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CAPÍTULO III

A tramitação do processo de insolvência antes da sentença de declaração de


insolvência ou de indeferimento do pedido de declaração de insolvência1

1. O Requerimento de Insolvência
1.1. Quem pode requerer. Os créditos litigiosos
O próprio devedor pode requerer a declaração da sua insolvência2 e, em muitos casos, até
deve requerê-la. Com efeito, esse dever resulta do art. 18.º, 1, embora o n.º 2 o afaste se
o devedor, sendo pessoa singular, não é titular de empresa.
No art. 20.º, 1, vamos encontrar a identificação de outros sujeitos com legitimidade3 para
requererem a declaração de insolvência do devedor4. Diz a lei que esse requerimento,
verificados certos factos, pode ser realizado por quem for legalmente responsável pelas
dívidas do devedor em causa, por qualquer credor, mesmo que condicional e qualquer
que seja a natureza do seu crédito, ou pelo Ministério Público «em representação das
entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados»5.
O regime do PER prevê a possibilidade de esse processo terminar sem a aprovação de um
plano de recuperação. Quando assim seja, se o devedor estiver em situação de insolvência
é ao administrador judicial provisório que compete requerê-la (art. 17.º-G, 4). Esta será
matéria a abordar a propósito do PER, que aliás tem a sua própria tramitação.
Por sua vez, o art. 296.º, 2, confere legitimidade ao administrador de insolvência
estrangeiro para requerer a instauração de um processo secundário de insolvência6. E

