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Como é possível os estudantes lerem antes

de saberem ler convencionalmente?


Os processos envolvidos no ato de ler
Situação didática de leitura pelo estudante
Alfabetização na sala de aula
Como é possível os
estudantes lerem
antes de saberem ler
convencionalmente?

Para planejar situações didáticas de


leitura pelos estudantes é necessário
compreender quais são os processos
envolvidos no ato de ler.

Nesta apresentação será analisado


um diário de bordo de uma professora
do 2º ano e, também, será feito um
levantamento das atividades de leitura
desenvolvidas pelo estudante em seu
planejamento. Crédito: Manuela Cavadas
Ensinar a ler
Introdução

Por muito tempo, entendemos que, para ensinar a ler, era necessário apresentar "letra por letra" às
crianças, ou seja, focalizar o trabalho de leitura na relação do som com sua grafia correspondente - um
a um -, como se a linguagem escrita fosse um código de transcrição da fala. Hoje consideramos que
esse modo de entender a linguagem, tanto oral como escrita, reduz enormemente o valor e o lugar que
ela ocupa na vida do ser humano e na sociedade.
Assim como estudamos no curso sobre “Concepção de Alfabetização”, primeiro do percurso, inúmeras
contribuições do campo da psicolinguística conceberam o ato de ler como algo além de decifrar ou,
simplesmente, "sonorizar as letras". Sabemos que a escrita representa determinados aspectos da
fala, mas está longe de representar todos os seus significados.
Desde muito pequenas as crianças tentam compreender a natureza das marcas escritas que aparecem
ao seu redor, e levantam seus conhecimentos prévios para interpretar o que estão tentando ler.
Segundo Molinari (2017, p.63), "A leitura implica um processo ativo de construção de significado,
um processo complexo de coordenação de informações de natureza diferente, no qual o texto, o
leitor e o contexto contribuem para que a compreensão se realize" .
Ensinar a ler
Introdução

Mesmo com a ampla divulgação das pesquisas na perspectiva psicogenética (como visto no curso
“Concepção de Alfabetização”), ainda há muitas dúvidas sobre o processo de ensino e aprendizagem
em leitura e, normalmente, os/as professores/as levantam alguns destes questionamentos:

"Como é possível ensinar a ler e escrever sem ensinar "letra por letra"?

"É possível os/as estudantes lerem mesmo sem saberem ler


convencionalmente?"

Para pensar sobre essas questões, vamos analisar um excerto do diário de bordo da professora
Renata, que registra uma situação de leitura de parlendas por parte dos estudantes.
Diário de Bordo
Professora Renata
Dados de aprendizagem da
turma:
2º ano A - 31 estudantes

• Dos 18 que não compreenderam o


sistema de escrita alfabética,
ainda há estudantes que, para ler,
se apoiam em imagens e na
extensão de palavras.
• Há 13 estudantes que
compreenderam o funcionamento
do sistema de escrita. No entanto,
leem entrecortando a fala,
apoiando-se principalmente na
decifração e pouco no sentido do Crédito: Manuela Cavadas
texto.
Diário de bordo
Reflexão inicial da professora

Ao mesmo tempo que tenho de planejar algo específico para estudantes que estão em processo de
compreensão do funcionamento do sistema de escrita alfabética, também preciso desafiar os
estudantes que escrevem e leem com autonomia. Este processo tem exigido muita atenção e estudo.
Fico preocupada com os dados de aprendizagem, especialmente neste momento após a retomada das
aulas presenciais que precisamos intensificar as aprendizagens de todos/as os/as estudantes.

Escolha da situação didática


Proposta realizada: sequência didática de parlendas e cantigas
Produto final: produzir uma coletânea de cantigas de rodas e parlendas para ensinar os estudantes da
educação infantil como brincar.
Diário de bordo
Reflexão inicial da professora

Escolhi uma sequência didática para que os/as estudantes lessem textos que sabem de memória,
porque compreendo que, ao ler ou acompanhar a minha leitura ou de um colega, eles têm a
possibilidade de antecipar letras ou conjunto de letras, palavras ou conjunto de palavras e de
usar os espaços em branco como apoio para realizar essa correspondência das partes faladas
às partes escritas, comparar escritas e vinculá-las a suas antecipações e ou identificar partes
comuns em escritas diferentes.

