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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE ECONOMIA

GABARITO DA PRIMEIRA AVALIAÇÃO DE PENSAMENTO ECONÔMICO III

Professor: Sávio Freitas Paulo

1. O hedonismo é um elemento fundamental da filosofia utilitarista. Este preceito moral está


presente nas obras de muitos teóricos defensores da ideia de que o valor é determinado pelo
princípio da utilidade. Dito isso, em um primeiro momento, explique como a adoção de
postulados hedonistas no interior da tradição utilitarista é necessária para sustentar a ideia de
que o ser humano se comporta naturalmente como um ser racionalizador e calculista. Discuta
também como essa concepção hedonista sobre a natureza humana adquire uma orientação
ideológica compatível com a dinâmica da acumulação capitalista nas teses dos autores
utilitaristas.

Jeremy Bentham e John Stuart Mill foram os mais conhecidos propagadores da teoria
utilitarista antes do período da “revolução marginalista”. Ambos são responsáveis por casar a
antiquíssima filosofia utilitarista com a teoria do valor-utilidade. A filosofia utilitarista aparece
ainda na Idade Média. Ela partia da ideia de que cada indivíduo é um perseguidor tenaz da
própria felicidade. Nos autores utilitaristas, felicidade e utilidade terão o mesmo sentido. Na
formulação original, utilidade quer dizer obtenção de sensações, ou seja, o propósito da vida é
obter sensações prazerosas, algo que se liga diretamente com a ética epicurista/hedonista –
doutrinas filosóficas que defendem a busca pelo prazer como objetivo da vida, de realização
humana. A teoria do valor-utilidade é ligeiramente diferente. Trata-se de uma teoria sobre as
razões pelas quais nos apropriamos da vida material. Por que nos apropriamos de determinados
objetos e não de outros? Por que consumimos alguns objetos e não outros? A teoria do valor-
utilidade afirma que os objetos materiais são receptáculos da felicidade. Podem, portanto,
causar prazeres e dores. Quando consumimos algo, tragamos aquele prazer, aquela felicidade.
Os utilitaristas nos dizem que estimamos (valoramos) objetos por sua capacidade de
proporcionar prazer, felicidade.
Nesse sentido, ao imputar o caráter hedonista como fundamento da natureza humana,
na sociedade capitalista os seres humanos seriam racionais e calculariam cada acréscimo de dor
ou de prazer que derivariam de suas ações e escolhas sobre quais objetos consumir. Se os
objetos são portadores de características que podem gerar sensações prazerosas, faz sentido
acumular e buscar incessantemente aumentar a quantidade de bens que temos à disposição, o
que corrobora a ideia de um ímpeto ao consumo, de um consumismo desenfreado
correspondente à própria dinâmica da acumulação capitalista.