1
Não serão por agora tidos em conta, pelo menos de forma sistematizada, os aspetos particulares previstos
nos regimes do PER (que pode ser «convertido» em processo de insolvência – cfr. o art. 17.º-G, 7), do plano
de pagamentos (cfr., designadamente, a confissão da situação de insolvência referida no art. 252.º, 4, a
suspensão do processo de insolvência mencionada no art. 255.º, 1, e o art. 259.º, 1), da insolvência de ambos
os cônjuges (cfr. p. ex. o art. 264.º, 3) e dos processos de insolvência secundários (cfr., p. ex., o art. 296.º,
3), sem prejuízo de se chamar a atenção para um ou outro ponto que se entenda mais importante. São do
CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) todas as normas referidas neste texto sem
indicação do diploma a que pertencem.
2
Sobre a apresentação conjunta de marido e mulher, lê-se no art. 264.º, 1, que se ambos estiverem em
situação de insolvência e não forem casados no regime de separação de bens podem apresentar-se
conjuntamente à insolvência. Veja-se também que, se tiver sido instaurado processo de insolvência contra
um dos cônjuges apenas, o outro pode apresentar-se à insolvência no mesmo processo se tiver a anuência
do consorte. No entanto, essa intervenção só será admitida se ainda não se tiver sido iniciado o incidente
de aprovação de plano de pagamentos ou, se tal incidente já se tiver iniciado, se o plano não for aprovado
ou homologado. Embora o art. 264.º, 2, não o diga expressamente, parece pressuposto que a intervenção
do outro cônjuge ali prevista só será admissível se marido e mulher estiverem casados em regime que não
seja o da separação de bens. Julgamos ser isso que também entendem CARVALHO FERNANDES/JOÃO
LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Quid Iuris, Lisboa, 2013, p.
957. Sobre o âmbito de aplicação do art. 264.º, veja-se o art. 249.º.
3
Considerando antes que não está em causa a legitimidade mas a «legitimação substantiva», cfr. o Ac. RL
de 22.11.2011, Proc. 433/10.4TYLSB.L1-7 (Relator: Luís Lameiras), www.dgsi.pt
4
O art. 264.º, 1, permite que o processo de insolvência seja instaurado contra marido e mulher se ambos
estiverem em situação de insolvência, não forem casados em regime de separação de bens e ambos sejam
responsáveis perante o requerente. Mas, como referido, deve ser tido em conta o art. 249.º.
5
MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 135, exige ainda que os
requerentes identificados no art. 20.º, 1, tenham interesse na declaração da insolvência. Mas talvez se deva
entender que o art. 20.º, 1, está a indicar o que permite demonstrar esse interesse.
6
Lembrando isto mesmo, ISABEL ALEXANDRE, «O processo de insolvência: pressupostos processuais,
tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença», Themis, 2005, Ed. Especial, p. 55, e CATARINA
SERRA, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito. O problema da natureza do
processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p.
263, nt. 698.
também o art. 29.º, a), do Regulamento 1346/2000 (CE) atribui ao síndico do processo
principal o direito de requerer a abertura de um processo secundário. Por sua vez, a al. b)
do mesmo art. 29.º confere aquele direito igualmente a «qualquer outra pessoa ou
autoridade habilitada a requerer a abertura de um processo de insolvência pela lei do
Estado-Membro em cujo território seja requerida a abertura do processo secundário».
É fácil de compreender por que razão o art. 20.º, 1, atribui legitimidade para requerer a
declaração de insolvência do devedor a quem for legalmente responsável pelas dívidas
do devedor. Como se lê no art. 6.º, 2, são considerados responsáveis legais para efeitos
do CIRE «as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela
generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário». Será o caso, por
exemplo, do sócio de sociedade em nome coletivo, do sócio comanditado de sociedade
em comandita simples ou por ações ou do sócio de sociedade civil.
Se não lhes fosse conferida aquela legitimidade, essas pessoas responsáveis legais
estariam muitas vezes confrontados com uma verdadeira bola de neve a que não poderiam
pôr termo mas de que sofreriam as consequências. Quanto mais tempo o devedor
insolvente atuasse, maiores os riscos para os referidos responsáveis, que por isso devem
poder apresentar o requerimento de declaração de insolvência.
O art. 20.º, 1, confere legitimidade para requerer a declaração de insolvência do devedor
a «qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito».
Também aqui é fácil de compreender por que razão é que os credores têm aquela
legitimidade. Perante uma situação de insolvência do seu devedor, o recurso ao processo
de insolvência permitirá evitar que o devedor contraia outras obrigações e prejudique
quem antes lhe concedeu crédito, assegurando uma igualdade (relativa) entre os credores.
O credor tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência mesmo quando o seu
crédito ainda não está vencido7. Dessa forma pode evitar que a situação do devedor sofra
um agravamento até à data do vencimento do seu crédito8.
Embora o art. 20.º, 1, confira a «qualquer credor» legitimidade para requerer a insolvência
do devedor, essa regra pode ser afastada pela lei. É o que se verifica, no que diz respeito
aos suprimentos, no art. 245.º, 2, do CSC9.
Apesar de o art. 20.º, 1, reconhecer legitimidade a «qualquer credor» para a apresentação
do requerimento de declaração de insolvência, a verdade é que a jurisprudência tem-se
mostrado dividida acerca do tratamento a dar aos casos em que o crédito invocado pelo
requerente é litigioso10. Recorde-se que é litigioso, nos termos do art. 579.º, 3, do CCiv.,

