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inção a fazer relativa àquilo que pode ser investigado pela razão
humana. Trata-se da distinção entre relações de ideias e questões
de facto.
As relações de ideias são conhecidas apenas pelo pensamento,
analisando a relação existente entre as ideias que as constituem. A
verdade das proposições que expressam relações de ideias não
depende de qualquer estado de coisas existente no universo e a sua
negação dá origem a uma contradição. São verdades a priori, isto
é, independentes da experiência, conhecidas por intuição e por
demonstração. É possível, por isso, conhecer estas verdades com
total certeza. As proposições da matemática, como “três vezes cinco
é igual a metade de trinta” ou “o quadrado da hipotenusa é igual à
soma do quadrado dos catetos”, são proposições deste tipo.
Por outro lado, as questões de facto dizem respeito à forma como
o mundo é e, por isso, a verdade das proposições sobre questões de
facto pode apenas ser estabelecida a posteriori, pelo recurso à
experiência. O contrário de uma questão de facto é sempre possível
e a negação de uma proposição sobre questões de facto não implica
uma contradição, pelo que não é possível estar absolutamente certo
da sua verdade, como no caso das proposições sobre relações de
ideias. Dada a forma como o mundo é, a negação da proposição “O
Sol vai nascer amanhã” é falsa, mas não implica uma contradição,
uma vez que é perfeitamente possível que o Sol não nasça amanhã.3
OBJECTOS DA INVESTIGAÇÃO HUMANA
O problema da indução
Esta análise leva-nos a um outro problema, como Hume mostra:
Quando se pergunta Qual é a natureza de todos os nossos raciocínios acerca de questões
de facto? a resposta adequada parece ser que eles assentam na relação de causa e efeito.
Quando em seguida se pergunta Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e
conclusões acerca dessa relação? pode-se dar a resposta numa palavra: experiência. Mas
se ainda continuarmos com o nosso espírito inquiridor e perguntarmos Qual é o
fundamento de todos os nossos raciocínios a partir da experiência? Isto implica uma
nova questão, que pode ser de ainda mais difícil solução e esclarecimento. (Investigação
sobre o Entendimento Humano, p. 48.)
Os nossos raciocínios acerca de questões de facto baseiam-se na
relação de causa e efeito. A relação de causa e efeito, por sua vez,
baseia-se na experiência. Mas qual a justificação para os raciocínios
que têm por base a experiência? Acreditamos que no futuro o
movimento de uma bola de bilhar fará outra mover-se e que o pão
nos alimentará, porque vimos estes acontecimentos ocorrerem
sempre juntos no passado. Mas o que nos autoriza a fazer estas
inferências acerca do futuro com base no nosso conhecimento do
presente e do passado?
Esta questão só se coloca pelo facto de a nossa ideia de causa e
efeito não ter origem a priori, mas na experiência. Se a razão fosse
capaz de demonstrar a existência de conexões necessárias entre
acontecimentos (isto é, que o efeito resulta necessariamente da
causa), isso seria suficiente para estarmos certos de que as nossas
crenças sobre acontecimentos futuros são verdadeiras, porque
bastaria observarmos a ocorrência da causa para sabermos que o
efeito se iria inevitavelmente seguir. Mas, como a nossa ideia de
relação causal resulta da experiência, é legítimo perguntar de que
modo a experiência permite justificar as nossas crenças acerca de
acontecimentos de que não temos experiência, isto é, de que modo
a experiência permite justificar a crença em que as relações causais
observadas no passado se manterão no futuro. Os filósofos
empiristas, como vimos, pensavam que a partir da experiência era
possível chegar a crenças razoáveis sobre acontecimentos futuros,
isto é, crenças de cuja verdade podíamos estar razoavelmente —
embora não absolutamente — seguros. Existe alguma justificação
racional para esta convicção dos empiristas?4
A resposta de Hume a esta questão é negativa. Como ele diz:
[M]esmo depois de termos experiência das operações de causa e efeito, as conclusões que
tiramos dessa experiência não estão fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do
entendimento. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 49.)
