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Tutela do adquirente de boa fé de Valores Mobiliários

(Relatório Escrito)

Títulos de Crédito e Valores Mobiliários


Sob a direção do Prof. Dr. Evaristo Mendes

Bárbara Janeiro Maçarico

aluno n.º142722087
Índice

1. Introdução--------------------------------------------------------------------------------2.
2. Pressupostos de aplicação da proteção conferida pelo artigo 58.º, n.º 1 do
CVM---------------------------------------------------------------------------------------2.
2.1. Conformidade com as regras sobre o modo específico de transmissão do
Valor Mobiliário--------------------------------------------------------------------2.
2.2. Falta de legitimidade do alienante----------------------------------------------3.
2.3. Boa fé do terceiro adquirente----------------------------------------------------4.
3. Presunção de boa fé?--------------------------------------------------------------------6.
4. Bibliografia-------------------------------------------------------------------------------8.

1
1. Introdução

Os valores mobiliários são instrumentos financeiros, que podem ser constituídos por
situações ou posições jurídicas legalmente típicas ou por outras situações jurídicas que,
ainda que sejam atípicas, sejam suscetíveis de negociação em mercado.não basta!

Quando as referidas situações jurídicas são dotadas de uma forma específica de


representação – cartular ou escritural – as mesmastotrnam-se
“adquirem”
VMum
e modo especial de

circulação (negociabilidade), que será diferente dependendo da forma de representação1,


bem como ficam sujeitas a um regime jurídico especial, nomeadamente no que toca à
transmissão dos mesmos – a tutela do adquirente de boa fé.
A tutela do adquirente de boa fé de valores mobiliários encontra-se consagrada no
artigo 58.º do Código dos Valores Mobiliários2. Esta regra é uma clara derrogação do
princípio nemo plus iuris3. Segundo este princípio, seria inválido (nulo), ou ineficaz
quanto à transmissão (artigo 467.º CCom.), o negócio celebrado por quem não tem
legitimidade para dispor do bem objeto do negócio. No entanto, a aplicação da
mencionada proteção exige a verificação de determinados requisitos, que veremos
adiante.

2. Pressupostos de aplicação da proteção conferida pelo artigo 58.º, n.º 1 do


CVM
2.1. Conformidade com as regras sobre o modo específico de transmissão do Valor
Mobiliário4

Para que a proteção prevista pelo artigo 58.º do CVM mereça aplicação, exige-se
que a aquisição tenha ocorrido em conformidade com as regras sobre o modo especial
de transmissão dos VM.

As regras de transmissão por ato inter vivos relativas aos VMT5encontram-se no


artigo 102.º do CVM, que exige:

- Declaração de transmissão aposta no título;

1
O modo especial de circulação dos VMT é diferente do modo especial de circulação dos VME, cfr.
veremos no ponto 2. do presente relatório.
2
Doravante designado CVM.
3
Princípio segundo o qual ninguém pode dispor de mais direitos do que aqueles de que é titular.
4
Doravante designado VM.
5
Valores mobiliários titulados nominativos, já que atualmente não são admitidos em Portugal os VMT ao
portador – extintos pela Lei 15/2017 e DL 123/2017).

2
- Entrega (real ou ficta) do título ao transmissário.

Parte da Doutrina6 considera que o registo do título a favor do adquirente, junto


da entidade emitente do VM ou de intermediário financeiro que a represente, integra o
negócio translativo propriamente dito. No entanto, a Doutrina maioritária7 entende que
o registo do título a favor do adquirente é meramente legitimador, ou seja, necessário
para que o titular dos direitos inscritos/plasmados no título os possa exercer, mas que
não constitui condição de transmissão do VMT.

No caso dos VME, o modo especial de transmissão inter vivos encontra-se


previsto no artigo 80.º do CVM.

O modo de transmissão de VMEs, por ato entre vivos, é de índole escritural:


consiste na inscrição dos mesmos em conta do adquirente (e a correspondente
eliminação dos mesmos da conta do alienante), mediante ordem do alienante ou
requerimento acompanhado de prova escrita do adquirente. Quanto aos VMEs, a lei
exige o registo em conta.

Nos termos do artigo 70.º do CVM, o respeito pelas regras de transmissão torna
necessária a prévia inscrição a favor do alienante.

2.2. Falta de legitimidade do alienante

A falta de legitimidade do alienante não é um pressuposto propriamente dito, uma


vez que, não havendo falta de legitimidade do alienante, nem se coloca a problemática
da proteção do terceiro adquirente (já que a transmissão será válida, pelo que o terceiro
não precisará de ser protegido).

