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SECCAO IV

Hipóteses de Qualificação Real Duvidosa ou Controvertida


SUBSECCAO I
Direito do Locatário
.

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
A questão da natureza jurídica do direito do locatário tem vindo a ser objecto de grande
interesse e da doutrina de reputados autores de distintos sistemas jurídicos 2o longo
dos anos.
• A controvérsia teve o seu início na doutrina francesa
em meados do Século XIX quando Merlin e sobretado
Tropleng, com base no artigo 1743.° do Code, que consagra «a manutenção do contrato de
locação no caso de alienação do direito de propriedade pelo locador»›, (eptio non tolit
locatum), vieram pôr em causa a então pacífica concepção clássica segundo a qual o
direito do locatário tinha natureza obrigacional.
A doutrina francesa e com base em disposições equivalentes do Code Napoleon,
influenciou e transferiu a polémica para a doutrina italiana, alerã e também para a doutrina
portuguesa e por arrasto para a doutrina angolana que herdou o sistema jurídico português
e neste particular dos direitos reais, que se repartiram em concepções pessoalista e
realista.

É certo que à medida que o tempo foi passando, os defensores da doutrina tradicional, a
doutrina pessoalista, foi progressivamente, tornando-se mais flexível e evoluindo para
posições mais elaboradas e consistentes, que consubstanciam certas concessões à
doutrina realista, e que esta última por sua vez se tenha reforçado face à adesão de
diversos e reconhecidos juristas, a questão é que a controvérsia se mantém em aberto e
por essa razão mais se justifica que nesta sede se proceda, ainda que de forma sucinta a
uma abordagem desta matéria.

2. ARGUMENTOS DA TESE REALISTA


Para que se possa qualificar o direito do locatário como direito real é indispensável que a
posição do locatário possua as notas próprias, específicas dos direitos reais. Conforme
estudamos antes, uma dessas notas exclusivas dos direitos reais é precisamente o direito
de sequela, e que consiste na possibilidade do titular do direito real exercer os poderes
correspondentes ao conteúdo do seu direito. Onde quer que a coisa se encontre, para onde
quer que ela se desloque, mesmo que passe para a esfera jurídica ou material de outra
pessoa.
Pois bem, o direito de sequela existe no arrendamento, Com efeito o legislador dotou o
arrendatário, o locador, com esse direito de sequela, característica exclusiva dos direitos
reais, como claramente consagra o artigo 1057.° do Código.
Civil do adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos
direitos e obrigações do locador...».
O texto deste artigo é bem claro, significa este regime que o locatário pode continuar a
exercer os seus poderes sobre a coisa; pode continuara a utilizar a coisa apesar de ela ter
sido
vendida, ou por qualquer outra forma ter sido alienada pelo locador a terceiro.

O direito, a posição jurídica do locatino tem eficácia em relação ao novo adquirente. Ora
isso é sei dúvida uma clara manifestação da característica da sequela. E não colhe aqui o
argumento dos que defendem ser esta não uma manifestação da sequela, mas antes uma
manifestação da cessão da posição contratual.
E de facto é relativamente fácil desmontar esse argumento dos pessoalistas. É que o efeito
do regime jurídico previsto no artigo 1057.° e que confere ao titular o direito de continuar a
utilizar a coisa, exercendo os poderes correspondentes ao .
conteúdo do seu direito ao terceiro adquirente resulta de uma disposição do Código Civil, é
por conseguinte um efeito imperativo do legislador.
Este efeito imperativo por força do qual o adquirente passa a assumir a posição do locador
impõe-se sem que a sua vontade seja solicitada, ou até mesmo contra ela. Ao contrário, se
se tratasse de um pacto nesse sentido em que o adquirente adquiria a posição do locador
teria que haver o consentimento Ido locatário. No caso do preceituado no artigo 1057" não
se verifica a necessidade de manifestação da vontade das partes envolvidas, ou seja,
nesta medida com derrogação geral do artigo 424." quanto à cessão da posição contratual.
Estamos perante um efcito que decorre por imperativo da lei, e ao qual a lei liga
automaticamente à transmissão do prédio, uma situação jurídica que poderemos designar
como sendo uma sub-rogação «ese lege» do contrato e que se traduz no facto de o
adquirente do prédio ficar, mesmo sem que o queira, subzrogado na posição de locador.
Em resumo, podemos concluir que esta solução imposta pelo legislador no artigo 1057."
configura nitidamente uma manifestação da caracteristica da sequela, nos exactos termos

