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SANTOS
2023
DANIELE BATISTA BASSI
SANTOS
2023
Ficha catalográfica elaborada por sistema automatizado
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Bassi, Daniele.
B321aa Análise do cuidado em Saúde Mental com enfoque
nas dimensões que envolvem a família: reflexões e
problematizações. / Daniele Bassi; Orientadora
Rosiran Montenegro. -- Santos, 2023.
59 p. ; 30cm
CDD 361.3
DANIELE BATISTA BASSI
Aprovação em:____/____/______
EXAMINADORAS:
______________________________________________________
Profª. Drª. Rosiran Carvalho de Freitas Montenegro.
Universidade Federal de São Paulo.
______________________________________________________
Profª. Drª Gisele Aparecida Bovolenta.
Universidade Federal de São Paulo.
AGRADECIMENTOS
Às minhas amigas, por tornarem mais leve os últimos quatro anos e meio
Muito obrigada por terem feito parte da minha jornada até aqui.
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), analisa o cuidado em saúde
mental sob a ótica das dimensões que abrangem a família e o Estado. A pesquisa
objetiva particularizar as dimensões que envolvem a família no cuidado em saúde
mental; realizar aprofundamento teórico nas produções já existentes sobre a
temática em destaque; estudar o caráter familista das políticas de proteção social e
seus possíveis impactos no grupo familiar sob a ótica da saúde mental e do cuidado;
e realizar considerações acerca do trabalho profissional desenvolvido pelo Serviço
Social em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Para isso, a pesquisa se
orientou no pensamento do materialismo histórico e dialético e foi realizada em dois
processos: de estudo bibliográfico e documental, atravessados pela apreensão
crítica dos conteúdos estudados. Também foram considerados os registros da autora
feitos em seu Diário de Campo de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial
Infantojuvenil (CAPSi). Neste trabalho, compreendemos que o modo de produção
capitalista reproduz constantemente formas de opressão e violação de direitos que
geram adoecimento físico e mental e que, portanto, os avanços alcançados no
campo dos direitos da população com transtornos mentais e das pessoas
cuidadoras, são limitados. Com isso, esperamos que o trabalho desenvolvido possa
agregar ao debate sobre os temas de cuidado em saúde mental e sua relação com
as famílias, dando visibilidade às problematizações que envolvem os papéis do
Estado e da família no cuidado das pessoas com transtornos mentais.
Palavras-chave: saúde mental; cuidado; família; Estado; Serviço Social.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I: A POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL 9
1. Aspectos históricos da atenção à saúde mental no Brasil 9
2. A Rede de Atenção Psicossocial 16
2. 1. Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil 18
3. Desafios da atualidade 23
CAPÍTULO II: FAMÍLIA E CUIDADO EM SAÚDE MENTAL 30
1. Família e políticas públicas 30
2. A família e o cuidado de pessoas com transtornos mentais 39
3. Reflexões sobre o trabalho profissional de assistentes sociais 45
CONSIDERAÇÕES FINAIS 52
REFERÊNCIAS 55
7
INTRODUÇÃO
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi construído pelo interesse em
compreender o campo do cuidado em saúde mental realizado no âmbito das
famílias. O disparador desse interesse foi a experiência da autora estagiando em um
Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), que permitiu adentrar nas
produções teóricas acerca dos temas de saúde mental e cuidado, buscando elucidar
conceitualmente as demandas observadas em campo.
A centralização do saber psiquiátrico, os preconceitos em relação às pessoas
que destoavam da concepção social de normalidade e os interesses do capital,
contribuíram para a consolidação de um sistema de internação compulsória como
um recurso de delimitação e controle dos espaços ocupados por pessoas com
transtornos mentais e outras consideradas inaptas ao convívio social. Após décadas
de movimentação da Luta Antimanicomial, o cuidado prestado à pessoa com
transtorno mental se configura de forma diferenciada nos tempos atuais.
Desse modo, este trabalho se ocupa de discutir a realização do cuidado da
pessoa com transtorno mental realizado por um(a) familiar, e problematiza os
processos históricos de atenção à saúde mental e o papel do Estado neste debate.
