante trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no
julgamento da ADPF 153/DF sobre o postulado da reserva legal e a inaplicabilidade de
normas de Tratados Internacionais no Brasil:
“Esse princípio, além de consagrado em nosso ordenamento
positivo (CF, art. 5º, XXXIX), também encontra expresso
reconhecimento na Convenção Americana de Direitos Humanos
(artigo 9º) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(Artigo 15), que representam atos de direito internacional público
a que o Brasil efetivamente aderiu.
O que se mostra constitucionalmente relevante, no entanto, como
adverte a doutrina (LUIZ FLÁVIO GOMES/VALERIO DE OLIVEIRA
MAZZUOLI, “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos”, vol. 4/122, 2008, RT), é que, “no âmbito do Direito
Penal incriminador, o que vale é o princípio da reserva legal, ou
seja, só o Parlamento, exclusivamente, pode aprovar crimes e
penas. Dentre as garantias que emanam do princípio da
legalidade, acham-se a reserva legal (só o Parlamento pode
legislar sobre o Direito Penal incriminador) e a anterioridade (´lex
populi´e ´lex praevia´, respectivamente). Lei não aprovada pelo
Parlamento não é válida (...)” (grifei).
Não se pode também desconhecer, considerado o princípio
constitucional da reserva absoluta de lei formal, que o tema da
prescrição subsume-se ao âmbito das normas de direito material,
de natureza eminentemente penal, regendo-se, em conseqüência,
pelo postulado da reserva de Parlamento, como adverte
autorizado magistério doutrinário (FERNANDO GALVÃO, “Direito
Penal – Curso Completo – Parte Geral”, p. 880/881, item n. 1, 2ª
edição, 2007, Del Rey; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal –
Parte Geral”, vol. 1/718, item n. 1, 27ª Ed., 2003, Saraiva; CELSO
DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO
JÚNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal
Comentado”, p. 315, 7ª Ed. 2007, Renovar; CEZAR ROBERTO
BITENCOURT, “Tratado de Direito Penal”, vol. 1/772, item n. 1, 14ª
Ed., 2009, Saraiva; ROGÉRIO GRECO, “Código Penal Comentado”,
p. 205, 2ª Ed., 2009, Impetus; ANDRÉ ESTEFAM, “Direito Penal –
Parte Geral”, vol. 1/461, 375, item n. 2, 4ª Ed., 2007, RT, v.g.).
Isso significa, portanto, que somente lei interna (e não convenção
internacional, muito menos aquela sequer subscrita pelo Brasil)
pode qualificar-se, constitucionalmente, como única fonte formal
direta, legitimadora da regulação normativa concernente à
prescritibilidade ou à imprescritibilidade da pretensão estatal de
punir, ressalvadas, por óbvio, cláusulas constitucionais em
sentido diverso, como aquelas inscritas nos incisos XLII e XLIV do
art. 5º de nossa Lei Fundamental”( Portela, 2014, p. 55 apud Celso
de Melo, ADF 153/DF).
Portanto, não há que se falar em imprescritibilidade do crime de tortura no
ordenamento jurídico interno pátrio, considerando que a prescrição é regra no nosso
sistema jurídico, estando às exceções taxativamente previstas na Constituição Federal
de 1988.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, e depois de uma análise das normas legais em vigor no
sistema jurídico brasileiro, pode-se destacar que o crime de tortura não é imprescritível.
A Constituição Federal em seu art. 5º, incisos, XLII e XLIV, afirma expressamente
que somente são imprescritíveis o crime de racismo e as ações de grupos armados,
civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito,
respectivamente. Nossa Lei maior não faz menção a qualquer imprescritibilidade do
crime de tortura, além de que não é possível interpretação extensiva para piorar a
situação do réu.
Vale salientar, que a prescrição é um direito fundamental sendo considerada
cláusula pétrea. Ou seja, Tratados Internacionais de Direitos Humanos que têm status
de norma supralegal não têm força normativa para inserir mais uma exceção a
prescrição dos crimes na Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6ª edição.
Editora JusPodivm. Salvador – Bahia. 2012.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. <Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em
24. nov. 2016.
BRASIL, DECRETO 4.388/02 “Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional”<
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm>
Acesso em 21. nov.2016.
BRASIL, DECRETO 6.085/07. “Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes” <Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6085.htm>
Acesso em 23.nov.2016.
BRASIL, DECRETO 98.386/89 “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura” < Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-
1989/D98386.htm> Acesso em 21.nov.2016.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, parte geral (arts. 1º ao 120). 4ª
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DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª edição. Editora
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HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais, Tomo I. 7ª edição. Editora Juspodivm. Salvador
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MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 17 edição. Editora Atlas. São Paulo. 2005.
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O GLOBO, <Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/para-rodrigo-janot-crime-de-
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PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 6º
edição. Editora JusPodivm. Salvador – Bahia. 2014.

Enio da Silva Maia, o autor


Advogado e Assessor jurídico da Prefeitura de São Domingos do Cariri - PB.

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