Você está na página 1de 852

Cadernos MAGIS - Civil

Sumário

LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO: .................................................................. 18


1. Aspectos Iniciais:................................................................................................................... 18

1.1. Estrutura da LINDB: ......................................................................................................... 18

2. Fontes do direito: .................................................................................................................. 19

2.1. Visão clássica.................................................................................................................. 19

3. Vigência da Norma: Artigo 1º e 2ºLINDB ............................................................................ 21

3.1. Início da vigência ........................................................................................................... 21

3.2. Fim da vigência .............................................................................................................. 23

4. Obrigatoriedade das normas: Art. 3º da LINDB................................................................... 25

5. Integração da norma: ............................................................................................................ 25

5.1. Analogia: ........................................................................................................................ 26

5.2. Costumes ........................................................................................................................ 26

5.3. Princípios Gerais de Direitos: ........................................................................................ 27

6. Interpretação da norma: Art. 5º LINDB ............................................................................... 27

7. Aplicação da norma no tempo: Art. 6º LINDB ..................................................................... 28

7.1. Relações jurídicas continuativas:................................................................................... 30

7.2. Ultratividade da norma .................................................................................................. 30

8. Aplicação da norma no espaço: ............................................................................................. 31

DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL ...................................................................................................................... 32


1. Introdução ............................................................................................................................. 32

2. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais ...................................................................... 34

DAS PESSOAS NATURAIS........................................................................................................................................ 35


1. Conceito de personalidade jurídica ....................................................................................... 35

2. Pessoa Física ou Natural ....................................................................................................... 35

3. Natureza jurídica do nascituro e teorias explicativas ........................................................... 36

3.1. Teoria Natalista .............................................................................................................. 37

3.2. Teoria da Personalidade Condicional ............................................................................ 37

1
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.3. Teoria Concepcionista.................................................................................................... 37

4. Capacidade de direito e de fato ............................................................................................. 38

4.1. Conceitos correlatos à capacidade: ................................................................................ 38

5. Teoria das incapacidades – Arts. 3º e 4º do CC .................................................................... 39

5.1. Incapacidade absoluta ................................................................................................... 40

5.2. Incapacidade relativa ..................................................................................................... 40

6. Questões de concurso relacionadas à capacidade e à incapacidade ..................................... 42

6.1. A questão do ausente ..................................................................................................... 42

6.2. Benefício de restituição (ou restitutio in integrum) ...................................................... 42

6.3. Reflexos da redução da maioridade civil ....................................................................... 43

6.4. Idade avançada e incapacidade civil .............................................................................. 44

7. Emancipação ......................................................................................................................... 44

7.1. Emancipação voluntária ................................................................................................ 45

7.2. Emancipação judicial ..................................................................................................... 46

7.3. Emancipação legal ......................................................................................................... 46

7.4. Questões especiais relacionadas à emancipação ........................................................... 50

8. Extinção da pessoa natural (ou física) .................................................................................. 51

8.1. Morte encefálica ............................................................................................................. 51

8.2. Morte presumida............................................................................................................ 51

8.3. Comoriência ................................................................................................................... 54

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ................................................................................................................. 55


1. Teoria geral dos direitos da personalidade ........................................................................... 55

1.1. Personalidade Jurídica, capacidade jurídica e direitos da personalidade ........................ 55

1.2. Cláusula geral de proteção da personalidade: dignidade da pessoa humana ............... 56

1.3. Momento aquisitivo dos direitos da personalidade ....................................................... 58

1.4. Questões polêmicas relacionadas à aquisição dos direitos da personalidade ............... 58

1.5. Momento extintivo dos direitos da personalidade ........................................................ 60

1.6. Questões polêmicas relacionadas à extinção dos direitos da personalidade ................. 60

1.7. Fontes dos direitos da personalidade ............................................................................ 62

2
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.8. Direitos da personalidade e liberdades públicas ........................................................... 63

1.9. Direitos da personalidade da pessoa jurídica ................................................................ 64

1.10. Conflito entre direitos da personalidade e direitos de comunicação social................... 65

1.11. Características dos direitos da personalidade ............................................................... 67

1.12. Proteção jurídica dos direitos da personalidade ............................................................ 70

1.13. Direitos da personalidade das pessoas públicas ............................................................ 81

2. Dos direitos da personalidade em espécie ............................................................................ 81

2.1. Direito ao corpo vivo (art. 13 do CC).............................................................................. 82

2.2. Tutela jurídica do corpo morto (art. 14 do CC) .............................................................. 86

2.3. Livre consentimento informado ou autonomia do paciente (art. 15 do CC) ................. 87

2.4. Direito ao nome (arts. 16 a 19 do CC) ............................................................................ 88

2.5. Direito à imagem (Art.20) ............................................................................................. 91

2.6. Direito à privacidade (Art. 21) ....................................................................................... 93

DOMICÍLIO .................................................................................................................................................................. 94
1. Conceito ................................................................................................................................. 94

1.1. Morada............................................................................................................................... 94

1.2. Residência ...................................................................................................................... 94

1.3. Domicílio ........................................................................................................................ 94

2. Pluralidade de domicílios ...................................................................................................... 95

3. Domicílio profissional ........................................................................................................... 95

4. Mudança de domicílio ........................................................................................................... 96

5. Domicílio aparente ou ocasional ........................................................................................... 96

6. Domicílio da pessoa jurídica (art. 75 do CC) ......................................................................... 96

7. Classificações de domicílio .................................................................................................... 97

7.1. Domicílio voluntário ...................................................................................................... 97

7.2. Domicílio de eleição ....................................................................................................... 97

7.3. Domicílio legal ou necessário......................................................................................... 98

7.4. Outras Classificações ..................................................................................................... 99

DAS PESSOAS JURÍDICAS...................................................................................................................................... 100


3
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1. Introdução e conceito .......................................................................................................... 100

2. Teorias explicativas da pessoa jurídica ................................................................................101

2.1. Corrente negativista ......................................................................................................101

2.2. Corrente afirmativista ...................................................................................................101

3. Constituição da pessoa jurídica ........................................................................................... 102

4. Extinção da pessoa jurídica ................................................................................................. 104

4.1. Dissolução convencional .............................................................................................. 104

4.2. Dissolução administrativa ........................................................................................... 105

4.3. Dissolução judicial ....................................................................................................... 105

5. Espécies de pessoa jurídica de direito privado ................................................................... 105

5.1. Entes despersonalizados .............................................................................................. 106

6. Tipos fundamentais de pessoas jurídicas ............................................................................ 107

6.1. Fundações .................................................................................................................... 107

6.2. Associações (Arts. 53 a 61) ............................................................................................ 111

6.3. Sociedades (Arts. 966 e seguintes) ............................................................................... 114

7. Desconsideração da pessoa jurídica (“disregard doctrine”) ............................................... 118

7.1. Noções introdutórias..................................................................................................... 118

7.2. Tratamento legal .......................................................................................................... 120

7.3. Questões especiais referentes à desconsideração da pessoa jurídica .......................... 123

BENS JURÍDICOS ...................................................................................................................................................... 127


1. Noções introdutórias ............................................................................................................127

1.1. Terminologias ...................................................................................................................127

1.2. Conceito de bem jurídico ............................................................................................. 128

2. Classificação dos bens jurídicos .......................................................................................... 129

2.1. Quanto a tangibilidade................................................................................................. 129

2.2. Quanto a mobilidade.................................................................................................... 130

2.3. Quanto a fungibilidade ................................................................................................ 132

2.4. Quanto à consuntibilidade ou ao consumo.................................................................. 132

2.5. Quanto à divisibilidade ................................................................................................ 133

4
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.6. Quanto à individualidade............................................................................................. 134

2.7. Quanto à dependência (bens reciprocamente considerados) ...................................... 135

2.8. Quanto ao titular do domínio ...................................................................................... 138

2.9. Res nullius e res deperdita ........................................................................................... 139

3. Bem de Família.................................................................................................................... 140

3.1. Referencial histórico .................................................................................................... 140

3.2. Espécies de bem de família .......................................................................................... 140

FATOS JURÍDICOS ................................................................................................................................................... 146


1. Conceito ............................................................................................................................... 146

2. Classificação .........................................................................................................................147

2.1. Fato jurídico em sentido estrito ....................................................................................147

2.2. Ato-fato (Pontes de Miranda) .......................................................................................147

2.3. Ações ou fatos humanos................................................................................................147

NEGÓCIOS JURÍDICOS ............................................................................................................................................ 151


1. Conceito ................................................................................................................................ 151

2. Teorias explicativas do negócio jurídico .............................................................................. 151

2.1. Teoria voluntarista (teoria da vontade ou willens theorie) .......................................... 151

2.2. Teoria objetivista ou da declaração (erklärungstheorie) ............................................. 152

2.3. Teoria da pressuposição............................................................................................... 152

3. Classificação dos negócios Jurídicos ................................................................................... 152

3.1. unilaterais, bilaterais e plurilaterais ............................................................................ 152

3.2. gratuitos e onerosos ..................................................................................................... 153

3.3. Neutros e bifrontes ...................................................................................................... 154

3.4. Inter vivos e mortis causa ............................................................................................ 154

3.5. Principais, acessórios e derivados.................................................................................155

3.6. Solenes (formais) e não solenes (de forma livre) ..........................................................155

3.7. Simples, complexos e coligados ................................................................................... 156

3.8. Dispositivos e obrigacionais......................................................................................... 156

3.9. Negócio fiduciário e negócio simulado ......................................................................... 157

5
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4. Planos do negócio jurídico .................................................................................................. 158

4.1. Plano de existência (ou substantivo) ........................................................................... 159

4.2. Plano de validade .......................................................................................................... 161

4.3. Plano da eficácia do negócio jurídico ........................................................................... 164

5. Defeitos ou vícios do negócio jurídico ..................................................................................174

5.1. Vícios da vontade ou consentimento ............................................................................ 175

5.2. Vícios sociais ................................................................................................................ 189

6. Teoria da invalidade ............................................................................................................ 206

6.1. Princípio da conservação ............................................................................................. 206

6.2. Nulidade absoluta (negócio jurídico nulo) .................................................................. 206

6.3. Nulidade relativa (negócio jurídico anulável).............................................................. 210

6.4. Nulidade ou anulabilidade superveniente ................................................................... 215

6.5. Conversibilidade do negócio jurídico nulo .................................................................. 215

PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA: Art. 189 a 211 CC .......................................................................................... 217


1. Introdução ............................................................................................................................217

1.1. Características da prescrição e da decadência ................................................................. 218

2. Prescrição ............................................................................................................................ 220

2.1. Início do prazo prescricional ....................................................................................... 222

2.2. Renúncia à prescrição .................................................................................................. 223

2.3. Causas impeditivas, suspensivas e interruptivas da prescrição .................................. 224

3. Decadência .......................................................................................................................... 228

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ................................................................................................................................. 230


1. Introdução ........................................................................................................................... 230

1.1. Conceito ........................................................................................................................... 230

1.2. Direito das obrigações x direitos reais ......................................................................... 230

1.3. Significado de “Obrigação” e teorias justificadoras ..................................................... 232

1.4. Fonte das obrigações .................................................................................................... 235

1.5. Estrutura da relação jurídica obrigacional .................................................................. 235

2. Classificação das obrigações................................................................................................ 238

6
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1. Quanto à prestação ...................................................................................................... 238

2.2. Quanto à complexidade da prestação .......................................................................... 246

2.3. Quanto ao número de pessoas envolvidas: Estudo das obrigações solidárias (Art. 264 a
285) 249

2.4. Quanto à divisibilidade (ou indivisibilidade) do objeto obrigacional: Obrigações


divisíveis e indivisíveis (Arts. 257 a 263, CC) .................................................................................... 261

2.5. Quanto ao tempo do pagamento .................................................................................. 265

2.6. Obrigação de meio e de resultado ................................................................................ 265

3. Transmissão das obrigações ................................................................................................ 266

3.1. Cessão de crédito.......................................................................................................... 266

3.2. Cessão de débito (assunção de dívida)......................................................................... 270

3.3. Cessão de posição contratual (“cessão de contrato”) ....................................................271

4. Teoria do pagamento: Adimplemento obrigacional (arts. 304 a 388, CC) ......................... 274

4.1. Conceito ....................................................................................................................... 274

4.2. Elementos .................................................................................................................... 274

4.3. Natureza jurídica.......................................................................................................... 274

4.4. Requisitos ou condições para o pagamento ................................................................. 275

5. Formas especiais de pagamento.......................................................................................... 285

5.1. Pagamento em consignação (art. 334 a 345 do CC) .................................................... 285

5.2. Imputação do pagamento (Art. 352 a 355, CC) ........................................................... 287

5.3. Pagamento com sub-rogação ....................................................................................... 287

5.4. Dação em pagamento ................................................................................................... 291

5.5. Novação (Art. 360 a 367, CC) ...................................................................................... 293

5.6. Compensação (arts 368 a 380, CC) ............................................................................. 297

5.7. Confusão obrigacional (Arts. 381 a 384, CC) ............................................................... 302

5.8. Remissão de dívida (Arts. 385 a 388, CC) ................................................................... 304

6. Teoria do inadimplemento (Arts. 389 a 420, CC) ............................................................... 305

6.1. Inadimplemento absoluto (Arts. 389 a 393, CC) ......................................................... 306

6.2. Inadimplemento relativo (Arts. 394 a 401, CC) ........................................................... 307

7
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.3. Cláusula penal (Arts. 408 a 416, CC) ........................................................................... 313

6.4. Arras ou sinal (Arts, 417 a 420, CC) ............................................................................. 316

6.5. Juros no CC/02 ............................................................................................................ 320

TEORIA GERAL DOS CONTRATOS ..................................................................................................................... 323


1. Noções introdutórias ........................................................................................................... 323

1.1. Conceito de contrato ........................................................................................................ 323

2. Elementos de validade do contrato ..................................................................................... 324

2.1. Capacidade do agente .................................................................................................. 325

2.2. Objeto lícito, possível e determinado ou determinável ............................................... 325

2.3. Formalidade (forma prescrita ou não defesa em lei) ................................................... 326

2.4. Vontade livre e desembaraçada ................................................................................... 328

3. Direito intertemporal dos contratos ................................................................................... 328

4. Princípios fundamentais do direito contratual ................................................................... 329

4.1. Principío da autonomia privada .................................................................................. 330

4.2. Princípio da função social do contrato......................................................................... 331

4.3. Princípio da força obrigatória da convenção ou do contrato ....................................... 335

4.4. Princípio da boa-fé objetiva (Arts. 113, 187 e 422, CC) ................................................ 336

4.5. Princípio da relatividade dos efeitos contratuais (res inter alios) ............................... 342

4.6. Princípio do equilíbrio econômico e financeiro dos contratos .................................... 343

5. Regras de interpretação dos contratos ................................................................................ 345

5.1. Regra principal............................................................................................................. 346

5.2. Regras acessórias combinantes ................................................................................... 346

6. Formação dos contratos no Código Civil de 2002 .............................................................. 348

6.1. Tratativas, negociações preliminares ou puntuação.................................................... 349

6.2. Proposta, oferta ou policitação (Arts. 427 a 435, CC) .................................................. 349

6.3. Contrato preliminar (art. 462 a 466, CC) .................................................................... 351

6.4. Contrato definitivo ....................................................................................................... 354

7. Intervenção de terceiros nos contratos ............................................................................... 354

7.1. Promessa de fato de terceiro (art. 439 e seguintes do CC) .......................................... 354

8
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

7.2. Estipulação em favor de terceiro (arts. 436 e seguintes do CC) .................................. 355

7.3. Contrato com pessoa a declarar (arts. 467 e seguintes do CC) .................................... 355

8. Revisão judicial dos contratos ............................................................................................. 356

8.1. Teoria adotada pelo CC para a revisão dos contratos .................................................. 356

8.2. Requisitos clássicos para a revisão dos contratos ........................................................ 356

8.3. Revisão no CDC............................................................................................................ 358

9. Vícios redibitórios (Arts. 441 a 446, CC) ............................................................................. 359

9.1. Noções gerais ............................................................................................................... 359

9.2. Ações edilícias .............................................................................................................. 360

9.3. Prazos decadenciais das ações edilícias ....................................................................... 360

9.4. Hipóteses de descabimento da ação edilícia ................................................................ 363

9.5. Cláusula de garantia contratual ou decadência convencional ..................................... 363

10. Evicção................................................................................................................................. 363

10.1. Partes da Evicção ......................................................................................................... 365

10.2. Extensão da garantia.................................................................................................... 365

10.3. Evicção total e parcial .................................................................................................. 366

10.4. Aspectos processuais da evicção .................................................................................. 367

11. Extinção dos contratos (CC, arts. 472 a 480) ...................................................................... 367

11.1. Extinção normal ........................................................................................................... 368

11.2. Extinção por fatos anteriores à celebração .................................................................. 368

11.3. Extinção por fatos posteriores à celebração ................................................................ 369

11.4. Extinção por morte de um ou ambos os contratantes ................................................. 373

DOS CONTRATOS EM ESPÉCIE............................................................................................................................ 375


1. Compra e venda (481 a 532, CC) ......................................................................................... 375

1.1. Noções conceituais .......................................................................................................... 375

1.2. Classificação do contrato de compra e venda .............................................................. 377

1.3. Elementos constitutivos da compra e venda ............................................................... 378

1.4. Efeitos da compra e venda ........................................................................................... 387

1.5. Situações especiais de compra e venda ........................................................................388

9
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.6. Cláusulas especiais (pactos adjetos) do contrato de compra e venda ......................... 390

2. Doação ................................................................................................................................. 399

2.1. Noções conceituais ....................................................................................................... 399

2.2. Classificação da doação ................................................................................................ 401

2.3. Promessa de doação ..................................................................................................... 403

2.4. Elementos caracterizadores da doação ........................................................................404

2.5. Proibições legais à doação ............................................................................................ 407

2.6. Modalidades de doação e seus efeitos.......................................................................... 410

2.7. Revogação da doação (Art. 555 a 564, CC) .................................................................. 416

3. Locação (CC, arts. 565 a 578; e Lei 8.245/1991) ................................................................. 419

3.1. Noções conceituais ....................................................................................................... 419

3.2. Classificação da locação ............................................................................................... 421

3.3. Locaçãode imóveis urbanos (Lei 8.245/1991) ............................................................. 421

3.4. Benfeitorias na locação imobiliária.............................................................................. 428

3.5. Garantias locatícias (Art. 37 a 42, Lei 8.245/91) ......................................................... 428

3.6. Extinção da locação imobiliária ................................................................................... 429

3.7. Aspéctos processuais.................................................................................................... 431

4. Prestação de serviços (Arts. 593 a 609, CC) ........................................................................ 433

4.1. Noções conceituais ....................................................................................................... 433

4.2. Classificação da prestação de serviços ......................................................................... 433

4.3. Regras quanto à prestação de serviços ........................................................................ 434

4.4. Extinção da prestação de serviços e seus efeitos ......................................................... 435

5. Empreitada .......................................................................................................................... 436

5.1. Noções conceituais ....................................................................................................... 436

5.2. Classificação da empreitada ......................................................................................... 436

5.3. Moalidades de empreitada ........................................................................................... 437

5.4. Regras quanto à empreitada ........................................................................................ 438

6. Emprestimo (Arts 579 a 592, CC) .......................................................................................440

10
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.1. Classificação do contrato de empréstimo ....................................................................440

6.2. Comodato (Art. 579 a 585, CC) .................................................................................... 441

6.3. Mútuo ........................................................................................................................... 447

7. Fiança (CC, arts. 818 a 839) ................................................................................................ 451

7.1. Noções conceituais ....................................................................................................... 451

7.2. Classificação da fiança ................................................................................................. 451

7.3. Principais regras da fiança ........................................................................................... 452

7.4. Extinção da fiança ........................................................................................................ 453

RESPONSABILIDADE CIVIL.................................................................................................................................. 455


1. Conceitos iniciais ................................................................................................................. 455

1.1. Responsabilidade contratual e extracontratual............................................................... 455

1.2. Abuso de direito ........................................................................................................... 457

2. Elementos da responsabilidade civil extracontratual ou pressupostos do dever de indenizar


459

2.1. Conduta humana.......................................................................................................... 459

2.2. Nexo de causalidade..................................................................................................... 463

2.3. Dano ou prejuízo .......................................................................................................... 466

3. Classificação da responsabilidade quanto à culpa .............................................................. 477

3.1. Responsabilidade subjetiva ......................................................................................... 477

3.2. Responsabilidade objetiva ........................................................................................... 478

4. Causas excludentes da responsabilidade civil ..................................................................... 481

4.1. Estado de necessidade e legítima defesa ..................................................................... 481

4.2. Exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever legal ............................. 483

4.3. Excludentes do nexo de causalidade............................................................................ 484

4.4. Responsabilidade pressuposta ..................................................................................... 489

5. Responsabilidade pelo fato da coisa e do animal ................................................................490

5.1. Responsabilidade pelo fato do animal .........................................................................490

5.2. Responsabilidade pelo fato da coisa ............................................................................ 491

6. Responsabilidade por ato de terceiro .................................................................................. 492

11
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.1. Noções gerais ............................................................................................................... 492

6.2. Hipóteses de responsabilidade objetiva por fato de terceiro ....................................... 494

7. Responsabilidade civil do transportador ............................................................................ 498

7.1. Transporte de pessoas (Art. 734, CC) .......................................................................... 498

7.2. Transporte de coisas (Art. 750, CC) ............................................................................. 499

8. Responsabilidade civil na jurisprudência brasileira ...........................................................500

8.1. Responsabilidade civil médica .....................................................................................500

8.2. Responsabilidade do advogado.................................................................................... 502

8.3. Responsabilidade das locadoras de veículos ............................................................... 502

8.4. Responsabilidade pelo transporte de mera cortesia (carona) ..................................... 502

8.5. Responsabilidade civil do transportador aeronáutico ................................................. 503

8.6. Responsabilidade civil dos condomínios ..................................................................... 504

DIREITO DAS COISAS ............................................................................................................................................. 505


1. Introdução ........................................................................................................................... 505

1.1. Direito das coisas X Direitos reais ................................................................................... 505

1.2. Diferenças entre direitos reais e direitos pessoais ....................................................... 507

2. Posse (Art. 1.196 a 1.224, CC) .............................................................................................. 508

2.1. Noções gerais sobre a posse ......................................................................................... 508

2.2. Objeto da posse ............................................................................................................ 516

2.3. Mera detenção .............................................................................................................. 516

2.4. Composse ..................................................................................................................... 518

2.5. Classificação da posse e seus efeitos ............................................................................ 519

2.6. Efeitos jurídicos da posse............................................................................................. 527

2.7. Aquisição, transmissão e perda da posse ..................................................................... 533

3. Propriedade ......................................................................................................................... 535

3.1. Noções gerais ............................................................................................................... 535

3.2. Função social e socioambiental da propriedade (art. 5º, XXIII, CF; art. 186, CF; art.
170, CF; art. 225, CF; art. 1228, § 1º, CC). ......................................................................................... 539

3.3. Extensão do direito de propriedade ............................................................................. 544

12
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.4. A descoberta ................................................................................................................. 544

3.5. Tutela jurídica da propriedade .................................................................................... 545

3.6. Propriedade resolúvel .................................................................................................. 546

3.7. Propriedade aparente .................................................................................................. 549

3.8. Modos aquisitivos da propriedade ............................................................................... 549

4. Condomínio ......................................................................................................................... 565

4.1. Noções gerais ............................................................................................................... 565

4.2. Espécies ........................................................................................................................ 566

5. Estudos breves sobre a multipropriedade imobiliária ........................................................ 583

6. Direitos reais na coisa alheia ............................................................................................... 584

6.1. Teoria geral dos direitos reais na coisa alheia ............................................................. 584

6.2. Classificação dos direitos reais na coisa alheia ............................................................ 586

6.3. Direito real na coisa alheia de aquisição: promessa irretratável de compra e venda .. 590

6.4. Direito real na coisa alheia de garantia........................................................................ 595

6.5. Direitos reais na coisa alheia de gozo ou fruição ......................................................... 618

DIREITO DE FAMÍLIA ............................................................................................................................................ 637


1. Noções gerais....................................................................................................................... 637

1.1. Conceitos iniciais ............................................................................................................. 637

1.2. Paradigmas do direito de família .................................................................................640

1.3. Caráter instrumental e direito de família mínimo ....................................................... 642

1.4. Direitos e garantias fundamentais aplicáveis às relações de família ........................... 643

1.5. Princípios constitucionais do direito de família .......................................................... 645

1.6. Afeto como valor jurídico ............................................................................................. 654

1.7. Família homoafetiva .................................................................................................... 656

2. Casamento ........................................................................................................................... 658

2.1. Conceito ....................................................................................................................... 658

2.2. Natureza Jurídica do casamento.................................................................................. 659

2.3. Pressupostos existenciais do casamento...................................................................... 661

2.4. Capacidade para o casamento ...................................................................................... 663

13
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.5. Tipos básicos de casamento ......................................................................................... 665

2.6. Formas especiais de casamento ................................................................................... 665

2.7. Promessa de casamento, noivado ou esponsais........................................................... 665

2.8. Plano de validade do casamento: impedimentos matrimoniais .................................. 666

2.9. Plano de eficácia do casamento ................................................................................... 677

2.10. Regime de bens (Arts. 1.639 a 1.688, CC) ................................................................... 680

2.11. Outorga uxória ............................................................................................................. 691

2.12. Pacto Antenupicial ....................................................................................................... 693

2.13. Prova do casamento ..................................................................................................... 694

2.14. Modalidades de casamento .......................................................................................... 695

2.15. Habilitação para o casamento ...................................................................................... 697

2.16. Celebração do casamento............................................................................................. 699

2.17. Dissolução do casamento e da sociedade conjugal ...................................................... 703

3. União estável ....................................................................................................................... 723

3.1. Histórico....................................................................................................................... 723

3.2. Noções gerais – Conceito e elementos essenciais ........................................................ 725

3.3. Efeitos jurídicos reconhecidos pela jurisprudência ao concubinato ........................... 729

3.4. Noções fundamentais e diferenciação entre união estável, concubinato e união livre 731

3.5. Requisitos caracterizadores da união estável .............................................................. 732

3.6. Efeitos pessoais da união estável ................................................................................. 735

3.7. Efeitos patrimoniais da união estável .......................................................................... 739

3.8. Conversão da união estável em casamento ...................................................................741

4. Parentesco e reconhecimento de filhos (Art. 1.591 a 1.617, CC) ...........................................741

4.1. Parentesco no direito civil.............................................................................................741

4.2. Reconhecimento de filhos e filiação............................................................................. 744

5. Dos alimentos ...................................................................................................................... 762

5.1. Noções gerais ............................................................................................................... 762

5.2. Pressupostos ou requisitos para a prestação (Art. 1.694 a 1.695, CC) ......................... 764

14
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.3. Características dos alimentos ...................................................................................... 764

5.4. Espécies ......................................................................................................................... 771

5.5. Sujeitos da obrigação alimentícia ................................................................................ 778

5.6. Extinção da obrigação alimentar ................................................................................. 780

DIREITO DAS SUCESSÕES..................................................................................................................................... 782


1. Introdução ao direito das sucessões.................................................................................... 782

1.1. A sucessão e o direito das sucessões ................................................................................ 782

1.2. Objeto do direito das sucessões ................................................................................... 783

1.3. Terminologias essenciais do direito das sucessões ...................................................... 786

1.4. Modalidades básicas de sucessão ................................................................................ 789

1.5. Herança e sua administração ....................................................................................... 789

2. Da sucessão em geral........................................................................................................... 793

2.1. Abertura da sucessão (droit de saisine ou princípio de saisine) .................................. 793

2.2. Vocação hereditária e capacidade para suceder .......................................................... 797

2.3. Excluídos da sucessão: Indignidade e deserdação....................................................... 801

2.4. Cessão de direitos hereditários ................................................................................... 806

2.5. Aceitação da herança .................................................................................................. 809

2.6. Renúncia da herança.................................................................................................... 812

2.7. Petição de herança ....................................................................................................... 815

3. Da sucessão legítima ........................................................................................................... 816

3.1. Introdução: Tabela comparativa dos sistemas sucessórios ......................................... 816

3.2. Ordem de vocação sucessória ...................................................................................... 818

3.3. Sucessão do descendente .............................................................................................820

3.4. Sucessão do ascendente ............................................................................................... 821

3.5. Sucessão do cônjuge..................................................................................................... 823

3.6. Direito real de habitação do cônjuge e do companheiro ............................................. 829

4. Da sucessão dos colaterais ..................................................................................................830

4.1. Regras quanto à sucessão dos colaterais/transversais: ...............................................830

5. Da sucessão testamentária .................................................................................................. 832

15
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.1. O testamento ................................................................................................................ 832

5.2. Pressupostos do testamento ........................................................................................ 834

5.3. Impugnação da validade do testamento e modalidades ..............................................838

5.4. Codicilo ........................................................................................................................ 845

5.5. Cláusulas testamentárias ............................................................................................. 846

5.6. Redução de cláusulas testamentárias .......................................................................... 850

5.7. Direito de acrescer ....................................................................................................... 851

5.8. O testamenteiro............................................................................................................ 852

16
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Mensagem Cadernos Magis:

Olá Concurseiro, fico feliz que você tenha chegado a esse material, ou que esse material te-
nha chegado até você!
Ele é o meu material de uso pessoal para o estudo e confio nele para minha preparação pa-
ra o concurso da Magistratura Estadual (embora acredite que pode ajudar bastante para MPE e
Defensoria Pública).
A elaboração dos cadernos passa por uma mistura de várias fontes, principalmente as aulas
que assisti.
Entretanto, utilizei muitos outros materiais para compor a versão final desse caderno, de
modo a compilar ideias importantes que por ventura foram cobradas em provas ou não exauri-
das em aula, sendo possível que faltem algumas referências a todas as obras ou materiais.
Dito isso, e no intuito de fazer justiça à fonte correta, se por qualquer motivo alguém quei-
ra reivindicar qualquer crédito nesse material peço a gentileza de enviar uma mensagem no “di-
rect” do instagram @cadernosmagis e terei prazer de incluir a referência no local indicado ou se
for o caso retirar a parte relativa do material disponibilizado.
Lembro sempre que o intuito de disponibilizar esse material é favorecer a comunidade de
Concurseiros que arduamente se dedicam para obter a almejada aprovação, de modo que não
busco qualquer lucro ou reconhecimento pessoal e muito menos prejudicar de qualquer forma
outros produtores de conteúdo.
Peço ainda a gentileza de me alertar, também pelo “direct” ou email, caso haja alguma in-
formação desatualizada para que eu possa corrigir em futuras edições.
Espero que o material seja útil e possa ajudar nessa dura caminhada!
Espalhem a palavra!
Abraços e bons estudos!

17
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEI-


RO:

1. Aspectos Iniciais:
Inicialmente, é importante consignar que a Lei de Introdução é uma norma de sobredireito (“nor-
ma sobre normas” ou “lex legum).
Dessa maneira, se de um lado as normas jurídicas são dirigidas a todos (generalidade), de outro a
LINDB é destinada ao legislador e ao aplicador do Direito (juiz, por exemplo). Exemplos:

Art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e
os princípios gerais de direito”.

Art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum”.

A LINDB, na verdade, é um diploma legal multidisciplinar que se aplica universalmente a qualquer


ramo do direito. É, portanto, um código geral sobre a elaboração e aplicação das normas jurídicas; tem
como objetivo, a elaboração, vigência e aplicação de leis. Seja qual for o ramo do direito, as normas de-
vem ser elaboradas e aplicadas conforme LINDB.
A lei de introdução, que hoje introduz as normas do direito brasileiro Lei 12.376/2010, era a até
2009 a parte introdutória ou a lei introdutória ao Código Civil, antigo Decreto-lei 4.957/42.
Em verdade, a Lei de Introdução nunca fez nem faz parte do Código Civil, a prática de se utilizar de
uma “lei introdutória” remonta ao direito francês, que após a revolução francesa, vinha de anos de abso-
lutismo e uma nova legislação alterou fundamentalmente a sociedade e acrescentando valores até então
desconhecidos, ex. propriedade privada, por isso, necessitando de regras de transição para o sistema, foi
criada a Lei de introdução ao Código Civil Frances, em 1.804, adaptando a sociedade àquelas mudanças.
No Brasil, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1.916, houve também, nesse mesmo mode-
lo uma Lei de Introdução, que foi alterada pelo Decreto-lei 4.957/42, entretanto, no país a lei se preocu-
pou também em criar regras introdutórias para todas as normas, e não somente ao Código Civil.
Assim, a Lei 12.376/2010, acabou por adequar as coisas, alterando seu nome, e aclarando a situa-
ção1.

1.1. Estrutura da LINDB:

1 Questão n. 1: a alteração do nome de “LICC” para “LINDB” tem justificativa? Sim, pois a Lei de Introdução é

dirigida não só ao Direito Civil como a todos os ramos do Direito. Exemplo: Direito Internacional (público ou pri-
vado) - por assim ser a LINDB também é denominada de “Estatuto do Direito Internacional”.

18
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A estrutura da Lei é elaborada para cuidar de todo ciclo da norma, fazendo com que o sistema jurí-
dico tenha um mecanismo seguro para recepcionar todas as leis.

i. Vigência das Normas: Art. 1º e 2º;


ii. Obrigatoriedade das normas: Art. 3º
iii. Integração das normas: Art. 4º
iv. Integração das normas: Art. 5º
v. Aplicação da norma no tempo: Art. 6º
vi. Aplicação da norma no espaço: Art. 7º/ 18º

2. Fontes do direito:
2.1. Visão clássica

Tendo como parâmetro a Lei de Introdução, a palavra “fonte” tem tanto o sentido de origem como
o de quais sejam as manifestações jurídicas (ou formas de expressões do Direito).

2.1.1. Fontes formais: constam da Lei de Introdução como fontes.

2.1.1.1. Fonte formal primária: lei (sistema da “civil law”)

O Direito Brasileiro sempre foi filiado à escola da Civil Law, de origem romano-germânica, pela
qual a lei é fonte primária do sistema jurídico. Assim ainda o é, apesar de todo o movimento de valoriza-
ção do costume jurisprudencial, notadamente pela emergência da súmula vinculante como fonte do di-
reito, diante da Emenda Constitucional 45/2004.
Dessa maneira, segundo Goffredo Telles Jr, seguido por Maria Helena Diniz, a lei é a norma jurídi-
ca. Ela é um imperativo autorizante:
a) Imperativo: emanado de autoridade competente, sendo dirigida a todos (generalidade/vigência
sincrônica).
b) Autorizante: autoriza ou não autoriza condutas.
Ademais, a norma jurídica tem obrigatoriedade. Assim, ninguém pode deixar de cumprir a lei ale-
gando não a conhecer.

Art. 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Fundamentos do art. 3º (correntes):


i. Ficção.
ii. Presunção.
iii. Necessidade social (prevalece em concurso), cf. Zeno Veloso, Maria Helena Diniz e Flávio
Tartuce.

19
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Lembrar que a regra do art. 3º da LINDB não é absoluta. Ex.de exceção: possibilidade de anula-
ção de um negócio jurídico por erro de direito (Art. 139 CC desconhecimento da lei 2).
Obs.: Não confundir “subsunção” com “integração”:
i. Subsunção: aplicação direta da lei.
ii. Integração: aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do Direito.
Obs.: A súmula vinculante (CF, art. 103-A) é uma fonte formal, pois tem previsão na Constituição
Federal de 1988. Ela está em uma posição intermediária entre a fonte primária e as secundárias (nature-
za “sui generis”). É a posição de Walber Moura Agra.

2.1.1.2. Fontes formais secundárias (art. 4º): analogia, costumes e princípios gerais
do Direito

O tema será tratado em maiores minúcias no item 5, em resumo, as fontes formais secundárias
aplicam-se na falta da lei, ou seja, quando a lei for omissa (LINDB, art. 4º), havendo a chamada lacuna
normativa.
As fontes formais secundárias são denominadas de “ferramentas de correção do sistema” (Maria
Helena Diniz). São elas: analogia, costumes e princípios gerais do Direito.
Segundo uma corrente clássica, a ordem acima deve ser rigorosamente obedecida, é o entendimen-
to de Maria Helena Diniz e Washington de Barros Monteiro.
Entretanto, segundo uma visão contemporânea (prevalente, mas importante analisar a posição
da banca) o juiz não é obrigado a aobservar a ordem do Art. 4º. uma vez que os princípios
constitucionais têm prevalência de aplicação. Corrente defendida por Zeno Veloso, Tepedino e Daniel
Sarmento3.
Ademais, os princípios constitucionais não são aplicados somente em caso de lacuna, eles podem
ter aplicação imediata. Exemplo: julgamento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC (sucessão do
companheiro).

2.1.2. Fontes não formais: não constam da Lei de Introdução como fontes. Subdividem-
se em:
i. Doutrina.
A doutrina é interpretação do Direito feita pelos estudiosos. Exemplos: dissertações de mestrado,
teses de doutorado, manuais, cursos, tratados e enunciados do CJF (Jornadas de Direito Civil) - os enun-
ciados não tem força vinculativa.

2 CC, art. 139: “O erro é substancial quando: (...)


III- sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio
jurídico”.
3 Nesse sentido, é de se notar que o próprio art. 8º do novo CPC, que complementa o art. 5º da LINDB, cita,

em primeiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa humana.

20
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. Jurisprudência.
É a interpretação do Direito feita pelos Tribunais. Exemplos: súmulas dos Tribunais Superiores
(STF e STJ).
É importante lembrar que o Código de Processo Civil de 2015 valorizou sobremaneira a jurispru-
dência que passou a ter força vinculativa - exemplos: CPC, arts. 332, § 1º, 489, § 1º, 926, 927. Assim, po-
de-se sustentar que o CPC quebra com a ideia de que a jurisprudência é fonte não formal.
A jurisprudência consolidada pode ser considerada como costume judiciário (Maria Helena Diniz).
iii. Equidade
Na visão clássica do Direito Civil, a equidade, entendida por Arinstóteles como a justiça do caso
concreto, era tratada não como um meio de suprir a lacuna da lei, mas sim como um mero meio de auxi-
liar o juiz nessa missão, Washington de Barros Monteiro e Maria Helena Diniz compartilham essa ideia.
De outro lado, uma visão contemporânea, e mais exigida em provas, equidade é fonte do Direito re-
tirada do art. 5º da LINDB, o qual faz menção ao fim social da norma e ao bem comum (dar a cada um o
que é seu).
Assim, é possível concluir que equidade é fonte do Direito Civil, pois o Código Civil de 2002 adotou
um sistema aberto baseado em cláusulas gerais, na lição de Pablo Stolze e Pamplona.
Ato contínuo de estudo, a equidade, de acordo com a doutrina, pode ser classificada da seguinte
forma:
a) Equidade legal – aquela cuja aplicação está prevista no próprio texto legal. Exemplo pode ser
retirado do art. 413 do CC/2002, que estabelece a redução equitativa da multa ou cláusula pe-
nal como um dever do magistrado (“A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz
se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for ma-
nifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”).
b) Equidade judicial – presente quando a lei determina que o magistrado deve decidir por
equidade o caso concreto. Isso pode ser notado pelo art. 127 do CPC/1973, pelo qual “o juiz só
decidirá por equidade nos casos previstos em lei”. Como visto, a norma foi repetida pelo art.
140, parágrafo único, do CPC/2015.

3. Vigência da Norma: Artigo 1º e 2ºLINDB


3.1. Início da vigência

Inicialmente é importante consignar que a lei entra em “vigor” quando preenche três requisitos:
a) Quando a lei Existe.
b) Quando a lei é Válida (requisitos formais).
c) Quando a lei é Eficaz (aplicabilidade).
No dirieto civil são apontadas três fases para o início da vigência das normas:

21
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Elaboração;
b) Promulgação;
c) Publicação.
A lei passa a existir no momento de sua promulgação, entretanto, o fato de ela existir ainda não
implica em sua obrigatoriedade, ou vigência.
Seguindo-se as fases de publicação e vacatio legis, que é o lapso temporal destinado às pessoas pa-
ra que tomem conhecimento de uma nova lei.
Obs.: Os atos administrativos em geral, normalmente não possuem vacatio legis, entrando em vi-
gor na data de sua publicação.
Assim o Art. 1º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro tratam diretamente da do
momento da vigência da norma, estabelecendo a regra geral para a vacatio legis, 45 dias depois de
oficialmente publicada, no território nacional, e três meses no território estrangeiro.

Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias
depois de oficialmente publicada.

§ 1º Nos Estados, estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia


três meses depois de oficialmente publicada.

§ 2º (Revogado pela Lei nº 12.036, de 2009).

§ 3º Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a corre-
ção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação.

§ 4º As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova.

Observa-se que o Art. 1º deve ser lido em consonância com o Art. 8º da LC 95/98, que estabelece
que:

Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável
para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua
publicação" para as leis de pequena repercussão.

§ 1º A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância
far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia
subsequente à sua consumação integral.

§ 2º As leis que estabeleçam período de vacância deverão utilizar a cláusula ‘esta lei entra em vi-
gor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial’

Assim, não sendo a lei de pequena repercussão, a vigência da lei deverá ser declarada de modo ex-
presso e contemplar prazo razoável (vacatio), entretanto, toda vez que o legislador não estabelecer o pra-
zo expressamente, vale a regra geral do Art. 1º da LINDB.

22
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O período de vacatioserá computado incluindo o primeiro E o último dia, entrando a lei em


vigor no dia subsequente à consumação integral. Assim, sob o ponto de vista prático, o resultado
será o mesmo do previsto no Art. 1324 do Código Civil, em que pese teoricamente, diferentes.

Uma vez publicada, a lei já existe, ela apenas não tem vigência, por isso, a modificação de uma lei
em período de vacatio, destinada a corrigi-la, o prazo para a entrada em vigor, começará a correr no-
vamente, mas apenas para a parte alterada. Ou seja, interrompe-se o prazo de vacatioapenas no
que foi alterada, a parte inalterada, o prazo continua a correr. Mas, se a intenção for mudança do conteú-
do, ela deverá ser feita por lei nova, com um novo prazo.

Obs.: De acordo com paragrafo 4º do Art. 1º, se a correção tiver por objeto lei lá em vigor, deverá
ser feito por lei nova.

Assim, uma vez em vigor, cumprida a vacatio, a lei se submete ao princípio da continuidade,
previsto no Art. 2º da LINDB.

Art. 2º: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou
revogue.

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela in-
compatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não re-
voga nem modifica a lei anterior.

§ 3ºSalvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdi-
do a vigência.”

3.2. Fim da vigência

3.2.1. Revogação da Lei:

Pela LINDB, a principal forma de retirada da vigência de uma lei é pela revogação desta por outra
norma jurídica.

4CC 132: “ Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do
começo, e incluído o do vencimento. § 1o Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o pra-
zo até o seguinte dia útil. § 2o Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. § 3o Os prazos de
meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. § 4o Os
prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto.

23
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, a revogação de uma lei pode ser:

a) Quanto ao modo
i. Expressa: Quando a própria lei expressa a revogação. Ou seja, a regovação é taxativamente pre-
vista na norma anterior nos termos do Art. 9º da LC 95/985
ii. Tácita: Quando houver incompatibilidade da lei anterior com a posterior ( revogação por in-
compatibilidade); Quando houver regulamentação total da matéria pela lei nova.
Obs.: Se a lei nova que traz disposições “a par” são disposições ao lado das previstas na lei antiga,
assim, a lei anterior permanece intacta, não sendo revogada ou modificada, conforme Art. 2º, § 2º da
LINDB. Trata da lei com sentido complementar, a qual não revoga disposições anteriores sobre o tema.
Exemplo: Lei dos alimentos gravídicos (Lei n. 11.804/08): não revogou o Código Civil de 2002 em maté-
ria de alimentos (apenas acrescentou).

b) Quanto à extensão (amplitude)


i. Revogação total (ab-rogação).
ii. Revogação parcial (derrogação).

3.2.2. O fenômeno da repristinação:


A repristinação é o restabelecimento dos efeitos de uma lei que foi revogada pela revogação da lei
revogadora.
Entretanto, no Brasil, tal fenômeno não admitido, nos termos do Art. 2º § 3º da LINDB6.
Ex.: Lei A → Lei B → Lei C. A Lei C revoga a Lei B, os efeitos da Lei A não serão restabelecidos.
Assim, a revogação da lei revogadora não estabelece os efeitos da lei revogada, salvo se assim esti-
ver expressamente previsto na norma revogadora.
Obs.: Entretanto, se a lei revogadora , expressamente restabelecer os efeitos da lei revogada, o que
estará em vigor é a lei revogadora, não a lei revogada, ainda assim, na teoria isso não é repristinação.
O que se admite, entretanto, em alguns casos excepcionais, é o chamado efeito repristinatório,
Ex. A Lei 9.868/98 nos seus artigos 27 e 28, estabelece que a lei declarada inconstitucional, deverá ser
tratada como nula, e “do nulo nada vem” assim, será tratada como um inexistente jurídico, e se não hou-
ver qualquer modulação de seus efeitos pelo STF, terá o chamado efeito repristinatório, trazendo de vol-
ta a lei revogada ao vigor.

5Art. 9º: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.”

6 § 3ºSalvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigên-
cia.”

24
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4. Obrigatoriedade das normas: Art. 3º da LINDB


É a chamada proibição de alegação de erro de direito, ou seja, presume-se que todos conheçam a
lei.
Assim, durante a vacatio legis, que é o período utilizado para que todos se interem a respeito da
inovação ao ordenamento jurídico, presume-se que todos assim, o façam.
Entretanto, essa presunção é relativa, uma vez que há diversas regras que a excepcionam, admi-
tindo assim a alegação do “erro de direito”, observa-se porém que tal alegação só pode ser feita quan-
do a própria lei autoriza. Ex. CC 139, III, CC 1.561, Lei de Contravenções Penais, art. 8º e CP 65, II.

Art. 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Embora toda lei sejam obrigatórias, é de se observar que elas podem ser:
a) Cogentes: São aquelas que não admitem mudanças em seu conteúdo pela vontade das par-
tes, são imperativas, de ordem pública, Ex. Impedimentos matrimoniais
b) Dispositivas: São aquelas que permitem a modificação de seu conteúdo protetivo pelos inte-
ressados, Ex. Art. 490 do CC.

5. Integração da norma:
O sistema jurídico brasileiro consagra a vedação ao non liquet, isso significa que é vedado ao
juiz deixar de julgar um caso concreto, alegando o desconhecimento da lei (iuria novit curiae) ou ausên-
cia de legislação.
Há uma exceção prevista no Art. 376 do NCPC7, pois o juiz agora pode alegar o desconhecimento da
norma, determinando que a parte prove a existência e a vigência da norma, quando o direito alegado for
municipal, estadual, desde que alienígena ao estado onde tem jurisdição, consuetudinário e estrangeiro8.
Em relação a eventuais lacunas na legislação, a Art. 4º prevê que quando a lei for omissa, o juiz de-
cidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 4o: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costu-
mes e os princípios gerais de direito.”

7 “Art. 376: A parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o
teor e a vigência, se assim o juiz determinar.”
8 O protocolo de Las Leñas estabelece que quando se tratar de lei dos países do Mercosul (Argentina, Para-
guai, Uruguai, Venezuela e Brasil) não é necessário a prova da vigência e do teor delas, ainda presume-se que o juiz
brasileiro a conheça.

25
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Os critérios são taxativos e preferenciais, dessa forma, havendo lacuna, primeiro parte-se para
a analogia, em seguida aos costumes e por fim aos princípios gerais de direito.
Esses são os únicos modos de integração do direito, que significa o preenchimento de lacu-
nas para garantir a unicidade do ordenamento jurídico.
O ordenamento, em hipóteses taxativamente previstas em leis, permite que o juiz possa decidir
com base na equidade, essas são hipóteses excepcionalíssimas. Ex. Art. 723, p. único do NCPC
decisões nos processos de jurisdição voluntária;

5.1. Analogia:
A analogia é aplicação de uma norma próxima ou de um conjunto de normas próximo não havendo
lei para determinado caso concreto.

Esta comparação pode feita com i) Uma outra norma (Analogia Legal ou legis): ou seja integra-se
com a comparação de uma lei prevista para um caso parecido (análogo); ii) O sistema jurídico como um
todo (Analogia Jurídica ou Iuris).
O ordenamento restringe o uso da analogia em sede do Direito Penal e Tributário, só se admitindo
o uso da analogia em favor do réu ou do contribuinte, respectivamente, é a chamada Analogia in bonam
partem.
Para o professor, a analogia, em que pese prevista na legislação como meio de integração do direi-
to, ela tecnicamente seria um mecanismo de interpretação do direito, onde se interpreta o caso concreto,
a luz de um caso semelhante.
Como Ex. no julgamento do STF sobre a união homoafetiva (Inf. n. 625) ficou decidido que a união
homoafetiva é entidade familiar, e que todas as normas da união estável heteroafetiva aplicam-se, por
analogia, para a união estável homoafetiva.
É importante ainda não confundir9 “analogia” com “interpretação extensiva”:
a) Analogia: outra norma é aplicada (há integração do direito).
b) Interpretação extensiva: apenas amplia-se o sentido da norma já aplicável ao caso (não há
integração mas sim subsunção).

5.2. Costumes
Costumes são práticas e usos reiterados com conteúdo lícito e relevância jurídica. Ex. CC, art. 113,
as chamadas “regras de trafego”.

De se notar que no direito brasileiro, há três tipos de costume:

9 Exemplo: regra: “aqui não podem circular os camelos amarelos”: Aplicar a regra a camelos marrons: inter-

pretação extensiva. Aplicar a regra a dromedários: analogia.

26
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Contra Legem: é a hipótese de costume “contra a lei”, que implicam num descumprimento
da lei, é caso de ato ilícito. O direito brasileiro não admite costumes desse tipo, a não ser
que a lei contrariada tenha caído em desuso.
b) Secundum Legem: é a hipótese em que a lei brasileira determina a aplicação dos costumes,
Ex. Art. 445, § 2º do CC10, é caso de aplicação da própria lei, ou seja, não há integração, mas
sim subsunção.
c) Praeter Legem: é a hipótese de inexistência da norma reguladora nem de casos análogos em
que o juiz terá de se valer efetivamente dos costumes para julga o caso concreto. Esse é o tipo
específico da integração do direito. Exemplo: cheque pós-datado – S. 370 STJ: “Caracteriza
dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado”.

5.3. Princípios Gerais de Direitos:


Princípios Gerais do Direito são regramentos básicos aplicáveis a determinado instituto jurídico e
que são abstraídos das normas, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e soci-
ais (Rubens Lmongi Frana).
Pelo conceito acima é possível observar que os princípios podem ou não estar expressos nas nor-
mas jurídicas. Ex. Função social do contrato: expresso no Código Civil (art. 421) e implícito ao CDC.
Segundo Paulo Bonavides, com a Constituição de 1988 os antigos princípios gerais do Direito ga-
nharam status constitucional, tendo prioridade de aplicação. Eles passaram a ser aplicados mesmo ha-
vendo lei para o caso concreto.
Observa-se que os princípios, segundo o Nelson Nery, podem ser divididos em duas grandes cate-
gorias:
a) Princípios Fundamentais: Que tem força normativa, vinculativa, essa força normativa se
apresentam uma vez que os princípios dessa espécie decorrem de normas escritas, porém de
conteúdo aberto, Ex. Presunção de inocência, presunção de hipossuficiência, pluralidade das
famílias, boa fé objetiva.
b) Informativos/Gerais: São os “postulados” na lição de Humberto Ávila, são apenas três, a. Não
lesar a ninguém; b. Viver honestamente; c. Dar a cada um o que é seu; Não tem força normati-
va, seria um “critério de desempate”.

6. Interpretação da norma: Art. 5º LINDB

10 “§ 2º: Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão estabelecidos
em lei especial, ou, na falta dessa, pelos usos locais(...)”

27
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Interpretar é definir o seu sentido e o seu alcance, assim, toda a aplicação de norma deve ser prece-
dida de uma interpretação.

Ainda que a lei seja clara ela deverá ser interpretada, justamente para que se conclua pela sua cla-
reza.

Nesse sentido, a LINDB estabelece no Art. 5º um “caminho” para que a norma seja devidamente
interpretada.

Art. 5o: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigên-
cias do bem comum”.

Assim, é possível afirmar sem dúvida que a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro ado-
tou uma interpretação sociológica, consagrada na expressão “fins sociais a que se dirige a norma” posi-
ção adotada, inclusive, pelo STJ11 .

Quanto ao resultado, a interpretação da lei pode conduzir a um:

a. Resultado Ampliativo: é o caso de interpretação de direitos fundamentais e sociais, pois eles


necessitam um alargamento de seu alcance;
b. Resultado Restritivo: é o caso das normas sancionatórias, ex. claro Art. 114 do CC12.
c. Resultado Declarativo: é o caso das normas em relação do direito administrativo, uma vez que
vigora para elas o princípio da legalidade.

6.1.1. Desacordos morais razoáveis13:

Não se pode invocar tais desacordos para diminuir ou excluir direitos fundamentais das minorias.

A posição do STF tem sido no sentido proteger as minorias contra os desacordos morais. Ex. ADPF
54/DF, permitiu o aborto do feto encefálico, mesmo que a posição majoritária fosse contra às minorias;

7.Aplicação da norma no tempo: Art. 6º LINDB


O direito brasileiro acolhe expressamente o princípio da irretroatividade da lei, ou seja, a lei nova
se destina em regra, aos fatos pendentes e futuros, não se aplicando aos fatos pretéritos.

11 A finalidade social a que se dirige a norma jurídica (STJ, REsp.41.110/SP).


12 “Art. 114: Os negócios jurídicos benéficos e a renuncia interpretam-se restritivamente.”
13 STF, RE 845.779/SC, rel. Min. Luís Roberto Barroso: Reconhece o direito de indenização de um transexual
que foi retirado de um banheiro feminino num shopping, está em vista para o Min. Luiz Fux, que estuda a aplicação
da teoria do desacordo moral razoável.

28
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Dessa forma, a irretroatividade é regra e retroatividade é exceção.


Entretanto, a lei nova poderá prever desde que expressamente, efeitos retroativos, porém tal efeito
não pode ser considerado absolutamente, vez que encontra limites estabelecidos na LINDB, quais sejam,
respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e a coisa julgada.

Art. 6º: “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada.

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se
efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa
exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-
estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”

O ato jurídico perfeito é aquele em que os efeitos jurídicos já se exauriram, uma manifestação de
vontade lícita e consolidada
O direito adquirido é aquele que já se incorporou ao patrimônio do titular, assim, não há direito
adquirido em matérias existenciais. Obs.: O STF entende que não se pode alegar direito adquirido em
face do poder constituinte seja originário ou derivado.
A coisa julgada é a qualidade que reveste os efeitos de uma decisão judicial contra a qual já não ca-
be mais recurso.
Obs.: é de se ressaltar que proteção desses institutos pode ser mitigada, o seja não são absolutas.
Ex. O STJ (REsp.226.436/PR) tem decidido pela flexibilização da coisa julgada em ações que discutem
filiação.
A partir desses conceitos, pode-se afirmar que o direito adquirido é o mais amplo de todos, englo-
bando os demais, uma vez que tanto no ato jurídico perfeito quanto na coisa julgada existiriam direitos
dessa natureza, já consolidados. Em complemento, a coisa julgada também deve ser considerada um ato
jurídico perfeito, sendo o conceito mais restrito. Tal convicção pode ser concebida pelo desenho a seguir:

29
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

14

7.1. Relações jurídicas continuativas:


São aquelas que derivam de atos jurídicos que se protraem no tempo, Ex. Casamento.

Sobre a matéria, o tratamento é dado pelo Art. 2.035 do CC:

art. 2.035: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em
vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus
efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se
houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.”

Assim, há que se observar em relação à existência e à validade nessas relações jurídicas, se apli-
ca a norma do tempo da celebração, já em relação à eficácia, a norma aplicada é aquela que esta atu-
almente em vigor. Ex. Casamento em 1992, se aplica para verificar se o casamento é existente ou válido,
observa-se o CC/16, mas em relação aos efeitos (p. ex. regime de bens), observa-se o CC/02.

7.2. Ultratividade da norma


É a possibilidade de aplicação de uma lei já revogada, mesmo depois de sua revogação.

É de se observar que no direito penal, a freqüência desse fenômeno é maior, uma vez que acontece
em casos benéficos ao réu e em casos de leis temporárias ou excepcionais, entretanto, no direito civil, há
poucos casos em que isso acontece.

14 Tartuce, Flávio Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 8. ed. rev, atual. e ampl.
– Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

30
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para o direito civil, para que uma norma seja ultrativa, deverá haver expressa autorização le-
gal. Ex. clássico, Art. 1.784, prevê o “principio da Saisine” ou seja a norma que regula a sucessão é aquela
vigente no tempo da sua abertura, que coincide com o tempo da morte do de cujus, o que é corroborado
pela Súmula 112 do STF.15

8. Aplicação da norma no espaço:

A premissa básica para a aplicação da norma no estado é o princípio da territorialidade, ou seja, no


território brasileiro, em regra, aplica-se a lei do Brasil, conssagrando a nossa soberania. Entretanto, em
alguns casos excepcionais, pode-se aplicar leis estrangeiras.

Por isso, concluí-se que o Brasil adota o princípio da territorialidade mitigada.

Obs.: é possível inclusive que se aplique a lei brasileira no estrangeiro, p. ex. Art. 18, §§ 1º e 2º da
LINDB16.

É possível também a aplicação da lei estrangeira no território brasileiro, nos casos do chamado es-
tatuto pessoal, que nada mais é do que a lei do domicílio da pessoa, aplicada no Brasil. É o típi-
co caso do Art. 7º da LINDB:

Art. 7º “A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da
personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

Assim com relação ao nome, direitos da personalidade, a capacidade e os direitos de


família, aplica-se a lei do domicilio da pessoa, ainda que ela esteja no Brasil. Ex As regras do casa-
mento serão as regras da Alemanha, se a pessoa for casada e domiciliada lá, ainda que esteja residindo
aqui no Brasil.

É de se observar que a aplicação do estatuto pessoal não é absoluta, pois sofre limitação pela
soberania brasileira, ou seja, há um controle de legalidade ou “filtragem constitucional” em relação
às matérias do “estatuto pessoal”. Dessa forma, não se aplicará uma lei estrangeira no Brasil se esta vio-
lar a soberania nacional.

15 STF 112: “O imposto de transmissão "causa mortis" é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura
da sucessão.”
16 Art. 18, §§1º e 2º: as autoridades consulares podem celebrar separação e divórcio de brasileiros no estran-
geiro, sem interesse de incapazes e dês que assistidas por advogado e de modo consensual.

31
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para além dessas quatro hipóteses, Nome, Direitos da Personalidade, Capacidade de Direito de fa-
mília, aplica-se o “estatuto pessoal” em a:

 Bens Imóveis: Lei do local onde estão situados;


 Bens Móveis e Penhor: Lei do domicílio do titular
 Contratos Internacionais: Lei da residência do proponente, salvo disposição em contrá-
rio
 Sucessão17: Se os bens estiverem no Brasil e pertencentes à um estrangeiro  Lei mais fa-
vorável ao herdeiro brasileiro;

É importante lembrar que a carta rogatória, o laudo arbitral e a sentença jurídica estrangeira po-
dem ser homologados no Brasil para seu devido cumprimento, respeitados os requisitos:

i. Prova do trânsito em julgado (STF 420)18;


ii. Compatibilidade com o ordenamento interno;
iii. Cumprimento das formalidades legais (CPC 483-4).

Satisfeitos os requisitos o STJ expede o seu exequatur, e uma vez homologada, a execução fica-
rá a cargo de um juiz federal de 1º instância, nos termos do Art. 109, X da CF.

DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

1. Introdução
Na vigência do Código Civil de 1916, inspirado no liberalismo econômico que vigia há época, busca-
va-se a tutela do patrimônio do indivíduo. O objetivo do CC de 1916 era criar instrumentos jurídicos para
permitir que o indivíduo acumulasse riqueza e formasse o seu patrimônio, o que era feito através da cele-
bração de contratos. Por tal razão, garantia-se ao indivíduo uma liberdade de contratar absoluta, porque
entendia-se que, quanto mais liberdade o indivíduo tivesse, mais potencialidade ele teria sobre suas
mãos de acumular riqueza e formar seu patrimônio.
Essa visão do CC de 1916 não poderia ser diferente, já que ele era reflexo do Código Napoleônico,
que foi emanado pós-revolução francesa. No final da revolução francesa, foi o momento em que a bur-
guesia se ascendeu ao poder, e o objetivo da burguesia era justamente acumular patrimônio e formar
riqueza. Por tal razão, entendia-se que quanto menos o Estado intervisse nas relações privadas mais o
indivíduo acumularia riqueza para formar o seu patrimônio.

17 A aplicação da lei brasileira será sempre feita por um juiz brasileiro nos termos do Art. 23 do
NCPC, apenas a lei aplicável ao caso será a lei estrangeira.
18 STF 420: “Não se homologa sentença proferida no estrangeiro sem prova do trânsito em julgado.”

32
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Todavia, no Século XX, pós Segunda Guerra mundial, a sociedade sentiu a necessidade de ter cons-
tituições humanistas, solidaristas, que buscassem proteger o ser humano em face do Estado. O fim da
segunda guerra mundial marca o término do regime nazista, o término do regime fascista, onde diversos
direitos dos seres humanos foram afrontados. O advento dessas novas constituições (humanistas e soli-
daristas), exigiu-se uma reconstrução do direito privado.
O direito privado que até então era individualista, patrimonialista e voluntarista mostrava-se em
confronto com os valores humanistas e solidaristas consagrados pelas constituições da Europa Ocidental.
Se foi o fim da segunda guerra mundial, na Europa ocidental, que fez nascer novas constituições,
no Brasil, por sua vez, foi o término do período da ditadura militar. Com o término do período da ditadu-
ra militar, adveio a Constituição de 1988, que é uma Constituição democrática que trouxe como núcleo
de proteção jurídica o ser humano.
Ela trouxe como objetivo fundamental, tal como previsto no seu art. 3º, promover o bem de todos,
sem distinção de raça, cor, sexo, nacionalidade etc.; reduzir as desigualdades sociais e regionais; constru-
ir uma sociedade livre, justa e solidária. Portanto, a Constituição de 1988 trouxe como valor social a ser
resguardado o ser humano, a igualdade e a solidariedade.
É fato que o Código Civil estava em conflito com a CF de 1988 uma vez que regida por esses novos
valores. Por exemplo: a Constituição, no seu art. 226, §3º, previa uma igualdade entre o homem e a mu-
lher. Já o CC de 1916, colocava o homem como chefe da família. A Constituição, no art. 226, §5º, reco-
nhecia a união estável como entidade familiar. Já o CC de 1916, que sequer mencionava a união estável,
só reconhecia o casamento como uma entidade familiar. A Constituição, no ser art. 227, estabelecia uma
igualdade jurídica entre os filhos havido dentro do casamento, os filhos havidos fora do casamento, como
também os filhos advindos da adoção. O CC de 1916, por sua vez, só reconhecia os filhos advindos de
dentro do casamento.
Contudo, o advento da Constituição de 1988 e a sua força normativa exigiu uma reconstrução do
direito privado, exigiu uma releitura do direito privado, instaurando-se, assim, o que a doutrina denomi-
nou de direito civil- onstitucional.
Direito civil-constitucional nada mais é do que uma releitura dos institutos do di-
reito privado à luz dos valores consagrados na Constituição. Passou-se a não mais conceber
uma relação jurídica privada, um Código Civil, institutos de direitos privados, que não fossem refor-
mulados à luz dos valores consagrados na Constituição.
Sob o advento da Constituição de 1988, inaugurou-se um novo Código Civil, qual seja o Código Ci-
vil de 2002. Pensou-se, então, que, com o advento do CC de 2002, estava formalizado/concretizado o
direito civil- constitucional, porque era o momento oportuno de o legislador inserir, efetivamente, dentro
do Código Civil, os valores consagrados na Constituição. De fato, o legislador tentou, notadamente, ao
regular os direitos da personalidade, porque, no CC de 1916, sequer havia direitos da personalidade. Os
direitos da personalidade passaram a surgir com o advento da Constituição. Assim, neste ponto, o Código

33
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Civil de 2002 avançou e trouxe a regulação dos direitos da personalidade. Mas, de acordo com a doutri-
na, o legislador foi tímido, o que não aconteceu sem motivo, porque, apesar de ser o CC de 2002, o proje-
to era de 1970, período da ditadura militar. Portanto, o legislador não tinha como avançar tanto, já que
em 1970 sequer havia a Constituição de 1988.
Por tal razão, hoje, compete ao interprete, tanto do Código Civil quanto da Constitui-
ção, fazer essa inserção contínua dos valores constitucionais dentro das relações priva-
das.
Não á toa que o STF, na ADPF 132 e na ADI 4277, trouxe a igualação jurídica da relação homoafeti-
va. Poderia ter o CC de 2002 reconhecido a relação jurídica entre pessoas do mesmo sexo, mas não o fez.
Coube ao interprete fazê- lo. Em outro momento, o STF acabou com a distinção existente, no Código Ci-
vil, entre o regime sucessório do casamento e o regime sucessório da união estável, declarando a incons-
titucionalidade do art. 1790 do CC, que era dissonante do art. 1829. Ora, se a Constituição reconhece os
vários tipos de entidades familiares, não se pode ter um regime sucessório para o casamento e um regime
sucessório diverso para a união estável. Nota-se, com análise de tais casos, o quão importante é a figura
do interprete na concretização do direito civil constitucional.

2. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais


Os interpretes da Constituição elegeram como forma de inserir os valores constitucionais dentro
das relações privadas a eficácia horizontal dos direitos fundamentais
Assim, em última análise, a eficácia horizontal trata-se da aplicação direita dos direitos fundamen-
tais às relações privadas.
Como visto, a Constituição, por sua força normativa, tem todos os seus preceitos aplicáveis às rela-
ções privadas, exigindo uma releitura do direito privado.
Os direitos fundamentais não se aplicam apenas nas relações entre o particular e o Estado (relação
vertical). Os direitos fundamentais, como fruto do próprio art. 5º, §3º, da Constituição têm aplicação
direta às relações privadas.
Percebe-se que o direito privado é marcado, notadamente, por um princípio que era chamado de
autonomia da vontade. A autonomia da vontade nada mais é do que o poder que o ordenamento jurídico
outorgava ao indivíduo para manifestar a sua vontade na busca e satisfação de um interesse próprio, pri-
vado, particular, livre de qualquer ingerência estatal, justamente, porque o objetivo era permitir que o
indivíduo manifestasse seu interesse privado e se relacionasse com outras pessoas, formando o seu pa-
trimônio.
Com o advento da Constituição de 1988, com o advento da sua força normativa, é
óbvio que, para garantir que os valores constitucionais fossem preservados nas relações
privadas, precisou o Estado intervir nas relações privadas, estabelecendo limites ao
exercício da autonomia da vontade.

34
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O fato de o Estado estabelecer limites ao exercício da autonomia da vontade, a Constituição de


1988, provocou uma releitura do princípio da autonomia da vontade, passando a ser denominado de au-
tonomia privada. Portanto, modernamente é tecnicamente é incorreta a expressão “autonomia da vonta-
de”.
Assim, a autonomia privada é o poder que o ordenamento jurídico outorga ao indi-
víduo para manifestar a sua vontade na busca, satisfação, de um interesse próprio, pri-
vado, particular, respeitadas as limitações impostas pelo ordenamento jurídico.
Importante observar que tais limitações não existiam durante o período da autonomia da vontade.
Elas passaram a existir com o advento da Constituição de 1988, tanto que o princípio ganhou um novo
nome, que é princípio da autonomia privada.
Essas limitações são a obediência aos preceitos constitucionais, notadamente, limitações impostas
fruto da aplicação direita dos direitos fundamentais às relações privadas.
Ex.: O STF estabeleceu que não era permitido aos membros integrantes de uma pessoa jurídica de
direito privado, excluir qualquer um de seus membros sem que lhe outorgasse o direito ao contraditório
e à ampla defesa. Hoje, o exercício da autonomia privada sofre restrições, uma dessas restrições é a apli-
cação direta dos direitos fundamentais.
A partir desse julgado, ficou o ordenamento jurídico em estado de alerta no sentido de que os direi-
tos fundamentais não são oponíveis apenas em face do Estado, mas também em face dos particulares19.

DAS PESSOAS NATURAIS

1. Conceito de personalidade jurídica


Personalidade jurídica é a aptidão genérica para se titularizar direitos e contrair obrigações na órbi-
ta do direito. Ou seja, é a qualidade para ser sujeito de direito:

Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

A primeira parte do Código Civil é estática. Esse conceito é um conceito estático fundamental, téc-
nico-jurídico. Pode haver outros, em outros âmbitos do conhecimento.

2. Pessoa Física ou Natural20

19 (RE 201819, Relator (a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda

Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02
PP-00821)

35
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Teixeira de Freitas chamava pessoa física ou natural de “ente de existência visível”.


Um dos problemas mais difíceis do Direito Civil brasileiro é determinar em que momento a pessoa
física ou natural adquire personalidade jurídica. Aparentemente, a resposta encontra-se na primeira par-
te do art. 2º do Código Civil: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”.

Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.

Todavia, a própria concepção de “nascimento com vida” já inspira cuidados, devendo ser entendi-
da como o funcionamento do aparelho cardiorespiratório do recém-nascido, independentemente da sua
aparência física, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana21.

3. Natureza jurídica do nascituro e teorias explicativas


A segunda parte do art. 2º determina que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento
com vida, “mas a lei põe a salvo os direitos do nascituro”. Trata-se de uma das mais instigantes contradi-
ções em uma lei, na medida em que só é sujeito de direito quem possui personalidade (Caio Mário), mas
mesmo assim a lei fala em direito. O nascituro teria ou não personalidade jurídica?
Segundo Limongi França, o nascituro é aquele ente já concebido, com vida intrauterina, mas ainda
não nascido. Ou seja, é um embrião, mas com vida intrauterina. Os embriões de laboratório não são nas-
cituros.
Não devem ser confundidos os conceitos de nascituro, natimorto e concepturo. O natimorto é
aquele nascido morto e que, nos termos do Enunciado 1 da I Jornada de Direito Civil, gozaria de proteção
quanto ao nome, imagem e sepultura.

