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O problema da relação de causa e efeito

Relações de ideias e questões de facto


A teoria das ideias permite a Hume enunciar um conjunto de
distinções e princípios relevantes para o desenvolvimento ulterior
da sua filosofia. Há, no entanto, uma importante dist

inção a fazer relativa àquilo que pode ser investigado pela razão
humana. Trata-se da distinção entre relações de ideias e questões
de facto.
As relações de ideias são conhecidas apenas pelo pensamento,
analisando a relação existente entre as ideias que as constituem. A
verdade das proposições que expressam relações de ideias não
depende de qualquer estado de coisas existente no universo e a sua
negação dá origem a uma contradição. São verdades a priori, isto
é, independentes da experiência, conhecidas por intuição e por
demonstração. É possível, por isso, conhecer estas verdades com
total certeza. As proposições da matemática, como “três vezes cinco
é igual a metade de trinta” ou “o quadrado da hipotenusa é igual à
soma do quadrado dos catetos”, são proposições deste tipo.
Por outro lado, as questões de facto dizem respeito à forma como
o mundo é e, por isso, a verdade das proposições sobre questões de
facto pode apenas ser estabelecida a posteriori, pelo recurso à
experiência. O contrário de uma questão de facto é sempre possível
e a negação de uma proposição sobre questões de facto não implica
uma contradição, pelo que não é possível estar absolutamente certo
da sua verdade, como no caso das proposições sobre relações de
ideias. Dada a forma como o mundo é, a negação da proposição “O
Sol vai nascer amanhã” é falsa, mas não implica uma contradição,
uma vez que é perfeitamente possível que o Sol não nasça amanhã.3
OBJECTOS DA INVESTIGAÇÃO HUMANA

Estabelecem apenas relações


entre as ideias que as
Teorema de Pitágoras.
constituem;
3 x 5 = 1/2 x 30.
São a priori;
Relações Todos os solteiros são não
A sua negação implica uma
de ideias casados.
contradição;
Os carecas são pessoas sem
São conhecidas por intuição e
cabelo.
por demonstração;
São absolutamente certas.

Fazem afirmações sobre a


forma como o mundo é;
São a posteriori; O Sol nasce amanhã.
A sua negação não implica uma Portugal situa-se na Europa
contradição; Ocidental.
Questões
São conhecidas por intermédio Um corpo mantém-se no
de facto
de raciocínios morais ou mesmo estado (movimento ou
prováveis (com base na repouso) se nenhuma força se
experiência); exercer sobre ele.
A sua verdade não é
absolutamente certa.

As relações de ideias estabelecem relações de identidade entre


conceitos e as meras leis da lógica permitem conhecê-las com
absoluta certeza. Com as proposições acerca de questões de facto
não acontece o mesmo. Falamos acerca das nossas crenças relativas
a questões de facto e agimos no dia-a-dia como quem acredita que
estão suficientemente justificadas para que possamos confiar na
sua verdade, embora saibamos que não podemos fornecer para elas
o mesmo tipo de justificação que para as relações de ideias. Posso
justificar a minha crença em que o pão que comi há pouco me
alimentou pela experiência desse acontecimento, ou em que o Sol
nasceu ontem e hoje por intermédio da minha memória de ontem
ter visto o Sol e das impressões que estou a ter agora do Sol. Mas
como posso justificar a minha crença em que o próximo pão que
comer me alimentará ou em que o Sol vai nascer amanhã,
acontecimentos de que não tenho nem memória nem impressão?