em que regula a situação jurídica do usufrutuário, em que para a manutenção do seu


direito se mostra absolutamente irrelevante a aliena; ão por qualquer forma da
propriedade.
O direito de preferência é outra nota dos direitos reais que está igualmente presente no
direito do locatário. Porém, e uma vez que o direito de preferência não é uma
característica exclusiva dos direitos reais, uma vez que está igualmente presente nos
direitos de crédito, conforme dispõe o artigo 407° para os direitos pessoais de gozo, nessa
medida, o facto de estar presente a preferência no direito do locatário não se afigura
decisiva para qualificar o direito do locatário como direito real.

Os defensores da tese realista invocam igualmente em seu favor a possibilidade do


locatário se socorrer dos meios de defesa autónoma da sua posse, como dispõe o n.° 2 do
artigo
1037.°, contra actos que o privem da coisa ou perturbem o exercício do seu direito, para
além disso, e a concluir, cabendo ao locatário o gozo temporário da coisa, direito este que
é reconhecido expressamente pela lei, procuram os realistas demonstrar, contrariando
velha teses pessoalistas, que esse mesmo direito envolve faculdades que permitem ao
locatário actuar sobre a coisa, sem a mediação do locador.
3. ARGUMENTOS DA TESE PESSOALISTA

A teoria pessoalista, na sua formulação mais corrente que constrói o direito do locatário
como pessoal de gozo, reage aos argumentos dos defensores da configuração real do
direito do locatário nos termos que importa sublinhar.

Os pessoalistas excluem a qualificação do direto do locatário como direito real porque não
existe um poder directo e imediato sobre a coisa. Para os pessoalistas, o locatário não
teria uma ligação directa e imediata com a coisa mas apenas, mediata, as suas
possibilidades de gozo da coisa passariam pela cooperação com o senhorio.

O locatário teria apenas o poder de exigir do senhório que


The proporcionasse o gozo da coisa. E esta situação configuraria no fundo na negação da
característica da inerência da coisa ão seu titular enquanto característica exclusiva dos
direitos reais. O direito do locatário não seria assim um direito real porque este não teria
uma ligação directa com a coisa, teria essa ligação através do locador.

E os pessoalistas fundamentam este argumento com o facto de o legislador atribuir ao


senhorio certas obrigações especiais, o que faria com que o locador não fosse apenas um
de entre todos os restantes consociados que do lado externo dos direitos reais estavam
obrigados a uma atitude passiva universal, mas antes um sujeito da relação jurídica
obrigacional, o que tornaria o direito do locatário um mero direito de crédito.
O que dizer deste argumento dos pessoalistas? É verdade que o artigo 1031° impõe
obrigações ao senhorio, como a obrigação de entregar a coisa ao locatário, a obrigação de
lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se destina, e daqui se podem desencadear
toda uma série de obrigações, como ter de fazer obras de conservação da coisa e o artigo
1037.° prescrever-lhe a abstenção de práticas de actos que diminuam ou impeçam o gozo
da coisa pelo locatário. Contudo não parece que de se reconhecer haver para o senhorio
deveres especiais para com o locatário se afigure incompatível com a qualificação como
direito real da posição do locatário.