Enunciado 1 - Art. 2º: A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que
concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura.

O concepturo é também chamado de prole eventual. Trata-se daquele que ainda nem foi concebido
(art. 1.799, I, do Código Civil):

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao
abrir-se a sucessão; (...)

20 Em provas de Direito Civil empregar a expressão “pessoa natural” ou “pessoa humana” (CF, art. 1º, III) -
não empregar “pessoa física” (expressão mais ligada ao Direito Tributário ou Direito Bancário) ou “homem” (utili-
zada pelo CC/16).

21 Em sentido contrário, o art. 30 do Código Civil da Espanha, antes da Lei nº 20, de 21 de julho de 2011, exi-
gia forma humana e tempo mínimo de sobrevivência de 24 horas.

36
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A questão atinente à personalidade jurídica do nascituro é altamente controvertida na doutrina,


havendo três teorias explicativas fundamentais: teoria natalista, teoria da personalidade condicional e
teoria concepcionista.

3.1. Teoria Natalista

Sustentada por grande parte da doutrina brasileira (Silvio Venosa, Silvio Rodrigues, Vicente Ráo),
a teoria natalista aponta no sentido de que a personalidade jurídica somente é adquirida a par-
tir do nascimento com vida, de maneira que o nascituro não deve tecnicamente ser con-
siderado pessoa, gozando de mera expectativa de direito.
Há, é claro, natalistas mais ou menos radicais. Esse conceito é o mais extremo da teoria (“o nasci-
turo é coisa”).
A leitura da ementa da ADI 3510, referente ao julgamento da Lei de Biossegurança, reforça a teoria
natalista, sustentada pelo Ministro Relator. Na verdade, a teoria é a mais interessante para justificar a
possibilidade de realização de experimentos em embriões de laboratório. Todavia, esta matéria ainda não
está pacificada. Há vários julgados que defendem a teoria concepcionista.

3.2. Teoria da Personalidade Condicional

Para a teoria da personalidade condicional, o nascituro gozaria de direitos personalíssimos desde a


concepção, mas somente consolidaria a sua personalidade para efeitos patrimoniais sob a condição (sus-
pensiva) de nascer com vida. Alguns se referem a ela como Teoria da Personalidade Formal.
Não é uma teoria muito original, na medida em que englobada pela terceira. É “pouco corajosa”, na
medida em que considera a personalidade somente para determinados casos (cinge a personalidade so-
mente para direitos personalíssimos).
Como entusiastas desse posicionamento, podem ser citados Washington de Barros Monteiro, Mi-
guel Maria de Serpa Lopes Na doutrina atual, Arnaldo Rizzardo segue o entendimento da teoria da per-
sonalidade condicional.

3.3. Teoria Concepcionista

A teoria concepcionista é defendida desde Teixeira de Freitas, passando por Clóvis Beviláqua, Ma-
ria Helena Diniz e chegando a modernos autores como Silmara Chinelato, Pablo Stolze, Cristiano Chaves,
Neslson Rosenvald e Flávio Tartuce. Sustenta que o nascituro teria personalidade jurídica
desde a concepção, inclusive para efeitos patrimoniais. A jurisprudência ainda não reconhece
todos esses efeitos, como o de a mãe herdar, no caso de o nascituro não nascer com vida.
Para efeito de concurso público, não existe uma resposta única. Deve-se checar a posição do exa-
minador. Essa questão é aberta e não deve cair em prova objetiva. Com o julgamento da Lei de Biossegu-
rança, a teoria natalista ganhou força, mas não há consenso na doutrina.

37
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em conclusão, observa-se que a temática pertinente à natureza jurídica do nascituro é altamente


controvertida, parecendo ser ainda muito atual o pensamento de Clóvis Beviláqua22, segundo o qual:
“aparentemente o codificador adota a teoria natalista por ser mais prática, mas em diversos pontos
experimenta a influência concepcionista, reconhecendo ao nascituro direitos, como se fosse uma pes-
soa”.
O nascituro, segundo alguns julgados no Brasil, que reforçaram a Lei 11.804/2008, teria direito aos
alimentos (alimentos gravídicos). Pablo Stolze discorda da posição que sustenta a legitimidade da mãe
para o ajuizamento da ação, que seria titular do direito aos alimentos, na medida em que o que justifica
os alimentos é justamente a presença do nascituro.
Vale observar, ainda, que para além da doutrina contemporânea, a teoria concepcionista tem pre-
valecido junto ao Tribunal Cidadão23.

4. Capacidade de direito e de fato


Quando se fala em capacidade, dois conceitos devem ser devidamente enfrentados: a capacidade de
direito e a capacidade de fato.
A capacidade de direito (ou de gozo) é uma capacidade genérica, que qualquer pessoa tem (o nasci-
turo, na linha concepcionista, teria também capacidade de direito), ao passo que a capacidade de fato
traduz a aptidão para, pessoalmente, praticar atos da vida civil, o que nem toda pessoa tem, diante das
situações de incapacidade absoluta ou relativa (artigos 3o e 4o do Código Civil).
Na linha de pensamento de Orlando Gomes, hoje a noção de capacidade de direito se confunde
com a de personalidade. Quando uma pessoa reúne as duas formas de capacidade (normalmente quando
atinge a maioridade civil), diz-se que ela possui capacidade civil plena.
Segundo Tartucce, capacidade de direito/gozo (sujeito de direitos e deveres) + capacidade de fa-
to/exercício (para exercer) = capacidade civil plena.

4.1. Conceitos correlatos à capacidade:

Importante que não se confunda a noção de capacidade com o conceito de legitimidade. No dizer
de Calmon de Passos, a legitimidade / legitimação traduziria a pertinência subjetiva para a prática de
determinado ato. Ou seja, uma pessoa pode ser plenamente capaz, mas faltar-lhe legitimidade para a

22 “Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil”, Ed. Rio, 1975, p. 178.
23 (...) atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascitu-

ro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que garantir ao nascituro expectativas de direi-
tos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nas-
cer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trân-
sito subsume-se ao comando normativo do art. 3.º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão
a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina” (STJ, REsp 1.415.727/SC, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, 04.09.2014).

38
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

prática de um ato específico (ex.: dois irmãos, maiores e capazes, não têm legitimidade para casar entre
si, nos termos do art. 1521, IV, do Código Civil24).
Segundo Tartuce, “o próprio legislador utiliza os termos legitimação25 e legitimidade como sinôni-
mos. Exemplificando, o art. 12, parágrafo único, do CC/2002, trata dos legitimados processualmente
para as medidas de tutela dos interesses do morto, fazendo uso do termo legitimação. O certo seria men-
cionar a legitimidade.”.
Finalmente, é necessário atenção ao conceito de personalidade, que é é a soma de caracteres da
pessoa, ou seja, aquilo que ela é para si e para a sociedade.
Segundo Tartuce, capacidade e personalidade se diferenciam na medida em que a capacidade é
a medida da personalidade, ou seja, “a personalidade é um quid (substância, essência) e a
capacidade um quantum”.

5. Teoria das incapacidades – Arts. 3º e 4º do CC


Os incapazes sempre estiveram tratados nos arts. 3.º e 4.º do CC/2002 até as mudanças inseridas
pela Lei 13.146/2015.
O EPD regulamenta a Convenção de Nova Iorque, a qual é um tratado de direitos humanos que tem
força de emenda à Constituição (CF, art. 5º, § 3º).
A Convenção estabeleceu premissas fundamentais, são elas:
) Igualdade.
a) Inclusão com autonomia.
b) Vedação da discriminação.
Assim, observa-se que o objetivo da alteração legislativa foi a plena inclusão da pessoa com algum
tipo de deficiência, tutelando a sua dignidade humana. Deixa-se de lado, assim, a proteção de tais pesso-
as como vulneráveis, o que era retirado do sistema anterior. Em outras palavras, a dignidade-liberdade
substitui a dignidade- vulnerabilidade.
A pessoa com deficiêcica nesses casos passa a ser capaz para o Direito Civi, de modo que para os
atos existenciais e familiares sempre haverá capacidade plena, nesse contexto, merece destaque o art. 6.º
da Lei 13.146/2015, segundo o qual a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive
para: a) casar-se e constituir união estável; b) exercer direitos sexuais e reprodutivos; c) exercer o direito
de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e plane-
jamento familiar; d) conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; e) exercer o

24 Art. 1.521. Não podem casar: (...) IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o tercei-
ro grau inclusive;
25 Para o autor, legitimidade pode ser conceituada também como “a capacidade processual, uma das condi-

ções da ação (art. 3.º do CPC/1973, repetido parcialmente pelo art. 17 do CPC/2015)”.

39
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

direito à família e à convivência familiar e comunitária; e f) exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela
e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Ademais, o art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, também em prol da inclusão comdigni-
dade- liberdade, estabelece que a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua
capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Eventualmente, quando necessário,
a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
Assim, podem existir limitações para os atos patrimoniais, e não, como visto, para os existenciais,
que visam a promoção da pessoa humana.
Podendo-se concluir que a regra passa a ser a tomada de decisão apoiada para esses atos,
um procedimento judicial em que a própria pessoa com deficiência, por sua iniciativa, indica apoiadores
para auxiliá-la no ato (duas pessoas idôneas).
De modo que somente em casos excepcionais caberá a ação de restrição para atos patrimoniais. No
direito posto, que está em vigor, a ação adotada seria a de interdição relativa 26(CPC).

5.1. Incapacidade absoluta

Como exposto, os únicos absolutamente incapazes previstos no Código Civil a partir da vigência do
Estatuto da Pessoa com Deficiência são os menores de 16 anos, denominados menores impúberes. Leva-
se em conta o critério etário, não havendo necessidade de qualquer processo de interdição ou de nomea-
ção de um curador (presunção absoluta de incapacidade).
Assim, não existem mais maiores de idade que sejam absolutamente incapazes.
Conforme será visto mais a frente, os menores impúberes podem praticar atos de menor complexi-
dade, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto (Enunciado n. 138 – 3ª Jornada27), são
os chamados “atos fatos jurídicos”.

5.2. Incapacidade relativa

A incapacidade relativa está prevista no art. 4º do Código Civil:

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pe-
la Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vi-
gência)

26 A interdição seria “relativa” pois voltada apenas para atos partrimoniais, uma vez que, como visto, para
atos existenciais sempre haverá capacidade plena.
27 “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3.º, é juridicamente relevante na

concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para
tanto”

40
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Re-
dação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação da-
da pela Lei nº 13.146, de 2015)

Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos são os chamados menores púberes, para esses,
o Código adota um critério etário de incapacidade relativa sem necessidade de ação específica – não há
ação de interdição de menor de idade.
O menor púbere pode praticar atos civis mais complexos sem assistência, por determinação legal.
Exemplos: casar (com autorização especial), fazer testamento, reconhecer filho, ser testemunha e aceitar
mandato extrajudicial (“ad negotia”).
A toxicomania e a ebriedade geram a incapacidade relativa. Essa graduação dependerá do laudo
médico produzido no procedimento da interdição relativa, apontando a sentença quais os atos que a pes-
soa pode praticar.
Em relação ao Art. 4º, inciso III, após a alteração ocasionada pelo Estatuto da Pessoa com Defici-
ência, não há nenhuma incapacidade no ordenamento jurídico brasileiro por motivo psicológico, defici-
ência física, mental ou intelectual.
Assim, a pessoa com deficiência, se eventualmente não puder exprimir a sua vontade, p. Ex. a pes-
soa que se encontra em coma profundo, sem qualquer condição de exprimir o que pensa, no atual siste-
ma, será enquadrada como relativamente incapaz, o que, na opinião de Flávio Tartuce, parece não ter
sentido técnico-jurídico.
O surdo-mudo, o cego, os senis, atualmente, são capazes, na hipótese de conseguirem exprimir sua
vontade, podendo ser enquadrados como relavitvamente incapazes se não puderem exprimi-la.
Ademais, cumpre destacar que o rol das incapacidades é taxativo.
Prodigalidade não se confunde com o “gastador”. Traduz uma forma grave de transtorno psicológi-
co (uma compulsão). O pródigo padece de grave desvio comportamental, por gastar imoderadamente o
seu patrimônio, podendo reduzir-se à miséria. O vício de jogo pode levar à prodigalidade.
O problema não seria do próprio cidadão? Se o cidadão se reduz à penúria, terá de ser amparado
por parentes ou pelo Estado, de modo que há um interesse social em zelar pelos interesses do pródigo.
O pródigo é considerado relativamente incapaz, devendo ser assistido por seu curador em atos de
disposição direta de bens, de conteúdo eminentemente patrimonial (art. 1782 do CC):

Art. 1.782. A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quita-
ção, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam
de mera administração.

41
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A proteção jurídica do pródigo busca inspiração na “teoria da proteção jurídica do patrimônio mí-
nimo” (ou estatuto jurídico do patrimônio mínimo) desenvolvida por Luiz Edson Fachim. Segundo tal
doutrina, na perspectiva da dignidade da pessoa humana, as normas civis devem sempre resguardar um
mínimo de patrimônio para que cada indivíduo tenha vida digna. Essa é a razão, por exemplo, das nor-
mas do bem de família ou das que evitam a execução completa do patrimônio de uma pessoa.
O curador do pródigo não pode autorizar ou não a celebração do casamento, mas deverá manifes-
tar-se previamente, na habilitação para casamento, quanto ao regime de bens adotado.
De se lembrar que o regime de bens do seu casamento é comunhão parcial, pois o pródigo não está
no art. 1.641 do Código Civil, que prevê o regime da separação obrigatória.
No entanto, para firmar pacto antenupicial a necessidade de assistência sob pena de anulabilidade
é causa de divergência na doutrina, sendo que para José Fernando Simão, por não haver previsão desse
ato no art. 1.782 do CC, o prodigo não precisa de assistente. De outro lado, Carlos Roberto Gonçalves e
Fernando Tartuce, em posição majoritária, entendem ser necessária a assistência pois o o ato entra em
“alienar”.
O Código Civil “lavou as mãos” quanto à capacidade do índio, remetendo a matéria à lei especial (o
art. 8º do Estatuto do Índio, Lei 6.001/1976, trata do tema). São pouquíssimos os índios sem contato
com a sociedade. Mas os que existem são considerados absolutamente incapazes:

Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à
comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.

Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e
conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efei-
tos.

6. Questões de concurso relacionadas à capacidade e à inca-


pacidade
6.1. A questão do ausente

O ausente não é mais considerado absolutamente incapaz como constava da codificação anterior
(art. 5.º, IV, do CC/1916). A ausência significa morte presumida da pessoa natural, após longo processo
judicial, com três fases: curadoria dos bens do ausente, sucessão provisória e sucessão definitiva (arts. 22
a 39 do CC). Não houve qualquer modificação no tratamento jurídico do ausente diante da emergência
do Estatuto da Pessoa com Deficiência e será tratada em momento oportuno.

6.2. Benefício de restituição (ou restitutio in integrum)

42
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Cuidado com a expressão restitutio in integrum: não é incomum encontrar julgados dando a ela o
sentido de “reparação integral” de danos28. No que se refere à capacidade, a expressão tem definição es-
pecífica.
O que se entende por benefício de restituição (ou restitutio in integrum)? O chamado benefício de
restituição, segundo Clóvis Bevilaqua, consistia em um verdadeiro privilégio conferido ao incapaz para
permitir que pudesse invalidar um negócio formalmente perfeito simplesmente alegando prejuízo. Tal
instituto, dada a insegurança que gera, foi banido do Código velho explicitamente, entendendo-se que
esta vedação ainda persiste.
O incapaz pode ter patrimônio e celebrar um contrato, desde que devidamente representado ou as-
sistido. Se um incapaz celebra um negócio, devidamente representado, sem vício de vontade, esse negó-
cio gera efeitos jurídicos.
O instituto conferia um direito tirânico ao incapaz de, a posteriori, alegar prejuízo para invalidar o
negócio corretamente celebrado. Isso afronta a segurança jurídica, de modo que ele também não tem
espaço no sistema atual.

6.3. Reflexos da redução da maioridade civil

Houve impacto da redução da maioridade civil dos 21 para os 18 anos29 nos direitos de família e
previdenciário?
Quando o Código Civil entrou em vigor, houve uma “chuva” de ações de exoneração de alimentos,
em virtude da redução da maioridade. O STJ firmou entendimento no sentido de que o alcance da maio-
ridade civil não implica cancelamento automático da pensão alimentícia (RESP 442.502/SP), que deverá
ser paga, em regra, até a conclusão dos estudos (em torno de 24 anos).
Segundo o Tribunal, para que haja o cancelamento da pensão, exige-se a observância do contradi-
tório em favor do alimentando (Súmula 358 do STJ). O pai tem de formular o pedido e o juiz abrir prazo
para defesa. O cancelamento não pode se operar de forma automática. Curso preparatório também pode
ser considerado, para a mesma finalidade. Tudo dependerá do caso concreto.

28 Nesse sentido: “O estado de necessidade, embora não exclua o dever de indenizar, fundamenta a fixação
das indenizações segundo o critério da proporcionalidade. A adoção da restitutio in integrum no âmbito da respon-
sabilidade civil por danos, sejam materiais ou extrapatrimoniais, nos conduz à inafastabilidade do direito da vítima
à reparação ou compensação do prejuízo, ainda que o agente se encontre amparado por excludentes de ilicitude,
nos termos dos arts. 1.519 e 1.520 do CC/1916 (arts. 929 e 930 do CC/2002), situação que afetará apenas o valor da
indenização fixado pelo critério da proporcionalidade.” REsp 1.292.141-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em
4/12/2012.

29 Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos
os atos da vida civil. (...)

43
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Súmula 358 - O cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está su-
jeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos.

No campo previdenciário, é forte o entendimento segundo o qual a redução da maioridade civil não
implica a negação do direito assegurado por lei previdenciária, por ser a lei previdenciária norma especi-
al. Nesse sentido o Enunciado nº 3 da I Jornada de Direito Civil:.

Enunciado nº 3 – Art. 5º: a redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18
anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei nº 8.213/91, que regula específica situação de de-
pendência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previs-
tas em legislação especial.

Assim, a redução da maioridade operada pelo Código Civil não prejudica a autoridade previdenciá-
ria, que determina, ao menos em regra, a idade de 21 anos para a cessação de determinados benefícios. A
Nota SAJ 42/2003 foi orientação emanada da própria Administração Federal (Casa Civil da Presidência
da República).
Cumpre, todavia, indagar: é possível tomar por base, no campo previdenciário, a mesma alegação
da necessidade de conclusão dos estudos (permanência da necessidade), para a manutenção do benefí-
cio? Julgando o RESP 1.074.181/PB, o STJ afirmou que não se mostra viável prorrogação de benefício
previdenciário sob a alegação de necessidade de conclusão dos estudos (“uma coisa é uma coisa, outra
coisa é outra coisa”).

6.4. Idade avançada e incapacidade civil

A idade avançada (senilidade) é causa de incapacidade civil? O simples fato da idade avançada não
é causa de incapacidade civil. Juntamente, deve haver algum tipo de deficiência mental.
A Lei 12.344, de 9 de dezembro de 2010, aumentou para 70 anos a idade a partir da qual se torna
obrigatório o regime de separação de bens30. A restrição de escolha do regime de bens não reflete uma
incapacidade, mas uma limitação, de constitucionalidade duvidosa.

7.Emancipação
O Código Civil entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003 (segundo a maioria da doutrina), reduzin-
do a maioridade civil de 21 para 18 anos, equiparando-a à penal.
Surge a dúvida: a aquisição da maioridade ocorre no primeiro instante do dia em que o natalício é
completado ou quando tal dia se completa? Segundo Washington de Barros Monteiro, a maioridade é
atingida no primeiro instante do dia em que se completam 18 anos.

30 Ver o Editorial 16, na página de Pablo, com artigo que trata do tema.

44
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Sucede que, por meio da emancipação, instituto internacionalmente conhecido (ex.: art. 133 do Có-
digo de Portugal), é possível a antecipação da capacidade plena.
Assim, a emancipação é conceituada por Flávio Tartuce como “o ato jurídico que antecipa os efei-
tos da aquisição da maioridade e da consequente capacidade civil plena, para data anterior àquela em
que o menor atinge a idade de 18 anos, para fins civis.”.
Importante anotar que com a emancipação, o menor deixa de ser incapaz e passa a ser capaz. To-
davia, ele não deixa de ser menor.
Finalmente, em regra, é definitiva, irretratável e irrevogável. De toda sorte, a emancipação
por concessão dos pais ou por sentença do juiz está sujeita a desconstituição por vício de vontade (Enun-
ciado n. 397). Sendo possível a sua anulação por erro ou dolo, por exemplo.
Tratando-se, em regra, de ato formal e solene o código aponta três hipóteses (ou espécies) de
emancipação: voluntária, judicial ou legal.

7.1. Emancipação voluntária

A emancipação voluntária está prevista no art. 5o, parágrafo único, I, primeira parte, do Código Ci-
vil:

Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à práti-
ca de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:

I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, in-
dependentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor
tiver dezesseis anos completos; (...)

Trata-se daquela concedida por ato dos pais (ou por um deles na falta do outro), mediante instru-
mento público, independentemente da homologação do juiz, em caráter irrevogável, e desde que o ado-
lescente tenha pelo menos dezesseis anos completos.
Trata-se da forma mais comum de emancipação. É um ato de ambos os pais (a menos que um
deles seja falecido ou destituído do poder familiar). A mãe que detém apenas a guarda não pode sozinha
emancipar o filho, na medida em que o pai que não detém a guarda mantém o poder familiar. A emanci-
pação é um ato conjunto, pelo princípio da isonomia, pois acaba com o poder familiar da ambos.
Ela somente poderá ser realizada por instrumento público, ainda que independa de homologa-
ção do juiz e tenha caráter irrevogável, desde que o adolescente tenha pelo menos 16 anos.
A emancipação voluntária não isenta os pais da responsabilidade dos pais pelo ato ilícito praticado
pelo filho, ainda que, na literalidade da lei (ortodoxamente falando) eles estariam sim isentos de respon-
sabilidade (a doutrina já atinou nesse sentido, no passado). Essa observação é feita por Silvio Venosa,

45
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

com base na jurisprudência do próprio STF (RTJ 62/108, RT 494/92): a responsabilidade civil dos pais,
na emancipação voluntária, persiste até que o menor complete 18 anos de idade.
O adolescente a ser emancipado deve autorizar a emancipação? Não há nenhum sentido lógico nes-
se entendimento. Trata-se de um direito potestativo dos pais. É recomendável, contudo, que o adolescen-
te participe do ato, tomando ciência do ato emancipatório, sob pena de ineficácia da própria emancipa-
ção. A participação dele, contudo, não é obrigatória, mas concede eficácia social ao ato, perante o próprio
emancipado.

7.2. Emancipação judicial

A emancipação judicial está prevista no art. 5º, parágrafo único, I, segunda parte, do Código Civil:

Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à práti-
ca de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:

I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, in-
dependentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor
tiver dezesseis anos completos;

Trata-se daquela concedida por ato do juiz em face de adolescentes sob tutela, ouvido o tutor, des-
de que o adolescente tenha pelo menos dezesseis anos completos.
Quem emancipa o adolescente tutelado não é o tutor, mas o juiz. Quem faz o pedido é o adolescen-
te, representado pelo tutor ou por um curador (nomeado pelo juiz), mas sempre ouvido o tutor.

7.3. Emancipação legal

As hipóteses de emancipação legal estão previstas no art. 5o, parágrafo único, II a V, do Código Ci-
vil:

Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à práti-
ca de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: (...)

II - pelo casamento;

III - pelo exercício de emprego público efetivo;

IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;

V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que,
em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

As hipóteses de emancipação legal são fatos a que a lei atribui força de emancipar.

7.3.1. Casamento
46
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A idade mínima para a capacidade núbil no Brasil, com o Código Civil de 2002, passou a ser adqui-
rida tanto pelo homem quanto pela mulher aos 16 anos de idade. O Código Civil de 1916 previa tal aquisi-
ção para o homem aos 18 anos e à mulher, aos 16. O legislador pressupunha que a mulher amadurecia
antes.
Na atual disciplina legal da matéria, entre os 16 e os 18 anos é necessária autorização dos represen-
tantes legais ou do juiz para participar do ato matrimonial. O que emancipa nesta hipótese não é a auto-
rização, mas o próprio casamento.
Oportunamente, em direito de família, serão estudadas as hipóteses especiais que há do Código pa-
ra casamento abaixo da idade núbil (art. 1.520)31. A reforma penal as esvaziou muito. Também serão es-
tudadas as implicações da emancipação no estudo do casamento.
Ainda que o casal venha a se divorciar posteriormente, a emancipação decorrente do casamento
permanece, pois, o ato do divórcio tem efeitos para o futuro.
Em caso de invalidade do casamento, todavia, considerando-se que segundo respeitável doutrina32
a eficácia da sentença de invalidação é retroativa, cancelando o próprio registro de casamento, é razoável
concluir-se que, salvo putatividade, o efeito emancipatório desaparecerá.
Como também será estudado em direito de família, em algumas situações, invalidado o casamento,
determinados efeitos podem ser mantidos, em havendo boa-fé. O estado civil daquele que tem o casa-
mento anulado é o de solteiro, e não divorciado.

7.3.2. Exercício de emprego público efetivo


Em prova objetiva, deve-se marcar a alternativa que reflita o disposto no Código Civil. Em prova
dissertativa, no entanto, deve-se chamar a atenção para o fato de que, se o emprego público emancipa, o
cargo público também emanciparia.
O dispositivo, segundo Pablo Stolze, é vazio, na medida em que hoje tanto os editais como a legisla-
ção acerca do tema exigem ao menos 18 anos de idade para o ingresso em emprego público. Há, no en-
tanto, um exemplo factível: a legislação militar permite o ingresso, como aspirante (efetivo), aos 17 anos
de idade.

7.3.3. Colação de grau em curso de ensino superior


A hipótese de colação de grau em curso de ensino superior é ainda mais vazia, mas pode ocorrer
(ex.: caso do menino da Universidade Federal de São Carlos, que ingressou no mestrado aos 17 anos).

31 Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art.
1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.

32 Zeno Veloso, José Fernando Simão, Flávio Tartuce, Pablo Stolze.

47
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não é a aprovação no vestibular que emancipa, mas a conclusão do curso superior (a colação de
grau).

7.3.4. Estabelecimento civil ou comercial, ou existência de relação de emprego, desde


que, em função deles, o adolescente com dezesseis anos completos tenha economia
própria

7.3.4.1. Hipóteses
Trata-se de hipótese tríplice: estabelecimento civil, estabelecimento comercial e existência de rela-
ção de emprego.
A diferença entre estabelecimento civil e o empresarial é a seguinte: estabelecimento civil seria a
prestação de um serviço pela própria pessoa, como aula de música, de matemática. Já a atividade empre-
sarial seria aquela “barraquinha” na feira, de compra e venda de materiais.
Veja que o adolescente empregado (com ou sem registro), de pelo menos 16 anos completos, que
tenha economia própria, é emancipado por força de lei (embora muitas vezes nem saiba disso).
O adolescente que perde o emprego perde a emancipação? A lei não dá a solução. A doutrina majo-
ritária entende que não, para evitar insegurança jurídica.
Esta emancipação prevista no art. 5º, V, do Código Civil não depende de sentença judicial. Deriva
da lei, podendo ser incidentalmente alegada em qualquer procedimento (ex.: numa ação de indenização
contra o adolescente).

7.3.4.2. Interdição de menor


Existe interesse jurídico-civil em interditar um menor de pais vivos e detentores do poder familiar?
O adolescente, portador de grave doença mental que o prive da capacidade de discernimento, com mais
de 16 anos, tem de ser interditado, para que os pais tenham sobre ele plena representação.
Observação acerca de internação compulsória: historicamente se entendia que o instituto da inter-
nação compulsória somente seria possível no âmbito do direito penal, nos casos de medida de segurança.
No HC 135.271/SP, o STJ se baseou na Lei 10.216/01, art. 4º para reconhecer a internação compulsória
no âmbito do direito civil, notadamente em razão da proteção do próprio interditando ou de terceiros. É
possível, portanto, que o juiz determine internação compulsória, em uma ação de interdição, para o ado-
lescente que tenha acabado de cumprir medida socioeducativa de internação, desde que comprovado o
preenchimento dos requisitos para a aplicação da medida mediante laudo médico circunstanciado, dian-
te da efetiva demonstração da insuficiência dos recursos extra-hospitalares.

7.3.4.3. Economia própria


O que se entende por economia própria? O salário mínimo traduziria economia própria?

48
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Pode-se afirmar que o moderno direito civil adotou um sistema aberto de normas, permeado por
conceitos indeterminados e cláusulas gerais, os quais, à luz do princípio da operabilidade33, deverão ser
preenchidos pelo juiz à luz do caso concreto.
Quando o Código Civil Francês foi editado, viveu-se certa embriaguez intelectual, pois os juristas
franceses imaginaram que todas as hipóteses da vida estariam previstas na lei, de modo que o juiz seria a
boca da lei. Com a evolução da sociedade, sobretudo após meados do século XX, os sistemas passaram a
ser abertos, prevendo cláusulas gerais. O Código Civil torna-se operacional, na medida em que os concei-
tos jurídicos abertos passaram a poder ser preenchidos pelo juiz, de modo fundamentado. Isso viabiliza a
perenidade das normas.
Segundo os elaboradores do Código Civil, os princípios que informaram sua elaboração foram: a
operabilidade, a eticidade (preocupação com o aspecto ético da norma) e a socialidade (preocupação com
a função social dos institutos).
Economia própria é, portanto, um conceito aberto, vago, que deverá ser preenchido pelo juiz à luz
do caso concreto (exemplos de conceitos dessa natureza: justa causa, família). Desse modo, dependendo
da análise das circunstâncias do caso concreto, o salário mínimo pode ou não ser considerado economia
própria, conforme se trate, por exemplo, de uma família pobre ou de classe média.

7.3.4.4. Diferença entre conceito aberto indeterminado e cláusula geral


A existência de diferença entre conceito aberto indeterminado e cláusula geral depende da escola
teórica a que se filie.
Na linha de pensamento de Judith Martins-Costa, a cláusula geral compreenderia um conceito in-
determinado, mas teria uma força normativa ainda maior, na medida em que vincularia a própria ativi-
dade do juiz (José de Oliveira Ascensão). Segundo essa concepção, a cláusula geral imporia ao juiz um
mandato, ao ponto de chegar a ter, em determinados casos, força de princípio (matiz principiológica),
interferindo na atividade do Juiz (exemplos: boa-fé objetiva, função social).
Em resumo:

33 Acerca do tema, ver referência a texto de Miguel Reale no material de apoio.

49
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

34

7.4. Questões especiais relacionadas à emancipação

7.4.1. Emancipação e imputabilidade penal


O adolescente emancipado não pode ser criminalmente processado e preso, uma vez que a emanci-
pação não antecipa a imputabilidade penal, que só advém a partir dos 18 anos.
Paulo Godoy afirma, no campo empresarial, que o emancipado por conta de estabelecimento co-
mercial pode falir, mas não comete crime falimentar (adolescentes cometem atos infracionais, segundo o
ECA). Luiz Flávio Gomes afirma que o adolescente emancipado, todavia, pode ser civilmente preso. A
prisão civil não é prisão-pena.

7.4.2. Emancipação e condução de veículos automotores


Por que o emancipado não pode dirigir? Para dirigir, é necessário que o condutor seja penalmente
imputável (art. 140, I, CTB). Por essa mesma razão, o emancipado não pode ter CNH:

Art. 140. A habilitação para conduzir veículo automotor e elétrico será apurada por meio de
exames que deverão ser realizados junto ao órgão ou entidade executivos do Estado ou do Dis-
trito Federal, do domicílio ou residência do candidato, ou na sede estadual ou distrital do pró-
prio órgão, devendo o condutor preencher os seguintes requisitos:

34 Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos / Carlos

Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

50
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

I - ser penalmente imputável; (...)

8. Extinção da pessoa natural (ou física)


O art. 6º do CC traz a regra segundo a qual a morte marca o fim da existência da pessoa natural:

Art. 6º A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausen-
tes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.

8.1. Morte encefálica

A morte é dos temas mais difíceis do direito.


A tanatologia, ramo da medicina legal, estuda o processo da morte. A comunidade científica mun-
dial, hodiernamente, considera a morte encefálica, dada a sua irreversibilidade, o critério mais seguro e
adequado, inclusive para fins de transplante, para a identificação do óbito (Lei n. 9.434/97, art. 3º e Re-
soluções 1480/1997 e 1826/2007, do Conselho Federal de Medicina).
Fazendo uma leitura cardiorrespiratória, o médico poderá chegar à morte encefálica. Todavia, o
critério é a morte encefálica. Maria Helena Diniz narra que, no passado, a parada cardiorrespiratória
(situação de quase-morte) era considerada morte35.
A morte deve ser aferida, à vista do corpo morto, por médico, salvo, na sua falta, duas pessoas qua-
lificadas declararem o óbito (arts. 77 e seguintes da LRP). A declaração é levada em cartório e o óbito é
registrado no Livro de Óbitos:

Art. 77. Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do faleci-
mento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do
seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se
houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou
verificado a morte.(Redação dada pela Lei nº 13.484, de 2017)

8.2. Morte presumida

Além da morte natural (encefálica), existem na lei hipóteses de morte presumida: i) por ausência,
quando aberta a sucessão definitiva (arts. 22 e seguintes); ou ii) sem decretação de ausência, nas situa-
ções do art. 7o do CC.
Nesse sentido, a declaração de ausência é requerida para que se reconheça apenas que o ausente se
encontra desaparecido, autorizando-se a abertura da sucessão provisória e, depois, a definitiva (art. 6º,
2ª parte). Na hipótese do art. 7º do Código Civil, pretende-se que se declare a morte de quem “estava
em perigo de vida” e que se supõe ter ocorrido, sem decretação de ausência.

35 A esse respeito, ver “O estado atual do biodireito”.

51
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

8.2.1. Ausência
Ausência, na verdade, é mais Direito Processual que Civil. É um processo com a finalidade de
transmitir para os herdeiros o patrimônio daquele que desapareceu. Nos concursos, o que cai é normal-
mente a letra de lei.
A ausência caracteriza-se quando o sujeito desaparece de seu domicílio, sem deixar notícia ou re-
presentante36, de maneira que, para que o seu patrimônio não fique sem titular, estabeleceu a lei um pro-
cedimento de transmissibilidade dos bens, regulado a partir do art. 22 do CC.
Importante rememorar que o ausente é considerado morto e não mais absolutamente incapaz
como na Ordem de 1916.

8.2.1.1. Fases do procedimento de ausência37:

A situação do ausente passa por três fases:

8.2.1.1.1. da curadoria de bens do ausente (arts. 22 a 25 do CC)

Desaparecido o indivíduo sem que tenha deixado procurador com poderes para administrar os seus
bens, o juiz nomear-lhe-á curador (CC, art. 22). A curadoria fica restrita aos bens, não produzindo efeitos
de ordem pessoal, e prolonga-se por um ano, durante o qual serão publicados editais, de dois em dois
meses, convocando o ausente a reaparecer.
Obs.: Cessa a curadoria:
a) pelo comparecimento do ausente;
b) pela certeza da morte do ausente;
c) pela sucessão provisória.

8.2.1.1.2. da sucessão provisória (arts. 26 a 36 do CC)

Inicia-se cento e oitenta dias após a publicação da sentença que a determinar. Os bens serão entre-
gues aos herdeiros, como se o ausente fosse falecido, porém em caráter provisório. Os colaterais terão
que prestar garantia da restituição deles para serem imitidos na posse. Essa fase cessa pelo compareci-
mento do ausente.
Obs.: Converter-se-á em definitiva:
a) quando houver certeza da morte do ausente;
b) dez anos depois de passada em julgado a sentença de abertura da sucessão provisória;
c) quando o ausente contar oitenta anos de idade e houverem decorrido cinco anos das últi-
mas notícias suas (CC, arts. 37 e 38).

36 É a situação clássica da pessoa que saiu para comprar cigarro, encontra0se em lugar incerto e não sabido.
37 Adaptado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contra-
tos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

52
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

8.2.1.1.3. da sucessão definitiva (arts. 37 a 39 do CC).

A sua abertura e o levantamento das cauções prestadas poderão ser requeridos pelos interessados
dez anos depois de passada em julgado a sentença que concedeu a abertura da sucessão provisória ou
provando-se que o ausente conta oitenta anos de idade e decorreram cinco anos das últimas notícias su-
as. Constitui causa de dissolução da sociedade conjugal (CC, art.1.571, § 1º), uma vez que no momento
em que é transmitido o patrimônio, o sujeito é considerado morto.
Obs.: Aberta a sucessão definitiva, os sucessores deixam de ser provisórios, adquirindo o domínio
dos bens, mas de modo resolúvel, porque, se o ausente regressar, receberá os bens existentes no estado
em que se acharem, os sub-rogados em seu lugar ou o preço que os herdeiros houverem recebido pelos
bens alienados, a teor do Art. 39 do CC.
Em resumo:

8.2.2. Casos em que a lei autoriza a abertura da sucessão definitiva


Os casos em que a lei autoriza a abertura da sucessão definitiva, chamadas pela doutrina hipóteses
de justificação, estão previstos no art. 7º do Código Civil e são mais importantes, para fins de concur-
so:

Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:

I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;

II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos
após o término da guerra.

Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida
depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do fale-
cimento.

53
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nessas situações, existem elementos convincentes de que a pessoa morreu. O procedimento a ser
observado, nesse caso, é o previsto nos arts. 381 e s. do Código de Processo Civil específico para a justi-
ficação da existência de algum fato ou relação jurídica (cf. § 5º).
O exemplo mais famoso de utilização do inciso I é o do falecimento de Ulysses Guimarães. Há ou-
tros, todavia, como o do sujeito que vai fazer alpinismo e não é mais encontrado desde então.
Obs.: A Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73, art. 88) prevê um procedimento de justifica-
ção, destinado a suprir a falta do atestado de óbito, que não pode ser fornecido pelo médico em razão de
o corpo do falecido não ter sido encontrado. Preceitua, com efeito, a referida lei:

“Art. 88. Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas
desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe,
quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o ca-
dáver para exame.

Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campa-


nha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do art. 85 e os fatos que
convençam da ocorrência do óbito.”

8.3. Comoriência

A comoriência, regulada no art. 8º do Código Civil, traduz a situação em que duas ou mais pessoas
falecem na mesma ocasião, sem que se possa indicar a ordem cronológica dos óbitos, razão pela qual,
haverá presunção legal e relativa que faleceram ao mesmo tempo, tendo como conssequentica a abertura
de cadeias sucessórias autônomas e distintas.

Art. 8º Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se al-
gum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.

O conceito de comoriência afasta a hipótese presunção de premoriência (que deve necessariamente


ser comprovada), que consiste na situação de pré-morte, com importantes efeitos sucessórios (ex.: “A”,
autor da herança, tem 3 filhos, “B”, “C” e “D”. Se “B” é pré-morto, “E” e “F”, filhos de “B”, sucederão).
O Código Civil Francês, inspirado no direito romanista, possuía previsões psicodélicas, como a que
determinava que a mulher morreria antes do homem. A solução brasileira é muito melhor: presunção de
mortes simultâneas. Isso não significa morte no mesmo lugar, ainda que, em 99% das vezes as pessoas
estejam no mesmo lugar.
A comoriência tem como consequência o fato de que um comoriente nada transmite para o outro
(TJRS, AI n. 598569952). Abrem-se cadeias sucessórias independentes.

54
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

1. Teoria geral dos direitos da personalidade


Segundo Flávio Tartuce, os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa humana e à
sua dignidade. O conceito encampa a teoria dos direitos inatos ou direitos originários da pessoa huma-
na.
Essa corrente é liderada no Brasil pelos Professores Limongi França, Bittar e Maria Helena Diniz.

1.1. Personalidade Jurídica, capacidade jurídica e direitos da perso-


nalidade

Historicamente, a personalidade jurídica foi conceituada como a aptidão para ser sujeito de direi-
tos (aptidão para titularizar relações jurídicas). Haveria, portanto, uma relação verdadeiramente impli-
cacional: toda pessoa tem personalidade jurídica e quem possui personalidade jurídica possui aptidão
para ser sujeito de direito (titularizar relações jurídicas)38.
Há algum tempo, alguns autores como Pontes de Miranda começaram a atacar esse conceito, lem-
brando a situação dos entes despersonalizados, como o condomínio, massa falida, herança jacente, he-
rança vacante etc. O condomínio edilício, por exemplo, pode ser consumidor, empregador, contratante,
contribuinte, parte no processo (art. 12, CPC)39, podendo-se concluir que ele é sim sujeito de direitos,
pois titulariza diversas relações jurídicas. Não só ele, mas todos os entes despersonalizados.
Pontes de Miranda demonstrou a fragilidade daquele histórico conceito de personalidade jurídica.
Se personalidade jurídica significa ter aptidão para ser sujeito de direitos, como justificar que aqueles
sujeitos de direito não têm personalidade jurídica? Pontes foi o primeiro a criticar essa correlação.
À luz do CC/2002, passou-se a reconhecer o conceito por outro prisma: toda pessoa tem personali-
dade jurídica, que significa titularizar uma proteção básica fundamental, essencial (essa proteção tem a
ver com a essência da personalidade): os direitos da personalidade.
Portanto, os direitos da personalidade constituem a proteção básica elementar reconhecida a todos
os detentores de personalidade. Os direitos da personalidade constituem a categoria jurídica fundamen-
tal do sistema, uma vez que sistema do Direito Civil é constituído para a proteção da pessoa.
O reconhecimento dos direitos da personalidade implicou na valorização do conceito de personali-
dade jurídica. Isso porque antes do reconhecimento dos direitos da personalidade, a personalidade jurí-

38 Ver a esse respeito a obra de Maria Helena Diniz.

39 Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) IX - o condomínio, pelo administrador ou
pelo síndico.

55
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dica significava a titularidade de direitos e obrigações (a rigor, pessoa não se diferenciava de ente desper-
sonalizado). Os direitos da personalidade, de construção recente (a partir da 2a Guerra Mundial) tendem
a proteger a pessoa.
Ente despersonalizado não sofre, portanto, dano moral, pois somente as pessoas podem sofrê-lo.
Ao lado do conceito de personalidade, vem o conceito de capacidade jurídica: a aptidão para ser su-
jeito de direito. Pode ser plena, quando o sujeito de direito pode praticar os atos pessoalmente, ou limi-
tada, quando o sujeito de direito não pode praticar os atos pessoalmente.
Uma criança com dez anos de idade é pessoa, com personalidade, direitos da personalidade e capa-
cidade, mas não pode praticar pessoalmente os atos da vida civil. Um condomínio não é pessoa, não tem
direitos da personalidade, mas tem capacidade.
Quem dispõe de personalidade dispõe também de capacidade. Mas a recíproca não é verdadeira, de
modo que toda pessoa tem capacidade, mas nem todo aquele que tem capacidade é uma pessoa. Todos
esses conceitos brotam, portanto, dos direitos da personalidade.
Assim, personalidade serve para titularizar relações existenciais; capacidade serve para titularizar
relações patrimoniais. O art. 1o do Código Civil determina isso:

Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Pode-se completar o texto do dispositivo com a seguinte frase “mas nem todo aquele que é capaz é
uma pessoa”. E mais: a pessoa se distingue dos demais entes que têm capacidade por conta dos direitos
da personalidade.

1.2. Cláusula geral de proteção da personalidade: dignidade da pes-


soa humana

Direitos da personalidade são direitos subjetivos (aqueles que conferem ao titular a prerrogativa de
exigir de alguém comportamentos positivos ou negativos), de construção recente, reconhecendo uma
proteção mínima à essência da personalidade (ex.: nome, honra, privacidade, integridade física e psíqui-
ca etc.)
A partir desse conceito, nota-se que os direitos da personalidade trazem consigo a indagação: estão
estabelecidos de forma taxativa ou exemplificativa na lei? Certamente o rol é exemplificativo, na medida
em que se trata de direitos essenciais da pessoa.
Seguindo as pegadas dos direitos italiano, português e espanhol, o direito brasileiro estabeleceu a
cláusula geral de proteção da personalidade (ou direito geral da personalidade): o reconhecimento de que
o rol é exemplificativo.
Não é necessário que todos os direitos da personalidade estejam explicitados, justamente por conta
dessa cláusula geral: a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1o da CR:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municí-

56
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

pios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como funda-
mentos: (...)

III - a dignidade da pessoa humana;

É possível resumir tudo o quando dito neste tópico em uma frase: os direitos da personalidade re-
conhecem um direito à vida digna nas relações privadas. Fala-se aqui na relação jurídica privada porque
no campo do direito público a dignidade alcança outros fins (saúde, educação, segurança etc.)
A dignidade da pessoa humana não comporta um conceito hermético e fechado. No livro “O conte-
údo jurídico do princípio da igualdade”, de Celso Antonio Bandeira de Melo, o autor coloca que princí-
pios fundamentais não comportam conceitos rígidos. Entretanto, segundo o autor, se não é possível con-
ceituar um princípio fundamental, é possível apresentar um conteúdo mínimo desse princípio, um nú-
cleo duro.
Os constitucionalistas são unânimes ao estabelecerem o conteúdo jurídico mínimo do princípio da
dignidade da pessoa humana (veja que os direitos da personalidade passam necessariamente por esse
conteúdo mínimo):
i) integridade física e psíquica:
A Lei 11.346/2006, por exemplo, reconhece o direito à alimentação adequada.
ii) liberdade e igualdade:
No REsp 820.475/RJ, o STJ reconheceu a possibilidade jurídica do pedido de união familiar ho-
mossexual, com base na liberdade e na igualdade. Recentemente, o STF reconheceu a existência de enti-
dade familiar equiparada à união estável entre casais homossexuais.
iii) direito ao mínimo existencial (direito ao patrimônio mínimo).
A Lei 11.372/2006, por exemplo, modificou o art. 649 do CPC, implantando o conceito de bem de
família móvel, com base no padrão médio de vida digna. A partir dessa lei, tornou-se possível a penhora
de bens móveis de elevado valor. Ex.: penhora de televisão altamente valiosa, e o valor arrecadado devol-
vido ao devedor, para que ele adquira uma TV de padrão médio, entregando o restante ao credor.
O Presidente da República vetou o dispositivo da lei que aplicava o conceito de padrão médio aos
bens imóveis. Se o devedor possuir um imóvel único que valha R$ 8.000.000,00 e o credor está morren-
do de fome (trabalhista), pela letra fria da lei não seria possível a realização da penhora.
Marinoni (tese dele), Didier e o Cristiano Chaves sustentam a aplicação direta do princípio da dig-
nidade a admitem a penhora de imóvel de elevado valor. Recentemente (2011), o STJ afastou a tese de
Marinoni, não aplicando a norma-princípio e aplicando diretamente a norma-regra. Assim, para o STJ,
imóvel único de elevado valor continua impenhorável, nas mesmas pegadas da Lei 11.382/2006.
Chaves recomenda não se empolgar com a ideia a ponto de imaginar que os direitos da personali-
dade se confundiriam com direitos fundamentais e direitos humanos. São três perspectivas distintas.
Direitos da personalidade dizem respeito às relações numa perspectiva privada, enquanto os direi-
tos humanos relacionam-se às relações de direito internacional. Estes são cosmopolitas, enquanto que
57
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

aqueles são provincianos. Os direitos fundamentais, por sua vez servem tanto às relações direito público
quando de direito privado. Sua perspectiva é estatal. A dos direitos da personalidade é privada. Trata-se,
portanto, de categorias jurídicas distintas.
O STF, no julgamento do RE 201.819/RJ (da Associação de Compositores) mandou aplicar os di-
reitos fundamentais em sua perspectiva horizontal (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Trata-
se da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.

1.3. Momento aquisitivo dos direitos da personalidade

Como visto, há três teorias explicativas da natureza jurídica do nascituro: natalista, concepcionista
e condicionalista (ou teoria da personalidade condicional, de Serpa Lopes). A partir desse estudo, pode-
se estabelecer que o momento aquisitivo dos direitos da personalidade é a concepção (teoria concepcio-
nista).
Historicamente, o conceito de concepção, inclusive harmonizando direito civil e direito penal (no-
tadamente o tratamento jurídico do crime de aborto dado por aquela disciplina), sempre foi o da nidação
(o prendimento do embrião nas paredes do útero).
Assim, segundo Cristiano Chaves, é a nidação o momento da aquisição dos direitos da persona-
lidade.

1.4. Questões polêmicas relacionadas à aquisição dos direitos da


personalidade

1.4.1. Natimorto
O natimorto é aquele que foi concebido, mas não nasceu com vida. Ele tem direitos da personalida-
de, na medida em que o momento aquisitivo dos direitos da personalidade é a concepção (que é reconhe-
cida ao natimorto). O motivo é simples: tem direitos da personalidade (ex.: imagem, nome, sepultura)
porque foi concebido.
Nesse sentido, confira-se o enunciado nº 1 da Jornada de Direto Civil:

Enunciado nº 1 – Art. 2º: A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no
que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura.

No Rio de Janeiro, uma gestante foi gravando os exames de ultrassom. O médico resolveu usar as
imagens da criança para realizar propaganda da clínica. Ela ajuizou ação contra a clínica por uso indevi-
do de imagem: a legitimidade é do nascituro, representado por sua mãe. O pedido foi de proibição do uso
da sua imagem, que restou julgado procedente.
Se nessa ação houvesse sido pleiteada também indenização por danos e o processo houvesse anda-
do tão rápido que a sentença de procedência tivesse transitado em julgado antes do nascimento, a mãe

58
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

não poderia levantar o dinheiro, pois até o nascimento com vida o nascituro não adquire direitos patri-
moniais (não foram transmitidos direitos).

1.4.2. Embrião laboratorial (criogenizado/congelado)


O embrião laboratorial tem direitos da personalidade?
O enunciado nº 2 da I Jornada de Direito Civil40 estabeleceu que o Código Civil não seria o locus
privilegiado para discutir essa matéria, mas uma lei especial: a Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança),
que trata do assunto em seu art. 5º, objeto da ADI 3510/DF, que restou julgada improcedente pelo STF.
Este art. 5º estabelece que, no direito brasileiro, somente é possível preparar embriões congelados
para fins de reprodução humana:

Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias


obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respecti-
vo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou
que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, conta-
dos a partir da data de congelamento. (...)

Veja que o direito brasileiro não admite o preparo de embriões para fins científicos, mas admite a
utilização do embrião excedentário.
O dispositivo não ignora que, ao preparar embriões para fins reprodutivos, podem sobrar alguns.
Esses embriões congelados excedentários devem ser guardados pelo prazo de 3 anos, findo o qual a clíni-
ca notificará o casal para manifestar interesse em nova fertilização. Caso não haja tal interesse, ela os
descarta, encaminhando-os para pesquisas com células-tronco.
Assim, de acordo com a decisão do STF, está afastada aplicação dos direitos da personalidade aos
embriões congelados, uma vez que é possível o descarte.

1.4.3. Direito sucessório do embrião congelado cujo pai faleceu antes da sua implanta-
ção no útero (art. 1.798, CC)
O art. 1.798 do Código Civil fixa a capacidade sucessória, dizendo que “legitimam-se a suceder as
pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”:

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertu-

40 Enunciado nº 2 – Art. 2º: Sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2º do Códi-
go Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser objeto de um esta-
tuto próprio.

59
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ra da sucessão.

Nascidas são as pessoas separadas do cordão umbilical. Há dois tipos de concepção: a uterina (ni-
dação) e a laboratorial (fertilização assistida).
Alguns autores, como Caio Mário da Silva Pereira, negam o direito sucessório ao embrião laborato-
rial (congelado) sob o argumento de que o conceito de concepção é uterino. De outro lado, autores como
Maria Berenice Dias e Giselda Hironaka defendem o direito sucessório do embrião congelado com base
no princípio constitucional da igualdade entre os filhos (tese majoritária).
Chaves concorda com a segunda corrente: embrião laboratorial tem direito sucessório, ainda que
não tenha direitos da personalidade. Isso porque o direito sucessório é de natureza patrimonial (lembrar
que há entes despersonalizados que possuem direitos patrimoniais). Por isso, o reconhecimento de direi-
to patrimonial ao embrião não colide com a negação dos direitos da personalidade.

1.5. Momento extintivo dos direitos da personalidade

Os direitos da personalidade extinguem-se com a morte. Se a morte extingue a personalidade, na-


turalmente ela extingue também os direitos da personalidade. Até porque não pode ter direitos da perso-
nalidade quem não dispõe de personalidade.
Sabendo que a morte é o termo extintivo dos direitos da personalidade, pode-se afirmar que eles
são intransmissíveis e vitalícios. Não são perpétuos. Ninguém transmite os direitos da personalidade.
Porém, há situações polêmicas relativas à extinção dos direitos da personalidade, que serão tratadas a
seguir.

1.6. Questões polêmicas relacionadas à extinção dos direitos da per-


sonalidade

1.6.1. Transmissão do direito à reparação de danos (art. 943 do CC)

Art. 943. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança.

Se o titular de um direito da personalidade sofreu a lesão ainda vivo e faleceu sem promover a ação,
transmite-se ao seu espólio o direito de requerer a indenização em seu lugar.
Detalhe: o que o morto transmite ao seu espólio é o direito patrimonial de exigir a reparação do
dano (o direito de requerer a indenização), e não o direito da personalidade. Não se confunde direito da
personalidade com direito patrimonial de requerer uma indenização por violação do direito da persona-
lidade (“uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”).
A redação do art. 943 é bastante clara nesse sentido: o espólio recebe o direito de requerer a repa-
ração. O juiz fixará uma só indenização, e não tantas quantas forem os herdeiros. A indenização irá ao
falecido, como se vivo fosse, e se transmitirá ao espólio.

60
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O direito de exigir a reparação, que é transmitido ao espólio, pressupõe a não ocorrência de pres-
crição, na medida em que ninguém pode transmitir mais do que possui. Ex.: “A” sofre dano a sua perso-
nalidade em janeiro de 2009 e morre em janeiro de 2011. Lembrando que o prazo de prescrição da pre-
tensão reparatória é de três anos, o espólio de “A” dispõe de apenas um ano para promover a ação. O di-
reito do espólio de requerer a reparação do dano tem de ser exercido no prazo prescricional que já se
iniciou.

1.6.2. Lesados indiretos (art. 12, parágrafo único do CC)

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar
perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista
neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto
grau.

No caso dos lesados indiretos, o dano ao direito da personalidade ocorre depois do óbito do titular.
Atingirá diretamente o morto, e, nessa condição, não produzirá efeito jurídico nenhum. Contudo, além
de atingir diretamente o morto, esse dano atinge também, indiretamente, os seus parentes vivos. Disso
decorrem efeitos, os quais são titularizados pelos chamados lesados indiretos (os familiares do morto
atingidos indiretamente pelo dano diretamente dirigido ao morto).
Problema: a indenização será buscada em nome próprio defendendo interesse próprio (legitimado
ordinário) ou em nome próprio defendendo direito alheio (substituto processual)? Trata-se de legitima-
ção autônoma (ordinária). O sujeito atua em nome próprio, defendendo interesse próprio. Ele não é
substituto processual.
Os lesados indiretos, quando ajuízam uma ação, estão defendendo um direito da personalidade
próprio, consistente em defender a personalidade de seus parentes mortos. São eles:
i) cônjuge:
O Código não diz, mas numa interpretação civil-constitucional, pode-se acrescentar o companheiro
e o parceiro homoafetivo.
ii) descendentes;
iii) ascendentes;
iv) colaterais até o quarto grau:
Aqui não se aplica a ordem de vocação sucessória. Cada um dos lesados indiretos é legitimado con-
correntemente. Isso significa que tanto um filho quanto um sobrinho na Austrália podem demandar.
Todavia, os valores indenizatórios não serão necessariamente os mesmos, variando de acordo com o da-
no sofrido (o mais afastado sofre menos). Trata-se de litisconsórcio facultativo ativo. Serão tantas indeni-
zações quantas forem as ações.
Questões transcendentais relacionadas aos lesados indiretos:

61
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) o rol dos lesados indiretos é taxativo ou exemplificativo? Exemplificativo. E, como tal, admite-se
a inclusão de outras pessoas ligadas afetivamente ao morto. Ex.: a namorada, a noiva, o enteado etc.
ii) o rol dos lesados indiretos sofrerá a exclusão dos colaterais até o quarto grau quando se tratar de
violação do direito à imagem. Isso porque o CC entende que o direito à imagem é mais fluido e, como os
colaterais não são tão próximos, não seriam merecedores dessa proteção.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da


ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição
ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem pre-
juízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou
se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa
proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Há dois julgados famosos, nos quais o STJ reconheceu os lesados indiretos: REsp 86.109 e REsp
521.697/RJ.
O REsp 86.109 trata do caso de Lampião e Maria Bonita. A filha do casal descobriu que a imagem
de seus pais vinha sendo indevidamente utilizada. Os irmãos de Lampião não poderiam ter ajuizado a
ação (art. 20, parágrafo único, do CC e Enunciado 5 da Jornada):

Enunciado nº 5 - Arts. 12 e 20: 1) As disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se, inclu-
sive, às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade para re-
querer as medidas nele estabelecidas; 2) as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a fi-
nalidade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos nas situações nele enumera-
das. Com exceção dos casos expressos de legitimação que se conformem com a tipificação pre-
conizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas no art.
12.

No REsp 521.697/RJ, foi discutida a seguinte questão: o jornalista Rui Castro escreveu uma biogra-
fia dizendo que Garrincha tinha um órgão genital avantajado. Os filhos de Garrincha, considerando que o
pai nunca revelara tal característica, ajuizaram ação. Os irmãos, filhos e viúva de Garrincha poderiam
ajuizar a ação, por não se tratar de violação ao direito à imagem, mas à intimidade.
É possível a tutela judicial dos direitos da personalidade de pessoa morta. Os lesados indiretos são
titulares de tal tutela, malgrado não haja direitos da personalidade do morto. O direito penal há muito
trata do crime de vilipêndio a cadáver. O CPP legitima a revisão criminal em favor do morto, pelos fami-
liares.

1.7. Fontes dos direitos da personalidade

Neste tópico serão analisados a origem, o nascedouro dos direitos da personalidade (de onde eles
brotam).

62
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há uma corrente majoritária, encabeçada por Maria Helena Diniz, que sustenta que os direitos da
personalidade nascem do jusnaturalismo. O jusnaturalismo possui origens cristãs, de modo que os de-
fensores dessa corrente sustentam que os direitos da personalidade emanam de uma ordem pré-
concebida. Ou seja, eles não teriam natureza jurídica, na medida em que não emanariam do direito posi-
tivo.
O grande exemplo propagado por esses autores é o Tribunal de Nuremberg (julgamento dos oficiais
nazistas, que diziam estar cumprindo a lei Alemã), em que os oficiais foram condenados por violarem
normas pré-concebidas. Daí a doutrina sustentar o caráter inato dos direitos da personalidade.
Minoritariemente, Pontes de Miranda e Gustavo Tepedino sustentam o caráter normativo dos di-
reitos da personalidade, e não naturalista. Argumentam que se os direitos da personalidade fossem natu-
rais, eles teriam de ser universais.
Não se pode esquecer que vários países do mundo não respeitam os direitos de personalidade (al-
guns preveem pena de morte etc.), de modo que os direitos da personalidade corresponderiam às opções
normativas de cada ordenamento jurídico. O direito brasileiro tratava o negro como coisa e não pessoa.
Se os direitos da personalidade fossem inatos, como explicar o tratamento anterior desigual? O direito
brasileiro atual admite a pena de morte, em tempos de guerra. Seria um desrespeito a direitos inatos.
Não seria uma temeridade conferir aos direitos da personalidade caráter normativo, por conta da
possibilidade de eventual reforma legal? Não, em virtude do princípio da proibição do retrocesso: o sis-
tema só pode melhorar no sentido da proteção da pessoa humana. Chaves endossa a teoria minoritária,
mas não é a posição a ser adotada em prova objetiva.

1.8. Direitos da personalidade e liberdades públicas

Os direitos da personalidade são vistos sob uma ótica visivelmente privada. Portanto, asseguram o
direito à vida digna, nas relações privadas. Entretanto, não é difícil perceber que, eventualmente, o exer-
cício de um direito da personalidade exigirá a imposição de obrigações positivas ou negativas ao Poder
Público.
Toda a vez que se impuser ao Poder Público uma obrigação positiva ou negativa para assegurar o
exercício de um direito da personalidade, tal imposição receberá o nome de “liberdades públicas”. As
liberdades públicas são as obrigações impostas ao Estado para garantir ao titular o exercício de um direi-
to da personalidade.
Ex.: direito de locomoção e habeas corpus. O direito de locomoção é visto segundo uma ótica pri-
vada, mas eventualmente pode ser necessária a imposição ao Estado da concessão do HC: uma liberdade
pública disponibilizada para garantir o exercício do direito de locomoção.
Tanto os direitos da personalidade quanto as liberdades públicas, eventualmente, podem figurar no
rol dos direitos e garantias fundamentais do art. 5º da CR. O constituinte pode entender que algumas

63
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

liberdades públicas mereçam status de direitos e garantias fundamentais. Isso não significa que todos os
direitos da personalidade e liberdades públicas correspondam a direitos fundamentais.

1.9. Direitos da personalidade da pessoa jurídica

Vem se discutindo se a pessoa jurídica titulariza ou não direitos da personalidade. Doutrinariamen-


te, há posicionamentos a favor e contra o reconhecimento dos direitos da personalidade da pessoa jurídi-
ca.
A posição prevalecente, para fins de concurso, é a de que os direitos da personalidade estão susten-
tados pela cláusula geral de dignidade da pessoa humana (art. 1º, da CR). Sendo assim, eles não podem
ser reconhecidos às pessoas jurídicas porque não existe uma cláusula de dignidade da pessoa jurídica.
O Enunciado 286 da Jornada adota esse posicionamento:

Enunciado 286- Art. 52. Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa
humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos.

De qualquer maneira, a pessoa jurídica tem personalidade e esta é uma realidade irrefutável. E,
como visto, os direitos da personalidade foram construídos a partir da ideia essencial de que toda pessoa
tem personalidade e quem tem personalidade tem direitos da personalidade. Isso porque ter personali-
dade jurídica significa ter proteção essencial. Ora, sendo a pessoa jurídica dotada de personalidade,
não é possível negar-lhe essa proteção essencial.
Atenção para a filigrana jurídica: os direitos da personalidade estão baseados na dignidade humana
e, como tais, não podem ser reconhecidos às pessoas jurídicas, mas à sua proteção a pessoa jurídica faz
jus. O art. 52 do Código Civil acaba com qualquer dúvida:

Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

O art. 52 não está dizendo que a pessoa jurídica tem direitos da personalidade, mas que ela faz jus à
proteção dos direitos da personalidade. Observe que são coisas diferentes: a pessoa jurídica não dispõe
de direitos de personalidade (porque estes decorrem da dignidade da pessoa humana), mas, por ser ente
dotado de personalidade, dispõe da proteção daqueles direitos.
Entende Flávio Tartuce, em corrente afirmativista, que a pessoa jurídica tem direitos da personali-
dade por equiparação legal.
Deve-se atentar à expressão “no que couber”, contida no dispositivo. Isso porque o artigo está dei-
xando claro que os direitos da personalidade foram construídos pelo homem e para o homem. Ou seja,
os direitos de personalidade constituem uma categoria de direitos essencial à pessoa humana. Mas a pro-
teção decorrente desses direitos alcança a pessoa jurídica. Isso se dá por conta de um atributo de elasti-
cidade.
Atributo de elasticidade é uma qualidade dos direitos da personalidade, a qual permite que tais di-
reitos, embora não alcancem ordinariamente as pessoas jurídicas, sejam a elas aplicáveis, no que couber.

64
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Qual o significado da expressão “no que couber”? Significa que a proteção dos direitos da persona-
lidade alcançará as pessoas jurídicas “naquilo que a sua falta de estrutura biopsicológica permita exer-
cer”. Ex.: direito ao nome, direito à garantia de privacidade (segredo empresarial), direito à imagem
(imagem-atributo), direito autoral etc. Estes são alguns exemplos de proteção aos direitos da personali-
dade reconhecidos às pessoas jurídicas.
Por outro lado, há direitos da personalidade cuja proteção não pode ser reconhecida à pessoa jurí-
dica. Ex.: direito à integridade física e direito à intimidade não podem ser reconhecidos à pessoa jurídica,
justamente por conta de sua falta de estrutura biopsicológica.
Se a pessoa jurídica não tem direitos de personalidade, mas faz jus à proteção decorrente desses di-
reitos no que couber, resta perguntar: A pessoa jurídica pode ou não sofrer dano moral? A resposta está
na súmula 227, do STJ:

Súmula 227- A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

De fato, cabe dano moral à pessoa jurídica, porque o dano moral nada mais é que uma proteção aos
direitos da personalidade. Para que esta súmula fique irretocável, deve-se acrescentar a expressão “no
que couber”. Isso porque a proteção dos direitos da personalidade é aplicada à pessoa jurídica “no que
couber”.
Obs.: Em relação ao tema, cumpre observar que os danos morais tem lugar em razão à uma lesão à
honra, entretanto, a pessoa jurídica só sofre dano moral quanto à honra41 objetiva (reputação), e não
quanto à honra subjetiva (autoestima).
O STJ tem um exemplo recente de dano moral causado à pessoa jurídica por protesto indevido de
duplicata (REsp 433.954).

1.10. Conflito entre direitos da personalidade e direitos de comunica-


ção social

Em primeiro lugar, vale lembrar que o direito de comunicação social abrange liberdade de impren-
sa e liberdade de expressão.
Note que é possível que os direitos da personalidade e o direito de comunicação social estejam em
rota de colisão. Ex.: intimidade e imagem podem estar em colisão com a liberdade de imprensa. Há di-
versos exemplos disso na mídia.
Explicitada essa possibilidade de colisão entre tais direitos, surge a questão sobre como resolver es-
se conflito. A solução passa pela técnica da ponderação de interesses.
Atenção! É um erro usar a técnica de ponderação de interesses como sinônimo de proporcionalida-
de. A proporcionalidade se apresenta com duas feições: i) princípio interpretativo das normas; ou ii) téc-

41 Essa divisão foi feita pelo jurista Adriano de Cupis

65
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

nica de solução de conflitos normativos. Quando a proporcionalidade se apresenta como princípio inter-
pretativo das normas, ela é denominada de razoabilidade. Mas se ela se apresenta como técnica de
solução de conflitos, ela recebe o nome de ponderação de interesses.
Portanto, ponderação de interesses é uso da proporcionalidade como técnica de solução de confli-
tos normativos. Mas é preciso deixar claro que nem todo uso da proporcionalidade ocorrerá como técnica
de ponderação de interesses. Ou seja, embora toda a ponderação de interesses corresponda à aplicação
da proporcionalidade, o contrário não é verdadeiro: nem toda proporcionalidade é ponderação de inte-
resses.
Ex.: O STJ vem afirmando que as convenções condominiais não podem proibir de forma absoluta a
entrada de animais, pois regra nesse sentido ofenderia a proporcionalidade. Ora, se houvesse proibição
absoluta, o condômino não poderia manter sequer um aquário com peixes. Nesse caso, a proporcionali-
dade foi usada como princípio interpretativo de uma norma convencional. Ou seja, o STJ usou proporci-
onalidade como razoabilidade.
Ex.: O próprio STJ vem admitindo o uso de prova ilícita em processo penal em favor do réu para
garantir sua liberdade. Apesar de a constituição proibir a prova ilícita, o STJ entende que o valor liberda-
de (também previsto na constituição) é proporcionalmente mais denso. Nesse caso, há a solução de um
conflito normativo entre a vedação da prova ilícita e o direito à liberdade do réu por meio da técnica de
ponderação de interesses.
Pois bem, o eventual conflito entre direitos da personalidade e direitos de comunicação social se
resolve por ponderação de interesses. Isso significa que a solução dependerá do caso concreto (não há
uma solução apriorística). Em outras palavras, devem-se colocar em uma balança hipotética os dois valo-
res em colisão para descobrir, no caso concreto, qual deles tem maior densidade valorativa (merece
proteção).
Esse raciocínio comprova que, no sistema jurídico brasileiro, não existem direitos absolutos. As-
sim, os direitos da personalidade podem sofrer mitigação, da mesma forma que os direitos da comunica-
ção social.
Veja, dizer que a liberdade de expressão pode ser mitigada não significa conferir repristinação à
censura! Pelo contrário, a regra é que a liberdade seja respeitada. Ocorre que ela encontrará certos limi-
tes, a depender do caso concreto.
Dizer que a liberdade de expressão não é absoluta significa que o modelo brasileiro se afasta do di-
reito americano no que se refere ao chamado “hate speech”. Juridicamente, essa expressão pode ser tra-
duzida como “discurso do ódio” (ou “da intolerância”). “Hate speech” são as manifestações de desprezo
por outras pessoas ou grupos sociais. E, no Brasil, não se admite o “hate speech”.
A prova disso é a decisão proferida pelo Supremo no HC 82.424-2/RS. Nela, o STF admitiu o pro-
cessamento de uma ação penal contra um autor gaúcho que publicou obra antissemita. Essa obra tinha
linguagem muito dura e odiosa contra os judeus, razão pela qual o autor foi processado por crime de ra-

66
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cismo. A defesa impetrou HC alegando que não haveria crime em razão da liberdade de expressão. Po-
rém, o Supremo admitiu a ação penal em face do autor, por entender que a liberdade de expressão não é
absoluta.
Luis Roberto Barroso se vale, nesse ponto, do exemplo de duas notícias publicadas no jornal “O
Globo”, em uma mesma edição. Uma delas veiculava a informação de que um ministro da república teria
uma amante, a qual ocupava cargo de confiança no ministério. Outra notícia informava que a senhora
Nezinha, sexagenária que era presidente de uma associação de bairros no Rio de Janeiro, tinha um
amante de 20 anos. Segundo Barroso, a ponderação de interesses justifica a edição da primeira notícia,
porque, naquele caso, a liberdade de imprensa teria maior densidade valorativa. No entanto, no caso da
senhora, o direito à intimidade teria densidade valorativa maior, devendo prevalecer. Portanto, o mesmo
exemplo pode servir para uma ou outra solução, à luz da técnica de ponderação de interesses.
As súmulas 221 e 281, do STJ falam de responsabilidade civil por dano causado pela imprensa.