A natureza dos raciocínios acerca de questões de facto


Hume apresenta o problema da justificação dos juízos de facto do
seguinte modo:
[Q]ual é a natureza daquela evidência que nos assegura de qualquer existência real e
questão de facto, além do testemunho presente dos nossos sentidos ou dos registos da
nossa memória.(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 42.)
A sua resposta inicial é que os nossos raciocínios acerca de questões
de facto têm por base a relação de causa e efeito. Como vimos, tanto
a semelhança como a contiguidade como a relação de causa e efeito
são princípios de associação de ideias, mas só esta última nos
permite conhecer factos de que não temos experiência a partir
daquilo de que temos experiência:
Todos os raciocínios relativos a questões de facto parecem assentar na relação
de causa e efeito. Somente por meio dessa relação podemos ir além da evidência da
nossa memória e dos nossos sentidos. Se perguntássemos a alguém por que acredita em
alguma questão de facto que esteja ausente — por exemplo, que um amigo se encontra
no campo, ou em França, ele apresentar-nos-ia alguma razão, e essa razão seria algum
outro facto, como uma carta recebida desse amigo, ou o conhecimento das suas decisões
e promessas anteriores. Alguém que ache um relógio ou qualquer outra máquina numa
ilha deserta concluirá que alguma vez estiveram homens nessa ilha. Todos os nossos
raciocínios relativos a questões de facto são da mesma natureza. E aqui supõe-se sempre
que há uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é inferido. (Investigação
sobre o Entendimento Humano, p. 42.)
Segundo Hume, portanto, acreditamos na verdade de certas
proposições sobre factos inobservados porque estabelecemos uma
relação de causa e efeito entre esses factos e aquilo de que temos
experiência. Acreditamos que o nosso amigo está em França — algo
de que não temos experiência directa — porque recebemos uma
carta dele com essa origem. A relação causal que estabelecemos
entre a carta que recebemos e a sua emissão de França é a base da
nossa crença em que o nosso amigo se encontra nesse país.
Acreditamos que alguém já esteve na ilha deserta em que
encontrámos um relógio porque essa é a causa que julgamos
necessária para que isso ocorra. O nosso conhecimento de questões
de facto que vão para além da experiência é, segundo Hume,
sempre deste tipo.