A partir dessas leituras, eles se aproximam e refletem sobre o objeto de conhecimento: o sistema de
escrita alfabética. Além disso, quando trabalhamos com textos que sabem de memória, como cantigas,
parlendas e quadrinhas, por exemplo, os/as estudantes têm a oportunidade de exercer a leitura literária,
ao mesmo tempo que avançam na aquisição do sistema de escrita alfabética.
Diário de bordo
Transcrição da aula

A professora apresenta às crianças a parlenda "Corre CORRE COTIA


Cotia" no quadro branco e faz a leitura apontando-a com
uma régua. Pergunta para o grupo se já brincaram de CORRE COTIA
NA CASA DA TIA
"Corre cotia" e eles respondem que sim. Informa que
CORRE CIPÓ
alguns estudantes farão a leitura dessa parlenda e outros NA CASA DA VÓ
lerão os textos instrucionais de como brincar. LENCINHO NA MÃO
CAIU NO CHÃO
MOÇA BONITA DO MEU CORAÇÃO
Entrega para as crianças que compreenderam o PODE JOGAR?
funcionamento do sistema de escrita alfabética (quatro PODE!
NINGUÉM VAI OLHAR?
duplas e um trio) os textos instrucionais. Para os demais, NÃO!
entrega para cada dupla a escrita da parlenda.
Diário de bordo
Transcrição da aula
Momento de interação entre professora e estudantes

Professora: "Vinicius e Amanda, venham até a lousa para ler a parlenda". (Dupla de estudante segue até o
quadro e começa a leitura)
Estudantes: "CORRE COTIA NA CASA DA TIA, CORRE CIPÓ". (Realizam a leitura dos dois primeiros versos.
Não conseguem fazer o ajuste das partes faladas às partes escritas no terceiro verso e leem "CORRE" em uma
linha e “CIPÓ” em outra, falando mais rápido do que apontam a parte escrita)
Professora: "CORRE CIPÓ está escrito aqui". (Aponta com o dedo onde está escrito CORRE CIPÓ). "Leiam
novamente".
Estudantes: "CORRE CIPÓ". (Continuam a leitura juntos. Em seguida apontam LENCINHO em uma linha e NA
MÃO na linha posterior, não conseguindo ajustar o falado ao escrito)
Professora: "Façam a leitura novamente. Até onde está escrito LENCINHO?"
Vinicius: "Até aqui". (Aponta para a palavra MÃO")
Professora: "Você concorda, Amanda?”
continua
Diário de bordo
Transcrição da aula
Amanda: "Até aqui" (aponta para a palavra "MÃO")
Professora: "Isso mesmo, vou ler para vocês: LENCINHO NA MÃO. Façam a leitura desde o começo até aqui".
Estudantes: "CORRE COTIA…" (leem até CAIU NO CHÃO ajustando a fala as partes escritas e apontando com
o dedo).
Professora: "Muito bem, continuem". (Vinicius e Amanda continuam a leitura até o final).
Professora: "Onde está escrito CORRE CIPÓ?"
Estudantes: (Realizam a leitura desde o começo até chegar ao verso “CORRE CIPÓ”. Ao longo da leitura
sentem necessidade de voltar e reler a parte do "NA CASA DA TIA"). "Aqui" (apontando com o dedo o verso
solicitado)
Professora: "Até onde está escrito CORRE"
Amanda: "Aqui" (aponta para a letra E).
Professora: "Porque você acredita que está escrito CORRE aí?"
Amanda: "Tem a letra E“.
continua
Diário de bordo
Transcrição da aula
Professora: "Vinicius, você concorda? Lê onde está escrito CORRE". (Vinicius lê CORRE em voz alta apontando
com o dedo).
Professora: "Tá escrito CORRE em outro lugar?" (Amanda aponta para o verso CORRE CIPÓ)
Professora: Isso mesmo, CORRE está escrito em CORRE COTIA E CORRE CIPÓ, começa com o C e termina
com o E. Agora vamos tentar achar a palavra BONITA?
Estudantes: (leem desde o começo até chegar ao verso: MOÇA BONITA DO MEU CORAÇÃO). "Aqui"
(apontando com o dedo no verso todo)
Professora: "Aqui está escrito MOÇA BONITA DO MEU CORAÇÃO, onde está escrito apenas BONITA?"
Amanda: (aponta para a palavra "BONITA") "Começa com B".
Professora: Vinicius, até onde vai a palavra BONITA? Lê novamente, por favor? (Vinicius lê MOÇA BONITA DO
MEU CORAÇÃO, demora um pouco, pensa e aponta para "moça bonita").
Professora: Amanda, lê novamente a palavra BONITA (Amanda realiza a leitura de BONITA apontando com o
dedo)
Professora: "Vinicius, onde está escrito BONITA?" (Vinicius aponta com o dedo a palavra BONITA)
continua
Diário de bordo
Transcrição da aula
Professora: "Termina com que letra, você sabe?"
Vinicius: "Aqui, a letra A".
Professora: "Podem voltar para o lugar de vocês. Agora cada dupla vai ler para o outro. (E segue para as duplas
de estudantes que já compreenderam o sistema de escrita alfabética para que possam ler o texto instrucional).