Súmula 221- São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação
pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação.

A responsabilidade solidária, segundo o art. 265 do CC, não se presume, sendo estabelecida por lei
ou pela vontade das partes. Essa súmula foi muito polêmica, pois foi hipótese em que o STJ criou uma
hipótese de solidariedade.

Súmula 281- A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação da lei de imprensa.

A Lei de Imprensa dizia que o montante de indenização por dano moral tinha de ser fixado entre 5
e 200 salários mínimos. O conteúdo dessa súmula está prejudicado, à luz da decisão do Supremo que
reconheceu a não recepção da norma.
Finalmente, cumpre observar que a técnica da ponderação foi adotada parcialmente pelo CPC, con-
forme disposto no art. 489, § 2º

Art. 489 (...)

§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da pon-
deração efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as
premissas fáticas que fundamentam a conclusão.

Nesse sentido, segundo Flávio Tartuce, o CPC legalizou uma “ponderação à brasileira”uma vez que
a colisão no caso positivado é admito entre “normas” jurídicas, que segundo a visão de Humberto Ávila
tem como espécies Regras e Princípios.
Assim, admite-se em tese a ponderação entre Regras X Princípios, o que não se coaduna com a
ponderação proposta por Alexy, pai da técnica.

1.11. Características dos direitos da personalidade


Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissí-

67
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

veis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

A redação do art. 11 do CC é muito ruim. O dispositivo parte de uma técnica pouco recomendável:
ao invés de apresentar a regra geral e depois a exceção, ele faz o contrário, começando pela exceção para
depois apresentar a regra.
Melhor seria: “Os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o
seu exercício sofrer restrição voluntária, com exceção dos casos previstos em lei”.
As características eleitas pelo art. 11 para os direitos de personalidade são: intransmissibilidade e
irrenunciabilidade. Intransmissíveis e irrenunciáveis são espécies do gênero indisponíveis. Assim, se-
ria possível substituir a redação do art. 11 pela seguinte afirmação: “os direitos da personalidade são rela-
tivamente indisponíveis”.
Além disso, vale notar que os direitos de personalidade podem sofrer restrição voluntária, nos ca-
sos previstos em lei (a forma como foi redigido o dispositivo pode não deixar isso muito claro). São
exemplos de restrição voluntária dos direitos da personalidade: doação de sangue, doação de órgãos,
cessão de imagem.
Para Chaves, o legislador se equivocou quanto à exigência de autorização expressa de lei para a res-
trição voluntária dos direitos da personalidade. O Enunciado 139 da Jornada de Direito Civil deixa claro
que a restrição a direitos da personalidade não precisa estar expressamente prevista em lei:

Enunciado 139- Art. 11: Os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não
especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu
titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes.

Portanto, embora o art. 11 se refira a atos de restrição voluntária apenas “nos casos previstos em
lei”, a doutrina brasileira conclui que os atos de restrição voluntária não decorrem apenas da autorização
da lei, na medida em que há outros, decorrentes da autonomia privada. Isso não significa que o titular do
direito da personalidade possa realizar ato de restrição voluntária ilimitadamente, como será visto adian-
te.

1.11.1. Limites ao ato de restrição voluntária aos direitos da personalidade

1.11.1.1. o ato de restrição não pode ser permanente (tem de ser temporário)

Há boatos de que o ex-jogador Ronaldo teria um contrato de cessão de imagem vitalício com a Ni-
ke. Supondo que esse contrato existisse e tivesse sido celebrado no Brasil, Ronaldo poderia denunciar do
contrato a qualquer tempo, porque ninguém pode ceder sua imagem por toda a vida.
A imagem da moça na embalagem do palito de dente Gina está sendo usada há mais de 40 anos. A
modelo disse nunca ter recebido nada por isso e reclamado dessa situação. É claro que essa pessoa pode-
ria ingressar com ação para que sua foto fosse retirada das embalagens, porque a cessão da sua imagem
não pode se dar de forma vitalícia.

68
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A título de curiosidade, vale lembrar que a Lei de Direitos Autorais estabelece o prazo de cinco anos
como limite de cessão de imagem, renovável.

1.11.1.2. o ato de restrição não pode ser genérico (tem de ser específico)
Ex.: as pessoas confinadas no Big Brother estão cedendo para a Rede Globo sua imagem e sua pri-
vacidade, mas isso não significa que elas tenham cedido os demais direitos da personalidade. Assim, se
uma dessas pessoas sofrer uma violação à honra, ela poderá pleitear indenização.

1.11.1.3. o ato de restrição não pode violar a dignidade do titular, mesmo com o seu
consentimento
Sobre esse tema, sempre é lembrada a questão do arremesso de anões, nos municípios do interior
da França. A brincadeira era, através de um canhão de ar comprimido, arremessá-los contra um alvo. O
prefeito de determinada cidade cassou o alvará de funcionamento dos estabelecimentos, os quais ingres-
saram em juízo contra a decisão, porque diziam que a restrição tinha sido feita de forma voluntária. In-
clusive, os anões ingressaram como litisconsortes, afirmando que aceitavam a restrição. A suprema corte
não concordou com as alegações, por entender que não seria possível conceder restrição que violasse sua
própria dignidade.
No Brasil, um programa foi retirado do ar por conta disso. Apesar de a Rede TV comprovar que as
pessoas que participavam do “Teste de Fidelidade” anuíam com o quadro, a justiça entendeu que ele não
era admissível por violar a dignidade. Atualmente, o programa voltou ao ar, com alterações.
O Enunciado 4 da Jornada de Direito Civil confirma esses limites ao ato de restrição voluntária:

Enunciado 4 - Art. 11: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntaria,
desde que não seja permanente nem geral.

Portanto, os direitos da personalidade são relativamente indisponíveis, mas o seu exercício admite
restrição voluntária, nos casos especificados em lei ou não.

1.11.2. Características dos direitos da personalidade não mencionadas no art. 11 do CC


Como visto, o Código Civil elegeu a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade como características
dos direitos da personalidade. Porém, além dessas características mencionadas no art. 11, há outras re-
conhecidas aos direitos da personalidade:

1.11.2.1. Absolutos

Os direitos da personalidade são absolutos, no sentido de oponíveis erga omnes. Como estudado,
os direitos da personalidade podem ser relativizados quando em colisão com outros direitos. Portanto,
observe que a palavra “absoluto” é aqui empregada com outro sentido, diverso de “não relativo”.

1.11.2.2. Inatos

69
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como mencionado, a maioria da doutrina entende que os direitos da personalidade decorrem de


uma ordem pré-concebida (Direito Natural).

1.11.2.3. Extrapatrimoniais
Dizer que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais significa dizer que seu conteúdo (a
sua estrutura) não tem valor econômico (preço, expressão patrimonial). Isso não impede que sua eventu-
al violação enseje uma reparação econômica (indenização).

1.11.2.4. Vitalícios e intransmissíveis


Os direitos da personalidade se extinguem com o seu titular. Isso foi discutido anteriormente,
quando visto que o art. 94342 estabelece a transmissão do direito de reparação (não dos direitos de per-
sonalidade). Aliás, esse dispositivo também confirma o caráter extrapatrimonial dos direitos da persona-
lidade.

1.11.2.5. Imprescritíveis

Não há prazo extintivo para o exercício dos direitos da personalidade. Ou seja, não há prazo para
que o titular exerça o seu direito de personalidade. Mas, atenção, há prazo extintivo para que o titular
reclame indenização (3 anos).
Ex.: a Caloi descobriu que um distribuidor da marca estava fazendo bicicletas falsificadas. Diante
disso, ela ingressou com uma ação pedindo para que o distribuidor parasse de usar a marca e indenizasse
o prejuízo. O primeiro pedido não tinha prazo prescricional, porque se refere ao direito de personalidade.
Já o pedido indenizatório tinha prazo de 3 anos.
Vale observar, contudo, que no REsp 816.209/RJ o STJ reconheceu a imprescritibilidade da pre-
tensão reparatória decorrente de tortura. De acordo com o tribunal, se a tortura é um crime imprescrití-
vel, a reparação dela decorrente também será. Essa decisão teve um aspecto importante, porque visava a
garantir que as vítimas de tortura da ditadura pudessem ajuizar ação contra o Estado. No entanto, ado-
tando essa tese, poder-se-ia ir mais longe e admitir que os descendentes dos escravos também poderiam
pleitear indenização. É preciso repensar bem esse posicionamento.

1.12. Proteção jurídica dos direitos da personalidade

1.12.1. Evolução do tema: a superação do binômio lesão/sanção


Historicamente, a proteção jurídica dos direitos pelo ordenamento brasileiro sempre esteve basea-
da no binômio lesão/sanção. Ou seja, a tutela jurídica esteve ancorada na imposição de sanção a toda e
qualquer lesão. E essa sanção imposta sempre foi a de perdas e danos.

42 Art. 943. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança.

70
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Todavia, desde o advento do CDC, de 1990, e da reforma processual de 1994, o sistema jurídico
começou a discutir a idoneidade desse binômio. Passou-se a questionar amplamente se ele seria suficien-
te para garantir a efetiva proteção de direitos. Chegou-se à conclusão de que a vítima de uma violação de
direitos não estava interessada apenas na sanção ao agente. Muito mais do que isso, a vítima tinha tam-
bém interesse na efetiva proteção do seu direito.
Ex.: pessoa teve seu nome incluído indevidamente no SPC e no SERASA. Em uma hipótese como
essas, a vítima não quer apenas o pagamento de indenização. O que ela busca, antes de tudo, é a retirada
do seu nome desses cadastros.
Veja que em primeiro lugar é o CDC e, depois, o CPC que sofre a influência dessa ideia. Só mais
tarde (2002) é que o CC rompe com o binômio lesão/sanção, em razão de sua insuficiência. O codificador
entendeu que a vítima da violação do direito da personalidade não quer apenas perdas e danos. Note
que não se afastou a possibilidade de perdas e danos, apenas ampliou-se o sistema protetivo dos direitos
da personalidade.

1.12.2. Proteção jurídica dos direitos da personalidade


Com essa nova perspectiva, o CC estabeleceu um novo esquema protetivo para os direitos da per-
sonalidade em seu art. 12. No novo CC, a proteção jurídica dos direitos da personalidade se apresenta em
duas vertentes: preventiva e compensatória.

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar
perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. [na primeira parte, a tutela
preventiva; na segunda, a compensatória]

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista
neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto
grau.

i. Tutela preventiva:
Dizer que a proteção aos direitos da personalidade é preventiva é dizer que processualmente ela se
estabelece através da tutela específica, que decorre da letra do Art. 497, e parágrafo único do CPC.

Art. 497 “Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente
o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção
de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração
ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocor-
rência de dano ou da existência de culpa ou dolo”.

Nota-se que a dispensa da presença do dano e da culpa lato sensu, é novidade na previsão proces-
sual em relação ao art. 461 do CPC/1973, denotando a proteção prévia dos direitos da personalidade.
Nos termos do acima consignado, é imperioso notar que o Ordenamento adotou os princípios da:
71
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Prevenção: haja visto a previsão de medidas de tutela específica. Exemplo: fixação de multa di-
ária ou “astreintes” - são irrelevantes o dolo, a culpa e o dano.
b) Reparação integral dos danos: todos os danos suportados pela vítima serão indenizados.
Obs.: Categorias de danos (sumulados): materiais e morais (S. 375 STJ) e estéticos (S. 387 STJ).
Obs.: Lembre-se que uso indevido de imagem com fins econômicos ou comerciais gera danos mo-
rais presumidos ou “in re ipsa” a teor da Súmula 403 STJ. Nesse sentido, segundo Tartuce “o dano à ima-
gem restará configurado quando presente a utilização indevida desse bem jurídico, independentemente
da concomitante lesão a outro direito da personalidade, sendo dispensável a prova do prejuízo do lesado
ou do lucro do ofensor para a caracterização do dano, por se tratar de modalidade in re ipsa”, a teor do
Enunciado n. 587 VII Jornada de Direito Civil.
ii. Tutela compensatória:
Já a tutela compensatória se dá através de indenização por danos morais (art. 5º, V e X da CR):

Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização


por dano material, moral ou à imagem; (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Note que, no art. 12, o legislador fala da tutela preventiva e da tutela compensatória. Chama a aten-
ção a expressão final do art. 12, caput: “sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Quais seriam
estas outras sanções a que o dispositivo faz alusão? Trata-se das seguintes tutelas:
i) sanções penais (ex.: crimes contra a honra, crimes contra a pessoa);
ii) sanções administrativas (ex.: limitação administrativa de determinados exercícios); e
iii) os casos de autotutela permitidos em lei:
Ex.: arts. 1301 e 1303 do CC (Direitos Reais) estabelecem o limite de construção de janela, varanda
ou terraço:

Art. 1.301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro e meio
do terreno vizinho.

§ 1o As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não
poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros.

§ 2o As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação, não maiores
de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros
de altura de cada piso.

Art. 1.303. Na zona rural, não será permitido levantar edificações a menos de três metros do ter-
reno vizinho.

O fundamento desses dois artigos é a proteção da privacidade. Assim, se o vizinho está constru-
indo a uma distância inferior à permitida, caberá a autotutela para proteção da posse.
72
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.12.3. Proteção compensatória dos direitos da personalidade


Na proteção compensatória dos direitos da personalidade, a tutela ocorrerá por meio de indeniza-
ção por danos morais, correspondente à violação de direitos da personalidade. Como visto, os direitos da
personalidade estão baseados na dignidade da pessoa humana. Assim, em última análise, a indenização
por danos morais corresponde à violação da dignidade humana.
Sobre esse assunto, é possível perceber a existência de uma aproximação entre direitos da persona-
lidade e dano moral. Nesse sentido, o dano moral não é mais dor, vexame, humilhação, sofrimento, ver-
gonha ou qualquer sentimento negativo. O dano moral é a violação à dignidade da pessoa humana.
Se o rol de direitos da personalidade é exemplificativo, o rol de hipóteses de fixação do dano moral
também é. Mas atenção: meros dissabores não geram dano moral! Para que haja dano moral, é preciso
haver violação da dignidade humana.
Ex.: fila de banco muito demorada ou um péssimo atendimento em uma loja não geram dano mo-
ral. Houve um caso curioso no TJDF, em que a fila do banco demorou tanto que o rapaz que estava atrás
da moça ejaculou nela. Nesse caso, haverá dano moral, mas não pela demora da fila. O dano moral se
justifica nessa hipótese pela violação da dignidade (não houve mero dissabor).
Com essa aproximação do dano moral aos direitos da personalidade, a prova do dano moral deixou
de ser a prova da dor, da vergonha, e passou a ser in re ipsa (“ínsita na própria coisa”)43.
Dizer que o dano moral é a violação da dignidade da pessoa humana deixa clara a autonomia do
dano moral. Prova dessa autonomia vem da súmula 37 do STJ, que reconhece a cumulatividade entre
dano moral e material (um mesmo ato pode lesionar vários bens jurídicos).

Súmula 37 - São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mes-
mo fato.

1.12.3.1. Possibilidade de cumulação de danos morais em relação a bens jurídicos di-


versos

A controvérsia mais recente não diz respeito mais à possibilidade de cumulação do dano moral e do
dano material, mas à possibilidade de cumulação entre dano moral e dano moral. Historicamente, se
dizia não ser possível essa cumulação, pois ela geraria bis in idem. Mas essa não é a resposta correta.
A indenização por dano moral é aquela decorrente da violação de direitos da personalidade (honra,
imagem, integridade física, etc.) Quando alguém viola a honra de outrem, chama-se isso de dano moral.

43 Um exemplo de dano moral in re ipsa é o decorrente da inscrição indevida em cadastro de inadimplentes,


pois esta presumidamente afeta a dignidade da pessoa humana, tanto em sua honra subjetiva, como perante a soci-
edade.

73
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Quando há violação à imagem, chama-se isso de dano à imagem. E, quando há violação à integridade
física, fala-se em dano estético.
O problema é que, no Brasil, a expressão dano moral é usada como gênero (abrangendo a violação
a qualquer direito da personalidade) e espécie (abrangendo a violação à honra). Talvez fosse melhor
chamar o gênero de dano extrapatrimonial, como faz o direito português. Assim, o dano moral seria
apenas uma das espécies de dano extrapatrimonial.
De qualquer forma, prevalece que é possível a cumulação do dano moral, desde que a violação se dê
a bens jurídicos distintos. Ex.: dano moral e dano à imagem, dano moral e dano estético. Sobre o assun-
to, a Súmula 387 do STJ se refere expressamente à possibilidade de cumulação entre o dano moral e o
dano estético:

Súmula 387 - É lícita a cumulação de indenizações de dano estético e dano moral.

O STJ, no REsp 1.365.540/DF, decidiu que o valor correspondente à indenização do seguro por da-
nos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT) pode ser deduzido do valor da
indenização por danos exclusivamente morais fixada judicialmente, quando os danos psicológicos deri-
vem de morte ou invalidez permanente causados pelo acidente.
Os valores a serem pagos pelo DPVAT estão previstos em uma tabela, e serão pagos a depender a
extensão do dano. Ocorre que a vítima do acidente pode entender que a indenização recebida não é sufi-
ciente e ajuizar uma ação contra o causador do dano. O causador do dano poderá, então, ser acionado
pela vítima para pagar indenização. Nesse ponto surgiu a seguinte questão: o valor pago pelo segurador
obrigatório deve ser deduzido do valor a ser pago pelo causador do dano?
A Súmula 246 do STJ estabelece expressamente que o valor que foi pago pelo segurador obrigató-
rio deve ser deduzido da indenização fixada judicialmente.
Contudo, e se a indenização cobrada judicialmente tratar-se de danos morais causados pelo aciden-
te, haverá dedução? No REsp 1.365.540/DF, o STJ estabeleceu que sim, mesmo que a indenização seja
por danos morais. Isso porque o seguro facultativo contratado também abrange os danos morais. Dessa
forma, o seguro obrigatório também deve abranger os danos morais, além dos danos materiais.

1.12.3.2. Impossibilidade de fixação do dano moral ex officio


Outro aspecto que merece atenção se refere à impossibilidade de concessão do dano moral ex offi-
cio.
Como visto, a tutela preventiva pode ser concedida de ofício, através da tutela específica. Já a tu-
tela compensatória não pode ser concedida de ofício, sendo necessária a provocação da parte. O
motivo para isso é simples: a indenização por dano moral tem caráter econômico, patrimonial.

1.12.3.3. Legitimidade do MP para requerer a indenização nas ações civis ex delicto

74
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Além de a tutela compensatória não poder ser concedida de ofício, o MP não pode requerer a inde-
nização por dano moral para o interessado. Isso porque o direito é disponível, de modo que o MP não
terá legitimidade para substituí-lo.
Todavia, há apenas um caso em que o MP poderá requerer a indenização por dano moral: na hipó-
tese de ação civil ex delicto.
A ação civil ex delicto é aquela que decorre de uma condenação criminal, momento em que a vítima
irá liquidar e executar o dano. O art. 68 do CPP legitima o MP para promover a ação civil ex delicto
quando se tratar de vítima pobre. E, logicamente, na ação civil ex delicto, o MP poderá pleitear dano ma-
terial e moral.

Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1º e 2º), a execu-
ção da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requeri-
mento, pelo Ministério Público.

Muito se discutiu sobre a constitucionalidade desse dispositivo, porque ele menciona a legitimida-
de do MP para atuar em favor de vítima pobre. E o art. 134 da CR estabelece que a defesa das pessoas
necessitadas será feita pela Defensoria Pública. Em face da superveniência desse dispositivo constitucio-
nal, o MP continuaria tendo legitimidade para promover a ação civil ex delicto?

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incum-
bindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art.
5º, LXXIV. (...)

Depois de muita discussão sobre o tema, o STF resolveu a questão no julgamento do RE


135.328/SP. Nesse julgado, o Supremo construiu a tese da inconstitucionalidade progressiva ou norma
em vias de inconstitucionalidade, de acordo com a qual nas comarcas em que ainda não há Defensoria
Pública em funcionamento, o MP continua legitimado, nos termos do art. 68 do CPP. Mas onde a Defen-
soria já está atuando, cessa a legitimidade do MP para promoção da ação civil ex delicto em favor da ví-
tima pobre. Logicamente, o dispositivo vai se tornando inconstitucional porque, a cada dia, a Defensoria
vai se instalando em mais lugares. Quando a Defensoria tiver estrutura suficiente para atender a todas as
localidades, a norma do art. 68 será considerada inconstitucional.
Observação: na verdade, trata-se de norma em vias de se considerar não recepcionada, já que o art.
68 é anterior à CR.

1.12.3.4. Polêmicas relativas à tutela compensatória dos direitos da personalidade

1.12.3.4.1. Indenização por dano moral tem natureza punitiva?

Genericamente, dano moral não tem natureza punitiva. Isso porque, como visto, a natureza jurídi-
ca da indenização do dano moral é de tutela compensatória. Aliás, sequer é possível dizer que o dano
moral teria natureza reparatória, porque aquele bem jurídico não pode ser reconstruído/recomposto.

75
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Com isso, percebe-se que o direito brasileiro não admite o instituto de direito americano denomi-
nado de punitive damage (“danos punitivos”). No filme “O Júri” esse punitive damage fica bem demons-
trado. Lá, é fixado um determinado valor a título de compensação e outro valor maior a título de punição.
O STJ é confuso em relação a isso. Ele diz que o dano moral não tem natureza punitiva (e sim com-
pensatória), mas, ao fixar o valor da indenização, o juiz deverá levar em conta a teoria do desestímulo, de
acordo com a qual deve ser fixado um valor para que o sujeito não volte a incorrer naquele ilícito nova-
mente. Ou seja, o valor fixado terá um cunho pedagógico. Assim, o dano moral não tem natureza puniti-
va, mas deve ser calculado também visando à punição do agente.

1.12.3.4.2. Existe dano moral contratual?

A resposta a essa interessante indagação genericamente seria não. Isso porque, de ordinário, o ina-
dimplemento contratual gera direito a danos materiais, geralmente calculados por cláusula contratual
pré-fixada.
Mas não se pode esquecer que o inadimplemento contratual pode gerar violação da dignidade. E,
nesse caso, o STJ fixou seu entendimento a partir do REsp 202.564 no sentido da possibilidade de dano
moral contratual no caso em que a violação contratual atinja a dignidade do contratante.
Segundo a própria jurisprudência do STJ, o inadimplemento contratual gera direito à fixação de
danos morais contratuais nos seguintes exemplos: i) a companhia de energia ou de água desliga indevi-
damente o fornecimento; ii) o plano de saúde se nega indevidamente a dar cobertura.
Atenção: o dano moral contratual tem natureza extracontratual! Isso porque ele não decorreu da
violação do contrato, mas da violação da dignidade. Se o dano moral contratual tivesse natureza contra-
tual, seu valor estaria limitado ao valor do contrato. Mas é possível que o juiz fixe indenização por dano
moral contratual maior que o valor do contrato.

1.12.3.4.3. Dano moral difuso ou coletivo

O dano moral difuso ou coletivo é admitido pelo art. 6º, VI, do CDC e pelo art. 1º da Lei 7.347/1985
(Lei de Ação Civil Pública):

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e di-


fusos;

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de respon-
sabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (...)

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

O dano moral difuso é aquele que viola os interesses de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Já o
dano moral coletivo viola a dignidade de uma categoria específica.

76
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: dano moral ambiental é admitido. Aliás, o MPT vem promovendo diversas ações para tutelar o
dano moral no ambiente de trabalho. Veja que o dano moral ao meio ambiente é um dano moral difuso.
Por outro lado, o dano moral causado a uma categoria profissional será um dano coletivo.
Houve caso envolvendo o Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro, que ajuizou uma
ação contra um motel que espalhou diversas placas de outdoor pela cidade com a seguinte frase: “liberte
a enfermeira que existe em você”. Essa propaganda, de acordo com o Conselho de Enfermagem, violava a
dignidade da categoria. Esse seria um dano moral coletivo.
Tanto o dano moral difuso quanto o coletivo somente podem ser requeridos através de ação civil
pública, a qual poderá ser promovida por um dos colegitimados: MP, Defensoria, Poder Público e associ-
ações (arrolados no art. 5º da Lei 7.347/1985, com redação dada pela Lei 11.448/2007):

Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I - o Ministério Público;

II - a Defensoria Pública;

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V - a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à


ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico. (...)

Vale lembrar que a indenização por dano moral ou coletivo não é revertida em favor de uma pes-
soa, mas em prol do Fundo previsto no art. 13 da Lei 7.347/1985:

Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fun-
do gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessaria-
mente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à
reconstituição dos bens lesados. (...)

Atenção: foi dito que a ação civil pública é um mecanismo necessário para requerer tutela difusa ou
coletiva. Mas não se deve esquecer de que a ação civil pública também pode ser manejada para a defesa
de interesses individuais homogêneos (interesses idênticos de duas ou mais pessoas). Sendo assim, se
duas ou mais pessoas sofrerem o mesmo dano, elas podem escolher por promover ação individual ou
ação civil pública para a defesa de interesse individual homogêneo. Ex.: associação pode promover ação
para defesa de interesses individuais homogêneos daquela categoria. Nesse caso, a liquidação e execução
não serão coletivas, mas individuais.

77
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: houve o caso de um navio que realizava um cruzeiro pela costa do Uruguai em que a bússola se
perdeu. Em razão disso, inúmeros turistas ficaram em alto-mar vários dias, pois a embarcação não che-
gava ao destino. Esses turistas sofreram danos morais. A associação de turistas perdidos no mar poderia
ingressar com ação civil pública para cobrar o dano individual homogêneo. Ou cada um dos turistas po-
deria ingressar com sua ação. Caso essa ação civil pública fosse julgada procedente, a liquidação e a exe-
cução da indenização seriam feitas individualmente.
Portanto, todo dano moral difuso ou coletivo só pode ser cobrado por meio de ação civil pública,
com liquidação e execução coletivas. Já o dano moral individual pode ser cobrado em ação individual ou,
atingindo duas ou mais pessoas, por ação civil pública para a defesa de direito individual homogêneo,
com liquidação e execução individuais (art. 94 e seguintes do CDC).

1.12.4. Proteção preventiva dos direitos da personalidade

1.12.4.1. a tutela específica dos direitos da personalidade

Primeiramente, é preciso pontuar que o reconhecimento de uma tutela preventiva dos direitos da
personalidade gerou uma despatrimonialização da proteção dos direitos da personalidade. Isso porque,
antes, só se reconhecia a tutela compensatória (assim, em face da violação ao direito, haveria sanção em
perdas e danos). Hoje, com o novo esquema protetivo dos direitos da personalidade, o que se busca, an-
tes de tudo, é a prevenção do dano ao direito da personalidade.
Portanto, fala-se em despatrimonialização da proteção porque a proteção aos direitos da personali-
dade deixa de ser feita apenas com indenização em dinheiro, passando também a ser feita através da tu-
tela específica.
Tutela específica é o provimento judicial adequado para a solução de um conflito de interesses es-
pecífico. Em outras palavras, é a solução concreta de um caso. Isso porque a vítima da violação ao direito
da personalidade pretende que o juiz dê a ela a solução para seu problema. Antigamente, todas as solu-
ções judiciais eram perdas e danos. Hoje, há uma solução específica para um problema específico.
Bem por isso, dentro da tutela específica hospedam-se diferentes providências: a tutela inibitória, a
tutela sub-rogatória, a tutela de remoção do ilícito etc. Note que o rol das hipóteses de tutela específica é
exemplificativo.
Ex.: banco que cadastra indevidamente o nome do consumidor no SPC e no SERASA. Sem prejuízo
da indenização, se almeja a tutela específica. Assim, o juiz determina a retirada do nome do consumidor
do cadastro, sob pena de multa diária (denominada astreintes). Esta é uma tutela inibitória. No entanto,
se o banco não providenciar a retirada do nome do cadastro, o próprio juiz poderá oficiar o SPC para que
este retire o nome (é o que se faz, normalmente). Nesse caso, o juiz está concedendo tutela sub-rogatória
(substituindo a vontade do banco).
Ex.: Daniela Cicarelli ingressou com ação contra o site You Tube em razão de vídeo veiculado, o
qual continha cenas da atriz fazendo sexo na praia. Sem prejuízo da tutela compensatória, o que a mode-

78
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

lo buscava de imediato era a tutela inibitória (para que a imagem veiculada indevidamente fosse retirada
da rede). O juiz estabeleceu que o site seria retirado do ar caso não fosse retirado o vídeo. Nesse caso, o
juiz removeu o ilícito.
Observe, portanto, que dentro da tutela específica existem diferentes mecanismos de tutela, o que
denota a ideia de um rol meramente exemplificativo. Assim, o juiz pode conceder diferentes providências
a título de tutela preventiva, até que ele ache a tutela específica. Nesse sentido é o enunciado 140 da Jor-
nada de Direito Civil:

Enunciado 140 - Art. 12: A primeira parte do art. 12 do Código Civil refere-se às técnicas de tute-
la específica, aplicáveis de ofício, enunciadas no art. 461 do Código de Processo Civil, devendo
ser interpretada como resultado extensivo.

Ainda nessa linha de raciocínio, é preciso chamar a atenção para outro detalhe. Como visto, o rol de
hipóteses de tutela preventiva é exemplificativo. E este rol admite que todas as medidas sejam concedi-
das, ampliadas, diminuídas, substituídas ou revogadas de ofício. Assim, o juiz não precisa de requeri-
mento do interessado para conceder a tutela preventiva.
Ex.: Carolina Dieckmann se envolveu em episódio contra o Pânico na TV, programa que perseguiu
a atriz para que ela calçasse a “sandália da humildade”. A atriz ajuizou a ação, em que pediu tutela inibi-
tória (multa diária). Mas essa medida não adiantou, de modo que o juiz determinou um mandado de dis-
tanciamento de 200 metros. O programa continuou perseguindo a atriz (levava para as festas de celebri-
dades uma fita métrica para medir os 200 metros, entre outras coisas). O programa chegou até a levar
um caminhão de bombeiros com uma escada para alcançar o 7º andar do prédio em que morava a atriz.
A atriz comunicou o fato ao juiz e o programa se defendeu, dizendo que o limite de distanciamento era de
200 metros terrestres (não aéreos). Percebendo que nenhuma dessas medidas adiantara, o juiz modifi-
cou de ofício a tutela específica. Assim, determinou que, se o programa tocasse no nome da atriz uma vez
sequer, ele tiraria o programa do ar. Só com isso foi possível ao magistrado alcançar a tutela específica
para a proteção do direito.

1.12.4.2. Aspectos polêmicos sobre a tutela específica dos direitos da personalidade


Duas questões controvertidas merecem atenção a respeito da tutela específica: concessão de man-
dado de distanciamento e uso da prisão civil a título de tutela específica.

1.12.4.2.1. Concessão de mandado de distanciamento

O mandado de distanciamento também é encontrado com o nome de restrição à liberdade de ir e


vir. É possível ao juiz conceder mandado de restrição de direitos de locomoção a título de tutela específi-
ca.
Aliás, a concessão de mandado de distanciamento será muito oportuna na ação de separação de
corpos. Depois de deferida a separação de corpos, o homem fica perseguindo a esposa em diversos luga-

79
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

res que ela frequenta. Para evitar que isso aconteça, o juiz determinará a separação de corpos e concederá
mandado de distanciamento. Ex.: foi expedido mandado de distanciamento em desfavor de Dado Dola-
bella, o qual ficou impedido de chegar a determinada distância de Luana Piovani.
O STJ entende que, no caso do mandado de distanciamento, a distância deve ser fixada pelo juiz
considerando as peculiaridades de cada lugar. É certo que um limite de distanciamento de 200 metros
em uma cidade pequena é algo muito mais exagerado que em uma cidade grande como São Paulo.
No caso do Dado Dolabella, houve uma situação em que ele estava em uma festa e, depois, a atriz
chegou. Diante do mandado de distanciamento, a polícia retirou o ator da festa. A medida foi acertada,
pois quem sofreu a restrição foi ele, não ela. Se Luana Piovani começar a abusar do direito e aparecer em
todo o lugar em que ele está, o juiz poderá modificar a tutela concedida de ofício.

1.12.4.2.2. so de prisão civil a título de tutela específica

Como visto, o rol de possibilidades da tutela específica é exemplificativo. Diante disso, questiona-
se: é possível a decretação da prisão civil a título de tutela específica? No Brasil, os autores clássicos (co-
mo Humberto Theodoro Junior) dizem que não se admite o uso de prisão civil a título de tutela específica
por conta da vedação constitucional. Lembrando que a Constituição apenas admite a prisão civil por dí-
vidas no caso do devedor de alimentos (depois da Súmula Vinculante 25, nem a prisão civil do depositá-
rio infiel é admitida).
Com base nesse entendimento constitucional, que somente admite a prisão civil por dívida do de-
vedor de alimentos, é que os autores clássicos defendem a inadmissibilidade de prisão civil a título de
tutela específica.
Mas autores mais modernos (como Luis Guilherme Marinoni e Fredie Didier) possuem entendi-
mento diverso, admitindo o uso da prisão civil como forma de tutela específica. O argumento usado por
esses autores é de que, nesse caso, o juiz não está determinando a prisão por dívida, mas por descum-
primento espontâneo de decisão judicial. Logo, aqui não se aplicaria a vedação constitucional. Essa se-
gunda tese traz consigo um inconveniente, evidenciando algo de difícil resposta. Ora, qual seria o prazo
dessa prisão civil? Não há previsão de prazo, do que decorre a dificuldade de sustentá-la.
Chaves defende que até seria possível a prisão civil, nesse caso. Mas isso será feito quando nenhu-
ma outra medida se mostrar suficiente (caráter residual) e em ponderação de interesses (o sacrifício da
liberdade ocorrerá diante da proteção a bem jurídico mais relevante).
Diante desses requisitos, só haverá um caso em que seria possível vislumbrar essa possibilidade de
prisão civil: quando estiver em jogo a proteção da saúde. Ex.: juiz determina que médico interne pacien-
te. É aplicada multa e uma série de outras medidas, mas o médico continua se recusando a cumprir a
ordem judicial. Diante desse quadro, até se poderia admitir a prisão civil como forma de tutela específica.
De qualquer forma, é uma situação de enorme excepcionalidade e há dificuldade quanto ao prazo de fixa-
ção dessa prisão.

80
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.13. Direitos da personalidade das pessoas públicas

Pessoas públicas são as celebridades, as pessoas notórias: artistas, jogadores, políticos etc. Pessoa
pública não perde, não sofre subtração dos direitos da personalidade, mas uma mitigação, uma relativi-
zação no exercício daqueles direitos, pois seu ofício ou profissão exige uma exposição de sua personali-
dade. Ou seja, as pessoas públicas são titulares dos direitos da personalidade, mas sofrem relativização.
O melhor exemplo é o direito de imagem (a imagem dessas pessoas é pública). Todavia, os papa-
razzis podem ser responsabilizados civilmente se invadirem a privacidade de alguém.
O arrefecimento dos direitos da personalidade da pessoa pública pressupõe a inexistência do desvio
de finalidade, de modo que, em havendo o desvio, justifica-se a concessão de indenização. Ex.: um artista
foi a uma festa de medicamentos genéricos com a camiseta desse medicamento. Uma fotografia tirada na
festa foi publicada e utilizada pela empresa para fazer uma propaganda, explorando comercialmente a
imagem dele. Apesar de a imagem do artista ser pública, tal utilização justifica a concessão de indeniza-
ção.
Juntamente com a flexibilização dos direitos da personalidade da pessoa pública, também são mi-
tigados os direitos da personalidade daqueles que acompanham a pessoa pública. Ex.: Chico Buarque de
Holanda se envolveu com uma mulher casada e um jornal captou a imagem e a divulgou. A mulher ajui-
zou ação contra o jornal. Para Chaves, a demanda não procede, na medida em que a personalidade dele é
pública, o que flexibiliza o direito daquele que a acompanhe.

2. Dos direitos da personalidade em espécie


A classificação dos direitos da personalidade não é taxativa44, pois o direito brasileiro traz con-
sigo uma cláusula geral de proteção da personalidade: a dignidade da pessoa humana. Todavia, o orde-
namento preocupou-se em tipificar alguns para discipliná-los com mais cuidado e profundidade.
A tipificação dos direitos da personalidade foi realizada pelo Código Civil segundo um critério trico-
tômico, que divide os direitos da personalidade em três perspectivas: i) integridade física; ii) integridade
psíquica / moral; e iii) integridade intelectual.
Segundo Flávio Tartuce, a exposição acima foi inspirada na doutrina de Rubens Limongi França, que
divide os direitos da personalidade em três grandes grupos.
O primeiro deles está relacionado ao direito à integridade física, englobando o direito à vida e ao
corpo, vivo ou morto. O segundo grupo é afeito ao direito à integridade intelectual, abrangendo a liber-
dade de pensamento e os direitos do autor. Por fim, há o direito à integridade moral, relativo à liberdade
política e civil, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem e à identidade pessoal, familiar e social.

44 Enunciado n. 274 (IV Jornada de Direito Civil)

81
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Os três critérios correspondem fundamentalmente à própria classificação da pessoa humana (con-


siderada corpo, alma e intelecto).
A integridade física corresponde à tutela jurídica do corpo humano. A integridade psíquica é a tute-
la dos valores jurídicos imateriais (ex.: a honra). A integridade intelectual é a tutela da produção que pro-
vém da inteligência.
O direito à vida está classificado nos três campos, pois os direitos da personalidade asseguram o di-
reito à vida digna, que está presente tanto no âmbito físico como no psíquico e no intelectual. Vida digna
não é apenas a integridade física, abrangendo também outros aspectos.
Nesse campo de raciocínio, percebe-se que a perspectiva de tratamento dos direitos à personalida-
de em espécie no Código Civil foi a seguinte:
i) art. 13: direito ao corpo vivo;
ii) art. 14: direito ao corpo morto;
iii) art. 15: autonomia do paciente (ou livre consentimento informado);
iv) arts. 16 a 19: direito ao nome civil;
v) art. 20: direito à imagem;
vi) art. 21: direito à privacidade.
Esta estrutura mantém adequação (compatibilidade) com o critério de classificação tricotômico.

2.1. Direito ao corpo vivo (art. 13 do CC)

2.1.1. Noções gerais


Direito ao corpo vivo é a proteção do corpo humano como um todo e das partes separadas do corpo
humano:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando im-
portar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma es-
tabelecida em lei especial.

Segundo o previsto no artigo supra, são vedadas as disposições do corpo que geram perda perma-
nente da integridade física ou que contrariam os bons costumes, salvo por exigência médica.
A violação do corpo humano (integridade física) caracteriza o dano estético. Para a caracterização
do dano estético não se exigem sequelas permanentes (REsp 575.576). Todavia, o fato de a sequela ser ou
não permanente influenciará no valor da indenização (sendo permanente, seguramente a indenização
será muito maior).
O dano estético pode ser cumulado com o dano moral: há uma autonomia no tratamento da inte-
gridade física, de modo que a violação da integridade física é autônoma em relação aos demais direitos
personalíssimos. Se alguém sofre dano estético, pode cumular o pedido com dano moral (Súmula 387). A

82
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

integridade física é um bem autônomo, cuja violação pode ser cumulada como outros valores personalís-
simos.

Súmula 387 - É lícita a cumulação de indenizações de dano estético e dano moral.

O art. 13 se vale de técnica linguística duvidosa: fala primeiro da exceção que da regra. Segundo o
dispositivo, a proibição de ato de disposição corporal é condicionada: só existe quando gerar diminuição
permanente ou contrariar os bons costumes. Ou seja, se não viola os bons costumes ou implica diminui-
ção permanente, o ato é válido.
A expressão “bons costumes”, aqui, está no sentido de ética social e boa-fé, não no de moral. É a
eticidade, que traduz a ideia de comportamentos socialmente esperados.
Exemplos:
i) piercing e tatuagem são permitidos pelo art. 13, pois não geram diminuição permanente nem
contrariam os bons costumes. Algumas leis municipais (ex.: Maceió, Campinas) limitam a realização de
piercing e tatuagem a pessoas maiores de 18 anos. Chaves não vê óbice à proibição, que não viola os di-
reitos da personalidade porque diz respeito à saúde pública.
ii) wannabe: são pessoas que têm um sentimento de repulsa por uma parte de seu corpo, que que-
rem amputar determinado órgão ou até ser paraplégicos. O art. 13 proíbe a situação jurídica dos wanna-
be, pois ela implica diminuição permanente de parte do corpo.
iii) amputação de membro por conta de grau elevado de lesão: é permitida a amputação terapêutica
pelo art. 13 em virtude da parte inicial do dispositivo (“salvo por exigência médica”).

2.1.2. Questões polêmicas relacionadas à proteção da integridade física

2.1.2.1. Cirurgia de mudança de sexo

Apesar de diminuir parte do corpo, a possibilidade de realização de cirurgia de mudança de sexo


tem ser analisada à luz da Resolução nº 1955/10 do Conselho Federal de Medicina, que reconhece a na-
tureza patológica do transsexualismo. Ou seja, segundo a norma, o transsexualismo, que não se confunde
com homossexualismo e bissexualismo (os quais dizem respeito à orientação sexual) é doença.
Trata-se de uma patologia físico-psíquica, em virtude da existência de uma dicotomia entre o sexo
físico e o psíquico (a pessoa tem corpo de um sexo e “cabeça” de outro). A literatura médica chega a dizer
que o órgão genital é atrofiado pela força psicológica: na mente do transexual, aquele não é o seu corpo.
Sob o ponto de vista da orientação sexual, o transexual é heterossexual, e não homossexual, pois
para ele há relação com o sexo oposto.
Se a medicina reconhece o caráter patológico, recomenda ao transexual tratamento psicológico
(mais fácil que o físico). Se o psicólogo e o psiquiatra entenderem que o quadro é irreversível, parte-se
então para o tratamento físico: a cirurgia de mudança de sexo. Também chamada de transgenitalização,
ela pode ocorrer em ambos os sexos, desde que presente o requisito do tratamento psicológico.

83
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Realizada a cirurgia, o transexual tem o direito de modificar seu registro, pois houve adequação
morfológica entre o fenótipo e o biótipo.
A modificação pode ser realizada tanto no nome quanto no sexo (STJ, SE 1058/Itália). Nesse julga-
do, o STJ firmou o entendimento no sentido de que o transexual operado tem o direito de mudar tanto o
nome quanto o estado sexual no seu registro civil, independentemente da indicação do motivo. Esse en-
tendimento é novo, pois anteriormente a jurisprudência não admitia e, depois, passou a admitir com a
ressalva no registro: “alterado por cirurgia”.
Maria Berenice Dias entende que o transexual tem o direito de realizar a mudança mesmo sem a ci-
rurgia, pois ele pode eventualmente não querer a cirurgia. Chaves concorda com a posição do STJ. Se-
gundo o autor, haveria violação à dignidade da pessoa humana caso não se permitisse a alteração, pois
haveria uma imagem e um comportamento em dissonância do nome, o que acabaria por expor muito a
pessoa.
Nesse sentido, em 2017 o STJ concluiu que cabe a alteração do nome e do sexo no registro civil
mesmo sem cirurgia prévia – argumento: cláusula geral de tutela da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
Segundo o Tribunal, haveria um “direito ao gênero” – REsp n. 1.626.739/RS (Rel. Min. Salomão).
Depois da cirurgia, alterado o sexo, pode haver casamento com outra pessoa do sexo oposto. Caso o
transexual não avise o cônjuge dessa condição, é possível a anulação do casamento por erro (art. 1557, I).
O COI trata da matéria, permitindo inclusive a participação nas Olimpíadas.

Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu co-
nhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; (...)

O transexual precisa promover a ação para a alteração no registro (e não para a cirurgia), que será
ajuizada na Vara da Família (e não da Vara de Registros Públicos), pois se trata de ação de estado (rede-
signação de estado sexual). Não há erro no registro que enseje ação na Vara de Registros Públicos.

2.1.2.2. Barriga de aluguel


Gestação não é diminuição permanente, de modo que o art. 13 permite a realização do que se con-
vencionou chamar “barriga de aluguel”. O procedimento deve ocorrer, todavia, dentro de determinados
limites:
i) maioridade e capacidade;
ii) as pessoas devem estar ligadas por vínculo familiar (vínculo de parentesco, em sentido amplo);
iii) impossibilidade gestacional da mãe biológica (provar que a interessada não pode ter filhos, e
não se trata de um capricho);
iv) gratuidade do procedimento: por este requisito, percebe-se que o nome correto deveria ser “bar-
riga de comodato”. O nome técnico, na verdade, é “gestação em útero alheio” (Resolução 2013/2013 do
CFM).

84
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Presentes os requisitos, o médico declarará a maternidade na mãe biológica, e não na mãe hospe-
deira. Todavia, há uma situação complicada: o que ocorre se, por algum motivo, após a criança nascer,
nenhuma das duas quiser o filho (conflito negativo)? A questão não tem resposta. Para Chaves, como
ninguém pode ser obrigado a cuidar do filho, é caso de encaminhamento para a adoção. O próprio ECA
traz o direito ao parto anônimo (arts. 8º e 13, com as redações trazidas pela Lei nº 12.010/2009):

Art. 8º (...) § 4o Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à


mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências
do estado puerperal. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência

§ 5o A assistência referida no § 4o deste artigo deverá ser também prestada a gestantes ou mães
que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência

Art. 13. (...) Parágrafo único. As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus
filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

2.1.2.3. “Diminuição permanente da integridade física”


Ao utilizar a expressão “diminuição permanente da integridade física”, o art. 13 não está protegen-
do somente o corpo todo, mas também as partes separadas do corpo humano.
Glória Trevis engravidou enquanto estava presa para a extradição. Alegou que o pai seria um Poli-
cial Federal. Quando o filho nasceu, os policiais resolveram provar que não eram eles os pais. Colheram a
placenta e realizaram o exame de DNA. Houve violação à integridade dela, pois o direito à integridade
abrange também as partes separadas do corpo humano (ver, acerca do caso, a STF Reclamação
2040/DF).

2.1.2.4. Proteção do sêmen congelado


Apesar de se tratar de parte do corpo humano, o sêmen congelado é destinado à fertilização assisti-
da. Se ele já foi objeto de fertilização, vira embrião, de modo que passaria a pertencer também à mulher.
A questão é bastante controvertida. Nos direitos norte-americano e inglês, decidiu-se que o embrião per-
tence à mãe.
A regra do art. 13 não se aplica para fins de transplantes, que se submetem a sistema próprio (Lei
9.434/1997). Os transplantes submetem-se aos seguintes requisitos:
i) órgãos dúplices ou regeneráveis;
ii) pessoas da mesma família (se não forem da mesma família, deve haver autorização do Conselho
de Medicina);
iii) gratuidade;

85
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iv) intervenção do MP.


Curiosidade: o MP intervém administrativamente, e não judicialmente. Basta que se comunique o
transplante ao Promotor da Comarca do doador. Ele recebe a comunicação e instaura procedimento para
apurar a presença dos requisitos. A lei não exige a autorização, mas a comunicação do Promotor. Se per-
ceber ilegalidade, ele deve promover medida judicial para buscar evitá-la. Se demorar, o médico pode
realizar o transplante.
As regras relativas ao transplante não se aplicam para a doação de leite materno, óvulo, sêmen,
medula e sangue. Mas continua exigível a gratuidade.

2.2. Tutela jurídica do corpo morto (art. 14 do CC)

O art. 14 autoriza a disposição gratuita do corpo para depois da morte:

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo,
no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

Assim, as disposições somente são possíveis para fins científicos ou de transplantes, sendo vedada
a venda de órgãos
Evidentemente, a tutela jurídica do art. 14 abrange o corpo como um todo e as partes separadas do
corpo (ex.: corpo para pesquisas científicas ou parte do corpo para transplante).
O beneficiário do transplante post mortem não pode ser escolhido pelo falecido, pois a lei estabele-
ce uma fila. O beneficiário será sempre o próximo da fila. É nula toda e qualquer indicação de beneficiá-
rio para transplantes post mortem.
O ato pelo qual se dispõe do corpo para depois da morte é revogável a qualquer tempo.
Problemas:
i) de acordo com a redação do art. 14, o ato de disposição é sempre “para depois da morte”. Se é as-
sim, é nula toda e qualquer disposição para antes da morte. O direito brasileiro não admite o testamento
vital (“living will”). Trata-se da manifestação de vontade segundo a qual a pessoa declara que, em deter-
minadas circunstâncias, prefere a morte (direito à morte digna). Ninguém pode dispor da vida para antes
da morte.
Segundo Chaves, é preciso com urgência estudar o direito à morte digna, pois se trata de uma con-
sequência natural da vida digna.
ii) o art. 14 do CC colide com o art. 4º da Lei de Transplantes (Lei 9.434/1997):

Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou
outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade,
obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em docu-
mento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Redação dada pela Lei

86
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

nº 10.211, de 23.3.2001) (...)

Veja que o art. 14 do CC prevê que o ato de disposição para depois da morte depende do titular, en-
quanto o art. 4º da Lei de Transplantes determina que deve haver autorização da família.
Essa colidência de disposições legais tem relação com o princípio do consenso afirmativo, infor-
mando que para que seja possível o transplante há necessidade de uma autorização.
Flávio Tartuce e Cristiano Chaves seguem a linha de entendimento do Enunciado 277 da Jornada,
no sentido da harmonização dos dois artigos: se houve declaração de vontade, valerá a vontade do titular.
Caso não tenha manifestado vontade, os familiares decidem:

Enunciado 277 - Art. 14: O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita
do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a
manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares,
portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do poten-
cial doador.

Chaves considera essa a melhor solução, pois respeita a autonomia da vontade.


Em sentido contrário, há entendimento de que a decisão de transplante depende da autorização da
família, por se tratar de norma especial.
Atualmente, segundo a letra do Art. 20 do Dec. n. 9.175/17, que regulamenta a Lei de transplantes,
da a entender que a autorização seria dos familiares.
Em se tratando de pessoa morta como indigente (sem identificação), não pode haver retirada de
órgãos para transplante. Nada impede, todavia, que o corpo seja encaminhado para pesquisas científicas.

2.3. Livre consentimento informado ou autonomia do paciente (art.


15 do CC)

Toda e qualquer intervenção médica ou cirúrgica depende do consentimento do paciente, exceto se


houver necessidade:

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico
ou a intervenção cirúrgica.

A leitura do art. 15 revela duas consequências (dois efeitos jurídicos):


i) a impossibilidade de internação forçada:
Ninguém pode ser internado forçadamente. No Brasil, só se admite internação por exigência médi-
ca ou por vontade do paciente. Se o doente ou drogadito não concordar e não houver exigência médica,
não é possível a internação.
ii) direito à indenização do paciente pela violação do seu direito de informação:
O dever de informação é desdobramento da boa-fé objetiva (STJ).

87
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A grande polêmica que emana do art. 15 é a seguinte: a Testemunha de Jeová tem direito de se re-
cusar à transfusão de sangue?45 Ou seja, com a redação do art. 15 e o direito de liberdade religiosa, proí-
be-se a transfusão?
Não há conflito entre o direito à vida e a liberdade religiosa, pois a CR defende o direito à vida dig-
na, que envolve tanto a integridade física quanto a liberdade religiosa. O verdadeiro conflito é entre a
integridade física e a liberdade de crença. A maioria da doutrina e da jurisprudência resolve o conflito a
favor da integridade física. Entende que deve ser realizada a transfusão forçada.
Chaves prefere a posição de Tepedino, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Celso Ribeiro Bastos, que
entendem que o Testemunha de Jeová tem o direito de recusar-se à transfusão, com base na liberdade de
crença. Entendem os autores que nesse caso a liberdade de crença tem um peso muito grande: a vida
dessas pessoas, depois da transfusão, seria indigna. Isso além do direito das minorias.
Esse entendimento, para Chaves, não deve ser aplicável em se tratando de incapaz (ex.: paciente
em coma). Seria aplicável somente à Testemunha de Jeová maior e capaz. Para o autor, o médico tam-
bém poderia recusar-se a fazer a cirurgia, com a ressalva da não transfusão. Portanto, o entendimento de
Chaves não vale para os filhos menores de Testemunhas de Jeová.
Nesse sentido, adotando o entendimento pela prevalência da vontade do paciente por convicções
religiosas, na V Jornada de Direito Civil foi aprovado o seguinte enunciado doutrinário (Enunciado n.
403):

“O direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5.º, VI da Constituição


Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de
sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que obser-
vados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante
ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga
respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante”.

2.4. Direito ao nome (arts. 16 a 19 do CC)


Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representa-
ções que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

O nome é o sinal representativo da pessoa, direito da personalidade e diz respeito à sua individuali-
zação. A escolha do nome é personalíssima. Os pais apenas indicam o nome. O direito brasileiro estabe-

45 Eles fazem uma interpretação bíblica dos Atos, Gênesis e Levíticos.

88
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

lece um prazo decadencial de um ano, contado da maioridade civil, para a mudança imotivada do nome,
desde que não prejudique o sobrenome da família.
É o único caso, no direito brasileiro, em que se admite a mudança imotivada do nome (arts. 56 a 58
da LRP). Mesmo a mudança imotivada é judicial. Esse prazo decadencial deixa claro o caráter persona-
líssimo do direito ao nome:

Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoal-
mente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de fa-
mília, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa. (Renumerado do art. 57, pela
Lei nº 6.216, de 1975).

O nome civil traz consigo três elementos componentes:


a) Prenome: primeiro nome (simples ou composto).
b) Sobrenome ou patronímico: nome de família (simples ou composto).
c) Partícula: “da”, “dos”, “de”, entre outros.
d) Agnome: expressão de perpetuação: “Júnior”, “Filho”, “Neto”, “Sobrinho”, entre outros.
O agnome é partícula diferenciadora para pessoas que são da mesma família e têm o mesmo nome.
O prenome pode ser simples ou duplo. O sobrenome pode ser na ordem que o titular quiser. Não há obri-
gatoriedade de ordem pelo princípio constitucional da igualdade.
No caso de gêmeos com o mesmo prenome, a LRP exige que o prenome seja duplo diferenciado
(ex.: José Luiz e José Paulo).
Importante lembrar que todos os elementos do nome estão protegidos.
Não são elementos componentes do nome: i) títulos; e ii) pseudônimo (heterônimo ou cognome):
nome utilizado para atividades profissionais (apenas). O art. 19 do CC é claro no sentido de que o pseu-
dônimo não é elemento componente do nome, mas merece a mesma proteção. Exemplos de pseu-
dônimos: Fernando Pessoa usava vários, Sílvio Santos, Zezé di Camargo (Mirosmar), José Sarney (José
Ribamar Ferreira de Araújo).
Os filhos de Sarney têm o sobrenome por razão inexplicável. O pseudônimo não se transfere aos fi-
lhos.
Lula, Xuxa e Pelé não são pseudônimos, mas hipocorísticos. Pseudônimo, como visto, é uma identi-
ficação profissional. Hipocorístico é alcunha, apelido notório. Ele identifica profissional e pessoalmen-
te. O art. 57, § 1º da LRP permite que o hipocorístico seja acrescentado ou até mesmo venha a substituir
o nome:

Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência
do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arqui-
vando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art.
110 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.100, de 2009).

89
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 1º Poderá, também, ser averbado, nos mesmos termos, o nome abreviado, usado como firma
comercial registrada ou em qualquer atividade profissional. (...)

O hipocorístico pode se tornar elemento componente do nome, enquanto o pseudônimo jamais. O


procedimento de acréscimo ou substituição de hipocorístico tramita na Vara de Registros Públicos.
Segundo Flávio Tartuce, apesar da falta de previsão, deve-se concluir que a proteção constante no
art. 19 do Código Civil atinge também o cognome ou alcunha, nome artístico utilizado por alguém, mesmo
não constando esse no registro da pessoa.46
No art. 17 do Código Civil, o desprezo público ou intuito difamatório é irrelevante. Por interpreta-
ção da já vista Súmula. 403 STJ, utilizado o nome com fins econômicos e sem autorização, haverá dano
moral presumido (“in re ipsa”).
De acordo com o art. 18 do CC, sem a autorização do seu titular não se pode utilizar o nome alheio
em publicidade.
Nesse sentido, o Enunciado n. 278 (IV Jornada de Direito Civil) prevê que a publicidade que venha
a divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar o seu
nome, mas sendo capaz de identificá-la, constitui lesão a direito da personalidade. P. ex. a utilização de
um sósia num comercial.

2.4.1. Alteração do nome


No Brasil vigora o princípio da inalterabilidade relativa do nome, segundo o qual somente é
possível a mudança do nome nos casos previstos em lei ou por decisão judicial baseada em motivo aco-
lhido pelo juiz (justificação aceita judicialmente).
Exemplos de casos previstos em lei:
i) adoção: no caso de adoção, pode haver a mudança tanto do sobrenome quanto do prenome. Se o
adotado tiver mais de 12 anos de idade, ele precisa anuir, o que é perfeitamente explicável. Segundo Cha-
ves, o prenome pode mudar mesmo no caso de adoção de maior de 18 anos;
ii) Lei 11.924/2009, que acrescentou o § 8º ao art. 57 da LRP, permitindo o acréscimo de sobreno-
me de padrasto ou de madrasta, por decisão judicial e com o consentimento das pessoas envolvidas. Veja
que não se exige a anuência de pai ou mãe, devendo haver a anuência do padrasto ou madrasta e do en-
teado ou enteada:

Art. 57 (...) § 8o O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2 o e 7o


deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o
nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância des-
tes, sem prejuízo de seus apelidos de família.

46 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: . Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.132.

90
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii) programa de proteção à testemunha (Lei 9.807/1999);


iv) casamento e união estável: a pessoa somente perde o sobrenome se desejar. É o titular do nome
(o que terá o nome alterado) que delibera se quer ou não permanecer com ele 47;
vi) erro de grafia;
vii) exposição do titular ao ridículo.
Casos em que a jurisprudência admite a mudança mesmo sem previsão legal:
i) transexual;
ii) inclusão de sobrenome de ascendente (pai, avô, bisavô), para inclusão de sobrenome remoto, in-
clusive para fins de cidadania (STJ – REsp n. 1.310.088).;
iii) viuvez;
iv) retirada de sobrenome no caso de abandono paterno face à perda do poder familiar, como deci-
dido no STJ – REsp n. 1.304.718/SP).
v) Inclusão de sobrenome de padrastro ou madrastra por enteado ou enteada, havendo autorização
judicial e justo motivo.
Obs.: O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 898.060, realizado em 21 de setembro de
2016, negou pedido de reconhecimento da preponderância da paternidade socioafetiva sobre a biológica,
fixando tese de repercussão geral. A decisão admitiu a multiparentalidade, com a manutenção
dos pais afetivos e biológicos. Proclamou a referida Corte que a existência de pai socioafetivo não
tira deveres do pai biológico, como o de pagar alimentos.
Todos esses casos de mudança de nome dependem de decisão judicial, da Vara de Registros Públi-
cos.
A firma não precisa ser equivalente ao nome.

2.5. Direito à imagem (Art.20)

Direito à imagem é o direito à identificação da pessoa.


A pessoa pode ser identificada em múltiplos aspectos, razão pela qual o direito à imagem é tridi-
mensional, envolvendo imagem-retrato, imagem-atributo e imagem-voz: imagem-retrato são as caracte-
rísticas fisionômicas (trata-se do pôster da pessoa, da foto); imagem-atributo é a identificação pela quali-
ficação, pelas qualidades da pessoa (é mais comum falar em imagem-atributo quanto às pessoas jurídi-
cas); imagem-voz é o timbre sonoro identificador.
O direito à imagem é um só, não obstante essa tridimensionalidade. Caso haja violação a mais de
uma dimensão, haverá uma só indenização.

47 Acerca do tema, ver a EC 66/2010.

91
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Doutrina e Jurisprudência são unânimes ao reconhecerem a autonomia do direito à imagem, inclu-


sive em virtude de previsão constitucional (art. 5º, V e X):

Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização


por dano material, moral ou à imagem; (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Todavia, o art. 20 do CC não acompanhou a autonomia constitucionalmente garantida, determi-


nando que somente existiria proteção jurídica da imagem quando houvesse exploração comercial ou vio-
lação à honra:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da


ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição
ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem pre-
juízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou
se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa
proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Segundo o dispositivo, em regra, a utilização da imagem alheia depende de autorização do seu titu-
lar. Exceções: i. Se a pessoa ou o fato interessar à administração da justiça – exemplo: solução de crimes
e ii. Ordem pública.
A interpretação desse dispositivo não pode levar à censura prévia. Por isso, a tutela da imagem de-
ve ser ponderada com a liberdade de imprensa e o direito à informação. Nesse sentido, o Enunciado n.
279 48(IV Jornada de Direito Civil) prevê alguns critérios:

a) Notoriedade do retratado e dos fatos.


b) Características da utilização da imagem.
c) Veracidade dos fatos.
d) Privilegiando-se medidas que não restrinjam a informação (função social da imagem).
A ponderação foi adotada pelo STF no julgamento da ADIN n. 4.815 (biografias não autorizadas).
Segundo o Tribunal, não cabe censura prévia (“cala boca já morreu” – Min. Carmen Lúcia) - a análise
sobre as biografias é sempre “a posteriori” (responsabilidade civil).
É possível flexibilização do direito à imagem em dois casos:

48 Enunciado n. 279 do CJF: “A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucio-
nalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa.
Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade
destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas
que não restrinjam a divulgação de informações”.

92
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) função social da imagem:


A parte inicial do art. 20 fala em “necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da or-
dem pública”. É o caso da divulgação da imagem de criminosos procurados pela policia, por exemplo.
ii) consentimento do titular:
A autorização do titular para a utilização da imagem não precisa ser expressa, podendo ser tácita
(maior parte dos casos). Exemplos: sorriso da moça no carnaval de Salvador, entrevista da pessoa na TV.
A foto usada no perfil do Facebook e afins para identificação não implica consentimento tácito.
Em Salvador, foi estampada na quarta-feira de cinzas uma foto de um casal em beijo lascivo (era
um homem casado beijando outra pessoa). O jornal alegou que teria havido consentimento tácito e o
casal estaria em local público. As alegações foram refutadas, pois não havia indicação de que o rapaz sa-
bia da existência da câmera. Além disso, local público somente relativiza o direito à imagem se a pessoa
estiver dentro do contexto (a pessoa integrando o cenário49).

2.6. Direito à privacidade (Art. 21)

O direito à privacidade traz consigo dois aspectos: segredo e intimidade.


Privacidade são aquelas informações que pertencem ao titular e a mais ninguém. Trata-se das in-
formações que pertencem ao recôndito do ser. Segredo são as informações que pertencem ao titular, mas
que podem ser compartilhadas com terceiros em nome do interesse público (como as informações bancá-
rias e fiscais). Intimidade é aquilo que pertence ao titular e mais ninguém, e ele só compartilha com
quem quiser, como a opção sexual e religiosa.
Com base na teoria dos círculos concêntricos, a privacidade estaria num aspecto mais exter-
no. O sigilo ou segredo, no intermédio. E a intimidade, no centro. Toda a informação íntima é privada,
mas nem toda a informação privada é íntima, pois a informação privada pode ser secreta.
O direito à privacidade é autônomo, ou seja, ele não depende da violação da honra50 (art. 21):

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado,
adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Imagem e privacidade são bens jurídicos distintos. No caso de Daniela Cicarelli, para Chaves, não
teria havido ofensa à privacidade, pelo consentimento tácito (o casal estava em local público). Todavia,
seria vedada a exploração comercial da imagem, realizada pelo site YouTube.

49 Acerca do tema, ver o REsp 595.600. Trata-se de caso relativo a foto de topless que integrava o cenário re-
tratado.

50 Sobre o tema, ver o REsp 521.697/RJ. Trata-se do caso do jornalista que afirmou que Mané Garrincha te-
ria um órgão genital avantajado. Ele violou a intimidade sem ofender.

93
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DOMICÍLIO

1. Conceito
A palavra “domicílio” vem da raiz latina “domus”, que significava, no direito romano, o “lar”, a “ca-
sa” em que não somente a família morava como cultuava seus antepassados. O conceito de domicílio
pressupõe o conhecimento de outros dois conceitos: residência e morada.

1.1. Morada

Morada é o lugar em que a pessoa física se estabelece temporariamente. Roberto de Ruggiero, ana-
lisando a morada no direito italiano, usa a expressão “estadia” para caracterizá-la. A morada, para aquele
autor, seria o local de estadia da pessoa física. Ainda que no Brasil utilizemos estadia com outro sentido,
o conceito é importante. Ex.: o sujeito que ganha uma bolsa para estudar em Salvador por seis meses terá
sua morada em Salvador. Todavia, isso não altera a sua residência e domicílio.

1.2. Residência

Residência é o lugar em que a pessoa física se estabelece e é encontrada com habitualidade. Essa
característica da habitualidade não é encontrada na morada. A pessoa domiciliada em SP, com residência
em SP, que vai a Santos aos finais de semana, pode ter considerada a casa de Santos como sua residência.

1.3. Domicílio51

Domicílio é mais abrangente do que residência. Isso porque, conceitualmente, o domicílio da pes-
soa natural é o local onde a pessoa pode ser sujeito de direitos e deveres na ordem civil.
Segundo CRG, é em última análise, a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para
efeitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.
Assim, é o lugar onde ela estabelece residência com ânimo de definitividade (animus manendi)52,
transformando-o em centro da sua vida jurídica (art. 70 do CC):

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo
definitivo.

Do consignado acima, é possível notar que O conceito de domicílio civil é composto, pois, de dois
elementos:

51 O domicílio para fins de direito eleitoral não será aqui tratado, em virtude da peculiaridade de suas regras.

52 Essa intenção de fixidez é fundamental para a caracterização do domicílio.

94
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Objetivo: é a residência, simples estado de fato que indica a radicação do indivíduo em determi-
nado lugar.
b) Subjetivo: é o ânimo definitivo, que consiste na intenção de se fixar em determinado local, de
forma permanente.
Dentre outras inúmeras outras razões, é importante saber o domicílio de alguém porque é nele que
o réu é demandado (como regra).

2. Pluralidade de domicílios
Seguindo a orientação do direito germânico, o art. 71 do CC admite a pluralidade de domicílios:

Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, con-
siderar-se-á domicílio seu qualquer delas.

Pode ocorrer de um cidadão ter vida jurídica intensa em muitas cidades. No caso de possuir muitos
domicílios, será considerado domicílio do indivíduo qualquer um deles. A redação do artigo poderia ser
melhor: “diversas residências com ânimo de definitividade”.

3. Domicílio profissional
Vale lembrar, ainda, que por influência do art. 83 do Código de Portugal, o art. 72 do CC, para efei-
tos específicos, consagrou o domicílio profissional da pessoa física:

Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o
lugar onde esta é exercida.

Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá
domicílio para as relações que lhe corresponderem.

Essa regra não havia no CC/16 e foi incluída no CC2002 por influência do direito do trabalho, nesse
sentido, uma vez que a grande maioria das pessoas tem uma residência e outro local onde exerce sua pro-
fissão ou trabalha, em regra, a pessoa natural tem dois domicílios um residencial e outro laboral
e não somente um como outrora, interpretação essa que era retirada do que constava no Código Civil de
1916.
Esse domicílio profissional, todavia, não é genérico, mas específico para aspectos da profissão, ou
seja, para relações profissionais (note a expressão: “quanto às relações concernentes à profissão”). Ex.: o
médico, residente e domiciliado em Salvador, exerce a profissão em uma clínica de Vitória da Conquista.
Vitória da Conquista pode ser usada para, por exemplo, o ajuizamento de uma ação decorrente da relação
de trabalho, mas não para o ajuizamento de ação da namorada contra ele pelo fim do relacionamento.

95
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4. Mudança de domicílio
Trata da mudança de domicílio o art. 74 do CC53:

Art. 74. Muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar.

Parágrafo único. A prova da intenção resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos
lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as
circunstâncias que a acompanharem.

Segundo Pablo, o art. 74 é “psicodélico”. O parágrafo único diz que se prova a mudança com decla-
ração protocolizada junto às Prefeituras de onde se sai e para onde se vai. Essa hipótese no Brasil é sur-
real: imagine um sujeito protocolizando na Prefeitura uma informação de sair ou chegar à cidade. A mu-
dança, em geral, decorre das circunstâncias. O aviso só tem importância às pessoas jurídicas, por ques-
tões tributárias.

5. Domicílio aparente ou ocasional


A ideia do domicílio aparente ou ocasional ou ainda “morada eventual”, matéria especialmente de-
senvolvida pelo civilista belga Henri de Page e regulada pelo art. 73 do CC é a seguinte: por ficção jurídi-
ca, pessoas que não tenham residência habitual são consideradas domiciliadas onde forem encontradas.
Exemplos: ciganos, caixeiros viajantes, profissionais do circo, caminhoneiros que moram no caminhão
etc.

Art. 73. Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar on-
de for encontrada.

6. Domicílio da pessoa jurídica (art. 75 do CC)


Art. 75. Quanto às pessoas jurídicas, o domicílio é:

I - da União, o Distrito Federal;

II - dos Estados e Territórios, as respectivas capitais;

III - do Município, o lugar onde funcione a administração municipal;

IV - das demais pessoas jurídicas, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e adminis-
trações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos.

§ 1o Tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será
considerado domicílio para os atos nele praticados.

53 Dispositivo possível de ser cobrado em prova objetiva.

96
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 2o Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da


pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do
estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder.