Compreendemos que há relevância neste debate teórico pois a principal pessoa
encarregada com o papel de cuidadora está passível de sofrer com sobrecarga e ser
afetada em variadas dimensões de sua vida, envolvendo “[...] aspectos econômicos,
práticos e emocionais [...]” (SANT’ANA et al. 2011, p. 53), devido às exigências e
atribuições do exercício do cuidado. Reconhecemos também que as principais
figuras que realizam o cuidado são mulheres, isso devido à estrutura patriarcal da
sociedade capitalista que produz uma assimetria entre os papéis de gênero
socialmente construídos, e que associa à figura feminina, o trabalho de reprodução
da vida humana.
Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é analisar o cuidado em saúde
mental, particularizando as dimensões que envolvem a família e a sua relação com o
membro com transtornos mentais. Os objetivos específicos delimitam-se a
compreender o caráter familista das políticas públicas na esfera da reprodução
social e os impactos do cuidado em saúde mental no grupo familiar; discutir a
política de atenção à saúde mental, as demandas e o trabalho desenvolvido no
8
violador dos direitos civis das pessoas com transtornos mentais, que limita a sua
liberdade de ir e vir, confinando-as em locais de tratamento que tinham como
característica “[...] a precariedade em que imperava a superlotação, número
reduzido de pessoal e sua baixa qualificação, bem como a violação de direitos
humanos dos internos” (ROSA, 2003, p. 96-97). As colônias mencionadas
anteriormente, por sua vez, vão perdendo força devido, em parte, ao
reconhecimento de sua desqualificação como método de cuidado à saúde mental.
O pós-64 é marcado por uma massificação da população usuária do
sistema de assistência psiquiátrica “[...] que majoritariamente passa a ser
constituída por trabalhadores previdenciários urbanos, exauridos
psiquicamente pelo uso intensivo de sua força de trabalho no período de
crescimento econômico dos anos 1970 [...]” (ROSA, 2003, p. 100)1. Mais uma vez,
podemos notar a intrínseca ligação entre trabalho produtivo e saúde mental,
inicialmente com a internação daqueles(as) que não eram capazes de serem
inseridos no mundo do trabalho capitalista e, posteriormente, com a internação
daqueles(as) que foram explorados pela indústria e mercado de trabalho de forma
avassaladora.
Nesse mesmo período há o fortalecimento da iniciativa privada na área da
saúde mental, instituindo a mercantilização e indústria da loucura, incentivado, em
parte, pela compra de leitos psiquiátricos para os(as) trabalhadores(as)
previdenciários(as), enquanto aqueles(as) desvinculados(as) à previdência eram
encaminhados(as) ao setor público, instituindo a presença do setor privado e
público na área da saúde mental no país.
Com a emergência do movimento pela Reforma Sanitária na década de
1970, que lutava pela democratização do sistema de saúde e fazia oposição à
ditadura militar, ganha força a Reforma Psiquiátrica Brasileira, que não apenas
age concomitantemente à Reforma Sanitária, mas que deriva dela. A Reforma
Psiquiátrica Brasileira foi profundamente influenciada pela experiência italiana em
sua própria Reforma Psiquiátrica. O movimento italiano, que teve como precursor
Franco Basaglia, inferia na recusa da instituição total, da prática de reducionismo
do(a) paciente à condição de “doente” e à ideologia opressora e violenta
intrinsecamente presente no sistema psiquiátrico. Defendia que era “[...]
necessário não só a destruição e superação dos muros hospitalares em si, mas do
1
Grifos da autora.
12
diferente que utilizava da arte como um instrumento de tratamento. Além de Nise, uma das figuras
mais emblemáticas na discussão sobre saúde mental, foi Franco Basaglia, o precursor do movimento
da Reforma Psiquiátrica na experiência italiana, e que também influenciou o movimento no Brasil. Em
uma visita aos manicômios brasileiros, Basaglia denunciou à imprensa as violações cometidas contra
os pacientes nas instituições do Brasil. A sua denúncia contribuiu para a mobilização dos(as)
sujeitos(as) na discussão sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais no país (NICÁCIO,
2003).