2. Jeremy Bentham apresenta um aparato metodológico restrito como sendo adequado para medir
uma soma de prazer ou de dor decorrente do consumo de um bem ou do efeito de uma ação
moral. Para ele, o valor de algo deveria ser medido levando em consideração: (i) a sua
intensidade; (ii) a sua duração; (iii) a sua certeza ou incerteza; (iv) a sua proximidade no tempo
ou longinquidade; (v) a sua fecundidade; (vi) a sua pureza; (vii) a sua extensão. Sabendo disso,
imagine uma mercadoria qualquer (qualquer tipo de bem físico/material ou um serviço) e
argumente quais dos itens mencionados precisariam ser levados em conta e quais poderiam ser
descartados na estimação do valor da mercadoria selecionada, considerando a natureza do bem
escolhido e o significado de cada determinante utilizado para valorá-lo.
Como forma de valorar um bem, Bentham oferece o aparato categorial descrito acima.
Tomemos como exemplo uma garrafa de vinho.
i. O quão intenso é o sabor do vinho, seu teor alcoólico, suas propriedades de sabor, acidez
etc. serão levadas em conta no cálculo da utilidade gerada por esse bem;
ii. A duração aqui se refere mais especificamente ao aspecto quantitativo, quanto esse
vinho irá durar (não em termos de validade, uma vez que vinhos não costumar
“vencer”). Um vinho de um litro, será mais valioso que um de 500ml, por exemplo, pois
certamente demorará mais para “acabar”;
iii. Existe chance desse vinho não corresponder às minhas expectativas? Se eu estou
testando uma marca nova, pode ser que esteja disposto a pagar menos, pois há um grau
de incerteza embutido no cálculo que irei realizar.
iv. Como se trata de uma bebida que estou disposto a consumir agora, desde que não haja
restrições (por exemplo, esse vinho só serve para ser consumido depois de 10 anos
guardado), é um item que pode ser descartado nessa valoração;
v. A fecundidade pode ser levada em conta, uma vez que além do prazer gerado pelo sabor
do vinho, ao harmoniza-lo com algum prato específico, por exemplo, pode-se obter
unidades adicionais de utilidade;
vi. No caso de ser um vinho de baixa qualidade, existem chances de eu ter efeitos colaterais
adversos (dor de cabeça, ressaca etc.), sendo assim a pureza do vinho deve ser levada
em conta;
vii. Esse é um vinho que eu consigo beber sozinho ou que também pode ser compartilhado?
Se mais pessoas podem usufruir dessa bebida, faz sentido atribuir um valor maior do
que se ela só atendesse às minhas vontades individuais.

3. A partir da obra A teoria da economia política, de William Stanley Jevons, explique o


significado do grau de utilidade e sua diferença em relação à utilidade total (em termos teóricos
e gráficos). Além disso, discuta como o grau de utilidade se relaciona com a lei da saciedade e
a lei da variedade, abordadas no texto do autor mencionado.

O grau de utilidade – denominado como utilidade marginal pelos teóricos marginalistas


subsequentes –, se refere, na teoria de Jevons, ao acréscimo de utilidade gerado pelo consumo
de uma unidade a mais de um bem. A utilidade total, por sua vez se refere a toda a utilidade que
o consumo de determinada mercadoria pode proporcionar, isto é, o somatório de utilidades que
cada unidade consumida desse tipo de bem adiciona. Jevons argumenta que o grau de utilidade
gerado por cada unidade adicional de um bem consumido diminuiria progressivamente, ou seja,
que cada unidade extra de um bem acrescentaria utilidade inferior à obtida no consumo da
unidade anterior. Isso demonstra que ficamos saciados à medida em que temos acesso a
quantidades maiores de um mesmo bem, sendo esta a lei da saciedade. A lei da saciedade se
vincula com a lei da variedade. Ela nos diz que se ficamos saciados com um determinado bem,
só podemos obter mais utilidade expandindo nossa cesta de consumo, ou seja, consumindo bens
diversos: quanto maior a variedade, mais utilidade.
Graficamente, tomando o exemplo de barras de chocolate, podemos perceber que a
utilidade total representa a soma das utilidades geradas no consumo de cada uma das barras,
que, quanto mais consumidas, agregam cada vez menos utilidade. Por isso, ao plotar o gráfico
da utilidade marginal, vemos que se trata de um curva decrescente, uma vez que cada barra de
chocolate consumida agrega menos utilidade à utilidade total.
4. Leon Walras, em seu Compêndio dos elementos de economia política pura, distingue a ciência
natural (pura), a arte (ciência aplicada) e a ciência moral. Sabendo disso: i) justifique porque a
essência da economia, segundo o autor, deveria ser compreendida a partir do prisma
metodológico da ciência natural pura, sendo, portanto, um equívoco tratar o objeto da
economia pela ótica da ciência moral pura; ii) discuta como a recusa de Walras pelas questões
morais está vinculada com a defesa ideológica do capitalismo e do livre-mercado; iii) por fim,
argumente porque a proposta de Walras sobre um ajuste automático de preços e quantidades
em todos os mercados, realizado com um auxílio de um suposto “leiloeiro”, entra em
contradição com a própria visão de laissez-faire defendida pelo autor.