7
Cfr. CATARINA SERRA, A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito. O problema
da natureza do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, cit., p. 264, e MENEZES
LEITÃO, Direito da insolvência, cit., p. 136. A declaração de insolvência, aliás, tem também como efeito
«o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva» (art.
91.º, 1).
8
Em sentido próximo perante o direito então vigente, SOUSA MACEDO, Manual de direito das falências,
vol. I, Almedina, Coimbra, 1964, p. 384.
9
Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, cit., p. 104, nt. 128, invocando que o art. 245.º, 2, CSC
constitui lei especial.
10
Vejam-se, p. ex., o Ac. RC 3.12.2009, Proc. n.º 3601/08.5TJCBR.C1 (Relator: Emídio Costa),
www.dgsi.pt («I – O credor só pode requerer a declaração de insolvência do devedor se o montante do seu
crédito sobre este se mostrar judicialmente reconhecível, pelo que o crédito deve ser certo, líquido e
exigível. II – Carece de legitimidade para requerer a declaração de insolvência o requerente cujo crédito
que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência se mostra litigioso») e o Ac. RC
24.11.2009, 1896/09.6TBPBL.C1 (Relator: Alberto Ruço), www.dgsi.pt («O facto de existir uma acção
cível em que o Autor pede a condenação do Réu a pagar-lhe uma dívida e este último contesta a sua
existência, não retira legitimidade a esse Autor para instaurar uma outra acção a pedir a insolvência do Réu,
alegando, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, ser titular do mesmo crédito»).
o crédito “que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer
interessado”.
Os argumentos apresentados para a defesa da falta de legitimidade são de ordem variada.
Invoca-se frequentemente que o crédito litigioso não é certo, líquido e exigível e que, por
isso, só após decisão condenatória transitada em julgado é que o credor pode apresentar
o requerimento de declaração de insolvência. Alega-se também que a possibilidade de o
credor requerer a declaração de insolvência quando é titular de crédito litigioso permite
que surjam decisões contraditórias.
Contudo, o STJ, no seu Acórdão de 29.03.201211, mostrou que é outra a solução
adequada. Com efeito, naquele Acórdão o STJ decidiu, com boas razões12, que quem
invoca a titularidade de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a declaração de
insolvência do devedor13. Em apoio do sentido dessa decisão foi sobretudo dito que o
credor sempre poderia reclamar o seu crédito mesmo não sendo o requerente da
declaração de insolvência e que o próprio devedor pode tornar qualquer crédito litigioso
quando deduz oposição14. Claro que o tribunal pode decidir que não está provada a
existência do crédito. Mas isso é coisa diferente de afirmar que não decide porque a
questão… é complicada. Quantas questões complicadas e complicadíssimas eram
apreciadas e (bem) decididas em processos sumários e sumaríssimos!
Por último, o art. 20.º, 1, confere legitimidade para requerer a declaração de insolvência
ao Ministério Público, «em representação das entidades cujos interesses lhe estão
legalmente confiados»15. Mas as entidades públicas titulares de créditos podem, nos
termos do art. 13.º, 1, entregar a sua representação no processo de insolvência a
«mandatários especiais»16.

1.2. A vantagem contida no art. 98.º, 1, para o credor que requer a declaração de
insolvência
Para além das vantagens que qualquer credor pode retirar do processo de insolvência, o
art. 98.º, 1, atribui ao credor que requer a declaração de insolvência do devedor um
privilégio creditório mobiliário geral, que incide sobre todos os bens móveis integrantes
da massa insolvente17.
Contudo, esse privilégio é graduado em último lugar, apenas garante os créditos não
subordinados do requerente, só diz respeito a um quarto do montante dos créditos não