A relação de causa e efeito


Esta resposta, no entanto, conduz imediatamente a uma outra
questão:
[S]e quisermos nos satisfazer a respeito da natureza dessa evidência que nos assegura
das questões de facto, precisaremos de investigar como chegamos ao conhecimento das
causas e efeitos. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 43.)
Para Hume, como para os outros filósofos e cientistas do seu tempo
— e como para nós, hoje —, a ideia de causalidade está associada à
ideia de conexão necessária. Pensamos que as relações causais
estabelecem relações de necessidade entre a causa e o seu efeito, de
tal modo que quando a causa ocorre o efeito tem de seguir-se. Se
vemos um relâmpago, sabemos que vai haver um trovão, mesmo
que estejamos demasiado longe para o ouvir. E esperamos que
aconteça o mesmo em todas as outras situações que envolvam
relações causais. É, de resto, o conhecimento da conexão necessária
entre uma causa e o seu efeito que nos permite fazer previsões de
acontecimentos futuros. Sabemos que um dado acontecimento
causa sempre um outro. Ao vermos o primeiro acontecimento
ocorrer numa nova ocasião, prevemos a ocorrência do segundo. A
pergunta de Hume pode, então, ser entendida assim: como
conhecemos as conexões necessárias entre diferentes
acontecimentos?
Há duas resposta possíveis a esta questão: pela razão, isto é, a
priori, ou pela experiência. Hume, no entanto, afasta logo a
primeira possibilidade:
Atrever-me-ei a afirmar, a título de proposta geral que não admite excepções, que o
conhecimento dessa relação em nenhum caso é alcançado por meio de raciocínios a
priori, mas deriva inteiramente da experiência, ao descobrimos que certos objectos
particulares se acham constantemente conjugados entre si. (Investigação sobre o
Entendimento Humano, p. 43.)
Para Descartes, por exemplo, as relações de causa e efeito são
conhecidas por intuição ou por dedução, o que é uma garantia
absoluta da sua verdade. Quando temos uma ideia clara e distinta
da causa podemos saber imediatamente, por intuição, que efeitos
resultam necessariamente dela. Quando não somos capazes de
intuir a conexão necessária entre a causa e o efeito, temos de
derivar o efeito por uma cadeia de raciocínios que o liguem à causa.
Em qualquer dos casos, para Descartes, a razão, por si só, a priori,
é capaz de conhecer as relações causais com absoluta certeza.
Os empiristas, como Locke e os filósofos naturais britânicos
(Newton, Boyle, Hooke), também pensavam que o nosso
conhecimento das relações causais implica o exercício da razão.
Contudo, duvidavam da possibilidade de conhecermos por intuição
ou por demonstração essas relações, como os racionalistas
pretendiam, porque, diziam, nunca poderemos conhecer as
conexões necessárias existentes entre os acontecimentos. Apesar
disso, segundo Locke, a nossa razão é capaz de chegar a crenças
razoáveis, embora não infalivelmente certas, acerca das relações
causais.
Hume discorda tanto dos racionalistas como dos empiristas que
o precederam. Nega que sejamos capazes de conhecer, seja apenas
pela razão, a priori, como pretendiam os racionalistas, seja pela
razão com o auxílio da experiência, como pretendiam os empiristas,
conexões necessárias entre acontecimentos.
Para que fosse possível conhecer exclusivamente pela razão as
conexões necessárias entre objectos, seria preciso que as relações
causais fossem relações de ideias, que a mera análise da ideia da
causa revelasse todos os seus efeitos. Assim, para sabermos que
uma coisa causa outra bastaria reflectir nela, da mesma maneira
que reflectir, por exemplo, na noção de quadrado é suficiente para
que saibamos que é uma figura geométrica com quatro lados e
quatro ângulos iguais. No entanto, a análise pela razão de uma coisa
não permite saber que efeitos resultam dela. Só a experiência o
pode fazer. Para tornar isto claro, Hume usa Adão como exemplo:
Adão, ainda que supuséssemos que as suas faculdades racionais fossem inteiramente
perfeitas desde o início, seria incapaz de inferir da fluidez e transparência da água que
ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este o poderia consumir.
Nenhum objecto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as
causas que o produziram nem os efeitos que dele provirão; e tampouco a nossa razão é
capaz, sem a ajuda da experiência, de fazer qualquer inferência a respeito de questões de
facto e existência real. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 43.)
Adão — o primeiro homem bíblico — não teve ainda experiências e,
por isso, afirma Hume, não pode meramente reflectindo no
conceito de água, isto é, a priori, saber que esta o pode sufocar. Só
a experiência permite a Adão saber isso. Quando raciocinamos a
priori consideramos a ideia do objecto que vemos como a causa
independentemente de quaisquer observações que tenhamos feito
dele. Quando consideramos a ideia do objecto deste modo, ela não
pode incluir a ideia de nenhum outro objecto, mesmo daquele que
julgamos ser o seu efeito e, portanto, também não pode mostrar-
nos uma conexão necessária entre estas ideias. O raciocínio a
priori não pode ser a origem da conexão entre as nossas ideias de
causa e efeito, isto é, as nossas inferências causais não constituem
relações de ideias, mas questões de facto. Hume conclui, por isso,
que as causas e os efeitos não podem ser descobertos a priori, mas
apenas pela experiência.
A nossa experiência de acontecimentos familiares pode, no
entanto, fazer-nos duvidar da verdade desta afirmação. Estamos
tão habituados a ver uma bola de bilhar bater noutra e provocar o
seu movimento que tendemos a imaginar que poderíamos ter
descoberto esta relação de causa e efeito usando apenas
raciocínios a priori. Contudo, se pensarmos em situações menos
familiares, é fácil ver que o nosso conhecimento das relações
causais provém da experiência. Imaginemos que passeamos por um
bosque e encontramos um arbusto que dá umas bagas de que nunca
ouvimos falar. Por mais que avaliemos a cor, o odor, a forma e a
textura das bagas nunca seremos capazes de saber, dessa forma
apenas, se são venenosas. Só a experiência directa ou indirecta nos
permitirá sabê-lo.
Esta é a primeira conclusão céptica de Hume. Como vimos, os
filósofos, em particular os da tradição racionalista, como Descartes,
acreditavam que as relações causais eram conhecidas usando
exclusivamente a razão. A análise de Hume revela que não é pela
razão mas pela experiência que conhecemos as relações causais
entre acontecimentos.