3
O Manifesto de Bauru está disponível em:
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf. Acesso em: 05 de nov. de
2022.
14
4
Para saber mais sobre as proposições da Declaração de Caracas, o documento está disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_caracas.pdf. Acesso em: 05 de nov. de 2022.
5
A Lei Psiquiátrica 10.216 é também conhecida como Lei Paulo Delgado, tendo sido proposta pelo
deputado federal em 2001. A Lei, entre outras disposições, prioriza o tratamento em serviços
comunitários da área de saúde mental, impondo que se deverá recorrer à internação apenas quando
os recursos extra-hospitalares se esgotarem, tendo a reinserção social como finalidade. A Lei está
disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm. Acesso em: 05 de
nov. de 2022.
15
sociedade.
Portanto, os serviços componentes da RAPS são regulamentados pelas
diretrizes especificadas na Portaria nº 3.088, que declara o comprometimento com
uma política de atenção à saúde mental que repudia o modelo hospiciocêntrico de
tratamento psiquiátrico. Com vistas nisso, os serviços da rede têm como
norteadores: o respeito aos direitos humanos; cuidado em liberdade; combate a
estigmas e preconceitos; cuidado integral; diversificação das estratégias de
cuidado; promoção de autonomia; estratégias de redução de danos; controle
social dos(as) usuários(as) e de seus familiares; estratégias de educação
permanente; construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) (MEDEIROS,
P.F.P. et al. s/ano).
Para concretizar tais objetivos e garantir um atendimento digno e justo à
população usuária, é necessária a formação continuada dos(as) trabalhadores(as)
inseridos(as) na rede, esperando-se dos mesmos um posicionamento combativo
ao preconceito e aos estigmas contra as pessoas com transtornos mentais, de
promoção de equidade e com o compromisso em conscientizar e publicizar,
inclusive de forma socioeducativa, os direitos dos cidadãos.
Dessa forma, tendo em vista o esquema de funcionamento da rede, suas
diretrizes e objetivos, fica impressa a responsabilidade dos entes federativos em
implementar, financiar, monitorar e avaliar a Rede de Atenção Psicossocial no
território nacional.
6
Informação disponível em:
https://institutodelongevidademag.org/longevidade-e-cidades/idl/brasil/sudeste/santos#:~:text=Sant
os%20%7C%
20SP,-%232%20PARA%20IDADE&text=Com%20433.565%20habitantes%2C%20Santos%20abrig
a,com%205
.300%20metros%20de%20extens%C3%A3o.. Acesso em: 29 de nov. de 2022.
23
3. Desafios da atualidade
possuíam uma prática terapêutica eficaz e que violavam os direitos das pessoas
internadas. Os avanços na legislação na área de saúde mental não resolvem as
questões de ordem moral e os preconceitos reproduzidos cotidianamente, que
continuam a carregar insidiosas concepções e estigmas contra a pessoa com
transtorno mental. Conforme diz Rosa e Campos (2013),
de tratamento.
Em 2017, no Plano Nacional de Atenção Básica, ocorre “[...] a retirada das
palavras ‘democrática’ e ‘humanização’, sendo que uma se referia, na PNAB de
2011, ao formato das práticas de cuidado e de gestão, e a outra era apresentada
como um dos princípios, respectivamente” (MELO et al. 2018, p. 43). Tal ocorrido
é um indicativo da direção em que a saúde mental estava sendo levada,
desvinculando não apenas palavras, mas suas significações dos preceitos da
saúde mental.
Ainda em 2017, é criado, através da Portaria 3.588, o CAPSad IV,
mencionado no item anterior. A sua idealização e implementação é alvo de críticas
devido ao que esta modalidade de serviço se propõe a realizar: com a proposta de
atuar especialmente em locais onde ocorre a utilização de drogas ilícitas pelos
usuários, e de forma emergencial, o serviço é completamente contraditório à
proposta de construção e reparação de vínculos dos(as) usuários(as) com os
espaços em que vivem, comprometendo também o trabalho em rede e,
consequentemente, uma atenção integral à saúde das pessoas atendidas,
fixando-as à condição de usuárias de drogas e ignorando a diretriz que dispõe
sobre o trabalho territorializado.