No que tange ao domicílio da pessoa jurídica, regulado pelo art. 75 do CC, vale observar que tal te-
mática deverá ser especialmente desenvolvida no direito processual civil, sobretudo pelas implicações no
âmbito da competência (REsp 723.194/RO). Normalmente, no contrato social ou estatuto da pessoa jurí-
dica de direito privado consta o domicílio da empresa. Caso não haja tal informação, será o domicílio o
local onde funcionar a administração. Os problemas surgem quando a empresa tiver diversas filiais em
locais diversos.
Pessoas de direito público também têm domicílio, mas a matéria será tratada em direito adminis-
trativo. O Município é, muitas vezes, dividido em sede e distritos. O domicílio do Município é a sede, e
não o distrito. Nesses distritos pode haver, inclusive, subprefeituras.

7.Classificações de domicílio
7.1. Domicílio voluntário

Domicílio voluntário é o mais comum, o geral, fixado por simples ato de vontade. A natureza jurídi-
ca do ato que fixa o domicílio voluntário é de ato jurídico em sentido estrito.

7.2. Domicílio de eleição

O domicílio de eleição, nos termos do art. 78 do CC, é aquele escolhido pelas próprias partes em
contrato escrito, segundo a autonomia privada:

Art. 78. Nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem
e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes.

Em geral, no final dos contratos, há uma cláusula de eleição de foro. Vale lembrar que, nos temos
do parágrafo único do art. o art. 63, § 3º, do novo diploma processual dispõe:

“Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício
pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu”.

A declaração de ineficácia não deve, todavia, ser proclamada de forma indiscriminada, mas à luz
das circunstâncias do caso concreto. Assim, quando não há prejuízo para o aderente, que é, por exemplo,
empresa de considerável porte, tem sido admitido o foro de eleição em contrato de adesão, não cabendo
ao juiz suscitar de ofício a sua incompetência

97
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É digno de nota, ainda, que o STJ, por sua 3ª Turma, entendeu que o foro competente para julgar
ações sobre hipoteca não é necessariamente o local onde o imóvel está situado54. Nos casos em que não se
discute direito real sobre o imóvel, como a propriedade ou a posse, pode a ação ser ajuizada no foro de
eleição, escolhido no próprio contrato de hipoteca.

7.3. Domicílio legal ou necessário

Domicílio legal ou necessário, previsto nos arts. 76 e 77 do CC, é aquele regulado por lei:

Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.

Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor


público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e,
sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente su-
bordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que
cumprir a sentença.

Art. 77. O agente diplomático do Brasil, que, citado no estrangeiro, alegar extraterritorialidade
sem designar onde tem, no país, o seu domicílio, poderá ser demandado no Distrito Federal ou
no último ponto do território brasileiro onde o teve. [direito internacional: extraterritori-
alidade do diplomata]

O art. 76, mais importante que o 77, traz as hipóteses de domicílio legal ou necessário: incapaz, ser-
vidor público, militar, marítimo e o preso. No caso do servidor público, não há a limitação legal das rela-
ções concernentes ao trabalho. O domicílio, aqui, é o genérico.
Vale lembrar que a recente Súmula 383 do STJ estabeleceu que a competência para processar e jul-
gar ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda.
A Súmula não viola o entendimento da lei:

Súmula 383 – A competência para processar e julgar as ações conexas de interesse de menor é,
em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda.

O domicílio do servidor público é o lugar onde ele exerce função permanente. Aquele que tem do-
micílio em São Paulo e exerce função em Guarulhos passa a ter domicílio em Guarulhos. E, como visto,
esse domicílio não serve somente para aspectos relacionados à profissão. Função transitória, comissio-
nada, não implica mudança de domicílio.

54 Ver “notícias” no site do STJ (REsp 1.048.937).

98
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Marítimo é o marinheiro da marinha particular, mercante. Não é o da Marinha Força Armada, que
está previsto na hipótese anterior (militar). O registro do navio é realizado em determinada cidade e,
nesse caso, lá será o domicílio do marinheiro.
Em prova objetiva, deve-se sustentar que o preso preventiva ou provisoriamente não tem seu do-
micílio previsto nesta hipótese, pois não há sentença. Em prova subjetiva, no entanto, pode-se argumen-
tar que a pena do preso provisório é usada da detração para diminuir a pena, de modo que o domicílio
poderia ser o do local onde ele se encontre preso.

7.4. Outras Classificações55

7.4.1. Domicílio único e domicílio plúrimo:


Como já dito, uma pessoa pode ter um só domicílio, onde vive com sua família, denominado domi-
cílio único ou familiar, ou mais de um, pois o nosso Código admite a pluralidade domiciliar. Configura-se
o domicílio plúrimo quando a pessoa natural tem diversas residências, onde alternadamente vive (CC,
art. 71), ou, além do domicílio familiar, tem também domicílio profissional, que é o loca em que exercita
sua profissão. Se a exercitar em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações
que lhe corresponderem (art. 72, parágrafo único).

7.4.2. Domicílio real e domicílio presumido:


Também como já mencionado, as pessoas têm, em geral, residência fixa, considerada domicílio re-
al. Algumas, todavia, passam a vida em viagens e hotéis, sem terem residência habitual. Neste caso, ter-
se-á por domicílio o lugar onde forem encontradas (CC, art. 73), presumindo-se ser este o seu domicílio
(domicílio presumido).

55 Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos

/ Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

99
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DAS PESSOAS JURÍDICAS

Teixeira de Freitas denominava a pessoa física de “ente de existência visível” e a pessoa jurídica de
“ente de existência ideal”. Caio Mário traz uma série de denominações, como “pessoa moral”, “universa-
lidade”, “pessoa mística” etc.

1. Introdução e conceito
As luzes do tema pessoa jurídica foram lançadas pela sociologia. Com efeito, o conceito-base de
pessoa jurídica experimentou a nítida influência daquela disciplina. Segundo Antonio Luiz Machado Ne-
to56, a pessoa jurídica decorreria do fato associativo, com a interferência do próprio desenvolvimento
econômico, porquanto os indivíduos perceberam que, em grupo, atingiriam com mais rapidez as suas
finalidades propostas. Os seres humanos tendem ao agrupamento (somos gregários por excelência). O
Estado é um grande agrupamento político. Há inúmeros micronúcleos. O homem percebeu que, ao se
agregar, atinge mais facilmente os seus objetivos.
Nessa linha de raciocínio, é possível conceituar pessoa jurídica como o grupo humano, criado na
forma da lei e dotado de personalidade jurídica própria, para a realização de fins comuns. O empresário
individual é uma ficção jurídica. Sofre, por ficção, interferências de normas próprias da pessoa jurídica,
mas a rigor é pessoa física57.
Nas palavras de Flávio Tartuce, a pessoa jurídica é um conjunto de pessoas ou de bens, em regra58,
criado por ficção legal (Teoria da ficção). A pessoa jurídica não se confunde com os seus membros, sócios
e administradores (Teoria da realidade orgânica).
Pessoa jurídica pode sofrer dano moral? A questão não é tão simples. Existe resistência de alguns
na doutrina. Há quem diga que a pessoa jurídica sofre dano extrapatrimonial. A jurisprudência, todavia,
fala em dano moral.
Existem, no direito brasileiro, duas correntes a respeito do tema.
A primeira corrente, amplamente predominante, consolidada pelo próprio STJ (Súmula 227, Resp
785.777/MA), é no sentido de admitir o dano moral experimentado pela pessoa jurídica, posição esta
reforçada pelo próprio art. 52 do Código Civil:

Súmula 227 - A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

56 Compêndio de Introdução ao Estudo do Direito, Ed. Saraiva.

57 Acerca do tema, ver ainda o novo conceito de “EIRELI” – Empresa Individual de Responsabilidade Limi-
tada.
58 A regra é excepcionada com a criação das EIRELIs: pessoas jurídicas formadas só por uma pessoa,
incluída pela Lei n. 12.441/1

100
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

Evidente que a pessoa jurídica não tem a dimensão moral subjetiva (ela não sofre, não tem uma
dimensão psicológica), mas tem a objetiva. Dano moral é a lesão a direito da personalidade. O art. 52 do
CC admite a aplicação, às pessoas jurídicas, no que forem compatíveis, dos direitos da personalidade
(imagem, segredo, nome). O direito brasileiro codificado admite essa hipótese, sendo, portando, a posi-
ção predominante.
Uma corrente não predominante, de autores como Wilson Melo da Silva, é contrária à tese. Segun-
do ela, pelo fato de a pessoa jurídica não ter dimensão psicológica, ela não poderia sofrer dano moral.
Arruda Alvim entende que todo o dano que a pessoa jurídica sofre é material: uma pessoa que difama
uma empresa comete um dano à imagem aferível economicamente. Até um hospital de filantropia sofre
dano aferível economicamente, com a redução das doações.
Trata-se de uma questão de concepção. Muitos autores defendem essa segunda corrente por ques-
tionarem a aplicação dos direitos da personalidade às pessoas jurídicas59. O Enunciado 286 da IV Jorna-
da, de certa forma, acaba por reforçar a corrente minoritária, na medida em que nega à pessoa jurídica
direitos da personalidade. Trata-se de enunciado contra legem. É uma corrente, ressalta-se, minoritária:

Enunciado 286 - Art. 52: Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pes-
soa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direi-
tos.

2. Teorias explicativas da pessoa jurídica


Natureza jurídica de um objeto de investigação é o enquadramento dele em determinada categoria
do direito (trata-se de indagar “o que é isso, para o direito”). Há diversas teorias explicativas da natureza
jurídica da pessoa jurídica, mas as principais são a negativista e a afirmativista.

2.1. Corrente negativista

A corrente negativista negava a existência da pessoa jurídica, a exemplo do pensamento de Brinz e


Planiol, lançando mão de variados argumentos, dentre os quais que as pessoas jurídicas seriam apenas
reuniões de pessoas físicas. Outros diziam que se tratava apenas de um patrimônio coletivo.
Essa corrente não prosperou, ganhando espaço a afirmativista, que aceita a existência da pessoa ju-
rídica.

2.2. Corrente afirmativista

59 Este tópico foi ministrado por Pablo Stolze. Chaves, quando tratou do tema, afirmou que as pessoas jurí-
dicas não são titulares de direitos da personalidade, mas gozam da proteção a eles inerente.

101
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Dentro da corrente afirmativista existem várias teorias, que não serão aqui estudadas por comple-
to. Cumpre, todavia, destacar três: teoria da ficção, teoria da realidade objetiva e teoria da realidade téc-
nica.

2.2.1. Teoria da ficção (Windscheid e Savigny)


A teoria da ficção, especialmente vigente na Alemanha e na França do século XVIII, reconhecia
apenas a existência abstrata da pessoa jurídica, negando-lhe uma dimensão social necessária.
Dentre os povos ocidentais, os alemães são aqueles com maior capacidade abstracionista. A teoria é
a cara da Alemanha. É como se dissesse: a pessoa jurídica existe abstratamente (é apenas fruto da técnica
do direito), mas não tem uma dimensão social.
Todavia, a pessoa jurídica tem interação social, ela integra relações sociais, como a celebração de
um contrato, por exemplo. Era uma teoria muito radical, que gerou também a radicalidade da teoria pos-
terior.

2.2.2. Teoria da realidade objetiva, teoria sociológica ou organicista (Clóvis Bevilaqua)


Diferentemente da primeira, a teoria da realidade objetiva, eminentemente sociológica, desconsi-
derava a técnica jurídica e simplesmente reconhecia a pessoa jurídica como um organismo social vivo.
A teoria caía no exagero oposto da anterior. Ia para o polo diametralmente oposto, dizendo que a
pessoa jurídica é fruto das próprias relações sociais e não tem relação com a técnica do direito. Ela des-
considerava que a técnica é fundamental para disciplinar a própria existência da pessoa jurídica.
Influenciado pelo Darwinismo da época (cientificismo determinista), Bevilaqua sustentava esta te-
oria de natureza sociológica porque ele era eminentemente positivista.

2.2.3. Teoria da realidade técnica (Raymond Saleilles)


A terceira teoria, mais equilibrada, a par de reconhecer que a personificação da pessoa jurídica é
fruto da técnica do direito, também admite a sua dimensão social, vale dizer, a sua aptidão para integrar
relações sociais.
Saleilles é o criador da figura do contrato de adesão (na verdade, trata-se do autor que reconheceu
o fenômeno). A teoria equilibra as duas posições anteriores. Pega o que cada uma delas tem de bom. Re-
conhece que a personificação da pessoa jurídica é fruto da técnica do direito, mas também que a pessoa
jurídica tem dimensão social, integrando relações jurídicas.
Na opinião de Pablo Stolze eFlávio Tartuce, é a teoria adotada pelo direito brasileiro. Tanto
que a pessoa jurídica é um sujeito de direito autônomo que, enquanto sujeito de direito, integra relações
sociais.

3. Constituição da pessoa jurídica

102
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A pessoa física surge a partir do nascimento com vida. Em que momento, todavia, surge a pessoa
jurídica?

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato
constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação
do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitu-
tivo. (...)

Evidentemente, serão tratadas aqui as pessoas jurídicas de direito privado. As de direito público
têm seu nascimento estudado em direito administrativo.
O art. 45, CC, é de clareza meridiana: começa a existência legal das pessoas jurídicas a partir do re-
gistro de seu ato constitutivo no respectivo cartório. Conclusão: o registro de uma pessoa jurídica, na
linha do Código Civil, é constitutivo, e não declaratório de uma personalidade que já existia.
Há posições de autores de direito comercial, de antes do CC, que têm entendimento diverso. Pablo
entende que, com a entrada em vigor do CC, a natureza constitutiva do registro é bastante clara.
Caio Mário chega ao ponto de dizer que não só o registro tem natureza constitutiva como possui
eficácia ex nunc (para frente). Então, segundo o autor, se uma sociedade funcionou sem registro até hoje
(sociedade irregular ou de fato) seria despersonificada. Os arts. 986 e 990 do CC vão nesse sentido, ao
preverem a responsabilidade pessoal do sócio:

Art. 986. Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações
em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele fo-
rem compatíveis, as normas da sociedade simples.

Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluí-
do do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.

Partindo-se dessa ideia, registra-se o que e onde? Basicamente, o ato constitutivo de uma pessoa
jurídica é ou o seu Contrato Social ou o seu Estatuto. Em regra (há exceções), ele é registrado ou na Junta
Comercial (Registro Público de Empresa) ou no CRPJ (Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas).
Observação: excepcionalmente, algumas pessoas jurídicas, para sua constituição, exigem, ainda,
uma autorização especial do Poder Executivo, como se dá, por exemplo, no caso dos bancos (autorização
do BACEN) e das companhias de seguro (SUSEP – Superintendência de Seguros Privados). Essa neces-
sidade de autorização existe por razões de ordem pública, não violando o direito constitucional de livre
associação. O art. 45, CC, determina exatamente isso. Até porque, sem o registro, nem o CNPJ poderá ser
obtido.
O que são entes despersonificados? Trata-se de matéria acentuadamente polêmica, com reflexos,
inclusive, nos direitos processual e administrativo. Essas entidades, embora tecnicamente não sejam pes-
soas jurídicas, gozam de capacidade processual, a exemplo do espólio, da massa falida, herança jacente e

103
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

do condomínio (art. 12 do CPC). No direito administrativo, órgãos são entes despersonalizados, alguns
dos quais com capacidade processual.

Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:

I - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II - o Município, por seu Prefeito ou procurador;

III - a massa falida, pelo síndico;

IV - a herança jacente ou vacante, por seu curador;

V - o espólio, pelo inventariante;

VI - as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando,
por seus diretores;

VII - as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos
seus bens;

VIII - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial,
agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);

IX - o condomínio, pelo administrador ou pelo síndico. (...)

Maria Helena Diniz e outros autores dizem que o ente despersonalizado tem personalidade anôma-
la, mas Pablo prefere a expressão “entes despersonalizados”. O que mais trabalho dá é o condomínio.
Para Pablo, ele não se confunde com a associação, a empresa. Ele tem Convenção e CNPJ, mas mesmo
assim não pode ser estudado à luz do art. 45. Não tem Contrato Social, Estatuto. Há os que sequer são
registrados, mas são tratados como tal. Não é a Receita Federal, concedendo CNPJ, que cria a pessoa
jurídica. Não é a lei tributária que cria a pessoa jurídica.
Assim, em relação ao condomínio, embora razoável a tese de que não é pessoa jurídica, a matéria
gera acesas discussões, havendo, inclusive, quem afirme ser uma quase pessoa jurídica, ou uma pessoa
jurídica especial (Flávio Tartuce e outros).

4. Extinção da pessoa jurídica


Fundamentalmente, uma pessoa jurídica pode experimentar 3 formas de dissolução: convencional,
administrativa ou judicial.

4.1. Dissolução convencional

Especialmente aplicada para as sociedades, a dissolução convencional é deliberada pelos próprios


sócios ou administradores. Ela até pode haver em outros tipos de pessoas jurídicas, como nas associa-
ções, mas é principalmente utilizada nas sociedades.

104
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4.2. Dissolução administrativa

Dissolução administrativa é aquela decorrente da cassação da autorização de constituição e funcio-


namento de determinadas pessoas jurídicas, a exemplo dos bancos. Com efeito, o BACEN tem essa capa-
cidade. Pode, administrativamente, cassar a autorização de criação e funcionamento.

4.3. Dissolução judicial

A dissolução judicial deriva de um procedimento judicial, como se dá no processo falimentar.


Acerca do tema, há uma peculiaridade muito exigida em provas de concurso60: o regramento da
dissolução de sociedades não sujeitas à lei falimentar é dado pelo CPC/1939, nos termos do art. 1.218,
VII, do CPC atual:

Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos re-
gulados pelo Decreto-lei no 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes: (...)

VII - à dissolução e liquidação das sociedades (arts. 655 a 674);

Então, o CPC de 1939 pode ter uma aplicação subsidiária na dissolução de sociedades.

5. Espécies de pessoa jurídica de direito privado


No regramento do CC/1916 e do CC/2002 em sua redação original, a matéria era fácil: havia três
espécies de pessoas jurídicas de direito privado: associações, sociedades e fundações. Hoje, o art. 44 dá
personalidade jurídica às organizações religiosas, aos partidos políticos e à empresa individual de res-
ponsabilidade limitada:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:

I - as associações;

II - as sociedades;

III - as fundações.

IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)

V - os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)

VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011)

Não são os partidos políticos e as organizações religiosas, todavia, formas de associações? Por que
eles foram retirados da categoria de entes associativos e colocados como categorias autônomas? Em ter-
mos de teoria do direito, o destaque deles do conceito de associação seria absolutamente desnecessário.

60 Pegadinha de concurso.

105
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Razões de ordem social e política ditaram a alteração do art. 44 do Código Civil para disciplinar
organizações religiosas e partidos políticos em dispositivos autônomos, com o nítido propósito de, à luz
do art. 2.031, excluírem essa entidades da obrigatoriedade de adaptação ao Novo Código Civil61:

Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores,
bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de
2007. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às organizações religiosas nem aos parti-
dos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)

O art. 2.031 do CC estabelecia o prazo ínfimo de um ano para que sociedades, associações e funda-
ções se adaptassem ao Código Civil. Ninguém (advogados, contadores, empresários) sabia como realizar
tais alterações. Foi uma gritaria geral. Diante da força política das organizações religiosas e dos partidos
políticos, o legislador alterou o dispositivo para blindá-los dessa obrigatoriedade. Os empresários questi-
onaram o dispositivo, tendo o prazo sido aumentado para eles, mas não desapareceu a obrigatoriedade.
O prazo novo acabou em 11 de janeiro de 2007, após sucessivas alterações do dispositivo.
O que aconteceu com a pessoa jurídica que não se adaptou? Em caso de não adaptação ao Código, a
entidade passaria a funcionar de forma irregular, o que poderia acarretar, inclusive, a responsabilidade
pessoal de seus sócios ou administradores, além da natural dificuldade de obter linha de crédito bancário
e a impossibilidade de participar de licitações.
A norma não diz que o condomínio deve se adaptar, mas algumas normas do Código novo têm sido
aplicadas a ele. Isso, entretanto, não significa que o condomínio seja sociedade, fundação ou associação.
Finalmente, questiona-se se o rol do Art. 44 é taxativo ou exemplificativo.
Segundo uma visão clássica, o rol seria taxativo (Maria Helena Diniz, Venosa, Carlos Roberto Gon-
çalves). Entretanto, uma visão contemporânea o rol seria meramente exemplificativo (Flávio Tartuce e
Enunciado n. 144 – III Jornada de Direito Civil). Segundo Flávio Tartuce “o atual Código Civil adota um
sistema aberto, baseado em cláusulas gerais e inspirado na teoria de Miguel Reale, não há como defender
que essa relação é fechada.”. Desse modo, a corrente contemporânea possibilita que o condomínio edilí-
cio seja reconhecido como PJ de direito privado.

5.1. Entes despersonalizados

A pessoa jurídica não se confunde com os entes despersonalizados ou despersonificados, que são
meros conjuntos de pessoas ou de bens.

61 Segundo Flávio Tartuce as organizações religiosas e partidos políticos fora tratados em separado para que
deixassem de se enquadrar como associações. Agora são corporações especiais, com autonomia em relação ao Códi-
go Civil de 2002 e tratamento próprio (CC, art. 2.031, parágrafo único).

106
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “a lei prevê, com efeito, certos casos de universalidades de di-
reito e de massas de bens identificáveis como unidade que, mesmo não tendo personalidade jurídica,
podem gozar de capacidade processual e ter legitimidade ativa e passiva para acionar e serem acionadas
em juízo. São entidades que se formam independentemente da vontade dos seus membros ou em virtude
de um ato jurídico que os vincule a determinados bens, sem que haja a affectio societatis.
Nesse sentido, merecem destaque:

a) Família.
b) Espólio (bens).
c) Herança (bens).
d) Massa falida (bens).
e) Sociedade de fato (sem ato constitutivo).
f) Sociedade irregular (com ato constitutivo, mas sem registro).
g) Condomínio edilício (aplicação da 1ª corrente exposta acima).

6. Tipos fundamentais de pessoas jurídicas


6.1. Fundações62

6.1.1. Conceito e finalidades


Não serão analisadas neste tópico as fundações públicas (que segundo Celso Antônio Bandeira de
Melo são entidades autárquicas), mas somente as fundações privadas.
Diferentemente das sociedades e das associações, que são compostas da união de pessoas, as fun-
dações resultam de um patrimônio afetado ou destacado, que se personifica para a realização de finali-
dade ideal (art. 62 do CC):

Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, do-
tação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a ma-
neira de administrá-la.

Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins de: (Redação dada pela Lei
nº 13.151, de 2015)

I – assistência social; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

II – cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; (Incluído pela Lei nº


13.151, de 2015)

III – educação; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

62 O tema atinente às fundações é muito importante para candidatos ao Ministério Público. Recomendação
de leitura complementar: “O MP e as fundações de direito privado”, de Lincoln de Castro.

107
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

IV – saúde; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

V – segurança alimentar e nutricional; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sus-


tentável; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

VII – pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de siste-


mas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos;
(Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

VIII – promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; (Incluído pela
Lei nº 13.151, de 2015)

IX – atividades religiosas; e (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

X – (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)

Assim, segundo Flávio Tartuce são conjuntos de bens arrecadados e afetados para uma finalidade
específica.
Segundo Maria Helena Diniz, a fundação sempre deve ter “fins nobres” porque há interesse social e
coletivo.
Veja que a fundação tem elemento teleológico claro, a alteração pela Lei 13.151/15 apenas trouxe o
rol exemplificativo de finalidades, nessa trilha, o Enunciado 9 da Jornada de Direito Civil promovida pelo
Centro d Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal.63
Assim, a instituição de uma fundação não serve para gerar lucro, patrimônio ou di-
videndos. Por isso as ONG’s, em geral, são fundações ou associações.
Nesse sentido, a receita que a PJeventualmente gera é reaplicada nela própria, para a consecução
das suas finalidades, ainda que as pessoas que trabalhem para a fundação recebam salário como contra-
prestação de seu trabalho.

6.1.2. Normas de constituição


Só pode constituir fundação quem tem dinheiro, pois ela decorre de um patrimônio livre, que é
destacado do domínio de alguém e se personifica. Para se constituir uma fundação, existem somente dois
caminhos: por escritura pública ou por testamento. Não pode ser criada fundação por instrumento parti-
cular (art. 62, caput, do CC).
Mas qual a forma de testamento que se admite para a criação de uma fundação? Na visão de Pablo
Stolze, se o legislador quisesse que a única forma admissível fosse o testamento público, teria dito ex-

63 Enunciado nº 9 JDC “O art. 62, parágrafo único, do Código Civil deve ser interpretado de modo a excluir

apenas as fundações de fins lucrativos”.

108
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

pressamente64. Exemplo de fundação: Fundação Fredie Didier de Apoio ao Concursando. Grandes em-
presas têm fundações (Bradesco, Roberto Marinho etc.)

6.1.3. Requisitos (ou etapas) para a criação da fundação


São etapas para a criação de uma fundação:

6.1.3.1. Afetação
Afetação é o destacamento de bens livres do instituidor para a criação da fundação.

6.1.3.2. Instituição

Como estudado, a instituição da fundação pode se dar por escritura pública ou testamento.

6.1.3.3. Elaboração do estatuto da fundação

O estatuto é o ato normativo e organizacional da fundação. Ela não tem contrato social. É nele que
serão encontrados os órgãos (Conselho, Presidência), objeto, finalidade, tempo de vigência etc.
O art. 65 do CC estabelece quem deve elaborar o estatuto da fundação. Obviamente, nos termos do
já mencionado art. 62, o próprio instituidor poderá elaborar o Estatuto, mas nada impede que, fiduciari-
amente (em confiança), delegue a atribuição a um terceiro (ex.: idoso que determina que o elaborador do
estatuto será o primeiro presidente, que será seu filho):

Art. 65. Aqueles a quem o instituidor cometer a aplicação do patrimônio, em tendo ciência do
encargo, formularão logo, de acordo com as suas bases (art. 62), o estatuto da fundação projeta-
da, submetendo-o, em seguida, à aprovação da autoridade competente, com recurso ao juiz. (...)

Elaborado o estatuto, ele deve ser submetido à autoridade competente. Se o terceiro não elabora o
estatuto no prazo assinado pelo instituidor ou, não havendo prazo, em 180 dias, ele deve ser elaborado
pelo MP. Subsidiariamente, portanto, o MP poderá elaborar o estatuto da fundação (art. 65, parágrafo
único, do CC):

Art. 65 (...) Parágrafo único. Se o estatuto não for elaborado no prazo assinado pelo instituidor,
ou, não havendo prazo, em cento e oitenta dias, a incumbência caberá ao Ministério Público.

6.1.3.4. Aprovação pelo MP


Uma vez elaborado, o estatuto deverá ser aprovado pelo MP. Nas cidades grandes, existem Promo-
torias de Fundações.
Se o próprio MP elabora o estatuto, quem aprova? Trata-se de uma norma esquisita, pois o MP é
uno. No caso excepcional de o próprio MP elaborar o Estatuto, dispõe o art. 1.202 do CPC que a aprova-
ção caberá ao Juiz, o que o torna impedido para julgar casos daquela fundação:

64 Uma prova do MP/RS considerou certa questão exatamente nesse sentido.

109
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.202. Incumbirá ao órgão do Ministério Público elaborar o estatuto e submetê-lo à aprova-
ção do juiz:

I - quando o instituidor não o fizer nem nomear quem o faça;

II - quando a pessoa encarregada não cumprir o encargo no prazo assinado pelo instituidor ou,
não havendo prazo, dentro em 6 (seis) meses.

6.1.3.5. Registro do estatuto no CRPJ

A etapa final para a criação da fundação é o registro de seu estatuto no Cartório de Registro das
Pessoas Jurídicas.
A função do MP na fundação não se esgota na elaboração e aprovação do estatuto. Além de, even-
tualmente, elaborar um estatuto, bem como de aprová-lo, merece especial referência a função fiscalizató-
ria das fundações, exercida pelo MP, nos termos do art. 66 do CC:

Art. 66. Velará pelas fundações o Ministério Público do Estado onde situadas.

§ 1º Se funcionarem no Distrito Federal ou em Território, caberá o encargo ao Ministério Públi-


co do Distrito Federal e Territórios. (Redação dada pela Lei nº 13.151, de 2015) 65.

§ 2o Se estenderem a atividade por mais de um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao


respectivo Ministério Público.

6.1.3.6. Alteração do estatuto


Nos arts. 67 e 68 coexistem regras reguladoras da alteração de estatuto de uma fundação:

Art. 67. Para que se possa alterar o estatuto da fundação é mister que a reforma:

I - seja deliberada por dois terços dos competentes para gerir e representar a fundação;

II - não contrarie ou desvirtue o fim desta;

III - seja aprovada pelo órgão do Ministério Público no prazo máximo de 45 (qua-
renta e cinco) dias, findo o qual ou no caso de o Ministério Público a denegar, poderá o ju-
iz supri-la, a requerimento do interessado. (NR) (Inciso com redação determinada na Lei nº
13.151, de 28.7.2015, DOU 29.7.2015)

Art. 68. Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime, os administradores
da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do Ministério Público, requererão que se dê ci-
ência à minoria vencida para impugná-la, se quiser, em dez dias.

65 Obs.: O artigo 66, § 1º, do CC possuía falha grave. A regra geral é que a fiscalização das fundações privadas
é atribuição do MP estadual. O § 2º diz o mesmo. O § 1º, todavia, atribuia ao MPF o encargo fiscalizatório das fun-
dações localizadas no DF ou Territórios. A questão foi submetida ao Supremo, que entendeu, na ADI 2794-8 que a
função fiscalizatória da fundação localizada no DF é do próprio MPDFT, e não da Procuradoria da República
(MPF). Se uma fundação privada receber uma verba da União, todavia, poderá ocorrer de o MPF trabalhar em con-
junto com o MPE (situação excepcional).

110
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O quórum para se alterar o estatuto de uma fundação é de, pelo menos, 2/3 dos ges-
tores (o antigo CC previa maioria absoluta), sua finalidade não poderá ser desvirtuada e deve ser
aprovada pelo MP e, caso haja denegação, será a alteração submetida ao juiz.
Nas lições de Carlos Roberto Gonçalves os fins ou objetivos da fundação não podem, to-
davia, ser modificados, nem mesmo pela vontade unânime de seus dirigentes. São inalterá-
veis, porque somente o instituidor pode especificá-los e sua vontade deve ser prestigiada (CC, art.
62).
Se a alteração não tiver sido unânime, quando o estatuto modificado for apresentado ao MP, este
deverá comunicar a maioria vencida, que terá 10 dias para impugnar a modificação (o prazo é decadenci-
al), conforme dispõe o art. 68 do CC. Havia discussão acerca desse prazo de 10 dias, mas hoje isso aca-
bou. Havia colidência com o CPC, mas a questão já está pacífica.

6.1.3.7. Dissolução da fundação

O art. 69 do CC prevê o destino do patrimônio, quando uma fundação acaba. Salvo disposição em
contrário, ele deve ser incorporado em outra fundação designada pelo juiz, de finalidade
igual ou semelhante:

Art. 69. Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a fundação, ou vencido o
prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, lhe promoverá
a extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no
ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se
proponha a fim igual ou semelhante.

Assim, o patrimônio que sobrar será destinado:


1º: Outra entidade prevista no ato constitutivo ou no estatuto.
Observe que a lei não diz que deve ser outra fundação necessariamente, Tartuce entende que a en-
tidade não deve ter fim lucrativo, fundação ou associação.
2º: Silente o estatuto, outra fundação, designada pelo juiz, que tenha fim igual ou semelhante.
A lei não esclarece qual o destino do patrimônio se não existir qualquer fundação de fins iguais ou se-
melhantes. Nesse caso, entende a Carlos Roberto Gonçalves que os bens serão declarados vagos e pas-
sarão, então, ao Município ou ao Distrito Federal se localizados nas respectivas circunscrições, incorporan-
do-se ao domínio da União quando situados em território federal, aplicando-se por analogia o disposto no art.
1.288 do Código Civil.
A fiscalização pelo MP se explica, pois, as fundações privadas recebem diversos benefícios fiscais e,
portanto, existe grande margem a fraudes (situação de vulnerabilidade).

6.2. Associações (Arts. 53 a 61)

111
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As associações, pessoas jurídicas de direito privado, são formadas pela união de indivíduos, com fi-
nalidade ideal ou não econômica (art. 53 do CC):

Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não
econômicos.

Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.

É um conjunto de pessoas que se organizam para fins não econômicos (sem fins lucrativos).
Exemplo: clubes recreativos.
Assim como a fundação, a associação tem finalidade não econômica, mas, diferentemente daquela,
deriva da união de pessoas, não da atribuição de patrimônio. Por isso, muitas ONG’s são associações.
Ex.: os blocos de carnaval da Bahia começaram como associações (atividade lúdica), clubes recreativos,
APADEP etc.
Uma associação pode gerar receita, mas a receita é reinvestida nela própria. Não pode haver parti-
lha de lucros por parte de seus conselheiros, como se fossem dividendos. Os sindicatos têm natureza ju-
rídica de associações. No Resp 1.181.410/RJ, o STJ decidiu que os sindicatos são considerados associa-
ções civis para fins de legitimidade ativa.
Segundo ensina Flávio Tartuce diante da ausência de fins lucrativos, não há entre os associados di-
reitos e deveres recíprocos, entretanto, existem entre associados e associação direitos e deveres como p.
ex. o dever de cumprir o estatuto (negócio jurídico coletivo) e dever de pagar contribuições.
O ato normativo que cria, estrutura e normatiza a associação é o estatuto, cujos requisitos estão no
art. 54 do CC:

Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:

I - a denominação, os fins e a sede da associação;

II - os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados;

III - os direitos e deveres dos associados;

IV - as fontes de recursos para sua manutenção;

V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (Redação dada pela Lei
nº 11.127, de 2005)

VI - as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução.

VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas. (Incluído pela Lei nº
11.127, de 2005)

Em geral, são órgãos da associação: Presidência, Conselho Administrativo, Conselho Fiscal e As-
sembleia Geral (o órgão mais poderoso da associação).
Esse estatuto deve ser registrado no CRPJ também.

112
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ademais, Flávio Tartuce lembra que o estatuto da associação é um negócio jurídico (ou contrato)
coletivo que traz as regras gerais sobre as associações. Tem força vinculativa, aplicando-se a máxima
“pacta sunt servanda”.
Porém, o estatuto da associação não pode violar normas de ordem pública ou princípios constituci-
onais.66
A assembleia geral, órgão mais importante da associação, tem as suas atribuições previstas no art.
59:

Art. 59. Compete privativamente à assembleia geral: (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

I – destituir os administradores; (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

II – alterar o estatuto. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005) [Diferentemente das funda-
ções, nas quais o Conselho pode alterar o estatuto, nas associações apenas a as-
sembleia possui tal poder.]

Parágrafo único. Para as deliberações a que se referem os incisos I e II deste artigo é exigido de-
liberação da assembleia especialmente convocada para esse fim, cujo quórum será o estabeleci-
do no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores. (Redação dada pela Lei nº
11.127, de 2005)

O que acontece com o patrimônio de uma associação quando ela acaba? Regra geral, nos termos do
art. 61 do CC, dissolvida uma associação, o seu patrimônio será atribuído a entidades de fins não econô-
micos designadas no estatuto ou, omisso este, a uma instituição municipal, estadual ou federal de fins
iguais ou semelhantes:

Art. 61. Dissolvida a associação, o remanescente do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas,
se for o caso, as quotas ou frações ideais referidas no parágrafo único do art. 56, será destinado à
entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por delibera-
ção dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhan-
tes. (...)

Assim, o destino do que sobrar do patrimônio dissolvida a associação sera:


1º: para entidade de fins não econômicos prevista no estatuo.
2º: deliberação dos associados: para uma instituição municipal, estadual ou federal de fins idênti-
cos ou semelhantes.
3º: Fazenda do Estado, DF ou da União.

66 Ex. do caso “Club Paulistano” (TJ/SP - 2012): o estatuto da associação previa a possibilidade de inclusão
de companheiro (a) e seus filhos como dependentes de associado – união estável entre homem e mulher (heteroafe-
tiva). E na hipótese de união homoafetiva? A resposta do clube foi negativa. No entanto, o TJ/SP decidiu positiva-
mente à inclusão.

113
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Pode haver diferença de “pesos” nos votos de associados em assembleia geral? Isso é perfeitamente
possível, uma vez que em regra há igualdade entre os associados, porém, o estatuto pode instituir catego-
rias com vantagens especiais
Assim, em uma associação (um clube, por exemplo), pode haver categorias diferentes de associa-
dos, mas associados de uma mesma categoria não podem ser discriminados entre si (art. 55 do CC):

Art. 55. Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com
vantagens especiais. [Ex.: a categoria dos associados fundadores muitas vezes não
paga mensalidade.]

Em relação à eventual exclusão do associado, esta só é admissível se houver justa causa, com direi-
to à apla defesa e recurso, nos termos previstos no estatuto (art. 57 do CC):

Art. 57. A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em pro-
cedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto. (Reda-
ção dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

Assim, o art. 57 do CC, inovando, admite, garantido o contraditório, a exclusão de um associado


por justa causa. Esta regra do CC refere-se ao associado e a doutrina majoritária não aceita a sua aplica-
ção ao condômino (contra o condômino existem outras medidas punitivas cabíveis, mas não cabe a ex-
clusão, pois seria uma desapropriação privada).
Nesse sentido, é de se notar que o estatuto não pode afastar o direito à ampla defesa, e segundo
Carlos Roberto Gonçalves, eventualmente, a exclusão do associado poderá ser discutida no âmbito judi-
cial, com aplicação do princípio da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, como já reconheceram
os Tribunais Superiores.
Finalmente, conforme o art. 56, a qualidade de associado, em regra, é personalíssima
(“intuitu personae”) e, portanto, intransmissível.
Porém, o estatuto pode dispor o contrário. Já o parágrafo único do Art. 56 prevê que, em regra, a
transmissão da cota de associado não se dá com as mesmas características. Porém, o estatuto pode dis-
por o contrário

6.3. Sociedades (Arts. 966 e seguintes)

6.3.1. Conceito
A sociedade, espécie de pessoa jurídica de direito privado formada pela união de indivíduos, dotada
de personalidade jurídica própria e instituída por meio de contrato social, tem a finalidade de exercer
atividade econômica e partilhar lucro (art. 981 do CC):

Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribu-
ir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resul-
tados.

114
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determina-


dos.

Veja que esta matéria não está mais ligada à Parte Geral, mas ao Livro de Empresas.
Diferentemente das fundações e associações, a sociedade tem finalidade precípua de obtenção de
lucro. As denominadas sociedades civis sem fins lucrativos existiam antes do CC/2002. Depois do adven-
to do novo CC, essas sociedades sem fins lucrativos devem sofrer uma adaptação. Isso porque, à luz do
novo Código, a sociedade deve ter finalidade lucrativa.

6.3.2. Sociedade entre cônjuges


O art. 977 do CC proíbe a sociedade formada entre cônjuges que estejam casados em regime de co-
munhão universal ou separação obrigatória de bens.

Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não
tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

Marido e mulher podem até formar sociedade entre si, mas não poderão formar sociedades entre si
ou entre os dois e terceiros se estiverem casados sob o regime de comunhão universal ou separação obri-
gatória de bens. O legislador imagina que, se esses cônjuges pudessem formar sociedade, poderiam frau-
dar o regime de bens. Como será estudado em Direito de Família, esses dois regimes são mais vulnerá-
veis a fraudes.
Essa ideia de o legislador presumir a fraude deve ser criticada. Ora, fraudes não podem ser presu-
midas, porque isso acaba por restringir a livre iniciativa. Ainda assim, deve-se conhecer a letra do Códi-
go, que impede a formação de sociedade nas hipóteses desses regimes.
E os casais que formaram sociedade empresária antes do CC/2002? Eles teriam de desfazer a soci-
edade? O próprio DNRC (Departamento Nacional de Registro do Comércio) já consolidou o óbvio enten-
dimento (Parecer Jurídico nº 125/2003) no sentido de que sociedades anteriores não podem ser atingi-
das pela norma restritiva, à luz da garantia do ato jurídico perfeito.

6.3.3. As alterações no direito empresarial e seus reflexos nas sociedades: a distinção


entre sociedades empresárias e sociedades simples

6.3.3.1. Atos de comércio e atos empresariais

Ao longo do século XX, o direito comercial foi sem dúvida o tema em direito privado que mais so-
freu alterações. Aliás, a mudança foi tão profunda que o próprio nome da matéria mudou (não se fala
mais em direito comercial, mas em direito empresarial).
As noções de comércio e comerciante remontavam ao final do século XIX. Ao longo do século XX,
passou-se a atinar ao fato de que o objeto de estudo da matéria não mais seria o comércio e o comercian-
te. Por contribuição do direito italiano, passou-se a perceber que o objeto do direito comercial deveria ser
empresa e empresário (porque são noções mais abrangentes).

115
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse processo de mudança, uma das figuras jurídicas que mais sofreu impacto foi o tema das soci-
edades. No começo do século XX, as sociedades eram dividas em: i) sociedades civis e ii) sociedades mer-
cantis. Ambas teriam um ponto em comum: perseguir a finalidade lucrativa (ressalvada a figura esdrúxu-
la da sociedade civil sem fins lucrativos). A distinção entre elas se dava em relação à prática ou não de
atos de comércio.
As sociedades mercantis, para perseguir o lucro, praticavam atos de comércio. E as sociedades ci-
vis, por sua vez, não os praticavam. Por isso, as sociedades civis eram, em geral, prestadoras de serviço.
Ex.: clínica de dentistas.
No momento em que a teoria da empresa começa a tomar o lugar da antiga teoria do comércio (so-
bretudo após a edição do CC italiano), essa tipologia sofreu uma visível modificação. O CC/2002 é um
marco na história legislativa brasileira. A partir dele, não mais se usa essa tipologia que distingue socie-
dade civil e mercantil.

6.3.3.2. Sociedades empresárias e simples: distinção


À luz do art. 982 do CC, as sociedades hoje são subdivididas em: i) sociedades empresárias e ii) so-
ciedades simples.

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto
o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples,
as demais. (...)

A partir do NCC, não devem as sociedades ser divididas entre mercantis e civis. À luz do art. 982,
elas são divididas entre sociedades empresárias e simples. É um equívoco chamar a sociedade de empre-
sarial. A sociedade é empresária e a atividade é empresarial. A qualidade da sociedade é empresária.
À luz do art. 982 do Código Civil, uma sociedade, para ser empresária, deve observar um requisito
material (exercício de atividade típica de empresário, previsto no art. 966) e um requisito formal (regis-
tro na Junta Comercial). Já as Sociedades Simples são todas as demais que não sejam consideradas em-
presárias. A sociedade simples é, portanto, residual.

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organi-
zada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza ci-
entífica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o
exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O art. 966 não define com clareza o que seja atividade típica de empresário, e aí está o problema.
Atividade empresarial (elemento de empresa, empresarialidade) é muito difícil de detectar.
A sociedade empresária corresponde à mercantil? A simples corresponde à antiga civil? Em geral, a
sociedade empresária corresponde à antiga sociedade mercantil (comercial) e a sociedade simples à anti-

116
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ga sociedade civil. Mas, não se pode dizer que há absoluta identidade, na medida em que a noção de em-
presa é mais abrangente do que a de comércio.
Uma indústria exploradora de extração de minério não era considerada tecnicamente comercial,
pois está na ponta da cadeia produtiva (era industrial). Hoje, todavia, é considerada empresarial (ativi-
dade empresarial e registro na Junta Comercial).
A sociedade empresária é a típica sociedade capitalista, uma vez que marcada pela impessoalidade:
os seus sócios atuam, sobretudo, como meros articuladores de fatores de produção. A presença física
deles (em termos de atividade pessoal) não integra a estrutura da atividade. Eles podem perfeitamente se
fazer representar. Em determinados casos, sequer é possível identificá-los. Não é que a pessoa do sócio
não seja importante, mas ela não integra o elemento de empresa. Ex.: dono de uma sociedade, que possui
uma concessionária de carros, residente na Noruega.
Na sociedade simples, o sócio importa para o exercício da própria atividade desempenhada por ela.
A presença ou a supervisão pessoal dele é fundamental para a atividade prestada, ainda que haja colabo-
radores. Ex.: sociedade de advogados, clínica formada por médicos. Por conta disso, em geral, a socieda-
de simples é prestadora de serviços.
A sociedade empresária é impessoal. A simples é pessoal.
Portanto, uma sociedade empresária é marcada pelo aspecto eminentemente capitalista da impes-
soalidade, sujeita-se à lei falimentar, tem registro obrigatório na Junta Comercial e os seus sócios atuam
como meros articuladores de fatores produtivos (capital, trabalho, matéria-prima, tecnologia), de manei-
ra que a sua própria atividade não integra o elemento da empresa. Diferentemente, as sociedades sim-
ples, sujeitas a normas próprias de dissolução, não têm registro na Junta (mas, em geral, no Registro de
Pessoas jurídicas) e são marcadas pela pessoalidade, uma vez que a sua atividade é desempenhada ou
supervisionada, pessoal e diretamente, pelo próprio sócio (por isso costumam ser prestadoras de servi-
ços, como as sociedades de médicos ou advogados).
Há, na prática, inúmeras nuances. A sociedade de advogados, por determinação de norma específi-
ca (EAOAB), é registrada na OAB. Por ausência de requisito formal, ortodoxamente, a sociedade de ad-
vogados não deveria ser considerada simples. Mas é. Há casos que fogem à regra, daí a dificuldade da
matéria.
No caso de grandes escritórios de advocacia ou de um grande hospital, ainda que pertencentes a
poucos sócios, há quem diga que tenham se metamorfoseado, saltando aos olhos o elemento de empresa.
Mas, para efeito de concurso, devem-se adotar os critérios expostos acima.
O parágrafo único do art. 982 estabelece que toda sociedade anônima é considerada empresária e
toda cooperativa uma sociedade simples. No que tange às cooperativas (tema da grade de direito empre-
sarial), que se caracterizam, principalmente, pela partilha de resultado na proporção do esforço de cada
cooperado, existe grande discussão quanto ao seu registro, se deve ser feito na Junta Comercial (Lei

117
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

8.934/1994, Lei 5.764/1971, Enunciado 69 da 1ª Jornada de Direito Civil67) ou se o registro deve ser feito
no CRPJ (Juleita Lunz, Paulo Rego). Não há posição consolidada no STF.
Tanto a Junta Comercial quanto os Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas são instituições poli-
ticamente muito poderosas, razão pela qual a briga é muito grande. Doutrinariamente, também há polê-
mica. Antes do NCC, a matéria era fácil (a cooperativa era registrada na Junta Comercial). Com a entrada
em vigor do Novo Código, a confusão se abriu: a despeito do Enunciado 69, os autores citados acima en-
tendem que o registro deve ser feito no CRPJ por serem sociedades simples. Essa é a opinião de Pablo
Stolze.

7.Desconsideração da pessoa jurídica (“disregard doctri-


ne”68)
7.1. Noções introdutórias

7.1.1. Introdução histórica


No final do século XIX, na Inglaterra, Aaron Salomon resolveu criar uma Companhia. A legislação
exigia a presença de sete sócios. Ele reuniu-se a outras seis pessoas da família, emitiu em favor dele
20.000 ações e deu, a cada um dos outros, uma só ação. Essa Companhia formou-se enquanto pessoa
jurídica e sujeito de direitos e começou a acumular dívidas.
A fila de credores quirografários (sem garantia) começou a aumentar e, quanto estava à beira da fa-
lência, Salomon abriu o capital da sociedade, emitiu títulos privilegiados no mercado e ele mesmo com-
prou os títulos, com prioridade em relação aos demais credores. Os credores se revoltaram e ingressaram
com pedido nas Cortes Britânicas para que fosse desconsiderada a personalidade jurídica da Companhia
e pudesse ser atingido o patrimônio de Salomon.
A partir daí, a teoria da desconsideração seria desenvolvida na Alemanha com Rolf Serick e na Itá-
lia com Piero Verrucoli, espraiando-se por todo o mundo. No Brasil, o primeiro jurista a tratar desse te-
ma foi Rubens Requião.

7.1.2. Conceito
A doutrina da desconsideração pretende o afastamento temporário da personalidade de uma pes-
soa jurídica para permitir que os seus credores satisfaçam seus direitos no patrimônio pessoal do sócio
ou administrador que cometeu o ato abusivo. Daí a expressão inglesa lift the vail (“levantar o véu”).

67 Enunciado 69 - Art. 1.093: As sociedades cooperativas são sociedades simples sujeitas à inscrição nas jun-
tas comerciais.
68 Teoria da desconsideração da personalidade jurídica/“disregard of the legal entity”/”levantamento do

véu”/”teoria da penetração da empresa”.

118
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A doutrina pode ser aplicada não somente para sociedades empresárias como para outros tipos de
pessoas jurídicas (associações, entes de caráter filantrópico etc.) Não é necessário desconsiderar a perso-
nalidade do empresário individual, por óbvio, mas o mesmo não ocorre com relação à EIRELI (Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada).
À luz do princípio da função social e da continuidade da empresa, a desconsideração é temporária,
episódica, para que os credores prejudicados respondam pessoalmente com seu patrimônio. Uma vez
pagas as dívidas, a sociedade volta a funcionar normalmente.
Há uma diferença fundamental entre desconsideração e despersonificação. A despersonificação da
personalidade jurídica é medida ainda mais drástica, uma vez que pretende a própria aniquilação da so-
ciedade, com o cancelamento do seu registro. Capez esteve à frente de despersonificações de determina-
das torcidas organizadas, que desvirtuavam suas finalidades e acabaram extintas.
Em resumo:
Desconsideração da personalidade Despersonificação /Despersonalização)
jurídica
CC, art. 50. CC, art. 5169.
Não há extinção da personalidade jurídica, Extinção ou dissolução da pessoa jurídica. Há a
mas apenas quebra da autonomia (ampliação apuração do passivo e do ativo (liquidação) e o
de responsabilidades). cancelamento da inscrição.

O que é teoria ultra vires societatis? De origem anglo-saxônica e regulada pelo art. 1.015 do Código
Civil, essa teoria sustenta ser nulo e ineficaz o ato praticado pelo sócio que extrapolou os poderes a si
concedidos pelo contrato social (a sociedade, pois, não responderia por tal conduta):

Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes
à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis
depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros
se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;

II - provando-se que era conhecida do terceiro;

III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

Se o sócio celebra contrato extrapolando os poderes a ele concedidos pelo contrato social, a socie-
dade não responde: o contrato seria nulo para a sociedade. Alguns doutrinadores de direito empresarial

69 CC, art. 51: “Nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento,

ela subsistirá para os fins de liquidação, até que esta se conclua”.

119
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

criticam essa teoria, entendendo ser ela inaplicável por conta da boa-fé objetiva e da teoria da aparência.
Mas essa é a letra da lei.
Como o direito brasileiro trata a desconsideração administrativa da pessoa jurídica? Ex.: a Receita
Federal pode administrativamente desconsiderar a personalidade jurídica e atacar o patrimônio dos só-
cios (que respondem subsidiariamente por débitos tributários)?
Em geral, entende a doutrina, diante do nosso direito positivo, que a desconsideração da persona-
lidade jurídica é matéria sob reserva de jurisdição (Edmar Andrade). Todavia, em situações excepcionais
de fraude à lei, a própria doutrina (Gustavo Tepedino) e o STJ (RMS 15.166/BA) já admitiram a descon-
sideração em nível administrativo. O STJ entendeu que a sanção a sócio seria possível em hipótese de
gravíssima fraude à lei.

7.1.3. Teorias sobre a desconsideração70


A doutrina e a jurisprudência reconhecem a existência, no direito brasileiro, de duas teorias da des-
consideração:

7.1.3.1. Teoria Maior


A teoria maior, que prestigia a contribuição doutrinária e em que a comprovação da fraude e do
abuso por parte dos sócios constitui requisito para que o juiz possa ignorar a autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas;
Teoria maior. A teoria maior, por sua vez, divide-se em:
a) objetiva, para a qual a confusão patrimonial constitui o pressuposto necessário e suficiente
da desconsideração. Basta, para tanto, a constatação da existência de bens de sócio registrados em nome
da sociedade e vice-versa;
b) subjetiva, que não prescinde, todavia, do elemento anímico presente nas hipóteses de des-
vio de finalidade e de fraude . É pressuposto inafastável para a desconsideração o abuso da personalidade
jurídica.

7.1.3.2. Teoria Menor


A teoria menor, que considera o simples prejuízo do credor motivo suficiente para a desconsidera-
ção. Esta última não se preocupa em verificar se houve ou não utilização fraudulenta do princípio da au-
tonomia patrimonial, nem se houve ou não abuso da personalidade. Se a sociedade não possui patrimô-
nio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela.

7.2. Tratamento legal

70 Adaptado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contra-

tos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

120
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Uma das primeiras leis de grande porte a disciplinar o tema foi o CDC, em seu art. 28:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detri-
mento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilí-
cito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada
quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidia-


riamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes


deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de
alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Diferentemente do Código anterior, que era omisso, o CC regula a desconsideração em seu art. 50,
recentemente alterado pela Lei 13.874/19.

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou
pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quan-
do lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas
relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios
da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurí-
dica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios,


caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-


versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor pro-


porcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios


ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput
não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

121
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da


atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Ante às recentes alterações, rememora-se que no regime anterior, os pressupostos para o deferi-
mento da medida eram a caracterização do desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patri-
monial entre os bens da pessoa jurídica e os da pessoa física. Na ocorrência de um desses dois fatos, res-
tava configurado o abuso de personalidade, o que justificava ao magistrado deferir o pedido para descon-
sideração da personalidade jurídica através de um incidente processual, em via direta ou inversa.
O cenário pós Lei 13.874/19 preocupa-se claramente em conceituar e delimitar os requisitos que
podem levar à desconsideração, como um meio de conceder maior segurança jurídica aos sócios ou ad-
ministradores a partir de regras mais claras acerca das hipóteses em que poderão ter seu patrimônio
atingido em litígios civis.
Em resumo, para a desconsideração deve haver:
i) o descumprimento da obrigação:
A “insolvência” é comumente utilizada pela jurisprudência para designar esse requisito, mas há juí-
zes mais ou menos radicais a esse respeito. Em algumas situações, sobretudo nas relações de consumo, a
insolvência não precisa ser provada.
ii) abuso do sócio ou administrador, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão de
patrimônio:
Desvio de finalidade ocorre quanto o ato praticado foge da finalidade prevista no contrato e não se-
ja o caso de aplicar a teoria ultra vires societatis. Ex.: o sócio que possui poderes para a venda de produ-
tos vende outros que não têm assistência técnica no Brasil. Confusão de patrimônio é o caso de Salomon
acima citado.
Com as alterações promovidas pela Lei 13.847/19, em tese a nova norma passaria a estabelecer co-
mo requisito fundamental o elemento doloso ou intencional na prática da lesão ao direito de outrem ou
de atos ilícitos, para que o instituto fosse aplicado.
Em doutrina contrária, Fábio Konder Comparato71, defendia que a desconsideração da pessoa jurí-
dica pode ser aferida objetivamente, dispensando-se o dolo específico do sócio ou do administrador.
A análise da desconsideração deve ser objetiva, pois é impossível se aferir objetivamente qual a in-
tenção do sócio, como no caso da empresa podre.
Nesse sentido, De acordo com a posição majoritária, o encerramento irregular das atividades da
pessoa jurídica não basta para a aplicação da teoria maior - Enunciado n. 282 – IV Jornada de Direito
Civil - e STJ72.

71 O poder de controle da Sociedade Anônima, Ed. Forense.

122
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, fica ainda mais difícil desconsiderar a personalidade com base no atual art. 50, na medida
em que todos os requisitos têm de ser demonstrados, e não somente o descumprimento da obrigação.
Outras leis regulam a desconsideração da personalidade jurídica de forma muito mais favorável à
vítima (consumo, trabalho, meio-ambiente).
O Código Civil, em seu art. 50, adotou a “teoria maior” da desconsideração da pessoa jurídica, na
medida em que não se contenta com a simples insolvência da pessoa jurídica, exigindo prova do cometi-
mento de um ato abusivo. Entretanto, em outros tipos de relação jurídica, como na relação de consumo,
a desconsideração é muito mais facilitada, na medida em que não é necessário provar o cometimento do
ato abusivo, mas apenas o prejuízo sofrido (teoria menor)73.
Finalmente, existe previsão de aplicação da desconsideração também na Lei n. 9.605/98, em seu
art. 4º74.

7.3. Questões especiais referentes à desconsideração da pessoa jurí-


dica

7.3.1. O Incidente de desconsideração da personalidade jurídica: Art. 133/135 CPC


É a intervenção de terceiro que permite à parte ou ao MP trazer ao processo o sócio ou res-
ponsável para responder pela execução de dívida da sociedade.
É considerado intervenção de terceiros, em princípio, porque o sócio, estranho ao processo, não es-
tava no polo da demanda proposta em face da empresa. Assim, o incidente de desconsideração é a forma
pela qual esse terceiro, sócio, passará a integrar no processo em que será desconsiderado a personalidade
jurídica da empresa
Segundo a maioria da doutrina, trata-se de uma ação autônoma declaratória da responsabilidade
patrimonial.
O incidente é cabível em qualquer processo (conhecimento, execução, cumprimento de sentença;
também no JEC*, e é a única intervenção cabível no JEC – artigo 1.062 do CPC). Cabe, também,
em todas as fases.
Assim, de acordo com o art. 134 do Novo CPC, o incidente é cabível em qualquer momento do pro-
cesso, que significa dizer que cabe na fase de conhecimento, na fase de cumprimento de sentença, na fase
de execução de título extrajudicial.

72(STJ, EREsp 1306553/SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em
10/12/2014, DJe 12/12/2014)
73 Acerca do tema, ver o REsp 744.107/SP (caso do shopping de Osasco).
74 Lei n. 9.605/98, art. 4º: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for

obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”.

123
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entretanto, o professor Eduardo Francisco, significa que o incidente cabe no primeiro grau, seja na
fase de conhecimento, seja no cumprimento de sentença; e também nos Tribunais (e aí estamos pensan-
do nos recursos ordinários, ou seja, na instância ordinária75).
O incidente pode ser requerido em todas as fases desde que após a inicial. Ou seja, para ser inter-
venção de terceiro, tem que ser um incidente, isto é, depois da inicial, já no curso do processo.
Entretanto, é possível requerer a desconsideração na inicial, mas não será intervenção de terceiros,
e sim cumulação de pedidos, isto é, verdadeira cumulação sucessiva de ações (que alguns chamam de
eventual).
Nesse caso, a intenção é a condenação dos dois (sócio e empresa), mas não sendo possível, pede-se
a condenação de pelo menos um.
A contestação é bifronte76 em relação ao que está sendo desconsiderado, pois irá dizer que não deve
e que não violou o art. 50 do CC ou o art. 28 do CDC, seguindo o procedimento normal.

7.3.1.1. Procedimento
i. A parte77 ou MP peticiona a desconsideração (descrevendo e demonstrando os requisitos do di-
reito material).
ii. Ao deferir o processamento, o juiz:
a. Suspende o processo (é a única intervenção em que isso é possível)
b. Comunica o distribuidor (para anotar a existência de mais uma ação, e pelo menos mais um su-
jeito no processo)
c. Determina a citação do sócio ou responsável
iii. O sócio ou responsável, citado, terá 15 dias para se manifestar e requerer provas;
iv. Após eventual instrução, haverá decisão (se for no primeiro grau, será uma interlocutória, e cabe
agravo de instrumento; se for no Tribunal, será uma decisão monocrática do relator, e cabe
agravo interno).
v. Acolhido o pedido:
1º) fica reconhecida a responsabilidade patrimonial;
2º) o sócio ou responsável fica mantido no polo passivo, e pode ser executado;
3º) a venda de bens do sócio, após a citação da pessoa jurídica, é fraude à execução (artigo 137, c.c.
artigo 792, parágrafo 3º78).

75 Para desconsiderar precisa discutir fato e prova, e fato e prova só se discute nas instâncias ordinárias
76 Bifronte: ao mesmo tempo impugna a obrigação e o próprio pedido de desconsideração a personalidade ju-
rídica.
77 Lembre-se que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser invocada por uma pessoa jurídica em

seu favor (Enunciado n. 285 – IV Jornada de Direito Civil). O Enunciado é no sentido de que uma pessoa jurídica
pode pleitear a sua própria desconsideração.

124
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A desconsideração pode ser usada em qualquer espécie de pessoa jurídica, por isso, ela pode atingir
o sócio (geralmente aquele com poder de gestão) ou o responsável.
O CPC expressamente permite a desconsideração inversa: quando o devedor é pessoa natural, mas
os bens estão em nome da pessoa jurídica.
Obs.: Coisa julgada: com o advento do Novo CPC, o art. 502 da legislação prevê que “denomina-se
coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita
a recurso”.
Assim, apesar do incidente ser uma decisão interlocutória faz coisa julgada, posto que é decisão de
mérito. É cabível contra esta decisão ação rescisória.
Obs.: Pedido de desconsideração e tutela de urgência.
É plenamente possível que o juiz bloqueie de forma cautelar os bens, a fim de que seja garantida fu-
tura desconsideração da personalidade jurídica, não havendo incompatibilidade na concessão da medida
em tutela de urgência.
Finalmente, é interessante notar que a Lei Anticorrupção admite a desconsideração da personali-
dade jurídica administrativa (Lei n. 12.846/13, art. 147), sem a necessidade de ação judicial79.

7.3.2. Limites
A desconsideração, em respeito à própria causalidade, naturalmente deve atingir apenas o sócio ou
administrador que cometeu o ato abusivo ou dele se beneficiou (Enunciado 7 da 1ª Jornada de Direito
Civil):

Enunciado 7 - Art. 50: Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a


prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorri-
do.

A desconsideração é uma medida sancionatória. Em casos em que é difícil saber o beneficiado pelo
ato, pode ocorrer a inversão do ônus da prova de haver o benefício sido auferido por somente um dos
sócios.
Obs.: Cabe desconsideração de pessoa jurídica sem fins lucrativos (Enunciado n. 284 – IV Jornada
de Direito Civil). Exemplos: associações e fundações.

7.3.3. Desconsideração expansiva, econômica ou “sucessão de empresas”

78 Justifica-se a fixação desse termo a quo pela circunstância de que o sujeito passivo do processo só se inte-

gra a ele por meio da citação. Portanto, só pode fraudar a execução quem dela já faça parte. Antes da citação, o de-
vedor ou responsável não fica imune às consequências da fraude, mas se sujeita ao regime da fraude contra credo-
res e não da fraude à execução. (Humberto Theodoro Júnior).
79 Lei n. 12.846/13, art. 14: “A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com

abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar
confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus adminis-
tradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”.

125
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo leciona Flávio Tartuce a teoria da sucessão de empresas, também denominada de descon-
sideração econômica ou expansiva tem sido tratada como uma evolução da desconsideração da persona-
lidade jurídica.
A desconsideração expansiva é adotada nos casos de abuso da personalidade jurídica especialmen-
te para promover a responsabilização de uma empresa por dívidas de outra comprovando-
se o conluio entre elas em que for patente a ocorrência de fraude, de modo que poderá o ma-
gistrado80 estender as responsabilidades de uma empresa para outra – denominadas empresas sucedida
e sucessora, respectivamente.

7.3.4. Desconsideração indireta, inversa ou invertida (CPC, art. 133, § 2º81)


Antiga criação jurisprudencial82 e doutrinária, a desconsideração inversa é atualmente prevista no
Art. 133, § 6º do CPC, por meio da qual se pretende inversamente, atingir o patrimônio da pessoa jurídi-
ca para alcançar o sócio ou administrador que cometeu o ato abusivo ou fraudulento.
Nas lições de Carlos Roberto Gonçalves, caracteriza-se a desconsideração inversa quando é afasta-
do o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obriga-
ção do sócio, por exemplo, na hipótese de um dos cônjuges, ao adquirir bens de maior valor, registrá-los
em nome de pessoa jurídica sob seu controle para livrá-los da partilha a ser realizada nos autos da sepa-
ração judicial. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurí-
dica pelo devido ao ex-cônjuge do sócio.
A legitimidade para requerer a desconsideração inversa é do prejudicado, que será o ex-cônjuge ou
companheiro, ainda que seja sócia minoritária da empresa. Tem-se entendido na doutrina que é possível
até mesmo a auto-desconsideração, ou seja, a própria pessoa jurídica requer a desconsideração da perso-
nalidade.

80 P. ex. o decidio na 2.ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, Rel. Des. Lino Machado, j.

27.11.2012.
81 CPC, art. 133, § 2º: “Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da persona-

lidade jurídica”.
82 Caracteriza-se ela “pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente ao que

ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de
modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador” - STJ, 3ª T., REsp 1.236.916/RS, Rel.
Min. Nancy Andrighi, ac. 22.10.2013, DJe 28.10.2013

126
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

BENS JURÍDICOS

1. Noções introdutórias
1.1. Terminologias

Inicialmente Flávio Tartuce assevera que nunca houve unanimidade doutrinária na diferenciação
entre coisas e bens.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo,“Bem é tudo que nos agrada”, diferenciava: “Os
bens, especificamente considerados, distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas
são materiais e concretas, enquanto que se reserva para designar imateriais ou abstratos o nome bens, em
sentido estrito”. Assim, para esse doutrinador, os bens seriam gênero e as coisas espécie.
Em sentido contrário, para Silvio Rodrigues coisa seria gênero, e bem seria espécie. Dizia o grande
professor paulista: “Coisa é tudo que existe objetivamente, com exclusão do homem”. Os “bens são coisas
que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico”.
A este autor parece que o conceito de Sílvio Rodrigues é simples e perfeito, servindo como uma lu-
va pelo que consta do atual Código Civil Brasileiro, na sua Parte Geral. Dessa forma, coisa constitui gêne-
ro, e bem a espécie – coisa que proporciona ao homem uma utilidade sendo suscetível de apropriação. To-
dos os bens são coisas; porém nem todas as coisas são bens. As diferenças podem ser visualizadas no es-
quema a seguir:
Caio Mario Silvio Rodrigues
Bem Gênero: tudo que nos Espécie: uma coisa
agrada. com interesse
econômico e/ou
jurídico.
Coisa Espécie: é um bem Gênero: é tudo que
corpóreo. não for humano.
Segundo Flávio Tartuce a Parte Geral do Código Civil de 2002 adotou a diferenciação de Silvio Ro-
drigues.
Outra terminologia importante a se esclarecer é a noção de patrimônio, que nas palavra de Flávio
Tartuce é a soma dos bens corpóreos e incoróporeos da pessoa.
Carlos Roberto Gonçalves traduz a ideia de que o patrimônio é o complexo das relações jurídicas de
uma pessoa que tiver valor econômico.
Assim, o patrimônio restringe-se, assim, aos bens avaliáveis em dinheiro. Nele não se incluem
as qualidades pessoais, como a capacidade física ou técnica, o conhecimento ou a força de trabalho, por-
que são considerados simples fatores de obtenção de receitas quando utilizados para esses fins, malgrado
a lesão a esses bens possa acarretar a devida reparação. Igualmente não integram o patrimônio as rela-

127
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ções afetivas da pessoa, os direitos personalíssimos, familiares e públicos não economicamente apreciá-
veis, denominados direitos não patrimoniais.
Atualmente a moderna doutrina discute a Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, de-
fendida pelo Ministro Luiz Edson Fachin.
Modernamente percebeu-se que o rol dos direitos da personalidade ou direitos existenciais tem re-
cebido um tratamento específico em dispositivos legais que regulamentam direitos eminentemente pa-
trimoniais. Nesse ponto de intersecção, que coloca os direitos da personalidade e os direitos patrimoniais
no mesmo plano, é que surge a tese do patrimônio mínimo, que aponta a tendência de repersonali-
zação do Direito Civil. Assim, a pessoa passa a ser o centro do Direito Privado, em detrimento do
patrimônio, o que tem causado uma despatrimonialização do Direito Civil.
Nesse sentido, o direito civil moderno caminha no sentido de assegurar à pessoa um mínimo
de direitos patrimoniais para que viva com dignidade.
Como exemplo claro de aplicação da teoria cita-se o enunciado da Súmula n. 364 STJ:

“O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a


pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

1.2. Conceito de bem jurídico

Bem jurídico é toda utilidade, física ou ideal, que seja objeto de um direito subjetivo. Um aparelho
de celular, a honra do sujeito, por esse conceito são considerados bens jurídicos.
Durante muito tempo, a doutrina brasileira divergiu, e a polêmica ainda é mantida, no que se refe-
re à distinção entre bem e coisa83. Existem posições para todos os lados possíveis. Pablo se posicionará,
neste tópico, observando o sistema do CC (Orlando Gomes).
Razoável é a teoria no sentido de que a noção de bem é genérica, compreendendo o conceito de coi-
sa que, na linha do direito alemão (§ 90 do BGB), restringe-se às utilidades corpóreas ou materiais:

Section 90 - Concept of the thing

Only corporeal objects are things as defined by law.

Esse raciocínio faz mais sentido a Pablo, mas é questão filosófica. “Você pega na coisa”. A camiseta,
a casa, a cadeira, o notebook são coisas. A noção de bens envolve utilidades ideais. Ex.: a honra, a vida
etc.
O que se entende por patrimônio jurídico?
Para os clássicos, patrimônio traduziria principalmente a representação econômica da pessoa (Cló-
vis Beviláqua). Lembra, inclusive, o mesmo autor, que cada pessoa deve ser titular de um patrimônio

83 Ver Orlando Gomes, Maria Helena Diniz, Silvio Venosa e Barros Monteiro.

128
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

único, ainda que os bens tenham origens diversas. Bevilaqua quer evitar dizer que uma pessoa possua
um, três, dez “patrimônios”.
Esse conceito clássico não mudou. Não está errado. Todavia, a ele a doutrina moderna deu uma
acepção mais atual. Complementando esta noção clássica, autores modernos, a exemplo de Carlos Alber-
to Bittar e Rodolfo Pamplona Filho, reconhecem também o denominado patrimônio moral da pessoa,
vale dizer, o seu conjunto de direitos da personalidade (vida, imagem, vida privada, intimidade etc.)
Vale lembrar que, anteriormente, já foi estudado o conceito de “patrimônio mínimo” (Luiz Edson
Fachin). Numa perspectiva de respeito à dignidade da pessoa humana, as leis devem resguardar um mí-
nimo de patrimônio à pessoa, para que ela tenha vida digna (ex.: Lei do Bem de Família).
O que se entende por patrimônio de afetação?
Entre os anos 1995 e 2002, várias construtoras quebraram. Atribuiu-se essa quebra geral ao “efeito
pedalada”: a construtora ia vendendo empreendimentos para se capitalizar e adiar sua quebra. Em mea-
dos de 2004, o governo anunciou um pacote e criou o chamado patrimônio de afetação: um sistema de
garantia a que a construtora pode aderir e, se o fizer, parte do patrimônio que ela tem servirá para a ga-
rantia daquela obra. O patrimônio se autonomiza, com administração realizada por sociedade criada es-
pecificamente para tanto (SPE – Sociedade de Propósito Específico). Possui, inclusive, CNPJ próprio.
Consagrado pela Lei 10.931/2004, o patrimônio de afetação visa a imprimir maior segurança nas
relações imobiliárias, destacando um patrimônio específico para a garantia da conclusão do empreendi-
mento. Em outras palavras, é um regime especial de garantia, nos termos da lei específica, que constitui
um patrimônio em separado, autônomo, para a garantia de determinada obra. Se a construtora quebrar,
com o patrimônio de afetação o empreendimento vai até o final.

