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FICHA CATALOGRÁFICA

Francisco Fernandes Ladeira


10 ANOS DE OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2020
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Foto da Capa: Aurelia Peixouto
Imagens da Capa: Pixabay
Revisão: Analista de Línguas CRV

L153
Ladeira, Francisco Fernandes.
10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático / Francisco Fernandes Ladeira – Curitiba : CRV, 2020.
146 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-444-4041-4
DOI 10.24824/978854444041.4
1. Jornalismo 2. Comunicação 3. Mídia I. Título II. Série.
CDU 070 CDD 070.4

Índice para catálogo sistemático


1. Jornalismo 070.4

2020
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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DEDICATÓRIA

Este livro é dedicado


à memória de Maria Stella Autran.

EPÍGRAFE

“E lembre-se, acompanhando o Observatório da Imprensa pela televisão ou pela internet, você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”.
Alberto Dines

APRESENTAÇÃO

Em outubro de 2011 era publicado o meu primeiro artigo no website Observatório da Imprensa. Desde então, foram quase duzentos textos, a respeito dos mais variados assuntos,
mas que, em comum, possuíam basicamente o objetivo de realizar uma análise crítica sobre a atuação da chamada “grande mídia brasileira”; nomenclatura pela qual é conhecido o
oligopólio formado por algumas famílias que controlam a maior parte das informações distribuídas em nosso país.
O Observatório da Imprensa foi fundado em 1996 pelo saudoso Alberto Dines (um dos nomes mais respeitados da história do jornalismo brasileiro) com o apoio do então
reitor da Unicamp, Carlos Vogt. Trata-se de um veículo jornalístico independente dedicado à crítica da mídia brasileira. Entre 1996 e 2015, Dines apresentou o programa semanal
do Observatório da Imprensa nas emissoras públicas TV Cultura, TVE e sua sucessora, TV Brasil/EBC1.
Para este livro foram selecionados cinquenta e um artigos que escrevi, publicados no Observatório da Imprensa, entre 2011 e 2020, perfazendo assim todos os anos da
segunda década do século XXI2. Os textos em questão foram divididos em dez capítulos, cada qual enfatizando uma temática específica: Mídias tradicionais, Novas mídias,
Sociedade, Política, Geopolítica, História, Religião, Minorias, Esporte e Entretenimento.
No apêndice apresento o texto “O último ano da década: teria a distopia vencido a utopia?”, em que discuto algumas perspectivas para 2020 e os anos vindouros.
Boa parte das questões aqui abordadas são bastante polêmicas. Como diz o amigo Rafael Liguori, meus artigos são “intelectualmente agressivos”. Entre as temáticas
levantadas destacam-se os diversos tipos de preconceitos da elite brasileira, o movimento feminista, o racismo, a atuação partidária da grande mídia e as origens do chamado
“complexo de vira-latas”.
Recorrendo às palavras do mestre Florestan Fernandes, “não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os
explorados”3.
Nesse sentido, considero que textos não são produções voltadas apenas para a construção do conhecimento, pois também podem, à medida do possível, contribuir, no plano
discursivo/simbólico, para a criação de uma sociedade mais justa e equilibrada, que busque superar todos os tipos de antagonismos entre os seres humanos. Em outros termos,
assim como Paulo Freire, anseio por uma realidade em que os oprimidos possam, enfim, se libertar de seus opressores4.
Portanto, os artigos que escrevi para o Observatório da Imprensa, além de apresentarem um olhar crítico sobre a atuação da mídia brasileira, estão comprometidos com as
transformações sociais de que tanto necessitamos. Não por acaso, meus trabalhos que estão presentes no espaço virtual, sobretudo em momentos de radicalizações ideológicas,
constantemente são alvos dos chamados haters5.
Lembrando o pensamento do filósofo grego Heráclito, o homem é um ser em constante mutação6. Desse modo, como “não sou o mesmo de outrora”, evidentemente também
já não tenho determinados posicionamentos e concepções presentes em alguns textos aqui reproduzidos. Considero que rever conceitos sempre é uma prática salutar. Como já
dizia Raul Seixas, “prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
No período compreendido neste livro ocorreram fatos emblemáticos da recente história brasileira, como as “jornadas de junho de 2013”, o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, as realizações dos maiores eventos do esporte mundial em nosso país (a Copa do Mundo FIFA de 2014; e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016), os desastres
(ou crimes) ambientais ocorridos após os rompimentos de barragens da mineradora Vale no estado de Minas Gerais, a eleição de um presidente de extrema-direita e a divulgação
de áudios feita pelo site The Intercept Brasil, que comprovavam como a Operação Lava Jato foi arquitetada para facilitar a entrega das riquezas brasileiras para os grandes
capitalistas internacionais e perseguir o ex-presidente Lula.
Em âmbito mundial, os principais acontecimentos foram a crise do processo de globalização (representada pela saída do Reino Unido da União Europeia e a chegada ao
poder de políticos como Donald Trump, Boris Johnson e Viktor Orbán), a chamada “Primavera Árabe”, as mobilizações populares contra as políticas neoliberais na América do
Sul, as várias tentativas de golpes de Estado em países subdesenvolvidos (algumas bem-sucedidas), o agravamento da crise econômica capitalista iniciada em 2008, a ascensão do
grupo terrorista Estado Islâmico e o crescimento da extrema-direita, tanto em nações ricas quanto em nações pobres.
A segunda década do século XXI também foi marcada pela consolidação da internet como principal meio de comunicação utilizado pela população mundial (sobretudo os
mais jovens), interligando povos e culturas, em múltiplas atividades7. De acordo com a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da ONU especializada em
tecnologias de informação e comunicação, em 2018 cerca de 4 bilhões de pessoas acessavam constantemente o espaço virtual em todo o mundo (o que equivalia, na época, a 51%
da população planetária)8.
É importante ressaltar que a presente obra não tem como intuito realizar uma retrospectiva sobre os principais acontecimentos do Brasil e do mundo entre os anos de 2011
e 2020 (os artigos aqui apresentados, inclusive, não estão dispostos em ordem cronológica). Como o título deste livro já pressupõe, pretende-se aqui apenas registrar o ponto de
vista de um crítico midiático sobre alguns discursos da imprensa hegemônica brasileira.
Instância privilegiada da esfera pública9, a mídia é considerada por muitos analistas como o “quarto poder”, em referência à sua influência sobre a sociedade, de maneira
geral, e em alusão aos outros três poderes do Estado democrático: Legislativo, Executivo e Judiciário.
No entanto, segundo o jornalista Jakson Ferreira de Alencar, na atualidade, devido ao seu desenvolvimento, aos avanços tecnológicos, e à forma ostensiva como a mídia faz
parte da vida das pessoas e das diferentes sociedades, a mídia pode ser considerada não o “quarto”, mas o “primeiro” poder.
Portanto, uma imprensa plural, séria e verdadeiramente livre é imprescindível para o aprofundamento de qualquer sistema minimamente democrático. E a legítima liberdade
de imprensa implica que ela não seja monopólio de determinados setores10.
Por outro lado, apesar de a mídia procurar aparentar imparcialidade e objetividade, o seu repertório lexical, a concessão de mais espaço a uma notícia em detrimento de
outras, a maneira como é desenvolvida a cobertura de um acontecimento, a escolha do título de uma matéria e os critérios para o posicionamento de uma foto são alguns exemplos
de posturas que deixam transparecer posicionamentos ideológicos e eliminam a ideia de uma possível neutralidade da informação, pois os grandes grupos de comunicação
geralmente servem aos interesses de governos ou das empresas que os financiam.
Sendo assim, ao contrário do preconizado pela “Teoria do Espelho”, as coberturas jornalísticas não são reflexos fidedignos da realidade, capturados objetivamente, sem
nenhum tipo de interferência do olhar do observador. Os noticiários são construções sociais sobre a realidade que ganham materialidade através de determinadas práticas
discursivas. Valores subjetivos e a maneira de conceber o mundo do produtor de uma notícia certamente vão influenciar, de alguma maneira, a construção de seu texto.
No mais, gostaria de mencionar algumas pessoas que foram importantes na concretização deste livro: minha família (Pedro, Thiago e Vera) pelo apoio de sempre, meus
ex-alunos (que compartilharam comigo algumas das reflexões aqui presentes), a professora (e fotógrafa) Aurélia Hubner Peixouto e o pessoal da Editora CRV, por acreditar neste
projeto. Cito, em especial, a equipe do Observatório da Imprensa e os coautores de dois artigos aqui reproduzidos: o professor da UFSJ, Vicente de Paula Leão, e a professora de
Língua Portuguesa, Kauana Scabori dos Santos, que cordialmente autorizaram as publicações dos textos com eles escritos. A todos que se interessarem por este trabalho, desde já
agradeço a atenção dispensada e desejo uma boa leitura.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

PREFÁCIO

“Quanto mais alguém, por meio da ação e da reflexão, se aproxima da ‘razão’, do ‘logos’ da realidade, objetiva e desafiadora, tanto mais, introduzindo-se nela
alcançará o seu desvelamento” (Paulo Freire).

Em tempos de pós-verdades, desvelar a realidade é uma tarefa intelectual necessária para defender a democracia. Entender o mundo com a história em marcha exige de todos
nós compromisso com o pensamento crítico que, nas palavras de Berthold Brechet, “é impiedoso com os privilégios, com instituições estabelecidas e com hábitos confortáveis. O
pensamento é anárquico e indiferente à autoridade, ele espia o fundo do inferno e não se amedronta”.
Aqueles que têm medo de “espiar a realidade” geralmente preferem ver através da lente do dominador, reproduzir discursos de opressão e servir de massa de manobra para
projetos conservadores e excludentes. José Saramago nos ensina que “se queres ver, há que se dar a volta” e olhar por diferentes ângulos, para além da visão unidimensional da
mídia, e se libertar do pensamento único. Segundo Guimarães Rosa, “o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Uma travessia de uma década sob o olhar de um autor crítico que não tem medo de expor suas opiniões. A antiga TV Manchete possuía um slogan que dizia: “Aconteceu
virou manchete”. Parafraseando essa chamada publicitária podemos afirmar que, para o autor, vale o lema: “Aconteceu virou artigo”.
Essa conexão profunda do autor com o mundo, para sorte dos leitores, foi reunida neste livro que trás uma coletânea de artigos que debatem as principais questões da
efervescente década que se iniciou em 2011, por meio de um olhar critico sobre o papel da mídia em nossa sociedade, a partir da abordagem de diferentes temáticas como política,
economia, cultura, comportamento humano, geopolítica e redes sociais.
Uma leitura necessária para todos aqueles que não aceitam verdades prontas, para aqueles que duvidam e que elegeram a busca como aliada da travessia de todos nós nesse
mundo.
A crítica realizada pelo autor sobre a cobertura midiática dos principais fatos da atualidade nos permite entender o papel exercido pelas grandes empresas de comunicação e
suas atuações como agentes políticos formando opiniões, definindo comportamentos, orientando ações que afetam a economia, a política, o nosso cotidiano e são capazes de
derrubar governos, eleger presidentes e iniciar guerras.
A mídia possui uma linguagem própria e, portanto, é necessário formação para conviver com ela. Conforme aponta a professora Vera Lúcia Follain Figueiredo, é
importante “promover uma segunda alfabetização, ou seja, de ensinar a ler a mensagem midiática e compreender a sua linguagem”. Não é mais possível pensar sobre os principais
fatos históricos de nosso tempo desconectados de suas representações na mídia.
Ao longo desse livro o leitor será convidado a pensar e a entender que informação não é conhecimento e que a descontextualizarão dos fatos é um instrumento que tem como
objetivo produzir uma visão parcializada da realidade.
O autor apresenta textos que trazem uma polifonia de vários pensadores que oferecem suporte para o entendimento das temáticas abordadas e formam um palco de vozes
que, conforme destaca a professora Nadia Laurenti, “é multivocal e o seu elemento estruturante é a polifonia. A alteridade é a dimensão constitutiva deste palco de vozes que
polemizam entre si, dialogam ou complementam-se. Neste território comum há um fluxo ininterrupto de significados, o que possibilita constantes ressignificações”.
Ao propor o debate em seus textos sobre os temas de nosso tempo, o autor permite que possamos nos apropriar de outras formas de ver o mundo, rompe com o discurso
monopolizador da grande mídia sobre os fatos e nos faz entender o que diz Guimarães Rosa: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”.

Vicente de Paula Leão


Universidade Federal de São João del-Rei
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

1 MÍDIAS TRADICIONAIS

“Se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo” (Malcolm X).

O capítulo inicial deste livro apresenta cinco textos que abordam algumas das principais caraterísticas das chamadas “mídias tradicionais” (jornais, revistas, televisão,
rádio etc.).
O artigo “A mídia realmente tem o poder de manipular as pessoas?” questiona as clássicas teorias da comunicação que compreendiam os grandes meios de comunicação
como poderosos mecanismos de alienação das massas. Conforme argumento no texto, as relações entre mídia e público são bastante complexas e estão muito além de uma simples
análise behaviorista de estímulo/resposta11.
Os meios de comunicação de massa podem até ter intenções de manipulação, mas caberá à instância da recepção conceder o sentido final a uma determinada mensagem, pois
a maioria das pessoas tem suas convicções e adapta as informações de acordo com elas, ou seja, levando em consideração a “bolha ideológica” de que fazem parte.
Em sequência, o artigo “Onde e como ocorrem as manipulações”, conforme o título já indica, enfatiza que, se quisermos compreender onde e como ocorrem os possíveis
mecanismos de manipulação no processo de comunicação, deveremos deslocar o foco da instância receptiva para a instância emissora. O texto conclui que a manipulação
midiática não ocorre na recepção, mas na produção e construção da notícia, com a seleção dos acontecimentos considerados como interesse público, no tratamento dado a uma
informação, ao fazer juízo de valores, na escolha das fontes a serem ouvidas, na amplificação de um fato, em estratégias discursivas, no repertório lexical e ao privilegiar um
enquadramento da realidade em detrimento de outros pontos de vista possíveis.
Ainda sobre os padrões de manipulação presentes na grande imprensa, o texto “A ideologia na cobertura dos noticiários internacionais” aponta como a mídia utiliza um
vocabulário específico com o objetivo tácito de induzir o receptor a compactuar com um determinado viés ideológico. Nos principais jornais impressos e televisivos de nosso país,
as escolhas de um determinado verbo ou de uma conjunção não são feitas por simples questões gramaticais, mas ideológicas. Adjetivos como “terrorista”, “caudilho” ou
“extremista” são capciosamente utilizadas, não para descrever a “realidade”, mas como “estratégias discursivas”.
Publicado em maio 2015, ano em que a Rede Globo completava meio século de atividades, “Reflexões sobre a televisão”, o quarto artigo deste capítulo, tece alguns
comentários sobre a televisão, um dos veículos de comunicação mais populares entre os brasileiros12.
Finalizando este primeiro capítulo, a partir da obra de Guy Debord, em “A espetacularização da realidade” faço uma reflexão sobre a atuação da mídia na chamada
“sociedade do espetáculo”; marcada pela dominação da economia sobre a vida social, pela submissão da consciência à forma mercadoria, pelo alijamento da realidade, pela
sobreposição da imagem sobre o conteúdo e pela degradação do “ser” pelo “ter” (ou seja, socialmente um indivíduo é valorizado pelo que possui, e não pelo seu caráter)13.

A mídia realmente tem o poder de manipular as pessoas?

Por Francisco Fernandes Ladeira em 14/04/2015 na edição 846

À primeira vista, a resposta para a pergunta que intitula este artigo parece simples e óbvia: sim, a mídia é um poderoso instrumento de manipulação. A ideia de que o frágil
cidadão comum é onipotente frente aos gigantescos e poderosos conglomerados da comunicação é bastante atrativa intelectualmente. Influentes nomes, como Adorno e
Horkheimer, os primeiros pensadores a realizar análises mais sistemáticas sobre o tema, concluíram que os meios de comunicação em larga escala moldavam e direcionavam as
opiniões de seus receptores. Segundo eles, o rádio torna todos os ouvintes iguais ao sujeitá-los, autoritariamente, aos idênticos programas das várias estações.
No livro Televisão e Consciência de Classe, Sarah Chucid Da Viá afirma que o vídeo apresenta um conjunto de imagens trabalhadas, cuja apreensão é momentânea, de
forma a persuadir rápida e transitoriamente o grande público. Por sua vez, o psicólogo social Gustav Le Bon considerava que, nas massas, o indivíduo deixava de ser ele próprio
para ser um autômato sem vontade e os juízos aceitos pelas multidões seriam sempre impostos e nunca discutidos. Assim, fomentou-se a concepção de que a mídia seria capaz de
manipular incondicionalmente uma audiência submissa, passiva e acrítica.
Todavia, como bons cidadãos céticos, devemos duvidar (ou ao menos manter certa ressalva) de preposições imediatistas e aparentemente fáceis. As relações entre mídia e
público são demasiadamente complexas, vão muito além de uma simples análise behaviorista de estímulo/resposta. As mensagens transmitidas pelos grandes veículos de
comunicação não são recebidas automaticamente e da mesma maneira por todos os indivíduos. Na maioria das vezes, o discurso midiático perde seu significado original na
controversa relação emissor/receptor.
Cada indivíduo está envolto em uma “bolha ideológica”, apanágio de seu próprio processo de individuação, que condiciona sua maneira de interpretar e agir sobre o mundo.
Todos nós, ao entramos em contato com o mundo exterior, construímos representações sobre a realidade. Cada um de nós forma juízos de valor a respeito dos vários âmbitos do
real, seus personagens, acontecimentos e fenômenos e, consequentemente, acreditamos que esses juízos correspondem à “verdade”.
Dificilmente um sujeito de esquerda deixará de apresentar o mesmo posicionamento político após ler uma matéria na revista Veja, ou um direitista mudará suas ideias ao
entrar em contato com publicações como Carta Capital e Caros Amigos. Um parâmetro de conduta hegemônico não surge apenas pela visibilidade midiática. Todas as ideias
esboçadas nos meios de comunicação provêm de mecanismos psicológicos já existentes alhures. A onda de “linchamentos” ocorrida ano passado não foi consequência exclusiva
dos programas policialescos ou dos discursos inflamados da apresentadora Rachel Sherazade, como equivocadamente interpretaram alguns. Nesse caso, os setores sensacionalistas
da mídia somente reverberaram e reproduziram em larga escala preconceitos e ações que remetem aos primórdios da civilização (“justiça com as próprias mãos”, “olho por olho,
dente por dente”) ou estão na sociedade brasileira há séculos (a imagem de um negro acorrentado a um poste nos faz lembrar o período escravocrata).
Por outro lado, a enxurrada de informações presentes em um telejornal, por exemplo, faz com que a retenção de conteúdo midiático por parte do telespectador seja muito
baixa. O estudo intitulado The Attention Factor in Recalling Network Television News revelou que mesmo um grupo composto por pessoas de bom nível educacional (às quais se
pediu que prestassem atenção especial ao noticiário de uma noite específica na televisão) não foi capaz de recordar 25% das matérias assistidas apenas alguns minutos depois de
encerrada a emissão, o que nos leva a considerar que a maioria das informações transmitidas por um telejornal não fica retida na mente dos telespectadores nem por uns
poucos minutos.
Não obstante, a mídia é apenas um, entre vários quadros ou grupos de referência, aos quais um indivíduo recorre como argumento para formular suas opiniões. Nesse
sentido, competem com os veículos de comunicação como quadros ou grupos de referência fatores subjetivos/psicológicos (história familiar, trajetória pessoal, predisposição
intelectual), o contexto social (renda, sexo, idade, grau de instrução, etnia, religião) e o ambiente informacional (associação comunitária, trabalho, igreja). “Os vários tipos de
receptor situam-se numa complexa rede de referências em que a comunicação interpessoal e a midiática se completam e modificam”, afirmou a cientista social Alessandra Aldé
em seu livro A construção da política: democracia, cidadania e meios de comunicação de massa. Evidentemente, o peso de cada quadro de referência tende a variar de acordo
com a realidade individual. Seguindo essa linha de raciocínio, no original estudo Muito Além do Jardim Botânico, Carlos Eduardo Lins da Silva constatou como telespectadores
do Jornal Nacional acionam seus mecanismos de defesa, individuais ou coletivos, para filtrar as informações veiculadas, traduzindo-as segundo seus próprios valores. “A síntese e
as conclusões que um telespectador vai realizar depois de assistir a um telejornal não podem ser antecipadas por ninguém; nem por quem produziu o telejornal, nem por quem
assistiu ao mesmo tempo que aquele telespectador”, inferiu Carlos Eduardo.
Recorrendo ao pensamento de Saussure, é importante ressaltar que o cidadão comum não tem o domínio completo da estrutura linguística. Até um analfabeto funcional não
representa um alvo completamente vulnerável à persuasão midiática, pois suas próprias dificuldades interpretativas o impedem de replicar fielmente qualquer tipo de discurso
ideológico que seja oriundo dos meios de comunicação em larga escala. Como bem asseverou Muniz Sodré, a mídia não manipula, mas sugere determinadas pautas e, em última
instância, cabe aos seus receptores aceitarem ou não. Os grandes veículos de comunicação podem até ter expectativas manipuladoras ou idealizar um modelo de público, mas a
recepção de um enunciado sempre vai ser individualizada e recriada pelo sujeito.
Portanto, é extremamente reducionista afirmar categoricamente que o discurso midiático será automaticamente absorvido pelos seus receptores. À medida que melhoram os
índices de instrução da população em geral e aumentam os pontos de vista alternativos ao status quo (como as redes sociais), a influência da mídia hegemônica tende a diminuir.
Também não devemos deixar de mencionar que os trabalhos de Adorno e Horkheimer citados anteriormente contextualizam-se na onda de pessimismo acadêmico diante do êxito
da propaganda ideológica nazista junto à população alemã.
Em suma, os atuais estudos sobre recepção ou audiência substituíram as clássicas concepções dos meios de comunicação como todo-poderosos, que atribui os efeitos da
comunicação via mídia exclusivamente à ação do emissor sobre o receptor, pela ênfase na capacidade interpretativa do receptor, que pode modificar o significado das mensagens
de acordo com suas próprias contingências. Ademais, afirmar que uma pessoa absorve passivamente o conteúdo midiático é negligenciar o próprio processo evolutivo que, ao
longo de milhões de anos, dotou o ser humano de um cérebro que lhe propiciou uma postura reflexiva frente à existência.
Feitas as devidas observações sobre o tema manipulação midiática, um outro questionamento torna-se inevitável: ao relativizar a influência da mídia nas escolhas dos
cidadãos comuns, podemos inferir que os conteúdos presentes nos grandes veículos de comunicação são neutros? Absolutamente, sem titubear, a resposta é negativa. Seria
ingenuidade intelectual pensar o contrário. Não existe discurso despretensioso. Consequentemente, é quimérico exigir total imparcialidade para um jornalista, por exemplo.
Décadas atrás, Bakhtin já nos alertava que todo emprego de signo é ideológico e todo recorte do real envolve julgamento. Para Bourdieu, um bom cidadão crítico deve considerar
os jogos de poder e interesse que estão por trás dos grandes veículos da imprensa. A mídia influencia e também é influenciada por outros campos (política, economia, ciência,
religião). Se, conforme o abordado anteriormente, podemos salientar que a mídia não manipula automaticamente o cidadão comum, isso não nos impede de asseverar que os
veículos de comunicação em larga escala podem nortear as conversações cotidianas, contribuir para criar modismos e tendências ou alterar a agenda política de uma nação. Basta
ressaltar que para uma determinada causa política ganhar visibilidade e ser do conhecimento de milhões de pessoas, deve passar, inevitavelmente, pelo prisma midiático.
Em uma sociedade capitalista como a nossa o conteúdo presente nos grandes meios de comunicação condiz aos interesses das classes dominantes. Sendo assim, a maior
parte das mensagens transmitidas é ideologizada pelas elites. Mensagens estas que serão mais bem-sucedidas à medida que o cidadão comum não se dê conta de seu caráter
ideológico. Em outros termos, conforme enfatizou o pensador esloveno Slavoj Žižek, a mediação ideológica atinge os fins colimados quando as pessoas não a percebem.
Não há como negar que a mídia ocupa um papel importante na sociedade contemporânea. Entretanto, no Brasil, os grandes veículos de comunicação estão concentrados nas
mãos de apenas onze famílias que, embora não tenham o mesmo poder e influência de outras épocas, ainda decidem que tipo de informação a maioria dos brasileiros deve receber
e quais não devem, por não terem relevância jornalística ou por não atraírem o interesse do público consumidor. Desse modo, para que a mídia possa contemplar a pluralidade de
ideias ou, como sugeriu Jürgen Habermas, aproximar-se de ser um mecanismo privilegiado da esfera pública que gere visibilidade para as demandas de diferentes grupos, é
necessário que, questões como a democratização dos meios de comunicação, restrição de propriedades cruzadas de veículos midiáticos, regulamentação da programação e o
incentivo ao surgimento de rádios comunitárias sejam colocadas em pauta. Por outro lado, é importante salientar que as mudanças no âmbito dos meios de comunicação de massa,
isoladamente, não alteram a realidade. Utilizando um termo marxiano, a mídia não é uma infraestrutura que determina outras instâncias sociais. É inócuo pensar em uma melhor
qualidade da programação midiática, por exemplo, sem fomentar uma organização social composta por cidadãos que tenham amplas possibilidades de desenvolver pensamentos
críticos ou que não precisem se preocupar com questões básicas da existência. Portanto, levando-se em consideração que a mídia condiciona e é condicionada por outras áreas, não
faz sentido algum falar em melhorias no sistema de comunicação em larga escala sem propor um projeto sólido de mudança global da sociedade.

Onde e como ocorrem as manipulações

Por Francisco Fernandes Ladeira em 16/06/2015 na edição 855

Um indivíduo que porventura resolva fazer alguma pesquisa em um site de busca qualquer e digitar “mídia” e “manipulação”, possivelmente se surpreenderá pela grande
quantidade de trabalhos acadêmicos que fazem com que as duas palavras sejam quase automaticamente associadas. Também se formos realizar uma pesquisa de opinião,
provavelmente a maior parte dos entrevistados responderá que a mídia é manipuladora. Entretanto, se podemos afirmar categoricamente que a mídia manipula, por outro lado, é
imprescindível apontar em que instância especificamente ocorre tal manipulação, se está relacionada à emissão ou à recepção de um determinado conteúdo, ou a ambas.
De acordo com a clássica Teoria Hipodérmica, primeiro modelo de estudo no campo da comunicação de massa, uma mensagem lançada pela mídia é imediatamente aceita e
espalhada entre todos os receptores, em igual proporção. Seguindo essa linha de raciocínio, Adorno e Horkheimer, pertencentes à famosa Escola de Frankfurt, consideravam que a
mídia seria capaz de manipular incondicionalmente uma audiência submissa, passiva e acrítica. No livro Televisão e Consciência de Classe, Sarah Chucid Da Viá assevera que o
vídeo apresenta um conjunto de imagens trabalhadas cuja apreensão é momentânea, de forma a persuadir rápida e transitoriamente o grande público.
Todavia, é demasiadamente simplório pensar que de um lado há uma mídia manipuladora, com interesses claros em controlar corações e mentes, e, de outro, receptores
automaticamente manipulados, desprovidos de qualquer tipo de criticidade: meras marionetes nas mãos dos meios de comunicação. A prática não funciona assim, é bem mais
complexa. Da mesma forma que Walter Benjamim afirmava que uma obra de arte só pode ser mensurada ao ser apreciada pelo público, o discurso midiático também só ganha
sentido real na instância receptiva. Para o linguista francês Patrick Charaudeau, existe uma espécie de “contrato de comunicação” que foge da alçada do controle midiático. Desse
modo, não há posições estanques de emissor e receptor – o público também pode ser classificado como corresponsável na produção de sentido para o discurso midiático.
Em outros termos, na prática todos somos coenunciadores de sentido. Por mais “ignorante” e “alienado” que um sujeito possa ser considerado, ele tem certa liberdade
interpretativa. Portanto, os efeitos da mídia são limitados por quadros de referência (família, escola, religião) e maneiras de recepção. Uma pessoa só vai aceitar e compactuar com
o conteúdo midiático se este estiver de acordo com as suas convicções ideológicas. Caso contrário, a influência dos meios de comunicação será nula e inócua. Os discursos
inflamados e moralistas de Rachel Sheherazade e José Luiz Datena são reverberados somente pelos setores conservadores. Por outro lado, o boicote da população evangélica à
telenovela Babilônia comprova que em determinadas situações a religião ainda exerce maior poder de persuasão do que as poderosas emissoras de televisão14. Não obstante, há
mais de uma década que o PIG – Partido da Imprensa Golpista – não consegue eleger seus candidatos preferidos para a presidência da República. Sendo assim, o discurso
midiático apenas é “legitimado” através da prática cotidiana. Portanto, é demasiadamente controverso analisar a influência da mídia sem levar em consideração o receptor, sem
compreender o ciclo completo da comunicação.
Por outro lado, apesar de a mídia não afetar a audiência racionalmente e de maneira imediata, sua influência pode ser sentida a longo prazo, em aspectos emocionais,
comportamentais e estéticas. Não é no contato imediato entre mensagem e receptor que devemos encontrar os prováveis efeitos sociais do discurso midiático, mas no acúmulo de
informações que os principais veículos de comunicação transmitem ao longo do tempo. Nos dias hodiernos, não há como negar que a mídia é um poderoso e eficiente mecanismo
de sociabilização e sociabilidade. Crianças que desde a mais tenra idade são expostas ao persuasivo conteúdo dos anúncios publicitários tendem a se tornar adultos consumistas e
individualistas. Nas telenovelas da Rede Globo, os arquétipos do negro social e racialmente inferior encontraram um terreno fértil para a sua propagação. Evidentemente, a mídia
não inventou a “Guerra ao Terror” ou a atual onda global de islamofobia, mas a incessante exibição de matérias sensacionalistas sobre atentados terroristas envolvendo seguidores
da religião fundado por Maomé fez com que boa parte da população realmente passasse a acreditar que todo muçulmano é fundamentalista, compactua com práticas terroristas e
tem inveja do Ocidente.
Já as composições popularescas que dominam as paradas de sucesso no atual mainstream radiofônico brasileiro não seriam tão bem aceitas se não atendessem a um público
que desde a década de 1990 tem sido bombardeado com músicas de refrãos pegajosos, monossilábicos e anódinos. Audições “moldadas” no decorrer dos anos para apreciar apenas
canções simples que requerem pouco esforço cognitivo para a compreensão. Em suma, ao contrário do que muitos possam pensar, podemos considerar que a manipulação
midiática não ocorre na recepção, mas na produção e construção da notícia com a seleção dos acontecimentos considerados como interesse público, no tratamento dado a uma
determinada informação, ao fazer juízo de valores, na escolha das fontes a serem ouvidas, na amplificação de um fato e ao privilegiar um enquadramento da realidade em
detrimento de outros pontos de vista.

A ideologia na cobertura dos noticiários internacionais

Por Francisco Fernandes Ladeira em 09/05/2018 na edição 986

Em seus manuais de redação, a grande mídia brasileira constantemente procura aparentar imparcialidade. No entanto, o repertório lexical por ela utilizada, a concessão de
mais espaço a uma notícia em detrimento de outras, a maneira como é desenvolvida a cobertura de um acontecimento, a escolha do título de uma matéria e os critérios para a
localização de uma foto são exemplos de posturas que deixam transparecer posicionamentos ideológicos e eliminam qualquer ideia de uma possível neutralidade da informação.
Os grandes grupos de comunicação geralmente servem aos interesses de governos ou das empresas que os financiam. Ao contrário do preconizado pela “Teoria do Espelho”, as
coberturas jornalísticas não são reflexos fidedignos da realidade, capturados objetivamente, sem nenhum tipo de interferência do olhar do observador. Os noticiários são
construções sociais sobre a realidade que ganham materialidade através de determinadas práticas discursivas. Valores subjetivos e a maneira de conceber o mundo do produtor de
uma notícia certamente vão influenciar, de alguma maneira, a construção de seu texto.
No caso dos noticiários internacionais, a imprensa hegemônica se aproveita da pouca familiaridade e do distanciamento espacial do público em relação aos principais
acontecimentos para tentar impor uma determinada ideologia. De maneira geral, enquanto as grandes potências globais, sobretudo os Estados Unidos, são representadas
positivamente nos principais jornais, revistas e emissoras de televisão; por outro lado, mandatários, nações, civilizações, organizações ou povos considerados como “inimigos” do
Ocidente — como o mundo muçulmano, a Rússia e a Coreia do Norte — são apresentados de maneira negativa. Isso significa que determinadas intervenções militares, ações
estatais, mobilizações populares ou violações aos direitos humanos podem ser interpretadas de maneiras diferentes, dependendo de quem as pratica. Uma breve análise sobre o
léxico dos noticiários internacionais já é o suficiente para entendermos essa questão. Em outras palavras, não é preciso um extenso e fastidioso exercício hermenêutico para
verificar a tendência pró-imperialista da mídia brasileira.
Para facilitar a compreensão do público (em geral não familiarizado com as temáticas geopolíticas, conforme apontado anteriormente) e tornar inteligível a complexa
configuração das relações internacionais, a mídia fornece “atalhos cognitivos”, a partir de estereótipos, tipificações, maniqueísmos, chavões, personalizações, lugares-comuns,
generalizações, “opiniões prontas” e concepções de mundo já formadas. Sendo assim, a geopolítica mundial passa a ser entendida a partir de ideias simplistas como o “muçulmano
terrorista e fanático religioso”, o “ditador sírio”, o “czar russo” e o “caudilho sul-americano”.
O emprego do termo “ditadura” na grande mídia brasileira, por exemplo, é bastante seletivo. Nações consideradas como “inimigas” do Ocidente (como Síria, Venezuela,
Coreia do Norte, Irã e Cuba) são qualificadas como “ditaduras” e seus respectivos governantes, consequentemente, adjetivados como “ditadores”. Todavia, o mesmo rótulo não é
aplicado aos aliados das grandes potências mundiais. A título de comparação, em maio do ano passado, quando o governo venezuelano convocou eleições para uma Assembleia
Nacional Constituinte, utilizando mecanismos que estavam presentes na constituição do país, o presidente Nicolás Maduro foi chamado de “ditador” pela imprensa brasileira. Já
no último mês de setembro, quando a Guarda Civil da Espanha tentou impedir a realização de um referendo sobre a independência da Catalunha em relação ao Estado-Nacional
espanhol, os principais jornais, revistas e emissoras do Brasil não qualificaram o governo de Madri como autoritário ou se referiram ao primeiro-ministro Mariano Rajoy como
“ditador”.
A utilização do termo “democracia” na grande mídia também é seletiva. Varia de acordo com a posição ocupada por um Estado-Nacional no xadrez geopolítico global. O
fato de um determinado país ser aliado ou não das grandes potências mundiais, sobretudo dos Estados Unidos, define, em última instância, sua representação midiática como
nação democrática. Apesar de suas ações autoritárias contra o povo palestino, Israel é considerada “a única democracia do Oriente Médio”. Os noticiários sobre a geopolítica
sul-americana também exemplificam a flexibilidade assumida pelo conceito de democracia. Governos politicamente à esquerda, inclusive os que chegaram ao poder através de
eleições diretas, são considerados antidemocráticos. Em contrapartida, governos instituídos após golpes de Estado, mas alinhados aos interesses estadunidenses, são qualificados
como democráticos.
Na cobertura da Rede Globo sobre as invasões dos Estados Unidos a países do Oriente Médio, termos como “guerra” e “ataque” foram substituídos por palavras e expressões
eufêmicas como “ocupações”, “ações” e “intervenção cirúrgica”. Já o uso de metáforas — isto é, transferências de palavras entre domínios cognitivos diferentes, alterando assim
os sentidos originais aos quais foram destinadas — é um recurso bastante utilizado para desumanizar determinados povos. Nos noticiários internacionais da imprensa brasileira
frequentemente ocorrem migrações de termos dos campos da Antropologia e da Biologia — como “selvagens”, “bárbaros”, “líderes tribais”, “clãs” e “bandos” — para o campo da
geopolítica, como referências aos seguidores do islã. Tais práticas linguísticas, além de promoverem uma conotação animalesca aos muçulmanos, levam implicitamente à
concepção de que a civilização islâmica estaria em um estágio pré-civilizacional.
Do mesmo modo, as escolhas de um determinado verbo ou de uma conjunção não são feitas por simples questões gramaticais, mas ideológicas. Adjetivos como “terrorista”,
“caudilho”, ou “extremista” são capciosamente utilizadas, não para descrever a “realidade”, mas como “estratégias discursivas” para induzir o público a compactuar com uma
determinada agenda geopolítica. Já a expressão “comunidade internacional”, constantemente utilizada nos noticiários, não está relacionada a um possível consenso entre as
diferentes nações do planeta sobre uma determinada questão geopolítica. Ela geralmente reflete tacitamente os posicionamentos dos Estados Unidos e seus aliados. Trata-se,
portanto, de um recurso metonímico que difunde os interesses estadunidenses como se fossem os interesses de todo o planeta.
Diante dessa realidade, é preciso saber ler a mídia, desvendar seus possíveis mecanismos manipuladores e os jogos de interesses econômicos que estão por trás do seu
funcionamento, pois notícias são mercadorias como quaisquer outros bens de consumo. Palavras podem ser poderosos instrumentos de sensibilização e persuasão. Sendo assim, o
sujeito que possui o mínimo conhecimento sobre o maquinário midiático, seleção de pautas (agenda-setting) e o contexto de construção da notícia (newsmaking) dificilmente será
um alvo vulnerável para o pensamento dominante, pois conhecer os códigos linguísticos utilizados pelo emissor amplia as possibilidades de leitura do codificador. Em outros
termos, dominar os mecanismos que regem a linguagem dos meios de comunicação de massa significa não incorrer no risco de ser por eles dominados.

Reflexões sobre a televisão

Por Francisco Fernandes Ladeira em 05/05/2015 na edição 849

O ano em que a maior emissora do país completa cinquenta anos de existência traz uma excelente oportunidade para refletirmos sobre a televisão. Não há como fazer uma
análise holística de nossa sociedade sem levar em consideração o fenômeno televisivo. Mesmo com o avento da internet, a tela da TV ainda é o principal meio de comunicação de
larga escala ao qual a maioria das pessoas recorre, seja para buscar informação, entretenimento, saber das últimas novidades sobre as celebridades, diversão, ou, como na maioria
das vezes, simplesmente para “passar o tempo”.
Entre os motivos que podem explicar o grande êxito da televisão junto ao público podemos citar o “estatuto visual da verdade”, a linguagem de fácil assimilação com
explicações simples para temáticas complexas, a formulação de “opiniões prontas” para que os telespectadores possam se posicionar sobre os mais variados assuntos e a
expectativa familiar das imagens televisivas. Regina Duarte é a “namoradinha do Brasil”, Cid Moreira tem a aparência de um senhor de respeito e Tarcísio Meira (segundo
definição do mesmo) é uma espécie de irmão mais velho do telespectador que beija belas mulheres na TV.
Não obstante, a televisão conseguiu uma façanha que a historiografia brasileira jamais logrou: criou “mitos nacionais”, aos quais os brasileiros passaram a se identificar.
Ayrton Senna da Silva foi alçado ao posto de herói tupiniquim somente pelo fato de dirigir um carro em alta velocidade. Na corte midiática de nosso país, Maria das Graças Xuxa
Meneghel, que ajudou a impulsionar o processo de erotização precoce de toda uma geração, ironicamente foi agraciada com a alcunha “Rainha dos Baixinhos” e o cantor Roberto
Carlos é simplesmente o “Rei”.
Para muitos analistas, a televisão é responsável direta pela alienação das massas, capaz de manipular incondicionalmente uma audiência submissa e acrítica. Já outros
estudiosos das telecomunicações apontam que a televisão é importante mecanismo de fiscalização do poder público, intermediário entre o cidadão comum e os governantes.
Entretanto, como todo bom sujeito cético, devemos duvidar (ou ao menos manter certa ressalva) de preposições imediatistas e aparentemente fáceis, evitando assim a adoção de
posições maniqueístas frente à realidade. As relações entre emissor e receptor são demasiadamente complexas, vão muito além de uma simples análise behaviorista de
estímulo/resposta.
A grande rejeição do público conservador em relação ao casal lésbico da telenovela Babilônia (o que veio a alterar o próprio enredo da trama) é um exemplo de que o
telespectador não absorve o conteúdo televisivo passivamente. Ao contrário da eleição presidencial de 1989 (quando o tácito apoio da Rede Globo foi de vital importância para a
vitória de Fernando Collor), nos últimos pleitos as grandes emissoras têm influenciado cada vez menos o eleitorado brasileiro. Nem “mensalão” nem “petróleo” conseguiram fazer
com a que a mídia hegemônica elegesse o postulante para o cargo máximo da nação. Também é importante ressaltar que, à medida que melhoram os índices de instrução da
população em geral e aumentam os pontos de vista alternativos ao status quo (como as redes sociais), o poder de persuasão da mídia tende a diminuir categoricamente.
Por outro lado, seria ingênuo acreditar que o conteúdo da programação televisiva é neutro e imparcial. Não existe discurso despretensioso. Como qualquer outro
empreendimento capitalista, as grandes emissoras brasileiras servem aos interesses daqueles que as financiam, ou seja, das empresas que anunciam produtos durante suas
programações. É a busca por lucro, e não a promoção da cidadania, que move os grandes veículos televisivos. Portanto, diante dessa realidade, é preciso ensejar uma mídia
pluralista, para que os diferentes setores sociais tenham espaço e voz para divulgar as suas demandas e reinvindicações. Em última instância, uma verdadeira democracia política
deve ter como condição sine qua non a completa democratização dos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão.