fim
Diário de bordo
Reflexões da professora
Tenho desenvolvido aulas como essa descrita, sei
que as crianças estão avançando, mas fico em
dúvida, se realmente minhas intervenções estão
adequadas e se há outras intervenções melhores
que as que realizo com o uso de textos que os
estudantes sabem de memória, como por
exemplo:
Solicitar que localizem as palavras no meio da
parlenda, ora no início do verso, ora no final, é
uma boa intervenção?
A cada nova parlenda chamo uma dupla na lousa
para realizar a leitura, essa é uma boa escolha?
Após os estudantes entenderem o procedimento Crédito: David Schwarzenberg por Pixabay
de ler textos de memória quais outras
intervenções são possíveis?
Após a leitura, a quais conclusões você chegou
à luz da questão:

"É possível os estudantes lerem mesmo sem


saberem ler convencionalmente?
Ensinar a ler

Um dos propósitos desta situação didática é ensinar as crianças a ler por si mesmas. A turma tem
problemas a resolver: saber onde cada uma das partes escritas que já conhecem, buscando
correspondências entre o que sabem que está escrito e o que efetivamente está escrito.
Precisam coordenar aquilo que pensam que pode estar escrito para que não sobre nem falte
partes que não possam ser interpretadas. Levantam suas hipóteses sobre onde pode estar escrito
a parlenda que sabem de cor e precisam reler para confirmar ou discordar. É a partir destas
hipóteses que a professora se apoia para ensinar-lhes a ler.
Estes estudantes não conseguiriam decifrar, sonorizar cada uma das letras, se não fosse um
texto que sabem de cor, por isso, para realizar essa proposta, precisam conhecer e recitar o
texto que vão ler, mesmo sem saber ler convencionalmente. Só assim terão oportunidades de
relacionar as informações que o texto oferece (as marcas escritas no papel) com o que elas já
sabem.
O que acontece quando lemos?

Para pensar um pouco mais sobre como é possível as crianças lerem antes de saberem ler
convencionalmente, convidamos você a refletir sobre o que significa ler e sobre os processos que
envolvem esse ato.

Assista ao vídeo: O que


acontece quando lemos?

Referência: Acervo do MEC -


Programa de Formação de
Professores (2000).
O significado da leitura
segundo algumas autoras
A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto a partir do
que está buscando nele, do conhecimento que já possui a respeito do assunto, do autor e do que sabe sobre a
língua — características do gênero, do portador, do sistema de escrita... Ninguém pode extrair informações do
texto escrito decodificando letra por letra, palavra por palavra.
SOLIGO, 2000, p.4

Ler, mais do que um processo individual, é uma prática social. Quer dizer, há diferentes práticas de leitura que se
realizam nos diferentes espaços sociais nos quais as pessoas circulam. Por exemplo: lê-se na sala de espera de
um dentista; lê-se quando se passa em frente a uma banca de jornais e revistas; lê-se em voz alta em um culto
religioso; lê-se as listas classificatórias quando se deseja saber se houve aprovação em um concurso vestibular;
lê-se um cardápio ao pedir o jantar no restaurante; lê-se a tela do computador ao utilizar um caixa eletrônico de
banco; lê-se os outdoors de propaganda nas ruas; lê-se em uma livraria, quando se deseja comprar livros; lê-se o
jornal quando é entregue em casa; lê-se para estudar determinado tema, entre outras tantas situações.

BRAKLING, 2008, p.6

Ler é entrar em outros mundos possíveis... É indagar a realidade para compreendê-la melhor, é se distanciar do
texto e assumir uma postura crítica frente ao que se diz e ao que se quer dizer, é tirar carta de cidadania no
mundo da cultura escrita…
LERNER, 2002, p.71
Estratégias de leitura
O processo que Estratégias de Estratégias de Estratégias de Estratégias de
leitores experientes antecipação inferência seleção verificação
vivenciam ao ler um Tornam possível Permitem captar o Permitem que o leitor Tornam possível o
texto, de coordenação prever o que ainda que não está dito no se atenha aos índices controle da eficácia
de informações, não é está por vir, com base texto de forma úteis, desprezando os ou não das demais
indiferente para em informações explícita. Não são irrelevantes. Ao ler, estratégias,
aqueles que iniciam explícitas e em adivinhações fazemos isso o tempo permitindo confirmar,
como leitores. suposições. O aleatórias, são todo: nosso cérebro ou não, as
gênero, o autor, o baseadas tanto em “sabe”, por exemplo, especulações
Para ler mesmo antes título e muitos outros pistas dadas pelo que não precisa se realizadas. Esse tipo
de saber ler índices nos informam próprio texto como deter na letra que de checagem para
convencionalmente, o que é possível que em conhecimentos vem após o “q”, pois confirmar – ou não –
os/as estudantes encontremos em um que o leitor possui. certamente será “u”; a compreensão é
texto. ou que nem sempre é inerente à leitura.
mobilizam estratégias
o caso de se fixar nos
de leitura. artigos, pois o gênero
está definido pelo
substantivo.
Utilizamos todas as estratégias de leitura mais ou menos ao mesmo tempo, sem ter
Referência: Soligo (2000). “Para consciência disso. Só nos damos conta do que estamos fazendo se formos analisar com
ensinar a ler”, publicado no
cuidado nosso processo de leitura, como estamos fazendo ao longo deste texto.
Caderno da TV Escola em 1999.
Estratégias de leitura