2. Classificação dos bens jurídicos84


2.1. Quanto a tangibilidade

a) Bens corpóreos, materiais ou tangíveis: são aqueles bens que possuem existência corpórea po-
dendo ser tocados.
b) Bens incorpóreos, imateriais ou intangíveis: são aqueles com existência abstrata e que não po-
dem ser tocados pela pessoa humana.
Podem ser citados como sendo bens incorpóreos os direitos de autor, a propriedade industrial, o
fundo empresarial, a hipoteca, o penhor, a anticrese, entre outros.

84 Tópico adaptado de Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver,

atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.

129
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: Direitos, como bens incorpóreos que são, podem ser objeto de negócios jurídicos. Assim, a
transmissão onerosa pode se dar através de compra e venda para bens corpóreos e cessão de direitos
para bens incorpóreos.

2.2. Quanto a mobilidade

2.2.1. Bens imóveis


Bens imóveis são aqueles que não podem ser removidos ou transportados porque a remoção ou o
transporte implica em destruição ou deterioração.
Segundo a doutrina clássica xistem quatro modalidades de bens imóveis:
a) Bens imóveis por natureza (art. 79 do CC1): a imobilidade decorre de sua essência. Exemplo:
uma árvore que nasceu sozinha.
b) Bens imóveis por acessão85 física industrial (art. 7986 do CC): eram móveis, mas foram imobili-
zados por uma atuação humana concreta e efetiva (artificial). Exemplos: construções (cimento
que se transforma em uma casa) e plantações.
Obs.: Nos termos do art. 81 do CC não perdem o caráter de imóveis as edificações que, separadas
do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local e os materiais provisoriamen-
te separados de um prédio, para nele se reempregarem (p. ex. cobertura de um galpão que foi inteira reti-
rada, com o fim de manutenção, e depois é recolocada).
c) Bens imóveis por acessão física intelectual: são móveis incorporados a um imóvel pela vontade
do proprietário. Exemplos: equipamentos do estúdio e trator na fazenda.
Questão n. 1: a categoria persiste no Código Civil de 2002?
Posição minoritária: a categoria foi extinta conforme enunciado n. 11 da I Jornada de Direito Ci-
vil87.
Posição majoritária na doutrina: sim - o instituto está tratado como pertenças (arts. 93 e 94 do CC).
O tema será analisado a seguir.
Bens imóveis por determinação legal: são bens imóveis simplesmente porque a lei determina que
eles tenham natureza imobiliária.
Encontram-se enunciados pela norma jurídica. Art. 80 do CC:

Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

85Acessão significa incorporação.


86CC, art. 79: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”.
87 “Não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens imóveis por acessão intelectual, não obstante

a expressão 'tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente'", constante da parte final do art. 79 do Código
Civil”.

130
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

II - o direito à sucessão aberta.

i. Os direitos reais sobre imóveis. Exemplo: hipoteca que recai sobre uma casa.
A lei considera imóveis os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram para cercar tais
direitos (ex.: hipoteca) de formalismo. Ex.: a propriedade e a hipoteca devem ser registradas no Cartório
de Registro de Imóveis.
ii. O direito à sucessão aberta (herança). Obs.: a herança é imóvel mesmo se composta só por
bens móveis.
O direito à herança também tem natureza imobiliária, mesmo que ela seja composta de bens mó-
veis ou semoventes (ex.: carro, cavalo). A razão é a mesma da anterior: cercar o direito à herança de for-
malismos. Por isso que a cessão do direito à herança demanda a lavratura de uma escritura pública. Mui-
tos autores chegam a dizer que é necessária a outorga uxória. Só o registro que é feito ao final do inventá-
rio.
Ex.: “A” falece. “B”, “C” e “D” são herdeiros. “D” decide, no curso do inventário, ceder sua parcela a
“E”. Em virtude da natureza imobiliária, existem formalismos para tal cessão (art. 1.793 do CC):

Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro, pode
ser objeto de cessão por escritura pública.

2.2.2. Bens móveis


Os bens móveis são aqueles que podem ser transportado por força própria ou de terceiro, sem a de-
terioração, destruição e alteração da substância ou da destinação econômico-social.
A doutrina aponta três modalidades de bens móveis:
a) Bens móveis por natureza ou essência: são os bens que podem ser transportados sem qualquer
dano, por força própria ou alheia. Subdividem-se em:
i. Semoventes — São os suscetíveis de movimento próprio, como os animais. Movem-se de um local
para outro por força própria. Recebem o mesmo tratamento jurídico dispensado aos bens móveis propri-
amente ditos. Por essa razão, pouco ou nenhum interesse prático há em distingui-los.
ii. Móveis propriamente ditos — São os que admitem remoção por força alheia, sem dano, como os
objetos inanimados, não imobilizados por sua destinação econômico-social.
Obs.: Conforme o art. 84 do CC, os materiais destinados a uma construção, enquanto não empre-
gados, conservam a sua mobilidade sendo, por isso, denominados bens móveis propriamente ditos88.
b) Bens móveis por antecipação: são os bens que eram imóveis, mas que foram mobilizados por
uma atividade humana concreta e efetiva.

88 Os tijolos da casa, enquanto não empregados na construção, continuam sendo considerados móveis. Em-

pregados na casa, eles passam a fazer parte do imóvel. Demolida a casa, os escombros readquirem a natureza de
bens móveis.

131
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo típico é a colheita de uma plantação. Há uma situação oposta à imobilização por acessão
física industrial. A segunda parte do art. 84 do CC prevê que, no caso de demolição, os bens imóveis po-
dem ser mobilizados, ocorrendo a antecipação.
Obs.: Os navios e as aeronaves são bens móveis propriamente ditos. Podem ser imobilizados, no
entanto, somente para fins de hipoteca, que é direito real de garantia sobre imóveis (CC, art. 1.473, VI e
VII; Código Brasileiro de Aeronáutica — Lei n. 7.565, de 19.12.1986, art. 138). Nesse contexto, justamente
porque pode recair também sobre navios e aviões, pelo seu caráter acessório e pelo princípio de que o
acessório deve seguir o principal, a hipoteca, direito real de garantia, pode ser bem móvel ou imóvel.
c) Bens móveis por determinação legal: situações em que a lei determina que o bem é móvel, co-
mo a previsão que consta do art. 83 do CC89, envolvendo os direitos reais e as ações respectivas
que recaiam sobre bens móveis, caso do penhor, em regra; as energias com valor econômico,
como a energia elétrica; os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações, caso dos
direitos autorais, nos termos do art. 3.º da Lei 9.610/1998.
Obs.: O sêmen do boi, nos termos do art. 83, I, do CC, é considerado uma energia biológica com va-
lor econômico.

2.3. Quanto a fungibilidade

a) Bens infungíveis – São aqueles que não podem ser substituídos por outros da mesma es-
pécie quantidade e qualidade.
São também denominados bens personalizados ou individualizados, sendo que os bens imóveis são
sempre infungíveis. Como bens móveis infungíveis podem se citados as obras de arte únicas e os animais
de raça identificáveis. Os automóveis também são bens móveis infungíveis por serem bens complexos e
terem número de identificação (chassi).
No caso de empréstimo de bens infungíveis há contrato de comodato.
b) Bens fungíveis – Nos termos do art. 85 do CC, fungíveis são os bens que podem ser substi-
tuídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
Todos os bens imóveis são personalizados, eis que possuem registro, daí serem infungíveis. Já os
bens móveis são, na maior parte das vezes, bens fungíveis.
O empréstimo de bens fungíveis é o mútuo, caso do empréstimo de dinheiro (mútuo feneratício).

2.4. Quanto à consuntibilidade ou ao consumo

Inicialmente é de se notar que existem duas modalidades de consuntibilidade, de formar que se o


consumo do bem implica destruição imediata, a consuntibilidade é física, ou de fato ou ainda, fática. De

89 Art. 83. Consideram-se MÓVEIS para os efeitos legais: I– as energias que tenham valor econômico; II-os

direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III – os direitos pessoais de caráter patrimonial e
respectivas ações.

132
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

outro lado, se o bem pode ser ou não objeto de consumo, ou seja, se pode ser alienado, a consuntibilida é
jurídica ou de direito.
Segundo Flávio Tartuce os critérios são totalmente distintos, sendo perfeitamente possível que um
bem seja consumível e inconsumível ao mesmo tempo.
a) Bens consumíveis – São bens móveis, cujo uso importa na destruição imediata da própria
coi (consuntibilidade física), bem como aqueles destinados à alienação (consuntibilidade jurídica) – art.
86 do CC.
b) Bens inconsumíveis – São aqueles que proporcionam reiteradas utilizações, permitindo
que s retire a sua utilidade, sem deterioração ou destruição imediata (inconsuntibilidade física), bem
como aqueles que são inalienáveis (inconsuntibilidade jurídica).
Obs.: apesar de muito próximas, a presente classificação não se confunde com a anterior, de modo
que a consuntibilidade , diz respeito ao uso a que o bem se destina, não se confunde com a fungibilidade ,
que é o resultado da comparação entre duas coisas que se consideram equivalentes. Em regra, o bem
fungível equivale a um bem consumível faticamente e o bem infungível equivale a um bem inconsumível
faticamente, mas não necessariamente. Exemplo: última garrafa de uma bebida famosa: consumível fati-
camente e infungível.

2.4.1. Critério do CDC


O CDC em seu Art. 2690 adota um critério classificatório que não integra o sistema da Parte Geral
do CC. Em seu art. 26, reconhece a existência de bens duráveis e não duráveis, especialmente para se
exercer o direito potestativo de reclamar por vício em 90 ou 30 dias
Detalhe: formalizada a reclamação no PROCON, enquanto ela é processada o prazo está correndo.
Assim juntamente com a “queixa” no PROCON, deve ser também ajuizada ação no JEC.

2.5. Quanto à divisibilidade

a) Bens divisíveis – São os que podem se partir em porções reais e distintas, formando cada
qu um todo perfeito.
O art. 87, preconiza que os bens divisíveis “São os que se podem fracionar sem alteração na sua
substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”.
Exemplifica-se com sacas de cereais, que podem ser divididas sem qualquer destruição. Ademais,
prevê o art. 88 do CC que, a qualquer momento, os bens naturalmente divisíveis podem se tornar indivi-
síveis, por vontade das partes (autonomia privada) ou por imposição legal.
Os bens divisíveis geram obrigações divisíveis, nos termos do art. 257 do CC.

90 Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tra-

tando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de
serviço e de produtos duráveis. (...)

133
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

b) Bens indivisíveis – São os bens que não podem ser partilhados, pois deixariam de formar
um todo perfeito, acarretando a sua divisão uma desvalorização ou perda das qualidades
essenciais desse todo.
A indivisibilidade pode decorrer da natureza do bem, de imposição legal ou da vontade do seu pro-
prietário, conforme exemplos a seguir:
i. Indivisibilidade natural: caso de uma casa térrea, bem imóvel, cuja divisão gera diminuição
do seu valor. Outro exemplo clássico utilizado é o do relógio de pulso de valor considerável.
ii. Indivisibilidade legal: caso da herança, que é indivisível até a partilha, por força do princí-
pio da saisine, nos termos dos arts. 1.784 e 1.791, parágrafo único, do CC. Também podem
ser citadas a hipoteca e as servidões, que são direitos indivisíveis, em regra. Quanto à hipo-
teca, a sua divisibilidade ou fracionamento excepcional está previsto no art. 1.488 do
CC/2002, para os casos de instituição de condomínio ou loteamento do bem principal. Tra-
ta-se de novidade instituída pelo Código de 2002.
iii. Indivisibilidade convencional: se dois proprietários de um boi convencionarem que o ani-
mal será utilizado para a reprodução, o que retira a possibilidade de sua divisão (touro re-
produtor).
Os bens indivisíveis geram obrigações indivisíveis, conforme o art. 258 do CC.

2.6. Quanto à individualidade

a) Bens singulares ou individuais – São bens singulares aqueles que, embora reunidos, pos-
sam ser considerados de per si, independentemente dos demais (art. 89 do CC).
Como bem apontam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, os bens singulares “podem
se simples, quando as suas partes componentes encontram-se ligadas naturalmente (uma árvore, um
cavalo), ou compostos, quando a coesão de seus componentes decorre do engenho humano (um avião,
um relógio)”.Como se nota, para a sua caracterização, deve-se levar em conta o bem em relação a si
mesmo. Como exemplos, ilustrem-se um livro, um boi, uma casa.
b) Bens coletivos ou universais – São os bens que se encontram agregados em um todo. Os
bens coletivos são constituídos por várias coisas singulares, consideradas em conjunto e formando um
todo individualizado. Os bens universais podem decorrer de uma união fática ou jurídica. Vejamos:
i. Universalidade de fato – é o conjunto de bens singulares, corpóreos e homogêneos, liga en-
tre si pela vontade humana e que tenham utilização unitária ou homogênea, sendo possível
que tais bens sejam objeto de relações jurídicas próprias.
Nesse sentido, enuncia o art. 90 do CC que “Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens
singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária. Parágrafo único. Os bens que
formam essa universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias”. Para exemplificar, basta

134
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

lembrar algumas palavras utilizadas no gênero coletivo, a saber: alcateia (lobos), manada (elefantes),
biblioteca (livros), pinacoteca (quadros), boiada (bois) e assim sucessivamente.
ii. Universalidade de direito ou jurídica – é o conjunto de bens singulares, tangíveis ou não,
unidas por uma ficção legal, com o intuito de produzir certos efeitos, dá unidade individua-
lizada.
Pelo teor do art. 91 do CC há um complexo de relações jurídicas de uma pessoa, dotadas de valor
econômico. São exemplos: o patrimônio, a herança de determinada pessoa, o espólio, a massa falida,
entre outros.

2.7. Quanto à dependência (bens reciprocamente considerados91)

2.7.1. Bens principais (ou independentes)


São os bens que existem de maneira autônoma e independente, de forma concreta ou abstrata, con-
forme o art. 92 do CC. Exercem função ou finalidade não dependente de qualquer outro objeto.

2.7.2. Bens acessórios (ou dependentes)


São os bens cuja existência e finalidade dependem de um outro bem, denominado bem principal.
Segundo o princípio da gravitação jurídica o bem acessório segue o principal, salvo disposição es-
pecial em contrário (acessorium sequeatur principale).
Dentre os bens acessórios, há os frutos, os produtos, as pertenças, as partes integrantes e as benfei-
torias.

2.7.2.1. Frutos

Fruto é a utilidade que periodicamente gerada pelo bem principal, cuja percepção não diminui a
sua substância, como as laranjas da laranjeira, os bezerros da vaca, as manufaturas geradas pela fábrica.
Segundo a clássica lição de Beviláqua, os frutos podem ser divididos quanto92:
a.1) Origem:

i. Frutos naturais: quando se desenvolvem e se renovam periodicamente pela força


orgânica da coisa, mesmo que o homem interfira neste processo para melhorar a quali-
dade do fruto. Ex.: cria de animais.
ii. Frutos industriais: decorrem de uma atividade humana. Ex.: material produzido
numa fábrica.
iii. Frutos civis: decorrem de uma relação jurídica ou econômica, também denomina-
dos de rendimentos.
Obs.: A título de complementação, o que são juros no pé? Trata-se de expressão consagrada pelo
próprio STJ para caracterizar a indevida cobrança de juros compensatórios por parte da construtora ou

91 Segundo essa classificação, o bem é considerado em relação a outro bem, se é dependente ou independente.
92 Retirado de CS Civil Parte Geral – 2019.01

135
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

incorporadora antes da entrega das chaves do imóvel (REsp 670.117/PB)93. Esse tipo de juro no pé é abu-
sivo, segundo o STJ.
a.2) Estado:
i. Pendentes: ligados à coisa, não foram colhidos;
ii. Percebidos: já colhidos e separados;
iii. Estantes: colhidos e armazenados;
iv. Percipiendos: frutos que deviam ter sido colhidos, mas não foram.
v. Consumidos: já foram colhidos e consumidos ex.: maças colhidas e vendidas.

2.7.2.2. Produtos
Produtos são utilidades não renováveis, cuja percepção esgota a coisa principal, como as pedras
de uma pedreira e o petróleo de um poço.

2.7.2.3. Partes integrantes


Partes integrantes: São acessórios que, unidos ao principal, formam com ele um todo, sendo
desprovidas de existência material própria, embora mantenham a sua identidade. São acessórios que ao
se incorporam a uma coisa composta, completam-na, formando um todo e tornando possível a sua utili-
zação.
Exemplo: lâmpada de um lustre, janelas, portas e telhados de uma casa. As partes integrantes ga-
nham funcionalidade ao se juntarem com outro bem, por isso são analisadas tendo outro bem como pa-
râmetro.

2.7.2.4. Pertenças

Pertenças: São bens acessórios que não constituindo partes integrante do bem principal, se desti-
nam de modo duradouro ao uso, serviço ou embelezamento de outro (art. 93 do CC)

Art. 93. São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo
duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro.

Ou seja, uma pertença se encaixa na coisa principal para melhor servi-la. Ex.: aparelho de ar condi-
cionado (pode ser retirado e colocado em outra casa). Os aparelhos de ar condicionado integrados com a
construção (com tubulação etc.), por sua vez, integram a coisa, não sendo considerados pertenças. As
escadas dos apartamentos, acopladas do lado de fora (prédios americanos) são pertenças. Os rádios reti-
ráveis do carro são pertenças. Esses mais atuais, chumbados, não são pertenças.

93 Ver editorial nº 11, no site de Pablo.

136
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, apesar de acessórios conservam a sua individualidade e autonomia, tendo apenas subordi-
nação econômico-jurídica com o bem principal, de modo que não incide sobre as pertenças o principio da
gravitação jurídica, conforme já deciciu o STJ94.
Segundo Maria Helena Diniz, se a pertença for essencial ao principal seguirá este em atenção ao
princípio supra citado, conforme preconiza o Art. 94 CC95.
O que são bens imóveis por acessão intelectual? Acessão, em termos linguísticos, significa união de
uma coisa à outra. Por isso, em direitos reais, a acessão é um modo de aquisição da propriedade: quando
se une uma coisa à outra, adquire-se a propriedade da acessória. Intelectual aqui, tem o sentido de inten-
cional, que vem do homem.
O CC/16 era expresso ao tratar dessa categoria. Era algo muito óbvio. Bem imóvel por acessão inte-
lectual seria aquele intencionalmente integrado ao solo para melhor servi-lo. Ex.: maquinário agrícola,
escada de incêndio empregados na fazenda.
Como já visto acima, o Enunciado 11 da Primeira Jornada de Direito Civil96 entende haver sido ba-
nida a categoria do imóvel por acessão intelectual, aquele bem que intencionalmente o proprietário ou
possuidor emprega no solo ou na construção. Parte da doutrina (Tartuce, Simão, Pablo) discorda de tal
enunciado. De fato, observando-se bem, a própria noção de pertença traduz a ideia que se pretende afas-
tar no Enunciado.

2.7.2.5. Benfeitorias
Benfeitoria é toda obra realizada pelo homem na estrutura de uma coisa com propósito de con-
servá-la (necessária), melhorá-la (útil) ou proporcionar deleite ou prazer (voluptuária):

Art. 96. As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias.

§ 1o São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem,
ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor.

§ 2o São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem.

§ 3o São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.

Art. 97. Não se consideram benfeitorias os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos ao bem

94 “Em havendo adaptação de veículo, feita posteriormente à celebração de alienação fiduciária em garantia
do bem, com a introdução de aparelhos para direção por deficiente físico, o devedor fiduciante tem o direito de
retirá-los, quando houver o descumprimento do pacto e a consequente busca e apreensão do principal” (REsp
1305183/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Lui Felipe Salomão, j. 18.10.2016, DJe 21.11.2016).
95 CC, art. 94: “Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo

se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso”.


96 Enunciado nº 11 - Art. 79: Não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens imóveis por aces-
são intelectual, não obstante a expressão “tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”, constante da
parte final do art. 79 do Código Civil.

137
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor.

Toda benfeitoria é artificial, realizada pelo homem. Conserto da viga principal de sustentação do
telhado é exemplo de benfeitoria necessária. Ampliação do vão de entrada para melhorar a entrada é
benfeitoria útil. Elaboração de uma escultura no quintal é benfeitoria voluptuária.
Na prática, não é fácil a distinção entre benfeitoria e acessão artificial (construções). Todavia, é im-
portante pontuar que, tecnicamente, uma acessão artificial (construção) não é uma simples benfeitoria,
na medida em que aumenta o volume da coisa principal e tem regramento legal específico (arts. 1.253 e
seguintes do CC).
A benfeitoria é uma obra que o homem realiza na estrutura da coisa, aproveitando a estrutura da
própria coisa. A construção aumenta o volume da coisa principal, razão pela qual é tratada como modo
de aquisição da propriedade imobiliária. O hábito brasileiro de “bater uma laje”, levantando um segundo
andar, é uma acessão, não benfeitoria.
Acessão, como visto, é o modo de adquirir propriedade que aumenta a estrutura da coisa principal.
O mais importante é pontuar que uma construção aumenta o volume da coisa principal, aumentando a
própria propriedade, diferentemente da benfeitoria, que é uma simples reforma na própria estrutura da
coisa.
Na prática, todavia, isso não é simples: piscina é benfeitoria ou acessão? Em geral, trata-se de ben-
feitoria. Isso porque ela é uma obra que aproveita a estrutura do quintal (por exemplo, com a impermea-
bilização do quintal). Trata-se da típica piscina voluptuária. Cuidado, entretanto, pois, segundo Pablo,
num colégio a piscina pode ser considerada benfeitoria útil e, numa clinica de hidroterapia, necessária.
Já uma piscina extremamente suntuosa, que aumenta o volume da coisa principal, pode chegar a ser
considerada uma construção.
Um campinho de futebol feito aparando-se a grama e colocando-se duas traves de madeira é ben-
feitoria voluptuária. Já o sujeito que constrói um “estádio de futebol” no fundo da casa faz uma constru-
ção propriamente dita, que deverá ser inclusive averbada no Registro de Imóveis.

2.8. Quanto ao titular do domínio

a) Bens particulares ou privados – São os que pertencem às pessoas físicas ou jurídicas de


Direito privado, atendendo aos interesses dos seus proprietários. Nos termos do art. 98 do CC, que fez
trabalho de exclusão, são bens privados aqueles que não são públicos.
b) Bens públicos ou do Estado – São os que pertencem a uma entidade de direito público in-
tern como no caso da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, entre outros (art. 98 do CC) N a IV
Jornada de Direito Civil, concluiu-se que o rol constante do art. 98 do CC é meramente exemplificativo
(numerus apertus) e não taxativo (numerus clausus).
Nesse sentido, prevê o Enunciado n. 287 do CJF/STJ que “O critério da classificação de ben indi-
cado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classifi-

138
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cado como tal o bem pertencente à pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de
serviços públicos”. Nos termos do art. 99 do CC, os bens públicos podem ser assim classificados:
i. Bens de uso geral ou comum do povo (art. 99, I, do CC) – São os bens destinados à utilização
do público em geral, sem necessidade de permissão especial, caso das praças, jardins, ruas,
estradas, mares, rios, praias, golfos, entre outros.
Os bens de uso geral do povo não perdem a característica de uso comum se o Estado regulamentar
sua utilização de maneira onerosa.
ii. Bens de uso especial (art. 99, II, do CC) – São os edifícios e terrenos utilizados pel próprio
Estado para a execução de serviço público especial, havendo uma destinação especial, deno-
minada afetação.
São bens de uso especial os prédios e as repartições públicas.
iii. Bens dominicais ou dominiais (art. 99, III, do CC) – São os bens públicos que constitue pa-
trimônio disponível e alienável da pessoa jurídica de Direito Público, abrangendo tanto mó-
veis quanto imóveis.
São exemplos de bens dominicais os terrenos de marinha, as terras devolutas, as estradas de ferro,
as ilhas formadas em rios navegáveis, os sítios arqueológicos, as jazidas de minerais com interesse públi-
co, o mar territorial, entre outros.
Obs. Imporantes:
Os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial são inalienáveis, salvo desafetação, nos
termos do Art. 100.
Os bens dominicais são alienáveis observadas as exigências da lei, e por isso consumíveis juridica-
mente, de acordo com Art. 101 do CC.
Qualquer bem público é insucetível de prescrição aquisitiva, ou seja, não podem ser objeto de
usucapião, conforme CC, art. 102 e CF, arts. 183 e 191.

2.9. Res nullius e res deperdita

Res nullius é a coisa de ninguém. É aquela coisa fora do comércio jurídico (ex.: uma pedrinha), ou a
coisa abandonada (res derelictae). Para Pablo, res derelictae é espécie de res nullius.
Diferentemente, a res deperdita é aquela coisa perdida que se presume ser, ainda, de interesse do
proprietário. Quando se encontra a res deperdita, deve-se comparecer à autoridade competente e entre-
gá-la, sob pena de crime de apropriação indébita.
“Achádego” nada mais é que o direito de recompensa da pessoa que acha a coisa perdida.

139
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3. Bem de Família
3.1. Referencial histórico

O referencial histórico mais importante do bem de família é o homestead act, lei texana de 26 de
janeiro de 1839. Ainda que haja referenciais no direito romano (intocabilidade do domus, um santuário),
sem dúvida o mais importante para concurso é o homestead act. Entre 1837 e 1839, nos EUA, 33 mil fa-
lências aconteceram. 939 bancos fecharam. O governo texano, para incentivar a economia, baixou o ato,
através do qual considerava a pequena propriedade urbana impenhorável por dívida.

3.2. Espécies de bem de família

De acordo com o direito positivo brasileiro, podemos reconhecer duas espécies de bem de família:
i) bem de família voluntário (arts. 1711 e seguintes, do CC); e ii) bem de família legal (Lei 8.009/1990).

3.2.1. Bem de família voluntário


O bem de família voluntário é aquele instituído por ato de vontade do casal, da entidade familiar ou
de terceiro, mediante escritura pública registrada no Cartório de Imóveis (art. 167, I, 1 da LRP):

Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.

I - o registro:

1) da instituição de bem de família;

O bem de família voluntário nasce da autonomia privada, uma vez que o seu instituidor deverá vo-
luntariamente criá-lo mediante registro no Cartório de Imóveis. Trata-se de modalidade raríssima. Sem
dúvida, até sobre o prisma social, o bem de família legal é o mais importante.
O bem de família voluntário gera dois efeitos: i) impenhorabilidade limitada; e ii) inalienabilidade
relativa do imóvel.
Obs.: no REsp 1.161.300, o STJ permitiu a averbação de ação civil pública no registro do empreen-
dimento, para que os eventuais moradores saibam do ajuizamento da ação.
O imóvel voluntariamente instituído como bem de família torna-se impenhorável por dívidas futu-
ras. Todavia, nos termos do art. 1.715 do CC, essa impenhorabilidade é limitada, pois as dívidas devem
ser posteriores e ela não incide sobre tributos relativos ao imóvel ou despesas de condomínio:

Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo
as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.

Parágrafo único. No caso de execução pelas dívidas referidas neste artigo, o saldo existente será
aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da dívida pública, para sustento
familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz.

140
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Outro efeito da instituição voluntária do bem de família é a inalienabilidade: em regra, ele não po-
de ser vendido. Essa inalienabilidade, contudo, é relativa, dependendo do consentimento dos interessa-
dos. Se houver incapazes, deve haver um procedimento judicial para a alienação, com a participação do
MP (art. 1717 do CC). O bem de família voluntário engessa, como regra, o imóvel.

Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter
destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessa-
dos e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.

O art. 1.720 do CC trata da administração e os arts. 1.721 e 1.722 da extinção do bem de família vo-
luntário:

Art. 1.720. Salvo disposição em contrário do ato de instituição, a administração do bem de famí-
lia compete a ambos os cônjuges, resolvendo o juiz em caso de divergência.

Parágrafo único. Com o falecimento de ambos os cônjuges, a administração passará ao filho


mais velho, se for maior, e, do contrário, a seu tutor.

Art. 1.721. A dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.

Parágrafo único. Dissolvida a sociedade conjugal pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente
poderá pedir a extinção do bem de família, se for o único bem do casal.

Art. 1.722. Extingue-se, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os cônjuges e a
maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela.

A grande inovação no tratamento do bem de família voluntário encontra-se nos arts. 1711 e 1712,
que consagram duas características marcantes: i) o bem de família voluntário não poderá ultrapassar o
valor de 1/3 do patrimônio líquido de seus instituidores; e ii) valores mobiliários (renda) também podem
ser afetados para a constituição deste tipo de bem de família:

Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento,
destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um ter-
ço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenho-
rabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.

Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doa-
ção, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou
da entidade familiar beneficiada.

A restrição de 1/3 do patrimônio serve para evitar fraudes (blindagem do patrimônio para causar
prejuízo na praça). Essa regra, por outro lado, gera certa dúvida: como o oficial de cartório saberá que o
valor do bem não ultrapassa 1/3 do patrimônio líquido? Para Pablo, a pessoa não tem a obrigação de le-

141
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

var declaração de imposto de renda ao Cartório, de modo que a única solução seria que, na hora da insti-
tuição, se fizesse uma declaração, sob as penas da lei, de que o valor do bem não ultrapassa 1/3 do patri-
mônio do instituidor. Caso minta, o sujeito responderá civil e criminalmente pela declaração falsa.
O terceiro pode instituir bem de família em testamento. Ex.: um tio deixa para o sobrinho um imó-
vel. Aceito o legado, institui-se um bem de família voluntário. Ainda assim, deverá respeitar a regra de
1/3 do patrimônio líquido dos instituidores.
O art. 1.712 do CC permite que valores mobiliários sejam voluntariamente instituídos como bens de
família, desde que tais rendas conservem o imóvel considerado bem de família:

Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas perten-
ças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valo-
res mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Ex.: instituído em cartório determinado imóvel como bem de família, no ato da escritura pode-se
afetar rendas, como a de um investimento de R$ 15.000,00, que servirá para a conservação do próprio
imóvel. Assim, serão constituídos não somente o imóvel como eventual poupança como bens de família.
Esta hipótese é bastante vulnerável a fraudes.
Vale lembrar a especial hipótese, objeto de firme jurisprudência do STJ, aplicada principalmente
para o bem de família legal, na qual, por razão de ordem pública, entende-se que renda proveniente de
imóvel locado também é impenhorável (REsp 439.920/SP e Ag Rg no REsp 975.858/SP).
Essa hipótese não se confunde com aquela em que a renda é afetada. Aqui, a pessoa deixa seu imó-
vel e vai morar com parentes, para que o aluguel constitua renda a ser usada pela família. Indiretamente,
a casa fica protegida.
Lembra Silvio Rodrigues que o bem de família voluntário não alcançou maior sucesso no Brasil,
mesma linha de raciocínio seguida por Álvaro Villaça Azevedo, para quem não deveria o Estado transferir
ao particular um encargo de tamanho realce. Resguardar o bem de família do cidadão é resguardar o mí-
nimo existencial (Alexy), o patrimônio mínimo. Além disso, há a burocracia, taxas, emolumentos do Car-
tório, que acabam por desestimular a figura.

3.2.2. Bem de família legal


Ao lado do bem de família voluntário, convive o denominado bem de família legal, regulado pela
Lei 8.009/1990, que consagrou um sistema normativo inspirado na preservação do patrimônio mínimo,
segundo Luiz Edson Fachin. Este tipo de bem de família deriva diretamente da própria lei, consagrando
uma impenhorabilidade legal limitada, que independe de instituição voluntária e registro cartorário.
Essa lei, da década de 90, institui o bem de família derivado da própria lei e sem restrições à alie-
nabilidade. A casa em que o indivíduo mora é bem de família, independentemente de inscrição voluntá-
ria em cartório. A proteção é automática.

142
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O teto de valor correspondente a 1/3 do patrimônio líquido do beneficiário não se aplica ao bem de
família legal. Trata-se de uma restrição para a instituição voluntária.
Por essas razões percebe-se por que os brasileiros não instituem o bem de família voluntário. Não
há interesse prático, em geral. Todavia, há somente uma situação em que existe interesse na instituição
do bem de família voluntário, mesmo já havendo a proteção do bem de família legal: o art. 5º da Lei
8.009/1990 estabelece que, havendo mais de um imóvel destinado à residência da família, a proteção do
bem de família legal recairá no de menor valor, salvo se outro imóvel houver sido instituído como bem de
família voluntário:

Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um
único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.

Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis
utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro
tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.

Assim, caso a pessoa tenha cinco imóveis e residência em todos, a proteção legal recairá sobre o de
menor valor.
A Súmula 205 do STJ estabeleceu que a Lei do Bem de Família legal poderia ser aplicada a penho-
ras realizadas antes da sua vigência. Os bancos se desesperaram com essa Súmula:

Súmula 205 - A Lei nº 8.009-90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.

O bem de família legal é automático, deriva da própria lei e independe de ato de vontade.
A extensão da impenhorabilidade do bem de família legal está prevista no art. 1º, parágrafo único,
da Lei 8.009/1990. Incluem-se na proteção os bens móveis, desde que já quitados:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não res-
ponderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza,
contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam,
salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a cons-


trução, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os
de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

O STJ já admitiu, em mais de uma oportunidade, desmembramento do imóvel para efeito de pe-
nhora (REsp 207.693/SC, REsp 510.643/DF, REsp 968.907/RS). Ex.: penhora da área da piscina e da
churrasqueira.
O art. 2º traz o rol dos bens cuja penhora é permitida pela lei:

Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos


suntuosos.

143
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis qui-
tados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o dispos-
to neste artigo.

O STJ, a despeito de existir divergência, já entendeu pela impenhorabilidade de aparelho de TV,


máquina de lavar, computador, ar condicionado97 e até mesmo teclado musical98 .
A jurisprudência admite ainda a figura do “Bem de família indireto”, ocasião em que há um único
imóvel locado para terceiro, cujos aluguéis são destinados para locação de outro imóvel (residência). Pa-
ra o STJ, o bem de família indireto também é impenhorável:

Súmula 486 do STJ: “É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a
terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a mora-
dia da sua família”.

Em interpretação restritiva a respeito do tema, nos termos da Súmula 449 do STJ, a vaga de gara-
gem que possui matrícula própria no Registro de Imóveis não constitui bem de família para efeito de
penhora:

Súmula 449 - A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não cons-
titui bem de família para efeito de penhora.

Segundo Flávio Tartuce a Ssúmula merece críticas, pois diante do princípio da gravitação jurídica
(o acessório segue o principal), se a impenhorabilidade atinge o imóvel do mesmo modo deve atingir a
vaga de garagem.
A proteção do bem de família legal não é absoluta, mas relativa, na medida em que experimenta as
exceções constantes no art. 3º da Lei 8.009/1990:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previden-


ciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições


previdenciárias;

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do


imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III -- pelo credor de pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu copropri-
etário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que
ambos responderão pela dívida;

97 Rol extraído da jurisprudência do STJ.

98 REsp 218.882/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo.

144
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função


do imóvel familiar;

V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela en-
tidade familiar;

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condena-
tória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº
8.245, de 1991)

Pablo entende que essas hipóteses devem se aplicar, mutatis mutandis, à impenhorabilidade vo-
luntária. Isso por conta da máxima segundo a qual “onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direi-
to”.
Nas exceções previstas no art. 3º, o devedor não obterá êxito ao invocar a proteção do bem de famí-
lia:
i) créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias:
O inciso I do Art. 3º foi revogado pela LC 150/2015, assim, atualmente, não se admite penhora do
bem de família para pagamento de dívidas de trabalhadores da própria residência e das respectivas con-
tribuições previdenciárias.
ii) aquele que financia a construção ou a aquisição do imóvel não pode ter contra si invocada a pro-
teção do bem de família:
Não faria sentido.
iii) crédito decorrente de dívidas alimentícias, pode gerar penhorar do bem, ressalvados os direitos
do seu coproprietário nas hipóteses de casamento ou união estável.
Segundo Flávio Tartuce, a divida que admite a penhora do bem de família pode ser decorrente de
alimentos convencionais, legais (Direito de Família) ou indenizatórios (nos termos do art. 948, II, do
CC).
Entretanto, a respeito dos alimentos indenizatórios, a questão não é pacífica, mas encontra respal-
do na jurisprudência do STJ99.
iv) a Fazenda pode cobrar impostos, taxas e contribuições em função do imóvel (IPTU, ITR) e não
pode o contribuinte alegar a impenhorabilidade:

99Julgados que entendem pela exceção à impenhorabilidade (ver: STJ, REsp 437.144/RS, 3. Turma, Rel.
Min. Castro Filho, j. 07.10.2003,DJ 10.11.2003 p. 186; AgRg-Ag 772.614/MS 3.ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j.
13.05.2008;DJe 06.06.2008; e REsp 1.186.228/RS Rel. Min. Massami Uyeda, j. 04.09.2012, publicado no Informa-
tivo n. 503).

145
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No que tange ao inciso IV do art. 3º, o próprio STF já entendeu que a cobrança de despesa condo-
minial também pode levar à penhora do imóvel (RE 439.003). A tese é batida. Despesa condominial não
é tributo, mas o entendimento é pacífico.
v) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entida-
de familiar:
O STJ, aqui, flutua em suas decisões. Existem julgados, a exemplo do Ag Rg no REsp 813.546/DF,
no sentido de que a mera indicação do bem de família à penhora não impede que se invoque depois a
proteção legal. Todavia, se o bem foi voluntariamente dado em “garantia hipotecária”, poderá ser penho-
rado (Ag Rg no Ag 1.152.734/SP).
vi) bem de família adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenató-
ria a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
vii) processo decorrente de fiança locatícia:
Flávio Tartuce considera uma violência ao princípio da isonomia, por tratar o fiador de forma mais
gravosa que o locatário. Esta norma não vale para qualquer fiança, mas somente para a fiança locatícia.

Atualmente, nos Tribunais superiores a questão é pacífica uma vez que o STF já entendeu que esta
hipótese é constitucional. A posição foi também objeto da Súmula 549 do Tribunal Cidadão, segundo a
qual:
“É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.

O STJ já sumulou (Súmula 364) que a proteção do bem de família também abrange pessoas que
moram sozinhas. O que se quer proteger não é a família propriamente, mas a moradia, o patrimônio mí-
nimo100:

Súmula 364 - O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel


pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Finalmente, é relevante notar que o Superior Tribunal de Justiça entendeu recentemente que o rol
das exceções à proteção do bem de família é meramente exemplificativo (numerus aper-
tus).101

FATOS JURÍDICOS

1. Conceito

100 REsp 450.989/RJ.


101“Deve ser afastada a impenhorabilidade do único imóvel pertencente à família na hipótese em que os de-
vedores, com o objetivo de proteger o seu patrimônio, doem em fraude à execução o bem a seu filho menor impúbe-
re após serem intimados para o cumprimento espontâneo da sentença exequenda” (STJ, REs 1.364.509/RS, Rel.
Min. Nancy Andrighi, j. 10.06.2014, publicada no seu Informativo n. 545).

146
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Fato jurídico é todo acontecimento, natural ou humano, que deflagra efeitos na órbita do direito.
Ou seja, é todo aquele fato relevante para o direito (Agostinho Alvim). A chuva, o frio, podem não defla-
grar efeito algum. Todavia, se o fizerem, serão considerados fatos jurídicos.

2. Classificação102
2.1. Fato jurídico em sentido estrito

Fato jurídico em sentido estrito é aquele acontecimento natural que deflagra efeitos na órbita do
direito, podendo ser ordinário (como o decurso do tempo ou uma chuva de verão) ou extraordinário (um
“tsunami” ocorrido no Brasil).
Segundo Flávio Tartuce é Fato + Direito

2.2. Ato-fato (Pontes de Miranda)

Alguns autores não aceitam a categoria do ato-fato, por não estar expressamente no Código Civil.
No entanto, indaga-se: à luz do CC, qual é a natureza jurídica do ato realizado pela criança de 4 anos que
compra um doce no boteco da esquina? Há juristas que entendem tratar-se de um contrato nulo, mas
que gera efeitos em virtude da aceitação social. Pablo considera que essa explicação faria sentido eventu-
almente se se tratasse de um adolescente de 15 anos, que já tem certa consciência dos efeitos do ato ne-
gocial.
A compra de um doce por uma criança no boteco da esquina recebe melhor explicação na categoria
do ato-fato, de Pontes de Miranda. Trata-se daquele comportamento que, embora realizado por um ser
humano, é completamente desprovido de vontade consciente na projeção do resultado pretendido e do
próprio comportamento realizado, e que, ainda assim, deflagra efeitos na órbita do direito.
O ato-fato fica entre o fato da natureza e a ação do homem. Ele é realizado pelo homem, mas sem
consciência quanto ao resultado e ao próprio comportamento realizado.
Assim, nas palavras de Flávio Tartuce trata-se de um fato jurídico qualificado por uma vontade não
relevante juridicamente em um primeiro momento, mas que se revela relevante por seus efeitos.
O ato do sonâmbulo é um típico ato-fato. Ex.: o sonâmbulo que, ao voltar para casa, traz uma moe-
da rara que não pertencente a ninguém, adquire a propriedade dela. Se tivesse tido vontade consciente,
teria praticado ato jurídico em sentido estrito. Em ambos os casos, há deflagração de efeitos para o direi-
to, consubstanciados na aquisição da propriedade pela invenção (achado).

2.3. Ações ou fatos humanos

102 A classificação exposta neste tópico não é unânime. É filosófica, epistemológica.

147
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na linha doutrinária seguida por Pablo Stolze, as ações humanas dividem-se em duas categorias:
atos ilícitos e atos jurídicos.

2.3.1. Atos ilícitos


Alguns autores, a exemplo do filósofo Antonio Machado Neto e Pontes de Miranda, sustentam que
o ato ilícito seria espécie de ato jurídico.
Todavia, a questão não é pacífica, de modo que seguindo o pensamento de autores como Zeno Velo-
so, Pablo Stolze e José Fernando Simão, os quais, considerando especialmente o fato de o próprio Código
Civil tratar o ato ilícito em título separado, Flavio Tartuce conclui tratar-se de categoria própria. Para o
autor, a expressão ato jurídico denota a categoria de atos que têm efeitos lícitos. Os atos
com efeitos desvaliosos são caracterizados como ilícitos. O codificador, seguindo Clóvis Belvi-
laqua, partiu dessa mesma premissa de que o ato jurídico é sempre lícito. O ilícito não seria denominado
jurídico. Tanto que ninguém fala em ato jurídico ilícito.

2.3.2. Atos jurídicos lato senso ou em sentido estrito


Na lição de Flávio Tartuce, Trata-se de um fato jurídico com elemento volitivo e conteúdo lícito.
(Fato + Direito + Vontade + Licitude)
O ato jurídico (de fins lícitos, portanto), bifurca-se em ato jurídico em sentido estrito e negócio ju-
rídico.

2.3.2.1. Ato jurídico em sentido estrito

Durante muito tempo, a categoria do ato jurídico em sentido estrito foi pouco estudada no Brasil. O
CC/02, ainda que dispensando apenas um artigo ao ato jurídico em sentido estrito, adotou a teoria dua-
lista.
Na lição de Flávio Tartuce, citanto Marcos Bernardes de Mello, trata-se de um ato jurídico em que
os efeitos são meramente legais, não havendo a busca de uma finalidade específica como acontece no
negócio jurídico.
O ato jurídico em sentido estrito, também chamado de ato não negocial, regulado apenas no art.
185 do CC, é aquele comportamento humano, voluntário e consciente, que determina a produção de efei-
tos jurídicos legalmente previstos:

Art. 185. Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber,
as disposições do Título anterior103.

No ato jurídico em sentido estrito não há liberdade ou autonomia alguma na escolha dos efeitos ju-
rídicos produzidos (José Abreu, Antônio Junqueira, Marcos Bernardes de Melo). Ou seja, existe volunta-

103 Pelo teor do dispositivo aplicam-se aos atos jurídicos em sentido estrito, no que couber, as mesmas regras

dos negócios jurídicos. Exemplo: vícios do negócio jurídico. É possível anular o reconhecimento de filho por erro.

148
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

riedade consciente na sua realização, mas a parte que o realiza não escolhe o efeito produzido. Quem o
faz é a lei, assim, respeita a “fórmula”: fato + Direito + vontade + licitude + efeitos meramente legais.
São exemplos de atos jurídicos em sentido estrito:
i) pegar o papel ou a pedrinha voluntariamente (res nullius);
ii) apropriar-se de uma maçã em macieira pública;
iii) caçar ou pescar em locais permitidos;
Os três exemplos acima são hipóteses de atos jurídicos em sentido estrito que têm como efeito au-
tomático a aquisição da propriedade pela ocupação.
iv) ato de fixação do domicílio voluntário em determinado local;
Ao se mudar para uma determinada cidade, a lei imediatamente dá a esse ato o efeito de tornar
aquele local o domicílio do indivíduo.
v) atos de comunicação processual (notificação, interpelação)
Tais atos também são considerados jurídicos em sentido estrito na medida em que, realizados, a lei
determina o efeito que deles decorre (a comunicação). O comportamento de notificar é voluntário e a lei
dá a ele o efeito de comunicação. A parte que notifica não tem o direito de escolher outros efeitos, muito
embora o ato tenha sido praticado voluntariamente.

2.3.2.2. Negócio jurídico


O negócio jurídico, categoria especialmente desenvolvida pela Escola Pandectista alemã, traduz
uma declaração de vontade, emitida segundo a regra fundamental da autonomia privada, pela qual a par-
te pretende atingir determinados efeitos jurídicos escolhidos, respeitados os parâmetros limitativos da
função social e da boa-fé objetiva. Existe aqui, em maior ou menor grau, liberdade na escolha dos efeitos
jurídicos que se pretende atingir, diferentemente do que ocorre no mero ato em sentido estrito. São
exemplos de negócio jurídico o contrato e o testamento.
Veja que a raiz do raciocínio para se diferenciar o ato jurídico em sentido estrito do negócio jurídico
é a liberdade negocial de escolha dos efeitos jurídicos que se pretende atingir. O negócio jurídico é dota-
do da principal característica ausente no ato jurídico em sentido estrito: em maior ou menor extensão,
sempre haverá uma autonomia ou liberdade na escolha dos efeitos que se pretende atingir. Mesmo no
auge do regime comunista, a autonomia privada nunca desapareceu do negócio jurídico.
No contrato, haverá sempre tal autonomia, ainda que ele seja por adesão (a autonomia privada não
desaparece, pois haverá sempre a liberdade de aderir ou não àquela figura apresentada).
Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, o negócio jurídico é a principal forma de expressão da au-
tonomia privada. O autor conceituava negócio jurídico como todo fato jurídico consistente em
declaração de vontade a que todo o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados
como queridos pelas partes, desde que preenchidos os seus elementos de existência, vali-
dade e eficácia.

149
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, seguindo a “fórmula” adotada nos outros conceitos, Negócio Jurídico = Fato + Direito +
Vontade + Licitude + Composição de interesses das partes com finalidade específica.
Em resumo:

104

104 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.197.

150
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Conceito
O negócio jurídico traduz uma declaração de vontade, emitida segundo a autonomia privada, pela
qual o declarante, nos limites da função social e da boa-fé objetiva, persegue determinados efeitos jurídi-
cos escolhidos e possíveis.
Como visto, o que caracteriza o negócio jurídico e o diferencia dos atos jurídicos em sentido estrito
é que nele sempre haverá uma margem, maior ou menor, de liberdade negocial de escolha dos efeitos a
serem produzidos.
Em 1901, Raymond Saleilles, pela primeira vez, detectou o contrato de adesão. Os contratos por
adesão não negam a teoria negocial. Mesmo neles haverá uma margem, ainda que mínima, de autonomia
privada no que toca à liberdade de aderir ou não ao que é proposto105.
O contrato por adesão é uma realidade da sociedade de massas. Os dirigentes de grandes empresas
não poderiam sentar com todos os consumidores e negociar especificamente as cláusulas contratuais.
No estudo da teoria geral do contrato, a ideia de autonomia privada será retomada, na perspectiva
de autores como Judith Martins-Costa e Luigi Ferri, que bem demonstram os parâmetros de contenção
que a liberdade negocial deve experimentar.

2. Teorias explicativas do negócio jurídico


Há dezenas de teorias explicativas do negócio jurídico, mas as duas mais importantes são funda-
mentalmente a voluntarista e a objetivista106.

2.1. Teoria voluntarista (teoria da vontade ou willens theorie)

A teoria voluntarista foi amplamente desenvolvida no direito alemão. Sustenta que a pedra funda-
mental, a matriz explicativa do negócio jurídico é a própria vontade interna ou a intenção do declarante.
Tal teoria influenciou especialmente o Código Civil de 2002, conforme se vê no art. 112:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que
ao sentido literal da linguagem.

É como se o dispositivo dissesse que o que importa para o negócio é a vontade interna do declaran-
te, ou seja, o que ele pensou, a intenção dele.

105 Acerca do tema, ver “A regra moral nas obrigações civis”, de Georges Ripert.

106 A forma de desenvolvimento acadêmico varia, mas Pablo foi influenciado por Antonio Junqueira de Aze-
vedo.

151
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.2. Teoria objetivista ou da declaração (erklärungstheorie)

Diversamente da anterior, a teoria objetivista ou da declaração entende que o que importa para ex-
plicar o negócio não é o que o agente pensou, mas o que ele efetivamente declarou (vontade externa ou
declarada).
Assim, essa teoria ou corrente chamada de objetivista ou da declaração (erklärungstheorie) susten-
ta que o que explica, o que justifica o próprio negócio não é a intenção do declarante, mas sim, a sua pró-
pria vontade externa ou declarada.
Durante muitos anos a doutrina se digladiou entre essas duas correntes. Ocorre que a doutrina
mais moderna (Junqueira) entende que elas não são contraditórias, paradoxais, mas se completam: o
negócio jurídico não é resultado somente da vontade externa ou da interna, devendo ser explicado se-
gundo a conjugação da vontade interna com a vontade que se declara. Tanto é que, havendo descompas-
so entre as vontades externa e interna, haverá o chamado vício da vontade (erro, dolo, coação etc.)

2.3. Teoria da pressuposição

Existem outras teorias (secundárias) mais específicas acerca do negócio jurídico, cumprindo desta-
car uma, que inclusive foi objeto de questão de concurso: teoria da pressuposição.
Na linha de entendimento de Windscheid, a teoria da pressuposição sustentava a invalidade do ne-
gócio jurídico quando a certeza subjetiva do agente se modificasse na execução do contrato. Essa teoria,
há séculos, chegou a ser usada. Serviu para, de certa forma, influenciar a teoria da imprevisão, mas não
tem aplicação prática no Brasil.
Exemplo de Antunes Varella: um cidadão, em março, celebra um contrato de locação por tempora-
da para o ano seguinte, pressupondo que estaria de férias. Não obtendo as férias, para essa teoria, pode-
ria sustentar a invalidade do negócio. Hoje, a resposta seria: problema do locatário, por conta da segu-
rança jurídica e do fato de que o locador poderia ter locado o imóvel a outra pessoa.

3. Classificação dos negócios Jurídicos107


3.1. unilaterais, bilaterais e plurilaterais

Quanto ao número de declarantes ou de manifestações de vontade necessárias ao seu aperfeiçoa-


mento, os negócios jurídicos classificam-se em unilaterais, bilaterais e plurilaterais.
a) Unilaterais — são os que se aperfeiçoam com uma única manifestação de vontade, como ocorre
no testamento, no codicilo, na instituição de fundação, na renúncia de direitos, na procuração, nos títulos

107 Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contra-

tos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

152
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

de crédito, na confissão de dívida, na renúncia à herança e na promessa de recompensa. Subdividem-se


em:
i. receptícios — aqueles em que a declaração de vontade tem de se tornar conhecida do destinatário
para produzir efeitos, como sucede na denúncia ou resilição de um contrato e na revogação de mandato;
e
ii. não receptícios — aqueles em que o conhecimento por parte de outras pessoas é irrelevante, co-
mo se dá no testamento e na confissão de dívida.
b) Bilaterais — são os que se perfazem com duas manifestações de vontade coincidentes sobre o ob-
jeto. Essa coincidência chama-se consentimento mútuo ou acordo de vontades, que se verifica nos con-
tratos em geral. Subdividem-se em:
i. bilaterais simples — aqueles em que somente uma das partes aufere vantagens, enquanto a outra
arca com os ônus, como ocorre na doação e no comodato; e
ii. sinalagmáticos — aqueles que outorgam ônus e vantagens recíprocos, como na compra e venda e
na locação, verbi gratia. Essa denominação deriva do vocábulo grego sinalagma, que significa contrato
com reciprocidade . Podem existir várias pessoas no polo ativo e também várias no polo passivo sem que
o contrato deixe de ser bilateral pela existência de duas partes, pois estas não se confundem com aquelas.
c) Plurilaterais — são os contratos que envolvem mais de duas partes, como o contrato de sociedade
com mais de dois sócios e os consórcios de bens móveis e imóveis. As deliberações, nesses casos, decor-
rem de decisões da maioria. A doutrina menciona os negócios jurídicos plurilaterais como figura diferen-
ciada dos contratos e os trata como acordos, em razão de se destinarem à adoção de decisões comuns em
assuntos de interesses coletivos.

3.2. gratuitos e onerosos

Quanto às vantagens patrimoniais que podem produzir, os negócios jurídicos classificam-se em


gratuitos e onerosos, neutros e bifrontes.
a) Negócios jurídicos gratuitos são aqueles em que só uma das partes aufere vantagens ou benefí-
cios, como sucede na doação pura e no comodato. Nessa modalidade, outorgam-se vantagens a uma das
partes sem exigir contraprestação da outra.
b) Negócios jurídicos onerosos são aqueles em que ambos os contratantes auferem vantagens, às
quais, porém, corresponde um sacrifício ou contraprestação. São dessa espécie quando impõem ônus e,
ao mesmo tempo, acarretam vantagens a ambas as partes, ou seja, sacrifícios e benefícios recíprocos. É o
que se passa com a compra e venda, a locação, a empreitada etc. Todo negócio oneroso é bilateral, por-
que a prestação de uma das partes envolve uma contraprestação da outra. Mas nem todo ato bilateral é
oneroso. Doação é contrato e, portanto, negócio jurídico bilateral, porém gratuito. O mesmo ocorre com
o comodato e pode ocorrer com o mandato401. Os negócios onerosos subdividem-se em:

153
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i. comutativos: de prestações certas e determinadas. As partes podem antever as vantagens e os sa-


crifícios, que geralmente se equivalem, decorrentes de sua celebração, porque não envolvem nenhum
risco; e
ii. aleatórios: caracterizam-se pela incerteza, para as duas partes, sobre as vantagens e sacrifícios
que deles pode advir. É que a perda ou lucro dependem de um fato futuro e imprevisível. O risco é da
essência do negócio, como no jogo e na aposta.

3.3. Neutros e bifrontes

a) Negócios jurídicos neutros são os que se caracterizam pela destinação dos bens. Não podem ser
incluídos na categoria dos onerosos nem dos gratuitos, pois lhes falta atribuição patrimonial. Em geral,
coligam-se aos negócios translativos, que têm atribuição patrimonial. Enquadram-se nessa modalidade
os negócios que têm por finalidade a vinculação de um bem, como o que o torna indisponível pela cláusu-
la de inalienabilidade e o que impede a sua comunicação ao outro cônjuge mediante cláusula de incomu-
nicabilidade . A instituição do bem de família, a renúncia abdicativa, que não aproveita a quem quer que
seja, e a doação remuneratória também podem ser lembradas402.
b) Negócios jurídicos bifrontes são os que podem ser onerosos ou gratuitos, segundo a vontade das
partes, como o mútuo, o mandato, o depósito. A conversão só se torna possível se o contrato é definido
na lei como negócio gratuito, pois a vontade das partes não pode transformar um contrato oneroso em
benéfico, visto que subverteria sua causa. Frise-se que nem todos os contratos gratuitos podem ser con-
vertidos em onerosos por convenção das partes. A doação e o comodato, por exemplo, ficariam desfigu-
rados se tal acontecesse, pois se transformariam, respectivamente, em venda e locação403.

3.4. Inter vivos e mortis causa

Levando-se em conta o momento da produção dos efeitos, os negócios jurídicos dizem-se inter vi-
vos e mortis causa.
a) Inter vivos: destinam-se a produzir efeitos desde logo, isto é, estando as partes ainda vivas, como
a promessa de venda e compra, a locação, a permuta, o mandato, o casamento etc.
b) Mortis causa: são os negócios destinados a produzir efeitos após a morte do agente, como ocorre
com o testamento, o codicilo e a doação estipulada em pacto antenupcial para depois da morte do doa-
dor. O evento morte , nesses casos, é pressuposto necessário à sua eficácia.
Os negócios jurídicos mortis causa são sempre nominados ou típicos. Ninguém pode celebrar senão
os definidos na lei e pelo modo como os regula. Não podem as partes, desse modo, valer-se da autonomia
privada e realizar negócios inominados ou atípicos dessa natureza. Podem, no entanto, criar tipos novos
de negócios inter vivos404.
O seguro de vida, ao contrário do que possa parecer, é negócio inter vivos, em que o evento morte
funciona como termo405. É que a morte somente torna mortis causa o negócio jurídico quando compõe

154
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o seu suporte fático como elemento integrativo, mas não quando constitui simples fator implementador
de condição ou de termo. Por essa razão, também não se consideram negócios mortis causa:
a doação sob condição de premoriência do doador ao donatário;
a doação com cláusula de reversão caso o donatário morra antes do doador;
a estipulação em favor de terceiro para que a prestação seja cumprida depois da morte do estipu-
lante.
Quanto ao modo de existência, os negócios jurídicos denominam-se principais, acessórios e deriva-
dos.

3.5. Principais, acessórios e derivados

a) Principais são os que têm existência própria e não dependem, pois, da existência de qualquer ou-
tro, como a compra e venda, a locação e a permuta.
b) Acessórios são os que têm sua existência subordinada à do contrato principal, como se dá com a
cláusula penal, a fiança, o penhor e a hipoteca. Em consequência, como regra, seguem o destino do prin-
cipal (acessorium sequitur suum principale), salvo estipulação em contrário na convenção ou na lei. Des-
se modo, a natureza do acessório é a mesma do principal. Extinta a obrigação principal, extingue-se tam-
bém a acessória, mas o contrário não é verdadeiro.
c) Negócios derivados ou subcontratos são os que têm por objeto direitos estabelecidos em outro
contrato, denominado básico ou principal (sublocação e subempreitada, p. ex.). Têm em comum com os
acessórios o fato de que ambos são dependentes de outro. Diferem, porém, pela circunstância de o deri-
vado participar da própria natureza do direito versado no contrato-base. Nessa espécie de avença, um
dos contratantes transfere a terceiro, sem se desvincular, a utilidade correspondente à sua posição con-
tratual. O locatário, por exemplo, transfere a terceiro os direitos que lhe assistem, mediante a sublocação.
O contrato de locação não se extingue, e os direitos do sublocatário terão a mesma extensão dos direitos
do locatário, que continua vinculado ao locador.

3.6. Solenes (formais) e não solenes (de forma livre)

Em atenção às formalidades a observar, os negócios jurídicos apresentam-se como solenes, tam-


bém chamados de formais, e não solenes ou de forma livre.
a) Solenes são os negócios que devem obedecer à forma prescrita em lei para se aperfeiçoarem407.
Quando a forma é exigida como condição de validade do negócio, este é solene e a formalidade é ad so-
lemnitatem ou ad substantiam, isto é, constitui a própria substância do ato, como a escritura pública na
alienação de imóvel acima de certo valor (CC, art. 108), o testamento como manifestação de última von-
tade (arts. 1.864 e s.), a renúncia da herança (art. 1.806) etc. Todavia, determinada forma pode ser exigi-
da apenas como prova do ato. Nesse caso, trata-se de uma formalidade ad probationem tantum, como o é
a lavratura do assento do casamento no livro de registro, determinada no art. 1.536 do Código Civil. Diz-

155
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

se que, em regra, a formalidade é ad probationem nos casos em que o resultado do negócio jurídico pode
ser atingido por outro meio408.
b) Não solenes são os negócios de forma livre. Basta o consentimento para a sua formação. Como a
lei não reclama nenhuma formalidade para o seu aperfeiçoamento, podem ser celebrados por qualquer
forma, inclusive a verbal. Podem ser mencionados como exemplos, dentre inúmeros outros, os contratos
de locação e de comodato. Em regra, os contratos têm forma livre , salvo expressas exceções. Dispõe, com
efeito, o art. 107 do Código Civil que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma espe-
cial, senão quando a le expressamente a exigir”.

3.7. Simples, complexos e coligados

Quanto ao número de atos necessários, classificam-se os negócios jurídicos em simples, complexos


e coligados.
a) Simples são os negócios que se constituem por ato único.
b) Complexos são os que resultam da fusão de vários atos sem eficácia independente. Compõem-se
de várias declarações de vontade, que se completam, emitidas por um ou diferentes sujeitos para a ob-
tenção dos efeitos pretendidos na sua unidade. Pode ser mencionada, como exemplo desta última moda-
lidade, a alienação de um imóvel em prestações, que se inicia pela celebração de um compromisso de
compra e venda, mas se completa com a outorga da escritura definitiva; e, ainda, o negócio que exige a
declaração de vontade do autor e a de quem deve autorizá-la. Dá-se a complexidade objetiva quando as
várias declarações de vontade, que se completam, são emitidas pelo mesmo sujeito tendo em vista o
mesmo objeto. É essencial, nessa forma de complexidade, a identidade tanto do sujeito como do objeto
do negócio. A complexidade subjetiva se caracteriza pela pluralidade de declarações de diferentes sujei-
tos, devendo convergir para o mesmo objeto, ou seja, ter uma única causa, mas podendo ser emitidas
contemporânea ou sucessivamente409.
c) Coligados: compõem-se de vários outros, enquanto o negócio complexo é único. Como exemplo
dos primeiros pode ser mencionado o arrendamento de posto de gasolina, coligado pelo mesmo instru-
mento ao contrato de locação das bombas, de comodato de área para funcionamento de lanchonete, de
fornecimento de combustível, de financiamento etc. Neste caso, há multiplicidade de negócios, conser-
vando cada qual a fisionomia própria, mas havendo um nexo que os reúne substancialmente. Não se tra-
ta somente de contratos perfeitamente distintos celebrados no mesmo instrumento, porque, então, have-
ria apenas união meramente formal. O que caracteriza o negócio coligado é a conexão mediante vínculo
que une o conteúdo dos dois contratos410. É necessário que os vários negócios se destinem à obtenção de
um mesmo objetivo. No exemplo supraministrado, o vínculo que une todos os contratos é a exploração
do posto de gasolina como um complexo comercial.

3.8. Dispositivos e obrigacionais

156
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tendo-se em conta as modificações que podem produzir, os negócios jurídicos distinguem-se em


dispositivos e obrigacionais.
a) Dispositivos: são os utilizados pelo titular para alienar, modificar ou extinguir direitos. Com efei-
to, pode o titular de um direito de natureza patrimonial dispor, se para tanto tiver capacidade, de seus
direitos, por exemplo, concedendo remissão de dívida, constituindo usufruto em favor de terceiro ou
operando a tradição.
b) Obrigacionais: são os que, por meio de manifestações de vontade, geram obrigações para uma ou
ambas as partes, possibilitando a uma delas exigir da outra o cumprimento de determinada prestação,
como sucede nos contratos em geral. Frequentemente o negócio dispositivo completa o obrigacional. A
alienação de uma propriedade, de natureza dispositiva, que se consuma com o registro do título ou da
tradição, é precedida do contrato de compra e venda, de natureza obrigacional, pelo qual o adquirente se
obriga a pagar o preço e o alienante a entregar a coisa objeto do negócio.

3.9. Negócio fiduciário e negócio simulado

Quanto ao modo de obtenção do resultado, o negócio jurídico pode ser fiduciário ou simulado.
a) Negócio fiduciário é aquele em que alguém, o fiduciante , “transmite um direito a outrem, o fidu-
ciário, que se obriga a devolver esse direito ao patrimônio do transferente ou a destiná-lo a outro
fim”412. Caracteriza-se pela circunstância de que o meio utilizado transcende o fim perseguido, não se
compatibilizando o aspecto econômico com o aspecto jurídico do negócio, como ocorre quando “alguém
transmite a propriedade de um bem com a intenção de que o adquirente o administre , obtendo dele o
compromisso, por outro negócio jurídico de caráter obrigacional, de lhe restituir o bem vendido”413.
Trata-se de negócio lícito e sério, perfeitamente válido, e que se desdobra em duas fases. Na primeira,
ocorre verdadeiramente a transmissão de um direito pertencente ao fiduciante. Na segunda, o adquirente
fiduciário se obriga a restituir o que recebeu ou seu equivalente. Esses negócios compõem-se de dois
elementos: a confiança e o risco. A transmissão da propriedade, quando feita ao fiduciário para fins de
administração, é verdadeira. Tanto que, se o fiduciário recusar-se a restituir o bem, caberá ao fiduciante
somente pleitear as perdas e danos, como consequência do inadimplemento da obrigação de o devolver.
b) Negócio simulado é o que tem a aparência contrária à realidade . Embora, nesse ponto, haja se-
melhança com o negócio fiduciário, as declarações de vontade são falsas. As partes aparentam conferir
direitos a pessoas diversas daquelas a quem realmente os conferem ou fazem declarações não verdadei-
ras para fraudar a lei ou o Fisco, por exemplo. O negócio simulado não é, portanto, válido. O novo Código
retirou-o do rol dos defeitos do negócio jurídico, em que se encontrava no diploma de 1916 (arts. 102 a
105), deslocando-o para o capítulo concernente à invalidade do negócio jurídico, considerando-o nulo
(art. 167).

157
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

c) O negócio fiduciário não é considerado negócio simulado, malgrado a transferência da proprie-


dade seja feita sem a intenção de que o adquirente se torne verdadeiramente proprietário do bem. Não
há a intenção de prejudicar terceiros nem de fraudar a lei.

4. Planos do negócio jurídico108


O negócio jurídico pode ser subdividido em três planos de análise: existência, validade e eficácia,
trata-se do que se denomina Escada Ponteana ou “Escada Pontiana”.
Sobre os três planos, ensina Pontes de Miranda que “existir, valer e ser eficaz são conceitos tão in-
confundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias
normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (H. Kelsen, Hauptprobleme, 14).
Dessa forma, a Escada Ponteana pode ser concebida conforme o desenho a seguir:

109

Assim, o esquema é perfeitamente lógico, pois para que o negócio jurídico seja válido deve ele exis-
tir. Para que o negócio jurídico gere efeitos deve ele existir e ser válido, em regra.
Porém, como exceção, o negócio jurídico pode existir, ser inválido e estar gerando efeitos.

108 Este tópico é influenciado pelo pensamento de autores como Pontes de Miranda, Antonio Junqueira, Vi-
cente Rao e outros.
109 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.204.

158
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo: contrato acometido pelo vício da lesão, antes da ação anulatória. Aliás, se a ação anulató-
ria não for proposta no prazo decadencial de quatro anos (art. 178 do CC), o negócio jurídico convalida.
Pela Convalidação o negócio jurídico inválido passa a ser válido. A Convalidação pode ocorrer pela:
Confirmação das partes. Convalecimento temporal “Cura pelo tempo”. Conversão (transformação em
outro NJ).

4.1. Plano de existência (ou substantivo)

4.1.1. Introdução
No plano da existência, são analisados os elementos que compõem a substância (a essência) do ne-
gócio. Faltando qualquer dos pressupostos constitutivos, requisitos de existência do ne-
gócio, tem-se que ele é inexistente.
Tratam-se dos elementos mínimos do NJ, que formam o seu suporte fático, os pressupostos de
existência nas palavras de Pontes de Miranda.
A teoria da inexistência foi criada na Alemanha em 1808, por Zacarias, para explicar o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil, essa teoria não foi adotada tanto pelo Código de 1916 como pelo
Código de 2002 que procuraram resolver os problemas do negócio jurídico no plano da validade
Alguns autores, como Flávio Tartuce e Silvio Rodrigues110, não aceitavam esse plano do negócio, ra-
zão pela qual não é incomum que alguns livros tratem já diretamente do plano de validade.
Contudo, não somente autores o aceitam como a jurisprudência amplamente admite esse plano,
nos direitos civil, administrativo e até processual civil.

4.1.2. Pressupostos da existência do negócio


Para existir, o negócio jurídico tem de conjugar quatro elementos: manifestação de vontade, agente
emissor da vontade, objeto e forma.
Nesse plano surgem apenas substantivos, sem qualquer qualificação, ou seja, substantivos sem ad-
jetivos.

4.1.2.1. Vontade

Como visto, a matriz explicativa do negócio jurídico deve ser a conjugação da vontade interna com
a manifestada pelo agente. Mesmo havendo variação entre os autores, é quase unânime que a vontade é
requisito essencial do negócio.