A espetacularização da realidade

Por Francisco Fernandes Ladeira em 09/06/2015 na edição 854

Uma das principais características do sistema capitalista é a capacidade de mercantilizar praticamente todas as esferas da realidade. Sob o prisma da sociedade de consumo,
as necessidades humanas, desde as mais básicas às mais complexas, tornam-se passíveis de se transformar em fonte de lucro. No primeiro capítulo de O Capital, Marx
caracterizava o capitalismo como uma grande circulação de mercadorias, sendo os seres humanos apenas meios para a reprodução em larga escala de bens materiais que, ao serem
fetichizados, passam a assumir qualidades que vão além da simples materialidade. Em outros termos, as coisas passariam a ser personificadas e, por outro lado, as pessoas seriam
coisificadas. As mercadorias deixam de ser mensuradas pelo seu valor de uso para serem avaliadas por sua dimensão simbólica. Nesse sentido, os seres humanos, por meio do
trabalho alienado e do consumo induzido, são meros instrumentos para a reprodução do capital.
Adaptando as ideias marxianas ao século 20, o filósofo francês Guy Debord aponta que a sociedade contemporânea é uma imensa acumulação de espetáculos. De acordo
com Debord, “espetáculo” é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social, quando o tempo livre do trabalhador passa a ser ditado pelo consumo
alienado, com o “ócio” transformado em “lazer”. “A atual libertação do trabalho, o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um
mundo moldado por este trabalho”, concluiu o filósofo francês. Entre os efeitos sociais do espetáculo, podemos citar a dominação da economia sobre a vida social, a degradação
do “ser” pelo “ter” (socialmente um indivíduo é valorizado pelo que possui, e não pelo seu caráter), a submissão da consciência à forma mercadoria, o alijamento da realidade e a
sobreposição da imagem sobre o conteúdo.
Todavia, não há como falar em sociedade do espetáculo sem mencionar o seu principal palco de propagação: a mídia. Embora inúmeras pesquisas de audiência indiquem que
os grandes veículos de comunicação não são capazes de manipular imediatamente seus receptores, a longo prazo, um determinado indivíduo que é exposto frequentemente aos
conteúdos de programas televisivos, tende a absorver inconscientemente os preceitos ditados pela mídia. No ensaio O reino da contemplação passiva, Anselm Jappe assevera que
a televisão contribuiu peremptoriamente para criar o homem-mercadoria. Com a televisão, a mercadoria invade definitivamente todas as esferas da vida social. Necessidades
básicas do ser humano ganham outras conotações: não tenho apenas sede, desejo beber um refrigerante; não quero apenas um relacionamento afetivo, mas um romance aos moldes
do casal da telenovela; crianças já não são mais responsáveis por criar suas próprias brincadeiras, querem o brinquedo visto na propaganda. Através da publicidade, padrões de
consumo são ditados e pseudonecessidades são criadas (trocar o celular constantemente, possuir o computador mais moderno, frequentar os lugares da moda, ostentar um
automóvel do ano). Não obstante, a mídia também contribui para o espetáculo ao superdimensionar, dramatizar ou distorcer determinados acontecimentos, banalizar o real e
transformar fatos triviais do cotidiano em notícias de interesse público.
Fatos banais na vida de pessoas famosas (o nascimento de um filho, um passeio na praia ou um casamento) ensejam extensas matérias em revistas como Caras, Quem
Acontece e Contigo ou são destaques em programas como TV Fama e Vídeo Show e em sites especializados em fofocas. É o espetáculo mostrando as faces mais fúteis do ser
humano. Se na Grécia Antiga as pessoas adoravam os deuses do Olimpo e na Idade Média os santos eram venerados, na “sociedade do espetáculo” há o culto às celebridades.
Atores de telenovelas, esportistas e astros da música são alçados ao status de semideuses. Ademais, a televisão brasileira conseguiu uma façanha que a nossa historiografia jamais
logrou: criou “mitos nacionais”, aos quais os brasileiros passaram a se identificar. Ayrton Senna da Silva é um dos maiores “heróis nacionais” somente pelo fato de dirigir um
carro em alta velocidade. Na corte midiática de nosso país, Maria das Graças Xuxa Meneghel, que ajudou a impulsionar o processo de erotização precoce de toda uma geração,
ironicamente foi agraciada com a alcunha “Rainha dos Baixinhos” e o cantor Roberto Carlos é simplesmente o “Rei”.
A sociedade do espetáculo (e seu principal instrumento de difusão, a mídia) também invadiu a esfera esportiva. Eventos como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo
angariam bilhões de telespectadores e movimentam vultosas quantidades de dólares. No livro O monopólio da fala, Muniz Sodré afirma que o futebol há muito tempo deixou ser
apenas um esporte para se transformar em um grande espetáculo de massa. Para um atleta dos dias hodiernos não basta apenas ter boas atuações em campo (talvez isso seja até
secundário): é preciso saber se postar diante das câmeras, vender produtos, atualizar diariamente o seu perfil nas redes sociais e usar o corte de cabelo da moda. Por sua vez, o
voleibol, um dos esportes mais populares do planeta, teve que mudar suas regras para melhor se adaptar ao formato televisivo. Até o campo científico, considerado “alheio a
influências externas”, não está imune ao espetáculo. Atualmente vários estudiosos são reconhecidos e respeitados não pelo conteúdo de suas obras, mas de acordo com as
aparições na mídia. Já as redes sociais, sobretudo o Facebook, levaram o espetáculo a patamares nunca imaginados por Guy Debord. Através de seu perfil virtual, uma pessoa
pode criar e recriar várias imagens sobre si mesma. A partir do truísmo “partiu”, muitos internautas divulgam todos os passos do cotidiano e, ter a sensação de que está sendo
“seguido”, é a melhor forma de se sentir uma celebridade. O futuro imaginado por Andy Warhol enfim chegou: no Facebook todos podem ter seus quinze minutos (virtuais) de
fama. Em nossa contemporaneidade qualquer indivíduo com acesso à tecnologia é um criador de espetáculo em potencial. Enfim, nunca foi tão fácil banalizar o real.

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

2 NOVAS MÍDIAS

“Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens” (Marshall McLuhan).

Conforme já destacado na apresentação deste livro, as primeiras décadas do século XXI testemunharam a consolidação da internet como principal meio de comunicação
utilizado pela população mundial (sobretudo os mais jovens)15. Para Nicholas Negroponte, um dos diretores fundadores do laboratório de multimídias do Massachusetts Institute
of Technology (MIT), estamos vivendo uma transição da vida baseada em “átomos” para a vida baseada em “bits”16, pois a informática está mudando radicalmente nosso modo
de viver e, talvez, de pensar17.
Em 2018 metade dos habitantes de nosso planeta acessavam constantemente a rede mundial de computadores, números que não são desprezíveis, considerando que a
aquisição de equipamentos que possibilitem o acesso ao espaço virtual ainda é financeiramente inviável para muitos indivíduos mundo afora.
Já uma pesquisa realizada pelo IBGE, em 2016, apontou que 116 milhões de brasileiros (o que representava 55% da população) eram usuários de internet18. Três anos
depois, uma reportagem publicada na revista Superinteressante destacava que 60% de nossos compatriotas tinham ao menos um aparelho de smartphone; sendo que entre os
jovens adultos (18 a 34 anos), eram 85%.19
Sob o aspecto comunicacional, a internet possui um caráter ambivalente. Por um lado, é o meio de comunicação mais pluralista, pois concede aos diferentes agentes sociais a
livre expressão de suas ideias e opiniões, fortificando-as, inclusive, em termos planetários, o que possibilita, diferentemente de outras mídias, uma diversidade de pontos de vista
sobre um determinado assunto. Por outro lado, a sensação de anonimato ao divulgar um conteúdo no meio virtual também facilita novas formas de manipulação e a divulgação em
larga escala de informações falsas, pensamentos controversos e hipóteses falaciosas, sem nenhum tipo de respaldo científico20.
Para Daniel Couto Gatti, professor da PUC de São Paulo, a internet, ao mesmo tempo em que abriu uma gama de possibilidades de inovação nos diversos campos da
sociedade, também ampliou o leque de possibilidades de práticas excludentes, como o chamado “analfabetismo digital”, caracterizado pelas dificuldades que muitos indivíduos
têm em interagir com computadores, tablets e celulares, entre outras tecnologias,21 o que tende a representar, na cultura digital, um problema tão sério quanto foi e continua sendo
o problema do analfabetismo para a cultura letrada22.
Sendo assim, no mundo contemporâneo, não ter acesso à internet quer dizer ficar na invisibilidade, não apenas social, mas também econômica e política.23
O primeiro texto deste capítulo – intitulado “A impulsividade na interpretação dos fatos ontem e hoje” (parceria com professora de Língua Portuguesa, Kauana Scabori dos
Santos) – debate como o aplicativo WhatsApp pode contribuir para a propagação de boatos em larga escala.
A “facebookização da realidade”, isto é, o fato de as relações interpessoais cada vez serem mediadas pela tela do computador, é a temática contemplada no segundo artigo
desse capítulo: “Como o Facebook vem mudando a nossa existência”.
Os limites, possibilidades e aspectos negativos presentes nas novas mídias são as temáticas dos dois artigos posteriores: “David e Golias moderno” e “Breves reflexões sobre
os haters”.
Em tempos de pós-verdades, fake news, teorias da conspiração, politicamente incorreto e desprezo pelo conhecimento científico, ser ignorante virou moda. Se a ignorância
humana já foi motivo de vergonha, nos últimos anos foi motivo de orgulho. Parafraseando Nélson Rodrigues, se os idiotas ainda não dominaram o mundo, eles certamente
dominaram as redes sociais. Esta realidade mórbida é o tema abordado no artigo que fecha este capítulo: “A era do anti-intelectualismo”.

A impulsividade na interpretação dos fatos ontem e hoje

Francisco Fernandes Ladeira e Kauana Scabori dos Santos em 13/06/2018 na edição 991

No dia 30 de outubro do longínquo ano de 1938, o locutor da rádio estadunidense CBS Orson Welles leu, como se fosse uma notícia, trechos do romance A Guerra dos
Mundos, de Herbert George Welles, que descrevia uma invasão alienígena na Terra. A “notícia”, divulgada em “edição extraordinária”, era, na realidade, uma estratégia utilizada
pela CBS com o objetivo de superar a audiência da estação concorrente (NBC). No entanto, grande parte do público entendeu que a narrativa de Welles tratava-se de algo verídico.
Após a encenação radiofônica do romance de H.G. Welles, ocorreram mortes, suicídios e milhares de pessoas fugiram dos supostos invasores.
De acordo com analistas midiáticos, alguns fatores foram decisivos para o êxito da falsa mensagem emitida por Orson Welles: o tipo de locução, os jogos sonoplásticos e a
crença de que o rádio noticiava a verdade. O jornal Daily News resumiu na manchete do dia seguinte a reação ao programa: “Guerra falsa no rádio espalha terror pelos
Estados Unidos”.
Oito décadas depois, o rádio já não possui a mesma influência de outrora. O poder visual das mensagens televisivas e, posteriormente, o advento da Internet, fizeram com
que o rádio deixasse de ser o veículo de comunicação mais popular do planeta. Conforme aponta o professor aposentado da UFSJ, Guilherme Jorge de Rezende, “um fato
jornalístico mostrado com palavras e fotografias tem mais força do que se for mostrado apenas com palavras, pois o valor testemunhal da imagem serve como prova de que o fato
ocorreu em tais circunstâncias”. Todavia, algo permanece intacto no complexo processo de comunicação: a capacidade de grande parte das pessoas em dar credibilidade a
informações falsas.
Nos últimos dias, uma notícia atribuída aos caminhoneiros em greve, divulgada em áudios e textos compartilhados em grupos do WhatsApp, dizia que a categoria realizaria
uma nova paralisação no domingo (3/6); ou na segunda (4/6), de acordo com outras versões. Segundo o comunicado, a ordem das lideranças dos caminhoneiros era clara: todos
deveriam estocar alimentos e combustíveis, pois o Brasil iria parar de vez. No entanto, conforme checou o site Boatos.org, a suposta paralisação dos caminhoneiros não era
verídica ou, para utilizar um termo do momento, tratava-se de mais uma fake news, isto é, uma informação criada exclusivamente com objetivo de direcionar o receptor para aderir
a uma determinada ideia.
Os áudios e textos sobre a paralisação dos caminhoneiros divulgados no WhatsApp seguiam o roteiro básico dos boatos: eram vagos (que líderes falavam?), alarmistas, com
desvios da Língua Portuguesa normativa, apresentavam pedidos de compartilhamentos, além de não citar fontes confiáveis ou que poderiam ser devidamente checadas.
Porém, como em nossa contemporaneidade, “se está compartilhado no WhatsApp é verdade”, muitas pessoas, ao receberem a notícia da nova paralisação dos caminhoneiros,
não só acreditaram de imediato em seu conteúdo, sem nenhum tipo de reflexão ou checagem, como passaram a reverberar a “informação” em seus ciclos de amigos “virtuais” e
“reais”.
Levando-se em consideração que atualmente o poder dos meios de comunicação é muito maior do que o registrado na época de Welles, não é difícil inferir que, poucas horas
após à sua divulgação, a história da nova paralisação dos caminhoneiros tomou as rodas de conversa em todo o país. E muitas pessoas começaram a agir como se realmente fosse
haver uma nova greve: consumidores correram aos supermercados em busca de alimentos, frentistas alertavam clientes sobre a falta de combustíveis nos próximos dias e
funcionários de transportadoras informavam que os prazos de entrega de determinados produtos seriam estendidos.
Mas, o que leva pessoas a aderirem tanto as informações falsas, independente da época em que vivem? Por quê? Será que por trás de toda mentira há sempre um fundo de
verdade? Evidentemente, a resposta para essa complexa questão não é fácil, mas, nossos estudos em Teoria da Comunicação, Análise do Discurso e áreas afins nos permitem fazer
algumas reflexões, o que não significa, em hipótese alguma, considerar nossas colocações como herméticas, acríticas, completas ou absolutas.
No caso brasileiro, o baixo nível de instrução apresentado pela maioria da população, com destaque para as grandes dificuldades interpretativas, seria uma boa linha de
análise para entendermos os motivos pelos quais notícias falsas se espalham com tanta facilidade.
Outra possível explicação está relacionada às nossas necessidades de interação social. Como a greve dos caminhoneiros é a principal pauta da agenda pública nacional no
momento, as pessoas, de maneira geral, para não serem excluídas das rodas de conversa, precisam falar sobre o assunto e, na falta de informações concretas ou opiniões mais
reflexivas, passam a reproduzir as “notícias” que chegam até elas, mesmo que sejam inverídicas. Não obstante, a enxurrada de informações às quais temos contato diariamente nos
impede de ter um olhar mais aprofundado sobre os fatos, pois cada vez mais temos a impressão de que devemos nos posicionar com a mesma rapidez com que recebemos
as notícias.
Já de acordo com a prática designada por psicólogos como “viés da confirmação”, o ser humano tende a se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a
confirmar crenças ou hipóteses iniciais. Cada sujeito está envolto em uma “bolha ideológica” a qual condiciona sua maneira de interpretar e agir sobre o mundo. Isso significa que,
se estou em contato com algum texto que vai de encontro às minhas concepções político-ideológicas, provavelmente vou concordar com o seu conteúdo e, consequentemente, vou
compartilhá-lo em meu perfil nas redes sociais, independentemente de sua veracidade.
O “viés da confirmação”, explica, por exemplo, o porquê de leitores assíduos de revistas com forte inclinação política como Carta Capital ou Veja não recorrerem a estas
publicações para formarem suas opiniões, mas para reforçarem seus argumentos. E também o fato de muitos indivíduos terem compartilhado nas principais redes sociais textos,
imagens, vídeos e áudios que anunciavam uma suposta intervenção militar no Brasil. Se, por um lado, temos o desejo; do outro lado, temos as construções que alicerçam as
vontades. Como muitos brasileiros encontram-se insatisfeitos com os reajustes nos preços dos combustíveis, alimentos, entre outros problemas, e é grande a disputa política entre
os cidadãos, haveria a crença de que um novo movimento grevista em todo país poderia facilitar a queda de Michel Temer.
Diante dessa realidade, para revertermos esse quadro caótico de desinformação que toma conta do país, consideramos que as pessoas deveriam ser educadas desde a
pré-escola para o bom uso dos dispositivos digitais, para que assim possam usufruir do senso crítico, e agir não a partir do que se espera dos acontecimentos, mas aguardar e tecer
uma análise mais detalhada entre o que se observa no próprio contexto em que vive e aquilo que é veiculado ou mesmo distorcido pela mídia “massa de manobra”. Precisamos ser
receptores críticos, que checam informações, comparam diferentes tipos de fontes e não tenham o receio de rever posicionamentos.

Como o Facebook vem mudando a nossa existência

Francisco Fernandes Ladeira em 05/08/2014 na edição 810

Para um adolescente dos dias hodiernos, que passa várias horas à frente da tela do computador, parece ser extremamente difícil imaginar como era a nossa realidade antes do
advento das redes sociais. Até para nós, adultos virtualmente integrados, também é conturbado tentar conceber o mundo sem internet. Várias de nossas atividades – como o
pagamento de contas, a busca por um novo emprego e reencontrar velhos amigos – podem ser realizadas on-line.
Diante desse contexto, não seria exagero algum afirmar que as redes sociais mudaram decisivamente a nossa existência. Atualmente, o computador tem sido um importante
mecanismo de socialização e sociabilidade. Desde a mais tenra idade, crianças já aprendem como manejá-lo. Desse modo, podemos falar que vivemos um processo de
“facebookização” da realidade, em que o cotidiano das pessoas em geral passa a ser cada vez condicionado pelas redes sociais.
Vejamos alguns exemplos mais contundentes. Muitos indivíduos aproveitam o perfil do Facebook para tentar passar uma imagem que não representa o seu verdadeiro eu.
Uma espécie de “alegria virtual contínua” que não corresponde, em hipótese alguma, à realidade. Se no “mundo real” estar feliz é, como afirmou um filósofo, apenas um efeito
colateral positivo da existência, nas redes sociais a felicidade é um estado perene. Na sociedade do espetáculo, ter a sensação de que está sendo “seguido” é a melhor forma de se
sentir uma celebridade. A partir do truísmo “partiu”, muitos internautas divulgam todos os passos do cotidiano. Assim, a autoestima dessas pessoas depende de quantas “curtidas”
recebem em seu perfil.
Enquanto em outras épocas, fotografias eram cuidadosamente tiradas apenas para registrar os momentos mais especiais, na era das máquinas digitais e dos celulares
ultramodernos, fotos são tiradas (principalmente os famosos selfies) exclusivamente para serem compartilhadas on-line. É a banalização da imagem. Se as adolescentes de outrora
tinham “diários” para registar o cotidiano, atualmente elas utilizam seus perfis nas redes sociais para expor seus segredos mais íntimos. O futuro imaginado por Andy Warhol
enfim chegou: no Facebook todos podem ter seus quinze minutos (virtuais) de fama.
Segundo um trabalho realizado por duas universidades alemãs, o êxito virtual de alguém está intrinsicamente ligado à sua capacidade de despertar a inveja alheia.
Demonstrações de sucesso pessoal e profissional, fotos de viagens de férias em belas paisagens e felicitações de aniversário são os principais motivos de ressentimento. “Apesar
de cultivarem laços de amizade, as atualizações pessoais dos usuários também criam uma plataforma de comparação social sem precedentes”, afirma o estudo.
Consequentemente, muitos indivíduos vivem mais a “vida virtual” do que propriamente a “vida real”. Temos a impressão de que se determinados fatos não foram
compartilhados ou postados no Facebook não aconteceram na realidade. Nesse admirável mundo novo virtual que dificilmente Aldous Huxley imaginaria, os namoros só se
tornam realmente sérios depois da mudança de status de relacionamento no Facebook. A principal rede social do planeta também enseja o voyeurismo virtual. Para o deleite dos
alcoviteiros, nunca foi tão fácil obter informações sobre a vida alheia.
No Facebook, figuras anódinas como padres midiáticos, esportistas, autores de autoajuda e músicos popularescos são alçados à condição de “grandes pensadores”.
Evidentemente que a imbecilidade humana não surgiu com as redes sociais. Todavia, é inegável que o espaço virtual facilitou a difusão em larga escala das idiossincrasias do ser
humano. A web não deixa as pessoas mais inteligentes ou mais ignorantes, ela apenas reflete o que somos: para o lado positivo e para o lado negativo.
Por outro lado, é preciso ressaltar que este texto não teve o intuito de demonizar as redes sociais ou tampouco se trata de uma apologia à época em que não conhecíamos a
Internet. Levando-se em consideração a grande concentração dos meios de comunicação que impera em nosso país, as redes sociais são imprescindíveis para divulgar informações
e opiniões alternativas ao status quo midiático. Muitas mobilizações populares por todo o planeta foram convocadas pelo Facebook e, não obstante, o espaço virtual também é
fundamental para aproximar pessoas fisicamente distantes, mas próximas ideologicamente. Você pode não ter os mesmos ideais que seu vizinho, mas ao acessar a rede mundial de
computadores você entra em contato com pessoas que compactuam com ideias semelhantes às suas, independente da localização geográfica. Pelo meio virtual é possível divulgar
movimentos locais e conectá-los à escala global.
Em suma, pretendi apenas demonstrar como cada vez mais as “vidas reais” de muitas pessoas são dependentes e indissociáveis de seus perfis no Facebook. Qualquer análise
sobre as relações humanas na atualidade não pode deixar de mencionar as redes sociais. Não é por acaso que muitos pensadores compararam a invenção da internet à descoberta
do fogo. Para onde essa “facebookização” da realidade vai nos levar, trata-se de uma incógnita. Fato curioso é que o próprio Facebook poderá ser um mecanismo para a
divulgação deste artigo. Ironias de nossa pós-modernidade.

“David e Golias” moderno

Por Francisco Fernandes Ladeira em 13/01/2015 na edição 833


Desde tempos imemoriais, a humanidade é fascinada por histórias que relatam confrontos entre heróis mitológicos e poderosos gigantes. Em sua famosa Odisseia, o escritor
grego Homero descreve como Ulisses conseguiu ludibriar o ciclope Polifemo, um gigante de apenas um olho. Por sua vez, o conto de fadas João e o pé de feijão é centrado nos
antagonismos entre um garoto e um temível gigante. Já o triunfo do pequeno Davi sobre Golias é uma das narrativas mais comentadas da mitologia judaico-cristã. Nesse sentido,
não é por acaso que o futebol, talvez o único esporte em que o mais fraco tecnicamente pode superar o mais forte (a famosa “zebra”), é um dos entretenimentos mais populares
do planeta.
Fazendo uma analogia entre essas clássicas histórias e a nossa contemporaneidade, podemos afirmar que as redes sociais (espécies de “Davi moderno”) são importantes
mecanismos para denunciar os preconceitos e manipulações realizados pela “gigante” Rede Globo.
No mês passado, a emissora da família Marinho transformou o filme Tim Maia, de Mauro Lima em uma minissérie de dois capítulos intitulada Tim Maia – Vale o que vier.
Entretanto, a versão televisiva trocou as cenas em que Roberto Carlos despreza e humilha Tim Maia (então em início de carreira) por depoimentos positivos de Nelson Motta
(autor do livro que inspirou o longa-metragem) e do próprio Roberto. Em outros termos, a Globo alterou o enredo da obra para não manchar a imagem de um dos seus mais
importantes contratados e, não obstante, colocou o “rei” como principal padrinho musical de Tim Maia. É o “padrão Globo de manipulação”.
Todavia, ao contrário do que ocorria em outras épocas, as reações do público foram imediatas. A distorção global não passou despercebida. Logo após a exibição da
minissérie, milhares de internautas se manifestaram nas redes sociais e compartilharam inúmeros textos que denunciavam a farsa televisiva. Não por acaso, devido à grande
repercussão negativa, a emissora retirou a minissérie de sua página da web.
Já uma declaração de Renato Aragão à revista Playboy define emblematicamente o atual contexto dos meios de comunicação em nosso país. Segundo o veterano comediante
cearense, “o humor politicamente incorreto vive uma perseguição e naquela época (dos Trapalhões) essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais não se ofendiam”. Ora,
como bem asseverou o professor Lucas Dias, em postagem no Facebook, eles não se ofendiam, pois não possuíam o mero direito de se ofenderem. Se outrora, negros, gays e
outras minorias não dispunham de espaços públicos ou do grau de instrução necessário para se engajarem contra as humilhações a que eram submetidos, atualmente, o acesso às
redes sociais e ao ensino superior (vide política de cotas, por exemplo) fazem com que esses segmentos sociais excluídos tenham voz ativa e não aceitem mais nenhuma forma
de ridicularização.
Sendo assim, apesar de o dia em que “o pequeno Davi virtual” superará o “Golias midiático” ainda estar muito distante, o “gigante das comunicações” não consegue
manipular a opinião pública em ampla escala e tampouco pode discriminar as minorias como fazia em outras épocas. É a tecnologia sendo empregada para conscientizar a
população e atacar a arrogância do status quo. Embora timidamente, ventos de mudança têm soprado no Brasil.

Breves reflexões sobre os haters

Por Francisco Fernandes Ladeira em 06/11/2018 na edição 1012

Nos últimos anos, um neologismo tem chamado bastante a atenção da sociedade de maneira geral, e dos usuários da Internet, em particular. Trata-se do termo “haters”:
palavra de origem inglesa que, em livre tradução para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Nas redes sociais, os haters são conhecidos
pelos comentários de ódio feitos em postagens alheias ou nas páginas virtuais de personalidades públicas associadas a pautas progressistas.
Embora represente um grupo social bastante heterogêneo, e ainda pouco estudado pelas diferentes ciências humanas, podemos encontrar alguns pontos em comum entre
os haters. Independentemente de variáveis como classe social, escolaridade ou faixa etária, geralmente eles são indivíduos extremamente conservadores, defensores das
“tradições” e dos “bons costumes”, temerários a qualquer modificação no status quo vigente e totalmente favoráveis a manutenção das hierarquias econômicas, raciais e entre
gêneros. Não por acaso, as reivindicações das minorias por maior igualdade são uma das pautas mais atacadas pelos haters.
Para eles, abordar nas instituições escolares questões como desigualdades sociais, sexualidade e respeito à diversidade são práticas pedagógicas classificadas como
“doutrinação comunista”, “ideologia de gênero” ou “kit gay”; cotas raciais não seriam necessárias, pois representam um “preconceito às avessas”; as mulheres que defendem seus
direitos de não se submeterem à dominação masculina são rotuladas como “feminazis” e qualquer tentativa de um grupo social excluído em se levantar contra a opressão é
“mimimi” e “vitimismo”. Dificilmente os haters tecem algum comentário nas redes sociais sem citar os clichês anteriormente mencionados. Para eles, “o mundo hoje está muito
chato”, pois não se pode mais fazer “piadas” ou “comentários irônicos” sobre negros, gays, mulheres e nordestinos.
Os haters orgulhosamente se intitulam “cidadãos de bem”, “defensores da família tradicional” e “pró-vida”, mas basta entrarem em contato com alguma notícia sobre a
prática de linchamento ou que relate a morte de um “delinquente” em ações policiais para logo bradarem uma de suas máximas: “bandido bom é bandido morto”. Seguindo a
chamada “dialética erística”, nas discussões virtuais, os haters se destacam por atacarem o argumentador em vez de refutarem o argumento. Além do mais, dificilmente lemos
algum comentário de um hater sem que recorra a uma palavra de baixo calão.
Os haters também são hábeis difusores de fake news. Se entrarem em contato com alguma informação que exalte aqueles com quem simpatizam ou difame os seus inimigos,
logo eles irão compartilhá-las exaustivamente no Facebook ou no WhatsApp. A veracidade de uma notícia é o que menos importa, pois eles têm as suas próprias certezas.
Como o hater abomina opiniões contrárias, o fato de uma determinada página virtual compartilhar algum texto que entre em choque com as suas convicções já é o suficiente
para “descurtir” e deixar de segui-la. Ele prefere viver em sua própria bolha ideológica, onde está mais seguro e não precisa se abrir ao debate com o contraditório.
Em suma, os haters odeiam, acima de tudo, a inteligência. Por isso os discursos de ódio e os ataques a quem pensa diferente são utilizados, sobretudo, para escamotear a sua
maior fraqueza: o baixo nível intelectual. Essa é a grande (e inaceitável) frustração de um hater.

A era do anti-intelectualismo

Por Francisco Fernandes Ladeira em 15/01/2019 na edição 1020

Em tempos de pós-verdades, fake news, teorias da conspiração e desprezo pelo conhecimento científico, a apologia à ignorância humana está definitivamente na moda.
Nesse sentido, podemos dizer, sem exagero algum, que vivemos a “era do anti-intelectualismo”. Antes do advento do espaço virtual, os “anti-intelectuais” estavam dispersos, não
possuíam a noção de sua força numérica e, até certo ponto, se sentiam envergonhados de suas ideias controversas. No entanto, tudo mudou com a internet.
Conforme afirmou o saudoso escritor e filólogo italiano Umberto Eco, as redes sociais concederam o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas
“em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Normalmente, os imbecis eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra
de um Prêmio Nobel. Desse modo, conclui Eco, o grande drama da internet é que ela promoveu o “idiota da aldeia” a portador da verdade.
Não por acaso, ideias absolutamente esdrúxulas como a chamada “Terra Plana” têm ganhado um número cada vez maior de adeptos. Para os “terraplanistas”, nosso planeta
não é esférico, mas plano, com o formato de um disco circular. De acordo com essa “teoria”, não existe gravidade, o Polo Norte está localizado no centro do planeta e as estrelas
estão “presas” ao céu. Sendo assim, basta um mouse e um computador pessoal para que qualquer indivíduo possa “refutar” teorias científicas corroboradas há séculos por
importantes pensadores como Copérnico, Newton, Einstein.
Ainda no campo científico, os “anti-intelectuais” questionam a eficácia de algumas vacinas e rejeitam veementemente a Teoria da Evolução formulada por Charles Darwin.
No terreno pedagógico, os “anti-intelectuais” (que nunca pisaram em uma sala de aula, exceto, é claro, como alunos) querem extirpar Paulo Freire das escolas, porém acreditam
que as instituições de ensino brasileiras não respeitam os valores tradicionais da família, pois são responsáveis por promover a “ideologia de gênero”, o “cientificismo” e a
“doutrinação comunista”. No tocante à história do Brasil, a moda entre os “anti-intelectuais” é ser “politicamente incorreto” e negar acontecimentos como o massacre de indígenas
durante o período colonial, a escravidão de negros e o golpe militar de 1964.
Em um momento de grande radicalização ideológica da sociedade, os adeptos do anti-intelectualismo não poderiam deixar de expor suas ideias políticas. Para eles, o
nazismo era um regime de esquerda, simplesmente pelo fato de o Partido Nazista ter a palavra “socialista” em sua nomenclatura. Nessa mesma linha de raciocínio, podemos
concluir que o peixe-boi é um bovino ou o cavalo-marinho é um equino. Uma breve leitura de trechos do livro Mein Kampf é suficiente para constatar o ódio de Adolf Hitler a
tudo que remeta à esquerda política.
Certa vez, Nélson Rodrigues disse que os idiotas tomariam conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos. Pois bem, os idiotas podem (ainda)
não ter dominado o mundo, mas, certamente, estão dominando as redes sociais.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

3 SOCIEDADE

“A cadela do fascismo está sempre no cio” (Bertolt Brecht).

Durante o período histórico abordado neste livro, sobretudo após os setores conservadores terem se apropriado das chamadas “jornadas de junho de 2013”, o Brasil passou
por uma grande onda de radicalização ideológica.
A impressão que tivemos foi de que as várias formas de preconceito resolveram sair do armário ao mesmo tempo. Muitos indivíduos já não se intimidavam em demonstrar
suas ideias homofóbicas, racistas, misóginas, xenófobas e o ódio às classes baixas.
A parte mais obscura da personalidade humana, designada por Jung como “sombra”, chegou à superfície24. Nossos impulsos mais primitivos foram libertados.
Qualquer pessoa que questionasse o status quo, ou que pertencesse a uma minoria (homossexuais, negros e esquerdistas, entre outras) poderia ser agredida violentamente nas
ruas ou achincalhada no espaço virtual pelos haters, sempre a postos para espalhar o ódio.
Sendo assim, ataques na internet substituíram os argumentos; achismos substituíram o conhecimento; fake news substituíram a realidade. Houve, em todas as partes do país,
nos âmbitos virtual e real, elogios à ignorância humana, discursos de ódio e atavismos sociais25. O retorno à barbárie esteve bastante próximo. Lembrando a epígrafe deste
capítulo, a cadela do fascismo esteve novamente no cio. A Caixa de Pandora do obscurantismo foi aberta.
Como explicar para uma mente minimamente civilizada a comemoração da morte de um jovem portador de distúrbios mentais após uma ação policial feita pelo governador
do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, em pleno mês de agosto de 2019. Poucos dias depois, o presidente da República Jair Bolsonaro se referiu à Ditadura Militar – período
devidamente reconhecido por violações aos direitos humanos, práticas de torturas e perseguições políticas – como “nota dez” em diversos aspectos, inclusive no “amor ao
próximo”.
Nessa mesma linha, em discurso proferido em plena Assembleia Legislativa do Espírito Santo, o deputado do PSL Capitão Assumção ofereceu 10 mil reais para quem
matasse o assassino de uma jovem. Já no Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella mandou recolher dos estandes da Bienal do Livro a edição da História em Quadrinhos (HQ)
“Os Vingadores – A Cruzada das Crianças” que mostra uma cena em que dois super-heróis homens se beijam, sob a “alegação” de que a mesma afrontaria o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA); o que, conforme ressaltou o Ministro do STF Gilmar Mendes, configurou-se em um “verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover
a patrulha do conteúdo de publicação artística”26.
Aliás, quando discursos e práticas autoritárias emanam das próprias autoridades públicas, temos o chamado “efeito guarda da esquina”, termo utilizado para descrever o caso
do cidadão comum que, ao observar o (mau) exemplo que vem de cima, também passa a se sentir no direito de praticar todo tipo de violência. Ou seja, aquilo que Hanna Arendt
qualifica como “banalidade do mal”27.
Para se ter uma ideia sobre a dimensão desse processo de radicalização da sociedade brasileira, em 2018 a empresa de pesquisa de mercado britânica “Ipsos Mori” realizou
um estudo para a BBC com 19.428 mil pessoas, de 27 países, para analisar o grau de polarização ideológica de suas respectivas populações28. Em primeiro lugar, ficou a África
do Sul, que enfrentava uma grave crise política, com dificuldades, inclusive, para organizar um governo minimamente estável; à Índia, que enfrentava greves entre outras
mobilizações populares gigantescas, coube a segunda colocação; e, já no terceiro posto, aparecia o Brasil29.
Não obstante, o porcentual de brasileiros (62%) que acreditam que o país estava mais polarizado em 2018 do que há 10 anos também foi superior ao de pessoas no mundo
(58%) que consideravam que o planeta estava mais dividido30.
Conforme demonstrou a onda de linchamentos, muitos indivíduos apregoavam a necessidade de se fazer “justiça com as próprias mãos”, à revelia de provas ou direitos
constitucionais; o que significou, na prática, o ressurgimento da chamada Lei de Talião, ou seja, um considerável recuo no processo civilizatório.
Nessa mesma linha de retorno à barbárie, embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha deixado de considerar a homossexualidade como doença há três décadas;
parlamentares, entidades religiosas e até mesmo psicólogos insistiam em promover a chamada “cura gay”, como se a orientação sexual de alguém pudesse ser “revertida” através
de um determinado “tratamento”.
Já alguns conhecimentos científicos corroborados há séculos, como o heliocentrismo e a Lei da Gravidade, passaram a ser contestados pela “Teoria da Terra Plana”; que,
conforme a nomenclatura já indica, parte do pressuposto de que o formato de nosso planeta não seria geoide, mas plano.
As falsificações históricas também se fizeram presentes nessa época de “atavismo social”. Uma simples leitura do livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, é suficiente para
constatar todo o ódio nazista às ideias comunistas e à esquerda política de maneira geral.
No entanto, conforme observei no capítulo anterior, muitos indivíduos insistiam em qualificar o nazismo como um regime de extrema-esquerda, utilizando, como principal
argumento, não um embasamento bibliográfico, mas o fato de o Partido Nazista ter a palavra “socialista” em sua nomenclatura. Nessa mesma linha de raciocínio, podemos
concluir que o peixe-boi é um bovino ou o cavalo-marinho é um equino.
Em suma, se em outras épocas as pessoas acreditavam que no limiar do século XXI estaríamos discutindo sobre carros voadores, promovendo a eliminação de determinados
insetos nocivos ao ser humano ou colhendo os benefícios de uma sociedade sem a exploração do homem pelo homem; o que a realidade nos demonstrou foi a necessidade de
explicar questões extremamente óbvias, como o nazismo ser de extrema-direita, que houve um golpe miliar no Brasil em 1964, o formato geoide de nosso planeta e a existência da
Lei da Gravidade.
O primeiro artigo deste capítulo, “As tentativas de manipular as massas”, relata as “jornadas de junho de 2013”. Na época, um clima de pessimismo já se fazia sentir no ar. O
que veio depois, é do conhecimento de todos: o impeachment de uma presidenta democraticamente eleita (sem nenhum tipo de prova contra ela), a prisão do maior líder popular
do país e a eleição de um presidente de extrema-direita.
Em sequência, o texto “Uma maneira de a elite legitimar sua posição” aponta como a chamada “PEC das domésticas” reacendeu os sentimentos de ódio das classes
dominantes brasileiras em relação aos setores populares.
Já nos artigos “Notícias revelam a face do obscurantismo” e “O mal está banalizado entre nós” destaco alguns dos retrocessos que se fizeram presentes na sociedade nos
últimos anos.
Por fim, a cobertura midiática sobre a Greve Geral ocorrida no Brasil em abril de 2018 é a temática abordada no artigo “A polêmica cobertura da greve geral”, que tem como
coautor o professor adjunto da UFSJ e meu orientador de mestrado, Vicente de Paula Leão.