Walras estabelece que os efeitos das forças naturais são o objeto de um estudo intitulado
ciência natural pura ou a ciência propriamente dita. Os efeitos da vontade humana, por sua vez,
são objeto de um estudo intitulado ciência moral pura ou História. Neste sentido, ao reconhecer
a existência de um naturalismo nas forças econômicas, isto é, ao determinar que as categorias
econômicas são categorias referentes a coisas e não a pessoas, categorias determinadas
independentemente das ações humanas, o estudo científico da economia (excluindo, certamente
a economia como arte e como moral), deveria ser realizado pelo prisma metodológico da ciência
natural pura.
O autor determina que o estudo puro da economia consiste em observar, expor e explicar
determinações naturais que surgem da esfera econômica: as verdades econômicas. Dessa
análise são excluídas tanto às aplicações (próprias da arte), como os juízos de valor (próprios
da moral). Assim, o mecanismo de livre-mercado é considerado por ele como uma força que
está fora do controle dos seres humanos. A sociedade, por sua vez, teria caminhado
automaticamente ao estado de coisas presente de forma natural. Por se tratar de um
desenvolvimento histórico objetivo, não caberia ao cientista econômico julgá-lo como ruim ou
bom, aspecto que só faz sentido para uma ciência moral. O capitalismo, portanto, por ser uma
forma de organização que naturalmente evoluiu e criou instituições específicas para seu
funcionamento não poderia ser condenado ou posto à prova: naturalmente chegamos nesse
estado de coisas e basta aos economistas compreender de forma técnica (pura, verdadeira,
natural), as forças que regem a realidade social.
A teoria do equilíbrio geral de Walras não passa de um sistema de equações simultâneas
e foi produzida para demonstrar que com plena informação se atinge o equilíbrio estável e a
equalização justa da economia. Esse argumento pretende justificar as virtudes do livre mercado.
O ajustamento automático, para Walras, aconteceria antes da troca, antes do funcionamento do
mercado. O sistema não tem tempo, é estático. O vetor de preço de equilíbrio deve ser
encontrado antes da troca. Esse ajustamento só poderia ser feito pela figura do que ficou
conhecido como “leiloeiro walrasiano”. O leiloeiro walrasiano é quem permitiria que o
ajustamento ocorresse. Trata-se de um mecanismo de tateamento, tentativa e erro. O leiloeiro
abstrato, conhecendo as dotações dos fatores e as funções de oferta e demanda, arrisca um
primeiro vetor de preços, informa aos participantes dos mercados, que infromam como
reagiriam em suas compras e vendas, revelando isso, ele testaria outro vetor de preços, e assim
sucessivamente, até que os participantes do mercado fossem ao mercado e efetuassem as trocas
de forma equilibrada, uma vez que foram previamente planejadas. Contraditoriamente, Walras
tinha apenas duas escolhas: ou o leiloeiro seria onisciente (isto é, seria Deus), e saberia, de
antemão, qual seria o conjunto de preços de equilíbrio, ou teria de ser uma espécie de órgão de
planejamento central socialista que definiria os preços de equilíbrio através de uma complexa
análise das demandas e ofertas. Apesar de sua aversão ao socialismo, Walras, sem querer,
propôs uma solução pra o modelo de equilíbrio que só funcionaria através de um órgão de
planejamento, fora da esfera de ação individual. O que contradiz explicitamente a premissa de
livre-mercado.

5. Seguindo as orientações de Alfred Marshall, apresente teórica e graficamente a forma como o


equilíbrio entre oferta e demanda seria alcançado em um mercado. Para isso, considere uma
situação inicial de um mercado específico em que o preço de demanda de um bem é menor que
o preço de oferta (custo) deste mesmo bem. Discuta os mecanismos do mercado que alterarão
preços e quantidades a partir da situação mencionada e argumente de que forma o equilíbrio se
estabeleceria.