110 O referido autor afirmava que “a teoria da inexistência seria inexata, inútil e inconveniente. Inexata, pois,
muitas vezes, o ato inexistente cria algo cujos efeitos devem ser afastados por uma ação judicial. Inútil, porque a
noção de nulidade absoluta pode substituir a ideia de inexistência muito bem. Inconveniente, uma vez que, sendo
considerada desnecessária uma ação judicial para afastar os efeitos do negócio inexistente, o direito à prestação
jurisdicional está sendo afastado, principalmente no que concerne às pessoas de boa-fé.”.

159
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A vontade pressupõe a consciência da pessoa. O negócio jurídico em que o sujeito não manifesta
nenhum tipo de vontade é inexistente em face dele. Ex.: não há vontade no caso em que fraudadores
abrem uma empresa em nome de um terceiro. O mesmo ocorre na coação física irresistível. O cidadão
hipnotizado levado ao altar que manifesta um “sim” não emite vontade.

4.1.2.2. 3.1.1.2 – agente emissor da vontade


Em geral, o agente emissor da vontade é uma pessoa física ou jurídica, podendo também ser um
órgão (ex.: Câmara de Vereadores).

4.1.2.3. 3.1.1.3 – objeto do negócio jurídico


O objeto do negócio jurídico é o bem da vida. Sem ele, o negócio jurídico não existe. Ex.: contrato
com o Banco Itaú de empréstimo de dinheiro em que, por um equívoco na elaboração, não há referência
a valores.

4.1.2.4. 3.1.1.4 – forma do negócio jurídico

Forma, enquanto elemento de existência do negócio jurídico, é o necessário meio pelo qual a von-
tade se manifesta, ou, na linha de Vicente Ráo, traduz o revestimento exterior do próprio negócio.
Isso porque, em geral, para existir, todo o negócio pressupõe um meio pelo qual a vontade é decla-
rada. O elemento forma está umbilicalmente ligado ao aspecto externo da vontade, uma vez que ela é o
meio pelo qual se declara a vontade.
Para alguns autores, o requisito forma é colocado de maneira autônoma.
Assim, de forma geral, para que exista, o negócio jurídico pressupõe a observância de uma deter-
minada forma de exteriorização da vontade, que poderá ser escrita, verbal ou até mímica (ex.: sujeito que
levanta a placa no leilão ou que acena para o ônibus se aproximando). Acenar para o ônibus funciona
como aceitação de um negócio, de modo que se a pessoa é atropelada ali, já há responsabilidade oriunda
de um contrato. A libras não pode ser considerada mímica, mas uma outra forma de manifestação da
vontade.
Existe, todavia, uma situação excepcional em que a forma pode estar ausente, mas mesmo assim o
negócio é considerado existente. Lembra Caio Mário da Silva Pereira que, normalmente, o silêncio é o
nada, de maneira que não serviria para completar a estrutura existencial do negócio. Todavia, na vereda
dos sistemas belga, francês, alemão e suíço, e também a teor do art. 218 do Código de Portugal, o art. 111
do Código Civil de 2002 admite que, em determinadas situações, o silêncio seja forma de manifestação
da vontade, como no caso da doação pura (art. 539 do CC):

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não
for necessária a declaração de vontade expressa.

Art. 539. O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade.

160
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que
aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.

Na maioria dos casos, o silêncio não traduz manifestação de vontade. Mas em determinadas situa-
ções ele pode ser entendido como forma de manifestação de vontade, quanto este valor lhe seja atribuído
por lei, pelo uso ou pela convenção. O Código Civil brasileiro vai nesse sentido.

4.2. Plano de validade

4.2.1. Introdução
Quando se analisa a validade de um negócio jurídico, se está analisando um plano qualificativo do
negócio, ou seja, a aptidão para a produção de efeitos. Para se chegar aos pressupostos de validade, basta
compreender e qualificar os pressupostos de existência.
Assim, os substantivos recebem adjetivos, surgindo os requisitos de validade previstos no art. 104
do Código Civil de 2002.

Para a validade do negócio, a vontade manifestada deve ser livre e de boa-fé. O agente emissor da
vontade deve ser capaz e legitimado. O objeto deve ser lícito, possível e determinado (ou determinável). E
a forma deve ser livre ou prescrita em lei.
Se não existe o agente emissor da vontade, o negócio não existe. Mas, se houver e o agente for inca-
paz, o negócio jurídico será inválido.
Desse modo, se o negócio jurídico apresentar problema ou vício quanto a esses elementos será in-
válido, resolvido pela teoria das nulidades.
Obs.: Um contrato de prestação de serviços sexuais é inexistente ou inválido? Veja que a profissio-
nal do sexo tem reconhecimento pelo Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO – Ministério do Trabalho).
Não é uma atividade lícita, mas não é considerada crime.
O negócio jurídico de prestação de serviços sexuais é existente. Há vontade, agentes, objeto e for-
ma. Relativamente à validade, a vontade é livre e de boa-fé. Os agentes são capazes e legitimados (não há
impedimento específico). O objeto, entretanto, é lícito? Autores como Orlando Gomes observam que lici-
tude não é apenas legalidade estrita, mas também subsunção ao padrão médio de moralidade. Essa seria
a resposta mais segura para concurso. O objeto padeceria de uma ilicitude, no sentido de uma inadequa-
ção a um padrão médio de moralidade.
Perceba que a execução do contrato de prestação de serviços sexuais seria difícil, em virtude da
inexequibilidade do título, decorrente da ilicitude do objeto.

4.2.1.1. Classificação das invalidades


a) Quanto ao grau:

161
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i. Nulidade absoluta ou nulidade: gera negócio jurídico nulo. Envolve ordem pública e é mais
grave.
ii. Nulidade relativa ou anulabilidade: gera negócio jurídico anulável. Envolve ordem privada
(interesse particular) e é menos grave.
b) Quanto à extensão:
i. Invalidade total: todo o negócio jurídico é nulo ou anulável.
ii. Invalidade parcial (CC, art. 184111: princípio da conservação do negócio jurídico): parte do
negócio jurídico é nulo ou anulável. A parte inútil do negócio jurídico não o prejudica na
parte útil.

4.2.2. Pressupostos de validade do negócio jurídico (art. 104, CC)

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

4.2.2.1. Vontade livre e obtida de boa-fé

Os defeitos do negócio jurídico (erro, dolo, coação moral, lesão etc.) o atacam no plano da validade,
pois impedem a vontade totalmente livre ou de boa-fé. Ou seja, a vontade existe, mas é viciada.

4.2.2.2. Vagente capaz e legitimado


A diferença entre capacidade e legitimidade já foi estudada anteriormente.

4.2.2.3. Objeto lícito, possível e determinado (ou determinável)


Para ser válido, o objeto do negócio jurídico deve ser lícito, possível e determinado (ou determiná-
vel).

4.2.2.4. Forma livre ou prescrita em lei


Nos termos do art. 107 do CC, vigora no Brasil o princípio da liberdade da forma para os negócios
jurídicos:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a
lei expressamente a exigir.

111 CC, art. 184: “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudi-

cará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias,
mas a destas não induz a da obrigação principal”.

162
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Todavia, em algumas situações, a própria lei exige ou prescreve determinada forma para efeito
probatório (negócio “ad probationem”: art. 227 do CC) ou prescreve determinada forma como pressu-
posto de validade do próprio negócio (negócio “ad solemnitatem”: art. 108 do CC):

Art. 227. Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negó-
cios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao
tempo em que foram celebrados.

Parágrafo único. Qualquer que seja o valor do negócio jurídico, a prova testemunhal é admissí-
vel como subsidiária ou complementar da prova por escrito.

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios
jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais so-
bre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Portanto, em algumas situações, como a do art. 108, a inobservância da forma prescrita em lei po-
derá resultar na própria invalidade do negócio. Para fim do disposto no art. 108, em geral o critério que
se usa é o do salário mínimo nacional.
O dispositivo inicia-se com a frase “não dispondo a lei em contrário”. Surge então a dúvida: quais
são os exemplos de contratos que tenham como objeto imóvel de valor superior a 30 salários mínimos
em que não se exige escritura pública?
Independentemente do valor, não se exige escritura pública para os seguintes contratos:
i) de promessa de compra e venda imobiliária (art. 1.417 do CC)

Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, ce-
lebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis,
adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

ii) contratos garantidos por meio de alienação fiduciária de imóveis (art. 38 da Lei 9.514/2007)

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles
que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis,
poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escri-
tura pública. (Redação dada pela Lei nº 11.076, de 2004)

iii) contratos que tenham por objeto a aquisição de imóvel sujeito ao Sistema Financeiro de Habita-
ção – SFH (art. 61, § 5º, da Lei 4.380/1964)

Art. 61 (...) § 5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades
que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por deter-
minação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão
ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atri-
buindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares
firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei. (Incluído pela Lei nº

163
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.049, de 1966).

Esses exemplos não esgotam as hipóteses do ordenamento, mas são os principais.

4.3. Plano da eficácia do negócio jurídico

Na lição de Flávio Tartuce pode-se dizer que nesse último plano, ou último degrau da escada, estão
os efeitos gerados pelo negócio em relação às partes e em relação a terceiros, ou seja, as suas consequên-
cias jurídicas e práticas.
Neste tópico, serão estudados os denominados “elementos acidentais do negócio jurídico” (também
chamados de “modalidades”). Trata-se de elementos que interferem na eficácia do negócio jurídico e,
eventualmente, também na validade. De qualquer forma, a ambiência de estudo desse tema se dá no pla-
no da eficácia do negócio jurídico.
São elementos que interferem principalmente no plano de eficácia do negócio jurídico: o encargo
(ou modo), a condição e o termo.
Esses elementos são denominados de acidentais porque eles podem ou não ocorrer no negócio ju-
rídico. Ou seja, não são elementos de permanência obrigatória. Fala-se que o negócio jurídico puro é
aquele que não está sujeito a nenhum deles.

4.3.1. Encargo ou modo


O encargo ou modo, elemento acidental do negócio jurídico, que introduz um ônus imposto ao be-
neficiário de um negócio gratuito em prol de uma liberalidade maior (conjunção: “PARA QUE” / “COM O
FIM DE”).
Embora “ônus” seja um termo de significado equívoco, ele parece ser o mais adequado para tradu-
zir a ideia do encargo. Isso porque encargo não é exatamente uma contraprestação, não devendo ter o
mesmo peso do benefício que se experimenta. Na verdade, o encargo é um ônus em troca de uma libera-
lidade maior112.
Por isso, o encargo é típico de negócios gratuitos, a exemplo da doação com encargo. Isso porque,
na doação com encargo, o donatário é o beneficiário (vai receber uma liberalidade muito maior), mas
estará sujeito a um ônus. Então, o encargo é aquele pequeno “prejuízo” que uma parte suporta em prol de
uma liberalidade maior. Em sucessões, serão estudados outros exemplos relacionados ao encargo.
Ex.: Sujeito celebra contrato de doação, por meio do qual doa um imóvel de 10 mil hectares, que
vale alguns milhões de reais. Em troca, ele impõe ao donatário o encargo de construir um pequeno posto
de saúde na vila próxima à fazenda. Com esse posto de saúde, o donatário terá de gastar cerca de 40 mil
reais e, em troca, receberá milhões.

112 Adiante serão analisadas as consequências do descumprimento desse encargo.

164
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No Código Civil, o encargo é regulado pelos artigos 136 e 137:

Art. 136. O encargo não suspende a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expres-
samente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva.

O art. 136 estabelece a regra geral de que o encargo não suspende a aquisição nem o exercício do
direito decorrente do negócio.
Ex.: sujeito doa seu carro impondo ao donatário o encargo de doar cinco cestas básicas a uma insti-
tuição de caridade. Desde o dia em que foi celebrado o contrato e o doador entregou as chaves, o carro já
será do donatário (mesmo que ele ainda não tenha cumprido o encargo). Isso porque o encargo não sus-
pende a aquisição ou o exercício imediato do direito.
O descumprimento do encargo poderá gerar consequências, que serão estudadas mais adiante. Po-
derá haver p. ex. a revogação da doação. Mas, por ora, cumpre observar que o encargo não suspende
a aquisição ou o exercício do direito, salvo se for imposto como condição suspensiva (que por na-
tureza suspede a aquisição do direito).

Art. 137. Considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo
determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico.

A regra do art. 137 é muito clara: caso se estabeleça um encargo ilícito ou impossível, considera-se
que esse encargo não existe. Ex.: sujeito celebra contrato doando uma casa e impondo o encargo de o
donatário estabelecer ali uma casa de prostituição. Nos termos do art. 137, essa cláusula que estabelece
um encargo ilícito é não escrita. Nesse caso, a doação será pura (a casa é do donatário e ele não tem que
cumprir o encargo).
O problema é que o art. 137 faz uma ressalva que traz implicações no plano de validade do negócio
jurídico. Nos termos do dispositivo, se o encargo ilícito ou impossível for o motivo determi-
nante da liberalidade, invalida-se o negócio jurídico. Em outras palavras, se o encargo ilícito ou
impossível for a causa ou finalidade daquele negócio, todo o contrato estará contaminado.
No exemplo da doação da casa, se da interpretação do contrato ficar demonstrado que o encargo
ilícito ou impossível for a própria causa do negócio, todo o contrato será invalidado. Ex.: sujeito diz que
está doando uma casa no bairro tal com a finalidade de lá estabelecer uma casa de prostituição.
Veja que essa é uma análise subjetiva, de interpretação, mas é isso que a norma estabelece. Ou seja,
deve-se extrair do contrato se o encargo ilícito ou impossível representa a própria finalidade do negócio.
Se não for possível considerá-lo causa do contrato, estar-se-á diante de uma doação pura. Por outro lado,
se for detectado que o encargo ilícito ou impossível é a própria finalidade do negócio, todo contrato será
invalidado.

4.3.2. Condição

4.3.2.1. Conceito e elementos

165
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A condição, elemento acidental do negócio jurídico, é o acontecimento futuro e incerto que interfe-
re na eficácia jurídica do negócio. Com isso, é possível dizer que a condição parte de dois requisitos ou
elementos: futuridade e incerteza.

4.3.2.1.1. Futuridade

Spencer Vampré traz uma observação interessante. Ele afirma que a condição é sempre um aconte-
cimento futuro. Ou seja, fatos passados não caracterizam condição.
Ex.: “A” celebra um contrato sob a condição de que a outra parte se case com a irmã dele. Nesse ca-
so, o casamento é uma condição. Trata-se de evento que ainda não ocorreu, do qual dependerá a eficácia
do negócio jurídico.
Ex.: sujeito celebra um contrato segundo o qual doará ao outro metade do prêmio que poderia ter
ganhado na loteria que ocorreu ontem. Nesse caso, não há condição, porque a loteria ocorreu ontem. O
êxito ou não êxito da loteria já ocorreu. De duas uma: i) ou o sujeito não ganhou na loteria, e o contrato
não terá efeito algum; ii) ou o sujeito ganhou na loteria e celebrou uma doação pura.

4.3.2.1.2. Incerteza

A condição é um acontecimento incerto quanto à sua ocorrência. Ou seja, não há certeza sobre se
aquele evento vai ou não ocorrer. Ex.: no exemplo do sujeito que celebra um contrato de doação de uma
casa, sob a condição de que o donatário se case com sua irmã, o casamento é um evento futuro e incerto,
porque não há certeza sobre se será ou não celebrado.
Levando em conta essa análise feita acima, cabe perguntar: a morte seria ou não uma condição?
Não, porque a morte é certa quanto a sua ocorrência. Portanto, não importa que não se saiba a data da
morte, pois o que vai caracterizar a condição é a incerteza quanto a sua ocorrência.
Ex.: sujeito celebra contrato de doação de sua fazenda, determinando que entregará o bem no mo-
mento em que seu tio, que lá reside, morrer. A morte do tio não é uma condição, porque, embora seja um
evento futuro, ela é certa. Trata-se, na verdade, de um termo de data incerta.
Diferente é a hipótese em que se celebra um contrato de doação da fazenda sob a condição de que o
tio que lá reside faleça até 31 de dezembro de 2011. Nesse segundo caso, estipulando-se um período de
tempo em que a morte deva ocorrer, a morte será, sim, uma condição. Isso porque não há certeza de que
a morte ocorrerá nesse período.
Observe que esses dois exemplos não têm nada a ver com o pacta corvina, que é vedado pelo orde-
namento brasileiro. Pacta corvina é o contrato que tem por objeto herança de pessoa viva. Ex.: sujeito
celebra com seu irmão um contrato em que se compromete a entregar parte da herança que receberá de
seu pai, que ainda nem faleceu. Isso não pode ocorrer. Nem mesmo o próprio autor da herança pode, em
vida, fazer isso por meio de contrato.
Nos dois exemplos anteriores, não se trata de herança de pessoa viva.

4.3.2.2. Classificação da condição


166
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Serão estudadas neste tópico as principais classificações da condição. Como visto, a condição sem-
pre se refere a um fato futuro e incerto.
Vale lembrar, nos termos do art. 121 do CC, que a cláusula que estipula a condição deriva sempre
da vontade das partes. Não há, segundo o CC, espaço para condição estipulada por lei (condiciones juris).
Antigamente, os autores defendiam que a lei brasileira poderia estipular condições para as próprias
partes. No entanto, o novo CC afastou essa possibilidade. Assim, a cláusula que prevê a condição é sem-
pre uma cláusula estipulada pelas partes. O acontecimento a que a cláusula se refere pode ser determi-
nado pela vontade das partes ou não.
Ex.: contrato de compra da safra de cacau se, no próximo semestre, chover. Essa é uma condição
que se refere a um fato da natureza. Trata-se de uma cláusula estipulada por vontade das partes, não po-
dendo o legislador estabelecê-la pelos contratantes.

Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes,
subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.

4.3.2.2.1. Quanto à licitude: condição lícita ou ilícita

Vale lembrar que os critérios classificatórios quanto ao modo de atuação e quanto à licitude podem
se conjugar. Desse modo, uma condição pode ser, ao mesmo tempo, suspensiva e lícita. O que uma con-
dição não pode ser ao mesmo tempo é suspensiva e resolutiva ou lícita e ilícita.
Quanto à licitude, a condição poderá ser lícita ou ilícita. E a base desse raciocínio é o art. 122 do CC:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos
bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio
jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

Segundo a regra geral do art. 122, condição lícita é aquela não contrária à lei, à ordem pública e aos
bons costumes. Contrario sensu, obviamente, a condição ilícita será aquela contrária à lei, ordem pública
e bons costumes. Ex.: contrato em que se estipula a condição de se cometer um crime, ou de não poder
sair do país.
Veja que dizer esse conceito, conforme estabelecido no art. 122, é dizer o óbvio. As questões de con-
curso vão um pouco além daquilo que dispõe o Código. Consideram-se também ilícitas a condição per-
plexa e a condição puramente potestativa.
i) condição perplexa:
Condição perplexa é aquela contraditória em seus próprios termos, que culmina por privar o negó-
cio jurídico de efeitos. Pode-se dizer que a condição perplexa é uma condição “paranóica”, pois a sua con-
tradição acaba por impedir a eficácia jurídica do negócio.
Ex.: sujeito celebra contrato de locação residencial de seu apartamento com outrem, sob a condição
de que o locatário não more lá. Essa é uma condição contraditória em seus próprios termos. Como cele-
brar um contrato de locação residencial em que se impede que o locatário lá resida?

167
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) condição puramente potestativa:


Condição puramente potestativa é aquela subordinada ao exclusivo arbítrio ou capricho de uma
das partes.
Os autores, em geral, mencionam o seguinte exemplo: celebra-se um contrato em que se estipula a
condição de que a parte só efetuará o pagamento se quiser. Essa é uma condição arbitrária, odiosa, por-
que ela se condiciona à exclusiva e tirânica vontade de apenas uma das partes.
Muito cuidado, porque a condição puramente potestativa tem uma “irmã gêmea”, denominada de
condição simplesmente potestativa (que é uma condição “boa”). Esta última é uma condição lícita e
admitida pelo ordenamento jurídico. A diferença entre elas é muito sutil e vai depender muito do caso
concreto.
A condição simplesmente potestativa, admitida pelo ordenamento jurídico, não é arbitrária, na
medida em que, embora dependa da vontade de uma das partes, é relativizada pelas próprias circunstân-
cias.
Ex.: prêmio de 1 milhão de reais que o time de futebol paga ao jogador sob a condição de, ao final
do campeonato, ele ser o artilheiro. Essa é uma condição suspensiva, mas que também é simplesmente
potestativa. Veja que o implemento dessa condição depende da vontade do jogador, mas não exclusiva-
mente dela. Isso porque a condição vai depender também do nível técnico dos outros times e do próprio
time em que ele joga, bem como das condições físicas do jogador, do campo de futebol e do árbitro que
apita os jogos. Logo, embora essa seja uma condição que depende da vontade de uma das partes para se
verificar, ela não depende exclusivamente dessa vontade.
Obs.: em algumas situações, a exemplo do que se lê no art. 509 do CC e no art. 49 do CDC, o pró-
prio ordenamento jurídico excepcionalmente admite a atuação da exclusiva vontade de uma das par-
tes como condição do negócio:

Art. 509. A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva,
ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não
manifestar seu agrado.

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura
ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de
produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a
domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os


valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos,
de imediato, monetariamente atualizados.

168
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como visto, a condição puramente potestativa, que depende da vontade exclusiva de uma das par-
tes, é ilícita. Mas, se o sujeito adquire um aparelho celular pela internet, de acordo com o art. 49 do CDC,
ele tem um prazo de 7 dias para dizer que não quer o produto. Essa é uma situação em que excepcional-
mente se admite a condição que se verifica por vontade exclusiva de uma das partes, por razões de ordem
pública. Caso não haja essa autorização legal, não é possível se estabelecer condição que apenas se im-
plemente pela vontade de uma das partes.
O que se entende por “condição promíscua”? Alguns autores, como Maria Helena Diniz, tratam da
denominada condição promíscua, que é aquela que nasce simplesmente potestativa e, dado um fato su-
perveniente, impossibilita-se depois.
Ex.: clube de futebol celebra contrato com jogador em que se compromete a pagar-lhe 1 milhão de
reais, sob a condição de que ele seja o artilheiro do campeonato. Antes do final do campeonato, esse jo-
gador quebra a perna. Nesse caso, a condição nasceu lícita, mas, por conta da fratura do membro do jo-
gador, se impossibilitou. Havendo condição promíscua, o contrato não gerará efeitos.
Interpretando o art. 123, verifica-se que quando uma condição for ilícita, ela contaminará todo o
negócio jurídico. Como diz Beviláqua, é como se se colocasse uma laranja podre num cesto de laranjas
sadias. Uma condição ilícita aposta no negócio jurídico o tornará inválido.

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:

I - as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;

II - as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita;

III - as condições incompreensíveis ou contraditórias.

4.3.2.2.2. Quanto ao modo de atuação: condição suspensiva ou resolutiva113

Este é o critério de classificação mais importante. Quanto ao modo de atuação, a condição pode ser
suspensiva ou resolutiva.
i) condição suspensiva (conjunção “SE”):
Condição suspensiva é o acontecimento futuro e incerto que suspende o início da eficácia jurídica
do negócio, assim como os direitos e as obrigações dele decorrentes (art. 125, CC):

Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se
não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.

Ex.: contrato de doação em que se estabelece que a casa será doada sob a condição de que o benefi-
ciário se case com a irmã do doador. Enquanto esse acontecimento futuro e incerto não ocorrer, suspen-
de-se a eficácia jurídica do negócio, bem como os direitos e obrigações dele decorrentes. Somente quando

113 Conjunções: “se” (condição suspensiva) ou “enquanto” (condição resolutiva).

169
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o beneficiário contrair núpcias com a irmã do doador é que o negócio passará a produzir efeitos, assim
como o beneficiário passará a ter direitos e o doador, obrigações.
Ex.: fabricante de camisas celebra contrato com partido político, segundo o qual a fabricante se
compromete a fabricar camisas com a foto do candidato, sob a condição de que o candidato seja vencedor
da eleição. Enquanto não houver o resultado das eleições, esse contrato, que é existente e válido, não
produz efeitos. Isso porque a condição suspensiva, enquanto não se verifica, suspende a eficácia jurídica
do negócio.
A condição suspensiva não suspende apenas a exigibilidade do negócio. Enquanto não verifi-
cada, a condição suspensiva suspende a própria aquisição dos direitos decorrentes do
negócio. Portanto, enquanto a condição não se verificar, as partes não terão adquirido direitos e obriga-
ções recíprocos.

Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se
não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa. [E, obviamente, também não se
verificará a correspondente obrigação]

Por isso, adverte Caio Mario da Silva Pereira que, em regra, o pagamento antecipado de uma obri-
gação derivada de contrato subordinado a condição suspensiva não verificada permite a exigência da
devolução do indébito, para evitar enriquecimento sem causa.
Imaginando-se que a empresa de confecção de camisas celebrou contrato para confeccionar 10.000
camisas e receber R$ 10.000,00, sob a condição de que o candidato do partido saísse vencedor das elei-
ções de outubro. Ocorre que o tesoureiro, inadvertidamente, pagou o valor das camisas à empresa antes
do final das eleições. Nesse caso, o pagamento foi indevido porque a condição suspensiva ainda não se
verificara. Isso porque, enquanto a condição não ocorrer, o negócio não produzirá efeitos e as partes ain-
da não terão direitos e obrigações recíprocos.
A condição suspensiva suspende a exigibilidade do contrato, bem como a aquisição de direitos e
obrigações. Ressalva-se a hipótese em que o partido político resolve pagar antecipadamente o valor por
liberalidade ou previsão contratual, porque isto se refere ao campo da autonomia privada.
ii) condição resolutiva (conjunção “ENQUANTO”):
A condição resolutiva, diferentemente da suspensiva, quando verificada resolve os efeitos jurídicos
que até então estavam sendo produzidos pelo negócio (art. 127 e 128, do CC).

Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico,
podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.

Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela
se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, sal-
vo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatí-

170
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

veis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé.

Esse tema está inserido na Teoria Geral do Contrato, no que concerne às cláusulas resolutivas táci-
tas e expressas. Então, esses artigos serão mais bem estudados adiante.
Nas palavras de Flávio Tartuce, enquanto não verificadas as condições resolutivas vigorará o negó-
cio jurídico, cabendo o exercício de direitos (há direito adquirido). Sobrevindo essa condição o negócio
jurídico é extinto, para todos os efeitos.
A ideia aqui é simples: a condição resolutiva funciona como ponto oposto da condição suspensiva.
Enquanto a condição suspensiva é aquela que suspende o início da eficácia jurídica do negócio, a condi-
ção resolutiva, quando verificada, resolve os efeitos jurídicos que o negócio já produzia.
Ex.: dono do cursinho celebra um contrato de usufruto de uma fazenda com o aluno, segundo o
qual ele vai perceber os proventos daquela propriedade até o dia em que passar no concurso. Nesse caso,
a aprovação no concurso é uma condição resolutiva, pois, quando e se acontecer, vai resolver a eficácia
jurídica do negócio. Toda a renda percebida pelo aluno enquanto não havia sido aprovado no concurso
lhe pertence, porque o direito havia se consolidado naquele período.

4.3.2.2.3. Quanto à origem: condição casual, potestativa ou mista

Quanto à origem do fato que traduz a condição, esta poderá ser casual, potestativa ou mista. Como
visto, a cláusula que estipula a condição deriva sempre da vontade de ambas as partes, mas o fato a que a
cláusula se refere poderá ser um fato da natureza ou a vontade de uma das partes (se for a vontade exclu-
siva de uma das partes, a cláusula será puramente potestativa e, portanto, ilícita).
i) condição casual:
Condição casual é aquela que se refere a um acontecimento da natureza. Ex.: cláusula segundo a
qual o contraente comprará a safra de cacau se chover.
ii) condição potestativa:
Condição potestativa é aquela que depende da vontade de uma das partes para se verificar. Nesse
caso, como visto, a condição poderá ser puramente potestativa (ilícita) ou simplesmente potestativa (líci-
ta).
iii) condição mista:
Condição mista é aquela que depende da vontade de uma das partes e da vontade de um terceiro.
Aqui não há abusividade. Ex.: contrato de doação sob a condição de que o beneficiário se torne sócio do
irmão do doador. Essa é uma condição que depende da vontade do beneficiário e de um terceiro para se
verificar.

4.3.2.2.4. Quanto à possibilidade: possíveis e impossíveis

i) Condições possíveis:
São aquelas que podem ser cumpridas, física e juridicamente, nã influindo na validade do negócio.
Exemplo: venda subordinada a uma viagem do comprador à Europa.

171
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) Condições impossíveis:


São aquelas que não podem ser cumpridas, por uma razão natu ou jurídica, influindo na validade
do ato e gerando a sua nulidade absoluta, nos termos do que prevê a lei. Quando são suspensivas geram a
nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 123, I, do CC). Exemplo: venda subordinada a uma viagem do
comprado ao planeta Marte.
Em resumo:

4.3.3. Termo
O conceito de termo é muito simples. Ele se aproxima do de condição, mas há uma diferença fun-
damental entre eles.
O termo, elemento acidental do negócio jurídico, é o acontecimento futuro e certo (quanto à sua
ocorrência), que interfere na eficácia jurídica do negócio.
Para Flávio Tartuce é elemento acidental do negócio jurídico que associa a sua eficácia a evento fu-
turo e certo (Conjunção: “quando”).
Portanto, o termo, ao contrário da condição, é evento futuro e certo, ao passo que a condição é
evento futuro e incerto. Por isso que a morte, em regra, é um termo: embora não se saiba quando ela vai
acontecer, se sabe que ela irá ocorrer um dia.

172
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O exemplo mais difundido de termo é a data. Ex.: sujeito celebra contrato de prestação de serviços
com uma escola de alemão. As aulas terão início em 1º de março, momento em que se pagará o valor do
curso, e se encerrarão em 1º de julho. Esses são termos, acontecimentos futuros e certos.
O termo que marca o início da eficácia jurídica do negócio é denominado de termo inicial (dies
a quo), ao passo que o termo que marca o término da eficácia jurídica do negócio é o termo final (di-
es ad quem). O período de tempo entre o termo inicial e o final é denominado de prazo114.
Como visto, a cláusula que estabelece a condição deriva apenas da vontade das partes. Isso não
ocorrerá com o termo. Assim, a cláusula que estipula o termo poderá ser convencional (estipulada pelas
partes), legal (determinada pela lei) e de graça ou judicial (estipulada pelo juiz). Essa é outra diferença
entre condição e termo.
Assevera Flávio Tartuce que o termo pode ser ainda certo ou incerto (ou determinado e indetermi-
nado), conforme conceitos a seguir:
a) Termo certo ou determinado – sabe-se que o evento ocorrerá e quando ocorrerá. Exemplo: o
fim de um contrato de locação celebrado por tempo determinado.
b) Termo incerto e indeterminado – sabe-se que o evento ocorrerá, mas não se sabe quando.
Exemplo: a morte de uma determinada pessoa.
Exemplos:
i) termo convencional: contrato de financiamento com o banco, em que as partes estipulam as da-
tas em que serão pagos os boletos;
ii) termo legal: a lei estabelece as datas em que se deve recolher o imposto de renda;
iii) termo de graça: juiz, em acordo celebrado no juizado, estipula a data para pagamento de deter-
minada obrigação.
Há, ainda, outra diferença entre condição suspensiva e termo. Se o contrato estiver subordinado a
uma condição suspensiva, enquanto ela não se verificar, o negócio não gerará os efeitos jurídicos, assim
como não serão gerados os direitos e as obrigações dela decorrentes. Isso não ocorre com o termo. O
termo apenas suspende a exigibilidade do negócio e não os direitos decorrentes dele (art. 131, do CC).

Art. 131. O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito. [leia-se: sus-
pende a exigibilidade do negócio jurídico]

Ex.: sujeito financiou o pagamento de um carro. O boleto previa diversos termos de pagamento. O
sujeito, quando recebeu seu 13º, decide antecipar o pagamento de algumas parcelas. Nesse caso, ele terá
direito ao deságio, ou seja, a certo desconto relativo às parcelas pagas em adiantamento.
Isso pode ser feito porque o termo suspende a exigibilidade daquelas parcelas, mas não a aquisição
de direitos. Ou seja, o banco não pode cobrar as parcelas antecipadamente, mas nada impede que o de-

114 O CC traz algumas regras de contagem de prazo, tema que é mais bem desenvolvido em processo civil.

173
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

vedor realize o pagamento antes do termo. Isso porque o banco já tem o direito a receber e a parte já tem
a obrigação de pagar.
O Banco Central veda a TLA (tarifa de liquidação antecipada), que era cobrada por algumas insti-
tuições financeiras quando o devedor queria pagar parcelas do financiamento antecipadamente (a veda-
ção ocorreu em dezembro de 2007). Em verdade, tal determinação do BC nem deveria ser editada, se
fosse bem aplicado o que dispõem o CDC e o CC.
Isso porque o termo suspende a exigência do direito, mas o banco financiador já tem o direito de
receber. E, embora o banco não possa cobrar antes da data, o devedor tem direito a pagar antecipada-
mente e pedir o cálculo do deságio. Nada mais justo que os juros sejam recalculados, caso haja a anteci-
pação do capital.
Em resumo:
Condição Termo Encargo ou Modo

Negócio dependente de Negócio dependente de evento Liberalidade + ônus


evento futuro + incerto futuro + certo

Identificado pelas conjunções Identificado pela conjunção Identificado pelas


conjunções
“se” ou “enquanto” “quando” “para que” ou “com o fim de”
Suspende (condição Suspende o exercício (termo Não suspende nem resolve a
suspensiva) ou resolve inicial) ou resolve (termo final) eficácia do negócio. Não
(condição resolutiva) os os efeitos do negócio jurídico cumprido o encargo, cabe
efeitos do negócio jurídico Há direito adquirido. revogação de liberalidade.
Não há direito adquirido. Há direito adquirido.

5. Defeitos ou vícios do negócio jurídico


Como visto acima, os defeitos do negócio jurídico localizam-se no plano da validade (por isso são
anuláveis).
Podem ser divididos em duas grandes categorias como leciona Flávio Tartuce:

174
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

115

Obs.: Fraude à execução, vícios redibitórios e vícios do produto não são defeitos do negócio jurídi-
co. Ademais, a doutrina majoritária, apesar de resistências, continua entendendo que a simulação é vício
ou defeito do negócio jurídico.

5.1. Vícios da vontade ou consentimento

5.1.1. Erro / ignorância: arts. 138 a 144 CC

5.1.1.1. Conceito e requisitos

O Código Civil também chama o erro de ignorância. Na doutrina, em termos eminentemente teóri-
cos, alguns autores diferenciam as figuras: afirma-se que o erro é uma falsa percepção positiva da reali-
dade, ao passo que a ignorância traduziria um estado de espírito negativo, completo desconhecimento a
respeito do fato.
Para Pablo, a distinção teórica não tem tantos efeitos práticos, pois na pratica existe uma sinoní-
mia.
Segundo Flávio Tartuce tanto no erro quanto na ignorância há um “engano solitário”, ou seja, a
pessoa se equivoca sozinha. Desse modo se alguém induz outrem à erro trata-se de um caso de “dolo”,
outro defeito do NJ que será abaixo tratado.
O erro é defeito do negócio jurídico que tem como consequência a nulidade relativa do NJ (causa
de anulabilidade), desde que, na linha da doutrina tradicional (Clóvis Bevilaqua) e, segundo julgado do
próprio STJ (REsp 744.311/MT116), dois requisitos concorram (art. 138): i) o erro seja essencial ou subs-
tancial; e ii) o erro seja escusável ou perdoável (qualquer pessoa, na mesma situação, cometeria o mesmo
erro). Isso porque a lei não tutela os negligentes.

115 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.224


116 O julgado é de agosto de 2010 e adota a doutrina clássica. Deve-se analisar o direcionamento da banca
examinadora, para adotar uma ou outra postura.

175
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de
erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face
das circunstâncias do negócio.

Os autores modernos criticam pesadamente o requisito da escusabilidade do erro. Eles invocam o


princípio da confiança para dizer que o erro deve ser essencial, mas a parte não precisa provar que ele
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio, não so-
mente por ser algo muito subjetivo e abstrato, como porque houve confiança na outra parte.
Os autores mais modernos, conforme nota-se da leitura do próprio Enunciado 12 da I Jornada de
Direito Civil, corretamente, até pelo acentuado grau de abstração, entendem dispensável o requisito da
escusabilidade do erro, segundo o princípio da confiança:

Enunciado nº 12 - Art. 138: Na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável o erro,
porque o dispositivo adota o princípio da confiança.

Interessante a lição de José Fernando Simão no sentido de que o erro não precisa ser escusável,
bastando a cognoscibilidade, ou seja, o conhecimento do vício por aquele a quem se fez a declaração, o que
aproxima o erro do dolo e propõe notória valorização da boa-fé objetiva.
Finalmente, esclareça-se que o prazo para anular o negócio jurídico eivado de erro é decadencial de
quatro anos, contados da celebração do negócio jurídico (art. 178, II, do CC).
5.1.1.2. Espécies de erro
Na linha da doutrina de Roberto de Ruggiero, à luz do art. 139 do CC, fundamentalmente há quatro
tipos de erro: erro sobre o objeto, erro sobre o negócio, erro sobre a pessoa e erro de direito:

Art. 139. O erro é substancial quando:

I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualida-


des a ele essenciais;

II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de


vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;

III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal
do negócio jurídico.

5.1.1.2.1. Erro sobre o objeto

O erro sobre o objeto é aquele que diz respeito às características essenciais do próprio objeto do
negócio jurídico. Ex.: o sujeito quer comprar um relógio de ouro e compra um de cobre.

5.1.1.2.2. Erro sobre o negócio

Trata-se daquele em que uma das partes manifesta a sua vontade, pretendendo e supondo celebrar
determinado negócio jurídico, e, na verdade, realiza outro diferente (p. ex., quer alugar e escreve vender)

176
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, o erro sobre o negócio incide na própria declaração negocial de vontade. Ex.: o sujeito imagina ter
celebrado uma doação e, na verdade, celebrou um empréstimo. Ou celebra uma locação pensando estar
celebrando um comodato.

5.1.1.2.3. Erro sobre a pessoa

O erro sobre pessoa é aquele que incide nas características essenciais de um dos declarantes. Tem
especial aplicação no Direito de Família, no campo da anulabilidade do casamento (arts. 1.556 e 1.557 do
CC)117:

Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos
nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.

Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu co-
nhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;

II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vi-
da conjugal;

III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e


transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de
sua descendência;

IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne
insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.

Outros exemplos, fora do casamento: senhora que engravida do irmão gêmeo, num dia de falta de
luz, ou fotógrafo contrata com o irmão gêmeo do modelo que queria contratar.

5.1.1.2.4. Erro de direito

As três modalidades de erro de direito vistas acima são hipóteses fáticas. A quarta é jurídica.
O Código Civil de 1916, por influência de Clóvis Bevilaqua, não aceitava a categoria do erro de direi-
to, omissão contornada pelo art. 139, III, do CC de 2002. No Direito Penal, a matéria já tinha aceitação
(erro de tipo e erro de proibição).
Existe um dogma do ordenamento jurídico segundo o qual a ninguém é dado ignorar a lei. Todavia,
ele não significa uma presunção de que todo ser humano conheça e compreenda todas as normas de for-
ma perfeita e adequada. Pode ocorrer de uma pessoa, inclusive, ao interpretar de boa-fé uma norma do
sistema, supor ser juridicamente possível algo que é proibido. Exemplo é a dúvida acerca da interpreta-

117 Na jurisprudência, ver TJ/RS Apelação Cível 7001.668.7315.

177
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ção da norma que exige três anos de prática jurídica para fins de ingresso na Magistratura ou no MP. O
erro de proibição é perfeitamente possível no âmbito dos negócios jurídicos.
Na linha de pensamento de autores como Eduardo Espínola e Caio Mário, é possível concluir pela
admissibilidade do erro de direito, que, sem traduzir intencional recusa ao império da lei, incide no âm-
bito de atuação permissiva da norma. Ou seja, o declarante, ao celebrar o negócio, imagina permitido o
que é proibido. Evidentemente, parte-se da boa-fé dessa pessoa que celebra o negócio.
A norma que prevê a possibilidade do erro de direito deve ser interpretada com cautela, para evitar
fraudes e abusos.
Há diferença entre erro e vício redibitório, que será analisada por ocasião do estudo da teoria geral
do contrato.
Nos termos do art. 144, tendo havido erro sem prejuízo, o defeito desaparece:

Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a mani-
festação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do
manifestante.

Ex.: o sujeito compra uma estátua de osso de cachorro pensando ser de osso de marfim, sem que o
vendedor tenha também percebido. O vendedor entrega a estátua correta ou devolve o dinheiro. Nesse
caso, desaparece o erro.

5.1.1.2.5. Falso motivo

O art. 140 do Código Civil, que cuida do chamado “erro sobre os motivos”, prescreve:

“Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determi-
nante.”

Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, motivos são as ideias, as razões subjetivas, interiores,
consideradas acidentais e sem relevância para a apreciação da validade do negócio.
O motivo do negócio, ou seja, as razões psicológicas que levam a pessoa a realizá-lo, não precisa ser
mencionado pelas partes, ex. em uma compra e venda, por exemplo, os motivos podem ser diversos: a
necessidade de alienação, investimento, edificação de moradia etc. São estranhos ao direito e não preci-
sam ser mencionados.
O erro quanto ao objetivo colimado não vicia, em regra, o negócio jurídico, a não
ser quando nele figurar expressamente, integrando-o, como sua razão essencial ou de-
terminante, oportunidade em que passam à condição de elementos essenciais do negócio.
Em resumo, o falso motivo, por regra, não pode gerar a anulabilidade do negócio, a não ser que seja
expresso como razão determinante do negócio.

5.1.1.2.6. Erro impróprio

178
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo a doutrina de Ana Magalhães, a teoria do erro impróprio, derivada do pensamento de Sa-
vigny, sustentava que esta categoria de erro (também chamada de erro obstáculo) incidiria apenas na
vontade externa ou declarada do agente, não na sua intenção. Ex.: ao celebrar o negócio, em vez de dizer
venda, o declarante usa a palavra errada e diz locação.
O sistema jurídico brasileiro, dado o alto grau de abstração da tese, não se ocupa com essa distin-
ção. Como visto, o erro pode ser sobre o negócio, sobre o objeto ou sobre a pessoa. A hipótese de erro
impróprio poderia muito bem ser considerada um erro sobre o negócio.

5.1.2. Dolo

5.1.2.1. Conceito

Segundo Clóvis Bevilaqua, o dolo é o artifício astucioso empregado para induzir uma das partes do
negócio jurídico a realizar o ato de forma prejudicial ao seu próprio interesse. 118 Vale dizer, o dolo, causa
de anulação do negócio jurídico, defeito carregado de má-fé, nada mais é do que um erro provocado, in-
duzido. Uma das partes é enganada.
O dolo é mais astucioso, abjeto que o erro, vez que eivado de má-fé. Todavia, tanto o erro quanto o
dolo conduzem ao mesmo resultado: a anulabilidade do negócio jurídico.
Entretanto, apenas o dolo essencial ou “dolus causam” gera nulidade relativa (anulabilidade) do
negócio jurídico se for a sua causa. De outro lado, o dolo acidental (não essencial) não gera anulação do
negócio jurídico, mas apenas indenização por perdas e danos (CC, art. 146119).
Exemplo: na venda de imóveis na planta (“stand”) há um imóvel decorado em que não há informa-
ção que os móveis são feitos sob medida.

5.1.2.2. Dolus malus e dolus bunus


O próprio direito romano, de certa forma, já conhecia o instituto, ao consagrar e reconhecer o cha-
mado dolus malus, que se contrapõe ao chamado dolus bonus, este sim socialmente admitido e atual-
mente muito empregado como técnica de publicidade e propaganda.
O dolus bonus, em linhas gerais, se dá quando o anunciante do produto realça as características do
produto, sem deturpá-las. Ex.: propaganda de shampoo. Obviamente, a fronteira entre o dolus bonus e a
publicidade enganosa é tênue. Algumas empresas colocam, ao pé da embalagem, a mensagem “foto me-
ramente ilustrativa”.
As mensagens subliminares, aquelas que não podem ser captadas diretamente pelos sentidos hu-
manos, mas são inconscientemente percebidas, resultando muitas vezes em comportamento não deseja-

118 É a arma do estelionatário.


119 CC, art. 146: “O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu des-
peito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.

179
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

do, traduzem atuação dolosa e ilícita vedada pelo ordenamento jurídico120. Atualmente, a proibição da
mensagem subliminar deriva de interpretação principiológica do ordenamento. Trata-se de prática abu-
siva, dolosa, invasiva.
Assim, segundo Flávio Tartuce, nas relações civis não anula nem gera perdas e danos; nas rela-
ções de consumo não se admite sequer o dolo bom.

5.1.2.3. Dolo principal


O dolo, para invalidar o negócio jurídico, deve ser principal, ou seja, atacar a própria causa do ne-
gócio (art. 145):

Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.

No entanto, se o dolo for meramente acidental (art. 146), por atacar aspectos secundários do negó-
cio, este será mantido e ao agente doloso será imposta apenas a obrigação de pagar perdas e danos:

Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu
despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.

Assim, para invalidar o negócio, o dolo deve atacar a essência, a causa do negócio (deve ser princi-
pal). Ex.: o sujeito, ludibriado, adquire celular oriundo do exterior, que não funciona no Brasil. Esse dolo
é principal, podendo o contrato ser invalidado. Se o sujeito for enganado quanto a aspecto secundário do
celular, como o fato de ele não vir com capa original de fábrica, o negócio é mantido, mas há o direito de
exigir indenização.
Note, entretanto, que se trata de algo muito subjetivo. Se o cidadão só comprou o celular porque
também vinha com a capa, surgem caracteres de principalidade, podendo o negócio ser anulado.

5.1.2.4. Dolo negativo


O art. 147, que trata do dolo negativo, também é conhecido por reticência acidental ou omissão do-
losa, é um dos principais dispositivos legais relacionados ao dolo:

Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de
fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que
sem ela o negócio não se teria celebrado.

Na perspectiva do princípio da boa-fé objetiva, a omissão ou o silêncio intencional a respeito de fa-


to ou qualidade que a outra parte haja ignorado poderá resultar também na invalidade do negócio jurídi-
co. É o chamado dolo negativo.
O dolo negativo é, portanto, essa omissão intencional que induz a erro a outra parte.

120 O PL 4068/2008 e o PL 4825/2009, atualmente arquivados em virtude da mudança da Legislatura (po-


dendo ser desarquivados a qualquer tempo), proíbem expressamente a utilização de mensagens subliminares.

180
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.1.2.5. Dolo bilateral


Trata-se da situação em que ambas as partes agem dolosamente, um tentando prejudicar o outro
mediante o emprego de artifícios ardilosos. Em regra, haverá uma compensação total dessas condutas
movidas pela má-fé, consagração da regra pela qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza (ne-
mo auditur propriam turpitudinem allegans), inclusive se presente de forma recíproca.
Assim, o art. 150 do CC impede que o dolo bilateral seja oficialmente amparado:

Art. 150. Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negó-
cio, ou reclamar indenização.

Quando um está tentando enganar o outro no negócio, o dolo é bilateral e nenhuma das partes po-
de alegá-lo para invalidar o negócio. Isso porque ninguém pode alegar a própria torpeza em juízo. Não se
deve falar em compensação de dolos (não se compensam torpezas).
O dolo bilateral (de ambas as partes) é também denominado dolo compensado ou dolo enantio-
mórfico.

5.1.2.6. Dolo de terceiro (art. 148)

Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem
aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o ne-
gócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

Nos termos do que determina o art. 148 do CC, a regra geral é de que o dolo de terceiro somente
anulará o negócio se a parte beneficiária dele soubesse ou tivesse como saber 121. Ou seja, o juiz somente
pode anular o negócio se houver indicativo de cumplicidade entre o que executou o dolo e o beneficiário.
Caso contrário, o negocio jurídico será mantido, em atenção ao princípio da conservação do NJ e
somente o terceiro responderá por perdas e danos.
No caso de cumplicidade entre o beneficiário e o doloso, responderão ambos por perdas e danos,
cada qual na medida da sua participação.
Em resumo:

121 Segundo Clóvis Beviláqua “o dolo do estranho vicia o negócio, se sendo principal, era conhecido de uma das

partes, e esta não advertiu a outra, porque, neste caso, aceitou a maquinação, dela se tornou cúmplice, e responde por
sua má-fé”.

181
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

122

5.1.3. Coação

5.1.3.1. Conceito

A coação, causa de anulação do negócio jurídico, consiste na violência psicológica ou ameaça diri-
gida à vítima, para que celebre um negócio jurídico que a sua vontade interna não deseja realizar (art. 151
do CC):

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fun-
dado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com
base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

É o caso da contratação do serviço de “fiscalização” ou de “guarda” do carro. Há, no caso do “flane-


linha”, um componente de coação.
O art. 151 do CC não deve ser interpretado segundo o critério do homem médio. Na verdade, ao
apreciar a coação, devem ser levadas em conta as características pessoais em concreto (art. 152):

Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o tempe-
ramento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela.

Não se deve confundir a coação com a ameaça do exercício regular de direito nem com o simples
temor reverencial (art. 153):

Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples
temor reverencial.

A ameaça relacionada com o exercício regular de um direito reconhecido, como no caso de infor-
mação de prévio protesto de um título em Cartório, sendo existente e devida a dívida.
O mero temor reverencial ou o receio de desagradar pessoa querida ou a quem se deve obediência.
Exemplo: casar-se com alguém com medo de desapontar seu irmão, grande amigo. O casamento é válido.

122 Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos / Carlos

Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.329.

182
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Temor reverencial é o respeito à autoridade instituída (do filho com relação ao pai, por exemplo, do
sargento em face do general, do padre em face do bispo etc.) Ele não traduz coação, a menos que junto
com ele venha a ameaça (Pontes de Miranda), como no caso de ameaça de deserdação ou despejo injusto,
pelo pai.
Assim, verifica-se que nem toda ameaça configura a coação, vício do consentimento. Para que tal
ocorra, é necessário reunirem-se os requisitos estabelecidos no dispositivo supratranscrito, de modo que
a coação:
a) deve ser a causa determinante do ato;
b) deve ser grave ;
c) deve ser injusta;
d) deve dizer respeito a dano atual ou iminente ;
e) deve constituir ameaça de prejuízo à pessoa ou a bens da vítima ou a pessoa de sua família.

5.1.3.2. Coação física e coação moral


Os romanos já visualizavam dois tipos de coação: a coação física (vis absoluta) e a moral (vis com-
pulsiva).
Na coação física, existe emprego de energia corporal, que aniquila a vontade da pessoa coagida.
Uma pessoa compelida fisicamente a pôr sua digital num contrato não tem vontade. Assim, a coação físi-
ca pode conduzir à inexistência do negócio jurídico123.
A coação moral é aquela que gera no paciente fundado temor de mal considerável e iminente à sua
pessoa, à pessoa de sua família, à pessoa próxima ou aos seus bens.
Nesses casos existe clara violência psicológica, de modo que o coagido atua com vontade, embora
viciada. Vício da vontade é apenas a coação moral, uma vez que tal vontade não resta neutralizada por
completo. Ainda que na prática essa vontade acabe por ser quase que aniquilada (caso da arma na cabe-
ça), há ainda alguma margem de liberdade (mesmo que mínima).
Assim, a coação moral invalida o negócio jurídico. É caso de anulabilidade por conta da inexistên-
cia da liberdade na vontade.

5.1.3.3. Análise in concreto da coação


Ao apreciar a coação, deve o magistrado levar em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o tem-
peramento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade da pressão
exercida conforme determina o art. 152 do CC.
Nesse sentido, ensina Flávio Tartuce que cabe análise in concreto das circunstâncias que circun-
dam o negócio, principalmente as características gerais da pessoa coagida124.

123 Em sentido contrário Maria Helena Diniz entende pela nulidade do NJ.

183
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.1.3.4. Coação de terceiro (arts. 154 e 155 do CC)

Art. 154. Vicia o negócio jurídico a coação exercida por terceiro, se dela tivesse ou devesse ter
conhecimento a parte a que aproveite, e esta responderá solidariamente com aquele por perdas
e danos.

Art. 155. Subsistirá o negócio jurídico, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que
aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento; mas o autor da coação responderá por todas
as perdas e danos que houver causado ao coacto.

Nos termos dos arts. 154 e 155, a coação de terceiro anulará o negócio somente se o beneficiário
souber ou tiver como saber da coação, caso em que responderá solidariamente pelas perdas e danos.
Veja que o tratamento da coação de terceiro é muito parecido com o do dolo de terceiro, com uma
diferença muito sutil: existe, na coação de terceiro, uma previsão de solidariedade entre o coator e o be-
neficiário, que não ocorre no dolo de terceiro. Trata-se de solidariedade entre devedores (solidariedade
passiva, que nunca se presume) que confere ao credor uma situação mais confortável, na medida em que
qualquer deles poderá ser compelido a pagar a dívida integralmente.
No dolo de terceiro não há previsão de solidariedade: a vítima terá de demandar os dois para a ob-
tenção da indenização integral. Se o beneficiário não sabia nem tinha como saber da coação, o negócio é
mantido, mas o coator responderá por perdas e danos.

5.1.4. Estado de perigo


Na lição de Carlos Roberto Gonçalves constitui o estado de perigo a situação de extrema necessida-
de que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e ex-
cessiva.
Assim como a lesão, o estado de perigo não foi tratado pelo CC/16, merecendo reconhecimento tar-
dio no art. 156 do Código novo:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se,
ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação ex-
cessivamente onerosa.

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá
segundo as circunstâncias.

O estado de perigo, causa de anulabilidade do negócio jurídico, ocorre quando uma das partes,
premida da necessidade de salvar-se ou a pessoa próxima de grave perigo de dano, conhecido pela outra
parte, assume prestação excessivamente onerosa.

124 (TJRS, Apelação Cível 583443 30.2010.8.21.7000, Esteio, 9.ª Câmara Cível, Rel. Des. Iris Helena Medei-

ros Nogueira, 26.01.2011, DJERS 11.03.2011).

184
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, ESTADO DE PERIGO = Situação de perigo conhecido da outra parte (elemento subjetivo) +
onerosidade excessiva (elemento objetivo).
O estado de perigo é primo da coação e irmão da lesão. Para Pablo, ele é tão grave que deveria gerar
a nulidade absoluta do negócio. Aqui, não há uma ameaça direta ao coagido. Ele também não se confun-
de com a lesão, em que a pessoa atua por necessidade ou inexperiência. No estado de perigo, a pessoa
está desesperada para se salvar de situação grave e assume prestação excessivamente onerosa.
Trata-se de uma aplicação do estado de necessidade no direito civil: o sujeito atua para salvar a vi-
da ou a integridade física própria ou de uma pessoa próxima a ele.
O próprio STJ já reconheceu (REsp 918.392/RN), a despeito de críticas da doutrina (Gustavo Nico-
lau), que no estado de perigo exige-se o dolo de aproveitamento. A parte que se beneficia sabe do perigo,
atuando com esse dolo de aproveitamento.
Tal exigência, é verdade, somente dificulta a vida da vítima, mas se trata de previsão expressa do
art. 156 do CC.
Perfeita aplicação do instituto pode se dar em face da absurda e ilegítima exigência do cheque cau-
ção como condição para atendimento emergencial em clínicas e hospitais (REsp 796.739/MS, REsp
918.392/RN, Apelação 833.355-7, TJSP)125.
A Resolução 44/2003 da Agência Nacional de Saúde, nas condições estabelecidas por ela, proíbe
esse tipo de cobrança de garantia.
Flávio Tartuce assevera que para afastar a anulação do negócio e a correspondente extinção, poderá
o juiz utilizar-se da revisão do negócio, propondo a aplicação analógica do art. 157, § 2.º, do CC, tam-
bém para os casos de estado de perigo. Nos termos do Enunciado nº 148126 da III Jornada de Direito
Civil.

Obs.: Carlos Roberto Gonçalves apresenta as principais diferenças entre estado de perigo e lesão
podem ser visualizadas no seguinte quadro esquemático127:

ESTADO DE PERIGO (CC, ART. 156) LESÃO (CC, ART. 157)

A oferta se mostra viciada em razão do Não há vício da própria oferta, mas usura real, isto
comprometimento da liberdade de manifestação é, lucro patrimonial exagerado.
da vontade, em consequência do extremo risco
existente no momento em que é formulada.

125 Há projeto de lei aprovado na Câmara, atualmente no Senado, que busca alterar o Código Penal para
criminalizar essa conduta.
126:
Enunciado nº 148: “Ao ‘estado de perigo’ (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2.º do art. 157”
Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos / Carlos
127

Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.337.

185
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O contratante se encontra em uma situação na qual O declarante participa de um negócio


deve optar entre dois males: sofrer as desvantajoso, premido por uma necessidade
consequências do perigo que o ameaça ou ameaça econômica.
sua família ou pagar ao seu “salvador” uma quantia
exorbitante.

A inexperiência não constitui requisito para a sua Pode decorrer da inexperiência do declarante.
configuração.

Exige, além do elemento objetivo (prestação Não é necessário que a contraparte saiba da
excessivamente onerosa), também o conhecimento necessidade ou da inexperiência, sendo, pois,
do perigo pela parte que se aproveitou da situação objetivo o defeito.
(elemento subjetivo).

O agente se obriga a uma prestação de dar oufazer, Admite suplementação da contraprestação (art.
por uma contraprestação sempre de fazer. 157, § 2º), indicando que só ocorre em contratos

comutativos, em que a contraprestação


é um dar.
Pode conduzir a negócios unilaterais em que a Exige desequilíbrio de prestações.
prestação assumida seja unicamente da vítima:
promessa de recompensa, obrigação de testar em
favor de alguém etc.

5.1.5. Lesão
A lesão, posto já conhecida pelo direito romano (quando diferenciava a lesão enorme da lesão
enormíssima), não foi tratada pelo CC/1916. Críticas foram feitas por tal omissão, mormente em se con-
siderando que este instituto encontra terreno fértil nas sociedades de massa do século XX.
Caio Mário, muito tempo antes de o CC/02 cuidar da lesão, já havia escrito obra memorável acerca
da lesão nos contratos.
Em verdade, a necessidade de reconhecimento da lesão estava na razão direta dos crescentes abu-
sos de poder econômico. Com efeito, nenhum defeito do negócio jurídico guarda mais conexão com a
necessidade de salvaguarda da ganância do abuso de poder econômico que a lesão. Isso porque ela nasce
da necessidade econômica de quem celebra o contrato: algumas pessoas, em virtude da inexperiência ou
necessidade, assumem prestação excessivamente onerosa.
Vários imigrantes, quando vieram ao Brasil, recebiam parte do salário em alimentos e dinheiro,
sendo que a própria fazenda vendia o alimento, vendendo por trinta algo que valia dez. O direito romano
previa a lesão enorme ou enormíssima quando o sujeito vendia a muito mais que o preço justo. Terreno
fértil à lesão é o contrato por adesão.

186
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O empréstimo consignado, que é lícito em tese, pode causar lesão, a depender das circunstâncias
do caso concreto. Mesmo os bancos, que não estão limitados em taxa de juros, podem lesionar se a taxa
de juros praticada for estratosférica, muito acima da média de mercado praticada pelos próprios bancos.
É caso, em tese, de lesão, ainda que seja uma alegação difícil de ser feita no poder judiciário.

5.1.5.1. Conceito
A lesão, causa de invalidade do negócio jurídico (art. 157), deriva da desproporção entre as presta-
ções pactuadas, em virtude da necessidade ou inexperiência de uma das partes, a quem se impõe uma
obrigação excessivamente onerosa:

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se
obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

§ 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi
celebrado o negócio jurídico. (...)

Assim, LESÃO = premente necessidade ou inexperiência (elemento subjetivo) + onerosidade ex-


cessiva (elemento objetivo).
O tratamento legal desse importante vício tem o seu ponto de partida na Lei nº 1.521/1951 (Lei de
Crimes contra a Economia Popular), passando pelo CDC (arts. 6º, V, 39, V e 51, IV128), para finalmente
também ser reconhecido pelo Código Civil (art. 157). É inconcebível o fato de o CC/16 não ter tratado da
lesão. Para Pablo, houve desinteresse das oligarquias brasileiras em prever o instituto, notadamente pelo
fato de ter uma conotação social bastante intensa.
A lesão pode ocorrer com qualquer pessoa, não somente os pobres. Ex.: contrato de celebração de
promessa com cédulas hipotecárias pode gerar lesão inclusive para operadores do direito.
O CDC trata a lesão como causa de nulidade absoluta do negócio, ao passo que o CC
trata a lesão como causa de anulabilidade.
Entretanto, a doutrina majoritária entende que a revisão do negócio é a regra, em respeito ao prin-
cípio da conservação do negócio jurídico.

128 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabele-
çam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente
onerosas;

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela
Lei nº 8.884, de 11.6.1994) (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produ-
tos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

187
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É nesse sentido o Enunciado n. 291 do CJF/STJ, prevendo que:

“Nas hipóteses de lesão previstas no art 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não plei-
tear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vistas à revisão judi-
cial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço”.

Em suma, é plenamente possível que a parte prejudicada ingresse diretamente com uma ação fun-
dada na lesão, pleiteando a revisão do negócio.
A lesão é parecida com a teoria da imprevisão, mas com ela não se confunde. Com efeito, não se
pode confundir a lesão, vício invalidante do negócio jurídico em que a desproporção entre as
prestações nasce com o próprio negócio ( o vício ocorre no sinalagma genético), com a teoria da
imprevisão, uma vez que esta doutrina pressupõe um contrato que nasce válido e somente se desequili-
bra depois.

5.1.5.2. Elementos (ou requisitos)


Do conceito da lesão, é possível extrair dois elementos:
i) elemento material (ou objetivo) da lesão: é a desproporção entre as prestações do negócio (lem-
bre-se que o negócio jurídico nasce desproporcional);
ii) elemento imaterial (ou subjetivo) da lesão: é a necessidade ou a inexperiência da parte prejudi-
cada (algo que não é presumido, devendo ser provado).
A lei brasileira usou uma expressão mais objetiva, no sentido de não exigir o dolo de aproveita-
mento (a intenção de se aproveitar, de explorar, o conhecimento da situação específica do explorado): o
art. 157 não diz que a outra parte tem de ter o conhecimento da inexperiência ou da necessidade, o que
também foi objeto do Enunciado n. 150 do CJF/STJ 129.
Conforme já visto acima, CC determina, que se as partes reequilibrarem o negócio ele não será anu-
lado, trata-se da regra, em respeito ao princípio da conservação dos NJ:

Art. 157 (...) § 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente,
ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

Finalmente, é de se destacar que o prazo decadencial para anulação é decadencial de quatro anos
(CC, art. 178), e o prazo para revisão é prazo é prescricional de 10 anos (CC, art. 205).
5.1.5.3. Lesão usurária
Encontra-se prevista no Art. 11 Dec.-Lei n. 22.626/1933130, trata-se da hipótese em que há cobrança
de juros abusivos, acima do dobro da taxa legal (1% ao mês).

129Enunciado 150 CJF/STF “a lesão que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”.
130art. 11: “O contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno direito, ficando assegurado ao deve-
dor a repetição do que houver pago a mais”.

188
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A lesão usurária ou subjetiva gera nulidade absoluta do NJ, entretanto, Flávio Tartuce entende que
mesmo nesses casos o NJ é apenas anulável, em respeito a conservação contratual, princípio anexo à
função social do contrato, de modo que deve sempre o magistrado procurar a revisão do negócio, man-
tendo a vontade manifestada pelas partes.
Exige o dolo de aproveitamento.

5.1.5.4. Diferenças com os demais vícios do consentimento 131


A lesão, como foi dito, não se confunde com os demais vícios do consentimento. Confiram-se os
traços diferenciadores:
a) Lesão X erro — no erro, o agente manifesta a sua vontade ignorando a realidade ou tendo dela
uma falsa ideia. Se a conhecesse ou dela tivesse ideia verdadeira, não faria o negócio. Na lesão,
tal não ocorre, visto que a parte tem noção da desproporção de valores. Realiza o negócio, mes-
mo assim, premido pela necessidade patrimonial.
b) Lesão X dolo — quando a outra parte induz em erro o agente, mediante o emprego de artifício
astucioso, configura-se o dolo. Nos negócios comprometidos pela lesão, simplesmente aprovei-
ta-se uma situação especial, como de necessidade ou inexperiência, não havendo necessidade de
que a contraparte induza a vítima à prática do ato.
c) Lesão X coação — na coação, a vítima não age livremente. A vontade é imposta por alguém me-
diante grave ameaça de dano atual ou iminente. Na lesão, ela decide por si, pressionada apenas
por circunstâncias especiais, provenientes da necessidade ou da inexperiência.
d) Lesão X estado de perigo — a lesão também distingue-se do estado de perigo, em que a vítima
ou alguém de sua família corre risco de vida, e não de dano patrimonial, sendo essencial o co-
nhecimento do perigo pela contraparte, como comentado no item 7.5.5.2.1, retro, no qual essa
questão foi desenvolvida e ao qual nos reportamos.
A lesão destaca-se dos demais defeitos do negócio jurídico por acarretar uma ruptura do equilíbrio
contratual na fase de formação do negócio, desde o seu nascimento; e da onerosidade excessiva ou cláu-
sula rebus sic stantibus por caracterizar-se esta pelo surgimento de fatos supervenientes à celebração do
negócio, possibilitando a invocação da teoria da imprevisão para embasar a revisão somente nos contra-
tos de execução diferida e nos de trato sucessivo.

5.2. Vícios sociais

5.2.1. Simulação: Art. 164 CC

5.2.1.1. Conceito

131 Adaptado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contra-

tos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

189
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce é um vício social do negócio jurídico quando há uma discrepância entre a
vontade interna e a vontade manifestada. 132
Segundo Carlos Roberto Gonçalves simular significa, pois, fingir, enganar. Negócio simulado, as-
sim, é o que tem aparência contrária à realidade. A simulação é produto de um conluio entre os contra-
tantes, visando obter efeito diverso daquele que o negócio aparenta conferir.
Assim na simulação, celebra-se um negócio jurídico aparentemente normal, mas que, em verdade,
não pretende atingir o efeito que juridicamente deveria produzir.
A simulação e a fraude contra credores são consideradas pela doutrina vícios (ou defeitos) sociais,
por serem extremamente graves.
Na simulação, diferentemente do dolo, em que uma parte quer enganar a outra, as duas partes se
mancomunam para enganar um terceiro ou a própria lei.
Dessa forma, trata-se de uma questão de ordem pública, de modo que qualquer seja a modali-
dade de simulação gera nulidade absoluta do negócio jurídico.

5.2.1.2. Espécies de simulação

5.2.1.2.1. Simulação absoluta

Na simulação absoluta, as partes criam um negócio jurídico destinado a não gerar efeito jurídico
algum. É um verdadeiro jogo de cena. Ex.: o sujeito simula um contrato em virtude do qual transmitiria
bens do patrimônio do casal a um amigo, a título de pagamento, para se livrar dos bens e fraudar a parti-
lha.
O negócio simulado é celebrado para não produzir efeito jurídico nenhum (no exemplo dado, o
amigo devolveria os bens).

5.2.1.2.2. Simulação relativa (ou dissimulação133)

Na simulação relativa, as partes criam um negócio jurídico destinado a encobrir outro, que produ-
zirá efeitos vedados por lei.
Nesse sentido, essa figura compõe-se, de dois negócios: um deles é o simulado, aparente, destinado
a enganar; o outro é o dissimulado, oculto, mas verdadeiramente desejado. O negócio aparente, simula-
do, serve apenas para ocultar a efetiva intenção dos contratantes, ou seja, o negócio real.134

132A aparência discrepa da essência, “parece, mas não é”.


133Segundo Carlos Roberto Gonçalves Simulação não se confunde, pois, com dissimulação, embora em am-
bas haja o propósito de enganar. Na simulação, procura-se aparentar o que não existe; na dissimulação, oculta-se o
que é verdadeiro. Na simulação, há o propósito de enganar sobre a existência de situação não verdadeira; na dissi-
mulação, sobre a inexistência de situação real.
134 Exemplo de simulação extraído da jurisprudência do STJ (Informativo 538, REsp 1.076.571): uma senhora

celebra contrato de mútuo com um agiota, a juros altíssimos, e dá como garantia seu imóvel, mediante a celebração
de um contrato de compra e venda com cláusula de retrovenda (prazo máximo de 3 anos). Se ela pagar a dívida no
prazo, “compra” o bem de volta. Se não pagar, o bem fica com o agiota em definitivo. A compra e venda, nesse caso,

190
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: o sujeito simula uma compra e venda com a amante para mascar a doação.
Poderá haver simulação relativa também quando o ato simulado é praticado mediante interposta
pessoa. O sujeito casado não pode celebrar contrato de doação com a amante. Doa então para um amigo,
que doará posteriormente a ela.
A simulação relativa pode ser subclassificada (CC, art. 167, § 1º30):
a) Simulação relativa objetiva: o problema está no conteúdo ou objeto do negócio. Exemplos:
cláusula ou declaração não verdadeira; instrumentos particulares antedatados ou pós-datados;
e fazer escritura de imóvel pelo valor menor que o valor real de mercado.
b) Simulação relativa subjetiva: a pessoa com quem se negocia não é a verdadeira. Exemplo: con-
tratos celebrados com “laranja”, “testa de ferro”, “cítrico” ou interposta pessoa.

5.2.1.3. Nulidade absoluta


Conforme visto acima, todos os defeitos até aqui tratados geravam a anulação do negócio jurídico.
A simulação, contudo, é diferenciada. O Código Civil de 2002, rompendo tradição legislativa, passou a
considerá-la causa de nulidade absoluta do negócio jurídico. Ela gera o negócio jurídico nulo (art. 167,
caput, primeira parte, do CC):

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na
substância e na forma.

Até o CC/2002, a simulação era tratada como causa de anulação do negócio.