As tentativas de manipular as massas

Por Francisco Fernandes Ladeira em 25/06/2013 na edição 752

Um espectro ronda o Brasil. Trata-se da mobilização das massas. Em um país onde centenas de milhares de pessoas nas ruas geralmente é sinônimo de festas carnavalescas
ou comemorações futebolísticas, é notório poder vivenciar um período em que ocorrem várias manifestações reivindicando demandas históricas do povo brasileiro, como
transporte coletivo urbano decente e serviços públicos de educação e saúde de qualidade.
Em outras épocas, quando os meios de comunicação alternativos não possuíam o alcance e a relevância dos dias hodiernos, era relativamente fácil para a mídia hegemônica
(o oligopólio formado pelas famílias Marinho, Frias, Civita e Saad) escamotear determinados acontecimentos de grande porte que não eram de seu agrado ideológico. Nesse
sentido, é clássico o caso da Rede Globo, que tentou encobrir os primeiros comícios das Diretas Já, no ano de 1984.
Pois bem, os tempos são outros. Na Era das Redes Sociais, marcada, sobretudo, pela instantaneidade da divulgação dos acontecimentos, é impossível ficar indiferente aos
fatos. Assim, logo que eclodiram as primeiras manifestações em São Paulo, no início de junho, a grande imprensa brasileira não teve como ficar alheia ao movimento. A princípio,
a postura dos grupos midiáticos em relação aos protestos foi o que se esperava: qualificaram os manifestantes como arruaceiros, vândalos e criminosos. Para o status
quo midiático, o “irrisório” aumento de 20 centavos nas passagens dos ônibus paulistanos não era motivo para tanto alarde. Não obstante, cenas de depredações de patrimônios
públicos e privados eram repetitivamente exibidas.
Entretanto, o que parecia ser um movimento isolado e fadado ao esquecimento transformou-se no estopim para várias manifestações Brasil afora. Em questão de dias, os
brasileiros, até então “alienados politicamente”, ocuparam as ruas para manifestar a sua indignação com os rumos que o país vem tomando.
Diante do amplo apoio da opinião pública às manifestações e também da inevitabilidade de conter os protestos em curto prazo, a mídia brasileira, estrategicamente, passou a
adotar outro discurso em relação a estes acontecimentos. O que outrora era visto como “movimento organizado por agitadores radicais” passou a ser concebido como “legítima
mobilização popular”. “As manifestações, desde que pacíficas, sem vandalismo, são bem-vindas em uma democracia”, passou a ser o mantra exaustivamente repetido pela grande
mídia. Até os despolitizados jogadores da Seleção Brasileira de futebol aderiram a esse discurso padronizado.
Todavia não nos iludamos, tampouco sejamos ingênuos. A mudança de postura por parte da imprensa hegemônica não foi apenas um recuo. Trata-se de um recuo planejado.
Como bem asseverou o editorial de um partido político da esquerda brasileira, “a jogada da direita, agora, é tentar manipular o movimento, colocando palavras de ordem nele,
como ‘abaixo a corrupção’, ‘punição aos mensaleiros’ e, com isso, atraindo grupos de direita para o movimento. No Facebook, por exemplo, já existe um abaixo-assinado pedindo
a renúncia de Dilma. Fora isso, há ainda a ideia de tentar descaracterizar o movimento como um ato político”. “Curiosamente, os mesmos meios de comunicação conservadores
que incentivaram as ações violentas da PM na quinta-feira anterior (13/6) de manhã, em seus editoriais, agora diziam que de fato as pessoas deveriam ir às ruas. Só que com outras
bandeiras. De repente se falava em impeachment da presidenta. As pessoas usavam a bandeira nacional e se pintavam de verde e amarelo como ordenado por grandes figurões da
mídia de massas, colunistas de opinião extremamente populares e conservadores”, escreveu a socióloga Marília Moschkovich em seu blog.
Lembrando o ditado popular “se não pode com o inimigo, junte-se a ele”. Ou seja, se as manifestações são inevitáveis, então é melhor procurar adaptá-las à sua ideologia e
assim procurar manipular a população para aderir a temas inerentes ao pensamento conservador brasileiro.
Dessa maneira, sobretudo nas redes sociais, apareceram inúmeras campanhas contra a corrupção (associada exclusivamente ao governo federal), contra os impostos (para os
mais ricos) e pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Até mesmo as retrógradas campanhas pela candidatura de Joaquim Barbosa para a presidência da República e pela
redução da maioridade penal voltaram à tona nos últimos dias. Sendo assim, as manifestações populares, que inicialmente levantaram questões sociais de externa relevância e
serviram de alguma forma para acordar o Brasil de sua inércia política, podem se transformar (se é que já não estão se transformando) em eventos apolíticos, sem qualquer
direcionamento ideológico.
Lembrando um conhecido truísmo histórico, é demasiadamente complexo e controverso analisar determinado acontecimento no calor dos fatos. Se as recentes manifestações
populares no Brasil podem levar a um novo tempo de mudanças e engajamento da população ou se serão apropriadas pelos setores mais retrógrados de nossa sociedade, só o
tempo poderá confirmar. No que depender da grande mídia, infelizmente, a segunda opção prevalecerá.

Uma maneira de a elite legitimar sua posição

Por Francisco Fernandes Ladeira em 09/04/2013 na edição 741

Florestan Fernandes, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, dedicou boa parte de sua profícua obra sociológica para apontar que a “revolução burguesa”
no Brasil foi marcada, sobretudo, pela permanência de determinadas práticas inerentes a sociedades aristocráticas. Segundo o cientista social, o advento de uma sociedade de
classes em nosso país não conduziu, necessariamente, à completa ruptura com hábitos e comportamentos típicos de sociedades pré-burguesas. Desse modo, possuir empregados
domésticos (como se fossem similares modernos de escravos ou servos) consiste em uma clássica maneira de a elite tupiniquim legitimar sua posição social. Assim, milhões de
empregados domésticos brasileiros exercem suas funções sem quaisquer garantias trabalhistas. Sob o pretexto de que as relações entre patrões e empregados domésticos são mais
passionais do que econômicas, práticas como extensas jornadas de trabalho, instabilidade no emprego e não pagamento de horas extras são corroboradas.
Todavia, essa realidade pode ser mudada com a promulgação pelo Senado federal da Proposta de Emenda Constitucional nº 66/2012, mais conhecida como “PEC das
domésticas”, que garante novos direitos trabalhistas para os empregados domésticos. A proposta assegurará a estes trabalhadores jornada semanal máxima de quarenta e quatro
horas, pagamento de horas extras e o respeito a acordos e convenções coletivas. No entanto, medidas importantes como adicional noturno, seguro-desemprego, auxílio-creche,
emprego protegido contra despedida imotivada, seguro contra acidentes de trabalho e recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), entre outras,
ainda precisam ser regulamentadas.
Por outro lado, a “PEC das domésticas” não foi bem aceita pelos patrões que, outrora acostumados a manter seus “criados” em situações análogas à servidão ou à escravidão,
agora passarão a ter algumas despesas com encargos trabalhistas. Não obstante, a grande mídia brasileira, notadamente a Rede Bandeirantes, apresentou várias reportagens sobre
os prováveis malefícios da nova PEC para os empregadores. Em contrapartida, pouco se falou sobre essa (relativa) conquista dos trabalhadores domésticos. Como sempre,
somente um lado da questão (o mais forte) é ouvido.
Na terça-feira (2/4), dia da promulgação da “PEC das domésticas”, o Jornal da Band anunciava que a nova lei já provocara demissões e poderá aumentar ainda mais a
informalidade no setor devido ao aumento dos custos aos empregadores. De acordo com o presidente da ONG “Doméstica Legal” Mário Avelino, entrevistado pelo noticiário,
mais de oitocentas mil mulheres, muitas delas a única provedora do lar, podem perder o emprego por causa da “PEC das domésticas”. Segundo o repórter Fábio Pannunzio, a nova
emenda constitucional também já começa a mudar a rotina de muitos brasileiros. Nesse sentido, a fala de uma patroa sobre demitir um dos empregados de sua residência foi
emblemática: “Pela manhã eu vou me privar de fazer algumas coisas para ficar com as crianças. À noite, nós vamos sair menos porque os empregados vão ser dispensados, babá,
etc.” “A gente vai ter que se readequar, a gente vai ter que ser inteligente para saber quais horas usar o funcionário e em quais horas dispensar”, afirmou outro empregador.
Assim como na Grécia Antiga o trabalho escravo liberava os cidadãos para atividades intelectuais, atualmente a labuta das empregadas domésticas permite que a high
society brasileira possa “terceirizar” a criação de seus filhos e ter uma vida social ativa. Ironicamente, a única empregada doméstica ouvida pela reportagem do Jornal da
Band concedeu uma declaração tipicamente pelega: “No meu ponto de vista, eu não iria cobrar adicional nem hora extra, mas o Fundo de Garantia para ela [patroa] também iria
ficar muito alto.”
Não por acaso, o tema do último Canal Livre, atração dominical da Bandeirantes, foi a “PEC das Domésticas”. Conforme o esperado, o programa apresentado por Boris
Casoy, e com a participação de Fernando Mitre e Fábio Pannunzio, foi um excelente ensejo para a emissora da família Saad demonstrar mais uma vez seu repúdio à política que
pretende estender alguns direitos trabalhistas para os empregados domésticos.
Contudo, não foi somente a imprensa hegemônica que manifestou sua desaprovação à PEC nº 66/2012. Em uma rede social, uma advogada asseverou defender os direitos
dos trabalhadores domésticos, “mas o que se tem que ponderar é que quem paga o empregado doméstico é o cidadão comum, não é uma empresa, que contrata o funcionário para
fazer gerar dinheiro. O empregador [das domésticas] fica muito debilitado frente aos pesados encargos, já que o lar não é como uma empresa que gera lucro e movimenta recursos.
O empregado doméstico não é contratado para fazer girar dinheiro”.
Já em artigo intitulado “O extermínio das empregadas domésticas”, Joel Pinheiro da Fonseca, mestrando em Filosofia e editor da revista Dicta&Contradicta, asseverou que
“impor a hora-extra é um golpe nefasto porque quebra a relação de confiança na qual o trabalho de empregada doméstica se dá: ele deixa de ser um trabalho no qual favores
podem ser dados de parte a parte e se transforma numa relação calculista”. Para o filósofo, trabalhar algumas horas além do combinado é apenas um “favor” que as empregadas
domésticas fazem para os seus patrões e, portanto, não pode ser remunerado. Infelizmente, este é o pensamento das classes dominantes no Brasil.
Em última instância, garantir direitos trabalhistas para as empregadas domésticas, profissionais que sofrem com os resquícios da sociedade escravocrata que insistem em
perdurar em nosso país, pode ser um importante passo para o Brasil, finalmente, ingressar na modernidade.

Notícias revelam a face do obscurantismo

Por Francisco Fernandes Ladeira em 30/10/2017 na edição 964

Se retirarmos as datas referentes aos principais assuntos veiculados na imprensa brasileira nos últimos meses, os leitores, provavelmente, diriam que tais notícias não são
de 2017, mas remetem há anos, décadas ou até mesmo séculos.
A impressão que temos é que as várias formas de preconceito e todos os tipos de obscurantismo resolveram sair do armário ao mesmo tempo. Questões que pensávamos já
haver superado há tempos têm pautado a agenda pública da sociedade brasileira.
Paradoxalmente, as redes sociais, que representam o que há de mais moderno em comunicação humana, têm se constituído em espaços privilegiados para as posturas mais
retrógradas, através de discursos nitidamente classistas, misóginos, racistas e homofóbicos.
De uma hora para outra, os moralistas de plantão se transformaram em críticos de arte, e passaram a impedir exposições artísticas em todo o Brasil, sob o pretexto de
“defender a moral da tradicional família brasileira”. Qualquer semelhança com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma das manifestações que contribuíram para dar
um verniz popular ao golpe civil-militar de 1964, não é mera coincidência.
Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha deixado de considerar a homossexualidade como doença há mais de três décadas, no último mês de setembro um juiz
federal concedeu uma liminar que abre brecha para que psicólogos ofereçam a terapia de reversão sexual, conhecida como “cura gay”, tratamento proibido pelo Conselho Federal
de Psicologia (CFP) desde 1999. Só faltam reacenderem as fogueiras da Santa Inquisição. Infelizmente, preconceito e intolerância ainda permanecem como doenças incuráveis.
Já o verbo “flexibilizar” se transformou em uma espécie de eufemismo para os retrocessos estatais. Do Palácio do Planalto vêm propostas que visam à “flexibilização” das
leis trabalhistas, à “flexibilização” da fiscalização de práticas análogas à escravidão e à “flexibilização” da venda de terras produtivas a estrangeiros. Nunca o período colonial
esteve tão próximo. Seria o próximo passo revogar a (duramente conquistada) Lei Áurea de 1888?
Não obstante, de acordo com propostas educacionais como o “Novo Ensino Médio” e “Escola Sem Partido”, as instituições de ensino básico não poderão mais abordar
questões políticas ou tampouco a matriz curricular obrigatória do Ensino Médio deverá contar com disciplinas importantes para a formação crítica e científica dos alunos.
Por outro lado, segundo o STF, está garantido o ensino religioso confessional em escolas públicas, contrariando sumariamente o caráter laico do Estado brasileiro (uma das
grandes conquistas republicanas).
Nessa “era de retrocessos”, parece que determinados fatos saíram dos livros de história diretamente para a nossa realidade. Foi-se o tempo em que a ausência de direitos
trabalhistas era algo restrito aos primeiros anos da Revolução Industrial, que a escravidão era prática do século XVI, que censura era sinônimo de Regime Militar, que perseguição
a homossexuais era exclusividade da Idade Média e que golpe de Estado na América Latina remetia apenas à Guerra Fria.

O mal está banalizado entre nós

Por Francisco Fernandes Ladeira em 10/09/2019 na edição 1054

Em meados do século passado, a filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” para ilustrar a maneira como determinadas ideias de ódio se disseminaram
na sociedade alemã durante o regime nazista. Guardadas as devidas diferenças e proporções históricas, podemos afirmar que, daqui a alguns anos, algum pensador brasileiro
também deverá escrever um livro tentando explicar a banalização do mal que tem ocorrido atualmente em nosso país, da mesma forma que fez Hannah Arendt sobre a sua
terra natal.
É fato que o Estado brasileiro foi fundado sob a violência (“parteira da história”, segundo Marx): primeiramente, no genocídio de indígenas; posteriormente, com a
vergonhosa escravização de negros de origem africana. No entanto, em pleno século XXI, tempo suficiente para que as atrocidades de nosso passado já tivessem sido superadas,
vemos a barbárie se manifestar mais forte do que nunca. Como explicar para uma mente minimamente civilizada o fato de o governador de um dos estados mais importantes da
federação comemorar a morte de um jovem portador de distúrbios mentais após a ação de snipers como se fosse um gol em final de Copa do Mundo ou que o presidente da
República se referiu à ditadura militar – período devidamente reconhecido por violações aos direitos humanos, práticas de torturas e perseguições políticas – como “nota dez” em
diversos aspectos, inclusive no “amor ao próximo”?
Aliás, quando discursos e práticas autoritárias emanam das próprias autoridades públicas, temos o chamado “efeito guarda da esquina”, termo utilizado para descrever o caso
do cidadão comum que, ao observar o (mau) exemplo que vem de cima, também passa a se sentir no direito de praticar todo tipo de violência. Basta analisarmos os noticiários
recentes para constatarmos essa lamentável realidade.
Durante uma apresentação no interior de Minas Gerais, o humorista Gustavo Mendes foi agredido verbalmente por fãs do presidente Jair Bolsonaro quando fez referência ao
presidente da França, Emmanuel Macron (que se tornou inimigo número um dos bolsonaristas após apontar a gravidade dos incêndios na Amazônia). Em São Paulo, no domingo
(1/9), em um claro caso de xenofobia, um bar de refugiados palestinos foi atacado com spray de pimenta e garrafas. Apenas um dia depois, também na capital paulista, um jovem
negro foi chicoteado após tentar furtar uma barra de chocolate em um supermercado. Já em Manaus, um adolescente de 17 anos matou o irmão de 18 por descobrir uma relação
homossexual. Infelizmente, assim como na Alemanha de Hannah Arendt, o fantasma do ódio às minorias também está presente entre nós. Elza Soares já cantava: “a carne mais
barata do mercado é a carne negra”.
Não obstante, também temos o triste título de campeão mundial de assassinatos no campo. Já nas redes sociais, haters se regozijam ao tomar conhecimento de que mais um
“bandido” foi morto em uma “bem-sucedida” ação policial, cunhando suas frases típicas: “mais um CPF foi cancelado com sucesso”, “fizeram um bom trabalho”, “poderiam ter
matado mais”, e, é claro, o seu principal mantra, “bandido bom é bandido morto”.
Na grande mídia, programas policialescos têm na banalidade do mal a sua principal matéria-prima. O que seriam dos Cidade Alerta, Brasil Urgente e Polícia 24 horas da
vida se não fossem as cenas de violência cotidianas? Como bem apontou a jornalista Bia Barbosa, esses programas, baseados em desfiles de cadáveres, agressões,
achincalhamento de suspeitos em delegacias, discursos contrários aos direitos humanos, na defesa dos justiçamentos e na redução da maioridade penal, contribuem decisivamente
para a legitimação da barbárie em nosso país.
Por outro lado, a mesma classe média que se indignou quando um cão foi morto por um segurança do Carrefour se cala diante do extermínio de jovens, pobres e negros nas
periferias das grandes cidades brasileiras. Como dizia um famoso funk dos anos 1990: “era só mais um Silva que a estrela não brilha”.
Por fim, é importante ressaltar que, enquanto a Alemanha de Arendt já reconheceu os erros de seu passado, condenando veementemente as atrocidades cometidas durante o
regime nazista, no Brasil muitos ainda têm dificuldades em lidar com páginas infelizes de nossa história, como a escravidão, o massacre de Canudos e a ditadura militar. Não por
acaso, a tortura praticada no período autoritário anteriormente citado ainda é uma realidade presente em delegacias, em abusos rotineiros de autoridade e, lembrando o efeito
“guarda da esquina”, exaltada até em discursos em pleno Congresso Nacional.

A polêmica cobertura da greve geral

Por Francisco Fernandes Ladeira e Vicente de Paula Leão em 29/04/2017 na edição 941

Na sexta-feira (28/4) boa parte dos brasileiros interrompeu suas atividades cotidianas para participar de uma greve geral organizada em reação as reformas trabalhistas
propostas pelo governo de Michel Temer. Como é de praxe, a imprensa hegemônica brasileira, ligada aos interesses dos grandes capitalistas, não mostrou nenhum tipo de simpatia
por mobilizações da classe trabalhadora.
Em outras épocas, quando os grandes órgãos de comunicação detinham o monopólio de divulgar informações em larga escala, a greve geral certamente passaria
despercebida, não seria noticiada, pois não seria digna de ser considerado um “fato jornalístico”. Todavia, com o advento das redes sociais, muitos acontecimentos podem ser
reverberados nacionalmente à revelia da imprensa hegemônica. Portanto, diante da inevitabilidade de ocultar as mobilizações populares, os maiores jornais, revistas e emissoras do
país recorreram ao que melhor sabem fazer: distorcer a realidade em favor de um determinado viés ideológico.
Segundo a teoria da comunicação conhecida como “Enquadramento Noticioso”, a mídia faz uso de certas palavras, ideias, expressões e adjetivos que promove um
enquadramento que modela um determinado acontecimento, selecionando alguns aspectos e omitindo outros. Este processo “recorta” determinado ângulo do fato tornando-o
conhecido e, portanto, “real”, permitindo assim que os cidadãos possam se posicionar e agir em relação ao ocorrido.
Como todo acontecimento complexo, uma greve pode possuir tanto aspectos positivos quanto aspectos negativos. No entanto, para descontextualizar os fatos, a grande mídia
destacou que as manifestações não tiveram “causas”, mas somente “consequências”. Em seu enquadramento, apenas os transtornos causados pelas mobilizações populares nas
ruas foram apresentados. Noticiários destacaram os engarrafamentos quilométricos e os dramas dos afetados pela greve. Fotos com zoom fechado foram utilizadas para mostrar
populares nas ruas, o que possibilitou visualizar apenas fragmentos das manifestações.
De acordo com linguista francês Patrick Charaudeau, especialista em Análise do Discurso, a patemização – prática de suscitar estados emocionais na audiência mediante
determinados estímulos – é uma poderosa estratégia para a legitimação do discurso midiático. Sendo assim, os principais canais de televisão exibiram incessantemente a
“violência” dos grevistas com imagens de carros quebrados, pneus queimados e danos ao patrimônio público. Fotos e imagens que destacaram bandeiras vermelhas buscaram
alimentar o medo entre a população, associando a greve aos “comunistas/petistas”.
Outras estratégias de manipulação utilizadas foram a escolha das fontes, a criminalização dos protestos, a desqualificação do movimento grevista e a distração da audiência
com questões fúteis. Escolher quem será entrevistado é a garantia de que a história será contada apenas a partir de um ponto de vista. Para os analistas políticos da grande mídia,
“a greve foi coisa de uma minoria e não possui o apoio da população em geral”. Já a violência policial contra manifestantes é justificada como “defesa do cidadão e do
patrimônio público”.
Diante dessa realidade, devemos refletir sobre o porquê de a grande mídia brasileira apresentar quase sempre uma visão unidimensional da realidade. Apenas determinado
ponto de vista tem espaço nas maiores emissoras de televisão e nos principais jornais e revistas do país. Opiniões divergentes ao status quo são peremptoriamente ignoradas.
Sendo assim, é preciso democratizar os meios de comunicação para que os diferentes setores sociais tenham a oportunidade de defender os seus valores políticos. Em última
instância, uma verdadeira democracia passa, inexoravelmente, pelo fim do coronelismo midiático.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

4 POLÍTICA

“A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido” (Sérgio Buarque de Holanda).

Nos noticiários políticos a grande mídia deixa transparecer de maneira clara os seus direcionamentos ideológicos. Conforme já dizia o pensador marxista Antonio Gramsci,
em épocas de crise das tradicionais organizações partidárias de direita, a grande imprensa assume o papel de principal partido político das forças conservadoras31.
Segundo o jornalista Altamiro Borges, desde a sua origem, a chamada grande imprensa se aliou às forças mais reacionárias da política brasileira. Em seus noticiários, ela
geralmente não se intimida em demonstrar todo o seu repúdio aos movimentos sociais, seja aos camponeses em luta por um pedaço de terra, seja aos operários em greve por
melhores salários e condições de trabalho. Diante dos governos progressistas, mesmo os mais tímidos, a grande imprensa conspirou e participou ativamente de golpes de Estado.
Com raríssimas exceções, ela deu apoio às ditaduras mais sanguinárias e arbitrárias. Por meio de expedientes sujos, como o denuncismo vazio, não raro chantageou o poder
público com o intuito de obter concessões e subsídios32.
Ao longo da recente história brasileira, encontramos inúmeros registros de relações promíscuas entre imprensa e setores do poder político. Entre estes exemplos estão o
colaboracionismo dos principais grupos de comunicação do país com o golpe de 1964 e a posterior Ditadura Militar (quando a quase totalidade do jornais de circulação nacional
saudou o golpe com manchetes e editorias entusiastas); o apoio praticamente unânime à eleição de Fernando Collor de Melo em 1989; a defesa da implantação da agenda
neoliberal pelo governo Fernando Henrique Cardoso na segunda metade dos anos 1990; a ferrenha oposição aos governos petistas; o empenho pelo impeachment de Dilma
Rousseff e, por fim, o apoio (meio que envergonhado) à candidatura Jair Bolsonaro contra o petista Fernando Haddad no segundo turno da eleição presidencial de 201833.
Como bem sintetizou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, em entrevista para a revista Carta Capital, a grande imprensa levou Getúlio Vargas ao suicídio,
com base em nada; quase impediu Juscelino Kubitschek de tomar posse; com base em nada; e levou Jânio Quadros a renunciar, se aproveitando da maluquice dele, também com
base em nada34.
Seguindo essa linha de raciocínio, no livro A ditadura da mídia, Altamiro Borges denuncia que, na eleição presidencial de 1989, os grandes grupos de comunicação,
temendo uma vitória de Lula, cumpriram o estratégico papel de unificar as elites em torno da candidatura Fernando Collor de Melo, o “caçador de marajás”. Pouco tempo depois,
quando o mandato presidencial de Collor afundava e colocava em perigo a aplicação do receituário neoliberal, a grande mídia não titubeou em descartá-lo, engrossando o coro das
ruas pelo seu impeachment35.
Por falar em Lula, a perseguição midiática ao ex-presidente remete ao final da década de 1970, quando ele liderou os clássicos movimentos grevistas dos metalúrgicos da
região do ABC paulista, em pleno Regime Militar. Nas campanhas presidenciais de 1989, 1994, 1998 e 2002, Lula continuou sendo um dos alvos preferenciais dos ataques dos
grandes grupos de comunicação. Também não foi diferente em seus dois mandatos presidenciais e no processo político que culminou em sua prisão, em abril de 2018.
No tocante à ex-presidenta Dilma Rousseff, a perseguição midiática teve início em 2009, quando ela ainda era pré-candidata ao Palácio do Planalto. No livro A ditadura
continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff, o jornalista Jakson Ferreira de Alencar descreve meticulosamente como a continuidade dos
laços da mídia brasileira com o autoritarismo do Regime Militar apareceu de maneira clara quando uma ex-militante de resistência à ditadura decidiu concorreu à presidência da
República, o que transpareceu até mesmo na utilização, pelos grandes grupos de comunicação, dos mesmos argumentos, vocabulário e forma de criminalização que se usavam na
ditadura contra os movimentos de resistência.
Em abril de 2009, portanto um ano antes da eleição presidencial de 2010, quando os partidos ainda não haviam definido oficialmente quem seriam os seus candidatos, um
jornal de grande circulação chegou a publicar uma ficha policial falsa de Dilma Rousseff, construída digitalmente, apresentada como sendo dos arquivos do Departamento
Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) – antiga Delegacia de Ordem Política e Social – e, na mesma matéria, também relacionou o nome da então Ministra da
Casa Civil a um suposto plano de sequestrar Delfim Netto no final dos anos 196036.
Além do radicalismo ideológico da sociedade brasileira citado no capítulo anterior, o período histórico presente neste livro também foi marcado por uma grande instabilidade
política, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro, homem público conhecido por suas ideias extremistas.
Também a temática “corrupção” esteve bastante presente nos noticiários, através de sistemáticas coberturas que abordavam investigações de órgãos federais sobre possíveis
esquemas de corrupção que envolviam membros de vários partidos políticos. No entanto, a mídia hegemônica manipulava de modo seletivo os casos de corrupção, com o objetivo
a deslegitimar certas legendas partidárias e resguardar outras.
Essa seletiva prática de manipulação dos noticiários políticos – a partir da máxima “dois pesos, duas medidas” – é abordada nos dois primeiros artigos deste capítulo: “A
conjuntura política e o papel da grande mídia”37 e “O antipetismo da mídia brasileira”.
Por falar em antipetismo, a libertação do principal preso político no Brasil deste início de século – o ex-presidente Lula – é o tema do artigo “Lula está livre; a grande mídia,
não”.
Em julho de 2015, quando a deposição da presidenta Dilma Rousseff já dava sinais de ser uma realidade próxima, eu escrevi o quarto texto que foi selecionado para este
capítulo: “Redes sociais, grande mídia e a arquitetura do golpe”.
Como o processo de ruptura democrática que começou com o impeachment de Dilma Rousseff culminou com a eleição de Jair Bolsonaro, nada mais apropriado do que
encerrar este capítulo com um texto escrito sobre o mandato presidencial do ex-capitão do Exército.
Em “Armadilha discursiva do governo Bolsonaro dita a agenda pública nacional”, como o título já pressupõe, discorro sobre como Bolsonaro e sua equipe foram
extremamente bem-sucedidos em distrair a população com as suas declarações bombásticas enquanto colocavam em prática a nefasta agenda neoliberal; marcada pela diminuição
substancial de investimentos públicos em áreas como saúde e educação, pelo ataque aos mínimos direitos sociais e pela entrega do patrimônio nacional aos grandes capitalistas.

A conjuntura política e o papel da grande mídia

Francisco Fernandes Ladeira em 29/04/2014 na edição 796

Gramsci já dizia que, em épocas de crise das tradicionais organizações partidárias de direita, a grande imprensa assumiria o papel de principal partido político das forças
conservadoras. No Brasil, pelo menos desde 2002, com a chegada do Partido dos Trabalhadores à presidência da República, a direita tem decaído progressivamente nas eleições.
Sendo assim, impossibilitadas de voltar ao poder máximo da nação pelo voto popular, as principais lideranças conservadoras vêm buscando vias extraparlamentares, como a mídia
e o Supremo Tribunal Federal, para influenciar nas principais decisões políticas do país.
Corroborando as teses gramscianas, a grande mídia brasileira (o oligopólio formado pelas famílias Marinho, Frias, Mesquita e Saad) vem promovendo uma intensa
campanha contra o atual governo e, por outro lado, tem obliterado casos de corrupção envolvendo políticos da oposição.
Vejamos alguns exemplos recentes. Enquanto o julgamento da Ação Penal 470, mais conhecida como “mensalão petista”, teve ampla cobertura midiática (com o ministro
Joaquim Barbosa alçado ao status de herói nacional), o chamado “mensalão tucano”, encabeçado por Eduardo Azeredo, praticamente não foi mencionado nos principais veículos
da imprensa tupiniquim. A mesma mídia que noticia sistematicamente a polêmica compra de uma refinaria em Pasadena (EUA) pela Petrobrás, se calou diante das irregularidades
ocorridas nas privatizações realizadas pelo governo FHC.
Já as notícias sobre as relações do doleiro Alberto Yousseff com políticos governistas e oposicionistas demonstram claramente o verdadeiro direcionamento ideológico da
mídia hegemônica. Após uma reportagem da Folha de S. Paulo que denunciou os negócios ilícitos entre Alberto e o deputado petista André Vargas, teve início uma intensa
campanha midiática para que o caso fosse devidamente apurado. Tais atitudes seriam extremamente elogiáveis se fossem aplicadas a qualquer tipo de situação.
Pois bem, de acordo com investigações realizadas pela prefeitura de Maringá (PR), o doleiro em questão também é acusado de financiar campanhas de vários políticos
paranaenses, entre eles o senador Álvaro Dias, do PSDB. Entretanto, sobre este assunto nenhuma palavra na mídia hegemônica. Dois pesos, duas medidas. Por que não há
denúncias na imprensa contra o político tucano?
Portanto, não é preciso um extenso exercício hermenêutico para constatar o caráter tendencioso da grande mídia brasileira. Evidentemente que não há discurso que seja
completamente neutro. Contudo, lembrando um clássico pensamento de Alberto Dines, a imprensa de nosso país transforma meras reportagens em verdadeiros editoriais.
Coberturas jornalísticas que deveriam se limitar apenas à transmissão de informações ou a relatos dos fatos tornam-se, sob o prisma midiático, mecanismos para escoar uma
determinada agenda política.
Em suma, a “campanha anticorrupção” promovida pelos grandes veículos de comunicação, apesar de aparentemente bem-intencionada, não possui objetivos morais, mas
exclusivamente políticos. Trata-se somente de uma ofensiva de setores direitistas contra o governo do PT e tem como principal escopo fazer com que os tradicionais partidos que
representam as forças conservadoras retomem seus cargos que foram perdidos nos últimos processos eleitorais. Diante dessa realidade, não é por acaso que o acrônimo PIG –
partido da imprensa golpista – tem estado cada vez mais em voga no Brasil.
Por outro lado, o Partido dos Trabalhadores, ao buscar se perpetuar no poder máximo da nação, atrelou-se ao que há de mais reacionário na política nacional e assim, ao
contrário dos governos venezuelano e argentino, nada pode fazer para acabar com a vergonhosa concentração midiática que há em nosso país.
Desse modo, diante da inércia governamental, é preciso que os setores progressistas se engajem em campanhas que reivindiquem a completa democratização dos meios de
comunicação para que os diferentes segmentos sociais possam construir (como afirmava o supracitado Gramsci) seus próprios mecanismos de contra hegemonia.
Em última instância, uma verdadeira democracia passa, indubitavelmente, pelo fim do “coronelismo midiático”.

O antipetismo da grande mídia brasileira

Francisco Fernandes Ladeira em 19/09/2016 na edição 920

Desde que chegou à presidência da República, com Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido dos Trabalhadores tem sido alvo de uma intensa campanha orquestrada por setores
do judiciário, do parlamento e, sobretudo, da grande mídia. Nesse sentido, a denúncia de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) contra o ex-presidente Lula, “sem
provas, mas a partir de convicções”, representa mais uma etapa do processo de ruptura democrática que tem como objetivo inviabilizar eleitoralmente a esquerda brasileira, de
maneira geral, e o PT, em particular.
A empreitada antipetista ganhou consistência em 2005 com a Ação Penal 470, midiaticamente conhecida como “Mensalão”. Na época, o objetivo era impedir a reeleição de
Lula e tirar de cena do jogo eleitoral seus potenciais sucessores: José Genoíno e José Dirceu. A partir de então, as sessões do judiciário se transformaram em uma espécie
de reality show transmitidas em rede nacional, sendo Joaquim Barbosa alçado ao posto de principal paladino na luta contra a corrupção.
Apesar das prisões de políticos petistas, sob o argumento de “domínio dos fatos”, o espetáculo jurídico/midiático do “Mensalão” não alcançou seu principal fim. Lula não
apenas se sagrou vitorioso nas urnas em 2006, como também elegeu sua sucessora: a ex-ministra Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil.
Entretanto, em 2013, surge uma oportunidade única para as forças antidemocráticas: as famosas manifestações de junho. Em um país onde centenas de milhares de pessoas
nas ruas geralmente era sinônimo de festas carnavalescas ou comemorações futebolísticas, de repente eclodiram mobilizações populares reivindicando demandas históricas, como
transporte coletivo urbano decente e serviços públicos de educação e saúde de qualidade.
Diante da inevitabilidade em conter a onda de protestos, os setores conservadores da sociedade brasileira se apossaram das manifestações de rua e canalizaram suas forças
para consolidar um sentimento nacional anti-PT. Nas redes sociais, apareceram inúmeras mobilizações contra a corrupção (associada exclusivamente ao Partido dos
Trabalhadores), contra os impostos (para os mais ricos) e pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.
Com a temática moralista da anticorrupção mais em voga do que nunca, e as eleições de 2014 no horizonte, era preciso fomentar um grande escândalo que pudesse
corroborar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores era uma quadrilha responsável por saquear o Estado brasileiro. Surgia assim o chamado “Petrolão” e um novo herói
midiático, o juiz Sérgio Moro.
Todavia, nem “Mensalão”, nem “Petrolão” e tampouco a intensa propaganda midiática em favor do candidato Aécio Neves foram suficientes para que a direita voltasse ao
poder no Brasil. Parafraseando a famosa frase de Carlos Lacerda em relação a Getúlio Vargas: “Dilma não poderia ser candidata, se fosse, não poderia ser eleita, se eleita, não
poderia tomar posse; e, se tomasse posse, não poderia governar”.
E foi justamente o que aconteceu. E assim seguiu a cartilha da grande imprensa durante o segundo mandato da presidenta. Primeiramente desgastar ao máximo o governo
através de análises rasas e opiniões prontas para aqueles que sofrem de economia cognitiva. Depois, conceber o cenário político como insustentável (na torcida pelo “quanto pior,
melhor”) para, finalmente, apresentar de forma tácita a queda de Dilma como única solução possível para reverter aquele cenário negativo.
Mas antes de derrubar Dilma era preciso dar um verniz popular aos ímpetos antidemocráticos. Mais uma vez entra em ação a mídia hegemônica convocando membros da
classe média histérica a comparecerem às ruas com a camisa da CBF para protestar contra o governo. Para isso servem os indivíduos dispostos a atuar como massa de manobra.
Estava preparado o cenário para o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. No último mês de abril, em um domingo, dia da semana em que a maioria dos brasileiros tem
tempo disponível para estar em frente à TV, começava o grotesco evento “político/midiático” que daria início à deposição de Dilma, concretizada no mês de agosto.
O fato de este evento “político/midiático” ter apresentado como personagem principal Eduardo Cunha, um dos políticos mais corruptos de nossa história, e, de outro lado,
como antagonista, Dilma Rousseff, uma das únicas personalidades do alto escalão da política brasileira que nunca foi investigada por corrupção foi mero detalhe. Como diria um
clássico pensamento político (erroneamente atribuído a Maquiavel), “os fins justificam os meios”. Ironicamente, meses depois, o próprio Cunha perderia seu mandato como
deputado federal. Excelente pretexto para justificar a ideia de que a campanha contra a corrupção atinge a todos.
Com Dilma fora do páreo, é preciso prender Lula, maior liderança popular da história do Brasil e, não obstante, solapar qualquer possibilidade de o ex-metalúrgico ser
candidato em 2018 (o exemplo de Vargas, na década de 1950, ainda assombra as classes dominantes). Surge então o chamado “impeachment preventivo”. Desse modo, a edição
de quarta-feira (14/09) do Jornal Nacional parecia um tribunal de acusação contra Lula. Com semblantes tensos, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos
repetiram as “convicções” dos procuradores do MPF: “Lula recebeu dissimuladamente três milhões e setecentos mil reais em propinas, parte de um desvio de oitenta e sete
milhões de reais da Petrobrás, em três contratos com a OAS”, “Em uma avaliação geral da Lava-Jato, os promotores afirmam que Lula é o comandante máximo de um esquema de
corrupção”, “governos petistas criaram uma propinocracia”, “Petrolão e Mensalão seriam duas faces de um mesmo esquema de governabilidade corrompida, de perpetuação
criminosa no poder e de enriquecimento ilícito”.
Para concluir este artigo é importante frisar que, ao contrário do que pensam muitos apedeutas (os famosos “comentaristas de internet”), denunciar a perseguição midiática
sofrida por políticos petistas não é relativizar casos de corrupção ou tampouco defender incondicionalmente o Partido dos Trabalhadores. O que devemos colocar em pauta é a
seletividade do conteúdo dos principais noticiários brasileiros. Casos de condutas moralmente condenáveis por parte de políticos de partidos de direita geralmente
são negligenciados.
Por outro lado, não é difícil entender os motivos para tanto ódio da imprensa hegemônica e das classes sociais mais abastadas em relação ao PT, pois, afinal de contas, o
governo Lula ampliou de 499 para 8.094 o número de veículos que recebem publicidade estatal, diminuindo assim os lucros dos grandes empresários da mídia. Ademais, a
ascensão social promovida na última década, apesar de não ter bases sólidas, fez com que indivíduos das classes baixas pudessem frequentar lugares que anteriormente estavam
destinados somente às parcelas mais favorecidas da população. Essa “invasão” de pobres em aeroportos, restaurantes e shopping centers causou calafrios nas elites. Em última
instância, para as classes dominantes, acostumadas a ver seus pares ocuparem os cargos máximos da nação, deve ter sido muito difícil ter que conviver durante oito anos com um
governo liderado por um ex-retirante nordestino, oriundo da classe baixa e sem formação secundária. Conforme já apontava Sérgio Buarque de Holanda, “a democracia no Brasil
foi sempre um lamentável mal-entendido”.