Importa referir que a legitimidade de que fala o artigo 58.º, n.º 1 do CVM não é a
legitimidade escritural, meramente formal (e que faz presumir a legitimidade material),
mas sim a própria legitimidade material, substancial. Aliás, nem faria sentido que o
artigo se referisse à falta de legitimidade formal, uma vez que vimos anteriormente que
um dos requisitos para que o terceiro adquirente mereça proteção é que a transmissão
tenha respeitado as formalidades exigidas. Para tal acontecer, o alienante teria de ter
legitimidade formal.

6
Nomeadamente, SOVERAL MARTINS.
7
Nomeadamente, EVARISTO MENDES.

3
Podemos adotar um conceito mais ou menos amplo, dependendo se incluímos na
“falta de legitimidade” apenas a ilegitimidade em sentido técnico, ou se incluímos
também inibições, incapacidades e outros factos que fossem suscetíveis de impedir a
alienação de valores.

EVARISTO MENDES adota um conceito lato de legitimidade – incluindo no


âmbito do artigo 58.º também as situações em que ao alienante falta capacidade de
exercício (no caso de ser uma pessoa singular) ou de gozo (caso se trate de uma pessoa
coletiva), e ainda os casos em que o negócio translativo é celebrado por representante
(do alienante) sem poderes para transmitir o VM. Diferentemente, SOVERAL
MARTINS adota um conceito mais restrito de legitimidade, deixando de fora as
situações de incapacidade do alienante e de falta de poderes do representante do
alienante. falta referência

Não obstante, quer se adote um conceito lato ou mais restrito de legitimidade, alerta-
se para o facto de que a tutela da circulação nunca é totalmente afastada. Para melhor
explicar, atenda-se ao seguinte exemplo: se A for menor, maior acompanhado ou
sociedade sem capacidade de gozo, e transmitir um VM a B, e este, por sua vez,
transmitir a C, será de conferir a proteção presente no artigo 58.º, n.º 1 do CVM a este
segundo adquirente de boa fé (C).

2.3. Boa fé do terceiro adquirente

O terceiro requisito, ao qual PAULO CÂMARA se refere como “derradeiro


pressuposto de aplicação” do artigo 58.º, n.º 1 do CVM, é que o terceiro adquirente
tenha atuado de boa fé na celebração do negócio translativo.

Cumpre relembrar que não existe uma única conceção de boa fé, pelo que devemos
apurar qual se encontra presente no artigo 58.º, n.º 1 do CVM.

Comecemos por relembrar os vários sentidos de boa fé presentes no direito


português:

- Boa fé em sentido objetivo: boa fé enquanto norma de conduta, decorrente de


regras e princípios jurídicos;

- Boa fé em sentido subjetivo: que se afere atendendo ao estado do sujeito.

4
- Boa fé (em sentido subjetivo) psicológica: quando o sujeito tem a convicção de
estar a atuar em conformidade com o Direito;

- Boa fé (em sentido subjetivo) ética: quando o sujeito tem a convicção


justificada de estar a atuar em conformidade com o Direito, tendo sido observados todos
os deveres de cuidado e indagação exigíveis a uma pessoa naquela situação.

Podemos excluir desde logo a boa fé em sentido objetivo, uma vez que a norma
do artigo 58.º, n.º 1 não nos remete para qualquer princípio ou regra de direito. A boa fé
exigida pela mencionada norma é subjetiva, ou seja, relacionada com o estado do sujeito
adquirente do VM.

Cumpre agora responder à segunda questão que se impõe: a norma exige que o
adquirente desconhecesse, sem o dever de conhecer, a ilegitimidade material do
alienante, tendo cumprindo deveres de zelo e de indagação (boa fé em sentido ético), ou
basta-se com o mero desconhecimento (boa fé em sentido psicológico?

PAULO CÂMARA defende a presença um conceito de boa fé subjetiva em


sentido psicológico no artigo 58.º, n.º 1 do CVM – apenas exigindo que o adquirente
desconheça a falta de legitimidade do alienante do VM. No mesmo sentido, SOVERAL
MARTINS8 considera suficiente, para o preenchimento do requisito da boa fé, o
desconhecimento da falta de legitimidade, excluindo a exigência de um
desconhecimento culposo, ou seja, o desconhecimento sem existência de um dever de
conhecer. O mencionado autor relembra o regime paralelo, para as letras e livranças – o
artigo 16.º da LULL. Este artigo distingue entre a má fé e a falta grave, sendo a má fé o
conhecimento da falta de direito do alienante.