Acresce que situações desta mesma natureza estão igualmente presentes noutras
hipóteses. Assim sucede no usufruto, nos termos do artigo 1473.° em que podem estar a
cargo do proprietário de raiz obrigações para com o usufrutuário; ou no direito de
superficie, nos termos dos artigos 1532.ª e 1533. em que podem originar deveres especiais
a cargo do proprietário do solo; ou ainda na servidão em geral,

nos termos do artigo 1567. que estabelece a possibilidade de existirem obrigações a cargo
do proprietário do prédio serviente.
Pelo exposto concluímos que sempre que exista uma concorrência de direitos sobre a
mesma coisa, propriedade e um direito real limitado podem surgir deveres especiais a
cargo de um dos titulares desses direitos reais limitados.

E desta forma cai por terra o argumento dos pessoalistas que pretender excluir
decisivamente a qualificação do direito do locatário como direito real.
E deve dizer-se que não é correcto concluir a partir desses deveres especiais que assister
ao locador que não exista uma inerência da coisa ao seu titular enquanto característica
dos direitos reais. Com efeito, onde a inerência se manifesta com evidência é no facto do
legislador conferir ao titular do direito real a possibilidade de perseguir a coisa para onde
quer que ela se desloque, mesmo que para a esfera jurídica e patrimonial de outrem.

Esse poder sim, configura um nítido sintorna da característica da aderência do direito à


coisa, da chamada inerência da coisa 20 seu titular, e isso sucede no direito do locatário
conforme disposto no artigo 1057.º.
É verdade que há direitos de crédito muito conhecidos e praticados no dia-a-dia que
atribuem ao seu titular um contacto directo e imediato com a coisa, como sucede com o
direito do comodatário, ou do depositário. Ambos bastante frequentes, são na verdade
contratos que geram direitos de crédito, por via dos quais o credor tem um contacto a
coisa podendo até exercer certos poderes sobre essa mesma coisa.
Porém, essa situação em que se encontra o credor de poder exercer certos poderes sobre
a coisa, só por si não qualifica esses direitos como direitos reais. E não qualifica
exactamente porque em qualquer dessas duas situações não há inerência.

B compreende se que não há inerência porque os titulares desses diteitos, que ocupam a
posição de credor, quer o comodatírio, quer o depositário, não têm a possibilidade de
perseguir a coisa e acompanha la nas suas movimentações juridicas.
O comodatário a quem foi emprestado um automóvel, não pode impor o seu direito de usar
o aromóvel ao novo proprietário que entretanto o adquiriu à pessoa que lhe emprestara.
Ora isso não sucede com o locatário, uma vez que este tem a possibilidade de perseguir a
coisa o que constitui uma manifestação da característica da sequela que por sua
- vez se traduz na inerência da coisa ao seu titular.

Os personalistas invocam ainda os seguintes argumentos que têm como decisivos para
qualificar o direito do locatário como direito de crédito. O primeiro resulta do facto do
locatário , ter de pagar uma renda ou aluguer. E esse argumento não . colhe uma vez que
isso também ocorre em muitas situações claras de direitos reais. Com efeito o facto de o
locatário ter de pagar uma renda ou um aluguer em nada tem a ver com a natureza do
direito.
E assim que no direito da enfiteuse tem de se pagar o foro, e no direito de superficie pode
perfeitamente convencionar-se que o superficiário pague periodicamente uma certa
quantia ao proprietário do solo, ao invés de pagar uma importância global única. E o facto
de as partes acordarem essa modalidade de pagamento não modifica de modo algum a
natureza jurídica do direito do enfiteuta ou do superficiário como direito real A teoria
pessoalista na sua formulação mais elaborada, que constrói o direito do locatário como um
direito pessoal de gozo reage aos argumentos dos realistas do modo seguinte;
Refuta o primeiro argumento dos realistas que de resto foi o que deu azo ao debate a partir
do célebre artigo 1743.° do Code de Napoleon, a partir do qual deu lugar por sua vez à
formulação do artigo correspondente da lei portuguesa, o famoso e já estudado artigo
1057.°, dizendo que este artigo permite uma construção obrigacional. É importante
ressaltar a este respeito que esse preceito legal foi nitidamente influenciado pela posição
defendida por Inocêncio Galvão

Teles, autor do correspondente anteprojecto.