O problema da indução
Esta análise leva-nos a um outro problema, como Hume mostra:
Quando se pergunta Qual é a natureza de todos os nossos raciocínios acerca de questões
de facto? a resposta adequada parece ser que eles assentam na relação de causa e efeito.
Quando em seguida se pergunta Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e
conclusões acerca dessa relação? pode-se dar a resposta numa palavra: experiência. Mas
se ainda continuarmos com o nosso espírito inquiridor e perguntarmos Qual é o
fundamento de todos os nossos raciocínios a partir da experiência? Isto implica uma
nova questão, que pode ser de ainda mais difícil solução e esclarecimento. (Investigação
sobre o Entendimento Humano, p. 48.)
Os nossos raciocínios acerca de questões de facto baseiam-se na
relação de causa e efeito. A relação de causa e efeito, por sua vez,
baseia-se na experiência. Mas qual a justificação para os raciocínios
que têm por base a experiência? Acreditamos que no futuro o
movimento de uma bola de bilhar fará outra mover-se e que o pão
nos alimentará, porque vimos estes acontecimentos ocorrerem
sempre juntos no passado. Mas o que nos autoriza a fazer estas
inferências acerca do futuro com base no nosso conhecimento do
presente e do passado?
Esta questão só se coloca pelo facto de a nossa ideia de causa e
efeito não ter origem a priori, mas na experiência. Se a razão fosse
capaz de demonstrar a existência de conexões necessárias entre
acontecimentos (isto é, que o efeito resulta necessariamente da
causa), isso seria suficiente para estarmos certos de que as nossas
crenças sobre acontecimentos futuros são verdadeiras, porque
bastaria observarmos a ocorrência da causa para sabermos que o
efeito se iria inevitavelmente seguir. Mas, como a nossa ideia de
relação causal resulta da experiência, é legítimo perguntar de que
modo a experiência permite justificar as nossas crenças acerca de
acontecimentos de que não temos experiência, isto é, de que modo
a experiência permite justificar a crença em que as relações causais
observadas no passado se manterão no futuro. Os filósofos
empiristas, como vimos, pensavam que a partir da experiência era
possível chegar a crenças razoáveis sobre acontecimentos futuros,
isto é, crenças de cuja verdade podíamos estar razoavelmente —
embora não absolutamente — seguros. Existe alguma justificação
racional para esta convicção dos empiristas?4
A resposta de Hume a esta questão é negativa. Como ele diz:
[M]esmo depois de termos experiência das operações de causa e efeito, as conclusões que
tiramos dessa experiência não estão fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do
entendimento. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 49.)
Mesmo que os nossos raciocínios acerca de acontecimentos futuros
tenham por ponto de partida premissas empíricas nunca é possível
justificar racionalmente as conclusões a que chegamos por seu
intermédio. Dito de outro modo, não há fundamento racional para
afirmarmos, como os empiristas faziam, que podemos ter crenças
razoáveis acerca de acontecimentos futuros. Para percebermos o
raciocínio de Hume que está na base desta conclusão usemos como
exemplo um argumento em que a partir da experiência anterior seja
tirada uma conclusão sobre um acontecimento de que não há
experiência, como o seguinte:
Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
Hume não tem qualquer dificuldade em admitir que as
experiências anteriores, sintetizadas na premissa, estejam
correctas, isto é, que até agora o pão sempre me tenha alimentado.
Mas, essas experiências fornecem apenas informação sobre os
objectos dessas experiências — neste caso, o pão que comi — e no
período anterior em que decorreram. As nossas inferências causais,
contudo, não se limitam a registar as nossas experiências
anteriores. Antes alargam, na conclusão, a informação adquirida
por essas experiências a acontecimentos futuros e diferentes. O que
justifica que o façam? Como Hume diz:
O pão que antes comi alimentou-me, isto é, um corpo com determinadas qualidades
sensíveis estava, naquele momento, dotado de determinados poderes secretos. Mas
segue-se daí que outro pão deva igualmente alimentar-me em outra ocasião, e que
qualidades sensíveis idênticas devam estar sempre acompanhadas de idênticos poderes
secretos? É uma consequência que de modo algum parece necessária. É preciso, pelo
menos, reconhecer que aqui houve uma consequência tirada pela mente, que se deu um
certo passo: um processo de pensamento e uma inferência que estão a exigir uma
explicação. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp. 49-50.)
Qual é a explicação para esta inferência? Como vimos acima, Hume
pensa que não existe uma explicação adequada para ela. Não é
possível passar directamente da premissa para a conclusão. A