p
D
S
ps’

pe
pd’

qe qs’ q

Para Marshall o equilíbrio em um mercado é alcançado quando preços e quantidades


de oferta e demanda estão sincronizados, isto é, quando tanto os consumidores como os
produtores não têm motivos para alterar seus padrões de consumo e de produção,
respectivamente, pois já estariam alocando seus recursos eficientemente.
Uma situação em que o preço de demanda está abaixo do custo de produção (preço de
oferta), nos diz que o mercado está abarrotado de mercadorias dessa indústria, sendo que, por
esse motivo, os consumidores estão dispostos a pagar pouco por esse bem, pois há itens em
abundância. Nesse sentido, os ofertantes, percebendo que suas mercadorias não estão sendo
vendidas nem mesmo ao preço em que foram produzidas, pois realizaram uma superprodução,
contrairiam a produção, fazendo a quantidade ofertada deste bem recuar. Essa atitude por parte
dos empresários é responsável por elevar o preço de demanda do item. Esse ajuste seria
responsável por fazer preço e a quantidade neste mercado se equilibrarem.

6. Explique cada um dos elementos das teorias utilitaristas que estão listados abaixo. Para cada
um dos itens, destaque as semelhanças e diferenças (quando houver) da abordagem realizada
pelos autores utilitaristas clássicos e pelos teóricos marginalistas:
• Concepção atomista sobre a sociedade;
• Informação e competição perfeitas;
• Utilidade expressa em termos cardinais;
• Matemática como método adequado à análise da ciência econômica.

i. A concepção atomista da sociedade (ou atomismo social) é uma concepção teórica sobre
a sociedade (ontologia) que considera que, no plano epistemológico, a sociedade deve ser
analisada pelo individualismo metodológico. Trata-se de uma concepção segundo a qual
o estudo da sociedade deve necessariamente partir do estudo da ação individual. Ela nos
diz que só faz sentido estudar a sociedade a partir do indivíduo, já que o corpo social não
é nada mais que um mero somatório das ações dos indivíduos. Nesta concepção não se
considera a existência de agrupamentos sociais, como as classes, por exemplo. De
Bentham até os dias atuais, esse é um pressuposto fundamental de todas as teorias
utilitaristas.
ii. A informação perfeita é outro pressuposto do plano metodológico desta tradição, que nos
diz que, em condições ideais, todos os indivíduos (compradores e vendedores) possuem
informações atualizadas e plenamente disponíveis sobre os preços de mercado de todas
as indústrias existentes. Nesse sentido, não existe assimetria de informação, o que faz
com que as escolhas feitas pelos consumidores sejam bem-comportadas. A competição
perfeita é outra premissa adotada por todos os utilitaristas que discutem a formação dos
preços de equilíbrio. Ela nos diz que, em condições ideais, todas as empresas possuem
um tamanho parecido (são firmas ideais), de modo que nenhuma tem poder de monopólio
no mercado, o que faz dos ofertantes price takers, ou seja, eles não têm poder de
estabelecer preços.
iii. A utilidade, no utilitarismo clássico, é expressa em termos cardinais, ou seja, trata-se de
auferir uma quantidade de utilidade total sobre o consumo de um bem (por exemplo: a
utilidade de beber um copo de água é igual a 10, ou seja, pode ser expressa em termos
cardinais). Com a revolução marginalista, basta ordenar as preferências do consumidor,
dizendo que a utilidade de um bem proporciona maior satisfação que a de outro bem, ou
seja, basta hierarquizar a ordem de preferência que um consumidor vai ter ao alocar seus
recursos.
iv. No utilitarismo clássico não se atribui à matemática a função de método adequado da
análise econômica. As análises utilitaristas, pelo menos até o texto de Mill, são
predominantemente teóricas. Com o avanço das formas de positivismo nas ciências
sociais, sobretudo a partir do final do século XIX, a matemática passa a ser utilizada de
forma crescente. A partir da revolução marginalista, percebe-se que, no limite, apenas as
demonstrações matemáticas podem atestar cientificamente a validade de um argumento
econômico. Isso porque a separação feita entre economia política pura, aplicada e moral,
atesta que a economia política pura é uma ciência em tudo semelhante às ciências físico-
matemáticas, sendo o método matemático não experimental, mas sim o método racional
para compreender as legalidades gerais da economia.

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