Lula está livre; a grande mídia, não

Francisco Fernandes Ladeira em 12/11/2019 na edição 1063

Sexta-feira, 8 de novembro de 2019. Uma data marcante para a recente história política brasileira. Exatamente às 17h40, após 580 dias, o ex-presidente Lula deixou a prisão
na sede da Polícia Federal, em Curitiba, onde centenas de militantes estavam concentrados para recebê-lo. Independentemente de viés ideológico ou qualquer outro condicionante,
era esperado que uma imprensa minimamente democrática concedesse total cobertura a esse acontecimento, pois, afinal de contas, não é todo dia que se tem a oportunidade de
noticiar a saída da prisão de um ex-chefe de Estado.
Pois bem, enquanto a história estava sendo feita na capital paranaense, a Rede Globo – principal emissora do país e uma das maiores do planeta – seguia com a sua
programação normal, exibindo a soap opera Malhação. Aliás, escamotear do grande público determinadas pautas é uma prática corriqueira do canal da família Marinho. Trata-se
da prática jornalística designada por Perseu Abramo como “padrão de ocultação”, que se refere à ausência de determinados fatos na produção da imprensa, não por fruto do
desconhecimento, mas de um deliberado silêncio militante.
Durante a ditadura militar, a Rede Globo escondeu as principais atrocidades do regime; nos anos 1980, um comício do movimento Diretas Já, na Praça da Sé, foi noticiado
como somente mais um evento em comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo e, recentemente, casos de corrupção envolvendo nomes ligados à direita política foram
estrategicamente negligenciados.
Se a Rede Globo conseguiu minimizar o quanto pôde a soltura de Lula no final da tarde, em seu principal noticiário, o Jornal Nacional, não havia como deixar de mencionar
o “Lula Livre”. Foi aí que, mais uma vez, entrou em cena a máquina de manipulação da família Marinho. Logo na abertura do telejornal, o âncora William Bonner destacou que
“no primeiro dia depois da decisão do STF contrária à prisão de condenados em segunda instância, o ex-presidente deixa a sala em que estava preso na Política Federal em
Curitiba”, insinuando uma suposta rapidez na libertação de Lula. Em sequência, Ana Paula Araújo completou: “Além de Lula, o julgamento do STF pode beneficiar outros
condenados por corrupção”; o que deu entender que a liberdade de Lula, um direito constitucional, seria um incentivo à impunidade.
No entanto, o que mais chamou a atenção foi o fato de o primeiro bloco, tradicionalmente dedicado a notícias locais, ter trazido como destaque uma questão internacional: os
trinta anos da queda do Muro de Berlim. Como dizia a minha avó: “para quem sabe ler, um pingo é letra”. Em uma “situação normal”, as três décadas da queda do Muro de
Berlim, fato emblemático para a geopolítica global, mas não muito chamativo para o público-alvo de noticiários da TV aberta, receberia uma breve menção no Jornal Nacional, e,
mesmo assim, durante os blocos intermediários. Dificilmente seria matéria de abertura. Para se ter uma ideia de como acontecimentos geopolíticos não são destaques na imprensa
brasileira, no dia posterior à própria queda do Muro de Berlim, a Folha de S.Paulo, por exemplo, trouxe em sua manchete a tentativa de Silvio Santos em se candidatar à
presidência da República, dedicando um espaço secundário ao acontecimento símbolo do final da Guerra Fria.
Por que, afinal de contas, trinta anos depois, a queda do Muro de Berlim despertaria tanto interesse? De uma hora para outra, o noticiário internacional passou a ser
importante para o espectador médio do Jornal Nacional, o “Homer Simpson”, segundo palavras do próprio Bonner.
Não sejamos ingênuos, tratou-se da velha estratégia de associar Lula ao “comunismo”, um discurso paranoico típico da Guerra Fria, que voltou à tona nesses últimos anos de
“polarização ideológica” e frases como “a nossa bandeira jamais será vermelha”. Desse modo, não foi por acaso que, após anunciar brevemente a liberdade de Lula, o Jornal
Nacional partiu para a reportagem sobre a queda do Muro de Berlim. Assim, o autointitulado “cidadão de bem” poderia relembrar sua indignação com o “autoritarismo
comunista” e preparar a sua panela para bater quando chegassem as reportagens sobre a soltura de Lula.
Quando a liberdade do ex-presidente, enfim, foi destacada no Jornal Nacional – após matérias sobre robôs jogando futebol, simuladores de capotamentos de automóveis e da
previsão do tempo -, foi mencionada a possibilidade de o Poder Legislativo aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permita a execução antecipada da pena
após condenação em segunda instância (campanha arduamente defendida pela Rede Globo). Dois parlamentares foram entrevistados sobre essa questão. Ambos a favor da
aprovação da PEC. Mais parcial, impossível, pois qualquer jornalismo minimamente democrático abriria espaço para pelo menos dois pontos de vistas diferentes sobre um
determinado assunto. Nesse sentido, é sintomática a declaração da deputada federal Joice Hasselmann, nova “melhor amiga” de Manuela d’Ávila, que prometeu “obstruir pautas
no Congresso até a votação da PEC da segunda instância”.
No Jornal da Record, que se transformou em uma espécie de noticiário oficial do atual governo, Augusto Nunes, que recentemente agrediu de maneira covarde Glenn
Greenwald, fez um discurso panfletário e raivoso: “O ex-presidente, graças a seis ministros do Supremo, deixou de ser presidiário, mas não deixou de ser um condenado em três
instâncias por corrupção e lavagem de dinheiro. Lula recuperou o direito de contar mentiras em palanques, mas não será candidato a nada. A ‘Lei da Ficha Suja’, por enquanto,
não foi revogada pelo Supremo”. Ainda durante o noticiário da emissora de Edir Macedo, ao ser questionado sobre o fato de Lula não ser o único solto com a decisão do STF,
Nunes disparou a sua verborragia costumeira: “O ex-presidente apenas puxa a fila de criminosos que escaparão da gaiola. […] Juristas sérios informam que deve passar de 150 mil
os bandidos devolvidos às ruas. É o maior ‘saidão’ da história. Os brasileiros decentes que tranquem as portas e escondam dinheiro”.
Ora, conforme bem frisou no Twitter a professora e ativista Biazita Gomes, “O STF não votou contra a punição de bandidos. Ele votou contra o cumprimento da pena de
forma compulsória em segunda instância. A decisão do STF não se aplica em crimes contra a vida e condições em tribunais do júri”. Portanto, as postagens compartilhadas nas
redes sociais sobre o habeas corpus para Alexandre Nardoni ter sido concedido a partir da mesma decisão que beneficiou Lula ou que, assim como o ex-presidente, também
seriam soltos milhares de assassinos, pedófilos, traficantes e estupradores, não passam de notícias falsas reverberadas pelos setores conservadores da população. A prisão de
indivíduos que, em liberdade, podem apresentar algum tipo de perigo para a sociedade, é “preventiva”, não tem nada a ver com a segunda instância.
Como era de se esperar, o “Lula Livre” também incomodou a imprensa escrita. No dia seguinte à soltura do ex-presidente, os principais jornais impressos do Brasil
trouxeram manchetes semelhantes: “Após 580 dias, Lula deixa prisão e ataca PF, Lava Jato e Bolsonaro” (Folha de S.Paulo); “Lula deixa prisão, ataca Moro e Lava Jato e
reacende polarização” (O Estado de S.Paulo); “Solto, Lula ataca Lava Jato e Bolsonaro, que evita confronto” (O Globo).
Ao contrário do noticiado pelo jornal O Globo, em sua conta no Twitter, Jair Bolsonaro atacou Lula: “Não dê munição ao canalha, que momentaneamente está livre, mas
carregado de culpa”. Minutos depois, Carlos Bolsonaro escreveu em seu perfil: “Calma, cambada de bandido, o Brasil não é de vocês! Comemorem, criminosos! Estão liquidados
política e criminalmente! O Brasil vai dar certo!”.
Para a Folha de S.Paulo, a derrubada pelo STF da prisão após segunda instância (o que significa simplesmente “cumprir a Constituição”) é um “retrocesso penal”. Já
o Estado de S.Paulo destacou que “apesar de a nova narrativa disponível na praça tentar transformar Lula no ‘Mandela brasileiro’, capaz de unir o país, os petistas mais lúcidos
sabem que ela não irá prosperar” e “a alta rejeição a Lula, identificada pelas pesquisas, não deve diminuir”. Nesse mesmo periódico, uma ressentida Vera Magalhães apontou que
“Lula solto – e não livre, como se tenta falsamente vender na narrativa triunfalista montada pelo PT – vai exacerbar a polarização entre os extremos estridentes da sociedade: de
um lado, bolsonaristas revoltados clamando pelo fechamento do STF e, de outro, viúvas do lulopetismo ignorando que Lula foi condenado em duas instâncias e teve a condenação
confirmada pelo STJ por crime comum”.
A imprensa brasileira, porta-voz da elite econômica, teme a chamada “polarização”, pois ela exacerba a luta de classes, motor da sociedade capitalista, realidade que os
grupos dominantes fazem de tudo para escamotear, com o intuito de naturalizar as desigualdades sociais e impedir que os setores populares se rebelem contra o sistema. Por mais
conciliador que possa ser, o passado de líder sindical – ao contrário de políticos da “esquerda classe média” como Haddad, Freixo e Manuela d’Ávila – faz com que Lula seja
capaz de canalizar as demandas populares e ofereça, de fato, uma oposição consistente à política de terra arrasada colocada em prática pelo atual governo. Não por acaso, no
jornal O Globo, Ascânio Seleme afirmou que “Lula, solto, será o adversário que Bolsonaro não teve”; e Miriam Leitão escreveu sobre a necessidade (para as elites) de que Lula
“erga pontes”, em vez de “radicalizar”.
Enfim, Lula está livre, mas a grande mídia, não. Continua presa às amarras ideológicas, aos interesses do grande capital, ao ódio de classe, à subserviência em relação às
potências globais e, sobretudo, às coberturas tendenciosas e enviesadas que, segundo dizia o saudoso Alberto Dines, transformam notícias (que, teoricamente, deveriam se limitar
à apresentação dos fatos) em verdadeiros editoriais.

Redes sociais, grande mídia e a arquitetura do golpe

Francisco Fernandes Ladeira em 14/07/2015 na edição 859

Um espectro ronda o Brasil: trata-se do golpe de Estado, a tentativa desesperada de derrubar o governo federal que foi democraticamente eleito. Nessa empreitada golpista,
sob a eufêmica bandeira do impeachment, setores conservadores da sociedade brasileira têm se mobilizado nos diversos meios de comunicação. Nas redes sociais,
pseudo-analistas, de praticamente todas as faixas etárias, estão se transformando em ícones do pensamento conservador. Nesse sentido, podemos citar Kim Kataguiri, o jovem
mais retrógrado do Brasil, o “pelego racial” Fernando Holiday e o astrólogo autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, guru da direita brasileira.
Não obstante, diversas calúnias sobre a presidenta Dilma Rousseff têm sido exaustivamente compartilhadas no Facebook. Basta uma breve leitura da sessão de comentários
da página virtual da Folha de S.Paulo, por exemplo, para constatarmos que as redes sociais estão sendo cada vez mais utilizadas para propagar discursos de ódio. Mesmo matérias
que nada têm a ver com o cenário político ensejam enxurradas de ofensas ao PT e à presidenta. Conforme já apontamos em outro artigo, “dê um mouse e um teclado para um
sujeito intolerante e verá até onde pode chegar a ignorância humana”.
Por sua vez, mais discreta do que os “revoltados online”, porém não menos golpista, a grande mídia também vem contribuindo na tentativa de derrubar a presidenta, seja na
seletividade de notícias sobre corrupção, na manipulação de dados estatísticos, no superdimensionamento da atual crise econômica, na personificação dos problemas brasileiros na
figura de Dilma Rousseff ou na produção de infográficos que visualizam uma suposta realidade política após a deposição da presidenta.
Também é importante destacar o bombardeio ideológico sofrido pelo atual governo presente nas colunas ultraconservadoras de publicações como Veja e Folha de S.Paulo,
nos comentários raivosos dos articulistas políticos das principais emissoras de televisão (Carlos Lacerda seria considerado dócil se vivesse nos dias atuais), nos conteúdos dos
programas humorísticos “politicamente incorretos” e nas falas dos “especialistas” (acadêmicos não reconhecidos pelos seus pares, mas que expõem na mídia suas ideias
preconceituosas travestidas de “análises científicas”).
Evidentemente, o presente artigo não pretende defender o governo (diga-se de passagem, tratar-se-ia de uma tarefa extremamente controversa), mas preconizar pela
conservação dos mínimos preceitos democráticos duramente conquistados pela sociedade brasileira. Em um país que passou por séculos de escravidão, vice-campeão mundial em
concentração fundiária (só perdemos para o vizinho Paraguai) e marcado por estratosféricas desigualdades em todos os âmbitos, é preciso que os setores progressistas se levantem
e denunciem quaisquer tipos de manobras que possam representar retrocessos políticos, econômicos e sociais.
Armadilha discursiva do governo Bolsonaro dita a agenda pública nacional

Por Francisco Fernandes Ladeira em 20/08/2019 na edição 1051

Nos anos 1970, os pesquisadores estadunidenses Maxwell McCombs e Donald Shaw formularam a hipótese do “agendamento midiático”, que parte do princípio de que os
consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são abordados com maior destaque na cobertura jornalística (tanto nos veículos impressos quanto
nos eletrônicos). De acordo com essa linha de pensamento, as notícias veiculadas na imprensa não determinam necessariamente o que as pessoas pensam sobre uma temática
qualquer, porém são bem-sucedidas em fazer com que o público pense e fale sobre um assunto e não sobre outros.
Cinco décadas após os pioneiros estudos de McCombs e Shaw, os grandes grupos de comunicação perderam o monopólio de determinar a agenda pública nacional; os
assuntos sobre os quais a maioria das pessoas discutirá cotidianamente não são apenas aqueles escolhidos pela imprensa tradicional, mas, em muitas ocasiões, referem-se aos
conteúdos veiculados na internet. Não por acaso, é cada vez maior o número de políticos, jogadores de futebol, músicos e atores que escolhem as redes sociais para se comunicar
diretamente com o grande público, ao invés de recorrer às mídias tradicionais.
Nesse sentido, o atual governo brasileiro tem sido muito bem-sucedido em ditar os rumos da agenda pública nacional. Isso significa que cada tuíte polêmico de Bolsonaro,
cada vídeo com declarações anódinas da ministra Damares Alves ou as críticas descabidas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, a Paulo Freire rapidamente se
transformam nos assuntos mais comentados em todo o país. Como apontou um colega de trabalho, independentemente de posicionamentos ideológicos, não conseguimos passar
um dia sequer sem falar do governo Bolsonaro.
Mas, na prática, o que significa o fato de o governo definir os rumos da agenda pública nacional? Primeiramente, podemos dizer que Bolsonaro, com suas declarações
incisivas e bombásticas, busca consolidar sua base de apoio, formada por indivíduos que defendem incondicionalmente todas as falas do “mito” (por mais “injustificáveis” que
possam parecer) e inundam as redes sociais com os famosos questionamentos “e o PT?”, “e Lula?”, “e Dilma?”.
Pragmaticamente falando, para um governo que não foi eleito pela maioria dos eleitores (somados, os votos de Haddad, brancos, nulos e abstenções superaram a votação de
Bolsonaro) e, não obstante, vê os seus (já baixos) índices de aprovação em queda livre, é importante sustentar seu público fiel. Faz parte da estratégia de governabilidade. Típico
exemplo de “jogar para a plateia”.
Por outro lado, as declarações polêmicas de Bolsonaro e de outros membros de seu governo servem para desviar o foco e distrair a população sobre o que realmente é o
principal objetivo do atual mandato presidencial: aplicar a nefasta e impopular agenda neoliberal, responsável pela política de terra arrasada que visa desmontar o Estado brasileiro
e colocá-lo à disposição do grande capital internacional.
Assim, paulatinamente vamos perdendo direitos trabalhistas, a Previdência está sendo destruída, serviços públicos vão sendo exterminados, universidades e institutos
federais são sucateados, a Amazônia é entregue para os Estados Unidos e o Intercept divulga matérias que demonstram o quão nocivas são as ações da Operação Lava Jato; mas as
pessoas, nas ruas, estão discutindo sobre menino vestir azul e menina vestir rosa, se “ideologia de gênero” é coisa do diabo, o que é golden shower ou se evacuar dia sim, dia não,
é benéfico para o meio ambiente.
Diante dessa realidade, os grandes veículos de comunicação, astutos como de costume, sabem se aproveitar como ninguém das idiossincrasias de Jair Bolsonaro e dos
membros de seu governo. Criticam veemente cada barbaridade verbal vinda do presidente e de seus ministros e, em contrapartida, se calam diante dos malefícios gerados para os
trabalhadores pela política econômica neoliberal. Desse modo, além de atender aos interesses diretos de seus financiadores (empresários e banqueiros), alguns dos principais
articulistas da imprensa hegemônica ainda saem como “progressistas” e estimuladores do pensamento crítico.
Conforme apontado anteriormente, não nos causa surpresa o fato de o cidadão comum cair na armadilha discursiva feita pelo governo. Afinal de contas, a maioria das
pessoas, demasiadamente preocupadas com suas obrigações rotineiras, tende a seguir a agenda pública nacional.
No entanto, o que chama bastante atenção é que setores que se consideram progressistas também estão aderindo à agenda ditada pelo governo. Desse modo, boa parte da
esquerda brasileira (sobretudo aquela ligada às chamadas “pautas identitárias”) não denuncia as medidas neoliberais do governo, preferindo discutir temáticas moralistas. Isso
significa que, enquanto os mínimos direitos democráticos da população estão sendo sumariamente eliminados, “jogados pelo ralo”, a “esquerda identitária” se preocupa em
“lacrar” nas redes sociais com textões empoderados que usam linguagens não binárias.
E, assim, o governo brasileiro tem obtido bastante êxito em sua estratégia de desviar a atenção do público e mantê-lo distraído em relação às questões realmente importantes,
que afetam diretamente a vida do trabalhador brasileiro. Trata-se da prática qualificada pelo linguista e ativista estadunidense Noam Chomsky como “estratégia de distração”. Se o
governo ainda não tem o poder de decidir sobre como as pessoas vão pensar, por outro lado podemos dizer que, em muitas ocasiões, já se encontra em reais condições de apontar
sobre quais temas o público vai discutir. Maquiavel ficaria muito surpreso com o cenário político brasileiro deste início de século XXI.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

5 GEOPOLÍTICA

“Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial” (Caetano Veloso).

A geopolítica, na mídia, é espetacularizada. Questões complexas, como os conflitos no Oriente Médio, as rivalidades étnicas no continente africano e a ascensão de governos
politicamente à esquerda na América Latina, são abordadas superficialmente pelos principais meios de comunicação, através de informações manipuladas e enviesadas.
Não obstante, entre os temas presentes constantemente na mídia, os noticiários internacionais são, certamente, um dos que têm menor apelo junto à audiência. Seja pela
complexidade dos fatos ou pela falta de relação imediata com o cotidiano do cidadão comum, a realidade é que a grande maioria dos receptores passa incólume pelas matérias que
abordam questões envolvendo outras nações.
Diante dessa realidade, para facilitar a compreensão do público (em geral não familiarizado com as temáticas geopolíticas) e tornar inteligível a configuração das relações
internacionais, os principais veículos de comunicação globais fornecem “atalhos cognitivos”, a partir de estereótipos, tipificações, maniqueísmos, personificações, lugares-comuns
e generalizações com o objetivo de oferecer aos leitores/telespectadores alguma sensação de ordem em relação a um mundo, de fato, complexo em demasia38.
O resultado dessas simplificações midiáticas é um desconhecimento grosseiro da opinião pública sobre a realidade das relações internacionais e um confinamento mental dos
cidadãos no preestabelecido, pois devido ao distanciamento espacial dos receptores, o imaginário popular sobre questões geopolíticas tende a ser construído a partir de ideias
vinculadas pela mídia39.
Consequentemente, tipificações e estereótipos como o “muçulmano terrorista e fanático religioso”, o “czar russo”, o “ditador cubano” e o “caudilho sul-americano”,
exaustivamente repetidos pelos meios de comunicação, podem ser aceitos sem maiores questionamentos.
Em contrapartida, as constantes intervenções das principais potências mundiais em países subdesenvolvidos e as ações cometidas por aliados dos Estados Unidos e da
Europa Ocidental – como o genocídio promovido pelo Estado de Israel contra o povo palestino e as violações dos direitos humanos na Colômbia – são estrategicamente
negligenciadas, ou então abordadas superficialmente40.
Segundo o jurista francês especialista em relações internacionais Robert Charvin, cada acontecimento geopolítico é martelado durante um ou mais dias seguidos na mídia,
com uma forte intensidade para impregnar os espíritos, desaparece abruptamente para dar lugar a outro, que desaparece por sua vez: não há acompanhamento.
Os fatos não têm nem raiz nem história. O flash privilegiado, buscando a emoção, exclui a explicitação. O objetivo não é fazer as pessoas compreenderem o que se passa,
mas “impressionar” a mente para tentar fabricar a opinião desejada pelos poderes41.
Paradoxalmente, em tempos de globalização – em que as relações entre as diferentes nações são cada vez mais estreitas; fazendo com que um acontecimento num
determinado país possa ter consequências planetárias – temos um contínuo processo de desinformação em larga escala sobre o andamento das relações internacionais.
As distorções realizadas pela mídia sobre os principais acontecimentos mundiais e a importância dos meios de comunicação de massa para a criação de imaginários
geopolíticos são tratadas nos artigos “A importância da mídia nas relações internacionais” e “Falta de contextualização gera desinformação”.
Em sequência, a geopolítica latino-americana entra em cena com o texto “Geopolítica da América Latina e grande mídia”. O quarto artigo, “A mídia como ator político”,
aborda a importância da mídia para o chamado “terrorismo internacional”.
Já o “analfabeto geopolítico” é o tema do artigo homônimo que encerra este capítulo. Trata-se do indivíduo que assiste diariamente aos poucos minutos dos noticiários
internacionais da grande mídia brasileira e já se considera extremamente capaz de se posicionar sobre o complexo cenário das relações internacionais. Para formular os seus
posicionamentos sobre a geopolítica global, o “analfabeto geopolítico” não recorre à bibliografia especializada, pois ele prefere o imediatismo à reflexão, formulando as suas
opiniões a partir das ideias de alguns youtubers confiáveis, se mantendo atualizado sobre o que acontece no mundo por meio de postagens de amigos e parentes nas redes sociais.

A importância da mídia nas relações internacionais

Por Francisco Fernandes Ladeira em 12/05/2015 na edição 850

No livro Discursos Geopolíticos da Mídia – Jornalismo e Imaginário Internacional na América Latina, a professora da Universidade Federal do ABC Margarethe Born
Steinberger apresenta a tese de que nova ordem geopolítica internacional é uma ordem internacional midiática. Segundo a autora, as diferentes formas de imperialismo cultural
(que não implicam necessariamente em domínio territorial físico e direto) indicam que o sistema de referência em ascensão atual é o sistema pós-moderno midiático, em que a
indústria cultural e os meios de comunicação de massa detêm o poder de configurar mentalidades a médio/longo prazo e, consequentemente, amalgamar o apoio social necessário
à consolidação de qualquer liderança global. Nesse sentido, a hegemonia no âmbito das relações internacionais depende cada vez mais do desenvolvimento tecnológico na área
informacional.
Em outros termos, o atual processo de dominação de uma nação sobre outras não se restringe apenas ao espectro militar, também está relacionado ao campo discursivo.
Indubitavelmente, um acontecimento que não esteja “documentado” na mídia não “existe” sob o ponto de vista geopolítico. Além de um poderoso exército, uma grande potência
contemporânea também deve ter à sua disposição um eficiente aparato midiático, capaz de difundir determinadas ideias em escala planetária. Após a Guerra do Golfo, as práticas
de estratégia militar dos Estados Unidos, por exemplo, passaram a incluir também um ostensivo planejamento midiático, baseado na preocupação com o controle da opinião
pública internacional.
Atualmente, podemos compreender geopolítica a partir do tripé governo/academia/mídia, em que os principais líderes globais lançam determinadas agendas (“guerra ao
terror”), alguns pensadores as corroboram intelectualmente (“choque de civilizações”) e a mídia tem por função legitimar e tornar compreensível os discursos políticos e
acadêmicos frente à população (“consenso fabricado”).
Pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial, a mídia é uma das principais “armas” utilizadas pelos principais atores geopolíticos. O próprio Adolf Hitler recorreu às ondas
radiofônicas para disseminar seu discurso doentio por todo o território alemão. Durante o maior conflito armado da história, a atuação ideológica da indústria cultural não se
restringiu ao público adulto; o universo dos desenhos animados também transmitiu mensagens de ódio aos inimigos bélicos. Enquanto uma produção japonesa destinada ao
público infantil retratava Mickey Mouse como uma criatura maléfica que invadia e bombardeava o Japão, um desenho estadunidense apresentava Popeye lutando contra a marinha
nipônica. Por sua vez, a criação do personagem Zé Carioca, por Walt Disney, foi uma tácita maneira de atrair o apoio brasileiro para os aliados e acabar com qualquer
possibilidade de o governo Vargas se aliar às potências do Eixo. Findada a guerra, os órfãos Huguinho, Zezinho e Luisinho (sobrinhos do famoso Pato Donald) foram o consolo
das crianças estadunidenses que perderem os pais, mortos em combate.
No contexto geopolítico da Guerra Fria, a indústria cultural ocidental desempenhou um duplo papel: difundiu em ampla escala o consumismo exacerbado típico do american
way of life (“Era de Ouro” do capitalismo) e, por outro lado, propagou a paranoia anticomunista entre os aliados de Washington. Desse modo, toda uma gama de propaganda
ideológica foi utilizada para amedrontar a população sobre o “perigo vermelho”. Todavia, nem sempre os meios de comunicação favorecem a agenda política de uma grande
potência. As fortes imagens da Guerra do Vietnã foram de suma importância para que boa parte da população estadunidense se posicionasse contra o conflito no sudeste asiático.
Na atual ordem mundial – em que a hegemonia global paulatinamente vem se deslocando do campo político (Estado nacional) para atores não estatais (mercado, organismos
internacionais, capital desterritorializado) – a mídia tem assumido o papel de uma “esfera pública internacional sem fronteiras”.
Conforme o mencionado anteriormente, o reconhecimento e a validação de uma determinada agenda geopolítica, passa, inexoravelmente, pelo prisma midiático. Como bem
asseverou o ativista Noam Chomsky, o governo dos Estados Unidos utiliza a imprensa para legitimar suas ações imperialistas, atacar os seus inimigos ideológicos e construir
“fatos” e “verdades”. A “guerra ao terror”, empreendida por George Bush, não teria o mesmo êxito junto à opinião pública ianque se não fossem os grandes veículos de
comunicação. Em contrapartida, também não há como imaginar o atual terrorismo internacional sem os impactos causados pelas imagens hollywoodianas do Word Trade Center
em chamas, das pessoas correndo desesperadamente durante a Maratona de Boston ou das degolações realizadas pelo Estado Islâmico.
Por outro lado, devemos salientar que conceitos clássicos como Estado, território e nação ainda são importantes para situar o cidadão comum no complexo xadrez
geopolítico ou para a análise lexical da atual conjuntura global pautada na ordem internacional midiática. Não por acaso, as grandes agências de notícia recorrem ao conceito
weberiano de Estado, como o detentor legítimo do monopólio da violência, para qualificar as intervenções israelenses na Palestina como “ações preventivas” ou “retaliações” e a
resistência dos palestinos frente ao Estado sionista como “terrorismo”. Se formos levar em consideração que 80% do conteúdo dos noticiários geopolíticos que circulam pelo
planeta são concebidos por agências de origens europeia e estadunidense, não é difícil inferir que a ideologia imperialista das grades potências é praticamente a única fonte de
informação sobre política internacional para a imensa maioria da população. Portanto, frente a esse quadro, não basta apenas se manter informado, é preciso saber ler a mídia,
desvendar seus possíveis mecanismos manipuladores e entender os jogos de interesse que estão por trás do seu discurso. O sujeito que possui o mínimo conhecimento sobre o
maquinário midiático, seleção de pautas (agenda-setting) e o contexto de construção da notícia (newsmaking) dificilmente será um alvo vulnerável para o pensamento dominante.
Diante dessa realidade, as instituições escolares podem ser instâncias privilegiadas para a formação de cidadãos críticos em relação à mídia. Cabe, então, aos educadores
promover a ressignificação do discurso midiático em sala de aula, orientando seus alunos no gerenciamento das informações que estão disponíveis nos principais veículos de
comunicação. Surge assim um dos grandes desafios para os professores neste início de século 21: contribuir para que, no tocante aos estudos geopolíticos, o senso de julgamento
de seus discentes não fique refém do enquadramento midiático.

Falta de contextualização gera desinformação

Por Francisco Fernandes Ladeira em 18/09/2015 na edição 868

Entre os temas presentes constantemente na mídia, os noticiários internacionais são, certamente, um dos que têm menor apelo junto à audiência. Seja pela complexidade dos
fatos ou pela falta de relação imediata com o cotidiano do cidadão comum, a realidade é que a grande maioria dos receptores passa incólume pelas matérias que abordam questões
envolvendo outras nações. Entretanto, em determinadas ocasiões, há notícias que, devido à força das imagens, causam fortes reações emotivas e passam a chamar a atenção do
grande público.
O exemplo mais recente de notícia internacional que comoveu não só o Brasil, mas todo o planeta, refere-se à imagem do menino sírio Aylan Kurdi, de apenas três anos,
morto após o naufrágio de uma embarcação de refugiados. Todavia, em ocasiões como essa, ficam explicitadas as limitações da imprensa brasileira em suas
coberturas internacionais.
Evidentemente, reconhecemos as dificuldades logísticas e econômicas para que um veículo de comunicação (principalmente na imprensa escrita) mantenha um
correspondente permanente nas principais regiões do planeta. Contudo, levando-se em consideração que vivemos em uma época marcada pelo acesso praticamente instantâneo às
mais variadas fontes de informação, não faz muito sentido a grande mídia brasileira ainda ser refém dos enquadramentos impostos pelas poderosas agências internacionais, que
estão, sem exceção, atreladas às potências hegemônicas e seus interesses. Sendo assim, o alinhamento incondicional e a inevitável reprodução fidedigna do conteúdo jornalístico
dos grandes conglomerados jornalísticos do planeta, mais do que qualquer outro motivo, é mera escolha ideológica da imprensa brasileira, prática típica de subserviência a tudo
que remete ao “Primeiro Mundo”.
Embora saibamos que os populares veículos de comunicação, como a televisão, não têm a função de necessariamente problematizar notícias, pois seus formatos impedem
abordagens aprofundadas, é importante frisar que acontecimentos de forte apelo emocional como o já citado caso do menino sírio e o atentado de 11 de setembro, parecem, sob o
prisma midiático, não ter causas, mas somente consequências.
Ora, não há como entender as trágicas mortes de Aylan e de outros refugiados asiáticos e africanos sem nos remetermos às práticas imperialistas das grandes potências
globais que transformaram Afeganistão, Iraque e Líbia em Estados falidos e, nos últimos anos, vêm desestabilizando a Síria, mergulhando o país em uma sangrenta guerra civil,
com direito à atuação do temido Estado Islâmico.
Lembrando as palavras do professor de Língua Portuguesa, Fabrício Avelino, em conversa informal com o autor deste artigo, a atual crise humanitária não é apenas uma
onda migratória rumo à Europa: trata-se de um grande êxodo de potencial mão de obra barata, semiescrava, essencial para a reprodução do capital em sociedades envelhecidas,
como a alemã. Porém, dificilmente encontraremos tais referências nos principais noticiários internacionais da mídia brasileira.
As coberturas internacionais tendenciosas também chegam aos espaços mais importantes para a formação de futuras gerações de cidadãos atuantes: as instituições escolares.
Muitos professores (sobretudo na área de Geografia), com o intuito de “dinamizar” suas práticas didáticas, introduzem o material midiático em sala de aula sem, entretanto, fazer a
devida crítica ou contextualização histórica. Como bem asseverou o docente da Universidade Federal de São João d’El Rei , Vicente Leão, em sua dissertação de mestrado, o
professor, que utiliza o conteúdo midiático como mero recurso pedagógico e não como objeto de estudo, transforma suas aulas em mais uma correia de transmissão para o
discurso hegemônico.
Apesar de nos últimos anos a grande imprensa brasileira ter perdido o monopólio na formação da opinião pública nacional com o advento das redes sociais e da chamada
“mídia independente”, ela ainda é hegemônica (principalmente a maior emissora de TV do país) na hora de condicionar o pensamento de boa parte dos brasileiros.
Desse modo, temos um nefasto processo de comunicação que começa com a manipulação dos fatos pelas agências internacionais de notícias, passa pela imprensa tupiniquim
e culmina na sala de aula, onde muitos docentes acríticos equivocadamente acreditam que estão mantendo seus alunos “atualizados” em relação às grandes questões do
mundo contemporâneo.

Geopolítica da América Latina e grande mídia

Por Francisco Fernandes Ladeira em 25/07/2016 na edição 913

Nas últimas décadas a América Latina presenciou uma grande ascensão de governos com tendências políticas à esquerda. Embora em escalas diferentes, estes mandatários
romperam com alguns paradigmas neoliberais, incrementaram políticas sociais, fomentaram uma maior participação estatal em setores estratégicos da economia e colocaram em
prática medidas que visavam a minimizar a histórica concentração dos meios de comunicação de massa no subcontinente.
Em 2007, Hugo Chávez não renovou a concessão da RCTV alegando que a emissora, ao privilegiar negócios privados em detrimento de prestar informações de interesse
público, não cumpria as funções destinadas aos canais de televisão, conforme o previsto na constituição venezuelana. Durante seu mandato também houve grande incentivo para a
criação de rádios comunitárias.
No primeiro governo de Lula, a maioria das outorgas radiofônicas (63,68%) foi concedida para rádios comunitárias. O ex-presidente também ampliou de 499 para 8.094 o
número de veículos que recebem publicidade estatal, diminuindo assim os lucros dos grandes empresários da mídia. Por sua vez, Cristina Kirchner promulgou a chamada Ley de
Medios, medida que pregava o fim do monopólio de grandes grupos de comunicação argentinos ao restringir a porcentagem de mercado que poderiam dominar e quantos canais
poderiam deter, além de incentivar veículos independentes. Seguindo essa tendência, países como Equador e Uruguai também reformaram suas legislações de comunicação nos
últimos anos. Tais mudanças coincidiram com os mandatos de Rafael Correa e Pepe Mujica.
No âmbito internacional, esses governos de esquerda privilegiaram as relações diplomáticas e econômicas com seus vizinhos continentais ou com outros países
subdesenvolvidos em detrimento das históricas alianças com as nações desenvolvidas, sobretudo os Estados Unidos. Entretanto, conforme o colocado pela professora Margareth
Steinberger, a América Latina ainda constrói práticas socioinformativas a partir de um imaginário colonialista. As informações que as nações do subcontinente recebem sobre os
países vizinhos não são geradas diretamente por eles, mas por agências de notícias sediadas nos países desenvolvidos. Diante dessa realidade, governos latino-americanos que
tenham posturas contrárias aos interesses das grandes potências mundiais ou representem obstáculos para a expansão capitalista tendem a ser representados de maneira negativa
na mídia.
No documentário Ao Sul da Fronteira, o cineasta Oliver Stone demonstra como a grande imprensa dos Estados Unidos retrata os governantes de esquerda latino-americanos
a partir de visões desrespeitosas e levianas, representando Hugo Chávez e Evo Morales como tiranos que perseguem opositores, apoiam narcotraficantes e concedem abrigo a
células de organizações terroristas internacionais. Além do mais, estes veículos de comunicação recorrem constantemente a práticas cômicas para difundir clichês e generalizações
que ridicularizam hábitos e costumes das populações da América Latina. De maneira geral, conclui Stone, as maiores redes de notícia estadunidenses seguem as orientações da
política externa da Casa Branca e dividem o mundo em “amigos” (líderes que fazem o que os Estados Unidos querem que eles façam) e “inimigos” (líderes que tendem a discordar
de Washington).
Seguindo essa linha noticiosa, os discursos da imprensa brasileira sobre os governos de esquerda latino-americanos são marcados por palavras de forte carga semântica
negativa como “populismo”, “caudilhismo”, “ditadura”, “demagogia” e “assistencialismo”. Desde a primeira eleição de Hugo Chávez para a presidência da Venezuela, em 1998,
há uma ostensiva campanha midiática com o objetivo de deturpar a imagem do líder bolivariano. Conforme constatou Angelo Adami em um trabalho de graduação em
Comunicação Social, mesmo Chávez sendo eleito e reeleito em eleições democráticas, avalizadas por observadores internacionais, dentro das normas constitucionais e com a
garantia de direito a voto para todos os cidadãos maiores de idade indistintamente, a revista Veja construiu a imagem do ex-presidente venezuelano como um ditador que
representava grande ameaça para a estabilidade política da América do Sul.
Após a deposição parlamentar do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, em junho de 2012, Arnaldo Jabor teceu um comentário extremamente preconceituoso sobre os
presidentes latino-americanos com tendências políticas à esquerda. Na fala do articulista da Rede Globo, a Bolívia de Evo Morales é uma “república cocalera”, Lula dava dinheiro
para o Paraguai, Cristina Kirchner se destaca por usar botox e o próprio Lugo foi “acusado” de “proteger os sem-terra paraguaios”.
Não obstante, a concentração dos meios de comunicação de massa latino-americanos em propriedade de poucos grupos não representa apenas a reprodução de ideologias
colonialistas, mas, conforme a história recente tem demonstrado, também consiste em grande ameaça aos preceitos democráticos, pois, em ocasiões pontuais, influentes grupos
midiáticos contribuíram ativamente para a deposição de governos com tendências políticas à esquerda. Lembrando as palavras da blogueira Cynara Menezes: “A mídia tem sido o
braço pseudo-democrático dos golpes brancos que vêm ocorrendo na América do Sul ao longo da última década. Como não consegue ganhar eleições, a direita se alia aos
principais jornais e emissoras de TV e apela a soluções jurídicas, quando não diretamente para a força bruta, para chegar ao poder”.
Portanto, como nosso imaginário social latino-americano tornou-se um espaço público privatizado pela mídia, articulado a partir das categorias da linguagem jornalística, um
novo espaço de resistência subcontinental depende, intrinsecamente, de um esforço coletivo para “desmidiatizar o pensamento”. Para isso, torna-se necessário solapar qualquer
forma de “coronelismo midiático” e promover uma completa democratização dos meios de comunicação de massa para permitir que os diferentes setores sociais da América
Latina construam representações sociais próprias e tenham voz para divulgar suas demandas e reivindicações. Uma democracia verdadeira requer, sobretudo, uma mídia que não
seja mera reprodutora do status quo, mas que contemple a grande pluralidade de espectros ideológicos.

A mídia como ator político

Por Francisco Fernandes Ladeira em 20/11/2015 na edição 877

Nova York, 11 de setembro de 2001. Em uma manhã ensolarada no final do verão no hemisfério norte, aviões sequestrados por terroristas islâmicos da rede al Qaida colidem
com as torres gêmeas do imponente World Trade Center, um dos símbolos do poderio econômico dos Estados Unidos da América. Pela primeira vez, desde a ofensiva conduzida
pela marinha imperial japonesa contra a base naval de Pearl Harbor, no início da década de 1940, a maior potência do planeta era alvejada em seu próprio território.
Entre as causas que levaram ao 11 de setembro estão a aliança entre Estados Unidos e Arábia Saudita – país onde está localizada Meca, a cidade sagrada do Islã – e o apoio
incondicional da Casa Branca às ações do Estado de Israel contra o povo palestino. Na política exterior de Washington, as principais consequências do atentado promovido pela al
Qaida foram as invasões do exército estadunidense ao Afeganistão e ao Iraque (práticas inseridas na chamada “guerra ao terror” de George W. Bush). Já no âmbito doméstico, sob
o pretexto de combate ao terrorismo, a instituição do Patriot Act (Lei Patriótica) trouxe uma série de prerrogativas para a intervenção estatal na vida dos cidadãos estadunidenses.
Paris, 13 de novembro de 2015. A noite de sexta-feira tinha tudo para ser somente mais um início de final de semana na agitada capital francesa quando, de repente, uma
série de ataques coordenados, atribuídos ao grupo jihadista Estado Islâmico, deixou mais de uma centena de mortos em vários pontos da cidade. “Uma situação como nunca se viu
na França em tempos de paz”, noticiaram as agências de notícias internacionais. Os ataques foram uma retaliação radical à intervenção francesa na Síria, país cujo território está
localizado em uma área onde o Estado Islâmico pretende fundar um califado, ou seja, uma organização estatal teocrática baseada na sharia, a lei islâmica.
Não obstante, as consequências dos atentados em Paris já são sentidas nos ataques do exército francês às bases do Estado Islâmico na Síria e na implantação de leis
semelhantes ao Patriot Act, que aumentam o poder do Estado e, em contrapartida, restringem as liberdades individuais. Provavelmente, a extrema-direita francesa, liderada pela
advogada Marine Le Pen, saberá aproveitar os ataques promovidos pelo Estado Islâmico como propaganda eleitoral para suas políticas anti-imigração. No continente europeu de
maneira geral, é praticamente certo que aumentará a atual onda de islamofobia, iniciada após a crise capitalista de 2008.
Apesar das semelhanças entre os atentados ocorridos em Nova York e em Paris (ambos ilustram as conturbadas e complexas relações entre potências imperialistas e
fundamentalismo islâmico), é preciso ressaltar algumas significativas diferenças ideológicas e de modus operandi entre a al Qaida e o Estado Islâmico.
A rede terrorista al Qaida tem suas origens no Afeganistão da década de 1980, no contexto da chamada “Guerra Fria”, quando os Estados Unidos treinaram e financiaram
Osama bin Laden e seus companheiros para lutarem contra o invasor soviético. No início dos anos 1990, com a Guerra do Golfo, Bin Laden rompe seus laços com os Estados
Unidos (que incluíam lucrativas relações econômicas) e, desde então, a al Qaida opera como se fosse uma espécie de transnacional do terror, organizada a partir de uma rede
geograficamente dispersa de células autônomas. Seus ataques com homens-bomba, que se lançam à morte contra alvos ocidentais na esperança de uma paradisíaca existência
pós-mundana com direito a quarenta virgens, povoam o imaginário ocidental repleto de estereótipos negativos sobre o Islã.
Por sua vez, o Estado Islâmico, formado por dissidentes da célula iraquiana da al Qaida, é consequência direta da invasão dos Estados Unidos ao Iraque, iniciada em março
de 2003. Conforme o mencionado anteriormente, o temível grupo terrorista tem como principal intuito a fundação de um califado no Oriente Médio. Portanto, consideram a
questão territorial de suma importância para os seus delirantes objetivos. Também repudiam bombardeamentos suicida, pois consideram que Alá proíbe atos em que um ser
humano retira sua própria vida. Ao contrário da al Qaida, incluem entre os seus ataques também alvos da própria religião muçulmana, sobretudo da ramificação xiita (lembrando
que a al Qaida e o Estado Islâmico são sunitas). Aliás, o incessante ataque a mesquitas xiitas foi um dos motivos para a cisão entre o Estado Islâmico e a rede terrorista fundada
por Bin Laden.
Por outro lado, as empreitadas da al Qaida e do Estado Islâmico não teriam as mesmas repercussões se não fossem os meios de comunicação de massa, especialmente a
televisão. Conforme apontam vários estudos, nos últimos anos a televisão tem deixado de ser um veículo de transmissão de informações para se transformar em um poderoso
instrumento de fabricar emoções. Mais do que simples ataques qualificados como “terrorismo”, tanto o 11 de setembro quanto o 13 de novembro foram ações cuidadosamente
planejadas para serem grandes eventos midiáticos, capazes de despertar a atenção de plateias em todo o planeta, gerando assim reações emotivas como ódio, medo, revolta ou até
mesmo um tácito sadismo com a desgraça alheia. Não há como imaginar o atual terrorismo internacional sem os impactos causados pelas imagens hollywoodianas do Word Trade
Center em chamas ou dos vídeos das degolações realizadas pelo Estado Islâmico compartilhados nas principais redes sociais.
Já as grandes potências globais utilizam-se da mídia para corroborar suas políticas imperiais. Amedrontadas ou comovidas pela incessante repetição das fortes cenas de
atentados como os ocorridos nos Estados Unidos e na França, parcelas consideráveis da população adotam (ou acabam absorvendo involuntariamente) retóricas como a “guerra ao
terror” ou aceitam passivamente leis retrógradas que atentam contra a liberdade individual. Nesse contexto, além de um poderoso exército, uma grande potência também deve ter à
sua disposição um eficiente aparato midiático, capaz de difundir determinadas ideias em escala planetária. Enfim, sem exagero algum, podemos dizer que a mídia é,
definitivamente, um dos principais atores geopolíticos da contemporaneidade.