conclusão não se segue da premissa. Não se segue do facto de no
passado o pão sempre me ter alimentado que me irá alimentar da
próxima vez que o comer. O facto de o pão me ter alimentado no
passado e o facto, suposto, de me alimentar no futuro, quando o
voltar a comer, são dois acontecimentos distintos e, por isso, não
posso inferir o segundo a partir do primeiro. A premissa pura e
simplesmente não suporta a conclusão.5 Por isso, para que o
argumento funcione é necessária uma premissa intermédia que
ligue a premissa à conclusão. Uma vez que aquilo que nos impede
de inferir directamente os acontecimentos futuros a partir dos
anteriores é que o curso da natureza pode mudar, essa premissa
terá que garantir que no futuro os acontecimentos serão como
foram no passado. Se uma premissa como “O futuro será como o
passado” for acrescentada ao argumento, a inferência a partir da
experiência passada passa a estar justificada. Com essa premissa, o
argumento terá a seguinte forma:
Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
O futuro será como o passado.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
É frequente chamar-se a esta premissa Princípio da Uniformidade
da Natureza. Este princípio expressa a ideia de que a natureza é
uniforme ou que o futuro será como o passado, isto é, que, em
circunstâncias idênticas, os acontecimentos de que não temos
experiência serão como os acontecimentos de que temos
experiência.
Contudo, segundo Hume, esta premissa não está em condições de
permitir à razão fazer a inferência de acontecimentos passados para
ocorrências futuras porque ela própria não é justificável, isto é, não
é possível provar que é verdadeira. Para o mostrar, Hume recorre à
distinção entre relações de ideias e questões de facto e aos dois tipos
de raciocínios que lhes estão associados, os raciocínios
demonstrativos e os raciocínios morais ou prováveis.
É o princípio de que a natureza é uniforme uma relação de ideias
que possamos provar por intermédio de uma demonstração, como
o Teorema de Pitágoras? Nesse caso, a negação de a “Natureza é
uniforme” teria de implicar uma contradição. Mas, diz Hume, não
há qualquer contradição em supor que a natureza não é uniforme
ou, para dar o exemplo do argumento, que da próxima vez que
comer pão ele não me alimentará. Isto é, nada impede que a
premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. O Princípio da
Uniformidade da Natureza não é, portanto, uma relação de ideias
e, por isso, não pode ser provado a priori, pela razão apenas.
O princípio é, então, uma questão de facto. Nesse caso, a sua
verdade terá de ser provada por um raciocínio a que Hume
chama provável, isto é, com base na experiência. Mas, podemos
provar a sua verdade com base na experiência?
Para provar este princípio com base na experiência temos de fazer
um argumento como o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
Portanto, a natureza é regular.
A premissa expressa a nossa experiência da regularidade da
natureza. A conclusão é o próprio Princípio da Uniformidade da
Natureza. Passa-se, no entanto, com este argumento o mesmo que
acontecia com o anterior. Não é possível inferir a conclusão da
premissa, porque a premissa é sobre o passado ao passo que a
conclusão é sobre o futuro. Só recorrendo a uma premissa que
garanta que o futuro é como o passado pode a inferência ser feita.
Se acrescentarmos essa premissa, o argumento é o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
A natureza é regular.
Portanto, a natureza é regular.
Mas assim o argumento é circular, uma petição de princípio, uma
vez que a conclusão aparece como uma das premissas, pelo que
também não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da
Natureza por meio da experiência. E, claro, se não é possível
justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza também não
temos razão para pensar que as nossas crenças acerca de
acontecimentos futuros são verdadeiras. Este é o famoso problema
da indução, de que Hume foi o primeiro a dar conta.
Esta é a segunda conclusão céptica de Hume. Até Hume, os
filósofos e os cientistas pensavam que o nosso conhecimento do
mundo estava racionalmente justificado, ou por raciocínios a
priori, como os racionalistas pensavam, ou por raciocínios com
base na experiência, como os empiristas anteriores a Hume
pensavam. Hume mostrou que tanto os racionalistas como os
empiristas estavam enganados e que não podemos justificar
racionalmente, nem a priori nem a posteriori, os princípios que
estão na base das nossas crenças acerca do mundo. Portanto, as
nossas crenças sobre o mundo não constituem conhecimento.
Significa isto que estas nossas crenças sejam totalmente
injustificadas? Hume não o pensa, embora a justificação que
encontra para elas, como veremos, não tenha origem na razão, mas
na natureza humana.