Mesmo que os nossos raciocínios acerca de acontecimentos futuros
tenham por ponto de partida premissas empíricas nunca é possível
justificar racionalmente as conclusões a que chegamos por seu
intermédio. Dito de outro modo, não há fundamento racional para
afirmarmos, como os empiristas faziam, que podemos ter crenças
razoáveis acerca de acontecimentos futuros. Para percebermos o
raciocínio de Hume que está na base desta conclusão usemos como
exemplo um argumento em que a partir da experiência anterior seja
tirada uma conclusão sobre um acontecimento de que não há
experiência, como o seguinte:
Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
Hume não tem qualquer dificuldade em admitir que as
experiências anteriores, sintetizadas na premissa, estejam
correctas, isto é, que até agora o pão sempre me tenha alimentado.
Mas, essas experiências fornecem apenas informação sobre os
objectos dessas experiências — neste caso, o pão que comi — e no
período anterior em que decorreram. As nossas inferências causais,
contudo, não se limitam a registar as nossas experiências
anteriores. Antes alargam, na conclusão, a informação adquirida
por essas experiências a acontecimentos futuros e diferentes. O que
justifica que o façam? Como Hume diz:
O pão que antes comi alimentou-me, isto é, um corpo com determinadas qualidades
sensíveis estava, naquele momento, dotado de determinados poderes secretos. Mas
segue-se daí que outro pão deva igualmente alimentar-me em outra ocasião, e que
qualidades sensíveis idênticas devam estar sempre acompanhadas de idênticos poderes
secretos? É uma consequência que de modo algum parece necessária. É preciso, pelo
menos, reconhecer que aqui houve uma consequência tirada pela mente, que se deu um
certo passo: um processo de pensamento e uma inferência que estão a exigir uma
explicação. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp. 49-50.)
Qual é a explicação para esta inferência? Como vimos acima, Hume
pensa que não existe uma explicação adequada para ela. Não é
possível passar directamente da premissa para a conclusão. A
conclusão não se segue da premissa. Não se segue do facto de no
passado o pão sempre me ter alimentado que me irá alimentar da
próxima vez que o comer. O facto de o pão me ter alimentado no
passado e o facto, suposto, de me alimentar no futuro, quando o
voltar a comer, são dois acontecimentos distintos e, por isso, não
posso inferir o segundo a partir do primeiro. A premissa pura e
simplesmente não suporta a conclusão.5 Por isso, para que o
argumento funcione é necessária uma premissa intermédia que
ligue a premissa à conclusão. Uma vez que aquilo que nos impede
de inferir directamente os acontecimentos futuros a partir dos
anteriores é que o curso da natureza pode mudar, essa premissa
terá que garantir que no futuro os acontecimentos serão como
foram no passado. Se uma premissa como “O futuro será como o
passado” for acrescentada ao argumento, a inferência a partir da
experiência passada passa a estar justificada. Com essa premissa, o
argumento terá a seguinte forma:
Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
O futuro será como o passado.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
É frequente chamar-se a esta premissa Princípio da Uniformidade
da Natureza. Este princípio expressa a ideia de que a natureza é
uniforme ou que o futuro será como o passado, isto é, que, em
circunstâncias idênticas, os acontecimentos de que não temos
experiência serão como os acontecimentos de que temos
experiência.
Contudo, segundo Hume, esta premissa não está em condições de
permitir à razão fazer a inferência de acontecimentos passados para
ocorrências futuras porque ela própria não é justificável, isto é, não
é possível provar que é verdadeira. Para o mostrar, Hume recorre à
distinção entre relações de ideias e questões de facto e aos dois tipos
de raciocínios que lhes estão associados, os raciocínios
demonstrativos e os raciocínios morais ou prováveis.
É o princípio de que a natureza é uniforme uma relação de ideias
que possamos provar por intermédio de uma demonstração, como
o Teorema de Pitágoras? Nesse caso, a negação de a “Natureza é
uniforme” teria de implicar uma contradição. Mas, diz Hume, não
há qualquer contradição em supor que a natureza não é uniforme
ou, para dar o exemplo do argumento, que da próxima vez que
comer pão ele não me alimentará. Isto é, nada impede que a
premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. O Princípio da
Uniformidade da Natureza não é, portanto, uma relação de ideias
e, por isso, não pode ser provado a priori, pela razão apenas.