Continuam os pessoalistas em defesa do seu argumento que este artigo 1057.° estando
subordinado a uma Secção,. cuja epigrafe é «transmissão da posição contratual», estatui-
se neste artigo que «o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato
sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do regime».
Continuam os pessoalistas dizendo que o regime disposto no artigo 1057.° configura assim,
uma transmissão ex-lege da posição contratual do locador. Por esta via, transmitindo-se
em bloco os direitos e obrigações do primitivo locador, ficava igualmente explicado o
direito do novo locador à renda.

Este argumento dos pessoalistas que à partida se afigura de grande rácio e por isso de
acolher, entronca no entanto num obstáculo à sua aceitação. É que conforme refere o
regime jurídico do preceito, tem que se ter presente que a transmissão ocorre dispensando
a manifestação da vontade autónoma das partes, ou seja sem necessidade do
assentimento das partes envolvidas, isto é, nesta medida assiste-se à derrogação da regra
geral do artigo 424.° relativamente à cessão da posição contratual.
Relativamente ao argumento esgrimido pelos realistas de o locatário se poder servir dos
meios de defesa da posse, defendem os pessoalistas que se o direito do locatário tivesse
natureza real, o preceito seria inútil, uma vez que é exactamente esse o regime próprio dos
direitos reais de gozo.
Este mesmo argumento vale para o artigo 1057° que consagra apenas a nota de sequela
própria dos direitos reais.

Defendem os pessoalistas que a necessidade que o legislador sentiu de, em qualquer


dessas situações afirmar as soluções analisadas só vem confirmar que a sua intenção
assentava no pressuposto do carácter não real do direito do locatário.6* Este argumento
está longe de ser decisivo. Pode dizer-se, e é esse o entendimento que perfilho, que o
legislador, exactamente por estar consciente desta vexata quetio, Por reconhecer que o
direito do locatário é de qualificação duvidosa, controvertida e polémica, ainda não
resolvida com argumentos definitivos a favor de uma ou de outra qualificação, pode ter
optado por conferir ao locatário por essa razão precisamente, expressamente esses
poderes.

. Os pessoalistas argumentam ainda que o direito do locatário


É um direito pessoal de gozo, um direito de crédito porque o seu regime está inserido na
sistematização do Código Civil no Livro das Obrigações.
Esse argumento formal é demasiado frágil. Os direitos reais de garantia estão lá todos.
Também lá estão os direitos reais de aquisição, quer os direitos de preferência legal, como
o pacto de preferência com eficácia real ou o contrato-promessa com eficácia real e não
deixam de ter natureza real por se encontrarem regulados no Livro das obrigações.
4. POSIÇÃO ADOPTADA
Uma análise desapaixonada dos argumentos invocados pelas duas orientações
doutrinárias em confronto conduz a reconhecer que do ponto de vista formal-sistemático
nada
se colhe.
Com efeito, os direitos reais estão dispersos por todo o Código Civil e no Livro das
obrigações estão todos os direitos reais de garantia e de aquisição. Do ponto de vista da
análise das soluções que decorrem dos diversos problemas com significado para efeito da
qualificação do direito do locatário, como um direito de crédito ou um direito real, (haver
ou não direito de sequela, haver ou não direito de preferência, o problema das obrigações
do locador, etc.).
O significado das notas reais do direito do locatário, em especial o facto de este estar
dotado da característica da sequela, revela não ser desajustada, a final, a qualificação
normativa de direito real de gozo acompanhando os Professores Oliveira Ascenção, e Dias
Marques e contra a corrente maioritária da doutrina portuguesa, a tese da qualificação do
direito do locatário como um direito real por este direito estar dotado das características
especiais e exclusivas dos direitos reais, como a sequela e a inerência da coisa ao seu
titular enquanto corolário daquela nota especifica dos direitos reais.

