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Resumo
Neste trabalho analisamos a adoção dos critérios da Nova Gestão Pública no campo da
educação adotando o pressuposto de que as estratégias de gestão adotadas nos sistemas
de ensino no Brasil estão ampliando a burocratização, os meios de controle e a
responsabilização. Analisamos, num primeiro momento, a instituição do processo de
cooperação sob o capital e a assunção da heterogestão marcada pela submissão do
trabalhador ao ritmo da máquina e ao quadro administrativo burocrático. Com base nos
pressupostos de Weber, de que a burocracia pode ser representada por mecanismos de
controle e poder, procuramos demonstrar o processo de racionalização e de
burocratização crescente no desenvolvimento da acumulação do capital e o papel que a
teoria das organizações desempenhou. Nas organizações os controles diretos e
hierárquicos evoluíram para novas estratégias de responsabilização e manipulação da
subjetividade. Demonstramos como que a propalada tese da desburocratização, advogada
pelos defensores nova gestão pública, ao contrário, fizeram ampliar as formas de
dominação burocrática. No campo da educação analisamos as confluências das
proposições dos reformadores empresariais com os fundamentos da nova gestão pública
e como os programas e projetos concebidos a partir das parcerias com o estado
apresentam elementos do que estamos denominando de hiperburocratização. Analisamos
o processo de consolidação do gerencialismo e da hiperburocratização que se processou
a partir do golpe institucional de 2016 e do contexto da pandemia da Covid 19 no Brasil. A Base
Nacional Comum Curricular - BNCC, implementada a partir de 2017, se constitui como elemento
central das reformas empresariais da educação e institui uma “cultura de auditoria” (Fisher,
2021) baseada em uma concepção de qualidade baseada em indicadores, metas, rankeamentos,
avaliação externa, testes estandardizados, padronização curricular e responsabilização (Lima,
2011). Ao final, apresentamos alguns dos efeitos da hiperburocratização e dos processos de
centralização dos controles, de intensificação e precariedade do trabalho disparados com o
emprego das novas tecnologias na gestão e no ensino.
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Cientista Social e professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Lider do Grupo de estudos trabalho, saúde e subjetividade (NETSS- UNICAMP).
cooperação. Por cooperação entende-se a forma de trabalho em que “muitos trabalham
juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de
produção diferente, mas conexos” (MARX, 1984, p. 374). Ela pressupõe a economia dos
meios de produção através da força produtiva coletiva. Marx segue dizendo que a
cooperação pode ser simples quando “os trabalhadores se completam mutuamente
fazendo a mesma tarefa ou tarefas da mesma espécie” (MARX, 1984, p. 376). Esse tipo
de cooperação ocorria na antiguidade e na sociedade feudal e estava baseada em laços de
domínio e servidão.
A cooperação capitalista, entretanto, pressupõe o trabalhador como assalariado
que vende sua força de trabalho ao capital. A produção capitalista tem como ponto de
partida o emprego simultâneo de muitos trabalhadores no mesmo processo de trabalho.
A apropriação, por parte do capitalista, da força coletiva do trabalho tem como propósito
elevar a produtividade do capital. O trabalhador vende sua força-de-trabalho
individualmente ao capitalista. Já a força coletiva, absorvida no processo produtivo, é
apropriada gratuitamente pelo capitalista. Portanto, a cooperação capitalista é forçada,
pois, quanto mais se eleva a cooperação mais acentuado torna-se o controle do capital
sobre o trabalho coletivo, o que pressupõe a subordinação do trabalhador ao ritmo da
máquina e ao aparato administrativo.
Por heterogestão, portanto, compreendemos o processo que promove a
subordinação do trabalhador ao ritmo da máquina e a subordinação a autoridade dentro
da fábrica que aparece representada pelo quadro administrativo. Trata-se de um processo
histórico que aprofundou a alienação, no qual foi se constituindo uma maior concentração
das decisões numa cúpula administrativa que engendrou a separação do trabalho manual
do trabalho intelectual e que, dado os controles e métodos empregados teve como
resultante um maior envolvimento do trabalhador com o seu trabalho. Nas organizações
heterogeridas a submissão do trabalhador é institucionalizada na forma da autoridade
“ a submissão do trabalhador ao ritmo da máquina implica maior
interdependência na cooperação em normas rígidas de comportamento.