Quando tratamos de situações de leitura pelos estudantes, não estamos nos referindo à leitura de
letras ou frases descontextualizadas. O objeto de ensino são as práticas sociais de leitura,
preservando o sentido dos atos de leitura que acontecem fora do âmbito escolar. Portanto,
estamos tratando aqui de assegurar momentos para que as crianças possam ler receitas com o
objetivo de compor um livro de culinária; listas de nomes dos colegas que faltaram, para ajudar a
professora na chamada do dia; títulos de livros que vão levar para casa para ser lido com as
famílias; cantigas para brincar com os colegas; textos expositivos para conhecer mais sobre um
tema de estudo, entre outros.

Para que os estudantes possam ler sem saber ler convencionalmente, o texto deve estar
acompanhado sempre de um contexto assegurado pelo professor para que possam mobilizar
as diferentes estratégias de leitura. Os estudantes precisam saber o que será lido ou o que
pode estar escrito para que consigam realizar antecipações ajustadas e construam
estratégias para confirmar ou rechaçar essas antecipações, por isso é muito importante que o
professor conheça os processos envolvidos no ato de ler e as condições didáticas necessárias
para que as crianças possam ler por si mesmas.
Reflexão sobre a prática

Se os estudantes são capazes de ler antes mesmo de saberem ler convencionalmente e, uma
vez que eles “aprendem a ler, lendo”, quais são as situações didáticas de leitura pelo estudante
que você tem assegurado no planejamento semanal de sua turma?
Reflita sobre as questões e continue pensando sobre sua prática:

Todos os dias estão previstos momentos em que os/as estudantes leem mesmo antes de saberem ler
convencionalmente? Se não, com qual frequência essa leitura acontece?

Quais propostas são realizadas? Os/as estudantes estão lendo textos ou identificando "letras" e
"sílabas"?

Os/as estudantes têm a oportunidade de ler com o colega? Há interação entre os/as estudantes?

As práticas sociais estão sendo priorizadas como objeto de ensino ou há ainda muitas propostas
escolarizadas, ou seja, que não acontecem fora do âmbito escolar?

Há desafios diferentes entre os/as estudantes que estão em processo de compreensão do funcionamento
do sistema de escrita e aqueles/as que já compreenderam?
Ao longo deste curso você poderá ampliar seu
conhecimento sobre o planejamento de
situações de leitura pelo estudante e
aprofundar estas questões.
Referências

BRÄKLING, Kátia Lomba. Leitura do mundo, leitura da palavra, leitura proficiente: qual é a coisa
que esse nome chama?. Revista Aprender Juntos. São Paulo (SP): Edições SM; 2008. COLOMER,
Teresa. Andar entre livros. A leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. FERREIRO, E. O
Ingresso na Escrita e nas Culturas do Escrito. Seleção de textos de pesquisa. São Paulo: Cortez, 2013

CASTEDO, C.; SIRO, A.; MOLINARI, C. Enseñar y aprender a leer: Jardín de infantes y primer ciclo
de la Educación Básica. Buenos Aires: Centro de Publicaciones Educativas y Material didáctico, 2017.

CASTEDO, M.; MOLINARI, Claudia; Torres, M.; Siro, A. Propuestas para el aula. Material para
docentes. Lengua. Primer Ciclo. Actividad n.2 "Lectura de un texto que se sabe de memoria".
Programa Nacional de Innovaciones Educativas. Ministerio de Educación de la Nación. Buenos Aires,
2001, pp.8 y 9.

LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed,
2002.

SOLIGO. R. Para ensinar a ler. Cadernos da TV Escola - Português, MEC/SEED, 2000.


Realização Apoio técnico

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