O hábito ou costume e a ideia de conexão


necessária
Estabelecemos relações causais entre acontecimentos e fazemos
inferências acerca daquilo de que não temos experiência. Estas
operações podem não ter um fundamento racional, mas é
inquestionável que as fazemos. A questão a que é necessário
responder, portanto, é esta: como fazemos este tipo de operações?
A resposta a esta questão corresponde à parte construtiva da
filosofia de Hume.
Hume coloca este problema do seguinte modo:
Suponha-se que uma pessoa, embora já dotada das mais poderosas faculdades de razão
e reflexão, seja trazida de repente a este mundo. Ela observaria imediatamente uma
contínua sucessão de objectos, e um evento a seguir a outro, mas não conseguiria
descobrir nada mais além disso. Não seria, no início, capaz de apreender por meio de
qualquer raciocínio a ideia de causa e efeito [...].
Suponhamos agora que ela tenha adquirido mais experiência e tenha vivido no mundo
o suficiente para observar que objectos ou acontecimentos similares estão
constantemente conjugados uns com os outros. Qual é a consequência desta experiência?
Que ela passa imediatamente a inferir a existência de um objecto do aparecimento do
outro. No entanto, com toda a sua experiência, não terá adquirido qualquer ideia ou
conhecimento do poder secreto pelo qual o primeiro objecto produz o segundo [...].
Apesar disso, vê-se obrigada a realizá-la [...]. Há algum outro princípio que a obriga a
chegar a essa conclusão. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 57.)

O hábito ou costume
Segundo Hume, este outro princípio é o hábito ou costume. A
experiência repetida da conjunção constante entre dois
acontecimentos leva-nos a esperar que a sua conjunção continue a
acontecer no futuro. Na nossa experiência anterior, o movimento
da primeira bola de bilhar foi sempre seguido pelo movimento da
segunda. Ao observarmos novamente o movimento da primeira
bola, a mente infere imediatamente que a segunda bola também se
vai mover. O hábito é esta repetição de um ato ou de uma operação
que cria a propensão para voltar a realizar este ato ou operação. Um
exemplo permitirá tornar claro o que Hume tem em mente.
Imaginemos que alguém, por razões de saúde, tem de passar a
temperar a comida com menos sal, mas que numa dada ocasião, a
tempera como sempre o tinha feito, e que, quando lhe chamam a
atenção para isso, ela responde “É o hábito”. O que significa esta
resposta? Que o facto de no passado sempre ter temperado a
comida de uma dada maneira a levou, mesmo contra a sua vontade,
a fazê-lo novamente. Dito de outro modo, os seus actos repetidos
do passado foram a causa do seu ato presente. O hábito é a
repetição que cria a propensão para voltar a agir ou a pensar do
mesmo modo.
Este exemplo permite ainda realçar outra característica
importante do hábito, a saber, que não é um raciocínio ou uma
operação da razão, mas um princípio da natureza humana,
um mecanismo psicológico, cuja operação e resultados não
dependem nem da nossa vontade nem da nossa razão. É o hábito, e
não a razão, que está na base de todas as inferências a partir da
experiência. Hume vai ao ponto de afirmar que sem o hábito a
nossa vida seria impossível:
O hábito é, portanto, o grande guia da vida humana. É o único princípio que torna a nossa
experiência útil para nós, e nos faz esperar, no futuro, um curso de eventos similar aos
que ocorreram no passado. Sem a influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes
de todas as questões de facto que ultrapassem o que está imediatamente presente à
memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como adaptar os meios aos fins, nem como
empregar os nossos poderes naturais para produzir qualquer efeito. Acabaria
imediatamente toda e qualquer acção, bem como a maior parte da especulação.
(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 59.)