SUBSECÇÃO II
Obrigações Reais e Ónus Reais

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Os conteúdos das situações jurídica em que se encontram investidos os titulares de certos
direitos reais, mostram, que
65 Otiveira Maconado, elições de Discitos Reais, ao curso do 4. ano jutídlico de 1966-19G7,
edição
da Associação da Académica da Faculdade de Dircito de lisboa pág, 374 e seguintes.
Diass Marques «Presctição aquisitivas, lisboa, 1960, Vol. 1 pág 220

por razões de diversa ordem, determinadas pela necessidade de saustazer int-resses


públicos, mas atender também interesses partculares, impoem limitações ou restrições ao
exercício das faculdades que integram o seu conteúdo

A análise dessas limitações revela que elas consistem, em determinados casos, na


abstenção da prática de certas condutas, mas que podem noutros casos, traduzir-se na
necessidade de adoptar certos comportamentos.
Paralelamente há ainda comportamentos positivos que são impostos a titulares de direitos
reais nessa qualidade.

A caracterização da situação jurídica descrita acima revela sem qualquer dúvida a


existência estrutural de uma obrigação, na medida em que se identifica a adstrição de
certa pessoa a uma prestação periódica determinada ou determinável.

A obrigação de efectuar a prestação periódica transfere-se com as deslocações do imóvel.


O titular do imóvel em cada momento é responsável por essa prestação que adere o
imóvel, acompanha-o para onde quer que ele se desloque gravando-se sobre ele.
Reconhece-se aqui, assim a existência de uma verdadeira sequela. A transferência do bem
importa a transferência da obrigação.

Esta situação é conhecida por ónus reais. Trata-se de uma figura que se traduz numa
situação jurídica cuja manifestação fundamental é o direito de obter uma prestação
periódica, geralmente pecuniária, que grava de forma especial e directa um bem imóvel,
em termos de o.seu titular ser o responsável por essa prestação.
Os ónus reais têm uma certa afinidade com outro tipo de situações jurídicas já
conhecidas, as chamadas obrigações reais, ou obrigações «propter rem», ou ainda
obrigações «ob rem».

¡A diferença entre estas duas figuras, consiste no seguinte: Em melbos os casos, tanto nos
ónus reais, domo nas obrigações reais, a necessidade de efectuar uma prestação é da
responsabilidade do titular de um certo direito real.

Constata-se assim a existência de um denominador comum.


Em ambos os casos, quer no ónus reais, quer nas obrigações reais, existe a necessidade
de se efectuar urna prestação que incumbe ao titular de um certo direito real; existe em
ambos os casos uma ligação indirecta duma obrigação ao seu sujeito passivo, o qual é
determinado por meio da titularidade de um direito real.
O que sucede de diferente nessas situações jurídicas, é que nas obrigações reais os
deveres que são da responsabilidade do proprietário serviente para com o titular do prédio
dominante, ou os deveres entre os diversos comproprietários, o adquirente do direito real
por inerência do qual emerge a obrigação real, só é responsável pelas obrigações que
surjam para o futuro. Ao invés, nos ónus reais o titular do prédio gravado com o ónus, o
titular do prédio serviente, responde pelas obrigações já vencidas, mesmo antes da sua
aquisição.
A distinção destes dois regimes permite aferir de forma pacifica a natureza jurídica de
ambas as figuras permitindo-nos qualificar os ónus reais como um direito real, face a
presença da característica da sequela uma vez que as obrigações já vencidas seguem,
acompanham o prédio nas suas deslocações e são exigíveis ao novo adquirente, e ao
mesmo tempo qualificar as obrigações reais, que são claramente direitos de crédito
exatamente por estarem destituídas dessa nota especial dos direitos reais.

2. CLASSIFICAÇÃO DOS ÓNUS REAIS ENQUANTO


DIREITOS REAIS

O que cabe agora analisar é qual a modalidade dos ónus reais enquanto direitos reais. Ou
seja, dito doutro modo analisar à luz do seu regime jurídico, se os ónus reais se traduzem
em simples direitos reais de garantia, do tipo dos privilégios creditórios imobiliários, ou se
ao invés constituem uma modalidade autónoma de direitos reais.