Atenção em prova! Se a data da celebração do negócio de que tratar a questão for anterior à entrada
em vigor do CC/02, deve-se aplicar o CC/16.
Tanto a simulação absoluta quanto a relativa causam a nulidade absoluta do negócio jurídico. En-
tretanto, na simulação relativa, à luz do princípio da conservação, em sendo possível, o juiz poderá
aproveitar o negócio dissimulado (art. 167, caput, segunda parte). Esse princípio é tratado por autores
como Marcos Bernardes de Melo: sempre que puder, o juiz deve aproveitar o negócio jurídico inválido.
Na simulação absoluta não há o que aproveitar, pois não há negócio. Na relativa, o aproveitamento do
negócio ocorrerá somente quando possível.
Ex.: um homem casado pode constituir união estável, desde que separado de fato. A compra e ven-
da simulada para permitir a doação à companheira, no caso em que o sujeito esteja separado de fato,
pode ser aproveitada pelo juiz.
O art. 103 do CC/16 dispunha que a simulação “inocente” (desprovida da intenção de prejudicar)
não invalidava o negócio. Já o CC/02 não traz esta distinção (Enunciado 152 da 3ª Jornada):

simula um mútuo com taxas altas e uma espécie de pacto comissório (o devedor fica com a garantia da dívida para
si), sem levá-lo à excussão. Nesse julgado, o STJ decidiu que o contrato é nulo e a simulação pode ser alegada em
contestação, não necessitando de ação autônoma ou reconvenção.

191
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

CC/1916: Art. 103. A simulação não se considerará defeito em qualquer dos casos do artigo ante-
cedente, quando não houver intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei.

Enunciado nº 152: Art. 167: Toda simulação, inclusive a inocente, é invalidante.

Portanto, para o CC/2002, simulação é simulação e gera a nulidade do negócio. O Novo Código não
investiga o pensamento das partes, de modo que não houve espaço para essa simulação inocente.
O art. 104 do CC/16 dizia que, em se tratando de um negócio jurídico simulado, as partes não pode-
riam, caso brigassem entre si, recorrer ao Poder Judiciário:

Art. 104. Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada pode-
rão alegar, ou requerer os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um con-
tra o outro, ou contra terceiros.

O dispositivo baseava-se na máxima segundo a qual a ninguém é dado alegar a própria torpeza. Es-
se princípio foi relativizado pelo CC/02.
Ex.: a compra e venda simulada com a amante para mascarar a doação do sujeito que ainda vive
com a esposa era considerada nula. Caso o sujeito, tempos depois, brigasse com a amante, ele não pode-
ria ajuizar ação contra ela para invalidar a doação, alegando justamente simulação.
O Novo Código não reproduziu a regra. A partir de 2002, a simulação passou a ser causa de nulida-
de absoluta do negócio jurídico. Por conta disso, pode ser alegada por qualquer pessoa (inclusive por um
simulador em face do outro, nos termos do que determina o Enunciado 294 da 4ª Jornada de Direito
Civil) ou reconhecida de ofício pelo Juiz.

Enunciado nº 294 – Arts. 167 e 168: Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurí-
dico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra.

No momento em que o legislador brasileiro passou a considerar a simulação como causa de nulida-
de absoluta, o interesse público passa a suplantar o do particular. São razões de política legislativa base-
adas no interesse social de apurar e evitar essas práticas.

5.2.1.3.1. Inoponibilidade do ato simulado frente a terceiros de boa-fé135

Sem prejuízo desses casos, em outros a simulação pode estar presente todas as vezes em que hou-
ver uma disparidade entre a vontade manifestada e a vontade oculta. Isso faz com que o rol previsto no
art. 167 do CC seja meramente exemplificativo (numerus apertus), e não taxativo (numerus clausus).
O § 2.º do art. 167 do Código Civil ressalva os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraen-
tes do negócio jurídico simulado, mantendo relação direta com o princípio da boa-fé objetiva. Traz esse
comando legal a inoponibilidade do negócio simulado frente a terceiros de boa-fé.

135 Adaptado de Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E

ampl. – Rio de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.

192
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Interpretando esse dispositivo (art. 167, § 2.º, do CC), pode-se dizer que o princípio da boa-fé obje-
tiva envolve ordem pública, a exemplo do que ocorre com a função social do contrato (art. 2.035, pará-
grafo único, do CC). Isso porque o ato simulado é nulo, envolvendo ordem pública, sendo o caso de nuli-
dade absoluta. Ora, para que o ato seja válido perante terceiros de boa-fé, a boa-fé objetiva deve também
ser um preceito de ordem pública. Pois se assim não fosse, não poderia a boa- fé vencer o ato simulado.

5.2.1.4. Questões relacionadas à simulação

5.2.1.4.1. O que é contrato de vaca-papel?

Na linha de pensamento do professor Marco Pissurno, trata-se de um contrato simulado que, a


pretexto de traduzir uma parceria pecuária, em verdade, encobre um empréstimo a juros abusivos (mú-
tuo feneratício). O próprio STJ tem reconhecido a invalidade desse tipo de negócio simulado (REsp
595.766/MS).
Somente as instituições financeiras podem emprestar dinheiro a juros acima da Lei da Usura.
Aquele que o faz pratica agiotagem (crime, inclusive). No contrato de parceria pecuniária, o proprietário
transfere seu rebanho a outro sujeito para exploração, com a condição da devolução com maior número
de cabeças. O proprietário transfere 100 bois e exige a devolução de 150 bois, no mínimo. Trata-se de
contrato para encobrir a abusividade do juro.

5.2.1.4.2. O que é reserva mental?

O direito romano não conheceu a figura da reserva mental (Mário Talamanca). Alguns autores
também a denominam de “reticência” (Flávio Tartuce, José Simão). Ela se configura quando o agente
emite uma declaração de vontade, resguardado o íntimo propósito de não cumprir a finalidade projetada.
Enquanto a reserva mental estiver dentro da cabeça do sujeito, ela não tem repercussão nenhuma.
O problema ocorre quando a outra parte toma conhecimento da reserva mental. Ex.: o sujeito vende car-
tilhas de música dizendo que os valores seriam revertidos a instituição de caridade e mantém reserva
mental segundo a qual pegaria o dinheiro para si. Sem querer, contudo, acaba exteriorizando sua real
intenção. O enganado, para Pablo, poderá invalidar o negócio alegando dolo. No entanto, caso ele queira
fazer parte da tramoia, aderindo à reserva mental, poderá haver simulação.
Ocorre que a solução dada pelo legislador para a hipótese da exteriorização da reserva mental foi a
inexistência do negócio.
Parte da doutrina (Carlos Roberto Gonçalves) entende que se a outra parte toma conhecimento da
reserva mental, o negócio jurídico deveria ser invalidado (por dolo ou simulação). Todavia, na linha da
doutrina do Ministro Moreira Alves, o art. 110 do Código Civil aponta no sentido de que o negócio se tor-
naria inexistente a partir do momento em que a outra parte toma conhecimento da reserva:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de
não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

193
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Isso foi dito claramente nos comentários ao Anteprojeto. Pablo discorda de Moreira Alves nesse
aspecto. Ele entende que o negócio jurídico é nulo, se dele resultar simulação, ou anulável, se resultar de
dolo.
Em prova objetiva, deve-se adotar a solução do Código Civil.
Em resumo, a reserva mental opera da seguinte forma:
a) Se a outra parte dela não tem conhecimento, o negócio é válido.
b) Se a outra parte conhece a reserva mental, o negócio é nulo, pois o instituto é similar à simula-
ção136.

5.2.1.5. Simulação e institutos afins137


A simulação distingue-se dos demais defeitos do negócio jurídico, como se pode verificar:
a) Simulação e erro — no erro, o agente tem uma falsa noção do objeto da relação e se engana sozi-
nho. Diz-se que a divergência entre a vontade declarada e o íntimo querer do agente é espontâ-
nea. Na simulação, a vítima não manifesta a sua vontade, sendo prejudicada pela declaração en-
ganosa dos simuladores.
b) Simulação e dolo — no dolo, o prejudicado é maliciosamente induzido em erro. Não bastasse,
participa diretamente das negociações, enquanto na simulação participam somente os simula-
dores. A vítima é lesada sem integrar a relação jurídica simulada.
c) Simulação e coação — na coação, o coacto é forçado, mediante grave ameaça, a praticar o ato ou
celebrar o negócio. Na simulação, todavia, há um acordo de vontades, com o escopo de enganar
o lesado.
d) Simulação e reserva mental — difere ainda a simulação da reserva mental, pelo fato de nesta não
existir um acordo entre as partes para enganar terceiros, apenas uma declaração em desacordo
com a sua vontade no intuito de enganar o declaratário. Ressalte-se que o Código Civil portu-
guês manda aplicar, quando o declaratário conhece a reserva, o regime da simulação, conside-
rando nula a declaração. No sistema do novo Código Civil brasileiro, porém, configura-se a hipó-
tese de ausência de vontade, considerando-se inexistente o negócio jurídico (art. 110).
e) Simulação e estado de perigo — a simulação distingue-se também do estado de perigo, que de-
corre da necessidade do agente de salvar a si mesmo ou pessoa de sua família de grave dano, le-
vando-o a assumir obrigação excessivamente onerosa.
f) Simulação e lesão — não se confunde, igualmente, com a lesão, que se configura quando alguém
obtém um lucro exagerado, aproveitando-se da inexperiência ou da situação de necessidade do
outro contratante.

Ressalva-se o entendimento seguindo o qual o negócio jurídico é inexistente (Nelson e Rosa Nery).
136

Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos
137

/ Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

194
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.2.2. Fraude contra credores

5.2.2.1. Conceito

Nas palavras de Flávio Tartuce, a fraude contra credores é um vício social do negócio jurídico, pre-
sente quando o devedor insolvente ou que beira a insolvência realiza atos de disposição onerosa ou gra-
tuita com intuito de prejudicar credores.
Devedor insolvente é aquele que tem o patrimônio passivo maior que o ativo. Muitos deles, de má-
fé, resolvem transferir o pouco do que lhes resta a terceiros. Esse tipo de situação pode gerar o que se
denomina fraude contra credores.
A fraude contra credores, vício do negócio jurídico, caracteriza-se pela prática de um ato negocial
que diminui o patrimônio do devedor insolvente, prejudicando credor preexistente.
O devedor solvente, que tem ativos que podem honrar seus débitos, não comete fraude. Ex.: sujeito
deve R$ 10.000,00 ao banco e tem patrimônio de R$ 200.000,00. Nesse caso, se ele vender patrimônio
não incorrerá em fraude contra credores.
Ex.: sujeito tem uma dívida de R$ 200.000,00 com o Bradesco e um patrimônio de R$ 50.000,00.
Por meio de um contrato, ele transfere ao filho (doação, por exemplo) o único imóvel que lhe resta e que
poderia honrar com a obrigação por não ser, por exemplo, bem de família. Esse negócio está contamina-
do pelo vício da fraude contra credores.

5.2.2.2. Fraude contra credores vs. simulação

Como já delineado acima, a fraude contra credores não se confunde com a simulação, embora se-
jam figuras semelhantes.
Na simulação também há um prejuízo a terceiros. Duas pessoas se mancomunam para simular um
negócio aparentemente normal, mas que não visa a produzir o efeito que juridicamente deveria produzir.
Na fraude contra credores, não se simula nada. No momento em que o sujeito resolve transferir
bens de seu patrimônio fraudulentamente a seu filho, em prejuízo de seus credores, ele de fato celebra
um negócio de doação. Ou seja, não há um negócio simulado necessariamente.
Além disso, para a maioria da doutrina brasileira, a vítima da fraude contra credores é uma vítima
específica, qualificada: um credor preexistente ao ato de fraude. Já na simulação, não se exige caracterís-
tica específica da vítima, podendo ela ser qualquer pessoa.
Obviamente, na prática, é possível que o devedor insolvente não apenas celebre um contrato de do-
ação com o filho, mas também simule um contrato para mascarar a fraude. Ou seja, é possível que as
duas formas de vício coexistam (fraude e simulação). Mas isso vai ser analisado em cada caso concreto,
para que se verifique qual delas predominará.
Quando o sujeito celebra contrato de doação com seu filho no tabelionato para evitar que o bem se-
ja afetado por eventual execução, ele não está mascarando nada. O ato de fraude contra credores está
escancarado.

195
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.2.2.3. Elementos da fraude contra credores


Segundo a doutrina brasileira clássica e firme, a fraude contra credores pressupõe a conjugação de
dois elementos: i) consilium fraudis (conluio fraudulento dos envolvidos, má-fé); e ii) eventus damni
(prejuízo ao credor preexistente). Esse já era o entendimento de Clóvis Bevilaqua, posteriormente repro-
duzido por autores como Orlando Gomes.
Classicamente, esses dois elementos caracterizariam a fraude contra credores. No entanto, a dou-
trina mais moderna (dos últimos 20 anos), como Maria Helena Diniz e Marcos Bernardes de Melo, pon-
deram que o elemento do consilium fraudis pode, em algumas situações, ser extraído das circunstâncias
do caso concreto.
Em outras palavras, alguns atos fraudulentos são tão graves que a má-fé deriva das próprias cir-
cunstâncias do negócio. Pablo não gosta de usar a expressão “má-fé presumida”, mas, caso se pretenda
usar a palavra “presunção”, deve-se dizer que a presunção deriva de circunstâncias fáticas do caso con-
creto.
Portanto, a doutrina moderna flexibiliza esses elementos que compõem a fraude contra credores
para dizer que, em algumas situações, dada a gravidade da fraude, sequer seria necessário provar a má-fé
ou o conluio, por que ela (ou ele) estaria implícita (presumida), pelas circunstâncias.
Veja, não é correto afirmar que o consilium fraudis seria dispensado. Trata-se de um elemento
ainda presente na fraude, mas cuja demonstração está dispensada, em razão de suas próprias circunstân-
cias.
Nesse sentido, assevera Carlos Roberto Gonçalves que o art. 159 do Código Civil presume a má-fé
do adquirente “quando a insolvência (do alienante) for notória, ou houver motivo para ser conhecida do
outro contratante”.
a) Insolvência notória — a notoriedade da insolvência pode se revelar por diversos atos, como pela
existência de títulos de crédito protestados, de protestos judiciais contra alienação de bens e de várias
execuções ou demandas de grande porte movidas contra o devedor.
b) Motivos para conhecê-la — embora a insolvência não seja notória, pode o adquirente ter motivos
para conhecê-la. Os casos mais comuns de presunção de má-fé do adquirente, por haver motivo para
conhecer a má situação financeira do alienante, são os de aquisição do bem por preço vilou de parentesco
próximo entre as partes.
Há um exemplo comumente usado pela doutrina para explicitar uma situação de dispensa da com-
provação da má-fé. A doação fraudulenta (como nesse exemplo em que o devedor insolvente doa seu
imóvel ao filho) é algo gravíssimo. Como pode uma pessoa devedora, que está insolvente ou à beira da
insolvência, sair por aí doando bens? Se ela estivesse pelo menos celebrando contratos onerosos, menos
mal. Isso porque, muitas vezes, o devedor insolvente aliena seus bens para fazer capital e investi-lo em
algumas atividades, visando a melhorar sua situação financeira e pagar seus credores.

196
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Portanto, em negócios de transmissão gratuita de bens, a fraude é tão grave que se dispensa a pro-
va da má-fé.
Embora essa situação da doação seja o exemplo mais mencionado, há diversas outras que fazem
presumir o consilium fraudis e caracterizam a fraude contra credores.

5.2.2.4. Hipóteses legais de fraudes contra credores138


No CC/2002 há várias hipóteses de fraude contra credores além da doação fraudulenta. Adiante se-
rão mencionadas as principais hipóteses previstas na parte geral do CC, mas mais exemplos poderão ser
encontrados em outras normas do ordenamento.

5.2.2.4.1. Negócio gratuito de transmissão fraudulenta de bens (doação fraudulen-


ta)

A doação fraudulenta vem mencionada no artigo 158, do CC e é a situação mais grave de fraude
contra credores. Como visto, nesse caso, o sujeito insolvente ou em vias de insolvência sai doando bens
de seu patrimônio a terceiros, em prejuízo de seus credores preexistentes.

Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o de-
vedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anu-
lados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

5.2.2.4.2. Remissão fraudulenta de dívidas (perdão fraudulento)

O perdão fraudulento é uma situação também grave. Talvez, em circunstâncias como essa, o juiz
possa até dispensar a prova da má-fé, porque ela também envolve transmissão gratuita. Mas isso vai de-
pender do entendimento do julgador. Veja, no caso da doação fraudulenta, a doutrina é tranquila em
admitir a dispensa da prova, mas em outros casos a inexigibilidade da demonstração da má-fé dependerá
do entendimento adotado pelo juiz.
O perdão fraudulento também encontra previsão no art. 158, do CC:

Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o de-
vedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anu-
lados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. (...)

Veja que o ato de remissão é também um ato negocial e pode ser fraudulento.

138 Washington de Barros Monteiro, em seu curso de Direito Civil, apresenta um quadro muito interessante
sobre as hipóteses legais de fraude contra credores. Embora se trate de obra escrita na vigência do CC/16, ela tam-
bém pode ser empregada em relação ao CC/2002.

197
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: um dos poucos ativos que restam ao devedor insolvente é um crédito contra Fulano, no valor
de R$ 15.000,00. O que se espera do devedor é que ele cobre a dívida de Fulano para, com o valor arre-
cadado, pagar o que deve ao credor preexistente. No entanto, para evitar que esse crédito sirva para sal-
dar parte de sua dívida, o devedor insolvente perdoa a dívida de Fulano e pede a ele que pague o valor
devido “por fora”.
Em casos como esse, é até possível encontrar caracteres de simulação. Mas o que prevalece aqui é a
fraude contra credores, porque o perdão fraudulento é feito de forma explícita e é considerado pela lei
como hipótese de fraude contra credores. Com essa remissão da dívida, o devedor insolvente está preju-
dicando seu credor preexistente.

5.2.2.4.3. Contratos onerosos, quando a insolvência do devedor for notória

Haverá fraude contra credores nos contratos onerosos celebrados pelo devedor insolvente quando
a sua insolvência for notória ou houver motivo para ser conhecida pela outra parte (art. 159, do CC).

Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a in-
solvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.

Imagine um devedor insolvente, com passivo maior que o ativo. Como visto, se ele efetua doação
dos poucos bens que lhe restam a terceiros, a fraude é escancarada. Mas se esse devedor resolve vender
seus últimos imóveis, aparentemente não está havendo fraude. Isso porque ele pode estar vendendo bens
exatamente para pagar seus credores preexistentes. No entanto, se ele celebrar esses contratos em consi-
lium fraudis e para prejudicar seus credores, com pessoas que sabiam ou que deveriam saber que ele
estava quebrado, haverá fraude contra credores. Ex.: sujeito vende a preço muito abaixo do mercado um
imóvel seu para sua mãe, que sabe que ele está endividado.
Note que não importa que o devedor esteja celebrando contrato oneroso, porque, nesses casos, ele
está atuando de má-fé e vendendo os bens em valor inferior ao de mercado, em prejuízo de seus credores.
E sua insolvência pode ser notória (ex.: sujeito mora em cidade pequena e todos sabem que ele está endi-
vidado) ou pode ser conhecida da pessoa com quem contrata (ex.: sujeito celebra contrato com sua mãe
ou com seu irmão).
Portanto, a celebração de contratos onerosos pelo devedor insolvente, nessas condições, poderá ca-
racterizar fraude contra credores. De qualquer forma, isso dependerá da análise do caso concreto.
É mais fácil a prova da fraude contra credores na doação fraudulenta do que nos contratos onero-
sos com fins fraudulentos. Isso porque o devedor pode tanto estar vendendo seu patrimônio para saldar
as dívidas como para prejudicar seus credores.

5.2.2.4.4. Antecipação fraudulenta de pagamento

Art. 162. O credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda
não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o con-
curso de credores, aquilo que recebeu.

198
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Imagine que o devedor está devendo a três credores (“A”, “B”, “C”) quirografários. Lembrando que
credor quirografário é aquele sem preferência de garantia, de modo que esses três credores do exemplo
estão em pé de igualdade. Ocorre que o devedor poderá não ter dinheiro pagar todo mundo, porque seu
passivo é maior que o ativo. E os devedores deverão ser pagos na seguinte ordem: primeiro “A”, depois
“B” e, se sobrar algum patrimônio, “C”. Nesse contexto, o credor “A” está em melhor situação, porque
receberá em primeiro lugar.
Esse credor “C”, percebendo que pode não sobrar nada para ele, procura o devedor insolvente e
oferece um desconto no valor da dívida para que ele receba em primeiro lugar. Se esse devedor, por meio
desse ajuste fraudulento, resolver pagar em primeiro lugar o credor “C”, ele pode, inequivocamente, cau-
sar prejuízo aos credores “A” e “B”. Isso porque o credor “C” não poderia receber primeiramente.

5.2.2.4.5. Outorga fraudulenta de garantia de dívida

Art. 163. Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que
o devedor insolvente tiver dado a algum credor.

Trata-se de hipótese grave e, a depender do entendimento do juiz, poder-se-á dispensar a demons-


tração da má-fé.
Um credor que tem garantia em seu favor está mais seguro que o credor quirografário. Ex.: hipote-
ca. O credor que tem em seu favor a hipoteca do imóvel está protegido, porque o imóvel garantirá seu
crédito.
Imagine novamente que o devedor deve aos credores “A”, “B” e “C”, todos quirografários. Assim, a
ordem de pagamento seria: “A”, “B” e “C”. Ocorre que o credor “C” seduz o devedor insolvente com um
abatimento da dívida, sob a condição de que constitua hipoteca de seu único imóvel em favor de “C”. As-
sim, o devedor que receberia em terceiro lugar passará a ter uma garantia em seu favor e isso prejudicará
os credores anteriores.

5.2.2.5. Fraude contra credores vs. fraude à execução


A fraude à execução, tema a ser visto na grade de Processo Civil, é mais grave que a fraude contra
credores. Isso porque, além de afrontar o crédito, desrespeita a Administração da Justiça, na medida em
que já existe contra o devedor demanda capaz de oficialmente reduzi-lo à insolvência (REsp
684.925/RS139).
Na fraude à execução, o devedor já está sendo processado pelo credor. Veja que não é necessário
que a demanda seja de execução ou que já esteja em fase de execução. Poderá haver fraude à execução na
hipótese em que o credor ajuizou ação de cobrança em face do devedor, por exemplo. Assim, havendo

139 Recomenda-se da leitura desse julgado do STJ, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que deixa bem clara a
distinção entre fraude contra credores e fraude à execução.

199
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ação de cobrança que possa levar o devedor à insolvência, se este vender seus bens em prejuízo ao credor,
estará fraudando futura execução do crédito.
A fraude à execução é tão mais grave que, se ocorrer, o negócio celebrado será nulo de pleno direi-
to, gerando ineficácia total. Há inclusive um tratamento criminal em relação à fraude à execução.
Em resumo as diferênças140:
FRAUDE CONTRA CREDORES FRAUDE À EXECUÇÃO

É defeito do negócio jurídico (vício social), É incidente do processo, regulado pelo direito
disciplinado pelo direito civil (CC, arts. 158 a 165). processual civil (CPC, art. 792).

Configura-se quando ainda não existe nenhuma Pressupõe demanda em andamento, capaz de reduzir
ação ou execução em andamento contra o devedor, o alienante à insolvência, sendo efetivada pelo
embora possam existir protestos cambiários. devedor para frustrar-lhe a execução (CPC, art. 792,
IV).

Provoca a anulação do negócio jurídico, trazendo Acarreta a declaração de ineficácia da alienação


como consequência o retorno dos bens ao fraudulenta, em face do credor exequente.
patrimônio do devedor, em proveito do acervo
sobre o qual se tenha de efetuar o concurso de
credores (CC, arts. 158, 159 e 165).

Exige a propositura de ação pauliana. Não se tem Independe de ação pauliana ou revocatória, podendo
admitido a sua arguição nem mesmo em embargos ser reconhecida incidentalmente, mediante simples
de terceiros, como proclama a Súmula 195 do STJ: petição, nos próprios autos, sendo objeto de decisão
“Em embargos de terceiro não se anula ato interlocutória.
jurídico, por fraude contra credores”.

Uma vez reconhecida, aproveita a todos os Aproveita apenas ao exequente.


credores.

140 Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos / Carlos

Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

200
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nas alienações onerosas, depende de prova do O vício é mais grave. Por isso, afirma a corrente
consilium fraudis, isto é, da má-fé do terceiro tradicional que a má-fé, nesse caso, é sempre
(prova esta dispensável quando se trata de presumida, pois a intenção fraudulenta está in re
alienação a título gratuito ou de remissão de ipsa. Todavia, a Súmula 375, de março de 2009, do
dívida). STJ estatui: “O reconhecimento da fraude à execução
depende do registro da penhora do bem alienado ou
da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

A sentença da ação anulatória tem natureza consti- O reconhecimento da fraude à execução tem nature-
tutiva negativa, gerando a anulabilidade do negócio za declaratória, gerando a ineficácia do ato cele-
jurídico celebrado (plano da validade) brado (plano da eficácia).

5.2.2.6. Relativização quanto à preexistência do crédito

A fraude contra credores no Brasil parte de uma premissa: a preexistência do crédito com relação à
fraude. Veja, se o sujeito começa a partilhar seu patrimônio deliberadamente, e só depois dessa partilha
se torna devedor de alguém, esse credor não poderá alegar fraude. Esse é o raciocínio condizente com o
texto legal e amparado pela doutrina e jurisprudência pátrias.
Ocorre que há um julgado do STJ que relativiza esse entendimento: o REsp 1.092.134/SP, julgado
em agosto de 2010 e relatado pela Ministra Nancy Andrighi. Embora esse julgado também vá contra o
texto legal, ele se ampara em princípio do Direito. Alexy lembra que sempre que o jurista for se posicio-
nar a respeito de um princípio, ele tem o chamado “ônus da orientação jurídica”. Isso é o que se faz, mui-
tas vezes, para tentar contornar uma eventual aplicação injusta da lei.
A Ministra se deparou com o caso de um cidadão que não era devedor de ninguém, mas que, de
má-fé, quis dar um golpe na praça. Para tanto, ele doou tudo o que tinha e, depois, realizou empréstimos
e financiamentos. Os credores não poderiam ingressar com a ação pauliana, porque a lei pressupõe que
os créditos sejam preexistentes à fraude.
No REsp 1.092.134/SP, o STJ entendeu por relativizar a exigência do credor preexistente para a ca-
racterização da fraude sob o argumento da busca pela eficácia social do direito. Trata-se de entendimento
polêmico, mas que deve ser conhecido pelos aplicadores do direito. A relatora entendeu que o devedor
estava pré-determinado a fraudar credores e que deveria ser sancionado.
A mesma solução não foi adotada, pela mesma Ministra, no REsp 1.217.593-RS, julgado em
12/3/2013. De acordo com ela, não é suficiente para afastar a anterioridade do crédito que se busca ga-
rantir - requisito exigido para a caracterização de fraude contra credores - a assinatura de contrato parti-
201
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cular de promessa de compra e venda de imóvel não registrado e desacompanhado de qualquer outro
elemento que possa evidenciar, perante terceiros, a realização prévia desse negócio jurídico. Com efeito,
na hipótese em que o devedor tenha firmado contrato particular de promessa de compra e venda de imó-
vel, para fins de constatar a anterioridade de crédito em relação ao ato fraudulento, deve ser considerada
a data do registro do instrumento particular no Cartório de Registro de Imóveis, e não a data da sua ela-
boração. Ao permitir o contrário, estar-se-ia enfraquecendo o instituto da fraude contra credores, tendo
em vista a facilidade em dar a um documento uma data falsa e, ao mesmo tempo, a dificuldade em de-
monstrar essa fraude.

5.2.2.7. Ação pauliana ou revocatória


Imagine que o devedor insolvente resolve doar fraudulentamente um bem a seu filho. Qual instru-
mento jurídico tem o credor preexistente para impugnar a fraude contra credores? Trata-se da denomi-
nada “ação pauliana”, que recebe esse nome em homenagem ao jurisconsulto Romano Paulo.
A ação pauliana é um tipo de ação revocatória, mas ela recebe esse nome específico justamente pa-
ra que não haja confusão com os institutos da falência. Trata-se de demanda ajuizada pelo credor pree-
xistente para impugnar o ato celebrado pelo devedor insolvente em fraude contra credores.
A ação pauliana é uma ação específica para impugnar fraude contra credores e tem prazo decaden-
cial de 4 anos para sua propositura. É uma ação de natureza pessoal e, por isso, Pablo entende que não
haveria necessidade de outorga uxória (ou marital) para sua propositura.

5.2.2.7.1. Legitimidade ativa

Quem tem legitimidade ativa para propor a ação pauliana é o credor preexistente (art. 158). A dou-
trina é firme em relação a isso. Se o sujeito se tornou credor após o ato de transmissão de bens ou crédi-
tos, ele não estaria legitimado a ingressar com essa ação.
É comum se dizer que o legitimado para ingressar com a ação pauliana é apenas o credor preexis-
tente quirografário, ou seja, que não tem garantia em seu favor. Aquele credor que tem garantia em seu
favor (como a hipoteca, por exemplo), em princípio não teria que se preocupar com a fraude contra cre-
dores.
No entanto, Pablo afirma que mesmo o credor com garantia em seu favor poderia ter interesse em
ingressar com a ação pauliana. Isso poderá ocorrer se a garantia se tornar insuficiente, por exemplo. Ex.:
devedor constituiu em favor do credor uma hipoteca de sua fazenda. Ocorre que, por um evento fortuito,
a fazenda foi inundada e totalmente destruída. Em razão disso, o credor notifica o devedor para que ele
reforce a garantia da dívida assumida. Porém, o devedor não só deixa de reforçar a garantia, como passa
a dilapidar seu patrimônio, em atos fraudulentos. Nesse caso, é lógico que o credor preexistente tem inte-
resse em promover a ação pauliana, porque sua garantia se tornou insuficiente.

202
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O CC/2002, em seu art. 158, § 1º, lembra que mesmo o credor com garantia pode ter interesse na
ação pauliana, se essa garantia se tornar insuficiente. E o reconhecimento dessa insuficiência da garantia
pode se dar dentro da própria ação pauliana.

Art. 158, § 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

5.2.2.7.2. Legitimidade passiva

Contra quem é proposta a ação pauliana? Isso vai depender muito da hipótese legal, mas este tópi-
co se baseará no exemplo mais comum, que é o da doação fraudulenta.
A ação pauliana será proposta em face do devedor insolvente, da pessoa com quem ele contratou e,
eventualmente, do terceiro de má-fé, trata-se de um litisconsórcio necessário141.

Art. 161. A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente,
a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes
que hajam procedido de má-fé.

Por que o terceiro de má-fé também pode concorrer em litisconsórcio passivo necessário? No REsp
acima mencionado, entendeu-se que, em se tratando de ação pauliana visando à anulação do negócio
jurídico fraudulento, haverá litisconsórcio necessário entre todos que participaram do ato. Eventualmen-
te, além do devedor insolvente e da pessoa com quem ele contrata, pode haver um terceiro de má-fé. Isso
porque pode acontecer de esse bem transferido fraudulentamente já ter sido novamente transferido a um
terceiro. Se este terceiro estiver de má-fé, ele vai ser réu da ação pauliana e sofrerá os efeitos da sentença.
Nem sempre será possível saber se o terceiro atuara de má-fé antes do ajuizamento da ação. Assim,
aconselha-se que o credor promova a ação em face também desse sujeito que adquiriu o bem e, no curso
da demanda, caberá a esse terceiro comprovar que agiu de boa-fé. Se ele fizer essa prova, o juiz o excluirá
da demanda na sentença e determinará que ele permaneça com o bem (princípio da eticidade) e o credor
terá de buscar outra via para se ressarcir. Isso porque o terceiro só será legitimado passivo se estiver de
má-fé.
Assim, o terceiro poderá alegar que não sabia de nada e que, inclusive, verificara não haver ne-
nhum cadastro negativo em face do alienante ou mesmo de penhora inscrita no registro do bem. Além
disso, poderá fazer prova de que pagara o valor integral do bem. Tudo isso para demonstrar que não es-
tava de má-fé, de modo a fazer com que os efeitos da sentença não incidam sobre ele.
A nova súmula 375 do STJ traz um entendimento concernente à fraude à execução que é importan-
te para definir quando se inicia a má-fé daquele que negocia com o executado:

Súmula 374 – O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem


alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.

141 STJ – REsp n. 750.135/RS

203
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Portanto, o terceiro excluído da demanda permanecerá com o bem. E esse é um entendimento cal-
cado no princípio da boa-fé objetiva e no elemento subjetivo da boa-fé (que será estudado por ocasião da
análise da teoria geral do contrato).

5.2.2.7.3. Ação pauliana como ação específica para fraude contra credores

A ação pauliana é uma ação específica para impugnação do ato fraudulento. Assim, não é possível
argumentar a fraude contra credores em embargos de terceiro, por exemplo. Nesse sentido é a súmula
195 do STJ:

Súmula 195 – Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores.

Portanto, não é possível desconstituir o ato fraudulento por meio de outro instrumento processual
que não seja a ação pauliana. Por outro lado, se a fraude ocorrer depois que houver demanda contra o
devedor, será hipótese de fraude à execução e não haverá que se falar em ação pauliana.

5.2.2.7.4. Natureza jurídica da sentença na ação pauliana

Qual a natureza jurídica da sentença na ação pauliana? Esse é um tema muito interessante, porque
há duas correntes a respeito do assunto. Há uma corrente muito forte, clássica, firme no Brasil, que é
baseada na legislação. E há uma corrente minoritária, mais corajosa, que encontra amparo em julgado do
STJ (não é jurisprudência consolidada, mas essa corrente encontra precedente em um julgado muito
bem escrito de relatoria do Ministro Teori Zavascki).
Corrente doutrinária forte no Brasil (Nelson Nery Jr., Moreira Alves), seguindo pensamento tradi-
cional e amparado no próprio CC (art. 165), sustenta que a sentença na ação pauliana é desconstitutiva
anulatória do negócio fraudulento.

Art. 165. Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do


acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores.

Parágrafo único. Se esses negócios tinham por único objeto atribuir direitos preferenciais, medi-
ante hipoteca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação da preferên-
cia ajustada.

Como será estudado adiante, há dois tipos de invalidade: a nulidade e a anulabilidade. E o CC é


preciso ao dizer que a sentença na ação pauliana tem natureza anulatória, ou seja, ela desconstitui o
negócio inválido, para que ele não produza efeito algum.
Nessa linha de raciocínio, se o autor promover a pauliana e o juiz proferir sentença, a sentença vai
invalidar o negócio jurídico, negando-lhe completamente eficácia jurídica (a melhor doutrina afirma que
a sentença anulatória vai atingir o ato desde sua origem).
Não há dúvida de que, em uma prova objetiva, deve-se marcar a alternativa condizente com o texto
legal. Mas, em uma prova subjetiva, é aconselhável que se lance uma crítica ao texto da lei. Yussef Said

204
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Cahali tem uma obra intitulada “Fraude contra credores”, muito aprofundada sobre o tema. Ele é um dos
autores que referem e desenvolvem a corrente contrária.
Alguns autores, como Yussef Cahali, Alexandre Câmara e Frederico Pinheiro, sustentam que, em
verdade, a sentença na ação pauliana não é de invalidação do negócio jurídico, mas apenas declaratória
da ineficácia do negócio fraudulento em face do credor prejudicado (REsp 506.312/MS).
Observe que essa segunda corrente é defendida, sobretudo, por autores de formação processualista.
Para eles, não é correto dizer que a sentença pauliana deve desconstituir o negócio inválido. Esses auto-
res sustentam que o negócio fraudulento, em verdade, seria um negócio válido. O que ocorre é que ele é
ineficaz em face do credor prejudicado. Assim, o negócio fraudulento remanesceria totalmente válido e
eficaz em face das demais pessoas.
Essa é uma doutrina contra legem, porque a lei diz claramente que a sentença, na pauliana é anula-
tória (anulando o negócio, que não deverá surtir efeitos). Para essa segunda corrente, o negócio não deve
ser encarado como inválido. Assim, na doação fraudulenta, o imóvel incorpora-se ao patrimônio do do-
natário. Apenas esse negócio não produzirá efeitos em face do credor prejudicado. Tanto esse negócio
não seria inválido que, se em dado momento o devedor ganhar na loteria ou sofrer um incremento pa-
trimonial qualquer que permita o pagamento da dívida, a doação realizada será mantida.
Embora o entendimento seja contrário à lei, não se pode ignorá-lo e deixar de mencioná-lo na pro-
va escrita, porque se trata de tese respeitável inclusive já empregada pelo STJ (REsp 506.312/MS). Para
essa corrente, portanto, a ação pauliana é apenas declaratória de ineficácia do negócio em face do credor
preexistente.

5.2.2.7.5. Fraude não ultimada ou não aperfeiçoada (CC, art. 160).

Trata-se da hipótese em que adquirente dos bens do devedor insolvente que não tiver pago o preço
dos bens oportunidade em que poderá fazê-lo nos autos da ação pauliana, afastando a configuração da
fraude contra credores
Assim, de acordo com o art. 160 da codificação material, “se o adquirente dos bens do devedor in-
solvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á deposi-
tando-o em juízo, com a citação de todos os interessados”.
De outro lado, se for inferior o preço, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o
montante que lhes corresponda ao valor real, outra consagração do princípio da conservação contratual.
Na lição de Carlos Roberto Gonçalves o depósito do preço equivalente ao valor de mercado da coisa
impede que se considere consumada a fraude, pois demonstra a boa-fé do adquirente e que nenhuma
vantagem patrimonial obteria em prejuízo dos credores. Cessa, com isso, o interesse dos credores, que,
por conseguinte, perdem a legitimação ativa para propor a ação pauliana.
Obs.: Ao contrário da lei anterior (art. 108 do CC/1916), não há mais menção à exigência de citação
por edital de todos os interessados, disciplina que cabe agora à

205
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6. Teoria da invalidade
A invalidade é um gênero, do qual derivam a nulidade absoluta (negócio jurídico nulo) e a relativa
(negócio jurídico anulável). Quando o ordenamento jurídico reconhece uma invalidade, ele está se auto-
preservando, privando o ato de efeitos que reputa indesejáveis142.
O negócio nulo é mais grave que o anulável, pois viola normas de ordem pública. Numa escala axio-
lógica, a nulidade absoluta é mais grave que a relativa.
Toda nulidade, absoluta ou relativa, pressupõe um texto de lei143. As partes não po-
dem criar, num contrato, nulidades não previstas em lei.
Nesse sentido, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “nulidade é a sanção imposta pela lei aos atos
e negócios jurídicos realizados sem observância dos requisitos essenciais, impedindo-os de produzir os
efeitos que lhes são próprios.”.
Assim, se ofende preceitos de ordem pública, que interessam à sociedade, tem lugar a teoria da in-
validade de modo a repelir o NJ maculado, em atenção ao interesse público, evitando que venha a produ-
zir os efeitos esperados pelo agente.

6.1. Princípio da conservação

Como visto anteriormente, o juiz, sempre que juridicamente possível, deve aproveitar o negócio in-
válido.
À luz do princípio da conservação, o juiz pode verificar que, em determinado instrumento negocial,
uma ou algumas cláusulas são inválidas. Nesse caso, segundo Carlos Alberto Bittar, ele pode extirpar a
cláusula inválida.
Assim, opera-se a “redução do negócio jurídico inválido” quando o juiz, podendo, extirpa determi-
nada ou determinadas cláusulas inválidas, mantendo o restante do negócio (art. 184 do CC). É o que mui-
tos chamam de nulidade parcial do contrato:

Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o
prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a
das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

6.2. Nulidade absoluta (negócio jurídico nulo)

O negócio jurídico nulo é regulado, principalmente, pelos arts. 166 (hipóteses de nulidade do negó-
cio jurídico) e 167 (simulação) do Código Civil.

142 Teoria Geral do Processo, Ada Pellegrini e Cândido Rangel Dinamarco.

143 Acerca da nulidade absoluta, recomenda-se memorizar os arts. 166 e 167 do Código Civil. Acerca da rela-
tiva (anulabilidade), o art. 171.

206
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.2.1. Hipóteses de nulidades absolutas


O art. 166 do Código Civil traz as hipóteses de nulidades absolutas:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

De se lembrar que a indeterminação ou impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio ju-
rídico se for relativa (CC, art. 106144) em função do princípio da conservação do negócio jurídico.
Ex.: negócio jurídico para a prestação de serviço criminoso.

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

Pablo entende que o inciso III do art. 166 do CC deve ser interpretado no sentido de considerar nu-
lo o negócio jurídico quando a sua causa for considerada ilícita.
Durante muito tempo, a noção de causa foi rejeitada no Direito Brasileiro, pois Clóvis Bevilaqua
não era causalista. Grande parte da doutrina, iniciada na França, não teve muito espaço no Brasil.
O que leva um sujeito a fazer uma doação? Pode ser amor, compaixão, raiva (para humilhar) etc.
Motivo145 é algo que está dentro da mente do sujeito, e por essa razão não importa. Causa não se confun-
de com o motivo, vez que não é algo encerrado na mente de alguém.
Este inciso III, evidentemente, não está se referindo ao pensamento das partes, que só a elas inte-
ressa, mas à causa, à finalidade do negócio, à função projetada do negócio.
Nesse sentido, causa, em linguagem simples e precisa, não é o motivo psicológico do declarante,
mas a finalidade objetiva ou a função do próprio negócio. A causa de uma doação é sempre a mesma: a
liberalidade, o acréscimo patrimonial da outra parte.
Ex.: é nulo, por ilicitude da causa, o contrato de locação de cuja leitura fica claro que a finalidade
das partes é a instalação de uma casa de prostituição. Não está em questão a luxúria, a devassidão, mas a
finalidade objetiva buscada pelas partes.
Em resumo, o negócio jurídico pode ter objeto lícito, mas um motivo ilícito. Exemplo: contrato de
prestação de serviços com conteúdo lícito, mas celebrado com intuito de "quebrar" um concorrente.

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

De acordo com o art. 107 do CC146, os negócios jurídicos, em regra, são informais e não solenes, em
atenção ao princípio da liberdade das formas.

144 CC, art. 106: “A impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se ces-

sar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado”.


145 Trata-se de um aspecto pessoal da causa.

207
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 108 do CC147 estabelece que a escritura pública é essencial para a validade dos atos de dispo-
sição de imóvel com valor superior a 30 salários mínimos.
O art. 109 do CC148 prevê que as partes podem convencionar que a escritura pública é essencial pa-
ra o ato.

V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

Flávio Tartuce lembra que a solenidade constitui uma espécie de forma, não haveria a necessidade
da última previsão Ex.: casamento celebrado de portas trancadas (ato público é solenidade) ou testamen-
to cerrado não lacrado.

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

Fraude à lei imperativa é um conceito muito amplo. Exemplo de hipótese que se encaixa neste inci-
so VI é a do contrato de sociedade criada para fraudar a lei brasileira, lavando dinheiro através da remes-
sa de ativos ao exterior.

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

O inciso trata da hipótese em que a lei expressamente declara nulo determinado negócio (“Art.
489. Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação
do preço”; e, ainda, arts. 548, 549, 1.428, 1.475, 1.548 etc.).
Nesses casos, diz-se que a nulidade é expressa ou textual. Outras vezes, a lei não declara expres-
samente a nulidade do ato, mas proíbe a sua prática ou submete a sua validade à observância de certos re-
quisitos de interesse geral. Utiliza-se, então, de expressões como “não pode” (arts. 426 e 1.521), “não se
admite” (art. 380), “ficará sem efeito” (arts. 483 e 485) etc. Em tais hipóteses, dependendo da nature-
za da disposição violada, a nulidade está subentendida, sendo chamada de virtual ou implícita, como dito
no item anterior.

6.2.2. Características da nulidade absoluta (ou do negócio jurídico nulo)

6.2.2.1. Possibilidade de alegação por qualquer interessado, pelo MP ou ser reconhe-


cida de ofício pelo juiz

A nulidade absoluta do negócio jurídico, dada a sua gravidade, poderá ser alegada por qualquer in-
teressado, pelo MP ou até mesmo reconhecida de ofício pelo juiz (art. 168):

146 CC, art. 107: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei

expressamente a exigir”.
147 CC, art. 108: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurí-

dicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor su-
perior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
148 CC, art. 109: “No negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é

da substância do ato”.

208
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado,
ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.

Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio
jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda
que a requerimento das partes.

Ressalta-se que nos termos do Novo CPC (art. 10), antes de conhecer de ofício, deve o julgador ou-
vir as partes da demanda, em respeito à vedação das decisões-surpresa, que representa aplicação do
princípio da boa-fé objetiva processual.
Sobre o tema, atenção à Súmula 381 do Tribunal Cidadão:
Súmula 381 STJ: nos contratos bancários é vedado ao julgador conhecer de ofício da abusivida-
de das cláusulas.

6.2.2.2. Impossibilidade de convalidação

O negócio nulo também não admite confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo, nos ter-
mos do art. 169, embora eventuais efeitos patrimoniais sejam prescritíveis:

Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso
do tempo.

Dessa sorte, o ato não pode ser convalidado ou aproveitado. Regra geral, a nulidade absoluta tem,
nas palavras de Serpa Lopes um efeito fatal, liquidando totalmente o negócio.
Ex. o contrato celebrado por absolutamente incapaz é nulo. Não pode o sujeito que celebrou con-
trato aos 15 anos confirmá-lo, quando chegar aos dezoito.
Como exceção à regra do Art. 169, o Art. 170 informa que é possível a conversão do negócio 149 nulo
em outro negócio jurídico, aproveitando-o em certo sentido:

CC, art. 170: “Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este
quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previs-
to a nulidade”.

Nesse sentido, a conversão do negócio jurídico constitui o meio jurídico pelo qual o negócio nulo,
respeitados certos requisitos, transforma-se em outro negócio, totalmente válido, visando à conservação
contratual e à manutenção da vontade, da autonomia privada.
Para tanto, a lei exige um elemento subjetivo, eis que é necessário que os contratantes queiram o
outro negócio ou contrato para o qual o negócio nulo será convertido, ou seja, implicitamente, devem
ter conhecimento da nulidade que acomete o pacto celebrado.

149 Segundo Flávio Tartuce essa conversão subjetiva e indireta. Subjetiva porque exige a vontade das partes;

indireta porque o negócio nulo é convertido em outro.

209
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Alguns autores dizem que a nulidade absoluta seria imprescritível, pois o negócio jurídico nulo não
convalesce pelo decurso do tempo. Veja que a qualquer tempo é possível o ajuizamento de ação declara-
tória de nulidade absoluta.
Todavia, cumpre asseverar que alguns dos efeitos patrimoniais do negócio jurídico nulo prescre-
vem. Imagine, por exemplo, que em 2040 é ajuizada uma ação declaratória de nulidade absoluta de um
contrato celebrado em 2011. Nesse caso, a nulidade não prescreve, mas eventual pretensão indenizatória
por perdas e danos decorrentes do inadimplemento prescreve.
Nessa trilha, o Enunciado n. 536, da VI Jornada de Direito Civil, evento de 2013: “Resultando do
negócio jurídico nulo consequências patrimoniais capazes de ensejar pretensões, é possível, quanto a
estas, a incidência da prescrição”

6.2.2.3. Eficácia retroativa da sentença declaratória de nulidade absoluta


A sentença declaratória de nulidade absoluta opera efeitos ex tunc, atingindo o negócio nulo ab ini-
tio. Atinge o negócio na raiz como se ele nunca houvesse gerado efeitos. A boa-fé de terceiros atingidos
pode até justificar a manutenção de alguns efeitos, mas a teoria diz que o negócio nulo tem seus efeitos
atingidos desde o início.

6.3. Nulidade relativa (negócio jurídico anulável)

Na lição de Carlos Roberto Gonçalves, “anulabilidade é a sanção imposta pela lei aos atos e negó-
cios jurídicos realizados por pessoa relativamente incapaz ou eivados de algum vício do consentimento
ou vício social.”.
Visa, pois, à proteção do consentimento ou refere-se à incapacidade do agente, desse modo, por
não concernir a questões de interesse geral, de ordem pública, como a nulidade, é prescritível e admite
confirmação, como forma de sanar o defeito que a macula.

6.3.1. Hipóteses de nulidades relativas


A nulidade relativa é um vício menos grave que o da nulidade absoluta. As hipóteses estão previstas
no art. 171 do Código Civil:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I - por incapacidade relativa do agente;

II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Vale lembrar que o art. 171 não esgota todas as hipóteses de anulação do negócio jurídico, uma vez
que outras situações podem ser encontradas, a exemplo da prevista no art. 496 do Código Civil, que con-
sidera anulável a venda de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais herdeiros:

Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o


cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

210
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de


bens for o da separação obrigatória.

6.3.2. Características da nulidade relativa (ou do negócio anulável)

6.3.2.1. Possibilidade de alegação apenas pelo legítimo interessado

Nas situações concretas de anulabilidade, o seu reconhecimento deverá ser pleiteado pelo legíti-
mo interessado por meio da denominada ação anulatória, de natureza constitutiva negativa, não po-
dendo o juiz reconhecê-la de ofício, nos termos do art. 177:

Art. 177. A anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de
ofício; só os interessados a podem alegar, e aproveita exclusivamente aos que a alega-
rem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade.

Ademais, diante da sua natureza privada, não cabe ao Ministério Público intervir nas ações que a en-
volvem.
6.3.2.2. Possibilidade de convalescência

Nota-se que a ação se relaciona intrinsecamente à direitos potestativos, e diferentemente do negó-


cio jurídico nulo, o anulável convalesce pelo decurso do tempo, de maneira que a ação anulatória deve ser
proposta dentro do seu prazo decadencial (arts. 178 e 179 do CC):

Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico,
contado:

I - no caso de coação, do dia em que ela cessar;

II - no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou
o negócio jurídico;

III - no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.

Art. 179. Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para plei-
tear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato.

Se a parte interessada não propuser ação anulatória dentro dos prazos determinados pela lei, o ne-
gócio jurídico simplesmente convalesce.
Veja que o prazo geral de decadência para a anulação do negócio jurídico é de 4 anos. O art. 179,
todavia, prevê que quando a lei dispuser que determinado ato é anulável sem estabelecer prazo para a
anulatória, tal prazo será de dois anos, a contar da data da conclusão do ato. O art. 496 do CC, por exem-
plo, não prevê prazo, sendo aplicável este de dois anos.

211
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 179, conjugado com o art. 496 do CC leva à conclusão da perda de eficácia da Súmula 494 do
STF, uma vez que, como dito, no atual sistema, o prazo de anulação da venda de ascendente a descenden-
te passou a ser de dois anos, a contar da conclusão do ato:

Súmula 494 – A AÇÃO PARA ANULAR VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE, SEM


CONSENTIMENTO DOS DEMAIS, PRESCREVE EM VINTE ANOS, CONTADOS DA DATA DO
ATO, REVOGADA A SÚMULA 152.

6.3.2.3. Possibilidade de confirmação


Diferentemente do nulo, o negócio jurídico anulável admite convalidação livre ou confirmação
(arts. 172 a 174):

Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.

Art. 173. O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade ex-
pressa de mantê-lo.

Art. 174. É escusada a confirmação expressa, quando o negócio já foi cumprido em parte pelo
devedor, ciente do vício que o inquinava.

Assim, o relativamente incapaz que celebra contrato pode confirmar tal celebração, chegando aos
dezoito.
Flávio Tartuce leciona que irrevogabilidade da confirmação, seja ela expressa ou tácita. Dessa for-
ma, com a confirmação, extinguem-se todas as ações ou exceções, de que contra ele dispusesse o deve-
dor. Não caberá mais, portanto, qualquer requerimento posterior de anulabilidade do negócio anterior, o
que está de acordo com a máxima que veda o comportamento contraditório e que tem relação com a boa-
fé objetiva (venire contra factum proprium non potest).

6.3.2.4. Eficácia retroativa da sentença anulatória do negócio jurídico (polêmica)


Incialmente Flávio Tartuce informa que os efeitos inter partes são incontestes, salvo os casos
de indivisibilidade e solidariedade.
A despeito de certa polêmica150, é adequado o raciocínio de autores como Humberto Theodoro Jú-
nior, com base no próprio art. 182 do Código Civil, no sentido de que, por exceção, em que pese sua natu-
reza desconstitutiva, a sentença anulatória do negócio jurídico também tem eficácia ex tunc (retroativa):

Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se
achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.

Para Pablo, o Código Civil é claro. Não tem sentido negar à sentença anulatória a eficácia retroati-
va. Uma pessoa celebra negócio anulável, vítima de coação, e paga sinal de R$ 10.000,00. Seis meses

150 • Pelos efeitos “ex nunc”: Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves, Caio Mario, Rizzardo e ca-
sal Ney.

212
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

depois, ela ingressa com demanda anulatória no negócio jurídico. A sentença evidentemente retroagirá
para recompor as partes no estado em que se encontravam (no caso, mandará devolver o sinal). A sen-
tença que anula o negócio deve se voltar para trás, para desconstituir o ato na origem, entendimento já
consignado pelo STJ151.
Lembra Pontes de Miranda que enquanto a sentença anulatória não é proferida, o negócio anulável
surte efeitos (“eficácia interimística”).
Obs.: Flávio Tartuce entende que em tese a aplicação do Art. 182 se daria apenas aos NJ anuláveis
(pela expressão “anulado” na letra do Art.) entretanto, a doutrina majoritária tem entendido que este se
também aplica ao NJ nulo.

151 (Decisão monocrática no Recurso Especial 1.420.839/MG, Min. Maria Isabel Gallotti, j. 07.10.2016).

213
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em resumo:

Negócio Nulo (ordem pública) Negócio Anulável (ordem privada)

HIPÓTESES: HIPÓTESES:

– Negócio celebrado por absolutamente – Negócio celebrado por relativamente


Incapaz (art. 3.º do CC), sem a devida Incapaz (art. 4.º do CC), sem a devida
representação. assistência.

– Objeto ilícito, impossível, indeterminado


– Quando houver vício acometendo o negócio
ou indeterminável. jurídico: erro, dolo, coação
moral/psicológica, estado de perigo, lesão e
– Motivo a ambas as partes for ilícito.
fraude contra

– Desrespeito à forma ou preterida credores.


alguma solenidade. )
– Lei prevê a anulabilidade.
– Objetivo do negócio de fraude à lei
imperativa.

– Lei prevê a nulidade absoluta (nulidade


textual ou proíbe o ato sem cominar sanção
(nulidade virtual).

– Negócio simulado, incluída a reserva mental.

– Presença de coação física (vis absoluta).


EFEITOS E PROCEDIMENTOS:
EFEITOS E PROCEDIMENTOS:

– Nulidade absoluta (nulidade).


– Nulidade relativa (anulabilidade).

– Ação declaratória de nulidade, imprescritível.


– Ação anulatória, com previsão de
prazos decadenciais.
– Não pode ser suprida nem sanada,
Inclusive pelo juiz. Exceção: conversão do
– Pode ser suprida, sanada, inclusive pelas
negócio jurídico (art. 170 do CC).
parte (convalidação livre).

– O Ministério Público pode Intervir na ação


– O Ministério Público não pode
de nulidade absoluta, inclusive
intervir ou propor ação anulatória,
promovendo a demanda.
somente os interessados.

– Cabe decretação de ofício pelo juiz.


– Não cabe decretação de ofício pelo juiz.

– Sentença da ação declaratória tem efeitos erga


– Sentença da ação anulatória tem efeitos
omnes (contra todos) e ex tunc (retroativos).
inter partes (entre as partes). Quanto ao
debate de serem tais efeitos ex nunc (não
retroativos) ou ex tunc (retroativos), há uma
tendência atual de seguir a última posição

214
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.4. Nulidade ou anulabilidade superveniente

Geralmente, a nulidade ou a anulabilidade é analisada no nascimento do negócio jurídico. Pode ha-


ver, entretanto, nulidade ou anulabilidade superveniente? Em outras palavras, pode o negócio nascer
válido e se tornar inválido posteriormente?
Parte da doutrina, a exemplo de Martinho Garcez Neto, observa que em determinadas situações é
cabível a tese da nulidade superveniente. Ex.: uma empresa importadora tem um contrato de cinco anos
para importar determinado produto de circulação permitida no Brasil (produto lícito). No segundo ano, o
governo brasileiro promulga norma proibindo a circulação daquele determinado produto no Brasil. A
ilicitude do objeto causa nulidade superveniente do negócio jurídico. É o caso de contrato que tinha por
objeto o lança-perfume, por exemplo.

6.5. Conversibilidade do negócio jurídico nulo

Há alguma medida terapêutica ou sanatória do negócio jurídico nulo?


O instituto a seguir estudado pode também ser aplicável ao negócio anulável, em essência, pois se
uma medida se aplica ao mais, poderia ser aplicada ao menos. Contudo, não há tanto interesse na aplica-
ção dele ao negócio jurídico anulável, por conta da existência de outras formas de convalidação da anula-
bilidade.
A conversão do negócio jurídico inválido é uma das poucas medidas sanatórias de um negócio nu-
lo152. Foi o Código Civil alemão, em seu parágrafo 140 (umdeutung), que tratou de forma pioneira da
conversibilidade do negócio jurídico inválido, no que foi seguido por outros Códigos, a exemplo do art.
293 do CC de Portugal e do art. 170 do nosso Código Civil:

Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quan-
do o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a
nulidade.

Trata-se de uma medida sanatória por meio da qual se aproveitam os elementos materiais de um
negócio inválido, segundo a vontade das partes, convertendo-o em outra categoria de negócio válido e de
fins lícitos. Carl Larenz, que escreveu sobre o instituto, lembrava que a medida pressupõe uma finalidade
lícita. Na conversão, as partes não estão confirmando o negócio.
O processo civil trabalha com a conversibilidade há anos. O juiz pode, por exemplo, converter o in-
terdito de manutenção da posse em reintegração de posse. Fungibilidade é conversibilidade. O que se faz
nada mais é que, diante de um negócio inválido, aproveitar os elementos materiais, recategorizando
aquele negócio jurídico. Na conversão, existe uma transformação do negócio inválido.

152 Acerca do tema, conferir a obra de Rachel Schmiedel, Ed. Saraiva.

215
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para que haja a conversão, além do aproveitamento do negócio inválido (requisito material), deve
ficar claro que, se as parte houvessem previsto a nulidade, teriam celebrado o negócio convertido (requi-
sito imaterial ou subjetivo).
Ex.: as partes celebram um contrato de compra e venda de imóvel de valor superior a 30 salários
mínimos sem observarem a forma pública. A avença resta impugnada por um terceiro, alegando vício de
forma. A tese da conversão em negócio válido poderia ser usada para o aproveitamento do negócio, com
a conversão da compra e venda em promessa de compra e venda.

216
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA: Art. 189 a 211 CC

1. Introdução
Nas lições de Flávio Tartuce, um direito não pode ficar pendente de forma indefinida no tempo, de
modo que o titular deve exercê-lo dentro de um determinado prazo, pois o direito não socorre aqueles
que dormem. Com fundamento na pacificação social, na certeza e na segurança da ordem jurídica é que
surge a matéria da prescrição e da decadência.
Pode-se ainda afirmar que a prescrição e a decadência estão fundadas em uma espécie de boa-fé do
próprio legislador ou do sistema jurídico e na punição daquele que é negligente com seus direitos e suas
pretensões.
Assim, prescrição e decadência são institutos jurídicos umbilicalmente ligados à noção de decurso
do tempo, enquanto fato jurídico. Esse é um tema que, durante muito tempo, foi lecionado e escrito de
forma equivocada no Brasil.
Tal fato se deu uma vez que a matéria era tratada no Código Civil de 1916 de modo muito confuso
especialmente porque os prazos de prescrição e decadência estavam misturados nos artigos pertinentes
ao tema.
Entretanto, no Código Civil de 2002 o tratamendo do tema foi muito facilitado em razão do princí-
pio da operabilidade, no sentido de facilitação dos institutos privados.
Na precisa lição de Carlos Roberto Gonçalves a princípio, para distinguir prescrição de decadência,
o atual Código Civil optou por uma fórmula que elimina qualquer dúvida:
a) Prazos de prescrição são, apenas e exclusivamente, os taxativamente discriminados na
Parte Geral, nos arts. 205153 (regra geral) e 206 (regras especiais)
b) Prazos de decadência são todos os demais, estabelecidos como complemento de cada arti-
go que rege a matéria, tanto na Parte Geral como na Especial.
Em segundo lugar, para evitar o debate sobre a prescrição ou não da ação, adotou-se a tese da pres-
crição da pretensão, por ser considerada a mais condizente com o Direito Processual contemporâneo.
Usou-se o referido termo para atender à circunstância de que a prescrição é instituto de direito material,
conceituando-se o que por ele se entende no art. 189, que tem a virtude de indicar que a prescrição tem
início no momento em que há violação do direito. Segundo dispõe o aludido dispositivo, “violado o direi-
to, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts.
205 e 206”. A pretensão é revelada, portanto, como um poder de exigir de outrem uma ação ou omissão.

153 CC, art. 205: “A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.

217
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalmente, o Código Civil de 2002 adotou os critérios identificadores de Agnelo Amorim Filho 154
(RT 300/7 e 744/725).
Nesse sentido, associa-se a prescrição às ações condenatórias, ou seja, àquelas ações relacionadas
com direitos subjetivos, próprio das pretensões pessoais, de modo que a prescrição mantém relação com
deveres, obrigações e com a responsabilidade decorrente da inobservância das regras ditadas pelas par-
tes ou pela ordem jurídica.
Por outro lado, a decadência está associada a direitos potestativos e às ações constitutivas, sejam
elas positivas ou negativas. As ações anulatórias de atos e negócios jurídicos, logicamente, têm essa últi-
ma natureza. A decadência, portanto, tem relação com um estado de sujeição, próprio dos direitos potes-
tativos. Didaticamente, é certo que o direito potestativo, por se contrapor a um estado de sujeição, é
aquele que encurrala a outra parte, que não tem saída.
Por fim, as ações meramente declaratórias, como aquelas que buscam a nulidade absoluta de um
negócio, são imprescritíveis, ou melhor tecnicamente, não estão sujeitas à prescrição ou a decadência. A
imprescritibilidade dessa ação específica está também justificada porque a nulidade absoluta envolve
ordem pública, não convalescendo pelo decurso do tempo (art. 169 do CC).
Em resumo:
a. Ação condenatória (cobrança e reparação de danos): prescrição.
b. Ação constitutiva positiva ou negativa (anulatória): decadência.
c. Ação declaratória (nulidade): imprescritível.

1.1. Características da prescrição e da decadência

1.1.1. Impossibilidade de alteração pela vontade das partes


Prazos prescricionais, por derivarem da lei, não podem ser alterados pela vontade das partes (art.
192), assim como, pela mesma razão, prazos decadenciais legais também não, ressalvada a hipótese de o
prazo decadencial ser convencional:

Art. 192. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes.

Nesse sentido é também a lição de Carlos Roberto Gonçalves, a “prescrição em curso não cria direi-
to adquirido, podendo o seu prazo ser reduzido ou ampliado por lei superveniente ou transformado em
prazo decadencial. Não se admite, porém, ampliação ou redução de prazo prescricional pela vontade das
partes. No primeiro caso, importaria renúncia antecipada da prescrição, vedada pela lei. A possibilidade
de se reduzir o prazo, que constituía questão polêmica, foi também afastada pelo aludido art. 192.”.

154 Ensina Flávio Tartuce que como a matéria era demais confusa na vigência do Código Civil de 1916, visando

esclarecer o assunto, Agnelo Amorim Filho concebeu um artigo histórico, em que associou os prazos prescricionais e
decadenciais a ações correspondentes, buscando também quais seriam as ações imprescritíveis.

218
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.1.2. Possibilidade de alegação da prescrição pelo interessado em qualquer grau de ju-


risdição
A prescrição, nos termos do art. 193, pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pelo interes-
sado, valendo lembrar, inclusive, que o prazo decadencial convencional, nos termos do art. 211, também
poderá ser alegado em qualquer instância. Mas, por óbvio, em instâncias superiores deverá haver pre-
questionamento (STJ Edcl no REsp 1.104.691/RS):

Art. 193. A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem apro-
veita.

Art. 211. Se a decadência for convencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer
grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação.

1.1.3. Possibilidade de reconhecimento da prescrição e da decadência legal de ofício pe-


lo juiz
A decadência legal poderá ser reconhecida de ofício pelo juiz. A convencional não (a parte tem de
alegá-la, segundo seu interesse).
A prescrição, entretanto, pode ser reconhecida de ofício pelo juiz?
Essa matéria sofreu mudança profunda. O reconhecimento da prescrição de ofício pelo Juiz teve
preocupação de natureza prática.
A Lei 11.280/2006, modificando o CPC, também alterou o próprio Código Civil (revogando o art.
194) para expressamente permitir que o juiz pudesse reconhecer de ofício a prescrição entretanto, o art.
219, § 5º, do CPC/73, determinava que o juiz podia reconhecer de ofício a prescrição, o CPC de 2015 re-
produziu a regra (CPC, arts. 332, § 1º21 e 487, II22).

CPC, art. 332, § 1º: “O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verifi-
car, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição”.

22 CPC, art. 487: “Haverá resolução de mérito quando o juiz:

(...)

II - decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição.

(...)”.

Na prática, isso significa o juiz poderia reconhecer de ofício a prescrição em uma ação de cobrança
formulando pretensão prescrita, ainda que o devedor, citado, não a alegasse.
Entretanto, na lição de Flávio Tartuce, “apesar da ressalva à improcedência liminar do pedido, pa-
rece ter grande força, como verdadeiro norte principiológico processual, o art. 10 da norma emergente.
De acordo com esse preceito, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em funda-

219
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate
de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Ora, o julgamento liminar em casos de prescrição parece
ferir esse último dispositivo, lesando claramente o contraditório.”.
O art. 191 do Código Civil, ainda em vigor, admite, com razão compreensível, que o devedor possa,
querendo, renunciar à alegação de prescrição:

Art. 191. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem pre-
juízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de
fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.

Ora, se a prescrição é uma defesa do próprio devedor, por que não poderia a ela renunciar? O
Enunciado 295 da IV Jornada de Direito Civil, inclusive, deixa claro que esta faculdade de renúncia não
foi retirada do devedor:

Enunciado 295 - Art. 191: A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que
determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilida-
de de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado.

Já adiantando que esse deve ser mesmo o posicionamento da doutrina no futuro, na VII Jornada
de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2015, aprovou-se enunciado segundo o
qual, “em complemento ao Enunciado 295, a decretação ex officio da prescrição ou da decadência deve
ser precedida de oitiva das partes” (Enunciado n. 581).

2. Prescrição
Por longo tempo, a doutrina brasileira clássica difundiu a ideia de que a prescrição extinguiria o di-
reito de ação. Trata-se de um verdadeiro dogma daqueles autores acerca do tema (Clóvis Bevilaqua, Sil-
vio Rodrigues, Luiz Carpenter, Câmara Leal etc.) Há ainda jurisprudência reverberando essa noção, que
já está ultrapassada.
Agnelo Amorim Filho escreveu um importante artigo, na década de 1960, que ficou desconsiderado
no Brasil por décadas, mas que trouxe nova forma de encarar o tema. A partir daquele texto, a assertiva
segundo a qual a prescrição extinguiria a ação (“a ação está prescrita”) restou superada pela Teoria Geral
do Direito.
O motivo desse equívoco está na História do Direito. A teoria geral do processo foi desenvolvida no
final do século XIX e início do século XX. Nessa época, a teoria que explicava o direito de ação era a ima-
nentista, segundo a qual o direito material e o direito de ação estariam conectados um ao outro. Por con-
ta da ausência de desenvolvimento da teoria geral do processo, havia uma dificuldade de tratamento do
tema.
Somente com o amadurecimento da Teoria Geral do Processo, ao longo do século XX e o abandono
da teoria imanentista da ação, a prescrição passou a ser mais bem compreendida, para permitir, mor-

220
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mente após os estudos de Agnelo Amorim Filho, concluir-se que a ação, em verdade, não prescreve. A
noção comum de direito de ação não permite essa conclusão.
Ex.: em 10 de março, Caio e Ticio celebram contrato em virtude do qual Caio se torna credor de
uma prestação no valor de R$ 1.000,00 e Ticio devedor da mesma prestação de R$ 1.000,00. Ocorre que
ambos ajustaram que o vencimento da dívida somente ocorreria no dia 10 de abril. Somente nesse dia é
que, violado o direito do credor (com o descumprimento da prestação), começa a fluir o prazo prescricio-
nal (o qual, nesse caso, seria de 20 anos para a doutrina clássica). Se Caio deixasse o tempo correr e, no
21º ano ajuizasse a ação, a doutrina clássica entendia que a ação estaria prescrita (a prescrição fulminaria
a ação).
Pergunta-se: se, no 21º ano, depois de findo o prazo prescricional, o advogado preparasse a inicial,
distribuísse a demanda, o magistrado determinasse a citação, citasse o réu, ele alegasse prescrição em
preliminar de mérito e o juiz finalmente acolhesse a alegação e extinguisse a demanda sem resolução do
mérito, não teria havido direito de ação? Veja, portanto, que a prescrição não ataca a ação, na medida em
que, segundo a doutrina mais moderna, o direito de ação é um direito constitucional público e abstrato,
de índole processual, de pedir ao Estado um provimento jurisdicional, que é imprescritível.
Na verdade, o direito alemão reconheceu que existiria outro instituto que sofreria a ação do lapso
prescricional (conclusão a que chegara o CDC antes do CC/2002): a pretensão.
Assim, o correto é dizer que a prescrição extingue a pretensão. A pretensão nasce no dia em
que o direito à prestação é violado e morre no último dia do prazo prescricional. No exemplo acima, a
pretensão nasce no dia do vencimento da dívida e morre no último dia do prazo de 20 anos (pelo CC/16).
O direito de ação deve ser exercido dentro do prazo prescricional para que a pretensão ainda esteja
viva, tenha força jurídica. Exercido o direito de ação depois do prazo prescricional, ele continuará exis-
tindo, mas a pretensão estará morta.
Assim, nas palavras d eFlávio Tartuce a prescrição é perda da pretensão, estando relacionada a di-
reitos subjetivos de cunho patrimonial. Portanto, não é a perda do direito de ação.
A pretensão, que deve ser exercida dentro do lapso prescricional, traduz o poder jurídico conferido
ao credor de, coercitivamente, exigir o cumprimento da prestação violada.
O Estado tomou para si a coercibilidade das normas jurídicas violadas. A pretensão é poder que o
Estado reconhece ao titular do direito cujo interesse foi violado de exigir o cumprimento dele valendo-se
da estrutura judiciária estatal. Todavia, se o credor deixar o tempo correr e o prazo prescricional se con-
sumar sem a formulação da pretensão, o Estado não se interessa mais pelo descumprimento do direito
dele.
A quem interessa sobremaneira o decurso do prazo prescricional? Em outras palavras, a quem fa-
vorece a consumação da prescrição? Evidentemente, ao devedor. Ela é, sobretudo, uma matéria de defe-
sa. Com efeito, a prescrição consumada é de interesse do próprio devedor, que poderá manejá-la como
uma defesa indireta de mérito.