A mesma Portaria tem consequências desastrosas ao agir como uma
espécie de incentivo à internação de longa-duração e ao aumento de leitos
psiquiátricos:
7
O Edital 1/2018 da SENAD está disponível em:
http://www.confenact.org.br/wp-content/uploads/2018/10/CTs-Credenciadas-Edital-01-2018-CONFEN
ACT.pdf?utm_source=Republicadores&utm_campaign=5c013a3466-EMAIL_CAMPAIGN_2020_10_3
0_04_01&utm_medium=email&utm_term=0_069298921c-5c013a3466-288598377&mc_cid=5c013a3
466&mc_eid=[d680b34410]. Acesso em 15 de fev. de 2023.
8
A Nota Técnican. 11/2019- CGMAD/DAPES/SAS/MS de 2019 está
disponível em: https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf. Acesso
em: 13 nov. de 2022.
9
Apesar da eletroconvulsoterapia ser um método de tratamento indicado em determinados quadros, é
preciso reconhecer o uso irregular desse tratamento em pessoas “loucas”, especialmente antes da
Reforma Psiquiátrica nos manicômios. Por isso, não é recomendável, assim como é preocupante, que
a Nota Técnica tenha indicado a eletroconvulsoterapia como um dos melhores aparatos existentes de
tratamento dos pacientes (FUJITA, 2020).
27
a) contarem com equipe sem formação, boa parte sendo voluntários(as) e/ou
pessoas que “superaram” o uso abusivo que tinham com drogas e tentam
“ajudar” o próximo a seguir o mesmo caminho;
b) guiarem-se pela ideia de que o uso abusivo de álcool e outras drogas é
consequência de uma falha moral, espiritual e individual, tentando “corrigir”
a dependência nesses níveis, com alta vinculação ao cristianismo, impondo
a religião da entidade nas pessoas acolhidas, desrespeitando a laicidade
garantida constitucionalmente;
c) não trabalham na perspectiva de redução de danos, componente da RAPS,
impondo a abstinência total;
d) além do exercício de espiritualidade, impõe a reabilitação através da
laborterapia, utilizando da mão-de-obra das pessoas acolhidas para realizar
trabalho que deveria ser feito por trabalhadores(as) contratados(as);
e) não oferecem condições salubres no espaço de acolhimento e são
recorrentemente acusadas de abuso e violência contras os(as)
usuários(as);
f) estão em locais isolados e de difícil acesso, o que não permite ações
socioeducativas de criação de vínculos com a comunidade e de construção
28
Fonte: CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO, Pedro G.G, 2020, p. 14
10
A Nota de Avaliação Crítica da Nota Técnica 11/2019, assinada por acadêmicos e profissionais da
área da saúde e do Serviço Social, explana sobre os pontos aqui brevemente citados a respeito das
comunidades terapêuticas. Disponível em:
http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2019/02/Note-tecnica-Saude-Mental.pdf. Acesso em:
14 de nov. de 2022.
11
De acordo com informações disponibilizadas em seu site, a Pública se define como uma agência de
jornalismo investigativo sem fins lucrativos.
29
Essa é uma ocorrência preocupante pois para que o CAPS seja de fato um
serviço substitutivo dos hospitais psiquiátricos, é necessário que tenham unidades
suficientes do serviço para que ele consiga abranger e atender integralmente a
população com transtornos mentais. O baixo número de incremento do CAPS
ameaça o efetivo acesso da pessoa com transtorno mental ao serviço público de
saúde mental.
Devemos mencionar que o baixo número de CAPS é algo que atinge
principalmente as pessoas das camadas mais pobres da sociedade. Apesar do
SUS e o CAPS serem pluriclassistas e não terem restrição ao seu acesso com
base em condição socioeconômica, são os mais pobres que dependem
exclusivamente da rede pública de saúde para serem atendidos, ao contrário das
camadas mais abastadas financeiramente que costumam deter os meios para
recorrer aos serviços privados.