A POSIÇÃO ADOPTÀDAI

Analisando a estrutura dos ónus reais, afigura-se nos pacífico inferir que esse direito não
se apresenta como uma figura autónoma. Com efeito ao analisarmos a estrutura desse
dircito, constatamos que o adquirente do prédio sobre o qual grava o ónus responde pelas
obrigações anteriores à sua aquisição e responde igualmente pelas obrigações posteriores

E aqui chegados cumpre analisar com que bem é que o adquirente do prédio responde
relativamente às obrigações que lhe são devidas.
Pois bem o adquirente do prédio, relativamente às obrigações anteriores à sua aquisição
apenas responde com o prédio, enquanto que pelas obrigações posteriores à sua aquisição
o adquirente responde com todos os seus' bens, porém (e esta nota é de capital
importância), o credor das prestações tem sempre um direito de garantia sobre o prédio
especialmente onerado.

E este particular é, com efeito, de capital importância. O Facto do credor das prestações
dispor de um direito de garantia sobre o prédio especialmente onerado para salvaguardar,
garantir o pagamento das suas prestações, faz como que os ónus reais não configurem um
direito autónomo, na medida em que o seu regime não se revela substancialmente
diferente do que sucede com os privilégios creditórios imobiliários.

É importante sublinhar ainda que nos ónus reais, o que é susceptível de qualificação como
direito real não é o dever de efectuar uma prestação, esse dever de prestação é um direito
de crédito. O ónus real é a situação global que faz gerar essas diversas prestações.

Em função do exposto afigura-se-nos concluir o seguinte:


Os ónus reais são verdadeiros direitos reais, contudo não são direitos reais que revistam
autonomia perante os privilégios creditórios imobiliários. Os ónos reais só teriam
autonomia
reconhecida se o titular do prédio onerado com o ónus real respondesse com todos os
seus bens e não apenas com o prédio, mesmo pelas dividas anteriores à sua aquisição.

Se assim fosse, haveria reconhecidamente uma autonomia relativamente aos direitos reais
de garantia.
E porque não é de facto esse o seu regime jurídico, tal como se constata através do regime
das distintas figuras avulsas que exemplificam o ónus real no nosso Código Civil, como são
os casos dos artigos 959.° n.° 1 in fine e o artigo 2018.° referente ao cônjuge sobrevivo,
podemos encerra o estudo desta matéria afirmando que o ónus real sendo um direito real,
não é assim mesmo um direito real autónomo.

A primeira nota na individualização dos ónus reais, próprio sensu, reside no facto de, sob o
ponto de vista estrutural, serem obrigações, em geral de prestações periódicas, de
géneros ou de dinheiro, impostas a quem seja, em cada momento, titular de um direito real.

Estas obrigações estão dotadas de um regime particular relativamente ao seu


cumprimento, na medida em que, quando essas obrigações não são realizadas
voluntariamente, o credor pode fazer-se pagar pelo valor da coisa sobre o qual recaem,
com a importante particularidade que detêm o direito de preferência sobre todos os
demais credores, sendo que essa mesma preferência não exclui, necessariamente, a
possibilidade de o credor se fazer pagar pelo patrimônio do devedor nos termos gerais.

No caso da transmissão do prédio onerado, o credor do ónus real continua a poder exercer
sobre este o seu crédito, mesmo quanto às obrigações vencidas. A coisa responde ainda,
nos termos expostos, pelas obrigações que se venceram após a transmissão.

Assim configurada a sua estrutura; podemos inferir que as notas essenciais dos ónus
reais, vistas do lado activo sejam as seguintes.
1. O direito a uma prestação, em geral peródica, a que está adstrito quem em cada
momento for titular de um direito real sobre uma coisa;
2. O titular do direito, mesmo quando a prestação diga respeito a frutos ou produtos
da coisa, só os pode obter através de acto do devedor;
3. O direito do credor, em caso de incumprimento, pode ser realizado, com preferência
sobre os demais credores, pelo valor da coisa, ainda que essa coisa seja alienada a
terceiro.