O analfabeto geopolítico

Por Francisco Fernandes Ladeira em 06/03/2019 na edição 1027

O analfabeto geopolítico assiste diariamente aos poucos minutos dos noticiários internacionais da grande mídia brasileira e já se considera extremamente capaz de se
posicionar sobre o complexo cenário da geopolítica contemporânea. Ele não recorre a obras de autores como Eric Hobsbawm, Noam Chomsky, Milton Santos ou Domenico
Losurdo em suas análises sobre a geopolítica global, pois estes pensadores são “doutrinadores comunistas”, mentores intelectuais dos “movimentos globalistas”. Além do mais,
livros de História, Geografia ou Ciências Sociais são obras prolixas, chatas e démodé. Aprofundar-se em um determinado assunto é coisa de acadêmico, um tipo social que o
analfabeto geopolítico abomina. Os únicos professores universitários que ele respeita são aqueles neocons que aparecem em programas de TV pregando o conservadorismo como
ideologia e prática governista, isto é, lembrando as palavras de Chico Buarque, que defendem uma diplomacia que fala “grosso” com a Bolívia e “fino” com os Estados Unidos.
O analfabeto geopolítico prefere o imediatismo à reflexão. Formula suas opiniões a partir das ideias de alguns youtubers confiáveis e se mantém atualizado sobre o que
acontece no mundo por meio de postagens de amigos e parentes nas redes sociais. Quando assiste a um vídeo de poucos minutos na Internet, em que um youtuber “refuta” todo o
pensamento de Marx, o analfabeto geopolítico já se sente com argumentos suficientes para “lacrar” nas principais redes sociais.
Para o analfabeto geopolítico, os maniqueísmos midiáticos são suficientes para explicar os focos de tensão do mundo contemporâneo. Ele percebe as relações internacionais
a partir de um raciocínio dicotômico, entre nós e eles (os diferentes). Os antagonismos entre Mundo Islâmico e Ocidente, que datam, pelo menos, ao período da expansão
muçulmana no século VII, podem ser devidamente reduzidos a dicotomias como “civilização versus barbárie”, “luzes versus obscurantismo”, ou, lembrando os famosos épicos de
Hollywood, a uma “batalha do bem contra o mal”. Ele também desconhece as divisões arbitrárias e as rivalidades étnicas criadas pelos europeus no continente africano.
Consequentemente, a geopolítica da África é aquela presente em produções hollywoodianas, e os antagonismos entre diferentes grupos culturais africanos são causados por
rivalidades seculares, que nada têm a ver com a interferência dos “civilizados” europeus. Do mesmo modo, a chamada “Questão Palestina” não se trata de disputas por territórios,
seria um suposto ódio histórico entre judeus e muçulmanos.
Para o analfabeto geopolítico, o complexo fenômeno do terrorismo internacional é percebido somente a partir de sua representação midiática, suas causas seriam meramente
religiosas. Estes ataques são consequências da inveja que os fanáticos islamitas sentem de nós, civilizados ocidentais. “Contextualizar”, “relacionar”, “complexificar” e “refletir”
são verbos definitivamente banidas do vocabulário do analfabeto geopolítico. Para ele, a presença imperialista no Oriente Médio tem por único e cândido objetivo levar a
“democracia” aos déspotas árabes (diga-se de passagem, o analfabeto geopolítico não sabe diferenciar “muçulmano” de “árabe”). Por que tem tanta convicção? Ele se informou
através da Associated Press, da United Press International, da Agence France Press e da Reuters. Como poderosas agências internacionais de notícias, que dispõem de altas
tecnologias da comunicação, originárias de países de Primeiro Mundo, poderiam se equivocar? É fato: o analfabeto geopolítico também incorporou muito bem o chamado
“complexo de vira-latas”: tudo o que vem das nações do norte, com certeza, é melhor do que o nosso.
O léxico geopolítico da grande mídia está na ponta da língua do analfabeto geopolítico. Palavras e expressões como “democracia”, “ditador”, “ajuda humanitária” ou
“comunidade internacional”, por exemplo, são espécies de fetiches. Por si só, já explicam uma determinada questão das relações internacionais. “Israel é a única democracia do
Oriente Médio”, logo está justificado o genocídio do povo palestino, “os Estados Unidos são a maior democracia do planeta”, consequentemente podem intervir em qualquer país
mundo afora. Aliás, para o analfabeto geográfico, intervenções estadunidenses não são “ações militares”, tampouco podem ser qualificadas como “guerras”, mas “ajudas
humanitárias”. Países como Iraque, Afeganistão ou Síria que o digam.
Não obstante, o fato de os dois únicos partidos estadunidenses eleitoralmente viáveis – Democrata e Republicano – serem praticamente iguais no sentido ideológico, fator
que para qualquer sistema minimamente democrático é algo extremamente danoso, consiste em mero detalhe para o analfabeto geopolítico. Por outro lado, todo governante que
ofereça a mínima resistência aos interesses de Washington é, automaticamente, um “ditador”. O fato de ele ter sido eleito ou não pelo voto popular é o que menos importa.
A expressão “comunidade internacional” – recurso metonímico que difunde os interesses estadunidenses como se fossem os interesses de todo o planeta – é um termômetro
para os posicionamentos do analfabeto geopolítico, que, via de regra, sofre de preguiça cognitiva. Parafraseando um conhecido dito popular, “aonde a comunidade internacional
vai, o analfabeto geopolítico vai atrás”. Ele condena veemente os programas nucleares do Irã e da Coreia do Norte, mas apoia incondicionalmente o programa nuclear que mais
danos causou à humanidade: o estadunidense. Falando em seletividade, vez ou outra, algum analfabeto geopolítico se mostra engajado sobre questões internacionais. Nas redes
sociais cita Nelson Mandela, mas no shopping prefere o apartheid. Ele também denuncia violações de direitos humanos em Cuba ou na Síria, mas quando assiste aos noticiários
policialescos da mídia brasileira, afirma que direitos humanos aqui no Brasil é “direito dos manos” e argumento para “defender bandido”.
Mesmo que a história insista em demonstrar o contrário, o analfabeto geopolítico tem suas “próprias verdades”. O nazismo é de esquerda, o Foro de São Paulo tem por
objetivo implantar o comunismo na América Latina e a escravidão no Brasil foi somente uma transferência continental da escravidão que já existia na África.
O analfabeto geopolítico se orgulha de sua ignorância. Não pode ver uma vergonha, que quer logo passar. Diferentemente do “analfabeto político” de Brecht, o “analfabeto
geopolítico” não bate no peito e diz que odeia geopolítica. Pelo contrário, ele não se furta de explicitar seus posicionamentos controversos. O analfabeto geopolítico é o hater das
redes sociais, o “idiota da aldeia” citado por Umberto Eco, o pobre de direita e o fantoche nas mãos dos poderosos do planeta. Trata-se do típico oprimido terceiro-mundista que
adota a ideologia imperialista do opressor. Nesse sentido, Simone de Beauvoir já dizia que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Esta
é, talvez, a principal função do analfabeto geopolítico: contribuir para que, no plano discursivo/simbólico, o processo de dominação de poucas nações sobre o restante do planeta
siga o seu curso sem maiores contratempos.

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

6 HISTÓRIA

“A história se repete, a primeira vez como tragédia


e a segunda como farsa” (Karl Marx).

Em nossa contemporaneidade a mídia cumpre um importante papel como mecanismo que pode ser utilizado para eternizar ou não um acontecimento histórico. No entanto,
como se sabe, os discursos midiáticos não são neutros e, geralmente, são produzidos para tentar induzir o público a compactuar com uma determinada interpretação sobre a
realidade. Portanto, para um olhar crítico sobre os fatos, é fundamental que a “narrativa midiática” não substitua o “acontecimento histórico”.
Um dos momentos históricos mais importantes da televisão brasileira – o direito de resposta de Leonel Brizola a um editorial calunioso de O Globo lido no Jornal
Nacional por Cid Moreira – é relembrando no artigo que abre este capítulo: “O homem que desafiou a poderosa Globo”.
As raízes históricas do sentimento de inferioridade que o brasileiro possui em relação às nações desenvolvidas são apontadas em “Sobre o complexo de vira-lata”, texto que
tem como pano de fundo uma entrevista do sociólogo Jessé Souza ao jornal Folha de São Paulo. Para Jessé, o “complexo de vira-lata” é um discurso criado pela classe dominante
que remete ao período colonial, corroborado academicamente por nossa intelligentsia (através de influentes nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Fernando
Henrique Cardoso e Raymundo Faoro) e replicado pelo senso comum42.
Em 2019, quando parcela considerável da população brasileira ainda insistia em negar o caráter golpista do movimento civil-militar de 31 de março/1º de abril de 1964 (com
destaque para o presidente Jair Bolsonaro que chegou a orientar os quartéis para que comemorassem o golpe), escrevi o artigo “A ameaça comunista jamais existiu”, em que
destaco, entre outras questões, o apoio dos grandes grupos de comunicação brasileiros à Ditadura Militar.
Na época, o teólogo Leonardo Boff apontou que comemorar o golpe após 55 anos de uma sangrenta ditadura seria como se a premiê alemã Angela Merkel obrigasse celebrar
a figura de Adolf Hitler ou o presidente da Rússia, Vladimir Putin, homenageasse a figura de Stalin, com os horrores que ambos e outros cometeram contra a humanidade e a
dignidade humana43.
Também em 2019, mais precisamente no mês de abril, o impeachment de Dilma Rousseff completava três anos, e, ao contrário do que prometiam os opositores da
ex-presidenta, o país se encontrava em um caos político, econômico e social.
Frente a essa realidade controversa, produzi o texto “Três anos do impeachment: o que a mídia tem a ver com isso?”, em que são enfatizadas as dimensões geopolíticas,
classicistas e midiáticas que condicionaram a última grande ruptura democrática ocorrida no Brasil.
Fechando este sexto capítulo, “A primeira experiência geopolítica globalmente compartilhada” analisa aquele que talvez seja o acontecimento histórico mais midiático de
todos os tempos: o atentado de 11 de setembro44.
Conforme bem escreveu Jean Baudrillard em seu livro Power Inferno, “imaginem se [as torres gêmeas do Word Trade Center] não tivessem desabado, ou que apenas uma
delas desabasse, o efeito não seria de modo algum o mesmo. A prova gritante da fragilidade da potência mundial não teria sido a mesma. As torres, que eram o emblema dessa
potência, ainda a encarnam nesse fim dramático, que lembra um suicídio”45.

O homem que desafiou a poderosa Globo

Por Francisco Fernandes Ladeira em 01/07/2014 na edição 805

Enquanto todas as atenções estavam voltadas para a 20ª edição da Copa do Mundo de futebol, no sábado (21/06) completaram-se dez anos do falecimento de Leonel de
Moura Brizola, um dos políticos brasileiros mais atuantes do século passado. Brizola esteve presente em importantes acontecimentos de nossa história contemporânea como a
campanha pela volta do sistema presidencialista em 1963, o movimento das Diretas Já e a primeira eleição presidencial após a ditadura militar, em 1989.
Ao longo de sua carreira como homem público, Brizola, por suas posições esquerdistas e pela personalidade forte, envolveu-se em inúmeras polêmicas com a conservadora
imprensa brasileira, principalmente com as Organizações Globo. Em 1994, o político gaúcho, então governador do estado do Rio de Janeiro, e a emissora da família Marinho
protagonizaram um momento épico na história das telecomunicações no Brasil. Em uma das edições do Jornal Nacional, sob o pretexto de citar um editorial do jornal O Globo,
Brizola foi ridicularizado, teve sua saúde mental questionada e foi chamado de “senil”.
Covardemente atacado em sua honra, Brizola conseguiu na justiça o direito de resposta contra as calúnias a ele dirigidas. Sendo assim, na edição do dia 15 de março
do Jornal Nacional, o âncora Cid Moreira, visivelmente constrangido, leu o texto em que o político gaúcho denunciava os conchavos realizados pelas Organizações Globo.
Durante aproximadamente três minutos, em um daqueles raros momentos em que o pequeno Davi vence o gigante Golias, Cid Moreira teve que “incorporar” Leonel Brizola e
afirmou que a Globo é tendenciosa, compactou com regimes autoritários, manipula informações, tentou sabotar e boicotar o carnaval carioca em 1982 e ataca os homens públicos
que não se vergam diante do seu poder. Em suma, uma realidade que não mudou nestes vinte anos.
Infelizmente, não há mais políticos como Brizola. Numa época em que o atual governo federal (ironicamente uma vítima da verborragia da imprensa hegemônica) se recusa
a adotar qualquer medida que possa alterar a vergonhosa concentração midiática que impera em nosso país, é extremamente oportuno lembrar a coragem de Leonel de Moura
Brizola que, pelo menos por uma noite, lavou a alma dos setores progressistas da sociedade brasileira ao denunciar os desmandos da Vênus Platinada.

Sobre o complexo de vira-lata

Por Francisco Fernandes Ladeira em 19/01/2016 na edição 886

Décadas antes da vexatória derrota de 7 a 1 para a Alemanha, a seleção brasileira já havia perdido um Mundial de futebol em seu próprio território. O ano era 1950 e o palco
da “tragédia”, o estádio do Maracanã. Precisando apenas de um empate no último jogo da competição (na época o regulamento era diferente do atual); o escrete canarinho titubeou
diante do Uruguai. Resultado final: 2 a 1 para a Celeste Olímpica. Como era de se esperar, um clima de pessimismo generalizado tomou conta do país. Na ocasião, o escritor
Nelson Rodrigues cunhou o clássico termo “complexo de vira-lata” para representar o sentimento de inferioridade que o brasileiro possui em relação a outros povos, sobretudo
aqueles do chamado “Primeiro Mundo”.
Pois bem, oito anos mais tarde, na Copa do Mundo realizada na Suécia, o Brasil se sagrou campeão pela primeira vez e, a partir de então, vieram mais quatro títulos que
solapariam peremptoriamente o sentimento de inferioridade futebolística. Se o “complexo de vira-lata” foi banido do futebol, nos outros âmbitos da sociedade brasileira ele ainda
insiste em permanecer. Vejamos um exemplo recente. Uma postagem compartilhada milhares de vezes nas redes sociais comparava duas praias após a festa de réveillon. A
primeira nos Estados Unidos (supostamente limpa) e a segunda, no Brasil (repleta de lixo). Mesmo se tratando de uma grotesca montagem, conforme o desmentido em oportuna
matéria da revista Fórum, a referida postagem recebeu numerosos comentários que execravam o “selvagem” brasileiro e exaltavam o “civilizado” americano.
Mas, afinal de contas, por que esse falso senso de inferioridade se disseminou tanto em nossa sociedade? Em entrevista à Folha de S. Paulo, o cientista político e presidente
do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) Jessé Souza asseverou que o “complexo de vira-lata” é um discurso criado pela classe dominante que remete ao período
colonial, corroborado academicamente por nossa intelligentsia (através de influentes nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Fernando Henrique Cardoso e
Raymundo Faoro) e replicado pelo senso comum.
No livro “A tolice da inteligência brasileira”, Jessé denuncia análises maniqueístas em que, ao longo dos anos, elite econômica e intelectualidade idealizaram sociedades de
países desenvolvidos como racionais, democráticas, igualitárias e meritocráticas. Em contrapartida, pensaram o Brasil como um país marcado exclusivamente por corrupção
generalizada, compadrio, malemolência e patrimonialismo. Resumidamente: o famoso “jeitinho brasileiro”. Desse modo, estereótipos negativos sobre nossa população encontram
terrenos férteis em piadas do cotidiano, na “Lei de Gérson”, em telenovelas (por meio de personagens interesseiros, malandros e passionais), na literatura (“Macunaíma”, de Mário
de Andrade) e nos programas de humor (“Bento Carneiro, o vampiro brasileiro”, de Chico Anysio, ao contrário de seus congêneres estrangeiros, era medroso, ignorante
e abobado).
Refutando o que muitos ainda insistem em colocar, é preciso frisar que características negativas como patrimonialismo ou desonestidade não são intrínsecas ao DNA
tupiniquim, mas fatores inerentes ao capitalismo, sistema econômico que coloca a busca por lucro e ascensão social acima de quaisquer valores humanos. Aspectos negativos e
positivos, obviamente, ocorrem em todas as nações. “Eu gostaria antes de tudo de saber onde fica esse país maravilhoso, formado apenas pelo mérito, que não favorece ninguém e
onde relações familiares não decidem carreiras. Quem conhecer, por favor, me avise. Eu passei boa parte de minha vida adulta em países ditos ‘avançados’ e nunca conheci um
assim”, provocou Jessé Souza. O brasileiro possui suas peculiaridades; não é melhor nem pior do que os outros povos. O “complexo de vira-lata” não reflete a realidade. Trata-se,
assim, de um mito criado para legitimar a separação entre a elite econômica, autoproclamada guardiã de todas as virtudes, e as classes populares, qualificadas como portadoras de
todo tipo de vício.
Evidentemente, nenhum indivíduo é obrigado a ter posições ufanistas ou tampouco gostar de seu próprio país, mas subestimá-lo com generalizações elitistas e, por outro
lado, sobrevalorizar constantemente o estrangeiro, não é, definitivamente, a melhor maneira de expor determinados argumentos. Ademais, os verdadeiros problemas do Brasil não
nascem de supostas deficiências culturais que tenhamos frente aos países desenvolvidos, mas da incapacidade de nossa sociedade integrar um vasto contingente de excluídos a
quem faltam recursos materiais, equipamentos básicos de educação, autoestima e cidadania. “A peculiaridade do Brasil é a tolerância com o abandono da classe dos excluídos que
chamo provocativamente de ‘ralé’. Todos nossos problemas –insegurança, baixa produtividade, serviços públicos de má qualidade – advêm do esquecimento dessa classe”,
concluiu o supracitado Jessé Souza. Em outros termos, o que dificulta nosso verdadeiro desenvolvimento não são aspectos negativos do povo, mas a vertiginosa desigualdade
social que assola o país há séculos.

A ameaça comunista jamais existiu

Por Francisco Fernandes Ladeira em 02/04/2019 na edição 1031

Há cinquenta e cinco anos, mais precisamente na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, começava a ser escrita uma das páginas mais tristes da história
brasileira. Trata-se do golpe militar que, a partir da deposição do então presidente João Goulart, mergulhou o país em um regime ditatorial que vigorou até 1985.
Hoje, com o devido distanciamento temporal, sabemos que o principal argumento para o golpe militar — a “ameaça comunista” — jamais existiu. O governo João Goulart
esteve bem distante de fomentar uma revolução marxista no Brasil. Na época, o que havia de fato era uma elite que não concordava com as políticas econômicas nacionalistas de
Jango e uma classe média conservadora temerosa de que as chamadas “reformas de base” propostas pelo governo ameaçassem os seus históricos privilégios classicistas ou
pudessem promover a ascensão social dos estratos mais pobres da população (qualquer semelhança com a atual classe média que bateu panela durante os pronunciamentos de
Dilma Rousseff não é mera coincidência). Dessa associação entre elite e classe média veio a pressão social pela queda de João Goulart.
Já no tocante à geopolítica global, não restam dúvidas de que o golpe de 1964 foi patrocinado pelos Estados Unidos como uma forma de manter o Brasil alinhado aos seus
interesses (basta lembrar que estávamos no contexto da chamada “Guerra Fria”, quando estadunidenses e soviéticos disputavam esferas de influência em todo o planeta).
Por sua vez, a grande mídia brasileira, durante o período ditatorial, sempre esteve ao lado dos que estavam no poder. Primeiramente com uma intensa campanha de
difamação ao governo Jango, o que veio a atrair o apoio de parte da população para o movimento golpista. Nos dias subsequentes ao golpe, jornais como O Globo e Tribuna da
Imprensa publicaram eufóricos editoriais que exaltavam os “bravos militares” que “salvaram” o Brasil do “perigo comunista”.
Concretizada a ditadura, os grandes veículos de comunicação não noticiavam as atrocidades cometidas pelos militares. Nesse sentido, uma frase do general-presidente
Emilio Garrastazu Médici, nos anos 1970, sobre o Jornal Nacional é emblemática: “Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as
notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um
tranquilizante após um dia de trabalho”.
Nos últimos anos do regime, quando multidões foram às ruas para pedir a volta da democracia, a mídia hegemônica fez questão de ocultar as primeiras mobilizações que
reivindicavam por eleições diretas para presidente. Na época, a Rede Globo chegou a noticiar um comício do movimento “Diretas Já” na Praça da Sé como se fosse somente mais
um evento em comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo.
Recentemente, alguns órgãos da imprensa, como as Organizações Globo, produziram editoriais que consideraram equivocado o apoio ao golpe de 1964. No entanto, os
ostensivos e seletivos ataques globais ao governo Dilma Rousseff e o posterior apoio à ruptura democrática que conduziu Michel Temer à presidência da República demonstram
que o Grupo Globo ainda está bastante distante de ser qualificado como “democrático”. Quem sabe, em um futuro longínquo, eles produzam outro editorial se retratando sobre
mais esse erro histórico?
Já outros veículos da imprensa hegemônica ainda apresentam certa resistência em utilizar a palavra “ditadura” para se referir ao regime militar. Através de um editorial,
a Folha de São Paulo, por exemplo, se referiu a este período como “ditabranda”, pois, de acordo com o periódico, o regime partiu de uma ruptura institucional, mas depois
preservou ou instituiu formas controladas de disputa política e acesso à Justiça.
Por outro lado, em tempos de “pós-verdades” nas redes sociais, “politicamente incorreto” e “revisionismos históricos” sem qualquer critério de cientificidade, há várias
correntes de pensamento que negam a existência do golpe de 1964, qualificando-o como “revolução” e, não obstante, buscam minimizar as atrocidades cometidas pelo regime
militar — como a censura a manifestações artísticas, perseguições a trabalhadores ou as torturas de opositores (prática, inclusive, exaltada por alguns homens público em pleno
Congresso Nacional). Outro “argumento” dos defensores da ditadura aponta que durante os governos militares não havia corrupção, hipótese facilmente refutável pelo simples fato
de que, na época, qualquer ato ilícito cometido por algum homem público não era divulgado.
Também é importante frisar que os resquícios do regime ditatorial ainda permanecem em nossa sociedade, seja na violência desmedida de alguns policiais militares, na
vergonhosa concentração de canais de televisão nas mãos de poucas famílias ou em propostas que buscam calar os professores em sala de aula (como o projeto Escola
Sem Partido).
Enquanto em países como Chile e Argentina muitos crimes cometidos durante os regimes ditatoriais foram devidamente punidos; no Brasil, apesar da criação da chamada
“Comissão da Verdade”, a maioria das violações aos direitos humanos realizadas pelo Estado durante a ditadura não chegaram sequer ao conhecimento do grande público. Enfim,
passadas cinco décadas e meia, 1964 é um fantasma que a sociedade brasileira ainda precisa exorcizar, pois lembrando as palavras de Edmund Burke, “um povo que não conhece a
sua história está condenado a repeti-la”.

Três anos do impeachment: o que a mídia tem a ver com isso?

Por Francisco Fernandes Ladeira em 23/04/2019 na edição 1034

Há três anos, em um domingo, 17 de abril, com transmissão ao vivo pela televisão, a Câmara dos Deputados aprovava o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Sob o
aspecto geopolítico, a deposição de Dilma está inserida no contexto de rupturas democráticas em curso mundo afora após a última grande crise econômica capitalista, iniciada
em 2007. Conforme é do conhecimento de todos, esta crise foi gerada no sistema financeiro dos Estados Unidos e, devido à grande integração das diversas economias nacionais
propiciada pelo processo de globalização, paulatinamente se alastrou para todo o planeta. Porém, apesar de a hecatombe financeira ter sido causada pelos países desenvolvidos
(ou, melhor dizendo, por “gente branca de olhos azuis”, como bem sentenciou na época o ex-presidente Lula) quem deverá arcar (e já está arcando!) com os prejuízos são as
nações pobres, isto é, “aquela gente mestiça do sul”, através da intensificação da pilhagem de suas riquezas naturais e da drenagem de seus capitais para o exterior.
Sendo assim, para o imperialismo global, tornou-se imprescindível e urgente promover a deposição de chefes de Estado que possam representar o mínimo entrave para a
recuperação dos lucros dos grandes capitalistas. Nesse sentido, na última década, houve golpes de Estado (ou tentativas) contra governantes nacionalistas em países como
Honduras, Venezuela, Síria, Tailândia, Paraguai, Egito, Brasil, Sudão e Ucrânia.
Diante dessa realidade, conforme apontou o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, em entrevista ao jornalista Fernando de Morais, o Brasil foi o país latino-americano
mais espionado pelos Estados Unidos nos últimos anos. “O principal motivo para isso é econômico e está ligado à exploração do pré-sal. Isso é muito interessante porque alguém
imaginará ingenuamente que deve ser Venezuela ou Cuba, porque historicamente foram os maiores adversários para os Estados Unidos, não o Brasil. Por que é o Brasil? Porque é
uma economia maior. O Brasil é economicamente mais importante”, enfatizou Assange. Não por acaso, uma das primeiras medidas tomadas pelo governo interino de Michel
Temer foi justamente facilitar o acesso dos grandes capitalistas internacionais às riquezas naturais brasileiras, sobretudo ao tão cobiçado petróleo.
Já no tocante ao cenário interno, podemos relacionar as mobilizações favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff ao preconceito de classes que impera no Brasil,
manifestado pelo ódio ao pobre, herança do antigo ódio dirigido aos escravos. É fato que a (tímida) ascensão dos estratos economicamente inferiores de nossa sociedade
promovida pelos governos petistas e a consequente presença de pobres e negros em espaços onde outrora eram segregados – como aeroportos, shopping centers e universidades –
trouxe bastante incômodo para a classe média, acostumada a legitimar sua posição na pirâmide social não apenas pelos seus capitais econômicos e culturais, mas, principalmente,
pela possibilidade de humilhar a população pobre e mantê-la devidamente afastada de determinados meios.
No entanto, conforme concluiu o sociólogo Jessé Souza, em seus estudos sobre o recente contexto político brasileiro, o indivíduo de classe média não poderia dizer que
odeia o PT porque o partido ajudou o pobre de alguma maneira. Não ficaria bem para um cristão praticante – o autoproclamado “cidadão de bem” – explicitar o ódio classicista
assim. Portanto, era preciso criar um álibi para a empreitada antipetista. Eis que surge uma velha pauta moralista da classe média: a corrupção. É aí que entra o papel da mídia
hegemônica no processo que culminou na deposição de Dilma Rousseff três anos atrás: fornecer os “argumentos” moralmente aceitáveis para a classe média ir às ruas se
manifestar contra os governos petistas.
Para compreender o papel da mídia na queda da primeira presidenta do Brasil, devemos voltar, pelo menos, ao segundo semestre de 2005, quando teve início o julgamento
da Ação Penal 240, também conhecida como “mensalão”. Na época, os principais grupos de comunicação do país transformaram essa ação do judiciário em um grande “evento
midiático”, com o objetivo de atingir o Partido dos Trabalhadores, de maneira geral, e o então presidente Lula, que tentaria a reeleição no ano seguinte, em particular. Embora “o
tiro tenha saído pela culatra”, pois o PT sagrou-se vitorioso nas urnas em 2006, a aliança “mídia/judiciário” conseguiu eliminar da vida pública dois potenciais sucessores de Lula:
José Genoino e José Dirceu. “Mataram dois coelhos com uma cajadada só”, ou “judicializando” a metáfora, “mataram dois políticos com uma martelada só”.
Sete anos depois, o “mensalão” voltaria aos holofotes (“coincidentemente” durante a campanha para as eleições municipais) e, mais uma vez, não alcançou o fim colimado.
Chegamos então ao ano de 2013, mais precisamente ao mês de junho, quando uma multidão tomou as ruas de todo o país para protestar, a princípio, pela melhoria de serviços
públicos urbanos básicos como transporte, saúde e educação. Tratavam-se de movimentos difusos, com pautas confusas e sem nenhuma liderança específica. A partir da falta de
direção das chamadas “jornadas de junho”, a imprensa hegemônica percebeu que tomar a dianteira desses movimentos, e transformá-los em manifestações “apartidárias”, seria
uma excelente oportunidade para, enfim, derrubar o governo petista, na época já sob o mandato de Dilma Rousseff.
No livro A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado, Jessé Souza relata como a mídia brasileira, notadamente o Jornal Nacional, se aproveitou da
grande mobilização popular em todo o país para “federalizar” as manifestações que até então estavam centradas em questões municipais, direcionando a revolta popular para o
governo Dilma Rousseff, tendo como base o velho e moralista discurso “anticorrupção”. Os resultados desastrosos desse sequestro das mobilizações pelos grandes grupos de
comunicação do país são bem conhecidos: crescente radicalização da sociedade, fortalecimento de grupos e políticos com tendências fascistas e o crescimento do
sentimento antipolítica.
No primeiro semestre de 2014, como era ano eleitoral, a aliança “mídia/judiciário” voltou a cena com a Operação Lava-Jato, que visava investigar “esquemas criminosos”
envolvendo a Petrobrás (também não seria mera coincidência lembrar da corrida dos países imperialistas pelas riquezas naturais das nações subdesenvolvidas citada no início
deste artigo).
Se a característica étnica do “herói midiático” do “mensalão”, Joaquim Barbosa, não tinha grande aceitação por parte da classe média conservadora; a Lava-Jato contou
como um novo “juiz-protagonista”, bem ao perfil da classe média: eis que surge Sérgio Moro (o paladino da chamada “República de Curitiba”). Todavia, nem “mensalão” nem
“petrolão” foram suficientes para impedir a reeleição de Dilma Rousseff.
Portanto, era preciso intensificar a campanha antipetista. Áudios de políticos do Partido dos Trabalhadores estrategicamente “vazados” na mídia, PowerPoint com acusações
contra o ex-presidente Lula divulgado em primeira mão no Jornal Nacional e delações publicadas na revista Veja, entre outros fatos, marcaram os espetáculos pirotécnicos
proporcionados pela “República de Curitiba”.
Definitivamente, a temática “corrupção” voltava a todo vapor aos noticiários; e, como o de costume, de maneira extremamente seletiva, resguardando determinadas
legendas, e atacando outras, sobretudo aquelas ligadas à esquerda política. Desse modo, a mídia reverberou o álibi perfeito para a classe média pedir “Fora Dilma!”. O ódio ao
pobre e a repulsa às políticas sociais puderem, enfim, se esconder sob a cortina de fumaça da campanha contra a corrupção.
Conforme a história nos mostra, toda ruptura democrática que queira parecer minimamente legítima deve aparentar ter respaldo popular. Para tanto, coube a mídia convocar
a classe média para ir às ruas se manifestar contra a presidenta Dilma. O ano era 2015. As chamadas midiáticas seguiam um roteiro básico: eram manifestações pacíficas, ordeiras,
familiares e, o mais importante, aconteceriam aos domingos, para não atrapalhar o trânsito ou tampouco gerar grandes transtornos para os cidadãos citadinos.
Prontamente, a classe média atendeu à convocação da mídia, vestiu verde e amarelo, levou seus filhos devidamente acompanhados pelas babás, e foi às ruas dançar em torno
do Pato Amarelo da Fiesp. A queda de Dilma era questão de tempo.
Por outro lado, manifestações favoráveis à permanência do governo também eram realizadas em todo país, porém sem ter a mesma cobertura por parte da imprensa. Entrava
em cena a velha e eficaz manipulação midiática.
Uma breve análise hermenêutica sobre duas manchetes publicadas na época pelo jornal O Globo ilustra bem o caráter tendencioso da imprensa brasileira. Sobre uma das
manifestações pró-impeachment, o periódico da família Marinho noticiou em sua capa “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”, o que capciosamente poderia
levar o leitor à falsa conclusão de que toda a população brasileira compactuava com a ideologia exaustivamente difundida pelos principais veículos de comunicação. Em
contrapartida, a manchete de O Globo no dia seguinte a um ato pela permanência de Dilma apontava “Aliados de Lula e Dilma fazem manifestação em todos os estados”, como se
tais mobilizações populares representassem somente os ideais petistas e não os anseios de todos aqueles que lutavam contra a execução de um novo golpe de Estado no Brasil,
independentemente de sigla partidária.
Sendo assim, com o país já demasiadamente polarizado, no dia 17 de abril de 2016, num típico domingo de outono, com transmissão ao vivo, assim como os grandes
clássicos do futebol, a Câmara dos Deputados votaria pela aceitação ou não do impeachment de Dilma Rousseff. Parafraseando o título de um clássico documentário irlandês, “o
golpe foi televisionado”.
Não obstante, o que se viu naquela fatídica tarde/noite dominical foi um dos episódios mais grotescos da história brasileira. De maneira geral, os discursos proferidos pelos
parlamentares foram pensados levando em consideração a grande visibilidade midiática que aquele momento único proporcionaria. Diante das câmeras, era preciso passar uma
imagem de “cidadão de bem”, extremamente ético e honrado em suas atitudes. Em suma, o perfeito exemplo de um membro da “tradicional família cristã brasileira”.
As retóricas pseudo-moralistas contra a corrupção deram a tônica dos discursos parlamentares favoráveis ao impeachment de Dilma e as palavras que mais se ouviram na
Câmara foram “Deus” e “família”. Em raríssimas oportunidades foram apresentados argumentos para o afastamento da presidenta. “Discutir ideias não rende votos”, devem ter
pensado muitos deputados.
Por outro lado, a transmissão ao vivo do impeachment trouxe para o grande público as inúmeras incoerências de um dos congressos mais conservadores da Nova República.
Naquele 17 de abril foram tecidos elogios a figuras controversas como torturadores do regime militar, grileiros e políticos reconhecidamente corruptos. Já as vaias e os aplausos
que acompanhavam cada voto dos parlamentares deram a impressão de termos assistido a um programa de auditório e não a uma reunião de indivíduos que possuíam a
prerrogativa de tomar decisões que influenciariam nos cotidianos de todos os brasileiros.
Passados três anos do impeachment, de acordo com dados recentes fornecidos pelo Manchetômetro – website de acompanhamento da cobertura da grande mídia sobre temas
de economia e política, que não possui qualquer filiação com partido político ou grupo econômico – mesmo com o Partido dos Trabalhadores fora da presidência e Lula preso, o
PT ainda é o partido mais criticado pela grande mídia, fator que comprova que o objetivo não era apenas retirar essa agremiação partidária do Poder, mas eliminá-la da própria
vida pública do país.
Evidentemente, seria reducionista e equivocado creditar todos os males pelos quais o Brasil passa às ações da imprensa hegemônica. Todavia, mais do que nunca, é preciso
refletir e questionar seriamente sobre quais objetivos ideológicos estão por trás dos discursos midiáticos, pois, lembrando as palavras do historiador Sérgio Buarque de Holanda,
enquanto os meios de comunicação do país estiverem concentrados nas mãos de poucos grupos familiares – que estão ligados, sem exceção, ao pensamento conservador – a
democracia no Brasil continuará sendo um “lamentável mal-entendido”.

A primeira experiência geopolítica globalmente compartilhada

Por Francisco Fernandes Ladeira em 11/09/2015 na edição 867

Os historiadores costumam utilizar determinados acontecimentos emblemáticos, como a descoberta do fogo, o aparecimento da escrita ou a queda da Bastilha, como
referenciais para os seus estudos. Para simbolizar o atual contexto de animosidades entre parte da civilização muçulmana e os Estados Unidos da América, o evento histórico
escolhido foi o ataque da rede al Qaida às torres gêmeas do World Trade Center, ocorrido em 11 de setembro de 2001. Não há como negar o impacto do 11 de setembro nas
relações internacionais deste início de século. O atentado foi utilizado como pretexto para a invasão estadunidense ao Afeganistão e ao Iraque, para o aumento da vigilância sobre
os cidadãos comuns e, não obstante, provocou uma onda global de islamofobia.
Entretanto, diferentemente dos outros grandes fatos históricos mencionados acima, o 11 de setembro foi “transmitido ao vivo” para quase todo o planeta. Assim, pela
primeira vez na história, um acontecimento passou a fazer parte simultaneamente da memória de bilhões de seres humanos. Portanto, podemos afirmar que o 11 de setembro foi a
“primeira experiência geopolítica globalmente compartilhada”. Enquanto acontecimentos que datam de épocas remotas estão “gravados” em nossa memória exclusivamente por
causa da leitura de livros de história (memória semântica), o 11 de setembro está retido em nossa mente através de uma das mais poderosas formas de memorizar um determinado
fato: a memória visual. Desse modo, tivemos a sensação de realmente ter estado em Nova York naquela fatídica manhã de verão, vivido plenamente o momento e assistido,
atônitos, à queda das torres gêmeas do World Trade Center.
Quais seriam as consequências dessa “experiência geopolítica globalmente compartilhada” e sua influência para as opiniões que o cidadão comum possui em relação à
civilização muçulmana? De acordo com o linguista francês especialista em análise do discurso Patrick Charaudeau, a televisão, ao exibir incessantemente cenas potencialmente
chocantes, ou empregar termos pertencentes ao campo semântico da emoção, é suscetível de produzir variados efeitos patêmicos em sua audiência como ira, compaixão, angústia,
desprezo, revolta, simpatia e repulsa.
Como a cobertura midiática global sobre o 11 de setembro apresentou, de maneira geral, características típicas de narrativas épicas, com o povo estadunidense alçado ao
status de herói e, em contrapartida, os terroristas islâmicos assumindo os papéis de vilões, não é difícil inferir que boa parte da audiência pode ter chegado à maniqueísta conclusão
de que os muçulmanos são temíveis algozes e os Estados Unidos, em contrapartida, simples vítimas da barbárie promovida pelos fanáticos seguidores de Alá. Começava assim a
poderosa campanha global de demonização do mundo muçulmano. Desse modo, com a cobertura do atentado de 11 de setembro, a mídia passou a ser definitivamente um dos
mais importantes atores do complexo xadrez geopolítico global.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

7 RELIGIÃO

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (Constituição da
República Federativa do Brasil).

Segundo o senso comum, futebol, política e religião não se discutem. No entanto, este livro pretende discutir estes três assuntos consideradas como verdadeiros “tabus” por
muitos brasileiros. Neste capítulo, em especial, a temática escolhida é a religião.
Desde a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, o Brasil é um Estado laico. Ou seja, é uma nação oficialmente neutra em relação às questões religiosas,
não apoiando e nem se opondo a nenhuma religião.
Todavia, conforme apontam alguns dos artigos aqui transcritos, a laicidade estatal, infelizmente, ainda é um ideal longe de ser alcançado.
A chamada “ateofobia”, isto é, o preconceito direcionado contra aqueles que não possuem uma crença religiosa ou que, simplesmente, negam a existência de qualquer tipo
de ser metafísico, é a questão levantada nos artigos “O direito de não ter religião” e “Bullying religioso”.
Em sequência, o texto “Intolerância religiosa” discute a perseguição sofrida pelas religiões de matrizes africanas, tendo como pano de fundo uma matéria publicada no
jornal Brasil de Fato assinada pelo jornalista Cristiano Navarro.
“Milagres, preconceitos e negócios”, publicado em maio de 2012, tece breves considerações sobre as trajetórias religiosas dos quatro principais líderes neopentecostais
brasileiros naquele ano: Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus), Silas Malafaia (Assembleia de Deus – Vitória em Cristo), R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça
de Deus) e Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus).
Escrito em julho de 2019, “Estado laico em xeque” aponta como Jair Bolsonaro, em apenas um semestre de governo, já praticava determinadas medidas que colocavam em
risco o caráter secular do Estado brasileiro (uma das maiores conquistas do sistema republicano). Sendo assim, em pleno XXI, o obscurantismo é um fantasma que ainda insiste
em rondar a sociedade brasileira.