Em sentido contrário, CAROLINA CUNHA9 e EVARISTO MENDES defendem a


exigência de um desconhecimento não culposo da falta de legitimidade, ou seja, defende
um conceito mais exigente de boa fé. Para estes autores, está em causa no artigo 58.º, n.º
1 do CVM um conceito de boa fé ético – que exige o cumprimento de deveres de
indagação e de cuidado. O adquirente tem de desconhecer, sem culpa grave, que o
alienante carece de legitimidade.

8
SOVERAL MARTINS, “Títulos de Crédito e Valores Mobiliários”, Parte II – Valores Mobiliários, Vol.
I, p. 71.
9
CAROLINA CUNHA, “Letras e livranças: paradigmas actuais e recompreensão de um regime, p. 456.

5
Note-se, no entanto, que será mais fácil imaginar situações em que o terceiro adquirente
desconheça com culpa grave quando estão em causa VMT do que quando estão em
causa VME – uma vez que o registo dos VME está sujeito a deveres de
confidencialidade.

3. Presunção de boa fé?

Resta-nos agora responder à seguinte questão, de grande importância prática: estará


presente no artigo 58.º, n.º 1 do CVM uma presunção de boa fé? Faltará o
preenchimento do requisito da boa fé do terceiro adquirente apenas quando a presunção
da mesma seja ilidida? Devemos, antes de mais, atender ao fundamento da proteção do
terceiro adquirente de boa fé.

No que toca a direitos reais e VMT, a tutela do adquirente de boa fé encontra


fundamento na tutela da aparência – há uma aparência de titularidade em que o terceiro
confia. No caso dos VMT, o terceiro confia que quem possui o título, e que figura no
mesmo como titular cartularmente legitimado10, é o legítimo titular dos direitos
plasmados no título. E realmente tem razões para confiar, porque a legitimidade formal
dos VM faz presumir a legitimidade material – artigo 74.º, n.º 1 do CVM. Nos VMT, é a
própria aparência criada pelo título (documento) que justifica a tutela do adquirente de
boa fé.

Assim, quanto a estes (VMTs), inclinamo-nos para uma resposta afirmativa à questão:
parece ser de admitir a existência de uma presunção de boa fé quando estão em causa
VMT, pelos motivos que acabamos de referir – a própria lei lhe diz que a legitimidade
formal faz presumir a legitimidade material.

Já quanto aos VME, a tutela do adquirente de boa fé já não é justificada pela


aparência (uma vez que o registo é confidencial), mas sim pela especial confiança que
se tem em relação aos Intermediários Financeiros que procedem ao registo dos VME –
porque estas entidades, apesar de serem privadas, têm deveres11 de verificação a
cumprir antes de proceder ao registo, deveres estes que o terceiro confia que sejam
cumpridos, o que faz com que confie no registo. Porque o registo é particular (é
realizado por uma entidade privada, e não estatal, ao contrário do que acontece quanto
ao registo predial), suscitam-se algumas dúvidas quanto à existência de uma presunção

10
Relembre-se, uma vez mais, que atualmente todos os VMT são nominativos.
11
Nos quais se inclui o dever de controlo da legitimidade do alienante.

6
de boa fé do adquirente quando estão em causa VME. Ainda assim, e tendo em conta o
que se disse quanto aos deveres a ser cumpridos pelas Instituições Financeiras, parece
ser de aceitar a existência de presunção de boa fé também quanto aos VMEs. O terceiro
confia (e tem motivos para confiar) que a entidade que procede à inscrição do VME em
conta do adquirente (e consequente “apagamento” da conta do alienante) conhece a
legitimidade (pelo menos formal) do alienante. Ainda que aquela legitimidade seja
meramente formal, o terceiro dificilmente terá como conhecer a falta de legitimidade
material do mesmo.

7
4. Bibliografia
1. CÂMARA, Paulo, "Manual de Direito dos Valores Mobiliários" (2018).
2. CORDEIRO, Menezes, "Da Boa Fé no Direito Civil", (1984).
3. CUNHA, Carolina, "Letras e Livranças: paradigmas actuais e recompreensão de
um regime".
4. MARTINS, Alexandre Soveral, "Títulos de Crédito e Valores Mobiliários", Vol.
I -As Ações.
5. MENDES, Evaristo Ferreira, "(Da) Transmissibilidade das ações" (1989).
6. VEIGA, Alexandre Brandão da, "Transmissão de valores mobiliários", (2010).

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