Privado de seu saber-fazer, o trabalhador submete-se à regulação social
da máquina, o que significa uma regulamentação social mais rígida
imposta pelo aparato burocrático”. (MOTTA, 1986, 65)
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Conceito de grande Outro foi extraído pelo autor da obra de Jacques Lacan. O grande Outro é definido
pela sociedade, pela cultura e pelas normas que devem ser interiorizadas e fazem parte da constituição do
sujeito.
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No esquema de autonomia controlada, a colegialidade regida pelos princípios de gestão democrática é
convertida num tipo de participacionismo restrito ao envolvimento para o cumprimento de metas
heterônomas.
padrões, etc.); os processos de centralização informática e de taylorismo
on line, com a difusão de novas categorias mentais reproduzidas sem
disputa e de conceitos mais ou menos naturalizados.”
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A reorganização das carreiras dos professores em trilhas meritocráticas já ocorre em alguns estados da
federação como o Rio Grande do Sul e São Paulo.
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Isso já ocorre no estado do Ceará
produção do valor, elemento que já constava das proposições de Taylor e sua
administração científica. Já as tecnologias, cumprem a função de elevar a produtividade
do capital e da força de trabalho para produzir uma maior mais-valia relativa. Essas
tecnologias fixam novos tipos de controles e monitoramento das atividades para baixar
os custos da produção.
No setor público educacional, tal como nas empresas privadas, as novas
tecnologias têm servido para reduzir custos e enxugar estruturas administrativas. As
tecnologias, sobretudo as de informática, tem cumprido o papel de reter dados
burocráticos alimentados pelas unidades escolares o que, combinado ao processo de
redução do quadro de pessoal administrativo, tem resultado em maior intensificação do
trabalho. As compras online, prestação de contas, diário eletrônico, fluxo escolar, notas
e frequência são exemplos informações que alimentam os sistemas centralizados de
informação e gestão. São exemplos disso, os sistemas integrados de gestão e as
secretarias digitais implementadas nos sistemas educacionais brasileiros e universidades,
essas ferramentas de gestão se caracterizam pela transferência de tarefas administrativas
(atividade meio) para o pessoal docente e pela amplificação das tarefas para as equipes
que atuam na gestão.
Segundo Dal Rosso (2008, p.42) o trabalho intensificado é a condição pela qual
requer-se mais “esforço físico, intelectual e emocional de quem trabalha com o objetivo
de produzir mais resultados, consideradas constantes a jornada, a força de trabalho
empregada e as condições técnicas”. Na essência da noção de trabalho intensificado,
cunhada pelo autor, está a noção de que todo trabalho envolve dispêndio (qualitativo e
quantitativo) e energias (físicas, psíquicas e emocionais) do trabalhador ou dos coletivos
de trabalhadores.
A pandemia da Covid 19 abriu uma janela de oportunidades para disparar o
emprego das “novas tecnologias” na educação. Grandes grupos do vale do silício nos
EUA, entre elas a For Educacion, além de vários grupos privados, aproveitaram o ensejo
para oferecer um cardápio de serviços para o setor da educação. No Brasil, foram
assinados diversos contratos emergenciais entre os governos (estaduais e municipais) e
as empresas para que fossem disponibilizadas para professores e alunos plataformas de
EaD, Central de Mídias, consultorias, aulas em TV aberta, apostilas e demais materiais
impressos, modalidades de produtos que figuram entre os mais expressivos.
O fato é que muitas dessas ferramentas permaneceram como sendo legados da
pandemia para a educação, uma vez que já foram incorporadas nas redes de ensino
público de todo país. Fazem parte desse legado, a flexibilização e normatização do ensino
híbrido e da educação à distância na educação básica, em pleno contexto da pandemia.
Sobre isso vale, o destaque ao fato de que essas tecnologias digitais aplicadas ao ensino
seguem sendo implementadas de forma combinada à Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), bem como, para suas derivações voltadas para a formação de professores e de
diretores de escola.
Interferir nas mediações e no processo de ensino e aprendizagem é um desejo dos
que advogam a favor do gerencialismo e das teses empresariais para a educação. Devido
ao seu alcance, essas novas tecnologias aplicadas ao ensino podem vir a facilitar o
enquadramento do trabalho do professor e instaurar uma espécie de “panóptico
pedagógico”, ou ainda, um sistema de vigilância constante sobre as aulas. Entendemos
tratar-se de um recuo a um tecnicismo de novo tipo, ou hipertecnicismo baseado nessas
“máquinas de ensinar”, as quais devem induzir uma maior fragmentação e
desqualificação do trabalho docente que podem ser caracterizadas por um
aprofundamento da separação entre concepção e execução, padronização curricular e a
simplificação das aulas, reduzidas, cada vez mais, ao estrito cumprimento do programa.