O direito de não ter religião

Por Francisco Fernandes Ladeira em 09/02/2016 na edição 889

Em 12 de fevereiro é comemorado o Dia do Orgulho Ateu. A escolha da data é uma referência ao nascimento do naturalista britânico Charles Darwin, autor da famosa
Teoria da Evolução, linha de pensamento científico que, ao explicar a evolução das espécies através da seleção natural, retira a necessidade de se remeter a alguma entidade
metafísica para explicar a origem da vida em nosso planeta.
Ao lerem o título deste artigo, muitas pessoas provavelmente vão se perguntar: mas por que um dia destinado ao orgulho ateu? Entre todas as minorias, os ateus (e por
consequência também os agnósticos) talvez sejam aqueles que têm menor visibilidade e sejam mais facilmente atacados.
Felizmente, cada vez mais nossa sociedade se mostra intransigente com práticas racistas, xenófobas, misóginas ou homofóbicas. Entretanto, a ateofobia ainda é vista com
naturalidade e, muitas vezes, estimulada. Não é raro uma pessoa ser segregada nos ambientes familiar, de estudo ou trabalho pelo simples fato de não possuir uma crença religiosa.
Hostilizar ateus e agnósticos por causa de suas convicções existenciais é uma prática bastante tolerada e, em contrapartida, não há qualquer mecanismo judicial que ao
menos intimide esse tipo de preconceito tão corriqueiro. O que torna essa questão mais controversa é o fato de muitos religiosos acreditarem que, ao se voltar contra ateus e
agnósticos, estariam supostamente agindo de acordo com os preceitos de sua crença.
Uma pesquisa divulgada pela revista Veja sobre a resistência eleitoral do brasileiro em relação ao cargo de presidente da República, demonstrou que 84% aceitariam votar
num negro; 57%, numa mulher; 32%, num homossexual e somente 13% elegeriam um ateu. Ou seja, mais do que um “suicídio político”, ateísmo ainda é tido como sinônimo de
mau caráter, desonestidade ou ausência de qualquer tipo de comportamento ético. Por outro lado, é hipocrisia alguém praticar uma boa ação não como algo espontâneo, mas por
medo de uma punição extramundana ou para receber alguma benção divina.
Nos últimos anos, temos presenciado exemplos de práticas ateofóbicas também na mídia brasileira. No Jornal do SBT, a âncora ultraconservadora Rachel Sheherazade
associou as virtudes humanas exclusivamente ao cristianismo e asseverou que ateus mantêm posturas intolerantes contra quem pensa diferente. Ora, ao longo da História,
indivíduos ateístas não foram responsáveis pela Santa Inquisição, pelo aculturamento de indígenas, por perseguição a homossexuais ou apedrejamento de mulheres adúlteras.
Já o caso mais emblemático de ateofobia em nossa televisão foi protagonizado por José Luiz Datena, apresentador do programa sensacionalista Brasil Urgente, exibido pela
Rede Bandeirantes. Em uma enquete sobre a crença ou não em Deus, Datena despejou todo o seu ódio aos ateus. Para o apresentador, quem não crê em alguma divindade não
respeita limites e pode ser responsável por vários tipos de crimes hediondos como estupros, homicídios e violência contra criança. “Tem gente que não acredita em Deus, por isso
o mundo está essa porcaria: guerra, peste, fome e tudo mais”, asseverou Datena.
Entretanto, um trabalho coordenado pelo sociólogo Clemir Fernandes realizado no ano passado constatou que a maioria esmagadora dos presidiários é cristã. Portanto, a
realidade refuta cabalmente as ideias preconceituosas de José Luiz Datena. Ademais, dois anos e meios após as polêmicas declarações do apresentador do Brasil Urgente, em uma
oportuna decisão do juiz Paulo Cezar Neves Junior, a Rede Bandeirantes foi condenada pela Justiça Federal de São Paulo por desrespeito à liberdade de crenças no Brasil.
Evidentemente, religião não define a conduta de um indivíduo. José Saramago, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Charles Chaplin, Carl Sagan, Jean-Paul Sartre e Herbert de
Souza foram excelentes profissionais em suas respectivas áreas. Em contrapartida, Adolf Hitler, Mussolini e Jim Jones, cristãos fervorosos, foram responsáveis pelas mortes de
milhões de seres humanos.
Outra questão importante que o Dia do Orgulho Ateu suscita é a necessidade de se respeitar a laicidade estatal. Desde a primeira Constituição republicana, promulgada
em 1891, o Brasil é um Estado laico. Em outros termos, é uma nação oficialmente neutra em relação às questões religiosas, não apoiando e tampouco se opondo a nenhuma
religião. Todavia, a presença de crucifixos em repartições públicas, a adoção da disciplina Ensino Religioso nas instituições escolares e, sobretudo, a grande influência dos
parlamentares evangélicos e católicos nas principais decisões governamentais são alguns exemplos de que a laicidade no Brasil ainda é um ideal longe de ser alcançado.
Não obstante, emissoras de televisão, que são concessões públicas, têm sido utilizadas sistematicamente para promover determinados pastores evangélicos e suas igrejas. De
acordo com uma reportagem publicada no site BBC Brasil, as igrejas evangélicas “adquirem cerca de 130 horas semanais nas grades de algumas das principais emissoras de TV
abertas do país”.
Ironicamente, um teste feito pelo Pew Forum on Religion and Public Life nos EUA concluiu que os ateus e agnósticos estadunidenses sabem mais sobre religião do que os
próprios religiosos no país. Em suma, a relevância do Dia do Orgulho Ateu não consiste em fazer apologia à “conversão” de pessoas ao ceticismo. Não se trata de qualquer tipo de
doutrinação ideológica. Pleiteia-se apenas que o direito de ter ou não uma crença religiosa seja devidamente respeitado.

Bullying religioso

Por Francisco Fernandes Ladeira em 10/04/2012 na edição 689

Na terça-feira (3/4), o jornal Folha de S.Paulo publicou uma interessante matéria, assinada por Ricardo Gallo, sobre o caso de um estudante que foi perseguido por não rezar
na sala de aula. O fato ocorreu na Escola Estadual Santo Antônio, localizada no município mineiro de Miraí (terra do saudoso cantor Ataulfo Alves) e envolveu Ciel Vieira, aluno
do 3º ano do ensino médio, e a professora de geografia, Lila Jane de Paula. Segundo a reportagem, Lila resolveu iniciar as suas aulas rezando o pai-nosso com todos os alunos e
Ciel, ateu há dois anos, permaneceu em silêncio durante a oração. Ao notar a reação negativa do estudante, a docente teria dito que “um jovem que não tem Deus no coração nunca
vai ser nada na vida”.
Posteriormente, aluno e professora discutiram e o caso foi levado para a direção da escola. “Eu disse que o que ela fazia era impraticável segundo a Constituição. […]
Moramos num país laico e regido por leis que deveriam ser cumpridas. E essa professora disse que essa lei não existia […] e disse, em tom irônico, que se me sentisse incomodado
com os atos, que poderia me retirar da sala enquanto rezavam”, defendeu-se Ciel. Não obstante, a resistência à oração fez Ciel ser vítima de bullying de outros colegas de classe:
“Comentários surgiram, dizendo que eu era do demônio”, salientou.
Por fim, a diretoria da escola decidiu que a professora de Geografia não daria mais a primeira aula para Ciel. “Resolveram o meu problema e jogaram o resto para baixo do
tapete”, questionou o aluno, demonstrando um senso crítico incomum para a sua idade. Em contrapartida, Lila Jane de Paula não quis se pronunciar sobre o ocorrido. A
informação recebida pela reportagem da Folha de S.Paulo foi que ela queria se preservar. Por sua vez, a inspetora encarregada de fiscalizar a escola, Joana D’Arc Rocha e Silva,
disse que “rezar no início da aula é um hábito de muitos anos da professora [Lila] que ninguém nunca criticou”.
Diante dos fatos é preciso fazer algumas colocações. De acordo com a Constituição Federal, promulgada em 1988, o Estado brasileiro é oficialmente laico. Portanto, “é
vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles
ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. Já no Estatuto do Magistério de Minas Gerais consta que “constituem transgressões passíveis de pena, por exemplo, o
ato que resulte em exemplo deseducativo para o aluno e a prática de discriminação por motivo de raça, condição social, nível intelectual, sexo, credo ou convicção política”.
Por outro lado, a afirmação “um jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”, além de ser intolerante e antiética (pois constrangeu um aluno na frente
dos seus colegas de turma), não condiz à realidade. Ora, José Saramago, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Charles Chaplin, Carl Sagan, Jean-Paul Sartre e Herbert de Souza
também eram ateus e nem por isso deixaram de ser “alguém na vida”. Muito pelo contrário, foram excelentes profissionais em suas respectivas áreas. Em contrapartida, Adolf
Hitler, Mussolini e Jim Jones, cristãos fervorosos, foram responsáveis pelas mortes de milhões de seres humanos. Será que agir de forma correta depende intrinsecamente de “ter
Deus no coração”?
Em última instância, como professor de geografia, posso afirmar, com absoluta certeza, que rezar o pai-nosso, com todo respeito aos cristãos, não faz parte, em hipótese
alguma, do programa didático da disciplina. Se Ataulfo Alves tinha boas razões para sentir saudades da “professorinha” que lhe “ensinou o bê-á-bá” (conforme cantava na música
“Tempos de Criança”), décadas depois, na mesma Miraí, Ciel Vieira possui vários motivos para abominar o conteúdo das suas aulas de geografia. Infelizmente, fanáticos
religiosos travestidos de professores secundários contribuem peremptoriamente para manchar a (já desgastada) imagem da educação brasileira.

Intolerância religiosa

Por Francisco Fernandes Ladeira em 18/09/2012 na edição 712

Na quinta-feira (13/7), o jornal Brasil de Fato publicou uma oportuna matéria sobre a perseguição sofrida pelas religiões de matriz africana no Brasil. De acordo com a
reportagem, assinada por Cristiano Navarro, fiéis de igrejas neopentecostais, motivados por puro preconceito, invadiram e destruíram sete terreiros no agreste pernambucano.
Segundo Cristiano Navarro, a inquisição de grupos evangélicos contra religiões de matriz africana começou depois do assassinato de uma criança de nove anos, na cidade de
Brejo da Madre de Deus. “Logo após a descoberta do cadáver, a polícia veio a público e descreveu o crime como sendo fruto de um ‘ritual de despacho’.” A partir de então,
programas locais de rádio e TV passaram a insuflar o ódio da população cristã contra as religiões de origem africana. “A mídia não separou o joio do trigo ao associar um crime de
uma religiosidade que não tem nada a ver. Essa associação feita pelos programas de televisão policialescos foi só o estopim para as agressões”, asseverou mãe Beth de Oxum,
membro da Comissão Nacional de Povos Tradicionais de Terreiro.
Por outro lado, em decorrência do aumento do número de ameaças e agressões, membros de religiões de matriz africana divulgaram uma nota pública afirmando que não
praticam sacrifícios humanos em suas liturgias e rituais: “Nossas teologias não concebem a morte humana como caminho para alcançar qualquer benefício na vida e
desconhecemos qualquer ritual pertinente a esta prática condenável. Expurgamos completamente estes atos absurdos de assassinato em nome de qualquer deus.”
Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato, esses casos de intolerância religiosa podem ser associados aos discursos de alguns pastores midiáticos,
a práticas racistas e ao processo de expansão do cristianismo pelo planeta. “A gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pessoas cotidianamente pregando essa
intolerância. O Estado até reconhece as comunidades de terreiro, mas a sociedade passou a nos criminalizar com as TVs e as rádios evangélicas, que dizem que somos o satanás”,
afirmou mãe Beth de Oxum. Já para o psicólogo Vicente Galvão Parizi, o preconceito contra religiões de matriz africana está relacionado às questões racial e social. “Não
podemos esquecer que houve uma bula papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados”.
Em última instância, a realidade nos mostra que respeitar as diferenças – sejam elas étnicas, religiosas, sexuais ou ideológicas – é condição sine qua non para a boa
convivência em sociedade. Porém, como bem salientou Vicente Galvão Parizi, infelizmente muitos neopentecostais são cristãos fundamentalistas que não toleram outras formas
de crença. “Em tese, Jesus pregava o amor a todos, mas na prática o que o cristianismo gerou foram religiões absolutamente intransigentes com o diferente”, conclui o psicólogo.
Não obstante, ainda há um famoso apresentador que diz que os ateus (pessoas que “não têm Deus no coração”) são extremamente perniciosos à humanidade. Nada mais falacioso
e hipócrita.

Milagres, preconceitos e negócios

Por Francisco Fernandes Ladeira em 15/05/2012 na edição 694

Desde a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, o Brasil é um Estado laico. Ou seja, é uma nação oficialmente neutra em relação às questões religiosas,
não apoiando e nem se opondo a nenhuma religião. Ao contrário do que muitos afirmam, reivindicar o cumprimento da laicidade estatal não é uma causa apenas de ateus e
agnósticos. Vários religiosos também pleiteiam o Estado laico. Em seu livro Leviatã, o filósofo britânico Thomas Hobbes apontava que algumas afirmações de Jesus Cristo como
“O meu reino não é deste mundo” e “Dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus” traziam, explicitamente, a ideia de que assuntos religiosos não devem se misturar com a
esfera pública. Ou seja, o próprio Messias, segundo o filósofo, defendia a separação entre Estado e igreja.
De acordo com a publicação A Sentinela, ligada às Testemunhas de Jeová, os cristãos verdadeiros devem seguir o exemplo de Jesus, que não se envolvia com política. Para
dom Dimas Lara Barbosa, secretário-geral da CNBB, “a separação entre igreja e Estado, conquistada, no Brasil, com a proclamação da República, significou, para ambos, um
ganho enorme em termos de autonomia e liberdade de ação”. Portanto, o Estado laico é uma aspiração dos cidadãos de bom senso, independente de convicções religiosas.
Entretanto, quando emissoras de televisão, que são concessões públicas, são utilizadas para promover determinados pastores evangélicos e suas igrejas, devemos nos
preocupar. De acordo com uma reportagem de Paula Adamo Idoeta, publicada no site BBC Brasil, as igrejas evangélicas “adquirem cerca de 130 horas semanais nas grades de
algumas das principais emissoras de TV abertas do país”.
O primeiro líder religioso que percebeu a importância da televisão para aumentar o número de fiéis foi Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. No fim
da década de 1980, ele adquiriu a concessão da Rede Record e, desde então, tem utilizado seu veículo de comunicação para divulgar a sua crença religiosa e atacar os seus
desafetos. Nos cultos televisivos da Igreja Universal, muitos féis relatam que, após “encontrar Jesus”, abandonaram o vício em drogas, deixaram o mundo do crime e prosperaram
em seus negócios. Porém, a questão torna-se extremamente controversa quando os pastores da igreja de Edir Macedo afirmam ser capazes de exorcizar demônios ou curar
doenças crônicas.
Já Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus – Vitória em Cristo, é conhecido pelos gritos histéricos em suas pregações e por sua obsessão em atacar os homossexuais. Em
um discurso contra o casamento homoafetivo, Malafaia chegou a comparar a homossexualidade à zoofilia e necrofilia. “Vamos colocar na lei tudo o que se imaginar. Quem tem
relação com cachorro, vamos botar na lei. Eu vou apelar aqui. É um comportamento, vamos aceitar. Quem tem relação com cadáver, é um comportamento, vamos botar na lei”,
disse o pastor sobre a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo.
Por sua vez, R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, tem se mostrado um excelente homem de negócios. Conforme mencionado em uma
reportagem do Estado de S. Paulo, o líder religioso é “dono de um patrimônio milionário que inclui, entre outros bens, gráficas, gravadoras, distribuidoras e emissoras de rádio e
TV”. Em seu programa Show da Fé, R. R. Soares vende livros, revistas, CDs, DVDs e pacotes de TV por assinatura. Em consonância com o capitalismo financeiro, o pastor
lançou recentemente um cartão de crédito. Não obstante, o fiel da Igreja Internacional da Graça de Deus pode pagar o seu dízimo via boleto bancário. Qualquer semelhança com
Tim Tones, personagem de Chico Anysio, não é mera coincidência.
Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, é o pastor evangélico que mais tem se destacado atualmente. “Parte do encanto de Valdemiro está na imagem
messiânica que ele construiu em torno de si, contando histórias mirabolantes”, escreveram Mariana Sanches e Ricardo Mendonça na revista Época. Entre as grandes proezas do
líder religioso, relatadas no livro O grande livramento, estão resistir à queda do oitavo andar de uma obra, sobreviver a um naufrágio, esquivar-se de uma tentativa de homicídio
(os “matadores profissionais” erraram os cinco tiros) e sair ileso da explosão de uma mina terrestre.
Como não poderia deixar de ser, Valdemiro já curou paraplégicos, leprosos, aidéticos, tuberculosos, hansenianos, cegos, surdos e portadores de câncer. No entanto, o milagre
mais espetacular foi relatado pelo pastor em uma entrevista concedida em 2009 à publicação evangélica Eclésia: “Uma das histórias que mais me impressionaram foi de um
homem que morreu. Como se diz no Nordeste, ele estava na pedra. A família já tinha recebido atestado de óbito. A filha dele chegou em mim na igreja, me abraçou e disse: ‘Se o
senhor disser que ele está vivo, ele viverá.’ O que houve ali foi pela fé dela. Comovido, respondi: ‘Então, está vivo.’ Quando ela voltou para casa, estavam se preparando para
velar o corpo e receberam a notícia de que o homem havia voltado à vida. Os médicos tentaram justificar, mas não conseguiram entender como o coração dele voltou a bater. Foi
uma ressurreição”, afirmou Valdemiro.
Diante dessa realidade, uma pergunta se torna inevitável: curar leprosos, fazer paraplégico andar, cego enxergar e ressuscitar mortos não lembra um famoso personagem
monoteísta? Desde que o filho de um carpinteiro e de uma virgem caminhou sobre as águas na região da antiga Galileia, há quase dois mil anos, nunca se registram tantos milagres
quanto os realizados pelos pastores evangélicos no Brasil neste início de século 21. Seria cômico se não fosse trágico.

Estado laico em xeque

Por Francisco Fernandes Ladeira em 23/07/2019 na edição 1047

Recentemente, Jair Bolsonaro declarou durante uma reunião com líderes de igrejas neopentecostais que pretende indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o
Supremo Tribunal Federal (STF). Essa medida, que visa agradar uma das principais bases de apoio do presidente, caso se concretize, poderá acarretar um grande prejuízo para o
caráter secular do Estado brasileiro. De acordo com a Constituição Federal, vivemos em um Estado laico, o que significa uma neutralização estatal no campo religioso – isto é,
nenhuma crença deve ser base para as leis. Portanto, o Poder Judiciário deverá atuar sem levar em conta nível social, cultural ou tampouco a religião das partes envolvidas em um
julgamento. Nesse sentido, um ministro do STF “terrivelmente evangélico”, influenciado por sua fé, pode comprometer a própria lisura do processo.
Outra questão que se torna bastante problemática com a crescente influência religiosa no âmbito estatal diz respeito aos direitos das minorias, sobretudo dos homossexuais,
grupo historicamente segregado por alguns setores religiosos. Na semana passada, um edital da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) que destinava
vagas ociosas a candidatos transgêneros, não binários e intersexuais foi anulado após intervenção do Ministério da Educação. Em entrevista à DW Brasil, a professora da Unilab
Luma de Andrade, primeira travesti a lecionar numa universidade federal do país, afirmou que essa decisão, além de atender à agenda conservadora do atual governo, também
representa um desperdício de recursos públicos, pois as vagas, que poderiam ser preenchidas para formar mais pessoas para a sociedade, continuarão não sendo utilizadas.
Já no Congresso Nacional, a chamada “bancada da Bíblia” tem sido responsável por obstruir os debates sobre pautas progressistas, inerentes às liberdades individuais, entre
elas a descriminalização da maconha, a união homoafetiva e os direitos reprodutivos das mulheres. Não obstante, ainda há os projetos estapafúrdios, como a tentativa de inibir
manifestações artísticas consideradas “profanas”, a retirada da fantasiosa “ideologia de gênero” dos currículos escolares, o fim do ensino da Teoria da Evolução de Charles
Darwin, a proibição do aborto mesmo em caso de estupro e a malfadada “cura gay”. Também é importante ressaltar o papel da mídia nesse processo que tem colocado em xeque a
laicidade estatal no Brasil. A Rede Record, por exemplo, tem sido usada sistematicamente pelo seu proprietário, Edir Macedo, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, para
propagar os valores de sua religião, atacar políticas governamentais que considera contrárias às Sagradas Escrituras (como o caso do projeto “Escola Sem Homofobia”,
pejorativamente designado como “kit gay”) e representar negativamente outras crenças religiosas, principalmente aquelas de matrizes africanas, valendo-se de diversas agressões a
seus símbolos e rituais. Não por acaso, a emissora (que, sempre é fundamental lembrar, tem uma concessão pública) foi condenada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região
(TRF3) por veicular agressões a religiões de origem africana proferidas no programa Mistérios e no quadro “Sessão de descarrego”.
Evidentemente, este artigo não é um manifesto antirreligião. Aliás, o Estado laico que tanto defendo tem como principal premissa justamente a garantia da liberdade de
crença a todos os cidadãos. No entanto, é preciso ressaltar que a mistura entre assuntos políticos e religiosos foi responsável por tristes páginas da história da humanidade, como a
Santa Inquisição, os massacres de indígenas e os ataques terroristas de organizações como a Al Qaeda e o Estado Islâmico.

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

8 MINORIAS

“Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um
território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania” (Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Nos estudos em ciências sociais, o termo “minoria” não se refere necessariamente a uma população numericamente pequena, mas está ligado, sobretudo, ao poder político
que um determinado setor possui em relação ao restante da sociedade.
Em outros termos, minorias são aqueles grupos sociais que não se encaixam nos padrões de “normalidade” ou que estão podados de certas prerrogativas, como a capacidade
de poder criar sua própria identidade, independente de fatores alhures. As mulheres, em questões numéricas, por exemplo, são maioria na população brasileira, porém socialmente
são menos valorizadas do que os homens.
Além das mulheres também podem ser considerados exemplos de minorias sociais os negros, os indígenas, alguns imigrantes, os homossexuais, os idosos, os moradores de
comunidades carentes, os portadores dos diversos tipos de deficiências e os moradores em situação de rua.
De maneira geral, a grande mídia brasileira (sobretudo os principais canais de televisão) se consolidou, ao longo dos anos, como um poderoso instrumento para difundir
certos estereótipos relacionados às minorias.
Lembrando o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, podemos afirmar que o conteúdo das emissoras brasileiras corresponde à ideologia da classe dominante46. Desse
modo, os conteúdos presentes em nossos principais grupos de comunicação foram responsáveis por acentuar os estigmas referentes aos negros, às mulheres, aos pobres e
aos homossexuais.
O artigo que abre este capítulo, “Televisão e minorias”, tece uma breve análise sobre como negros, homossexuais, pobres e mulheres são representados na sexagenária
televisão brasileira. Evidentemente, as emissoras de TV não foram responsáveis por inventar o racismo, o sexismo, a homofobia ou o preconceito de classe. No entanto, é inegável
a sua importância para a estigmatização das minorias.
Não obstante, apesar de a escravidão ter sido oficialmente abolida em 13 de maio de 1888, constatações empíricas e dados estatísticos nos apontam que o arquétipo do negro
social e economicamente inferior, infelizmente, ainda faz parte do inconsciente coletivo do brasileiro comum. Para discutir essa questão, selecionei o texto “O negro na mídia”.
Já o artigo “Mídia e gênero” discute as relações desiguais entre gêneros em nossa sociedade e a hipersexualização e objetificação do feminino na mídia.
Fechando este capítulo, os dois últimos artigos – “A disseminação do preconceito” e “A explicitação do ódio” – ressaltam os diferentes tipos de extremismos que saíram do
armário no Brasil da segunda década do século XXI. Radicalismos facilitados pelas redes sociais e que têm as minorais como seus alvos principais.

Televisão e minorias

Por Francisco Fernandes Ladeira em 16/12/2014 na edição 829

A televisão é um poderoso instrumento para criar ou difundir determinados estereótipos. Lembrando o pensamento marxiano, podemos afirmar que o conteúdo das emissoras
brasileiras corresponde à ideologia da classe dominante. Desse modo, ao longo de seis décadas, as programações de nossos principais canais de televisão foram responsáveis por
acentuar os estigmas de diversas minorias como negros, mulheres, pobres e homossexuais. Nos estudos de ciências sociais, o termo “minoria” não se refere necessariamente a uma
população numericamente pequena, mas está ligado, sobretudo, ao poder político que um determinado setor possui em relação ao restante da sociedade. Em outros termos,
minorias são aqueles grupos sociais que não se encaixam nos padrões de “normalidade” ou que estão podados de prerrogativas, como a capacidade de poder criar sua própria
identidade, independente de fatores alhures.
Apesar de a escravidão ter sido oficialmente abolida no final do século 19, não é difícil inferir, através de observações empíricas e dados estatísticos, que o arquétipo do
negro social e economicamente inferior ainda faz parte do inconsciente coletivo do brasileiro comum. Nos principais meios de comunicação de massa, os negros ainda continuam
sendo associados a antigos estereótipos, como a “mulata sensual”, o “bandido” ou o “negro malandro”; e a profissões consideradas socialmente inferiores, como empregadas
domésticas e jardineiros. Na telenovela A Cabana do Pai Tomás, exibida pela Rede Globo entre 1969 e 1970, um ator branco foi escolhido para interpretar o personagem principal
da trama, que era um escravo negro. Na época, a opinião geral na classe artística era que Milton Gonçalves deveria fazer o papel. Não obstante, em outra telenovela com o tema
escravidão, a emissora da família Marinho adaptou o romance Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães para a tela da TV. Como a trama estava centrada na vida de uma escrava
branca, em mais uma oportunidade o negro foi preterido do papel de protagonista. Somente em 2004, a Rede Globo produziu uma telenovela protagonizada por uma atriz negra
(Taís Araújo) e, mesmo assim, com o tendencioso título de A Cor do Pecado (evidentemente que o “pecado” em questão era a luxúria).
Por outro lado, de acordo com os movimentos feministas, as desigualdades entre gêneros começam com a substituição de sociedades coletoras por sociedades caçadoras
(quando a força física passa a ser o principal fator de distinção social), acentuam com o surgimento da propriedade privada e são corroboradas espiritualmente pelas grandes
religiões monoteístas. No século 20, com o advento de novas tecnologias comunicacionais, a mídia passa a ser um novo e poderoso meio para estigmatizar o gênero feminino. Na
TV brasileira, a hipersexualização e objetificação do corpo feminino nos remetem pelo menos aos anos 1970, com as “chacretes”, exacerbaram nos anos 1990 em quadros
dominicais, como “Banheira do Gugu”, e chegam aos dias hodiernos em programas como Pânico na TV, Legendários e nos reality-shows em geral.
Em um país marcado por intensas desigualdades econômicas, onde a elite odeia e sente vergonha do povo, ser pobre é quase uma “doença”. Sendo assim, as classes
populares são constantemente ridicularizadas nos principais meios de comunicação, seja na sua maneira de falar (o famoso “preconceito linguístico” como forma de distinção
social) ou por causa de seus hábitos simples. Nesse sentido, programas de humor, aparentemente ingênuos e apolíticos, são os principais mecanismos para a mídia reforçar
estereótipos sobre a pobreza no Brasil.
Já em relação aos homossexuais, a TV brasileira apresenta posições ambíguas. Conforme é do conhecimento dos telespectadores, casais homoafetivos estão cada vez mais
presentes nas telenovelas. Todavia, não nos iludamos. A presença constante de homossexuais na televisão deve-se, sobretudo, ao grande poder aquisitivo de grande parte dos
indivíduos que compõe essa parcela da população. Por outro lado, canais de propriedade de pastores evangélicos fazem campanha contra qualquer tipo de política que pretenda
combater a homofobia no Brasil. Em 2011, por exemplo, a Rede Record ridicularizou e distorceu ao máximo o conteúdo do kit Escola sem Homofobia, proposto pelo governo
federal. O objetivo desse projeto era combater a intolerância e promover o respeito à diversidade sexual nas instituições de ensino básico, mas, para a emissora do pastor Edir
Macedo, essa política (pejorativamente qualificada como kit gay) incentivava a prática da homossexualidade. Assim, devido ao grande lobby dos setores conservadores, o kit não
foi colocado em prática. Um grande retrocesso para a laicidade estatal e mais uma vitória do obscurantismo religioso.
Evidentemente, a televisão brasileira não inventou o racismo, o sexismo, a homofobia e tampouco o preconceito de classe. Entretanto, como se pôde constatar ao longo deste
artigo, é inegável a sua importância para a difusão de estereótipos em relação às minorias. Diante dessa realidade, é preciso que haja a completa democratização dos meios de
comunicação para que os setores marginalizados de nossa sociedade possam ter a oportunidade de defender os seus valores políticos em igualdade de condições. E essa
reivindicação não é tarefa somente de movimentos negros, feministas, ou de homossexuais, mas de todos aqueles que anelam por uma realidade mais justa e solidária.

O negro na mídia

Por Francisco Fernandes Ladeira em 18/11/2014 na edição 825

Em 20 de novembro comemoramos o Dia da Consciência Negra. A escolha da data não foi por acaso. Remete à morte do líder negro Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695.
Conforme é do conhecimento de todos, os negros foram arrancados de suas terras na África e escravizados durante mais de três séculos e meio no Brasil. Após a abolição da
escravatura, os negros libertos não receberam qualquer tipo de assistência estatal, transformando-se em verdadeiros párias da sociedade brasileira. Segundo o sociólogo Florestan
Fernandes, o afrodescendente também foi excluído da nascente “sociedade de classes” no Brasil, pois não exerceu a função de proletariado (destinada ao imigrante europeu) e
muito menos ocupou posições de capitalista. Lembrando um clássico samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, apesar de livres do açoite e da senzala, os negros
continuam presos na miséria da favela.
Sendo assim, o Dia da Consciência Negra é uma data para lembrar a resistência dos cativos à escravidão e refletir sobre a atual situação do elemento de cor em nosso país,
principalmente a maneira pela qual ele é retratado na mídia hegemônica. Nesse sentido, não é preciso uma longa análise hermenêutica para constatar que nos principais meios de
comunicação de massa os negros ainda continuam sendo associados a antigos estereótipos como a “mulata sensual”, o “bandido” ou o “negro malandro”; e a profissões
consideradas socialmente inferiores, como empregadas domésticas e jardineiros. Nas campanhas publicitárias são raros os rostos de pele escura.
O nefasto estereótipo da mulher de cor associado à libido, por exemplo, encontrou nos meios de comunicação de massa um terreno fértil para a sua propagação. Nas
principais telenovelas da Rede Globo, geralmente as atrizes negras interpretam a mulher de vida fácil, a “gostosona” ou a amante. Em 2004, a primeira trama protagonizada por
uma atriz negra (Tais Araújo) trazia o tendencioso título de A Cor do Pecado (evidentemente que o “pecado” em questão é a luxúria). Conforme bem lembrou Daniel Oliveira, em
artigo no jornal O Tempo, a televisão brasileira não possui um único autor de teledramaturgia negro. “Muito já foi falado sobre a quase inexistência de protagonistas e atores não
brancos nas novelas, ou a baixa diversidade dos elencos. Mas pouco ainda se discute sobre a raiz desse alvejamento: a ausência de negros roteiristas e diretores, nas posições de
real controle criativo dessas produções”, enfatizou Daniel. Já o maior símbolo do carnaval da emissora da família Marinho é a “mulata Globeleza”, que costuma se apresentar de
uma maneira extremamente sensual. Não obstante, o polêmico seriado Sexo e as Nêga, que estreou recentemente, ao exibir várias cenas de mulheres negras em situações
libidinosas, só vem a corroborar a tese de que, em pleno século 21, a grande mídia brasileira ainda continua sendo norteada por um sexismo racista herdado do
período escravocrata.
Além da estigmatização em telenovelas, os negros também são ridicularizados nos programas de humor (o famoso “politicamente incorreto” nada mais é do que um
eufemismo para disseminar preconceitos), tratados de maneira humilhante nos programas policiais e encontram em publicações da imprensa conservadora (principalmente na
revista Veja) um importante obstáculo para as suas principais causas e reivindicações (como o sistema de cotas raciais e políticas sociais para a população mais pobre). Em suma,
mais de trezentos anos após a sua morte, a luta de Zumbi dos Palmares pela verdadeira libertação do negro continua atual.

Mídia e gênero

Por Francisco Fernandes Ladeira em 10/03/2015 na edição 841

Em 8 de março é comemorado o Dia Internacional da Mulher. A escolha da data é uma homenagem a centenas de trabalhadoras estadunidenses que foram covardemente
assassinadas na cidade de Nova York em 1857 após reivindicarem melhores condições de trabalho. Desse modo, temos uma excelente oportunidade não apenas para relembrarmos
as diversas lutas políticas das mulheres, mas também para analisarmos a atual situação do gênero feminino em nossa sociedade de maneira geral, e na mídia em particular. No
decorrer da história, em praticamente todas as organizações sociais a mulher foi o sujeito a ser alienado nas relações dialéticas entre gêneros. Nas religiões (principalmente para as
três grandes crenças monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo) o feminino geralmente representa o pecado, associado aos prazeres da carne, à desobediência e às mais
diversas formas de tentação. Diante dessa realidade, não é por acaso que Lilith, primeira mulher a questionar a dominação masculina segunda a mitologia judaica, foi banida
da Bíblia.
Segundo os pensadores marxistas, o advento da propriedade privada trouxe mais uma maneira de oprimir a mulher. Com a transmissão da herança pela linha paterna, o
marido, para evitar a traição, garantindo assim que os seus bens fossem destinados exclusivamente aos seus filhos legítimos, passou a confinar a esposa estritamente ao âmbito
doméstico, como se fosse mais uma de suas posses. A partir de então, a mulher ficou totalmente submissa ao homem, pois, ao não poder sair de casa, sua própria subsistência
passou a depender de seu companheiro.
Conforme salientou a escritora feminista Rose Marie Muraro no livro Um mundo novo em gestação, por meio da dominação econômica, no decorrer das gerações, a mulher
passou a desenvolver uma submissão psicológica ao introjetar a sua condição de inferioridade em relação ao homem. No século 20, com o surgimento de novas tecnologias
comunicacionais, as campanhas publicitárias passam a ser mais uma maneira de estigmatizar o gênero feminino. O corpo da mulher transformou-se em mais uma mercadoria.
Na TV brasileira, a hipersexualização e objetificação do feminino nos remetem pelo menos aos anos 1970, com as “chacretes”, o que foi exacerbado na década de 1990 em
quadros dominicais, como “Banheira do Gugu”, e chegou aos dias hodiernos em programas como Pânico na TV, Legendários e nos reality-shows em geral. Não obstante, a grande
diversidade brasileira não é contemplada pelos principais veículos de comunicação: o padrão de mulher representado pela mídia geralmente é branca, magra, jovem e
heterossexual. Mulheres que não se encaixem nos padrões estéticos socialmente estabelecidos dificilmente têm espaço nos principais anúncios e programas. De acordo com uma
pesquisa encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão, 84% dos entrevistados concordam que o corpo da mulher é usado como chamariz para promover a venda de produtos e
serviços na publicidade televisiva.
Fazendo uma relação entre as variáveis gênero e raça, não é difícil inferir que, no inconsciente coletivo do brasileiro, a figura da mulher de cor está intrinsecamente
associada à sexualidade. Desde o período escravista, passando pelas comemorações carnavalescas e chegando às telenovelas atuais, negras e mulatas geralmente são retratadas
como pessoas que supostamente possuem a libido aflorada, constantemente estigmatizadas como “mulheres quentes”. Em 2004, a primeira telenovela protagonizada por uma atriz
negra (Tais Araújo) trazia o tendencioso título de A Cor do Pecado (não é preciso fazer um longo exercício hermenêutico para constatar que o “pecado” em questão é a luxúria).
Portanto, a causa feminista não deve ser indissociável de temas como racismo, lesbiofobia e luta de classes.
Mesmo após várias conquistas das mulheres, a publicidade e boa parte da mídia continuam sendo norteadas por uma lógica sexista, herdada de épocas imemoriais. Diante
desse contexto, construir uma realidade pautada pela igualdade entre os gêneros é um dos grandes desafios da contemporaneidade. E essa tarefa não está a cargo somente dos
movimentos feministas, mas de todos aqueles que anelam por uma sociedade mais justa e solidária.

A disseminação do preconceito

Por Francisco Fernandes Ladeira em 12/01/2017 na edição 930

Em meados do século passado, a filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” para ilustrar a maneira como determinadas ideias de ódio se disseminaram
na sociedade alemã durante o regime nazista. Todavia, a eminente pensadora jamais imaginaria que, décadas mais tarde, com o advento das redes sociais, o mal seria banalizado a
níveis estratosféricos e, pior ainda, passaria a ser motivo de orgulho para muitos indivíduos.
Isoladamente, seja por receio de repúdio social ou autocensura, um sujeito não expõe certas ideias preconceituosas, guardando-as para si mesmo. Já a partir do momento em
que ele acessa a internet e entra em contato com outras pessoas que assumem posições tão equivocadas quanto as suas, ele se fortalece e passa a não mais temer a possibilidade de
revelar os aspectos mais obscuros de sua personalidade.
Em nossa contemporaneidade, bastam um mouse, um computador e um perfil no Facebook para reverberar o ódio em escala global. No ano passado, uma jovem foi vítima
de estupro coletivo em uma comunidade carente do Rio de Janeiro. Como reação ao ocorrido, não faltaram frases nas redes sociais para “justificar” essa crueldade: “Ela é mulher
de traficante”, “Ela procurou”, “Se estivesse em casa não aconteceria isso”, “Usava roupas curtas”, “Foi merecido”, entre outras colocações demasiadamente preconceituosas. Ou
seja, colocou-se toda a culpa na vítima, não nos agressores. Um total desprezo pela condição feminina. E, o pior: muitas vezes essas agressões verbais partem das
próprias mulheres.
Já as dezenas de mortes em presídios do norte do país foram consideradas como “massacres do bem”, no melhor estilo da máxima “bandido bom é bandido morto”. Não
obstante, muitos internautas vibraram com as facadas sofridas pelo pastor Valdemiro Santiago e também ironizaram o fato de ele ter se tratado do ataque em um hospital, em vez
de tentar “curar a si mesmo”. Ora, por mais controversas que possam ser as atividades do líder religioso, é complicado imaginar alguém se felicitar com o sofrimento de outro ser
humano, por pior que ele possa ser. Não por acaso, em uma época de banalidade do mal, um político conhecido por suas ideias homofóbicas, misóginas e por fazer apologia à
tortura é frequentemente tratado como “mito” por seus seguidores.
Infelizmente, a maldade hodierna não se restringe ao plano simbólico ou tampouco às redes sociais. Em muitas oportunidades, o ódio se transforma em violência física,
podendo gerar, inclusive, vítimas fatais. Não são raras agressões e assassinatos de membros da comunidade LGBT pelo simples fato de eles possuírem orientações sexuais ou de
gênero diferentes do que socialmente se convencionou como “normal”. É a intolerância chegando ao extremo. Por fim, é importante constatar que a maioria das pessoas que adere
a práticas de ódio se considera cristã. Jesus, com sua postura inerentemente pacifista, certamente não aprovaria essas atitudes negativas daqueles que se dizem seus seguidores.
Seria extremamente complicado para alguém que pregou o amor ao próximo compactuar com discursos que desejam tanto mal aos seus semelhantes. Questão de bom senso.

A explicitação do ódio

Por Francisco Fernandes Ladeira em 24/03/2015 na edição 843

Qualquer análise holística sobre a nossa contemporaneidade não pode deixar de mencionar a internet, principalmente as redes sociais. Não é exagero algum comparar o
advento da web a outros grandes momentos da humanidade, como a descoberta do fogo, no período paleolítico, e a invenção da imprensa, no século 15. Por meio da tecnologia
conseguimos vencer entraves espaciais e temporais. Entretanto, como todos os âmbitos de nossa existência, o meio virtual também pode apresentar aspectos negativos.
Isoladamente, seja por receio de repúdio social ou autocensura, um sujeito não expõe determinadas ideias preconceituosas, guardando-as para si mesmo.
Todavia, a partir do momento em que acessa a rede mundial de computadores e entra em contato com outros indivíduos com posições tão equivocadas quanto as suas, ele se
fortalece e passa a não mais temer a hipótese de revelar aspectos obscuros de sua personalidade. Sob o anonimato de um perfil fake, muitos internautas acreditam que podem
disseminar sua intolerância sem sofrer qualquer tipo de sanção. Sendo assim, as redes sociais estão sendo cada vez mais infestadas de opiniões racistas, xenófobas, homofóbicas,
sexistas e classicistas.
Vejamos alguns exemplos. Quando o governo federal lançou o programa Mais Médicos, a jornalista Micheline Borges afirmou em seu perfil virtual que “as médicas cubanas
[negras, em sua maioria] têm cara de empregada doméstica e não apresentam a postura adequada para exercer a profissão”. No início do ano passado, os adeptos do “rolezinho”
foram qualificados por muitos membros da elite como sendo baderneiros, bandidos, vândalos e favelados, entre outros adjetivos que geralmente são atribuídos aos pobres em
nosso país. Já a Miss Brasil, Melissa Gurgel, sofreu vários xingamentos por causa do seu sotaque nordestino. Nos fóruns de discussão política, pelo menos desde a última
campanha eleitoral, petistas e tucanos preferem trocar insultos pessoais ao invés de apresentar argumentos e ideias convincentes.
Não obstante, a cena de um beijo entre duas mulheres exibida pela telenovela global Babilônia ensejou os mais diversos tipos de comentários lesbiofóbicos. Internautas
apontaram que a Rede Globo é “santuário do diabo” e passou dos limites, pois “incentiva” comportamentos imorais e vergonhosos, que contribuem para a “destruição da família”.
Em sua página, o deputado e pastor Marco Feliciano, citou a Bíblia e comparou a novela à antiga Babilônia, “morada de demônios e covil de todo espírito imundo”.
Porém, não é somente a violência simbólica que pode ser explicitada pela web. O grupo radical Estado Islâmico, por exemplo, recruta boa parte de seus jovens militantes via
meio virtual. É a nova face do terrorismo na Era Cibernética. Na deep web, conhecida como o “submundo da internet”, existem várias redes ligadas à pedofilia, prostituição
internacional e ao tráfico de seres humanos. Evidentemente, somos contra qualquer tipo de censura digital, mas devemos ficar atentos ao que se lê e compartilha nas redes sociais.
É importante que não se confunda liberdade de expressão com discurso de incentivo ao ódio ou ao crime. Parafraseando uma clássica citação da ciência política: “Dê um mouse e
um teclado para um sujeito intolerante e verá até onde pode chegar a ignorância humana.”