Dessa forma, com base no que foi exposto, podemos perceber que há um
efetivo campo de tensões que entrelaça a política de saúde mental no país, uma
vez que, apesar dos avanços da ofensiva neoliberal de mercantilização da
“loucura”, a resistência por parte da oposição também é constante, sendo que
entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva e o Conselho Nacional
de Saúde, assim como diversos outros atores, incluindo a própria população
usuária dos serviços e seus familiares, que continuam a resistir e reivindicar os
direitos das pessoas com transtornos mentais, e lutam por uma política de saúde
mental universal e de qualidade.
30
12
Importante considerar que o mundo do trabalho era ocupado primordialmente por homens brancos,
fazendo com que parte das mulheres dependessem do salário e proteção adquiridos pelos seus
maridos. Esse sistema também penalizava os(as) negros(as) que não eram admitidos(as) pelo
mercado de trabalho após a abolição da escravidão.
32
que eles(as) próprios deveriam arcar, o que obviamente não era possibilitado para
as pessoas negras historicamente escravizadas e privadas de qualquer forma e
garantia de proteção social dentro da exploração sofrida na sociedade escravista.
Percebe-se que, apesar de séculos de lutas e resistências contra a opressão dos
não-brancos pelos brancos, a sociedade escravista deu lugar à uma forma social
escravista,13 que continuou a privar os direitos de parte da população, inclusive
privando negros(as) do acesso ao mercado de trabalho após a abolição da
escravidão. A opressão de gênero também fica nítida quando se considera que as
mulheres, em relação aos homens provedores, dependiam da renda do
companheiro homem, sendo que o trabalho realizado por elas, de reprodução da
vida no espaço do lar, não era reconhecido como um trabalho de fato, devido à sua
naturalização como uma “atividade feminina”.
Após a Segunda Guerra Mundial, começou a ser implantado o Estado de
Bem-Estar Social em alguns países, notoriamente europeus, visando a ampliação
estatal na provisão de bem-estar à população. A experiência brasileira com o Estado
de Bem-Estar Social não se equipara à experiência europeia que conseguiu realizar
ações mais efetivas, apesar disso, foi construída uma noção de Estado protetor a
partir do desenvolvimento de políticas sociais que impactou os grupos familiares.
Partilha-se do entendimento de que a família foi um importante pilar
na instituição do Estado de Bem-Estar Social, atuando na reprodução
social dos seus indivíduos, através do trabalho masculino e sua
inserção no sistema previdenciário, mas essencialmente, através do
trabalho não pago da mulher na realização das atividades
domésticas e de cuidado aos membros da família (MONTENEGRO,
2021, p. 38).
13
Conforme vídeo-aula de Muniz Sodré do curso Ler o Brasil, promovido pela Casa Sueli Carneiro,
2023. (Sem link disponível).
14
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 de abr. de 2023.
15
As Emendas Constitucionais n° 26 de 2000, n° 64 de 2010 e n° 90 de 2015 inserem,
respectivamente, a moradia, a alimentação e o transporte aos direitos sociais presentes no artigo 6°
da Constituição de 1988.
33
Assim, o espaço do lar não está dissociado da esfera pública, tendo em vista
que a reprodução que ocorre no ambiente privado, possui implicações para além do
lar. “A dona de casa [...] apenas parece estar cuidando das necessidades privadas
de seu marido e de suas crianças, mas os reais beneficiários de seus serviços são o
atual empregador de seu marido e os futuros empregadores de suas crianças”
(DAVIS, 2016, p. 222).
16
Nesse sentido, poderia-se dizer que a família se encontra em uma instância público-privada.
Porém, de forma a facilitar a compreensão de que o trabalho doméstico/reprodutivo não é
compartilhado socialmente, existindo de fato uma dicotomia e diferenciação entre mulher-privado e
homem-público, referimo-nos ao espaço do lar como privado.
36
17
Disponível em: https://www.dieese.org.br/infografico/2022/trabalhoDomestico.html. Acesso em: 06 de abr. de
2023.