11
Proc. 1024/10.5TYVNG.P1.S1, www.dgsi.pt (Relator: Fernandes do Vale).
12
De forma resumida, as razões apresentadas são essencialmente as seguintes: o art. 20.º, 1, não faz
qualquer distinção; a legitimidade em causa é de natureza processual e o CPC, aplicável subsidiariamente,
não exige, para se ter legitimidade, que se seja titular do direito; não há motivo para discriminar o titular de
crédito litigioso em relação ao titular de crédito condicional; o juiz do processo não é passivo; pode afirmar-
se um princípio da autossuficiência do processo de insolvência; o reconhecimento de legitimidade nos casos
referidos evitará o benefício para o devedor que apresenta a sua contestação no processo declarativo só para
ganhar tempo; a legitimidade é processual e por isso não haverá necessariamente julgados contraditórios;
o requerente pode ser responsabilizado pela dedução de pedido infundado.
13
Cfr. tb., no mesmo sentido, p. ex., o Ac. RP de 29.09.11, Proc. 338/11.1TYVNG.P1 (Relator: Teles de
Menezes), e o Ac. RL de 22.11.11, Proc. 433/10.4TYLSB.L1-7 (Relator: Luís Lameiras), ambos em
www.dgsi.pt.
14
Cfr., com os argumentos expostos, CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresas anotado, cit., p. 203.
15
Cfr. o Estatuto do Ministério Público, aprovado pela L 47/86, de 15 de outubro, e sucessivamente
alterado.
16
Sobre a atribuição da representação de entidades públicas a um mandatário comum, cfr. o art. 13.º, 2.
17
Considerando-o incompreensível, PEDRO DE ALBUQUERQUE, «Declaração da situação de insolvência»,
O Direito, 137.º, 2005, III, p. 510.
subordinados referidos e tendo como máximo o valor correspondente a 500 unidades de
conta.
Vamos porém supor que estão a correr dois processos de insolvência contra o mesmo
devedor. Nesse caso, o privilégio referido não é atribuído aos dois requerentes. Se a
declaração de insolvência tiver lugar no processo iniciado em data mais próxima
prejudicando um processo mais antigo, o privilégio creditório será atribuído ao credor
não subordinado que requereu a declaração de insolvência no processo mais antigo. É o
que resulta da primeira parte do art. 98.º, 2.
Mas o art. 98.º, 2, diz mais: nos casos previstos no art. 264.º, 3, b), o privilégio creditório
mobiliário geral sobre os bens móveis próprios do cônjuge apresentante e sobre a sua
meação nos móveis comuns é atribuído a quem foi requerente da declaração de
insolvência no processo instaurado em primeiro lugar. Este regime carece de algumas
explicações para ser compreendido. Se, nos termos do art. 264.º, 2, foi instaurado um
processo de insolvência contra um dos cônjuges, o outro cônjuge pode, com alguns
limites, apresentar-se à insolvência nesse mesmo processo18. Quando esse outro cônjuge
já tinha, por sua vez, outro ou outros processos de insolvência a correr contra si nos quais
a insolvência ainda não tinha sido declarada, tais processos ficarão suspensos com a
admissão da apresentação à insolvência referida se forem cumpridos certos requisitos19.
Apesar dessa suspensão, o privilégio creditório mobiliário geral mencionado ficará a
caber ao credor que requereu a declaração de insolvência no processo instaurado em
primeiro lugar contra o cônjuge apresentante.

1.3. Desvantagens para certos credores que não requerem atempadamente a


declaração de insolvência
No art. 97.º, 1, a) e b), encontramos estabelecidas algumas desvantagens para certos
credores que não agiram com celeridade na defesa do seu crédito.
Da al. a) decorre que a declaração de insolvência tem como consequência a extinção dos
privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a insolvência de que sejam
titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social quando esses
créditos tenham sido constituídos «mais de 12 meses antes da data do início do processo
de insolvência». Isto é, se os créditos privilegiados sobre a insolvência se constituíram
mais de 12 meses antes daquela data, os privilégios respetivos extinguem-se caso venha
a ser declarada a insolvência.
Por sua vez, o art. 97.º, 1, b) determina a extinção de privilégios creditórios especiais de
que sejam titulares os mesmos sujeitos e que sejam acessórios de créditos sobre a
insolvência vencidos «mais de 12 meses antes da data do início do processo de
insolvência».
Em ambos os casos parece estar subjacente que a lei entende ter passado demasiado tempo
até ao início do processo de insolvência. E em ambos os casos vemos o Estado-legislador
a prejudicar os seus interesses enquanto Estado-credor.

(Continua na próxima aula)

18
O regime do art. 264.º integra-se numa Secção de um Capítulo que diz respeito às pessoas singulares que
não sejam empresários ou que sejam apenas titulares de pequenas empresas (art. 249.º, 1). E os requisitos
referidos devem verificar-se em relação a cada um dos cônjuges no caso de apresentação de marido e mulher
à insolvência ou sendo o processo instaurado contra ambos como prevê o art. 264.º (art. 249.º, 2).
19
Apresentação à insolvência acompanhada de confissão expressa da situação de insolvência ou
apresentação pelos cônjuges de uma proposta de plano de pagamentos.

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