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

9 ESPORTES

“O esporte é importante para modernizar nossa visão de mundo,


porque socializa a gente, na derrota e na vitória” (Roberto da Matta).

Conforme já apontado no artigo “A espetacularização da realidade” (apresentado no primeiro capítulo), a esfera esportiva não está imune ao espetáculo midiático. Ao longo
dos anos, muitas modalidades esportivas modificaram suas regras e os regulamentos de suas competições com o objetivo de se adaptarem ao formato televisivo.
Eventos como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, realizados a cada quatro anos, angariam bilhões de telespectadores em todo o planeta e movimentam vultosas
quantias em dólares.
Durante o período histórico abordado por este livro, o mundial de futebol e a Olímpiada foram realizados no Brasil, em 2014 e 2016, respectivamente. Para muitos, as
realizações destes dois grandes eventos simbolizaram o protagonismo brasileiro no cenário global, constituindo-se assim em orgulho para os nossos compatriotas. Para outros,
trataram-se mecanismos de alienação das massas e gastos públicos desnecessários.
Divergências à parte, tanto a Copa quanto a Olimpíada foram disputadas sem maiores contratempos.
Às vésperas da Copa de 2014, escrevi o texto “Reflexões sobre o futebol”, em que descrevo algumas das características do empolgante esporte bretão, considerado por Jean
Paul Sartre como “uma metáfora da vida”. Reconhecidamente o esporte mais popular do planeta, o futebol é capaz de despertar os mais diferentes sentimentos. É amado por uns,
execrado por outros.
Com o “efeito Copa do Mundo”, alguns estádios brasileiros foram transformados em modernas arenas, um dos fatores responsáveis pelo encarecimento dos ingressos dos
jogos de futebol, o que afastou o povão das arquibancadas. A famosa “geral”, local destinado às pessoas com baixa renda nos estádios brasileiros, já não existe mais. Ganhou o
sistema capitalista, perdeu o brilho do esporte. A Casa Grande expulsou a Senzala dos estádios. Tendo essa questão como pano de fundo, ainda durante a realização do mundial
de 2014, produzi o segundo texto deste capítulo: “A nova elitização do futebol”.
Apesar de não ter sido tão empolgante quanto a edição anterior (a chamada “Copa das Copas”, realizada no Brasil, em 2014), a Copa da Rússia de 2018, com suas surpresas
e polêmicas, é a temática tratada em “Reflexões sobre a Copa da Rússia”.
Ainda na temática “futebol”, selecionei o primeiro artigo que escrevi para o Observatório da Imprensa, em outubro de 2011: “O jogador e o boneco inflável”. Neste texto,
faço um contraponto entre o engajamento de “Loco” Abreu, então atacante do Botafogo, e a alienação dos jogadores que imitavam o boneco inflável “João Sorrisão” em
comemorações de gols.
Já os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, realizados em agosto de 2016, estão contemplados no texto “Um balanço das Olimpíadas”, que, conforme o título já indica,
apresenta um resumo sobre os principais acontecimentos da primeira olímpiada disputada em solo sul-americano.

Reflexões sobre o futebol

Por Francisco Fernandes Ladeira em 03/06/2014 na edição 801

Nos próximos dias será praticamente impossível para qualquer cidadão brasileiro ficar indiferente ao futebol. Mesmo aqueles que odeiam o secular esporte bretão serão
afetados, direta ou indiretamente, pelos desdobramentos da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil. Grande parte das instituições de ensino estará de férias; nas cidades-sedes
do torneio promovido pela Fifa será decretado feriado em dias de jogos e, quando a seleção brasileira entrar em campo, o país literalmente vai parar.
O futebol, esporte mais popular do planeta, é capaz de despertar os mais diferentes sentimentos. É amado por uns, execrado por outros. Sartre já dizia que o futebol, talvez o
único esporte em que nem sempre o mais forte sagra-se vencedor, é uma “metáfora da vida”. Para o antropólogo Roberto DaMatta, no cenário futebolístico, ao contrário de outras
instâncias da sociedade, não há apadrinhamento, o sujeito entra em campo porque realmente sabe jogar, não por causa de seu capital social.
Em contrapartida, o futebol, ao ser utilizado como poderoso mecanismo de dominação das massas, também pode ter um caráter contrarrevolucionário, transformando-se
assim em uma espécie de versão moderna do panis et circenses romano. Ao se preocupar demasiadamente com temas futebolísticos, muitos indivíduos deixam de pensar sobre as
questões que realmente são relevantes.
Talvez nenhum outro povo tenha tanta identificação com o futebol quanto o brasileiro. “Somos os únicos pentacampeões mundiais”, diria o mais entusiasta dos torcedores. A
cada quatro anos, somos tomados pelo anódino “ufanismo de Copa do Mundo”. Para o senso comum, com toda a preguiça mental que lhe é peculiar, um indivíduo pode trocar de
mulher, de religião ou de preferência política, mas nunca mudar o seu clube de coração. Nelson Rodrigues afirmava que a seleção brasileira é a “pátria de chuteiras”. Uma
conhecida música popular diz que todo menino brasileiro sonha em ser jogador de futebol. Já de acordo com a Rede Globo, durante os jogos do excrete canarinho, “todos seremos
um só”.
Para entender o porquê de o futebol ser tão exaltado em nosso país devemos recorrer a algumas categorias de análise inerentes às ciências humanas. Segundo os estudos
antropológicos, o Estado Nacional moderno, para a sua própria afirmação e coesão social, recorreu ao auspicioso recurso de forjar determinados “mitos fundacionais”. Desse
modo, o “destino manifesto” foi a inspiração para a formação do povo estadunidense, uma suposta pureza racial foi crucial para a consolidação do tardio Estado alemão e as
guerras de independência contra o colonizador espanhol foram importantes fatores identitários para nossos vizinhos sul-americanos.
Por outro lado, o Brasil (país onde o processo de independência foi mais um acordo do que propriamente uma guerra contra o colonizador lusitano) careceu de um fator que
criasse uma identidade nacional. Sendo assim, na ausência de um “mito fundacional”, o futebol – esporte que inicialmente esteve associado à elite, mas com o tempo penetrou em
todas as camadas sociais – tornou-se o principal elemento da unidade nacional. Em outros termos, o futebol preencheu a lacuna que faltava para consolidar a identidade brasileira.
Para boa parte de nossos conterrâneos, o futebol é o que há de mais importante na vida. Consequentemente, as camisas dos principais clubes tupiniquins, também conhecidas
como “mantos sagrados” ou “segunda pele”, são verdadeiros fetiches contemporâneos. Em nosso país, milhares de pessoas matam e morrem por causa do esporte mais popular do
planeta. Muitos brasileiros, ao se referir ao seu time, utilizam a primeira pessoa do plural, demonstrando um sentimento de pertencimento, como se cada torcedor entrasse em
campo com os jogadores. Já outros indivíduos condicionam seu estado de espírito de acordo com as derrotas e vitórias de seu clube predileto.
Ao longo dos anos, os diferentes governos (principalmente os de caráter autoritário) e a grande mídia sempre souberam tirar inúmeras vantagens políticas e econômicas da
obsessão dos brasileiros por futebol. A conquista do tricampeonato mundial no México em 1970, por exemplo, foi utilizada como propaganda ideológica a favor do governo
Médici e, por outro lado, serviu para escamotear as atrocidades cometidas pelo regime ditatorial que então vigorava em nosso país. Não por acaso, jogadores engajados como
Reinaldo, Sócrates, Alex e Paulo André geralmente foram perseguidos em seus clubes ou na seleção brasileira. O estereótipo do atleta alienado e passivo ainda é o modelo ideal
para os cartolas brasileiros e para nossas elites políticas.
Por outro lado, o futebol não teria a mesma força mobilizadora se não fosse a atuação dos grandes meios de comunicação, sobretudo a televisão. Evidentemente que este
esporte já era relativamente popular, independente da imprensa. Entretanto, as transmissões futebolísticas (primeiro via ondas radiofônicas e posteriormente pela TV) foram
peremptórias para transformar os jogadores em grandes ídolos nacionais.
Atualmente, o futebol está totalmente inserido na chamada “sociedade do espetáculo”. Não basta apenas que o atleta tenha boas atuações em campo (talvez isso seja até
secundário). É preciso que ele saiba se postar diante das câmeras, venda produtos, atualize diariamente seu perfil nas redes sociais e use o corte de cabelo da moda. Não obstante, a
principal emissora do país tem o poder de impor os horários dos jogos de quarta-feira (às 22 horas, após a novela) e definir os clubes que os telespectadores irão assistir (ao
privilegiar as partidas de equipes do eixo Rio-São Paulo).
Alienações à parte, o futebol, quando condicionado ao âmbito estritamente lúdico e sem fanatismos, tem vários aspectos positivos. Talvez seja o mais democrático dos
esportes: quase todas as pessoas podem praticar, independente do tipo físico ou classe social. Qualquer indivíduo pode entender suas regras. Além do mais, assistir a uma partida
bem jogada é uma experiência bastante interessante.
Em suma, o esporte mais popular do planeta pode desempenhar uma dupla função: ser uma atividade física prazerosa e uma boa fonte de entretimento ou, por outro lado, ser
um poderoso instrumento de domesticação dos povos. Portanto, seria demasiadamente prestimoso se as rivalidades e outras questões inerentes ao futebol se limitassem apenas às
quatro linhas.

A nova elitização do futebol

Por Francisco Fernandes Ladeira em 08/07/2014 na edição 806

Em seus primeiros anos no Brasil, o futebol, atualmente o esporte mais popular do país, esteve associado exclusivamente à elite econômica. Em campo, os atletas eram
preferencialmente brancos (negros e mulatos que porventura se aventurassem a jogar deveriam escamotear suas características fenótipas). Já nas arquibancadas membros da high
society desfilavam com seus trajes luxuosos. Em suma, o futebol era uma fonte de entretenimento de que os pobres definitivamente não poderiam participar.
Entretanto, ao contrário de outros esportes da elite, como o remo, o futebol é relativamente fácil de praticar, basta uma bola e um espaço físico. Assim, paulatinamente
muitos homens de cor foram aprendendo a jogar, e, conforme salientou Gilberto Freyre, inspirados na capoeira, introduziram um novo gingado ao esporte bretão. Com o advento
do profissionalismo, e a crescente necessidade de resultados positivos, os principais clubes brasileiros tiveram que aceitar futebolistas negros e mulatos. O futebol também caiu nas
graças das classes populares e estes passaram a se fazer cada vez presentes nos estádios. Com a inevitável “invasão das massas”, a elite brasileira, que não suporta dividir o mesmo
espaço com os pobres, aos poucos foi se afastando dos jogos.
Por outro lado, as classes dominantes observaram que a paixão dos brasileiros pelo futebol poderia ser um importante mecanismo de dominação das massas. Na ausência de
um “mito fundacional” para a nação brasileira, o futebol tornou-se o principal elemento da unidade nacional. Em outros termos, o esporte bretão preencheu a lacuna que faltava
para consolidar nossa identidade nacional. Ir ao estádio de futebol no final de semana talvez fosse a única alegria do sofrido trabalhador tupiniquim.
Todavia, principalmente nas últimas décadas, o futebol passou a ser um negócio altamente lucrativo. Consequentemente, era preciso afastar as classes populares dos
estádios. Nessa lógica, a mídia foi responsável por uma intensa campanha de criminalização dos torcedores pobres que habitualmente frequentavam os estádios. Mantras como
“torcidas organizadas são formadas apenas por marginais” ou “é preciso que as famílias voltem aos estádios” foram exaustivamente repetidos nos principais noticiários como se os
indivíduos das classes populares fossem os únicos responsáveis pela violência que impera no Brasil.
Também a construção de “arenas padrão Fifa” ensejou o aumento dos preços dos ingressos. A famosa “geral”, local destinado às pessoas com baixa renda nos estádios
brasileiros, já não existe mais. Resultado: a elite econômica voltou a ser maioria nos estádios em detrimento do povo. Ganhou o sistema capitalista, perdeu o brilho do esporte.
Segundo os partidários do atual governo, essa “elite branca” foi a responsável pelas vaias dirigidas à presidenta Dilma Rousseff durante a cerimónia de abertura da 20ª
edição da Copa do Mundo. Entretanto, os simpatizantes do executivo federal não souberam explicar por que somente pessoas das classes privilegiadas estavam presentes em um
evento organizado durante uma gestão pública que supostamente está a serviço das causas populares. Paradoxos típicos de indivíduos que são movidos apenas por
ideologias partidárias.
Em resumo, o futebol não é mais a fonte de lazer da população pobre. Transformou-se apenas em mais um palco para o desfile de celebridades. As vibrantes torcidas de
outrora cederam espaço a públicos mais interessados em aparecer nas colunas e redes sociais. Se continuarmos assim, daqui a alguns anos o torcedor de futebol será similar ao
público de esportes elitistas como o tênis. Diante dessa realidade, não é por acaso que vários veículos de comunicação estrangeiros estão se perguntando onde estão os negros no
Brasil durante a Copa do Mundo. Infelizmente, a Casa Grande expulsou a Senzala dos estádios. Essa é a desigual e aristocrática sociedade brasileira.

Reflexões sobre a Copa da Rússia

Por Francisco Fernandes Ladeira em 17/07/2018 na edição 996

No último domingo (15/7), com o bicampeonato da seleção francesa, tivemos o encerramento da 21ª Copa do Mundo FIFA, realizada na Rússia. Apesar de não ter sido tão
empolgante quanto a edição anterior (a chamada “Copa das Copas”, realizada no Brasil, em 2014); o mundial deste ano nos trouxe algumas reflexões sobre os acontecimentos
extracampo, surpresas dentro das quatro linhas e novidades, como o polêmico árbitro de vídeo (VAR, na sigla em inglês), que, como pôde ser visto durante a partida final, na
dúvida, beneficiava a seleção mais poderosa.
Pela primeira vez em sua história quase centenária, a Copa do Mundo não contou com nenhuma das principais seleções – Alemanha, Argentina, Brasil e Itália – entre as
quatro primeiras colocadas. A tetracampeã Azzurra sequer foi à Rússia. Alemanha, Argentina e Brasil foram eliminadas, respectivamente, na fase de grupos, oitavas de final e
quartas de final.
Enquanto os alemães esbarraram no chamado “salto alto”; a Argentina, apesar de contar com a presença de Diego Maradona em seus jogos, se mostrou um time
extremamente nervoso e sem padrão tático. Messi pouco pôde fazer para ajudar a sua fraca equipe. Já para os milionários e mimados jogadores da seleção brasileira, modificar o
corte de cabelo, fazer propaganda de celular e fast food, atualizar o perfil nas redes sociais, ensaiar passos de dança no vestiário ou chorar copiosamente diante das câmeras de
televisão foram questões mais importantes do que propriamente o desempenho dentro de campo. Isso é secundário: o fundamental é aumentar o saldo bancário.
Sob o aspecto midiático, o principal aspecto negativo foi o fato de a Rede Globo deter a exclusividade de transmissão dos jogos da Copa do Mundo para a TV aberta, o que
tornou os apreciadores do futebol reféns de narradores e comentaristas da emissora da família Marinho. Como bem apontou o jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu blog
“Conversa Afiada”, “O Brasil é o único país ‘democrático’ em que uma única emissora privada de televisão tem o monopólio para exibir o time que representa a nação”.
O ponto positivo pode ser creditado a equipe de comentarista da ESPN Brasil que, mesmo antes do início do mundial, já apontava a seleção belga (com sua promissora
geração, fruto de um bem arquitetado projeto a longo prazo que deu atenção especial às categorias de base) como uma das favoritas ao título (colocações que, diga-se passagem,
receberam inúmeras críticas). Não se tratou, evidentemente, de “torcer” para equipes europeias ou tampouco agourar seleções de outros continentes, mas apenas exercer o bom
jornalismo esportivo, sem chauvinismos, baseado em critérios técnicos e objetivos. Outros povos, além do brasileiro, também sabem praticar um futebol de qualidade.
Considerado o maior evento esportivo do planeta – com um poder de mobilização popular inclusive maior do que a Olimpíada – é praticamente impossível ficar indiferente à
Copa do Mundo. O torcedor brasileiro, de maneira geral, tem uma relação maniqueísta de amor e ódio com o escrete canarinho: se ganha, é a melhor seleção do mundo,
incomparável; se perde, somos o pior país (não apenas no futebol, mas em todos os aspectos). Conforme apontou Casagrande, ex-jogador e comentarista da Rede Globo, “Num
país como o Brasil, onde a desigualdade é enorme e o futebol é um dos poucos escapes da população, esperança e frustração caminham lado a lado, seja na torcida do clube de
coração ou da seleção”.
Quem odeia futebol, diz que no Brasil o esporte bretão é um poderoso mecanismo de alienação das massas, algo como um panis et circense moderno. Ledo engano, pois essa
suposta despolitização da população está ligada a outros fatores, como o sistema educacional precário e a vergonhosa concentração dos meios de comunicação de massa, e não
pode ser creditada a um torneio realizado de quatro em quatro anos. Seríamos, então, “alienados periódicos”?
Todavia, isso não significa afirmar que os governantes não possam aproveitar a relativa distração da população com o mundial de futebol para tentar colocar em prática
medidas extremamente impopulares. Nesse sentido, a manchete do jornal O Estado de São Paulo, após a eliminação da seleção brasileira, é emblemática: “O Brasil cai na real:
seleção brasileira perde da Bélgica por 2 a 1, deixa a Copa do Mundo e volta a encarar a realidade de um país em crise”. Não por acaso, a desclassificação brasileira também gerou
um meme com a foto de um Michel Temer desolado dizendo: “Ai meu Deus! O povo vai voltar a falar de política”.
A seleção brasileira também desperta variadas formas de ufanismo. Nos últimos dias, a programação das principais emissoras e as páginas dos principais jornais foram
dedicadas quase exclusivamente à cobertura do mundial de futebol. Nomes como Neymar, Philippe Coutinho e Tite foram alçados ao status de semideuses por alguns órgãos
midiáticos. No programa “Jogo Aberto”, da Rede Bandeirantes, o comentarista Paulo Martins, menosprezando os adversários do escrete tupiniquim, afirmou que o Brasil ganharia
a Copa com “uma perna amarrada”.
No YouTube, um programa intitulado “Na Zona do Agrião” protagonizou colocações dignas da época dos governos militares, que exaltavam demasiadamente o Brasil e, em
contrapartida, ridicularizavam as outras seleções. Segundo os “analistas” deste programa, Cristiano Ronaldo e Messi não são bons jogadores, mas farsas criadas pela imprensa
internacional; Neymar é o maior futebolista da atualidade, sem comparações; somente o brasileiro sabe jogar futebol (todas as outras seleções são medíocres); a Bélgica é “um
time que teria dificuldades de se sustentar no Campeonato Brasileiro da Série B” e a mídia nacional, sobretudo a Rede Globo, torce contra a seleção brasileira e persegue os seus
atletas (provavelmente eles não conhecem o narrador Galvão Bueno).
Apesar do equilíbrio entre os participantes e das surpresas – afinal quem imaginaria semifinais disputadas por Bélgica, Croácia, França e Inglaterra –, algumas coisas
parecem não mudar em copas: o México “jogou como nunca, perdeu como sempre”, a seleção japonesa (mesmo com o bom desenho tático) continua sendo muito inocente (a
ponto de levar uma virada histórica da Bélgica, nas oitavas de final) a Colômbia continua fraquejando em momentos decisivos e, de acordo com um texto irônico do site
“Sensacionalista”, as pessoas que não estão acostumadas a assistir jogos de futebol são as que mais se empolgam durante os jogos da Copa.
A Copa do Mundo não está imune a questões sociais, políticas e econômicas. Os resquícios do colonialismo europeu no continente africano e as grandes ondas migratórias
internacionais também estiveram contemplados no mundial.
Por causa de um vídeo polêmico em que exaltava a Ucrânia (nação que recentemente teve alguns problemas diplomáticos com a Rússia), o zagueiro croata Vida foi bastante
vaiado pela torcida russa durante o jogo entre a sua seleção e a Inglaterra pelas semifinais. O fato rendeu uma advertência da FIFA ao atleta e os croatas tiveram que vir a público
pedir desculpas. No entanto, como esclareceu Adriano Wilkson, em uma reportagem publicada no UOL, a frase dita por Vida, “Slava Ukraini” (“Gloria à Ucrância”, em tradução
livre), parece ser uma simples saudação ao país do Leste Europeu, ou uma expressão patriótica; mas, em realidade, trata-se de um grito de inspiração xenófoba e fascista, o
equivalente ucraniano ao “Heil Hitler”, da Alemanha nazista, ou ao “Arriba España”, do período franquista.
Já as escolhas de África do Sul, Brasil e Rússia como países-sedes dos três últimos mundiais confirmam a importância dos BRICS no cenário global. Não obstante, a
ascensão da Rússia como influente ator geopolítico tem incomodado as principais potências. Nesse sentido, não foi por acaso que esteve em curso uma grande campanha mundial
em boicote à Copa de 2018. Uma espécie de “russofobia”.
Em uma comparação absolutamente grotesca e descabida, o secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, Boris Johnson, afirmou que “a Rússia de Putin tentará utilizar
a Copa do Mundo de 2018 para reforçar sua imagem da mesma maneira que a Alemanha de Hitler utilizou os Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim”. Não por acaso, os
membros da família real britânica (seguidos por mandatários de outros dezenove países) boicotaram o mundial russo, em represália à suposta tentativa do governo de Moscou de
assassinar com uma arma química o ex-espião Serguéi Skripal e sua filha Yulia.
Por outro lado, a grande presença de atletas com ascendência africana em seleções como Bélgica, Inglaterra e França trouxe a falsa impressão de que os imigrantes são bem
aceitos e estão completamente integrados nas sociedades europeias. Não nos iludamos, as nações do chamado “Velho Continente” continuam sendo norteadas por lógicas racistas.
Ao relembrar o seu início de carreira, o atacante belga Lukaku relatou: “Quando as coisas corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Quando as coisas
não corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses”. Será que se contassem apenas com jogadores “belgas”, “franceses” e
“ingleses” em seus elencos, as seleções da Bélgica, da França e da Inglaterra teriam alcançado colocações tão expressivas neste mundial?
Falando em globalização no futebol, a crescente transferência de jogadores africanos e sul-americanos para as principais ligas do planeta e a tentativa de imitar os padrões
técnicos e táticos europeus podem ser as causas que ajudam a explicar os insucessos de seleções da África (eliminadas ainda na fase de grupos) e da América do Sul (que
chegaram, no máximo, às quartas de final).
Nas redes sociais houve uma grande quantidade de “textões”, fake news, imagens manipuladas e memes sobre a Copa. Questões como torcer ou não torcer pela seleção
brasileira, a suposta armação internacional para que a França vencesse a Copa do Mundo e a possível influência de ideias fascistas sobre alguns jogadores croatas suscitaram
debates acalorados. Apesar da ausência da modelo e atriz paraguaia Larissa Riquelme, novas celebridades instantâneas, como Yury Torsky, o “torcedor russo misterioso”,
surgiram durante o mundial.
As eliminações das seleções consideradas favoritas (principalmente Alemanha, Argentina e Portugal), os jogadores mais conhecidos (como Cristiano Ronaldo e Messi), a
falta de gols do atacante Gabriel Jesus e as simulações e quedas de Neymar foram inspirações para a criatividade dos produtores de memes e GIFs. Aliás, as tentativas de ludibriar
a arbitragem fizeram com que a imagem do camisa 10 canarinho ficasse bastante desgastada em boa parte do planeta.
No entanto, não foi só o bom humor que esteve presente no espaço virtual. As faces mais obscuras do ser humano se manifestaram nos comentários racistas contra o volante
Fernandinho (bode expiatório da eliminação brasileira), nos vídeos em que torcedores brasileiros, aproveitando as diferenças linguísticas, faziam mulheres russas repetirem frases
machistas e em manifestações islamofóbicas contra o meia sueco de ascendência turca Jimmy Durmaz. Entre as fake news mais difundidas estão uma declaração de Neymar
afirmando que gasta milhares de reais mensais com o seu cachorro, a imagem de Messi sendo marcado implacavelmente por quatro defensores nigerianos e uma colocação do
técnico uruguaio Óscar Washington Tabárez solicitando ao governo de seu país que invista em educação.
Com o fim da Copa do Mundo, voltamos à nossa realidade cotidiana. Sendo assim, é bastante provável que o centro das atenções da agenda pública nacional agora se volte
para as eleições presidenciais de outubro. Ao que tudo indica, esta “disputa”, devido ao contexto político-econômico extremamente atribulado pelo qual atravessamos, deverá ser
tão imprevisível e aberta como foi a Copa do Mundo da Rússia. E, nesse campo, a imprensa hegemônica de nosso país, via de regra, está do lado oposto aos interesses da grande
maioria do povo brasileiro.

O jogador e o boneco inflável

Por Francisco Fernandes Ladeira em 04/10/2011 na edição 662

A atual temporada do Campeonato Brasileiro de Futebol não está interessante. Pelo menos para o torcedor mineiro. Rodada após rodada, atleticanos, americanos e
cruzeirenses veem seus respectivos clubes cada vez mais próximos da Série B. Outra característica negativa do presente certame é o baixo nível técnico dos jogadores, o que vem
a ser consequência direta do grande fluxo de futebolistas brasileiros para clubes do exterior.
Entretanto, apesar dos problemas em campo, fora das quatro linhas dois personagens têm chamado a atenção: o boneco inflável João Sorrisão; e Loco Abreu, atacante
uruguaio do Botafogo Futebol e Regatas.
Vamos ao primeiro personagem. João Sorrisão foi criado para acompanhar a música homônima (interpretada pelo grupo “Os Havaianos”) exibida durante o
programa Esporte Espetacular, da Rede Globo de Televisão. A letra da música (de gosto duvidoso) reflete a decadência do mainstream musical no Brasil. Não obstante, o
programa lançou uma campanha para os atletas dos times que disputam a Série A do futebol brasileiro: o jogador que fizer um gol e imitar (eufemismo para adestramento) o João
Sorrisão, ganha um boneco do personagem.
Dito e feito. Vários jogadores, mimeticamente, passaram a adotar a escalafobética coreografia ao comemorar seus tentos. Obviamente, não se trata de nenhuma novidade,
visto que boa parte da população brasileira está “acostumada” a ser manipulada pelos meios de comunicação de massa.
Por outro lado, Sebastián “Loco” Abreu comprova que ainda existe “vida inteligente” no cenário esportivo. O artilheiro uruguaio, que tem curso superior (algo raríssimo
entre os jogadores brasileiros, mas comum para atletas de outras nacionalidades), tem se destacado pelas entrevistas polêmicas. Em uma delas, ao ser questionado se participaria
do quadro “Inacreditável Futebol Clube”(exibido no Fantástico) por ter perdido um “gol feito” na partida entre Botafogo e São Paulo, Loco foi enfático: “Realmente, o
‘Inacreditável Futebol Clube’ é uma bobagem que vocês têm para sacanear o jogador, mas só quem está lá dentro sabe como é difícil jogar futebol.”
Evidentemente, podemos concordar ou não com esta afirmação. Entretanto, poucos indivíduos têm a coragem suficiente para criticar publicamente a poderosa emissora da
família Marinho. Após as declarações de Abreu, não faltaram comentários odiosos à atitude do centroavante botafoguense na imprensa especializada e nas redes sociais da
internet. Em um meio acostumado a padronizações e a frases clichês em entrevistas, como é o mundo do futebol, ter “opinião própria” ainda causa certo estranhamento.
Infelizmente, essa postura passiva não impera apenas nos bastidores do secular esporte bretão. No Brasil, a maioria da população ainda prefere ser guiada intelectualmente
por pensamentos metafísicos e alheios (atitude que Nietzsche qualificava como “instinto de rebanho”), a ter uma postura crítica e racional frente à realidade. Lembrando as
palavras do cantor e compositor Lobão, em entrevista a um programa do Record News, “no país da fofoca, ter opinião é tabu”.

Um balanço das Olimpíadas

Por Francisco Fernandes Ladeira em 24/08/2016 na edição 917

No domingo, 21 de agosto, tivemos o encerramento da 28ª Olimpíada da Era Moderna, realizada no Rio de Janeiro. Em ciências sociais a expressão “Estado Agonal” é
utilizada para designar as modalidades esportivas, que consistem em simulações dos conflitos e antagonismos entre os povos. Com certeza é bem melhor atletas disputando
medalhas a soldados pegando em armas. Cercados de expectativa (devido ao momento politicamente conturbado pelo qual estamos passando) os Jogos Olímpicos da capital
fluminense trouxeram importantes reflexões.
Logo na abertura do evento, práticas de manipulação midiática já se fizeram presentes. Durante o brevíssimo discurso de Michel Temer, a Rede Globo capciosamente
aumentou o áudio do presidente interino e diminui o do público para que os telespectadores não tivessem a real dimensão da grande vaia que ocorria no estádio do Maracanã. “O
presidente interino da República, Michel Temer, declara aberto os Jogos, sob vaias e também alguns aplausos”, afirmou um constrangido Galvão Bueno. Já a transexual Lea T.,
apesar de ter desfilado à frente da delegação brasileira, praticamente não apareceu na transmissão global. Conceder visibilidade às minorias definitivamente não é o forte da
emissora da família Marinho.
Diversos segmentos da sociedade relacionaram suas causas e valores aos acontecimentos esportivos. Militares exaltaram a medalha de prata conquistada pelo sargento Felipe
Wu no Tiro Esportivo. Feministas destacaram o relativo êxito das mulheres em contraste com os vexames iniciais dos homens no futebol. “Marta é melhor que Neymar”, foi uma
das frases mais replicadas na primeira semana olímpica.
Já a inédita medalha de ouro no judô, conquistada por Rafaela Silva – negra e ex-moradora de uma comunidade carente do Rio de Janeiro – foi utilizada pela grande mídia
para propagar o discurso meritocrático: “o ouro de Rafaela Silva no judô, é claro, uma maravilhosa história de sacrifício e de superação individual de quem lutou de verdade para
escapar da miséria. Nem em filme se tem um final tão perfeito e verdadeiro. Rafaela é o triunfo da vontade de vencer as circunstâncias que o poder público não foi capaz sequer de
remediar”, argumentou Willian Waak no Jornal da Globo. Um meme conservador viralizou nas redes sociais ao apontar que a judoca carioca “nunca precisou do feminismo ou de
cotas, conquistou tudo por mérito próprio”.
De acordo com uma matéria divulgada pelo site BBC Brasil, as diferentes interpretações sobre a vitória de Rafaela remetem a uma prática conhecida da psicologia humana:
o viés de confirmação. Grosso modo, trata-se da tendência que temos de, uma vez adotada uma convicção ou crença, buscar apenas exemplos que a confirmem. “O bom de a
Rafaela Silva ter origem pobre, ser negra e militar é que dá para ela agradar esquerda e direita”, sintetizou um internauta.
Além de Rafaela, as medalhas conquistadas por outros atletas de origem econômica desfavorecida em esportes que exigem grande habilidade física (como boxe, canoagem e
taekwondo) corroboram a tese do historiador Sérgio Buarque de Holanda de que, no Brasil, o povo é mais forte do que a elite.
Conforme bem colocou o site da revista Superinteressante, os jogos olímpicos de 2016 nos deram vários exemplos de aceitação. Depois de uma abertura cheia de
diversidade, com mulheres negras na liderança e LGBTs em destaque, atletas e organizadores também protagonizam cenas de tolerância e respeito às diferenças.
Todavia, os Jogos Olímpicos não foram marcados somente por aspectos positivos. A proibição de manifestações políticas nos locais de competição lembrou os períodos
ditatoriais. Atletas da Austrália, Estados Unidos e França se envolveram em imbróglios dentro e fora das disputas esportivas. Um treinador do atletismo francês protagonizou um
caso de intolerância religiosa ao sugerir que um saltador brasileiro recorreu “a forças místicas, talvez do candomblé”, para conquistar a medalha de ouro.
Se retoricamente a olimpíada do Rio de Janeiro foi apresentada ao mundo como um evento esportivo comprometido com o meio ambiente, na prática foi bem diferente.
Apesar da abertura olímpica ecologicamente sustentável, antes mesmo do início dos jogos a onça Juma foi abatida por soldados do exército brasileiro durante a passagem da tocha
por Manaus. Não obstante, as partidas de Golfe foram realizadas em uma área considerada de preservação ambiental.
Olimpíadas são excelentes oportunidades para estudar Geografia. Com os jogos muitas pessoas puderam constatar a existência de mais de duzentos Estados-Nacionais (e não
apenas algumas dezenas que aparecem nos noticiários internacionais), que “África” é um “continente” e não um “país”, fazer a distinção entre turcos e libaneses e entender como
os antagonismos geopolíticos também estão presentes nos esportes (a recusa de um judoca egípcio em apertar a mão de um colega israelense foi uma resposta simbólica às
inúmeras humilhações impostas pelo Estado Sionista aos povos árabes e muçulmanos).
A propósito, ao longo de sua centenária história, os jogos olímpicos sempre estiveram relacionados ao contexto geopolítico no qual foram realizados. Na primeira olimpíada
após a Primeira Guerra Mundial, em Antuérpia, os perdedores do conflito que devastou a Europa – alemães, turcos, húngaros e austríacos – não foram “convidados”. Em 1936,
Hitler utilizou os jogos de Berlim para tentar corroborar sua teoria de uma suposta superioridade ariana frente aos outros povos. O México queria mostrar ao mundo que realmente
era uma nação emergente ao organizar a olimpíada de 1968. Os Jogos de Munique, em 1972, ficaram marcados pelo atentado do grupo palestino Setembro Negro contra a
delegação de Israel. Como protesto à invasão soviética ao Afeganistão, os Estados Unidos e dezenas de aliados boicotaram os jogos de Moscou em 1980. Quatro anos depois foi a
vez dos países socialistas darem o troco e não comparecerem em Los Angeles. Por fim, a escolha do Rio de Janeiro como sede olímpica, durante o mandado do ex-presidente Lula,
simbolizava a ascensão do Brasil no cenário internacional. Ainda em relação aos jogos da capital fluminense, a severa punição imposta pelo Comitê Olímpico Internacional (COI)
ao atletismo russo demonstra que os fantasmas da Guerra Fria ainda assolam as relações internacionais.
Na sociedade do espetáculo, a olimpíada não se restringe à esfera esportiva, também é um grande evento midiático apresentado para uma plateia global. Ter uma marca
atrelada aos jogos é sinal de vendas garantidas. Aliás, muitos esportistas competem por suas nações ou pelos seus patrocinadores? Nomes como Micheal Phelps, Usain Bolt ou
Rafael Nadal, mais do que atletas de alto rendimento, são celebridades mundiais que têm todas as suas ações estrategicamente pensadas por seus respectivos empresários.
Evidentemente, não há como afirmar se a primeira olimpíada realizada na América do Sul deixará mais heranças positivas ou negativas para o nosso país. Alguns analistas
dizem que o evento foi benéfico para a autoestima do brasileiro e muitos jovens se sentirão mais motivados a praticar algum esporte. Por outro lado, o jornalista e escritor
estadunidense Dave Zirin considera que os Jogos Olímpicos se tornarão menos populares a partir do momento em que a população começar a se dar conta do dinheiro gasto em
sua organização. Fato é que, findada a olimpíada, nos voltamos para nossas questões cotidianas. Às vésperas de um julgamento político que poderá mudar a história do Brasil, é de
suma importância que nosso país não “conquiste” mais uma medalha de ouro em ruptura democrática47.
Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

10 ENTRETENIMENTO

“A televisão me deixou burro, muito burro demais. Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais” (Titãs).

De maneira geral, a dinâmica de um telejornal da grande mídia brasileira é bastante semelhante a obras de ficção como telenovelas e filmes. Nos moldes de um
“melodrama”48, os primeiros blocos são marcados por reportagens extremamente tensas (crise econômica, sequestros, assassinatos e tragédias naturais, por exemplo); ao longo do
noticiário, o conteúdo se torna mais ameno, sendo que as últimas matérias são norteadas por pautas mais leves (geralmente associadas a esportes ou celebridades) para que os
telespectadores saiam com boas impressões sobre a realidade. Trata-se do equivalente jornalístico ao “final feliz” dos romances.
Assim como nos telejornais, optei por começar este livro com temáticas mais intrincadas e encerrá-lo com assuntos mais “amenos”. Se o capítulo anterior foi dedicado ao
esporte, o capítulo final deste livro traz a temática “entretenimento”.
De acordo com o Dicionário Online de Português, entretenimento quer dizer “divertimento; o que diverte e distrai; o que é feito como diversão ou para se entreter”49. No
site “Educalingo”, encontramos a definição de entretenimento como “qualquer ação, evento ou atividade com a finalidade de entreter e suscitar o interesse de uma audiência. É a
presença de uma audiência que torna qualquer atividade privada de recreação ou lazer em entretenimento. A audiência pode ter um papel passivo, como quando se assiste a uma
peça teatral, ópera, programa de televisão ou filme; ou um papel ativo, como no caso dos jogos”50.
Portanto, além da busca por informações, as pessoas recorrem às diferentes mídias (rádio, revista, televisão, internet etc.) também em busca de entretenimento.
Abrindo este capítulo o artigo “Mulheres ricas, a ostentação na TV” traz uma análise sobre o reality show “Mulheres Ricas”, exibido pela Rede Bandeirantes no primeiro
semestre de 2012. O programa em questão retratava cinco milionárias da sociedade paulistana e seus cotidianos marcados por esbanjamentos, futilidades e ostentações.
Ainda nessa linha, em “A ‘era do aposto’” faço algumas considerações sobre as “celebridades” que se tornaram nacionalmente famosas, não por algum talento específico,
mas por motivos banais, como ter um relacionamento (ou um filho) com alguém conhecido do grande público, pelos dotes físicos ou simplesmente “ser famoso por ser famoso”.
Segundo Guy Debord51, em nossa contemporaneidade – marcada pela etapa do sistema capitalista em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social –
entretenimento passou a ser sinônimo de consumo. E não há como pensar em consumismo exacerbado sem mencionar a principal data comercial do ano: o natal.
Para abordar essa complexa questão, selecionei o artigo “Reflexões sobre o consumismo”, em que faço uma reflexão sobre a importância da mídia na propagação de
determinados comportamentos que podem induzir ao consumismo exacerbado52.
Se a palavra entretenimento lembra diversão, também não haveria como deixar de pensar na principal festa popular de nosso país: o carnaval. Amado por uns, odiado por
outros, o reinado de Momo provoca diversos tipos de sentimentos.
Desse modo, este último capítulo se encerra com dois textos sobre o carnaval: “Reflexões sobre o carnaval”, que traça um panorama sobre os significados dessa festa; e “A
cobertura do carnaval carioca na Rede Globo”, uma homenagem aos desfiles engajados das escolas de samba do Rio de Janeiro realizados no ano de 2018, com destaque para a
Paraíso do Tuiuti, que com um enredo sobre a escravidão, traçou uma linha do tempo que abordou desde o tráfico de escravos, iniciado no século XVI, até a precarização do
trabalho promovida pelo governo Temer, com o desmonte da CLT e as propostas de reforma da Previdência.