Avaliados os elementos essenciais que compõem a estrutura do ónus reais é fácil


vislumbrar a existência de elementos de natureza obrigacional (o dever de cumprir com
uma obrigação), e elementos de natureza real (consistem na ligação do direito a certa
coisa, na sua inerência, essa ligação não se traduz através do exercício de poderes de
gozo sobre a coisa, mas antes sobre características próprias dos direitos reais de garantia
e da característica da sequela.

Os direitos reais de garantia resultam da possibilidade do credor do ónus real se poder


fazer pagar por meio do valor da coisa com preferência sobre todo e qualquer outro credor,
e a característica da sequela está presente nos seguintes termos.

No caso da transmissão do prédio onerado, o credor do ónus continua a poder exercer o


seu crédito mesmo quanto as obrigações vencidas. A coisa responde ainda, nos termos
expostos, pelas obrigações que se venceram após a transmissão.

E nessa medida o titular do ónus real peressegue a coisa.


Os ónus reais, tal como ficam definidos, têm nos dias de hoje um campo de aplicação
bastante limitado no sistema jurídico angolano tal como já antes se exemplificou com os
artigos 959.° n.° 1 e o 2018.°, este último referente ao apanágio
do cônjuge sobrevivo.

O direito público angolano contém igualmente algumas manifestações do ónus real,


nomeadamente na Lei n." 18/11
de 21 de Abril que aprovou o Imposto Predial Urbano (IPU)-
SUBSECÇÃO MI
O Direito do Destinatário de uma Promessa
Irrevogável
A concluir o estudo das questões de natureza controvertida, cumpre agora focarmo-nos
brevemente na figura do direito do destinatário de uma proposta irrevogável da alienação
de uma coisa.
A questão coloca-se nos seguintes termos: A apresenta a B urna determinada proposta
irrevogável elaborada em certos termos para que compre um certo objecto. B, o
destinatário fica com a opção de aceitar ou não a proposta e em consequência tornar-se
no titular do objecto cuja proposta lhe é feita,

A questão que se coloca é exactamente essa. A posição de B, do destinatário de uma


proposta irrevogável de alienação de uma coisa constituirá um direito real, um direito real
de aquisição que confere a quem é dirigida a promessa o direito de adquirir essa coisa
afastando todos os consociados, estando assim dotada da característica de eficácia erga
omnes? A análise sumária da estrutura desta figura leva-nos a responder linearmente que
realmente não estamos em presença de um direito real de aquisição. E isso por duas
razões.
Em primeiro lugar a posição do destinatário da promessa irrevogável não confere a este
um poder directo e imediato
sobre a coisa.

Em segundo lugar e na sequência da primeira constatação, o facto de o destinatário não


dispor de um poder directo e imediato sobre a coisa, B, o destinatário não pode exercer o
seu direito sobre terceiros que eventualmente tenham adquirido essa coisa "
Exemplifiquemos: A propõe a B veni e- lhe um dado objecto sendo a proposta irrevogável.

Enticcanto a «medio tempore» enquanto B, o destinatário da


proposta não manifesta a sua aceitação de comprar o objecto, A, o proponente vende o
mesmo objecto a C, 3 não pode reivindicar o objecto de C para quem A vendeu
legitimamente.

Em face desta estrutura da figura do direito de uma proposta itrevogável, concluímos que
essa posição de B, o destinatário não podendo efectivar-se contra terceiros, não constitui
um direito real de aquisição Constitui antes uma figura que gera ao destinatário uma
expectativa factual e que uma vez consumada, isto é, uma vez concretizado o negócio, ai
sim torna o destinatário proprietário desse objecto e do direito real de propriedade
correspondente. Até lá é uma mera posição factual que configura uma simples expectativa
de vir a gerar direitos, mas só concretizados com a efectivação do negócio de compra e
venda. A posição do destinatário de uma proposta irrevogável de alienação de uma coisa,
de resto, não consta, aliás, dos direitos sujeitos a registo no Código do Registo Predial.™

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