A isso se combina o fetiche dos artefatos do uso de digitais na educação como os
computadores, tablets e celulares, como novas ferramentas de ensino.
O que acontece na EaD é um tipo ideal de fragmentação e desqualificação. No
ensino superior privado, onde a EaD domina, a palavra “professor” chega a desaparecer.
A Ead pode ser considerada como o cemitério da docência. Na EaD encontramos
elaboradores de conteúdo, atores, tutores e por aí vai. Um trabalhador prepara o conteúdo,
outro grava, um outro elabora a avaliação e um outro faz a correção. Há uma grande
disparidade entre o grande crescimento das matrículas nas instituições de ensino superior
privadas em relação ao baixo crescimento no número de trabalhadores docentes nessas
instituições, onde o EaD tem cada vez mais importância. O caso extremo é o da Laureate6,
que vem utilizando robôs para a correção das atividades, sem ao menos informar os alunos
desse mecanismo, num caso mais claro e absurdo de fraude, inclusive para os padrões da
educação mercantilizada.
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https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/depois-de-colocar-robos-para-ensino-laureate-demite-
120-professores.shtml
Essa empolgação com os recursos tecnológicos está, em grande medida, associada
à ideologia da educação 4.07 para atender as novas demandas do capital e a indústria 4.0.
No entanto, apesar dessa ideologia discursiva, emprego das novas tecnologias digitais
parecem estar mais ligados aos interesses dos reformadores empresariais, empenhados
em aprofundar reformas educacionais na direção das avaliações censitárias, políticas de
responsabilização e de reconfiguração da profissão docente centrada em critérios
meritocráticos e de desempenho por metas, para os quais os controles digitais são fulcrais.
Esse gerencialismo vem ganhando novos contornos com a implementação de plataformas
de ensino a distância, centro de mídias e demais recursos, que podem servir para que
sejam coletados todos os tipos de dados e fixados novos controles sobre o trabalho dos
professores que, como já apontamos, permitirão sua maior exposição, inclusive sobre o
seu trabalho em sala de aula.
Em diálogo com Saviani (2008), a utilização dessas “máquinas de ensinar”
expressa, de certa maneira, um recuo a pedagogia tecnicista descrita por ele. Essa
concepção pedagógica se caracteriza pela submissão do professor e dos alunos aos
ditames dos métodos e técnicas de ensino, transformando-os em executores, ou seja, os
dois são colocados em uma “posição secundária” e submetidos a uma crescente
“burocratização”. (SAVIANI, 2008, p. 13-14)
Os recursos tecnológicos nos servem como apoio nas aulas dentro da escola,
portanto, em um sentido podem ser considerados como aliados do trabalho docente. No
entanto, na esteira da crescente mercadorização do ensino, se torna um imperativo
compreendermos seus múltiplos efeitos e as formas de subsunção do trabalho (Marx,
1986) e de precariedade decorrentes de sua aplicação na gestão dos sistemas de ensino e
nas escolas.
Os estudos da sociologia e da economia do trabalho tem apontado que a
precariedade do trabalho e a precarização8, decorrente do emprego de novas tecnologias,
tem se expressado de maneira mais aguda no trabalho regido por plataformas e de controle
por algoritmo, cujos exemplos mais emblemáticos são o do trabalho dos entregadores
(Cant, 2021) e dos motoristas de aplicativo (Abílio,2020). No entanto, já é possível
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Educação 4.0 surge como um novo conceito de ensino cujo principal foco é transformar a educação por
meio de tecnologias avançadas e automação.
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A precariedade do trabalho pode ser definida como resultado de um processo de desvalorização de
determinadas ocupações numa determinada hierarquia social para níveis inferiores insatisfatórios de
redistribuição material simbólica. No caso dos professores, essa precariedade se expressa no processo
crescente de destituição que culmina na maior precarização do trabalho
encontrar diversos elementos característicos desse tipo gerenciamento automatizado nas
plataformas de Ead, nos centros de mídia que hoje estão sendo empregados nos sistemas
e nas instituições educacionais de todos os níveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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e novas formas de controle do trabalho. Novos estudos. CEBRAP.SÃO PAULO. V39, n.
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Nova - Revista de Cultura Política, n°.45, 1997.
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