37
18
Conforme dados publicados pelo World Inequality Database (WID), referentes ao ano de 2021, 1%
da população brasileira detinha 49% do total da riqueza no Brasil. Enquanto isso, 50% da população
estava na margem negativa, possuindo -0,4% da riqueza nacional. Informações disponíveis em:
https://oiceberg.com.br/distribuicao-da-riqueza-no-brasil-e-no-mundo/#:~:text=O%20top%201%25%20
mais%20rico%20do%20Brasil%2C%202%2C1,19%2C2%20milh%C3%B5es%20de%20pessoas.
Acesso em: 10 de abr. de 2023.
19
De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (2022), do IBGE, em 2021, 29,4% da população
brasileira vivia na pobreza e 8,4% em situação de extrema pobreza.
38
casos, por exemplo, que presta cuidados à pessoas fora do seu lar, como sogros e
etc. Ou seja, a exploração e opressão da mão de obra feminina pode se acumular
por meio de diferentes dimensões da sociedade. Em um contexto de uma família
com uma pessoa com transtorno mental, “naturalmente” irá recair sobre a mulher o
dever de ser a principal cuidadora do membro com transtorno mental, o que pode
implicar na intensificação da já existente jornada de trabalho da mulher. Como o
cuidado de alguém com transtorno mental é algo que, a depender do grau de
sofrimento, exige atenção constante e disponibilidade imprevisível, muitas das
cuidadoras recorrem ao trabalho informal para, de alguma forma, conseguir
assegurar renda, e estar disponível para as necessidades que surgirem em relação
a pessoa que recebe os cuidados, como é o caso dessa cuidadora entrevistada por
Rosa (2003): “Vendo perfume de catálogo que é o que facilita cuidar dele por que
não tem hora, nem chefe e qualquer emergência posso correr” (ROSA, 2003, p.
288).
O impacto nos grupos familiares de baixa renda com algum membro com
transtorno mental se difere daqueles com maior poder aquisitivo. O diagnóstico de
transtorno mental e suas implicações no grupo familiar se agregam e/ou agravam as
condições objetivas e subjetivas de existência particulares às famílias mais
vulneráveis socioeconomicamente.20 Além disso, as famílias pobres costumam
contar principalmente apenas consigo mesmas, e/ou com os integrantes da rede de
apoio a qual pertencem para realização dessa tarefa, uma vez que os serviços de
saúde mental e seus recursos, por vezes, não são suficientes para cobrir
integralmente as demandas da população que necessita de atendimento. Vale
ressaltar que as pessoas de baixa renda não ficam “presas” ao seu núcleo familiar,
mas que se articulam em rede, tendo em vista que para elas, o vínculo familiar pode
existir para além dos laços consanguíneos e se estender àqueles que, apesar de
não possuírem laços de parentesco, são pessoas com quem se pode contar, em
uma relação baseada em solidariedade e reciprocidade, mediatizada por ações de
20
Rosa (2003) diz: “Nas famílias em situação de pobreza, assalariadas urbanas com parcos e
insuficientes recursos econômicos, fato que as torna vulneráveis em suas condições de vida em
geral, apreender o impacto do transtorno mental é uma tarefa complexa, pois, se é impossível isolar o
fenômeno, que, por si só, é complexo e multifacetado, visto que engloba a dimensão biológica,
psicológica, social e econômica, por outro lado, os problemas sociais nas famílias pobres tendem a
ter uma complexidade peculiar. Às privações econômicas, que em geral antecedem as enfermidades,
associam-se cotidianamente o analfabetismo, a violência doméstica, o alcoolismo, a família
monoparental, o desemprego, o subemprego, a submoradia e a destituição de direitos conjugados ao
estigma da pobreza (ROSA, 2003, p. 237).
42
ajuda mútua e/ou por sentir-se obrigado a retribuir alguma ajuda anterior
(MONTENEGRO, 2021).
Assim, para além dos impactos materiais, tais famílias também são
acometidas na dimensão subjetiva. O cuidado realizado no âmbito da família e por
seus(suas) integrantes “[...] pressupõe cuidado material, que por sua vez implica
trabalho, cuidado econômico que implica custo econômico e cuidado psicológico que
implica vínculo afetivo, sentimental e emotivo” (MIOTO; DAL PRÁ; WIESE, 2018, p.