A ideia de conexão necessária


Persiste, no entanto, uma última questão: o que entendemos por
“conexão necessária”? Os racionalistas e os empiristas entendiam
por conexão necessária um poder ou uma força que estando
presente na causa produz necessariamente o efeito. Contudo, para
Hume, esta definição da ideia de conexão necessária é ambígua e
obscura. Poder, força e conexão necessária são expressões
sinónimas e, portanto, limitámo-nos a substituir umas palavras
pelas outras, sem esclarecer o seu significado. A solução está,
afirma Hume, em usar o Princípio da Cópia para saber de que
impressão deriva a ideia de conexão necessária. Recordemos que,
de acordo com este princípio, toda a ideia simples tem origem em
impressões simples. Fazendo remontar a ideia de conexão
necessária à impressão que está na sua origem é possível saber que
significado atribuir à expressão “conexão necessária”. Contudo, a
experiência dos objectos exteriores não nos dá, diz Hume, qualquer
impressão de conexão necessária:
Quando olhamos para os objectos exteriores à nossa volta e consideramos a operação das
causas, nunca somos capazes de identificar, num caso singular, qualquer poder ou
conexão necessária, qualquer qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma
consequência infalível da segunda. Constatamos apenas que um efeito realmente se
segue à causa. O impulso da primeira bola de bilhar é seguido pelo movimento da
segunda, e isso é tudo o que é dado aos nossos sentidos. [...] Em consequência, em
nenhum caso singular, particular de causa e efeito, há alguma coisa capaz de sugerir a
ideia de poder ou conexão necessária. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp.
77-78.)
Para compreender por que razão a experiência não é a origem da
ideia de conexão necessária façamos a experiência das bolas de
bilhar. Como descreveríamos o que estamos a ver? Provavelmente,
diríamos que a primeira bola bateu na segunda e a fez mover (isto
é, o movimento da primeira bola causou o movimento da segunda).
Mas esta descrição corresponde ao que efectivamente observámos?
Façamos novamente a experiência, desta vez filmando-a, e vejamos
depois o filme, fotograma a fotograma, no computador. O que nos
mostram os fotogramas? A primeira bola de bilhar cada vez mais
próxima da segunda, até que estão juntas e, depois, cada vez mais
afastadas. É tudo! Por mais que nos esforcemos nunca
encontraremos nos fotogramas o menor indício da ideia de conexão
necessária. E, no entanto, se esta ideia tivesse origem na
experiência teríamos de ter uma impressão da qual ela derivasse.
Mas o filme, por mais que o vejamos, não nos dá a impressão de
conexão necessária. Tudo o que aí encontramos é o movimento da
primeira bola seguido pelo movimento da segunda. Por
conseguinte, a nossa ideia de conexão necessária não tem origem
na experiência dos objectos exteriores. Tudo o que essa experiência
nos mostra é uma conjunção constante entre acontecimentos, mas
nunca uma conexão necessária.
Donde surge, então, a ideia de conexão necessária? Da
experiência de vários casos semelhantes de conjunção constante
entre acontecimentos. Devido à repetição de casos semelhantes,
quando se dá um dos acontecimentos, a nossa mente é levada pelo
hábito a esperar a ocorrência do outro. É o sentimento ou
a impressão da conexão que a nossa imaginação faz entre
acontecimentos que origina a ideia de conexão necessária. A
repetição de acontecimentos sempre conjugados causa o
sentimento ou impressão de conexão que, por sua vez, causa a ideia
de conexão necessária. A ideia de conexão necessária consiste,
então, apenas nesta conjunção constante que a imaginação
atribui aos objectos e não numa força ou poder que esteja presente
nas próprias coisas. A ideia de conexão necessária é, por isso, uma
criação da nossa mente, que a atribui aos objectos e não uma
propriedade intrínseca que a mente descubra nos objectos. Por
outras palavras, a ideia de conexão necessária não é uma
propriedade objetiva das coisas.
No princípio do século XX, o fisiólogo russo Ivan Pavlov (1849-
1936), fez um conjunto de experiências com cães, que ilustram bem
como Hume concebe o processo de formação da ideia de conexão
necessária. Pavlov submeteu os cães a experiências em que era
tocada uma campainha e, em seguida, lhes era dada comida. Ao
princípio, o toque da campainha não dava origem a qualquer
resposta dos cães, mas ao fim de algum tempo, depois de serem
submetidos a várias experiências repetidas da conjunção constante
entre o toque da campainha e a recepção de comida, bastava tocar
a campainha para que os cães salivassem antecipando que iam
comer. Não há, claro, qualquer relação causal ou conexão
necessária efectiva entre o toque da campainha e o surgimento da
comida. Tudo o que existe é uma conjunção repetida, induzida por
Pavlov, entre os dois acontecimentos. São, portanto, os cães que
estabelecem, ao ouvir o toque da campainha, a relação com a
comida, num processo em tudo semelhante ao modo como Hume
explica como antecipamos acontecimentos de que não temos
experiência. Tal como os cães, fazemos uma associação imaginária
entre acontecimentos de que não conhecemos qualquer conexão
real, mas apenas uma conjunção constante, e é nisso que se baseia
todo o nosso conhecimento do mundo. Segundo Hume, não somos
seres racionais semelhantes a Deus, como pretendia Descartes; ao
invés, somos cães de Pavlov.

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