Mulheres ricas, a ostentação TV

Por Francisco Fernandes Ladeira em 10/01/2012 na edição 676

O Brasil apresenta uma das piores distribuições de renda do planeta. Segundo estudo realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), nosso
país tem o terceiro pior índice de desigualdade do mundo. Aproximadamente 10% da população concentra cerca de 44,5% da renda.
De acordo com o economista Celso Furtado (1920-2004), alguns hábitos da classe dominante podem explicar a vertiginosa disparidade social que impera no Brasil. A elite
brasileira tem como padrões de consumo os países de renda bem mais elevada que o nosso. Assim, para sustentar esse alto padrão de consumo, é necessário que essa parcela da
população concentre grande parte da riqueza gerada no país. Outra característica de nossa elite econômica é o seu caráter ostentatório. Não basta ser rico, é preciso demonstrar
rotineiramente o seu status social através da exibição de bens materiais e imateriais (mansões, carros importados, roupas de grife, joias, possuir vários empregados e adotar certos
hábitos e costumes).
Nos últimos anos essa elite econômica tem sido exaustivamente retratada nas principais telenovelas globais. Trama após trama, principalmente durante o horário nobre,
milhões de telespectadores deparam com a exibição de um estilo de vida impossível de ser atingido pela esmagadora maioria da população. Como “pobre gosta é de luxo, quem
gosta de miséria é intelectual” (lembrando a clássica frase de um carnavalesco); a TV Bandeirantes resolveu ir além da emissora da família Marinho e apresentou na segunda-feira
(02/01) o programa Mulheres ricas, o reality show que acompanha o cotidiano de cinco milionárias – Val Marchiori, Narcisa Tamborindeguy, Brunete Fraccarolli, Lydia Sayeg e
Débora Rodrigues.
Val Marchiori – linda, loira, alta e magra, segundo definição da própria – é apresentadora, empresária e a mais nova emergente da alta sociedade paulistana. A rotina da
oligofrênica milionária, sempre acompanhada do cabeleireiro e maquiador Dudinha, é dividida entre compras, eventos e apreciar bons champanhes (qualquer semelhança entre
Dudinha e o personagem Clô, da novela Fina Estampa, não é mera coincidência).
Enquanto o brasileiro comum sonha com um transporte público de qualidade para que possa se deslocar de casa para o local de trabalho com o mínimo de conforto, a
principal preocupação de Val é comprar um avião novo (preferencialmente que não faça escalas, pois ela odeia parar). Dinheiro não é problema para a apresentadora. Adquirir um
avião de 30 milhões de reais é como comprar uma blusa nova.
Narcisa Cláudia Saldanha Tamborindeguy (“Saldanha da alta aristocracia portuguesa”, faz questão de ressaltar) é advogada, jornalista e autora de dois livros. “Eu
sou amazing, fantástica, intensa. Devo ser tratada como uma pérola”, diz sem modéstia. A socialite é presença constante em revistas e programas de televisão sobre celebridades.
Entre suas principais fontes de entretenimento estão viagens para a Europa e EUA, se divertir na piscina do Copacabana Palace e frequentar as festas mais badaladas da
noite carioca.
Brunete Fraccaroli é uma famosa arquiteta paulistana que não larga a cadela maltês, não fica sem água mineral Perrier e vive como uma verdadeira boneca (inclusive há uma
boneca Barbie que leva o seu nome). “Nasci nos Jardins (região nobre da capital paulista) em uma família muito rica”, faz questão de frisar. Para a milionária, luxo é poder sair
com a sua cadela Cissi no colo e poder ir trabalhar com ela. “Cissi é uma cachorrinha feliz, criada feito gente, com todo o amor do mundo, vive melhor que muita gente,
infelizmente”, assevera. Realmente, o Brasil seria um país muito melhor se os seus pobres tivessem o mesmo padrão de vida da cadela Cissi.
Já Lydia Leão Sayeg é gemóloga e proprietária da famosa Joalheria Leão. “Eu nasci em um berço de ouro, literalmente”, salienta. Entre as extravagâncias da joalheira estão
tomar banho com água mineral, alugar uma Ferrari para “dar uma voltinha”, colecionar vestidos Chanel e possuir dois seguranças pessoais; “coisas simples”, segundo ela.
Lembrando o padrão de consumo da elite brasileira, segundo Lydia “o rico tem a obrigação de gastar, se o rico não gastar, o dinheiro não gira, se o dinheiro não girar, o pobre
não ganha”.
Por sua vez, Débora Rodrigues é a única participante do programa a ter uma origem humilde. É filha de um caminhoneiro e de uma dona-de-casa. Já trabalhou como babá,
frentista, motorista de ônibus de bóias-frias e de caminhão, recepcionista e secretária. “Eu não tinha dinheiro para comprar um fósforo”, relembra. Débora causou grande polêmica
nos anos 90 ao deixar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e posar nua para uma famosa revista masculina. Posteriormente foi apresentadora no SBT.
Atualmente é piloto de automobilismo e moradora de Alphaville, bairro nobre da Região Metropolitana de São Paulo. Como boa parte dos brasileiros que ascendem
economicamente, a forma encontrada por Débora para legitimar a sua nova condição social é adquirir automóveis luxuosos.
Em suma, o que se viu ao longo do primeiro episódio do reality show Mulheres ricas foi um festival de extravagâncias escalafobéticas. Ou seja, um retrato fiel do estilo de
vida da elite econômica brasileira. Parafraseando o tema de uma conhecida campanha publicitária de cartão de crédito, existem coisas que o dinheiro não pode comprar, e o bom
senso, certamente, é uma delas.
Por outro lado, o programa pode ensejar importantes reflexões sobre as facetas mais cruéis de nosso capitalismo periférico. De um lado, está uma minoria que possui os
meios (materiais e imateriais) necessários para realizar todas as suas aspirações e desejos. De outro lado, invisíveis para os meios de comunicação e excluídos pelo sistema
vigente, estão os indivíduos que levam uma existência deletéria, caracterizada por todo tipo de privação.
Sendo assim, exibir em rede nacional um programa marcado pelo esbanjamento, futilidade e ostentação é, no mínimo, uma afronta a milhões de brasileiros miseráveis
e famélicos.

A “era do aposto”

Por Francisco Fernandes Ladeira em 10/02/2015 na edição 837

Nossa contemporaneidade tem apresentado inúmeras incongruências. Enquanto em outros tempos, um indivíduo, para ser reconhecido pelos seus pares, deveria produzir
uma obra contundente e perene, nos dias hodiernos muitas “celebridades” tornam-se nacionalmente famosas, não por algum talento específico, mas por motivos banais, como ter
um relacionamento (ou um filho) com alguém conhecido do grande público, pelos dotes físicos ou simplesmente “ser famoso por ser famoso”. Vivemos a “era do aposto”.
Segundo o NILC (Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional) da Universidade de São Paulo, aposto é o termo da oração que se associa a outro termo para
especificá-lo ou explicá-lo. Desse modo, a celebridade produzida pela “era do aposto” geralmente está associada a alguém ou a um programa popularesco (principalmente reality
show). Em outros termos, trata-se de uma pessoa que jamais seria famosa por si só, ou que “não possui luz própria”.
Vejamos alguns exemplos emblemáticos. Nos anos 1990, duas conhecidas apresentadoras de televisão tiveram bastante destaque na mídia após manterem relacionamentos
com celebridades mundiais. Desse modo, os apostos “ex-namorada de Aytron Senna” e “a mãe do filho de Mick Jagger” foram importantes passaportes para a fama e, não
obstante, inauguraram a “era do aposto” no Brasil. Ainda nessa época, como representante masculino, surgiu o “pai da filha da Xuxa”, coadjuvante na “produção independente” da
chamada “rainha dos baixinhos” (diga-se de passagem, a própria Maria das Graças Meneguel foi alçada ao sucesso com o aposto “namorada do Pelé”).
Seguindo os padrões machistas de nossa sociedade, para a mulher que possui atributos físicos apreciáveis, apresentar-se seminua em programas de auditório, ou manter um
relacionamento com algum jogador de futebol que esteja em evidência, são apostos que podem conceder as credenciais necessárias para estampar capas de revistas masculinas ou
atuar como atriz em alguma telenovela ou seriado.
Outro importante aposto é ser ex-integrante de algum reality show, efêmero status que confere ao seu portador o direito de cobrar vultosos cachês para aparecer
“espontaneamente” em eventos. Entretanto, essa celebridade instantânea deve aproveitar ao máximo seus quinze minutos de fama, pois se trata de um aposto com prazo de
validade muito curto. Por outro lado, ter um progenitor ou progenitora que seja famoso faz com que o indivíduo se torne automaticamente celebridade. Como exemplo desse
poderoso aposto familiar podemos citar os filhos de cantores e atores que seguem as mesmas carreiras de seus pais. Não é preciso necessariamente saber cantar ou atuar; basta ter
um sobrenome famoso que o sucesso é garantido.
Em suma, esse é o mórbido retrato de uma época em que mais vale um bom apadrinhamento do que ter alguma habilidade genuína. Na estrutura semântica das
personalidades fabricadas, o “aposto” é mais importante do que o “sujeito”. Enquanto as oligofrênicas celebridades da “era do aposto” têm espaço privilegiado nos principais
veículos de comunicação, milhares de anônimos verdadeiramente talentosos ainda buscam reconhecimento para suas respectivas artes. Lastimável contrassenso.

Reflexões sobre o consumismo

Por Francisco Fernandes Ladeira em 23/12/2014 na edição 830

Nesta época do ano, em que comprar compulsivamente é a principal preocupação de boa parte da população, é imprescindível refletirmos sobre a importância da mídia na
propagação de determinados comportamentos que induzem ao consumismo exacerbado. No clássico livro O Capital, Karl Marx apontava que no capitalismo os bens materiais, ao
serem fetichizados, passam a assumir qualidades que vão além da mera materialidade. As coisas são personificadas e as pessoas são coisificadas. Em outros termos, um automóvel
de luxo, uma mansão em um bairro nobre ou ostentar objetos de determinadas marcas famosas são alguns dos fatores que conferem maior valorização e visibilidade social a um
indivíduo. Lembrando um poema de Drummond, na sociedade de consumo a essência do “eu” está intrinsicamente associada à “etiqueta” que o sujeito usa. Nesse sentido, como
bem afirmou o sociólogo Herbert Marcuse, o papel da publicidade é propagar hábitos e valores consumistas, fomentando assim “falsas necessidades” e desejos ilusórios na
população em geral.
Segundo a Constituição Federal, as redes de televisão, que são concessões públicas, teriam como principal função a difusão da cultura nacional para o grande público.
Entretanto, ao contrário do recomendado pela nossa Carta Magna, as emissoras comerciais brasileiras estão exclusivamente a serviço de seus poderosos anunciantes, concebendo
os telespectadores apenas como bons consumidores em potencial. Praticamente toda a programação, direta ou indiretamente, é voltada para vender determinados produtos.
Durante os intervalos comerciais dos programas infantis, a persuasiva publicidade feita para crianças garante que desde a mais tenra idade os brasileiros introjetem hábitos
inerentes à sociedade de consumo. Ou seja: “Você vale pelo que você possui, não pelo que você realmente é.” Ter várias bonecas Barbies ou se tornar uma princesa da Disney é o
sonho de toda menina. Para os meninos, os videogames de última geração e outros tipos de jogos eletrônicos. É o processo de socialização para o mercado.
Já os adolescentes formam o público mais vulnerável à propaganda. Em uma fase da vida em que a adesão ao grupo é mais importante do que a afirmação da
individualidade, a publicidade oferece aos jovens a ilusória possibilidade de aceitabilidade social ao envergar a roupa da moda ou utilizar um tênis de marca. Lembrando as ideias
de Zygmunt Bauman, o consumismo dos dias hodiernos é a uma “festa” onde todos são convidados, pois praticamente toda a população está exposta aos mecanismos persuasivos
da publicidade, mas poucos podem efetivamente entrar. Sendo assim, a tentativa de jovens negros da periferia em participar da “festa do consumo”, ao
frequentarem shopping-centers em bairros nobres, como foi o caso do famoso “rolezinho”, causa grande mal-estar para as elites econômicas. Em situações mais radicais, o grande
desejo por consumo faz com que muitos jovens ingressem no mundo do crime. Se em outras épocas a ansiedade de suprir necessidades básicas como alimentação e abrigo levava
indivíduos às atitudes mais radicais e a atividades ilícitas, em nossa sociedade de consumidores o desejo de suprir “necessidades sociais” (um celular ultramoderno, o melhor
vestuário, frequentar os lugares da moda) parece ser o principal motivo que leva adolescentes para a criminalidade.
O fascínio exercido pela publicidade midiática não é diferente em adultos. Em nossa pós-modernidade, a máxima cartesiana “penso, logo existo” foi substituída por
“consumo, logo existo”. Conforme é do conhecimento de todos aqueles que estudam a mídia, o merchandising (quando uma marca, logotipo, ou produto aparece em uma ou mais
cenas de atrações televisivas) é uma técnica publicitária amplamente difundida em nossos principais meios de comunicação. São notórios os casos de programas de auditório que
interrompem incessantemente seus quadros para anunciar um produto. Por meio da “fábrica de sonhos” do Projac, a Rede Globo lança os padrões de consumo a serem seguidos
por milhões de telespectadores. Desse modo, não é por acaso que minorias como negros e homossexuais só aumentam sua representatividade em telenovelas quando melhoram
seu poder financeiro. Por sua vez, as transmissões de futebol nos trazem uma grande dúvida: os atletas estão representando realmente as cores dos seus clubes ou as marcas das
empresas que estão estampadas na maior parte de seus uniformes? Diante desse contexto, também não é por acaso que a chamada “nova classe média”, procura no consumismo
exacerbado, e não no completo exercício da cidadania, a melhor maneira de legitimar sua ascensão social. Consequentemente, temos milhões de indivíduos com bom poder
aquisitivo, mas parca capacidade intelectual.
A influência dos anunciantes também se estende ao setor jornalístico, pois notícias que possam desagradar grandes conglomeradas, como a devastação ambiental causada por
algumas empresas, jamais serão colocadas no ar. Sendo assim, é imprescindível acabar com o vergonhoso oligopólio midiático que impera no Brasil. É preciso que os principais
meios de comunicação de nosso país promovam valores humanitários e não sejam simples balcões de anúncios.
Por outro lado, é importante salientar que o consumismo pode causar danos ambientais e sociais irreversíveis. É consenso entre a comunidade científica mundial que o nosso
planeta não possui recursos suficientes para sustentar a crescente demanda por matéria-prima. Não obstante, atrelar o bem-estar individual ao poder de compra faz com que o
indivíduo deposite toda a sua esperança de felicidade em mecanismos alheios ao seu controle, fato que pode vir a trazer graves transtornos psicológicos, pois é praticamente
impossível seguir todos os modismos impostos pelo mercado. Já o Natal, festa criada pelos cristãos para substituir antigos rituais pagãos relacionados ao solstício de inverno, ao
invés de promover a solidariedade entre os povos, transformou-se na maior celebração do consumismo mundial. É o sistema capitalista com sua grande capacidade de
mercantilizar todas as esferas da existência.

Reflexões sobre o carnaval

Por Francisco Fernandes Ladeira em 17/02/2015 na edição 838

O carnaval, principal manifestação popular de nosso país, é capaz de despertar os mais diversos tipos de sentimento. Segundo o antropólogo Roberto DaMatta, o carnaval é
essencialmente igualitário, pois permite uma subversão positiva da ordem social, onde ricos e pobres brincam no mesmo espaço, sem as rígidas hierarquias cotidianas. Em
contrapartida, para aqueles que odeiam a festa, a palavra carnaval é quase sinônimo de vadiagem, violência, bebedeira e promiscuidade. Conforme noticiado pela imprensa,
problemas como déficits públicos, salários atrasados de servidores e intempéries relacionadas ao abastecimento hídrico foram alguns fatores que fizeram com que muitas
prefeituras cancelassem a programação carnavalesca oficial deste ano.
Não obstante, tais acontecimentos encorajaram setores conservadores de nossa sociedade a pregarem abertamente pelo fim do carnaval. Nas redes sociais, inúmeras
postagens indicavam os prováveis benefícios de não se realizar a principal festa popular do Brasil. Em um texto com milhares de “curtidas” no Facebook, o blogueiro Luiz
Henrique de Castro afirmou odiar o carnaval, pois nessa época do ano um povo ensandecido, encharcado de álcool e drogas, toma conta das ruas das principais cidades brasileiras.
De acordo com o apresentador Danilo Gentili, do SBT, o fim do carnaval melhoraria a imagem de nosso país no exterior, valorizaria a mulher brasileira, diminuiria os números de
acidentes de trânsito e contribuiria positivamente em áreas como economia e saúde. Coincidentemente, a polêmica jornalista Rachel Sheherazade, também da emissora de Silvio
Santos, ficou nacionalmente conhecida após um comentário em que tecia várias críticas ao carnaval brasileiro. Para os segmentos conservadores, é difícil aceitar um evento em
que o papel principal cabe ao povo, e não à elite.
Entretanto, esse protagonismo popular está seriamente ameaçado. Nos últimos anos, temos presenciado um vertiginoso processo de “branqueamento” do carnaval que conta
com o total aval da mídia hegemônica. Os desfiles de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, que outrora eram momentos que levantavam a autoestima de morados das áreas
carentes do Rio de Janeiro, atualmente são mais um palco privilegiado para a divulgação das anódinas celebridades criadas pelos veículos de comunicação. Papéis de destaque,
como rainha de bateria, que anteriormente eram preenchidos por moças da própria comunidade de origem das agremiações carnavalescas, agora são ocupados por modelos e
atrizes conhecidas do grande público. É a apropriação midiática de uma tradicional manifestação popular: o carnaval carioca cada vez tem se adequado mais à chamada “sociedade
do espetáculo”. Lembrando uma irônica observação do cineasta e jornalista Olívio Petit, devido à presença cada vez menor de afrodescendentes no sambódromo, daqui a alguns
anos deverão ser criadas cotas para negros nas escolas de samba do Rio de Janeiro, como já acontece nas universidades brasileiras.
Por outro lado, o carnaval também é uma excelente oportunidade para campanhas publicitárias machistas (principalmente relacionadas a bebidas alcóolicas) e para a mídia
hegemônica reforçar antigos estereótipos libidinosos relacionados à mulher de cor. Como bem asseverou a ativista feminista Jarid Arraes, “sempre que a vinheta carnavalesca da
Globo é exibida na televisão, o Brasil reafirma sua herança racista e misógina. Não é difícil compreender onde mora o racismo do Globeleza: a Rede Globo seleciona somente
mulheres negras para que representem a sexualidade do Carnaval, que, como sabemos, está relacionada ao sexo considerado ‘promíscuo’; ou seja, ano após ano, a mulher negra é
associada a um objeto sexual descartável”.
Evidentemente, não se pretende fazer aqui uma apologia cega e incondicional do carnaval ou tampouco incentivar a paranoia “politicamente correta” pela mudança das letras
de clássicas marchinhas que abordam minorias como gays, lésbicas e negros. Relativismo cultural à parte, é preciso reconhecer que as festas carnavalescas dos dias hodiernos têm
sido canais para a propagação de músicas popularescas de péssimo nível: os famosos “hits descartáveis”. Entretanto, defender a anulação dessas comemorações é contribuir
implícita ou explicitamente para acabar com uma das únicas fontes de diversão à qual a sofrida população pobre ainda tem direito no Brasil. O cidadão comum, extremamente
explorado pelo sistema econômico vigente, trabalha duro o ano inteiro e deve ter seus momentos de catarse. Um sujeito pode apreciar ou não o carnaval (ao contrário do que dizia
Caymmi, quem não gosta de samba também pode ser bom sujeito), porém querer privar grande parcela da população do direito a “uma alegria fugaz” é uma postura
demasiadamente autoritária. Ademais, não podemos atribuir supostos aspectos negativos de nossa sociedade ao carnaval.
Quatro dias do ano não são suficientes para definir os rumos da economia, desejos sexuais são inerentes à natureza humana, embriaguez ou violência independem dos
feriados em fevereiro e o grande de número de mortes no trânsito está ligado, sobretudo, a adoção quase exclusiva do modelo rodoviário em detrimento de outras alternativas
viárias. Em suma, não nos iludamos, o discurso anticarnaval atende a uma ideologia elitista bem clara: os membros da população pobre existem exclusivamente para a reprodução
do capital, através do trabalho alienado, jamais devem utilizar suas energias para atividades improdutivas, como os “prazeres da carne”.

A cobertura do carnaval carioca na Rede Globo

Por Francisco Fernandes Ladeira em 15/02/2018 na edição 974

Ao contrário do que pensam as mentes mais conservadoras de nossa sociedade, o carnaval, longe de ser um poderoso mecanismo de alienação das massas, é uma festa
frequentemente marcada por diversos tipos de críticas sociais. Nesse sentido, podemos citar o desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro em 1988 como
típico exemplo de engajamento carnavalesco. Na ocasião do centenário da Abolição da Escravatura, as agremiações cariocas não conceberam a libertação dos escravos com um
gesto benevolente da elite branca, mas ressaltaram a resistência da população negra ao cativeiro – “Ô ô ô ô nega mina, Anastácia não se deixou escravizar” (Unidos de Vila Isabel)
– e denunciaram a pobreza vivida pelos descendentes dos escravos em comunidades carentes – “Livre do açoite da senzala. Preso na miséria da favela” (Estação Primeira
de Mangueira).
Um ano depois, a Beija-Flor de Nilópolis retratava as desigualdades sociais com o enredo “Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”. Já em 1990, a São Clemente alertava
para a crescente mercantilização do carnaval, com a exclusão da população pobre e o destaque concedido às chamadas celebridades: “É fantástico. Virou Hollywood isso aqui
(isso aqui). Luzes, câmeras e som. Mil artistas na Sapucaí”.
Neste ano, duas escolas se destacaram pelo engajamento. A partir do enredo “Com dinheiro ou seu dinheiro, eu brinco” (uma alusão a um clássico carnavalesco da década
de 1940), a Mangueira fez uma dura crítica à política de corte de recursos repassados às escolas de samba realizada pela prefeitura carioca. Já a Paraíso do Tuiuti questionou se a
escravidão realmente foi extinta no Brasil. Para tanto, a escola promoveu em seu desfile uma linha histórica que abordou desde o tráfico de escravos, iniciado no século 16, até a
atual precarização do trabalho promovida pelo governo Temer, com o desmonte da CLT e as propostas de reforma da Previdência.
Sob a aspecto midiático, foi interessante constatar como a Rede Globo, detentora exclusiva dos direitos de transmissão do carnaval carioca, repercutiu os desfiles de
Mangueira e Tuiuti, de acordo com os seus direcionamentos político-ideológicos. Enquanto a causa proposta pela verde e rosa foi apoiada pela Globo, a questão levantada pela
Tuiuti gerou um grande incômodo à emissora da família Marinho. Dois pesos, duas medidas.
Logo no início da apresentação da Mangueira, a repórter Mônica Teixeira perguntou ao carnavalesco Leandro Vieira se o enredo da escola era uma crítica ao corte de verbas
no carnaval. “Não é uma crítica somente ao corte de verbas, é uma crítica a tudo que a gestão municipal vira as costas”, respondeu Leandro.
Como se sabe, o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella é ligado à Igreja Universal, de propriedade de Edir Macedo, o dono do Grupo Record, um dos principais rivais
das Organizações Globo. Portanto, seria natural que a Globo aproveitasse o protesto (extremamente legítimo, diga-se de passagem) para atacar um de seus principais desafetos.
Por outro lado, é importante ressaltar que, ao tentar esvaziar o carnaval carioca por causa de motivações religiosas (a festa é considerada pecaminosa para alguns setores
neopentecostais), Crivella promove uma grande afronta ao caráter laico do Estado brasileiro. A reação da Mangueira veio em um dos versos de seu samba-enredo: “Eu sou
Mangueira, meu senhor, não me leve a mal Pecado é não brincar o Carnaval!”.
Em um dos primeiros carros-alegóricos da escola havia um recado direto para Crivella: uma silhueta de braços abertos coberta de plástico com a frase: “Olhai por nós, o
prefeito não sabe o que faz”. Já em uma de suas últimas alegorias, a Verde e Rosa caracterizou o prefeito carioca como Judas. “E aí o quarto carro, ‘Olhai por nós, o prefeito não
sabe o que faz’, é um carro de protesto. O carnaval sempre foi irreverente, sempre fez críticas sociais”, afirmou a apresentadora Fátima Bernardes. Para o comentarista Milton
Cunha, a Mangueira fez um desfile “corajoso”.
Se o protesto proposto pela Mangueira foi bem visto e, de alguma maneira, até incentivado pela Rede Globo, o mesmo não pôde ser dito em relação ao desfile da Paraíso do
Tuiuti, que apresentou uma crítica contundente sobre os retrocessos vividos pelo Brasil pós-impeachment. A ala “Manifestoches”, que ironizava os manifestantes/fantoches que
bateram panela pedindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff após serem manipulados pelas “mãos invisíveis” da elite e da mídia proporcionou o momento que mais
causou incômodo para a Rede Globo. Comentários extremamente comedidos e constrangidos foram tecidos pelos apresentadores da emissora. Ao ver passar os “patos amarelos”
guiados pela Fiesp, Fátima Bernardes disse apenas “Manifestoches”. “Manipulados”, completou Milton Cunha, sem, no entanto, se referir a quem esteve por trás de
tal manipulação.
O mesmo constrangimento foi visto diante da crítica ao presidente Temer, caracterizado como um “vampiro” que suga o sangue do trabalhador. “O vampirão”, enfatizou
Milton Cunha. O apresentador Alex Escobar apenas riu timidamente. Por sua vez, Fátima Bernardes teceu um comentário evasivo: “É o regime de exploração nos mais diversos
níveis”, ao se referir ao carro-alegórico “Neo-tumbeiro”. Limitando-se a constatar o óbvio, Escobar disse o que todos viam: “Tá com a faixa de presidente esse vampiro”.
“Vampiro neoliberalista”, completou Fátima. Todavia, a ex-apresentadora do Jornal Nacional não explicou o que seriam “regime de exploração nos mais diversos níveis” e
“vampiro neoliberalista”. Nenhuma menção à “crítica social”, como o apontado no desfile da Mangueira, foi feita. Tratou-se de um mal-estar apresentado pela Globo só
comparável à campanha favorável a Lula no Domingão do Faustão feita pelo então cantor Lobão, no longínquo 1989; e à leitura do direito de resposta de Brizola a um editorial
calunioso do jornal O Globo, feita por Cid Moreira, há 24 anos, em pleno Jornal Nacional.
Nos noticiários da Rede Globo a Tuiuti recebeu um espaço menor do que o dedicado às outras escolas. Já uma postagem sobre o desfile publicada na página do G1, portal da
Globo, tentava minimizar a fantasia do “Temer Vampirão”: “Componente da Paraíso do Tuiuti não confirma se referência é o presidente Michel Temer”. Só faltou mencionarem
que o presidente em questão não era Temer, mas Lula; ou então, devido à grande repercussão do desfile da Paraíso do Tuiuti, proporem o projeto “Escola de Samba Sem Partido”.
Não foi apenas na Marquês de Sapucaí que a população demonstrou o seu descontentamento com os rumos tomados pelo Estado brasileiro. Em todo o país, foram
registrados inúmeros protestos durante os festejos carnavalescos. As mentes mais conservadoras de nossa sociedade odeiam o carnaval justamente porque a festa apresenta uma
excelente oportunidade para questionar o status quo. Em última instância, é muito melhor ter o povão brincando, pulando se divertindo e também protestando durante quatro dias
do que ver a classe média verde-amarela manipulada indo às ruas para reivindicar pautas retrógradas.

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).
APÊNDICE

O último ano da década: teria a distopia vencido a utopia?


Por Francisco Fernandes Ladeira em 07/01/2020 na edição 1069
Enfim chegamos ao emblemático 2020. Duas décadas se passaram desde o também emblemático ano 2000, quando muitos consideravam que presenciaríamos o “final dos
tempos”. Lembro que minha avó gostava de repetir uma famosa e catastrófica profecia: “A 1000 chegará, de 2000 não passará”. Já para os nossos antepassados que não
acreditavam em um apocalipse prematuro, o segundo milênio seria marcado, sobretudo, por uma sociedade altamente automatizada, com os seres humanos rodeados por robôs,
algo similar ao famoso desenho Os Jetsons.
Pois bem, conforme a realidade nos tem mostrado: nem um, nem outro. O mundo não acabou ou tampouco nosso cotidiano é marcado pela completa substituição do esforço
físico do homem pelas novas tecnologias. Lembrando o título de um livro do sociólogo italiano Domenico de Masi, será que o futuro realmente chegou? Nas universidades
brasileiras, o “Future-se” chegou e não é nada bom: representa a tentativa de sucatear o ensino público para, posteriormente, privatizá-lo (o que, é claro, conta com o apoio da
grande mídia).
Muitos acreditam que, neste início de século XXI, os sonhos de um mundo melhor foram eliminados. Como já dizia a banda de hard rock Van Halen, the dream is over.
Teria a distopia vencido a utopia? Parece que nossa sociedade se transformou em um misto de vigilância constante, estilo 1984, de George Orwell, com a perda progressiva das
individualidades, como denunciado por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo.
Já a grande proximidade entre o presidente Jair Bolsonaro e pastores neopentecostais traz um enorme risco à laicidade estatal, uma das maiores conquistas republicanas no
Brasil. Estaríamos caminhando para uma ditadura religiosa, assim como em O conto da aia, de Margaret Atwood? Ou para um governo totalitário, estilo Fahrenheit 451, de Ray
Bradbury, que proíbe qualquer livro com medo de que o conhecimento possa estimular o povo a se rebelar?
No surreal Brasil deste início de 2020 (que seria cômico se não fosse trágico) o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é chefiado por uma mulher
machista. A pasta do Meio Ambiente está sob a liderança de um defensor do desmatamento. O ministro da Educação odeia professores. Temos um chanceler que acredita na teoria
da conspiração conhecida como “globalismo”. O presidente da Biblioteca Nacional associa o analfabetismo ao cantor Caetano Veloso. E o presidente da Funarte já declarou que
Elvis Presley, os Beatles e a CIA trabalharam para implementar o socialismo nos Estados Unidos. Como bem escreveu meu primo, em um grupo de WhatsApp, parece que
entramos numa realidade paralela, vivendo em um mundo bizarro.
No Oriente Médio, este ano começa com ataques estadunidenses a alvos iranianos. Na América Latina, as massas estão nas ruas protestando contra as consequências da
nefasta agenda econômica neoliberal. Na mídia hegemônica, esses protestos não têm “causas”, somente “consequências”. Destacam-se as ações dos “vândalos”, que “depredam os
patrimônios público e privado”, e são omitidas as políticas de rapina promovidas pelos grandes capitalistas internacionais em relações aos recursos dos estados sul-americanos.
Aliás, foi para colocar em prática a agenda neoliberal que ocorreram os golpes no Paraguai, em 2012, no Brasil, em 2016, e, recentemente, na Bolívia de Evo Morales.
Diante do exposto, o que se esperar do ano que fecha a segunda década do século 21? (Quem prestou atenção às aulas de História sabe que essa década termina em 2020, e
não no ano passado). Quais são as perspectivas para este ano que se inicia e para os anos vindouros?
Não há como cairmos em um otimismo ingênuo. Cazuza ainda soa atual quando cantava: “meus inimigos estão no poder”. Em uma época de crise do capital, a
extrema-direita avança a passos largos no Brasil e no mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, casos de xenofobia são cada vez mais frequentes. O mesmo processo de
globalização que apregoa a livre circulação de serviços e mercadorias apresenta várias barreiras para a locomoção de pessoas entre as fronteiras nacionais.
No Brasil da pós-verdade, o grupo de WhatsApp é a nova caverna de Platão. Cada um tem suas convicções, constrói suas próprias “verdades” e isso é suficiente. A Terra é
plana. O nazismo é de esquerda. O ator Leonardo DiCaprio está financiando as queimadas na Amazônia. O kit gay foi distribuído em escolas na época dos governos petistas. Não
houve ditadura militar em nosso país. Ursal e Foro de São Paulo querem implantar o comunismo na América Latina. A teoria da evolução é “cientificismo”. E a “ideologia de
gênero” é ensinada em sala de aula por professores adeptos do “marxismo cultural”.
Neste início de século, a internet tem abalado as estruturas da grande mídia. Conforme a realidade nos tem demonstrado, as audiências das principais emissoras brasileiras
caem vertiginosamente a cada ano. Somente em 2019, a Rede Globo demitiu mais de cem funcionários. Não por acaso, há alguns meses, no artigo intitulado “O jogo dos juros, o
impacto na economia e na Globo”, o jornalista Luís Nassif sentenciou que o Grupo Globo – devido à concorrência de plataformas digitais e pela queda de suas fontes de
rendimentos – corre o sério risco de se transformar, em curto/médio prazo, em um mero provedor de conteúdo ou ser vendido para um dos gigantes da mídia global. Nessa mesma
linha, as tiragens dos principais jornais e revistas do país têm decrescido substancialmente, a ponto de muitos periódicos terem abandonado suas versões impressas.
No entanto, apesar de não sermos mais dependentes dos grandes grupos de comunicação para obter notícias sobre os principais acontecimentos nacionais e internacionais,
por que as ideias conservadoras e reacionárias estão mais fortes do que nunca? O que explica esse (aparente) paradoxo?
É simples: não adianta democratizar a difusão e o acesso a informações se importantes instituições socializadoras como a família, a religião e a escola, ainda são norteadas
pela manutenção do status quo. Em suma: a democratização e o acesso à divulgação de informações serão inócuos caso a sociedade, de maneira geral, continue sendo dominada
por pensamentos conservadores.
Para não fechar este artigo em um tom pessimista e, como gostam de dizer os supersticiosos, para não atrair mau agouro para essa jornada que se inicia, só me resta desejar
um feliz ano novo a todos os leitores do Observatório da Imprensa e que possamos ter força e disposição para lutar contra todas as injustiças sociais e retrocessos civilizacionais
que nos assolam nesses tempos difíceis.

Notas de Rodapé

1 É importante frisar que o Observatório da Imprensa não produz notícias; seu objetivo é analisar o desempenho da mídia brasileira, a partir de textos
publicados semanalmente com diferentes perspectivas e opiniões sobre assuntos que estão em destaque na imprensa.
2 Na civilização ocidental, a contagem dos anos tem como referência o nascimento de Jesus Cristo, considerado como o ano 1 d.C. (depois de Cristo),
sendo que os anos anteriores ao nascimento de Jesus, em ordem decrescente, começam no ano 1 a.C (antes de Cristo). Portanto, como não
houve “ano 0”, as décadas, séculos e milênios se iniciam com um ano terminado em “1” e se encerram com um ano terminado em “0”.
3 FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou
com os explorados. Leia, São Paulo, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5 “Haters” é uma palavra de origem inglesa que, traduzindo para a língua portuguesa, significaria algo como “os que odeiam” ou “odiadores”. Na
internet, este termo é utilizado para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou fazem críticas sem muito critério.
6 HERÁCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980.
7 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
8 G1. Mais da metade da população mundial usa internet, aponta ONU, Economia, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-usa-internet-aponta-onu.ghtml>. Acesso
em: 8 set. 2019.
9 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
10 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
11 Este artigo foi utilizado no vestibular 2017 do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), como referência para as questões de 21 a 25 da prova de
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.vestibular.ita.br/provas/portugues_2017.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
12 O título deste artigo foi inspirado no livro quase homônimo do grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, Sobre a televisão, lançado em 1996.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
14 Esse boicote à telenovela Babilônia foi devido ao fato de a trama trazer em seu enredo um casal lésbico.
15 Redes sociais como WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, serviços como envio e recebimento de e-mails, navegação por hipertextos disponíveis,
trocas de arquivos, acesso a vídeos online e matrículas em cursos superiores e de pós-graduação lato sensu na modalidade EAD (Ensino a
Distância), além da possibilidade de conhecer novas pessoas através de chats e aplicativos, são alguns dos fatores que tornam a internet um
veículo de comunicação bastante atrativo.
16 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-mundo: brave modern world. Petrópolis: Vozes,1995.
18 GOMES, Helton Simões. Brasil tem 116 milhões de pessoas conectadas à internet, diz IBGE, O Globo, Economia, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de
2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 9 mar.
2019.
19 POPP, Rafael Battaglia. O celular está destruindo nossa memória, Ciência, Superinteressante, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/ciencia/o-celular-esta-destruindo-nossa-memoria/>. Acesso em: 10 mar. 2019.
20 Ainda no tocante às dimensões negativas da Internet, destacam-se alguns conteúdos presentes na chamada “deep web” (também conhecida
por “deepnet” ou “undernet”), que constitui a parte da web que não é indexada pelos mecanismos de buscas como o Google, Yahoo e Bing;
ficando, portanto, oculta ao grande público. Tratam-se de diversas redes de sites distintas que não se comunicam. Na “deep web” é possível
encontrar redes de pedofilia, traficantes de órgãos e de seres humanos, sites de partidos de extrema-direita e apologias a práticas racistas, entre
outros aspectos obscuros da personalidade humana.
21 GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet. EDUSC e EDUFU, 2005.
22 SANTAELLA, Lúcia. In: GATTI, Daniel Couto. Sociedade informacional e an/alfabetismo digital: relações entre comunicação, computação e internet.
EDUSC e EDUFU, 2005. p. 11-14.
23 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
24 ABRAMS, Jermiah; ZWEIG, Connie (Orgs). Ao encontro da sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix,
1991.
25 Nos estudos biológicos, o termo “atavismo” se refere à uma reminiscência evolutiva, com o reaparecimento de uma certa característica no
organismo, depois de várias gerações de ausência. Em outros termos, “atavismo” corresponde a um tipo de “retrocesso” no processo da
evolução de uma espécie. Transpondo esse conceito para a história humana, podemos afirmar que a segunda década do século XXI presenciou
inúmeros retrocessos, ou um “atavismo social”, pois determinadas práticas, ideias e preconceitos que pareciam já ter sido superados há tempos
ressurgiram com grade intensidade e angariaram um grande número de adeptos.
26 MENDES, Gilmar. In: Supremo derruba censura a gibi com beijo gay na Bienal do livro, Brasil. O Tempo, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2019.
27 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
28 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2019.
29 ANÁLISE POLÍTICA COM RUI COSTA PIMENTA. O caos bolsonarista. Tv 247, 16 de abril de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kc1oCAu9HX4>. Acesso em: 21 abr. 2019.
30 PERASSO, Valeria. Brasileiros se veem menos tolerantes e mais divididos que há dez anos, diz pesquisa, BBC News. BBC Brasil, 23 de abril de
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43840130>. Acesso em: 21 abr. 2018.
31 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
32 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
33 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
34 “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17 jun. 05.
35 BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
36 ALENCAR, Jakson Ferreira de. A ditadura continuada: fatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma Rousseff. São Paulo: Paulus,
2012.
37 Este artigo foi citado, na íntegra, nos anexos da dissertação de mestrado intitulada “Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim
Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo”, defendida por Cristina Paloschi Uchôa de Oliveira, em 2016, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Professor Doutor Luciano Victor Barros Maluly. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-09032017-102846/pt-br.php>. Acesso em: 8 mar. 2019.
38 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
39 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants, Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
40 LADEIRA, Francisco Fernandes; LEÃO, Vicente de Paula. A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas
pedagógicas e imaginários discentes. Curitiba: CRV, 2018.
41 CHARVIN, Robert. La mal information sur la vie internationale: mensonges, manipulations, silences des médias dominants. Investig’action, France,
11 mar. 2019. Disponível em:
<https://www.investigaction.net/fr/la-mal-information-sur-la-vie-internationale-mensonges-manipulations-silences-des-medias-dominants/>.
Acesso em: 20 set. 2019.
42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
43 BOFF, Leonardo. Inventário da violência da ditadura cívico-militar-empresarial a partir de 1964: F. Altmayer Jr. leonardoBOFF.com, 26 mar. 2019.
Disponível em:
<https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/26/inventario-da-violencia-da-ditadura-civico-militar-empresarial-a-partir-de-1964-f-altmayer-jr/>.
Acesso em: 6 abr. 2019.
44 Em seu texto “Os acontecimentos midiáticos: o sentido de ocasião”, o sociólogo estadunidense Elihu Katz, descreve seis características básicas
de um “acontecimento midiático” 1) transmissão ao vivo; 2) acontecimento pré-planejado; 3) enquadramento no tempo e no espaço; 4) colocar
em destaque um personagem; 5) grande significado dramático e ritualístico; e 6) se transformar, por força das normas sociais, em algo
obrigatório de ser assistido ou de receber participação.
45 BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
46 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
47 Esse trecho se refere ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
48 BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996.
49 DICIO: Dicionário Online de Português. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/entretenimento/>. Acesso em: 7 nov.
2018.
50 EDUCALINGO. Entretenimento [on-line]. Disponível em: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/entretenimento>. Acesso em: 7 nov. 2018.
51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
52 Um trecho desse artigo foi citado no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (2016), em uma questão da prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. (<http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2016/CAD_ENEM_2016_DIA_2_05_AMARELO.pdf>). Já a dissertação
intitulada A influência do ENEM no processo de formação de leitores no ensino médio: uma proposta funcionalista para o ensino de leitura, defendida por
Ângela Rafael de Souza Silva, junto a Universidade Federal de Goiás (UFG), utilizou o artigo Reflexões sobre o consumismo como texto de estudo
em sua pesquisa em campo (<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10177>).

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