2). Para a família que tenha um(a) ou mais membros(as) com transtornos mentais,
apresentam-se algumas particularidades provenientes do cuidado de alguém com
transtorno mental, sendo que tornam-se
21
Importante ressaltar que não há a intenção de determinar que as cuidadoras de pessoas com
transtornos mentais devam cumprir tais tarefas, mas sim, de exemplificar parte das dimensões
existentes no espectro do cuidado e o conjunto de elementos que podem recair sobre a figura da
cuidadora.
44
22
“O III CBAS representou um elo na transição histórica entre a ditadura e o processo de construção
democrática no Brasil. Assim como um elo de ligação das assistentes sociais com os trabalhadores,
da identificação com as lutas mais gerais da sociedade, e como uma ruptura de um modelo de prática
de adaptação, para reforçar uma articulação da profissão com as transformações das relações sociais
de dominação e exploração no cotidiano de sua atuação” (SALAZAR; NICÁCIO, 2020). Disponível
em:
http://www.cress-es.org.br/41-anos-do-congresso-da-virada-do-servico-social-brasileiro-a-importancia-
da-consolidacao-teorico-pratica-e-do-projeto-etico-politico-em-nossa-historia/. Acesso em: 10 de maio
de 2023.
23
Conforme Iamamoto (1998), “A Questão Social é apreendida como um conjunto das expressões
das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é
cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos
seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 1998, p.
27).
47
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, debruçamo-nos sobre questões referentes ao papel das
famílias e das políticas públicas em saúde mental em relação ao cuidado das
pessoas com transtornos mentais. Para isso, a pesquisa se valeu de um método de
análise bibliográfica de obras que versam sobre as temáticas de família, cuidado e
políticas de saúde mental e que possibilitaram a compreensão e análise crítica dos
elementos estudados. Além disso, as elaborações presentes no texto derivaram das
reflexões da autora registradas em Diário de Campo de estágio em um CAPSi,
experiência que possibilitou o seu contato com as demandas e política de saúde
mental, sendo que foi a partir do seu estágio que surgiu o interesse em pesquisar
temas relacionados à saúde mental.
Dessa forma, a apreensão dos processos históricos e das relações sociais
investigadas neste trabalho contribuíram na elucidação de alguns questionamentos
que inicialmente moveram a sua realização. Uma das explanações auferidas neste
estudo envolve a trajetória de atenção e tratamento prestado às pessoas com
transtornos mentais. Estudamos como o tratamento dessas pessoas em hospícios
eram marcados por violações de direitos, tornando-se uma fonte de renda para
aqueles que lucravam com os serviços manicomiais, devido a lógica de
mercantilização da “loucura”.
Historicamente, a família é uma figura de referência no cuidado dos seus
membros, porém, com a reprodução das relações e processos sociais capitalistas, é
intensificada a responsabilização primária da família na garantia da reprodução da
vida dos(as) sujeitos(as). Constituindo essa relação, o Estado assume um papel de
“socorrista” para as famílias e pessoas mais intensamente agravadas pelas relações
desiguais socioeconômicas que atravessam a vida em sociedade. Um fator que
ocasiona isso é a expansão do setor privado que privatiza os direitos sociais,
inclusive o direito à saúde mental.
Encontrando-se em um contexto no qual um de seus membros possui
transtorno mental, a família, de acordo com o caráter familista das políticas de
proteção social, fica encubida de prestar os cuidados necessários que não são
acobertados pelos serviços de saúde mental. Tendo em vista que nas relações da
vida cotidiana e em sociedade os assuntos relacionados aos transtornos mentais
não estão substancialmente presentes, a descoberta do transtorno mental, assim
como as suas implicações, pode ser algo que esteja recoberto de uma falta de
53
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Joana El-Jaick. O feminismo marxista e a demanda pela socialização do
trabalho doméstico e do cuidado com as crianças. Rev. Brasileira de Ciência
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