O princípio é, então, uma questão de facto. Nesse caso, a sua
verdade terá de ser provada por um raciocínio a que Hume
chama provável, isto é, com base na experiência. Mas, podemos
provar a sua verdade com base na experiência?
Para provar este princípio com base na experiência temos de fazer
um argumento como o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
Portanto, a natureza é regular.
A premissa expressa a nossa experiência da regularidade da
natureza. A conclusão é o próprio Princípio da Uniformidade da
Natureza. Passa-se, no entanto, com este argumento o mesmo que
acontecia com o anterior. Não é possível inferir a conclusão da
premissa, porque a premissa é sobre o passado ao passo que a
conclusão é sobre o futuro. Só recorrendo a uma premissa que
garanta que o futuro é como o passado pode a inferência ser feita.
Se acrescentarmos essa premissa, o argumento é o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
A natureza é regular.
Portanto, a natureza é regular.
Mas assim o argumento é circular, uma petição de princípio, uma
vez que a conclusão aparece como uma das premissas, pelo que
também não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da
Natureza por meio da experiência. E, claro, se não é possível
justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza também não
temos razão para pensar que as nossas crenças acerca de
acontecimentos futuros são verdadeiras. Este é o famoso problema
da indução, de que Hume foi o primeiro a dar conta.
Esta é a segunda conclusão céptica de Hume. Até Hume, os
filósofos e os cientistas pensavam que o nosso conhecimento do
mundo estava racionalmente justificado, ou por raciocínios a
priori, como os racionalistas pensavam, ou por raciocínios com
base na experiência, como os empiristas anteriores a Hume
pensavam. Hume mostrou que tanto os racionalistas como os
empiristas estavam enganados e que não podemos justificar
racionalmente, nem a priori nem a posteriori, os princípios que
estão na base das nossas crenças acerca do mundo. Portanto, as
nossas crenças sobre o mundo não constituem conhecimento.
Significa isto que estas nossas crenças sejam totalmente
injustificadas? Hume não o pensa, embora a justificação que
encontra para elas, como veremos, não tenha origem na razão, mas
na natureza humana.
O hábito ou costume
Segundo Hume, este outro princípio é o hábito ou costume. A
experiência repetida da conjunção constante entre dois
acontecimentos leva-nos a esperar que a sua conjunção continue a
acontecer no futuro. Na nossa experiência anterior, o movimento
da primeira bola de bilhar foi sempre seguido pelo movimento da
segunda. Ao observarmos novamente o movimento da primeira
bola, a mente infere imediatamente que a segunda bola também se
vai mover. O hábito é esta repetição de um ato ou de uma operação
que cria a propensão para voltar a realizar este ato ou operação. Um
exemplo permitirá tornar claro o que Hume tem em mente.
Imaginemos que alguém, por razões de saúde, tem de passar a
temperar a comida com menos sal, mas que numa dada ocasião, a
tempera como sempre o tinha feito, e que, quando lhe chamam a
atenção para isso, ela responde “É o hábito”. O que significa esta
resposta? Que o facto de no passado sempre ter temperado a
comida de uma dada maneira a levou, mesmo contra a sua vontade,
a fazê-lo novamente. Dito de outro modo, os seus actos repetidos
do passado foram a causa do seu ato presente. O hábito é a
repetição que cria a propensão para voltar a agir ou a pensar do
mesmo modo.
Este exemplo permite ainda realçar outra característica
importante do hábito, a saber, que não é um raciocínio ou uma
operação da razão, mas um princípio da natureza humana,
um mecanismo psicológico, cuja operação e resultados não
dependem nem da nossa vontade nem da nossa razão. É o hábito, e
não a razão, que está na base de todas as inferências a partir da
experiência. Hume vai ao ponto de afirmar que sem o hábito a
nossa vida seria impossível:
O hábito é, portanto, o grande guia da vida humana. É o único princípio que torna a nossa
experiência útil para nós, e nos faz esperar, no futuro, um curso de eventos similar aos
que ocorreram no passado. Sem a influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes
de todas as questões de facto que ultrapassem o que está imediatamente presente à
memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como adaptar os meios aos fins, nem como
empregar os nossos poderes naturais para produzir qualquer efeito. Acabaria
imediatamente toda e qualquer acção, bem como a maior parte da especulação.
(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 59.)