221
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para Pablo, o CC/2002 foi bastante preciso. O art. 189 do Código Civil, reafirmando tudo quando
dito acima, deixa claro que a prescrição ataca a pretensão, e não o direito de ação:

Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição,
nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

Na época em que vigia o CC/16, era muito difícil saber quais eram prazos de prescrição e de deca-
dência, uma vez ele que misturava prazos prescricionais com decadenciais na mesma parte155.
Dica: no Código Civil Brasileiro, os prazos prescricionais extintivos estão apenas em dois únicos ar-
tigos: 205 (que traz o prazo prescricional máximo de 10 anos) e 206 (que traz os prazos prescricionais
especiais). A usucapião (prescrição aquisitiva) não está incluída na regra.
O prazo prescricional para reparação civil de danos (ação de perdas e danos) era de 20 anos. Hoje,
o prazo prescricional para a formulação de pretensão de reparação civil de danos é de três anos. No CDC,
esse prazo é de cinco anos.
Vale lembrar, ainda, que os prazos prescricionais não são convencionais, ou seja, estão sempre pre-
vistos na lei.
Obs.: Prescrição e institutos afins156:
i. Preclusão: é de ordem processual. Consiste na perda de uma faculdade processual, por não ter si-
do exercida no momento próprio.
ii. Perempção: também é de natureza processual. Consiste na perda do direito de ação pelo autor
contumaz, que deu causa a três arquivamentos sucessivos (CPC, art. 486, § 3º). Não extingue o
direito material nem a pretensão, que passam a ser oponíveis somente como defesa.
iii. Decadência: atinge diretamente o direito e, por via oblíqua, extingue a ação (é o próprio direito
que perece). A prescrição extingue a pretensão (art. 189).

2.1. Início do prazo prescricional

Em regra, o início do prazo se dá com o surgimento da pretensão que ocorre com a violação do di-
reito subjetivo, nesse sentido o Enunciado n. 14 – I Jornada de Direito Civil157, trata-se da “actio nata”
objetiva (Savigny158).

155 Orlando Gomes, ao tratar do tema no livro “Introdução ao Direito Civil”, traz na última página do capítu-
lo os prazos decadenciais do Código Civil.
156 Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos
/ Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.
157 Enunciado 14: “O início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exi-

gibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a
violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”.
158 Ao contrario do que muitos pensam o autor era alemão e não francês.

222
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce, Savigny “ao subordinar o começo da prescrição ao fato da violação que a
ação é chamada a combater, estabelece um começo de natureza puramente objetiva, de modo que pouco
importa que o titular do direito tenha ou não conhecimento.”.
Assim, o conhecimento da violação do direito é indiferente, mesmo para as prescrições curtas, sal-
vo, contudo, casos excepcionais, em que se considera esse fato”.
Nesse modelo, a ideia de actio nata, como se nota, tem um caráter objetivo puro, desprezando o
conhecimento do dano pelo lesado, pelo menos em regra.
Porém, cresce na lei, na jurisprudência e na doutrina a adoção à teoria da “actio nata” subjetiva,
segundo a qual o prazo prescricional terá início da ciência ou conhecimento da lesão (Câmara Leal e José
Fernando Simão).
Trata-se de situação excepcional, pela qual o início do prazo, de acordo com a exigência legal, só se
dá quando a parte tenha conhecimento do ato ou fato do qual decorre o seu direito de exigir. Não basta,
assim, que o ato ou fato violador do direito exista para que surja para ela o exercício da ação. Já aqui
mais ‘liberal’, exige a lei o conhecimento pelo titular para que, só assim, se possa falar em pretensão e
também em prescrição desta.
Em sede jurisprudencial a teoria da actio nata em feição subjetiva pode ser retirada do teor das
Súmulas 278 e 573 STJ, que enuncia:

S. 278 STJ: “O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o se-
gurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral”.

S. 573 STJ: “Nas ações de indenização decorrente de seguro DPVAT, a ciência inequívoca do ca-
ráter permanente da invalidez, para fins de contagem do prazo prescricional, depende de laudo
médico, exceto nos casos de invalidez permanente notória ou naqueles em que o conhecimento
anterior resulte comprovado na fase de instrução”.

Em sede legal, o CDC em seu art. 27159 estabelece que a ação de reparação de danos por acidente de
consumo possui prazo prescricional de cinco anos, contados do conhecimento da lesão ou de sua auto-
ria.

2.2. Renúncia à prescrição

Nos termos a Art. 191 do CC160, a renúncia à prescrição é feita pelo devedor. Somente é possível
após a consumação, não se admitindo a renúncia prévia.

159 CDC, art. 27: “Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto
ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do
dano e de sua autoria”.
160 CC, art. 191: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de

terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, in-
compatíveis com a prescrição”.

223
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Observados os referidos requisitos de validade, quais sejam a consumação da prescrição e não pre-
juízo à terceiros, a renúncia, isto é, a desistência do direito de arguir a prescrição, pode ser:
a) expressa: A renúncia expressa decorre de manifestação taxativa, inequívoca, escrita ou
verbal, do devedor de que dela não pretende utilizar-se.
b) tácita: é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a pres-
crição”. Consumada a prescrição, qualquer ato de reconhecimento da dívida por parte do devedor, como
o pagamento parcial ou a composição visando à solução futura do débito, será interpretado como renún-
cia.
Entretanto, segundo Flávio Tartuce a renúncia tácita deve ser inequívoca. Não pode haver dúvidas
a cerca dela, conforme Art. 114 do Código Civil: renúncia não admite interpretação extensiva, conforme já
decidido pelo STJ161.

2.3. Causas impeditivas, suspensivas e interruptivas da prescrição

2.3.1. Causas impeditivas e suspensivas da prescrição


Como visto, o decurso do prazo prescricional favorece o devedor, por se tratar de matéria de defesa.
Uma causa que impede o prazo prescricional obsta o início da fluência do prazo. É como se a causa
impeditiva fosse uma represa, um “freio de mão puxado”. O prazo não sai do zero. A mesma causa, quan-
do incidente em um prazo que já está em curso, suspende-o (torna-se, portanto, uma causa suspensiva,
que, uma vez superada, permite que o prazo volte a correr).
Num prazo prescricional de dez anos, caso sobrevenha uma causa suspensiva após dois anos, finda
essa causa, remanescem ainda oito anos para a prescrição.
Essas causas impeditivas e suspensivas estão previstas nos arts. 197 a 199 do Código Civil:

Art. 197. Não corre a prescrição:

I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;

II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;

III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela.

Na lição de Carlos Roberto Gonçalves, o motivo do impedimento do decurso do prazo, nos três ca-
sos, é a confiança, a amizade, os laços de afeição que existem entre as partes.
É importante lembrar que o rol do dispositivo é taxativo, não admitindo interpretação extensiva.
Tendo em vista que a prescrição é instituto de ordem pública, a benesse é restrita às hipóteses legais.

(...) 2. A renúncia tácita da prescrição somente se perfaz com a prática de ato inequívoco de reconhecimen-
161

to do direito pelo prescribente. Assim, não é qualquer postura do obrigado que enseja a renúncia tácita, mas aquela
considerada manifesta, patente, explícita, irrefutável e facilmente perceptível. (STJ, REsp. 1.250.583/SP, Rel. Mi-
nistro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03/05/2016, DJe 27/05/2016)

224
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 198. Também não corre a prescrição:

I - contra os incapazes de que trata o art. 3o;

II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios162;

III - contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.

Art. 199. Não corre igualmente a prescrição:

I - pendendo condição suspensiva163;

II - não estando vencido o prazo;

III - pendendo ação de evicção.

Ex.: o art. 197, I, prevê que a prescrição não corre entre os cônjuges, na constância da sociedade
conjugal. O marido e a mulher, a depender do regime de bens, podem ser sócios de sociedade empresá-
ria. Em virtude de um determinado balancete, o marido torna-se credor da esposa. Caso ele não receba o
pagamento, poderá formular a pretensão dentro do prazo prescricional correspondente. O mesmo exem-
plo pode ser formulado, como causa suspensiva, caso o crédito surja antes do casamento e, dentro do
prazo prescricional, credor e devedor se casem. O prazo prescricional permanecerá paralisado enquanto
existir a sociedade conjugal.
Embora seja algo pouco frequente, prazos decadenciais também podem sofrer a incidência de cau-
sas suspensivas ou interruptivas. Ex.: art. 26 do CDC. O consumidor que compra produto com defeito
tem 30 ou 60 dias de prazo decadencial para exercer o direito de reclamar judicialmente. Formulada a
reclamação na loja, enquanto não sobrevier resposta o prazo decadencial está impedido.

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;

II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do tér-


mino da execução dos serviços.

§ 2° Obstam a decadência:

I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produ-


tos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequí-
voca;

II - (Vetado).

162 A regra aplica-se ao ausente morto presumido, conforme o Enunciado n. 156 da III Jornada de Direito Ci-
vil (“Desde o termo inicial do desaparecimento, declarado em sentença, não corre a prescrição contra o ausente”.)
163 Atenção para a já vista S. 229 STJ: “O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o pra-

zo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”.

225
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.

§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar eviden-
ciado o defeito.

2.3.2. Causas interruptivas da prescrição

2.3.2.1. Noções gerais


Como visto, o decurso do prazo prescricional interessa ao devedor. As causas interruptivas da pres-
crição, para desespero do devedor, fazem com que o prazo prescricional recomece a contar do zero. Para
evitar abuso de direito, entretanto, o prazo somente pode ser interrompido uma única vez (Art.202, CC)
Ademais, a interrupção depende, em regra, de um comportamento ativo do credor, diferentemente
da suspensão, que decorre automaticamente de certos fatos previstos na lei, como foi mencionado.
O prazo interrompido volta a correr por inteiro, diversamente da suspensão da prescrição,
cujo prazo volta a fluir somente pelo tempo restante, ou das causas de impedimento em que o prazo se-
quer tem início.
Finalmente, segundo Carlos Roberto Gonçalves, o efeito da interrupção da prescrição é,
portanto, instantâneo: “A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrom-
peu, ou do último ato do processo para a interromper” (art. 202, parágrafo único). Sempre que possível a
opção, ela se verificará pela maneira mais favorável ao devedor.

2.3.2.2. Causas legais de interrupção da prescrição (art. 202 do Código Civil)

Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promo-
ver no prazo e na forma da lei processual;

A matéria tratada neste inciso é tratada em minúcias no caderno de processo civil, vale aque a res-
salva no sentido de que o regramento do CC conflitava com o art. 219, § 1º do CPC/73 que determinava
que a interrupção ocorreria com a citação válida e que retroagiria à propositura da ação. O CPC de 2015
resolveu o problema, em regra disposta em seu art. 240164, prevendo que a interrupção ocorre com o des-
pacho do juiz que ordena a citação, retroagindo à data da propositura da ação.

II - por protesto, nas condições do inciso antecedente;

O protesto que interrompe o prazo prescricional é a medida cautelar de protesto (medida judicial).
Também se trata de matéria de processo civil.

164 CPC, art. 240: “A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência,

torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei no 10.406, de
10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”.

226
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

III - por protesto cambial;

Protesto cambial (do título de crédito) também interrompe a prescrição. Perceba que este inciso III
prejudicou a Súmula 153 do STF, que diz exatamente o contrário165.
Obs.: Mas há um problema relacionado a essa interrupção, que, segundo o Código de 2002, somen-
te poderá ocorrer uma vez. Pois bem, imagine-se um caso em que houve o protesto cambiário (art. 202,
inc. II do CC/2002), o que gera a interrupção da prescrição. Com a propositura da ação (art. 202 inc. I,
do CC/2002), o prazo continuará a fluir? Se a resposta for afirmativa, o autor deve receber o seu crédito
até o final do prazo, sob pena de extinção da pretensão. É essa a melhor interpretação? Acreditamos que
não. Dois são os caminhos a seguir para responder negativamente. O primeiro caminho é apontado por
Caio Mário da Silva Pereira Para esse autor, tem que se entender que nos casos de protesto (judicial ou
extrajudicial) a citação para o procedimento definitivo (ação para cobrança, por exemplo) não perde o
efeito interruptivo (dualidade de interrupções da prescrição). Diz Caio Mário, para chegar a essa conclu-
são, que “nenhuma lei pode receber interpretação que conduza ao absurdo”. Como segundo caminho,
pode-se entender que a ação proposta suspende a prescrição, conforme o art. 199, I, do CC, eis que a ação
é uma condição suspensiva. A última proposta é a mais condizente com o texto legal, eis que está ampa-
rada naquilo que a codificação consagra

IV - pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores;

A apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores nada mais é


que a habilitação do crédito no inventário ou na falência. Ex.: João morreu. Pedro é credor de João e
soube que ele morreu. No momento em que o título é habilitado no inventário, o prazo interrompe-se.

V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;

Interrompem a prescrição, segundo o inciso V, uma notificação ou interpelação judicial.


Na letra da lei, notificação simplesmente extrajudicial (realizada por aviso de recebimento) não te-
ria força jurídica para interromper o prazo prescricional, razão pela qual tramita no Congresso Nacional
o PL 3293/08, que pretende alterar o Código Civil para, expressamente, admitir como causa interruptiva
da prescrição a notificação extrajudicial.

VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direi-
to pelo devedor.

Esta é a única hipótese em que a interrupção da prescrição ocorre sem a manifestação volitiva do
credor. Incluem-se, nesses atos de reconhecimento da dívida, por exemplo, pagamentos parciais, pedidos
de prorrogação do prazo ou de parcelamento e pagamento de juros.Ex.: confissão de dívida.

165 Súmula 153 – Simples protesto cambiário não interrompe a prescrição.

227
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O inciso VI não alberga a hipótese da notificação extrajudicial, pois não há nenhum ato do devedor
inequívoco de reconhecimento da dívida. A notificação extrajudicial é um ato de comunicação.

Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu,
ou do último ato do processo para a interromper.

Nos termos do que dispõe o parágrafo único, a prescrição interrompida recomeça a correr da data
do ato que a interrompeu ou do último ato do processo que a interrompeu.
Em direito processual civil será estudado o tema “prescrição intercorrente”, de ampla aplicabilida-
de no direito tributário e trabalhista, e que, segundo Arruda Alvim, é aquela prescrição que ocorre dentro
do próprio processo, quando a pretensão já tenha sido deduzida em juízo.
No último dia do prazo de prescrição, formulada a pretensão em juízo, não haveria mais que se fa-
lar em prescrição. Todavia, se o processo durar muito tempo, essa demora não pode ser imputada ao de-
vedor. Aceita em direito tributário e trabalhista, a prescrição intercorrente é uma tese segundo a qual,
deduzida a pretensão em juízo, haveria uma segunda contagem do prazo, dentro do processo.
Atualmente o tema é tratado no Art. 921166 do CPC/2015 e será visto de forma completa no caderno
de processo civil.

3. Decadência
A decadência é também chamada de caducidade, muito embora a expressão “caducidade” possa
também ter outros sentidos e é conceituada por Flávio Tartuce como a perda de um direito, em decorrên-
cia da ausência do seu exercício.
Inicialmente, cumpre observar que o direito potestativo é um simples direito de interferência, sem
conteúdo prestacional, pelo qual o seu titular, ao exercê-lo, interfere na esfera jurídica alheia, sem que
esta pessoa nada possa fazer.

166 CPC, art. 921: “Suspende-se a execução:


I - nas hipóteses dos arts. 313 e 315, no que couber;
II - no todo ou em parte, quando recebidos com efeito suspensivo os embargos à execução; III - quan-
do o executado não possuir bens penhoráveis;
IV - se a alienação dos bens penhorados não se realizar por falta de licitantes e o exequente, em 15
(quinze) dias, não requerer a adjudicação nem indicar outros bens penhoráveis;
V - quando concedido o parcelamento de que trata o art. 916.
§ 1º: Na hipótese do inciso III, o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 (um) ano, durante o qual se sus-
penderá a prescrição.
§ 2º: Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano sem que seja localizado o executado ou que sejam encontrados
bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos.
§ 3º: Os autos serão desarquivados para prosseguimento da execução se a qualquer tempo forem encontra-
dos bens penhoráveis.
§ 4º: Decorrido o prazo de que trata o § 1o sem manifestação do exequente, começa a correr o prazo de pres-
crição intercorrente.
§ 5º: O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescri-
ção de que
trata o § 4o e extinguir o processo”.

228
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O direito potestativo é um direito de sujeição. Não se espera, no exercício do direito potestativo,


uma prestação do outro. Quando um direito potestativo é exercido, o outro simplesmente se sujeita a ele.
Exemplos: direito de divórcio e direito que empregador e empregado têm de resilir o contrato de traba-
lho.
Existem direitos potestativos sem prazo para o seu exercício, a exemplo do direito de divórcio. No
entanto, sempre que houver prazo para o exercício de um direito potestativo, este prazo será deca-
dencial. Os prazos de prescrição, como visto, estão nos arts. 205 e 206. Todos os demais (exceto os da
prescrição aquisitiva da usucapião) são de decadência.
Em regra, os prazos previstos não são interrompidos, suspensos ou impedidos, entretanto, como
exceção ela não corre contra os absolutamente incapazes (hoje apenas os menores de 16 anos).
Atenção! As partes não podem criar prazos prescricionais. Os prazos decadenciais, todavia, pode-
rão ser legais (a exemplo do prazo para se exercer o direito potestativo de anular um contrato, previsto
no art. 178 do CC167) ou convencionais, ajustados pelas próprias partes (a exemplo do prazo previsto no
contrato para se exercer o direito potestativo de desistir do negócio). Assim, a prescrição é sempre legal.
Já a decadência pode ser legal ou convencional.
Em resumo:

Decadência Legal Decadência Convencional

Deve ser reconhecida de ofício pelo juiz (art. 210 do Não pode ser reconhecida pelo juiz (art. 211 do CC).
CC), como ocorre com a prescrição.

Não pode ser renunciada pela parte (art. 209 do CC). Pode ser renunciada após a consumação, assim como
ocorre com a prescrição.

Obs.: o artigo 496 do Código Civil prevê que é anulável a venda de ascendente para descendente se
não houver autorização dos demais descendentes e do cônjuge do alienante.
Conforme a Súmula n. 494 STF, o prazo seria o prescricional de 20 anos. No entanto, toda a dou-
trina tem o enunciado como cancelado, pois se aplicaria o art. 179 do Código Civil (2 anos). Nesse senti-
do, o Enunciado n. 368 – IV Jornada de Direito Civil168.

167 Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, conta-
do: I - no caso de coação, do dia em que ela cessar; II - no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou
lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; III - no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacida-
de.
168 “O prazo para anular venda de ascendente para descendente é decadencial de dois anos (art. 179 do Códi-
go Civil

229
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

1. Introdução
1.1. Conceito

Direito das obrigações é o conjunto de normas jurídicas que disciplinam a relação jurídica pessoal
vinculativa do credor ao devedor, em virtude da qual este último se obriga a cumprir uma prestação de
dar, fazer ou não fazer, segundo a autonomia privada e nos limites da função social e da boa-fé objetiva.
Nas palavras de Flávio Tartuce A obrigação é uma relação jurídica transitória existente entre um
sujeito ativo (credor) e um sujeito passivo (devedor); e cujo conteúdo é uma prestação economicamente
apreciável. Nos casos de inadimplemento, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor (Bevi-
laqua, Washington de Barros Monteiro, Maria Helena Diniz e Villaça).
O direito das obrigações tem por objeto a relação jurídica pessoal que une o credor (sujeito ativo da
relação obrigacional) ao devedor (sujeito passivo da relação obrigacional). Disciplina um tipo específico
de relação jurídica: aquela (horizontal) que vincula de um lado o credor e do outro o devedor. Ou seja, na
relação obrigacional há o crédito, de um lado, e o débito, de outro. Perceba que o direito das obrigações
poderia receber o nome de “direito dos créditos”.

1.2. Direito das obrigações x direitos reais

Direitos Reais (ou Direito das Coisas) é o ramo do Direito Civil que disciplina outro tipo de relação
jurídica: a relação vertical entre o titular do direito e uma coisa. A relação jurídica obrigacional vincula
sujeitos (credor e devedor). É, portanto, uma relação pessoal, horizontal, que ocorre entre pessoas.
Houve autores (Planiol) que disseram que mesmo na relação jurídica real (vertical), há na ponta
um sujeito passivo indeterminado. Teixeira de Freitas e Orlando Gomes, por sua vez, dizem que a relação
real (ex.: de propriedade) é uma relação para a qual a atividade de ninguém importa. A relação jurídica
real, em verdade, é exercida entre uma pessoa e uma coisa. Evidentemente que num contexto social (até
porque o direito é um fenômeno social).
Em direito das coisas, matéria que será objeto de estudo adiante, a relação jurídica real e os direitos
dela decorrentes são devidamente caracterizados, salientando-se, especialmente, a tipicidade intrínseca à
relação real.
Uma relação jurídica real deve sempre ser prevista em lei (tipicidade legal). Ou seja, as partes não
podem “inventar” um direito real. O contrato somente pode prever uma relação real que a lei já conceba
e aceite.
O direito e a relação obrigacionais, por sua vez, podem ser criados pelo contrato, não havendo a ne-
cessidade de previsão expressa. Exemplo é a relação jurídica obrigacional derivada do contrato de hospe-
dagem. Não há lei que regule o contrato de hospedagem. Assim, desde que respeitados os parâmetros

230
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

constitucionais que exigem o respeito a determinadas normas de ordem pública, o direito e a relação
obrigacionais são livremente criáveis.
Existe um tipo de relação jurídica híbrida, entretanto, que fica entre a obrigacional pura e a real
pura. Trata-se da obrigação propter rem (ob rem ou in rem). Alguns autores, exatamente por se tratar de
obrigação que se situa em zona limítrofe, a chamam de obrigação real. Esse tipo de obrigação propter
rem vincula credor e devedor, ao mesmo tempo em que está em face de uma coisa.
Trata-se de uma figura híbrida, de natureza mista (real e pessoal), que traduz um tipo de relação
obrigacional, vinculada a uma coisa e que a acompanha. Nela, há um sujeito passivo (um devedor), mas
ela está ligada a uma coisa, de maneira que, pouco importando nas mãos de quem a coisa esteja, a obri-
gação a acompanha, como um carrapato.
É nas palavras de Flávio Tartuce é a obrigação que uma pessoa tem sobre uma coisa e que a acom-
panha com quem quer que ela esteja.
Exemplo típico de obrigação propter rem é a obrigação de pagar taxa de condomínio, como inclu-
sive já reconheceu o próprio STJ (REsp 846.187/SP). Quem tem a obrigação de pagar a taxa de condo-
mínio é o proprietário da coisa, pouco importando se porventura há contrato de locação obrigando o lo-
catário a pagar o condomínio.
Em teoria, Pablo não vê óbice em se classificar as obrigações de pagar IPTU ou IPVA como propter
rem. Todavia, trata-se de obrigações propter rem com natureza tributária. O enquadramento é dado pelo
Direito Tributário, mas a disciplina é dada pelo Direito Civil.
A obrigação propter rem tem uma irmã, muito parecida com ela, mas que com ela não se confunde
(cuidado com a armadilha!): a obrigação com eficácia real. Trata-se simplesmente de uma obrigação co-
mum que passa a ter oponibilidade erga omnes, em virtude do seu registro público (ex.: art. 8º da Lei do
Inquilinato):

Art. 8º Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato,
com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e
o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícu-
la do imóvel.

§ 1º Idêntico direito terá o promissário comprador e o promissário cessionário, em caráter irre-


vogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo.

§ 2º A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias contados do registro da venda
ou do compromisso, presumindo-se, após esse prazo, a concordância na manutenção da locação.

Uma relação obrigacional, na sua essência, deve gerar efeitos entre as partes. Diferentemente, a re-
lação jurídica real tem efeitos erga omnes. A obrigação com eficácia real é ousada: é uma obrigação co-
mum, que passa a ter eficácia contra todos, em virtude do registro público.

231
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No curso da locação, o locador pode vender o imóvel. Essa obrigação travada entre vendedor e lo-
catário não precisa ser respeitada pelo comprador, a menos que haja o registro da locação no Cartório de
Registro de Imóveis, nos termos do art. 8º da Lei do Inquilinato.

1.3. Significado de “Obrigação” e teorias justificadoras

1.3.1. Significado de “obrigação”


A palavra obrigação pode ter dois sentidos fundamentais. Em um primeiro sentido, mais amplo e
analítico, significa a própria relação jurídica obrigacional que vincula o credor ao devedor. Em sentido
mais restrito, obrigação é o próprio dever jurídico imposto ao devedor, de dar, fazer ou não fazer.
Obs.: Obrigação como Processo (Clóvis Couto e Silva): a obrigação é um contínuo processo de cola-
boração entre as partes, que conduz ao adimplemento (cumprimento). Como tal, a obrigação tem: a) De-
veres principais: dar, fazer e não fazer. b) Deveres anexos: inerentes à boa-fé objetiva.

1.3.2. Diferenças conceituais (obrigação, dever, ônus e direito potesativo)169

1.3.2.1. Obrigação

Como já mencionado, obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de
outra prestação economicamente apreciável21.

1.3.2.2. Dever jurídico

Segundo Francisco Amaral, “ao direito subjetivo contrapõe-se o dever jurídico, situação passiva
que se caracteriza pela necessidade de o devedor observar certo comportamento (positivo ou negativo)
compatível com o interesse do titular subjetivo. Nos direitos absolutos esse dever é geral, todas as pesso-
as devem observá-lo, como ocorre nos direitos reais e nos direitos de personalidade. Na propriedade, por
exemplo, toda a coletividade está em situação de dever em relação ao titular desse direito. Todos os cida-
dãos devem não prejudicar o direito do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens, assim como
todos têm de respeitar a vida e a integridade moral das demais pessoas. Nos direitos relativos, como nas
obrigações, o dever é especial, competindo apenas à pessoa vinculada pela relação jurídica, como, por
exemplo, o comprador e o locatário, em relação ao vendedor e ao locador. O dever jurídico é, portanto, a
necessidade de se observar certo comportamento, positivo ou negativo, a que tem direito o titular do di-
reito subjetivo”
O dever jurídico é, portanto, a necessidade que tem toda pessoa de observar as ordens ou coman-
dos do ordenamento jurídico, sob pena de incorrer numa sanção. Não se limita às relações obrigacionais,

169 Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contra-

tos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

232
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mas, sim, abrange as de natureza real, atinentes ao direito das coisas, bem como as dos demais ramos do
direito, como o direito de família, o direito das sucessões e o direito de empresa.

1.3.2.3. Ônus jurídico


Incorreta, do ponto de vista técnico-jurídico, a afirmação de que o réu tem a obrigação de contestar
ou de impugnar ou que o adquirente de imóvel tem a obrigação de registrar o título de aquisição. Há, na
realidade, o ônus de contestar ou de impugnar (CPC, arts. 344 e 341), como existe o ônus de registrar.
Consiste oônus jurídico na necessidade de se observar determinada conduta para satisfação de um inte-
resse. A necessidade de provar para vencer tem o nome de ônus da prova. Não se trata de um direito ou
de uma obrigação, e, sim, de um ônus, uma vez que a parte, a quem incumbe fazer a prova do fato, supor-
tará as consequências e prejuízos da sua falta e omissão.
Como percucientemente esclarece Francisco Amaral, “a diferença entre o dever e o ônus reside no
fato de que no primeiro, o comportamento do agente é necessário para satisfazer interesse do titular do
direito subjetivo, enquanto no caso do ônus o interesse é do próprio agente”.

1.3.2.4. Direito potestativo e estado de sujeição

Direito potestativo é o poder que a pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este
possa fazer algo que não se sujeitar. Consiste em um poder de produzir efeitos jurídicos mediante a de-
claração unilateral de vontade do titular, gerando em outra pessoa um estado de sujeição, como o do vi-
zinho de prédio encravado, sujeito a permitir passagem sobre seu terreno quando lhe exigir o confinante.

1.3.3. Teorias justificadoras da obrigação


A teoria monista vigorou até o século XIX, apresentando um conceito de prestação. Já a teoria dua-
lista (brinz) vigora desde o século XX, e estabelece que a obrigação está fundada em dois conceitos, quais
sejam, débito e responsabilidade.
Nesse sentido, leciona Flávio Tartuce que a superação da teoria monista pode ser percebida a partir
do estudo dos dois elementos básicos da obrigação: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung),
sobre os quais a obrigação se encontra estruturada
O Schuld caracteriza o dever imposto ao devedor, ou seja, o débito. Haftung é responsabilidade.
Guilherme Calmon Nogueira exemplifica a distinção: o devedor de R$ 10.000,00 tem o schuld (o débito).
O fiador da dívida tem o haftung (a responsabilidade pelo pagamento).
Pela teoria dualista são possíveis duas situações:
i) debitum sem obligatio ou shuld sem (ohne) haftung:
Nesta hipótese, a dívida existe, mas não pode ser exigida (obrigação incompleta ou natural). Ex.:
dívida prescrita não pode ser exigida, mas pode ser paga. Em sendo paga, não cabe repetição de indébito
(art. 882 do CC). É o que ocorre com a gorjeta:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação

233
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

judicialmente inexigível.

ii) obligatio sem debitum ou haftung sem (ohne) shuld:


Nesta hipótese, a pessoa é responsável sem ter contraído a dívida. Ex.: contrato de fiança (art. 820)
ou de aval.

Art. 820. Pode-se estipular a fiança, ainda que sem consentimento do devedor ou contra a sua
vontade.

O contrato de fiança é celebrado entre fiador e credor, a fiança pode ser celebrada, ainda que sem o
consentimento do devedor e até mesmo contra a sua vontade.
Questão de concurso: a obrigação como processo. Clóvis do Couto e Silva possui livro sobre a temá-
tica. A ideia é que a obrigação é um processo de colaboração entre as partes, tendo deveres principais e
anexos ou laterais. Os principais são aqueles relacionados ao dar, fazer ou não fazer; os anexos são os que
decorrem da boa-fé objetiva (plano da conduta de lealdade das partes, ou seja, não basta a boa intenção,
é preciso que se tenha boa conduta). São exemplos de deveres anexos: cuidado, respeito, informar, coo-
peração, transparência, confiança etc. Quando há violação de um dever anexo, não há violação da obriga-
ção. Esses deveres anexos devem estar presentes em todas as fases obrigacionais (pré, contratual e pós).
Ex.: se o credor insere nome do devedor em cadastro de inadimplentes e sobrevém o pagamento, ele tem
o dever de fazer a retirada (dever de cooperação).
De acordo com a divisão clássica, os direitos pessoais (obrigação e contrato) geram efeitos inter
partes, em regra. Já os direitos reais (propriedade) geram efeitos erga omnes, em regra.
Como visto, existe uma modalidade de obrigação que é mista ou híbrida, porque tem parte de direi-
to pessoal e parte de direito real: a obrigação propter rem (obrigação própria da coisa). Significa que
acompanha a coisa, onde quer que ela esteja (e com quem quer que esteja). É também chamada de “obri-
gação ambulatória” ou “repeisercutória”. Ex.: dívida de condomínio (art. 1.345 do CC), dívida relativa a
tributos do imóvel (IPTU). A jurisprudência do STJ entende que o proprietário do imóvel tem a obriga-
ção de fazer a sua recuperação ambiental, mesmo não tendo sido o causador do dano (REsp
110.9778/SC; REsp 1090968/SP).
Na visão clássica, a obrigação tem sempre um conteúdo patrimonial, o que também ocorre com o
contrato, que é a principal fonte obrigacional. O Código Civil não conceitua o contrato. De acordo com
essa visão, se não tiver conteúdo obrigacional, não é contrato. Todavia, na visão contemporânea, há um
conteúdo existencial do contrato, relativo à dignidade da pessoa humana (personalização do direito civil
ou direito civil constitucional). Ex.: contrato que envolve valores fundamentais protegidos na CR, como o
contrato de plano de saúde, contrato de aquisição de imóveis etc. O STJ entende que a pessoa que tem
plano de saúde, e é obrigada a ir a juízo para conseguir uma internação, tem direito a indenização por
danos morais presumida. Assim, o descumprimento de um contrato pode gerar dano moral quando en-
volver valor fundamental constitucionalmente protegido (V Jornada de Direito Civil).

234
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.4. Fonte das obrigações

As relações jurídicas nascem de algo. A relação jurídica obrigacional nasce de um fato jurídico. Ou
seja, ela tem uma causa de que se origina. Analisando a questão sob o aspecto científico, a norma é a fon-
te primária da relação jurídica obrigacional.
Todavia, entre a lei e a relação jurídica existe um fato, que concretiza a norma e dá nascimento à re-
lação jurídica obrigacional.
A fonte das obrigações é o fato jurídico que dá origem à relação jurídica obrigacional. A classifi-
cação clássica de Gaio (jurisconsulto romano) reconhecia quatro fontes das obrigações:
i) o contrato (o ajuste ou acordo entre duas partes);
ii) o quase-contrato (atos negociais outros, próximos do contrato, como a promessa de recompensa
de hoje);
iii) o delito (ilícito doloso);
iv) o quase-delito (o ilícito culposo).
Modernamente, essa classificação romana das fontes das obrigações não é mais abraçada. A dou-
trina traz sugestões de classificações modernas, muito embora o Código Civil não preveja uma, expres-
samente.
Interpretando-se o Código Civil, que não traz capítulo ou seção específica sobre o tema, é possível
sintetizar as fontes das obrigações em três categorias:
i) atos negociais:
Atos negociais são as principais fontes das obrigações, como o contrato, a promessa de recompensa
e o título de crédito (muito embora acerca deste haja controvérsia);
ii) atos não-negociais:
Exemplo de ato não negocial é o fato material da vizinhança. Não há nenhum tipo de negócio entre
os vizinhos, mas ambos têm de respeitar determinadas obrigações recíprocas;
iii) atos ilícitos.
O contrato é a principal fonte da relação jurídica obrigacional.

1.5. Estrutura da relação jurídica obrigacional

A relação jurídica obrigacional é composta fundamentalmente por três elementos: ideal, subjetivo e
objetivo.

1.5.1. Elemento ideal (imaterial ou espiritual)


Elemento ideal é o próprio vínculo abstrato que une o credor ao devedor, é na lição de Flávio Tar-
tuce é o vínculo jurídico existente na relação obrigacional, ou seja, é o elo que sujeita o devedor à deter-
minada prestação – positiva ou negativa –, em favor do credor, constituindo o liame legal que une as
partes envolvidas.

235
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em resumo, é o vínculo jurídico que une as partes ao objeto e que gera a responsabilidade civil con-
tratual nos casos de inadimplemento

1.5.2. Elemento subjetivo


O elemento subjetivo é composto pelos sujeitos da relação obrigacional (credor e devedor), que de-
vem ser determinados ou, ao menos, determináveis. São os sujeitos ativo e passivo.
Entretanto, no mundo contemporâneo obrigacional, raras são as situações em que uma parte é só
credora e a outra somente devedora. Prevalecem as hipóteses em que as partes são credoras e devedoras
entre si, presente a proporcionalidade das prestações (sinalagma obrigacional).
Alerta Flávio Tartuce que o sinalagma forma a base objetiva do negócio jurídico e sua quebra gera
um desequilíbrio obrigacional (onerosidade excessiva ou “efeito gangorra”). O problema pode ser no:
a) Sinalagma genético: o negócio jurídico já nasceu desequilibrado. Exemplos: CC, arts. 1561 (esta-
do de perigo) e 1572 (lesão).
b) Sinalagma funcional: o contrato ficou desequilibrado depois. Exemplos: CC, arts. 3173 e 4784
(revisão ou resolução pela teoria da imprevisão).
Desse modo para efeitos didáticos, científicos, metodológicos, pode-se afirmar que uma relação ju-
rídica pode ser bifronte: uma mesma parte pode ser, ao mesmo tempo, credora e devedora da outra. Ex.:
da compra e venda deriva uma relação jurídica obrigacional em que ambos serão credores e devedores (o
comprador é credor da coisa e devedor do preço). Normalmente, faz-se o corte para analisar a relação
sob o enfoque de determinada prestação.
Os sujeitos são determinados quando estão individualizados. Ex.: o contrato de prestação de servi-
ços educacionais celebrado com o Curso LFG gera uma relação jurídica obrigacional entre sujeitos de-
terminados, devidamente individualizados.
Admite-se a indeterminabilidade do sujeito da relação jurídica obrigacional, desde que seja relativa
ou temporária.
Exemplos de obrigação em que o credor é temporariamente indeterminado:
i) título ao portador: o credor daquela cártula, que circulou de modo não nominal, é a pessoa que
sacá-la no banco;
ii) promessa de recompensa: a promessa de recompensa gera a obrigação de pagar a pessoa tempo-
rariamente indeterminada (será, por exemplo, quem achar o cachorro).
Exemplo de obrigação em que há indeterminabilidade passiva: obrigação propter rem de pagar a
taxa de condomínio (será obrigado quem for o dono do apartamento ao tempo do débito).
Esse tipo de obrigação que permite a mudança de titularidade (de sujeito) é chamado de “obrigação
ambulatória”.

1.5.3. Elemento objetivo

236
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Elemento objetivo é o objeto da relação jurídica obrigacional. É a prestação. É o coração da relação


jurídica obrigacional.

Flávio Tartuce ensina que o elemento objetivo pode subdividir-se em:

a) Objeto imediato da obrigação, perceptível de plano, é a prestação, que pode ser positiva ou
negativa. Sendo a obrigação positiva, ela terá como conteúdo o dever de entregar coisa certa ou
incerta (obrigação de dar) ou o dever de cumprir determinada tarefa (obrigação de fazer). Sen-
do a obrigação negativa, o conteúdo é uma abstenção (obrigação de não fazer).
b) Objeto mediato da obrigação pode ser uma coisa ou uma tarefa a ser desempenhada, positiva ou
negativamente. Ou seja, é o bem jurídico tutelado.
Obs.: O elemento mediato da obrigação é o elemento imediato da prestação
É de se observar que esse terceiro elemento será adotado como critério para a classificação básica
das obrigações, que será exposta a seguir. Pouco importa a fonte da relação obrigacional, ela sempre terá
esse objeto: a prestação.
A prestação, objeto direto da relação obrigacional, é a atividade do devedor satisfativa do interesse
do credor. Essa prestação poderá ser de dar, fazer ou não fazer.
O objeto direto da relação jurídica obrigacional decorrente do contrato de compra e venda é uma
prestação de dar. O bem da vida (a coisa, o dinheiro que se dá) é o objeto indireto da obrigação.
À luz da cláusula geral e principiológica da boa-fé objetiva170, é correto afirmar que em uma relação
obrigacional, além da prestação básica (de dar, fazer ou não fazer), concorrem, ainda, prestações ou de-
veres acessórios, colaterais e de proteção, a exemplo dos deveres de informação e assistência, de grande
conteúdo ético e inequívoca exigibilidade jurídica.
Na teoria clássica, a análise da obrigação parava no exame das prestações básicas. Segundo as teo-
rias mais modernas, no entanto, a relação obrigacional compreende prestações conexas, anexas ou cola-
terais, como o dever de informação, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva.
Como se sabe, a prestação, objeto da obrigação, deve obviamente ser lícita, possível e determinada
ou, ao menos, determinável. Mas, uma pergunta se impõe: toda prestação deve ter conteúdo patrimoni-
al?
A teoria do direito das obrigações foi concebida para tratar de prestações com conteúdo patrimoni-
al. De fato, em geral as prestações têm conteúdo patrimonial. No entanto, a doutrina, a exemplo de Pon-
tes de Miranda, excepcionalmente concebe prestação sem conteúdo patrimonial, a exemplo da obrigação
imposta pelo testador, no testamento, de ser enterrado de determinada maneira. No direito de família, é
fácil encontrar exemplos, como o dever de fidelidade.

170 Acerca do tema, ver a obra de Antonio Menezes Cordeiro, Ed. Almedina.

237
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2. Classificação das obrigações


Como ressaltado anteriormente, a classificação básica das obrigações toma por referência a presta-
ção. Nessa linha de raciocínio, ela subdivide as obrigações em positivas (dar e fazer) e negativas (não
fazer).

2.1. Quanto à prestação

2.1.1. Obrigação de dar coisa certa (arts. 233 e seguintes do Código Civil)
A obrigação de dar coisa certa é aquela que tem por objeto um bem determinado, especificado, in-
dividualizado, a exemplo do que se dá na venda de um apartamento ou na locação de uma casa.
Assim, é também denominada obrigação específica uma vez que a coisa se encontra individualiza-
da, o objeto é determinado. Não havendo necessidade de uma escolha.
A obrigação de dar pode ter mais de um sentido. O vendedor se obriga a transferir a propriedade da
coisa (obrigação de dar o carro, por exemplo). O locador também tem a obrigação de dar, mas ele trans-
fere ao locatário apenas a posse, não a propriedade.

Por princípio, especialmente na obrigação de dar coisa certa, o credor não está obrigado a re-
ceber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa (“nemo aliud pro alio”).

Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que
mais valiosa.

A obrigação de dar coisa certa pressupõe uma coisa determinada, individualizada.

Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados,
salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

A regra aplica-se aos frutos e às benfeitorias. As pertenças não seguem o principal, em regra (CC,
art. 94171).
Ex.: aquele que se obrigou contratualmente a vender determinada vaca reprodutora deverá entre-
gar também o bezerro ao comprador, caso ela esteja prenha, pois o acessório segue o principal, em res-
peito ao princípio da gravitação jurídica.

Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da
tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se
a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

171 CC, art. 94: “Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo

se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso”.

238
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Utilizando-se ainda o exemplo acima, se a vaca morre sem culpa do devedor (aquele que se obriga-
ra a entregar a vaca), a obrigação resolve-se. Eventual preço pago deve ser devolvido, sob pena de enri-
quecimento ilícito. Se a culpa for do devedor (ex.: deu culposamente ração estragada), ele devolverá o
preço recebido e será compelido a pagar perdas e danos.
Veja que a regra geral, em direito das obrigações, é que as perdas e danos pressupõem a culpa do
devedor. Se a vaca se deteriora antes da entrega, sem culpa do devedor (ex.: fica doente, com sequelas),
incide o disposto no art. 235:

Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obriga-
ção, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu.

Já se a vaca se deteriorar com culpa do devedor, poderá o credor exigir o preço que ele já pagou
ou aceitá-la no estado em que se encontrar, com direito a perdas e danos, em qualquer um dos casos (art.
236 do CC)172:

Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no es-
tado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e
danos.

Obs.: apenas quando há culpa surge o direito a perdas e danos.


Em relação à obrigação de restituir, se houver perda da coisa sem culpa do devedor, aplica-se o art.
238 do CC. Nesse caso, sofrerá o credor a perda, ressalvados os seus direitos até o dia da perda. Não po-
derá pleitear nada.

Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes
da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até
o dia da perda.

Ex.: vigente um contrato de comodato, o veículo é roubado à mão armada. O comodatário nada de-
ve pagar ao comodante (res perit domino); vigente uma locação, o imóvel é destruído por incêndio, o
locatário deve pagar ao locador apenas eventuais alugueres em aberto.
Já se a coisa se perdeu com culpa do devedor, aplica-se o art. 239 do CC. O devedor responderá pe-
lo equivalente à coisa, mais perdas e danos. Ex.: comodato de veículo no qual o comodatário embriagado
causa acidente e destrói o carro.

Art. 239. Se a coisa se perder por culpa do devedor, responderá este pelo equivalente, mais per-
das e danos.

172 Recomenda-se a leitura dos demais artigos (237 a 242 do CC).

239
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ainda na temática da obrigação de restituir, se houver deterioração (e não mais perda) da coisa
sem culpa do devedor, o credor somente poderá exigir a coisa no estado em que se encontra, sem direito
a perdas e danos. Ex.: carro emprestado é atingido por uma chuva de granizo, que danifica sua pintura.
Situação diversa é aquela na qual há culpa do devedor, pois a segunda parte do art. 240 manda
aplicar o disposto no art. 239, ou seja, o credor poderá exigir o valor equivalente à coisa, mais perdas e
danos.

Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual
se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art.
239.

O art. 239, todavia, é a regra aplicável à situação de perda da coisa, ao passo que o art. 240 traz
disposição em relação à deterioração da coisa. O correto seria exigir a coisa no estado em que se encontra
ou resolver a obrigação com o recebimento do equivalente à coisa, nos dois casos com direito a perdas e
danos. Assim, deveria ser aplicado o art. 236 do CC e não o art. 239. A esse respeito, ver o Enunciado 15
da 1ª Jornada de Direito Civil, que dispõe sobre a correta aplicação do art. 236. Tartuce pondera que o
legislador provavelmente cometeu erro material ao inverter o art. 239 pelo art. 236.

Enunciado 15 – Art. 240: As disposições do art. 236 do novo Código Civil também são aplicáveis
à hipótese do art. 240, in fine.

Questão processual: cabe tutela específica para cumprimento da obrigação de dar coisa certa (ex.:
busca e apreensão da coisa e fixação de astreinte)? Sim, é possível. O mesmo não ocorre na obrigação de
dar coisa incerta, pois não há inadimplemento nessa modalidade.
Em resumo, Flávio Tartuce apresenta oito regras de inadimplemento das obrigações de dar coisa
certa, incluindo as obrigações de restituir.
1ª regra (CC, art. 234): Obrigação de dar. Perda da coisa. Sem culpa do devedor. Resolve-se a
obrigação sem perdas e danos. “Resolve-se”: volta ao estado primitivo.
2ª regra (CC, art. 234): Obrigação de dar. Perda da coisa. Com culpa do devedor. Responderá o
devedor pelo equivalente a coisa com perdas e danos. Há a resolução com perdas e danos.
3ª regra (CC, art. 23514): Obrigação de dar. Deterioração da coisa. Sem culpa do devedor. O cre-
dor pode resolver a obrigação ou aceitar a coisa no estado em se encontrar abatido de seu preço o valor
da deterioração.
4ª regra (CC, art. 23615): Obrigação de dar. Deterioração da coisa. Com culpa do devedor. Pode-
rá o credor resolver a obrigação (equivalente) ou aceitar a coisa no estado em que se encontrar, nos dois
casos com perdas e danos.
5ª regra (CC, art. 23816): Obrigação de restituir. Perda da coisa. Sem culpa do devedor. Sofrerá o
credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda.
Observação n. 2: “res perit domino”: a coisa perece para o dono. Exemplos:

240
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Vigente um comodato, o veículo é roubado à mão armada. Nesse caso, o comodatário (devedor)
nada deve pagar ao comodante (credor) - “res perit domino”.
Vigente uma locação, o imóvel é destruído por um incêndio. O locatário só deve pagar ao locador
eventuais aluguéis em aberto.
6ª regra (CC, art. 23917): Obrigação de restituir. Perda da coisa. Com culpa do devedor. Respon-
derá este pelo equivalente à coisa mais perdas e danos. Há a resolução com perdas e danos.
7ª regra (CC, art. 24018): Obrigação de restituir. Deterioração da coisa. Sem culpa do devedor. O
credor somente pode exigi-la no estado em que se encontrar, sem indenização.
Observação n. 3: Se a coisa perece para o dono totalmente também perece parcialmente.
8ª regra (CC, art. 240): Obrigação de restituir. Deterioração da coisa. Com culpa do devedor.
Observação n. 4: A segunda parte do artigo 240 manda aplicar o artigo 239 (resolução com perdas
e danos). De acordo com o Enunciado n. 15 da I Jornada de Direito Civil173, aplica-se o art. 236 do Código
Civil.

Obrigação Fato com Sem culpa Com culpa


bem
Dar Perda Resolve-se a obrigação para ambas
Pode o credor: Exigir o valor
as partes
equivalente + Perdas e danos

Pode o credor:
Pode o credor: Exigir o
equivalente ou Aceitar a coisa com
abatimento do preço + Perdas e
Resolver a danos (nos dois casos)
obrigação

Dar Deterioração ou

Aceitar a coisa

com abatimento

do preço
Resolve-se a
Pode o credor: Exigir o valor
equivalente + Perdas e danos

Restituir Perda obrigação para

173 “As disposições do art. 236 do novo Código Civil também são aplicáveis à hipótese do art. 240, in fine”.

241
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ambas as partes

Pode o credor:

Exigir o equivalente

O credor recebe a ou

coisa no estado em que se Aceitar a coisa com


Restituir Deterioração
abatimento do preço

encontra +

Perdas e danos (nos dois

casos)

2.1.2. Obrigação de dar coisa incerta (arts. 243 e seguintes do Código Civil)
Na obrigação de dar coisa incerta, a prestação é determinável. Nos termos do art. 243 do CC, a
obrigação de dar coisa incerta é um tipo de obrigação genérica em que a coisa é indicada apenas pelo
gênero e por sua quantidade, faltando a individualização ou a indicação da sua qualidade:

Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Ex.: entrega de 5000 sacas de café. Veja que há indeterminabilidade. São especificados gênero (ca-
fé) e quantidade (5000), mas não o tipo de café. O mesmo pode ocorrer, por exemplo, com o gado (nelo-
re, holandês etc.)
A indeterminabilidade da coisa é temporária e dura até o momento da sua escolha, nos termos dos
arts. 244 e 245. O ato de escolha da coisa é chamado de “concentração do débito” ou “concentração da
prestação devida”:

Art. 244. Nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade, a escolha pertence ao devedor,
se o contrário não resultar do título da obrigação; mas não poderá dar a coisa pior, nem será
obrigado a prestar a melhor.

Art. 245. Cientificado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.

Para manter o equilíbrio da obrigação, não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a prestar a
melhor: a escolha deve ser no gênero intermediário (princípio da equivalência das prestações). O gênero,
assim, deve ter pelo menos três coisas. Caso contrário, como uma coisa é descartada, a obrigação é espe-
cífica e não genérica.
Quem realiza o ato de concentração do débito? Regra geral, no direito das obrigações, o ato de es-
colha tocará ao devedor (ainda que haja exceções), que é a parte mais fraca da relação.

242
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Veja que, no ato da entrega, o devedor não pode, por exemplo, reunir o rebanho e escolher as 100
piores vacas para entregar. O ato de escolha é feito pela média: o devedor não está obrigado a dar o me-
lhor, nem pode dar o pior.
A despeito de o art. 243 estabelecer expressamente que coisa incerta é aquela definida apenas pelo
“gênero” e quantidade, em doutrina (Álvaro Villaça Azevedo), sustenta-se que a palavra “gênero” deveria
ser substituída pela expressão “espécie”, pois aquela é muito aberta, abstrata.
Antes da escolha (concentração do débito) não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da
coisa, ainda que por caso fortuito ou força maior. Isso porque a doutrina clássica, ao explicar o art. 246,
sustenta que, antes de efetuada a escolha, ainda que a coisa pereça ou se deteriore, a obrigação subsiste,
porquanto o gênero não pereceria jamais (genus non perit). Também por isso, não cabe tutela específica
(CPC, art. 498, parágrafo único).

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda
que por força maior ou caso fortuito.

Entretanto, se este gênero for limitado na natureza, obviamente a alegação de caso fortuito ou força
maior poderá ter procedência, entretanto, o perecimento de todas as espécies que componham o gêncero
acarretará a extinção da obrigação.
O que é duty to mitigate (the loss) (“dever de mitigar o prejuízo”)? Emilio Betti, em sua obra Teoria
Geral das Obrigações, ensina que, no curso do século XX, a relação jurídica obrigacional começou a vi-
venciar uma chamada “crise de cooperação” entre o credor e o devedor. Com efeito, sobretudo nas rela-
ções jurídicas que vigoraram no século XX no Brasil, não havia uma preocupação ética como há hoje.
Vivia-se no direito das obrigações um momento de impessoalidade.
Princípios como o da boa-fé e da cooperação surgiram justamente para mitigar essa crise de coope-
ração.
O duty to mitigate, instituto de origem anglo-saxônica pioneiramente tratado no Brasil por Vera
Fradera, que já encontra aceitação não só na doutrina (Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil174)
como na própria jurisprudência do STJ (REsp 758.518/PR), aponta no sentido de que, à luz do superior
princípio da boa-fé objetiva, o credor (titular do direito) tem o dever de mitigar o próprio prejuízo, visan-
do a não piorar a situação do devedor.
Se o juiz verificar que o credor deixou o dano se agravar, somente terá direito ao ressarcimento do
dano anterior, e não do dano agravado. O mesmo ocorre no processo civil, no caso em que o credor, ten-
do podido atuar para minimizar a aplicação da multa diária, retarda a informação com o objetivo de tor-
ná-la estratosférica. Nesse caso, o juiz pode deixar de aplicar ou reduzir equitativamente a multa.

174 Enunciado 169 - Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do
próprio prejuízo.

243
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1.3. Obrigações de fazer (art. 247 a 249 do Código Civil)


Nas obrigações de fazer, interessa ao credor a própria atividade (comissiva, positiva) do devedor, e
não uma coisa.
A atividade do devedor tanto pode configurar uma prestação personalíssima (infungível) como não
personalíssima (fungível). Ex.: Algúem contrata com um grande pintor a elaboração de um quadro, a
prestação é de fazer infungível. Não pode o pintor colocar o aprendiz para pintar o quadro em seu lugar.
Trata-se de prestação personalíssima. Diversa é a hipótese da contratação de uma empresa para a limpe-
za do sistema de ar condicionado: determinado funcionário que fez a limpeza anterior pode não ser aque-
le designado para a nova manutenção. Neste caso, a prestação é fungível.

Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a
ele só imposta, ou só por ele exeqüível.

Nos termos do art. 248 do CC, se a prestação do fato se tornar impossível sem culpa do devedor, re-
solver-se-á a obrigação. Por outro lado, se a prestação do fato se tornar impossível por culpa dele, res-
ponderá por perdas e danos:

Art. 248. Se a prestação do fato se tornar impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obri-
gação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

Veja, o descumprimento de uma obrigação de fazer nem sempre será resolvido através de perdas e
danos (tutela ressarcitória). Trata-se de um detalhe que a lei não deixa claro: o direito processual civil, à
luz do princípio da efetividade, também admite, em sendo juridicamente possível, a tutela específica nas
obrigações de fazer e de não fazer, visando a satisfazer o interesse do credor. Isso porque nem sempre ao
credor interessam as perdas e danos.
Portanto, nada impede que o credor possa pleitear uma tutela específica para o caso, sob pena, por
exemplo, de multa diária. Bom exemplo de aplicação do princípio da efetividade é a possibilidade jurídi-
ca de o promitente comprador de imóvel ingressar com a execução específica da obrigação de fazer, com
o propósito de compelir o promitente vendedor a outorgar-lhe a escritura definitiva.
Havendo inadimplemento com culpa do devedor, o credor poderá exigir: i) o cumprimento forçado
da obrigação, por meio de tutela específica, com a fixação de multa (astreintes); ii) o cumprimento da
obrigação por terceiro, à custa do devedor originário (Art. 817 e 817 do CPC/2015175); e iii) a conversão
em perdas e danos.

175CPC, art. 816: “Se o executado não satisfizer a obrigação no prazo designado, é lícito ao exequente, nos
próprios autos do processo, requerer a satisfação da obrigação à custa do executado ou perdas e danos, hipótese em
que se converterá em indenização” CPC, art. 817: “Se a obrigação puder ser satisfeita por terceiro, é lícito ao juiz
autorizar, a requerimento do exequente, que aquele a satisfaça à custa do executado”.

244
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As opções apontadas são judiciais, ou seja, dependem de ação. Existe, também, uma opção extraju-
dicial (art. 249, parágrafo único, do CC) que é a autotutela civil, também chamada de “desjudicialização”
ou “fuga do judiciário”.

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à
custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.

Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judici-


al, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

Em caso de urgência, independente de autorização, o credor executa ou manda executar o serviço,


sendo depois ressarcido. Exemplo: o credor contrata terceiro empreiteiro e depois o valor é cobrado do
empreiteiro originário.
Já a obrigação de fazer infungível, por sua natureza ou previsão no instrumento, não pode ser
cumprida por terceiro. É insubstituível. Havendo inadimplemento com culpa do devedor, o credor pode-
rá exigir: i) cumprimento forçado da obrigação, por meio de tutela específica, como a fixação de multa;
ou ii) a conversão em perdas e danos.
Não há possibilidade de autotutela civil, que somente é possível na obrigação de fazer fungível. Se a
obrigação de fazer se tornar impossível, sem culpa do devedor, estará extinta e resolvida, sem perdas e
danos. Isso vale tanto para a obrigação de fazer fungível quanto para a infungível (art. 248 do CC):

Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obri-
gação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

O contrato de prestação de serviços acaba com a morte de qualquer das partes (art. 607 do CC):

Art. 607. O contrato de prestação de serviço acaba com a morte de qualquer das partes. Termi-
na, ainda, pelo escoamento do prazo, pela conclusão da obra, pela rescisão do contrato mediante
aviso prévio, por inadimplemento de qualquer das partes ou pela impossibilidade da continua-
ção do contrato, motivada por força maior.

O contrato de empreitada, todavia, em regra não se extingue com a morte do empreiteiro, salvo se
houver uma obrigação de fazer infungível (qualidade pessoal do empreiteiro).

2.1.4. Obrigação de não fazer (arts. 250 e 251 do Código Civil)


A obrigação de não fazer ou negativa impõe ao devedor um dever de abstenção: o de não praticar o
ato que poderia livremente fazer caso não se houvesse obrigado

245
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tem por objeto uma prestação negativa, um comportamento omissivo do devedor, uma abstenção
juridicamente relevante. Ex.: obrigação de não concorrência ou de não construir acima de determinada
altura176.
Se o devedor for obrigado a realizar o ato, extingue-se a obrigação de não fazer, sem perdas e danos
para ninguém (art. 250 do CC):

Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne
impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Ex.: as partes contratam a abstenção da construção de um muro, mas a Prefeitura notifica o sujeito
para que ele construa o muro, por razões de segurança pública.
Por óbvio, a despeito do que dispõe o art. 250, se o devedor descumpre culposamente a obrigação
de não fazer, poderá ser civilmente responsabilizado, sem prejuízo de eventual tutela específica.
Lembra Guilherme Nogueira da Gama que a obrigação de não fazer pode ser temporária, a exemplo
de uma obrigação de não concorrência por cinco anos.
Em razão do inadimplemento com culpa do devedor, o credor poderá exigir: i) que o ato não seja
praticado (tutela específica, com fixação de multa diária, nos termos do art. 497 do CPC); ou ii) conver-
são em perdas e danos.
O CC prevê uma autotutela civil (extrajudicial) para a obrigação de não fazer infungível, conforme
art. 251 do CC.

Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele
que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.

Parágrafo único. Em caso de urgência, poderá o credor desfazer ou mandar desfazer, indepen-
dentemente de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido.

Se a obrigação de não fazer tornar-se impossível sem culpa do devedor, estará extinta e resolvida a
obrigação (art. 250). Exemplo: sujeito é contratado com cláusula de confidencialidade e morre sem poder
contar a outra pessoa para que ela cumpra.

2.2. Quanto à complexidade da prestação

A presente classificação leva em conta a complexidade da prestação ou o objeto obrigacional, ou se-


ja, se ele é único ou não, assim temos:

2.2.1. Obrigação simples

176 Vale observar que a obrigação de não construir (não fazer) pode ser inscrita (ou registrada) no Cartório
de Imóveis como uma servidão negativa.

246
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Aquela que se apresenta com somente uma prestação, não havendo complexidade objetiva. Como
exemplo, cite-se a hipótese de um contrato de compra e venda de um bem determinado.

2.2.2. Obrigação composta objetiva


Nessa modalidade, há uma pluralidade de objetos ou prestações, comporta uma subdivisão entre:

2.2.2.1. Obrigação composta objetiva cumulativa ou conjuntiva

Na obrigação composta objetiva cumulativa ou conjuntiva (ou tão somente obrigação cumulativa) o
sujeito passivo deve cumprir todas as prestações previstas, sob pena de inadimplemento total ou parcial,
p.ex. na locação imobiliária (Lei n. 8.245/91, arts. 22 e 23, que trazem, respectivamente, vários deveres
obrigacionais, prestações de natureza diversa, para o locador e para o locatário).
Desse modo, a inexecução de somente uma das prestações já caracteriza o descumprimento obriga-
cional. Geralmente, essa forma de obrigação é identificada pela conjunção “e”, de natureza aditiva.

2.2.2.2. Obrigação disjuntiva ou alternativa (Art. 252 a 256 CC)


As obrigações alternativas são aquelas de objeto múltiplo ou composto, em que as prestações são
conectadas pela partícula “ou”. Ex.: sujeito se obriga a entregar ao credor uma casa ou um carro. As pres-
tações, portanto, se excluem, porque o devedor se exonera pagando uma coisa ou outra.
O CC disciplina a matéria a partir do art. 252:

Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.

§ 1º Não pode o devedor obrigar o credor a receber parte em uma prestação e parte em outra.
(...)

O art. 252 expressa a regra vista anteriormente de que, em geral, a escolha caberá ao devedor. As-
sim, se nada se estipular em contrário, o devedor escolherá qual a prestação entregará.
Observe que o § 1º impede que o devedor force o credor a receber parte de uma prestação e parte
de outra. Assim, no exemplo, o devedor não pode entregar ao credor apenas o telhado da casa e as rodas
do carro. Deverá entregar ou a casa ou o carro.

Art. 252 (...) § 2º Quando a obrigação for de prestações periódicas, a faculdade de opção poderá
ser exercida em cada período.

Se a prestação tiver de ser adimplida, por exemplo, a cada 30 dias, a cada período se fará a opção.
Ex.: sujeito se obrigou a, durante 5 anos, a cada 30 dias, entregar ao credor 5 kg de milho ou de soja. To-
do mês ele poderá fazer a escolha entre uma coisa ou outra.

Art. 252 (...) § 3º No caso de pluralidade de optantes, não havendo acordo unânime entre eles,
decidirá o juiz, findo o prazo por este assinado para a deliberação.

Imagine que haja três devedores que têm de escolher entre uma prestação ou outra. Se não houver
unanimidade na escolha pela prestação, quem escolhe é o juiz. Isso é pegadinha de prova!
247
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 252 (...) § 4º Se o título deferir a opção a terceiro, e este não quiser, ou não puder exercê-la,
caberá ao juiz a escolha se não houver acordo entre as partes.

O título a que faz menção o § 4º, em geral, é o contrato.


Em relação ao inadimplemento das obrigações alternativas, o CC estabelece duas regras fundamen-
tais:
a) Sem culpa do devedor: resolução sem perdas e danos (CC, arts. 253177 e 256178).
i. Se uma das prestações tornar-se impossível, restará a obrigação quanto à outra.
ii. Se as duas prestações tornarem-se impossíveis, a obrigação será reputada extinta.
b) Com culpa do devedor: resolução com perdas e danos (CC, arts. 254179 e 255180). A quem cabe a
escolha influencia na resolução:
i. Se a escolha não é do credor: o valor da última mais perdas e danos.
ii. Se a escolha é do credor: qualquer das prestações mais perdas e danos.

2.2.2.2.1. Obrigação alternativa X obrigação facultativa

Não se pode confundir a obrigação alternativa com a obrigação facultativa.


Inicialmente, Carlos Roberto Gonçalves ensina que a obrigação facultativa é modalidade de obriga-
ção simples, em que é devida uma única prestação, ficando, porém, facultado ao devedor, e só a ele, exo-
nerar-se mediante o cumprimento de prestação diversa e predeterminada. É obrigação com facul-
dade de substituição.
Como visto, a obrigação alternativa nasce com objeto principal múltiplo. Então, o devedor se
exonera cumprindo uma obrigação ou outra. O próprio título da obrigação prevê que existem duas obri-
gações principais, que se excluem.
A obrigação facultativa, por sua vez, é aquela que, embora tenha objeto único, faculta ao devedor
cumprir uma prestação subsidiária. Mas, lembra Orlando Gomes: o credor não pode exigir o cumprimen-
to da prestação facultativa, e, caso a prestação principal se impossibilite sem culpa do devedor, a obriga-
ção é extinta.
Na obrigação alternativa, há objeto principal múltiplo (ex.: sujeito se obriga a entregar uma casa ou
um carro). Na obrigação facultativa, há um único objeto principal (ex.: sujeito se obriga a entregar um

CC, art. 253: “Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível,
177

subsistirá o débito quanto à outra”.


178 CC, art. 256: “Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obri-

gação”.
179 CC, art. 254: “Se, por culpa do devedor, não se puder cumprir nenhuma das prestações, não competindo

ao credor a escolha, ficará aquele obrigado a pagar o valor da que por último se impossibilitou, mais as perdas e
danos que o caso determinar”.
180 4 CC, art. 255: “Quando a escolha couber ao credor e uma das prestações tornar-se impossível por culpa

do devedor, o credor terá direito de exigir a prestação subsistente ou o valor da outra, com perdas e danos; se, por
culpa do devedor, ambas as prestações se tornarem inexeqüíveis, poderá o credor reclamar o valor de qualquer das
duas, além da indenização por perdas e danos”.

248
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

carro), mas, no dia do pagamento, o devedor pode entregar, a seu critério, outra prestação no lugar da
principal (ex.: pode entregar R$ 10.000,00). Atenção: o credor não pode exigir que o devedor lhe entre-
gue essa prestação facultativa.
Note que, nas obrigações alternativas, se uma das prestações principais se impossibilita, a outra
continua exigível. Ao revés, na obrigação facultativa, se a prestação principal se impossibilita sem culpa
do devedor, extingue-se a obrigação. Ex.: o carro devido foi roubado. Nesse caso, o credor não pode exigir
os R$ 10.000,00, que são a prestação subsidiária (o devedor paga facultativamente se quiser).

2.3. Quanto ao número de pessoas envolvidas: Estudo das obriga-


ções solidárias (Art. 264 a 285)

Assim como ocorre em relação à prestação, as obrigações podem ser complexas no que concerne às
partes envolvidas (obrigações complexas subjetivas). Desse modo, em havendo mais de um credor, have-
rá uma obrigação complexa subjetiva ativa. Se estiverem presentes dois ou mais devedores, nessa situa-
ção é de obrigação complexa subjetiva passiva. Em ambas as hipóteses, ganha relevo o estudo das obriga-
ções solidárias.

2.3.1. Conceito
Existe solidariedade quando, na mesma obrigação, concorre uma pluralidade de devedores ou de
credores, cada um obrigado ou com direito a toda a dívida, ou seja, são tratados como se fossem um só,
nos termos do art. 264 do CC:

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor (solidarie-
dade ativa), ou mais de um devedor (solidariedade passiva), cada um com direito, ou obrigado,
à dívida toda.

Existem dois tipos básicos de solidariedade: i) solidariedade passiva (se dá entre devedores); e ii)
solidariedade ativa (se dá entre credores). Vale observar que, na mesma obrigação, é possível existir soli-
dariedade ativa e passiva. Mas, para facilitar o estudo, nos exemplos seguintes ora aparecerá apenas a
solidariedade ativa, ora apenas a passiva.
i) exemplo de solidariedade passiva:
Na solidariedade passiva, existe uma pluralidade de devedores, cada um obrigado à dívida toda.
Imagine um contrato entre o credor (C) e três devedores (D1, D2 e D3), em que estes últimos se obrigam
a uma dívida de R$ 300,00. Se foi prevista a solidariedade passiva, significa que C tanto pode cobrar a
fração correspondente a cada devedor (ou seja, pode cobrar R$ 100,00 de D1, de D2 ou de D3), como
pode cobrar R$ 200,00 de dois dos devedores, R$ 200,00 de um dos devedores ou até mesmo a totali-
dade da dívida de apenas um dos devedores.
Ou seja, na solidariedade passiva, qualquer dos devedores pode ser compelido a pagar toda a dívi-
da. Logicamente que, se C cobrar R$ 300,00 de D1 e este pagar toda a dívida, este devedor poderá ajuizar

249
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

contra os outros dois devedores uma ação de regresso. Com isso, ele vai obter dos outros devedores a
fração de cada um, porque, entre eles, cada um deve R$ 100,00.
Em suma: na solidariedade passiva, é aberta ao credor a possibilidade de escolher entre cobrar por
partes de qualquer dos devedores ou cobrar a totalidade da dívida de qualquer um deles.
Roberto de Ruggiero, autor italiano, observa que, na solidariedade passiva, é como se houvesse
uma unidade na obrigação, ou seja, é como se o credor firmasse relação obrigacional com apenas um
devedor (justamente porque ele pode optar por cobrar toda a dívida de apenas um dos devedores).
ii) exemplo de solidariedade ativa
Na solidariedade ativa, o raciocínio é o mesmo, com a diferença de que, aqui, haverá uma plurali-
dade de credores (algo como se houvesse uma unidade na obrigação). Ex.: é celebrado contrato entre o
devedor (D) e três credores (C1, C2, C3), em que aquele se obriga ao pagamento de R$ 300,00, com soli-
dariedade ativa entre os credores. Isso significa que cada um dos credores poderá cobrar R$ 100,00 (sua
parte no crédito), como qualquer um deles ou alguns deles poderão cobrar R$ 200,00, como qualquer
um deles poderá cobrar a integralidade da dívida.
Cumpre notar que, se o credor C1 cobrar a totalidade da dívida, ele deverá repassar a cota dos de-
mais credores.

2.3.2. Solidariedade não se presume


Nos termos do art. 265 do CC, a solidariedade não se presume nunca: resulta da lei ou da
vontade das partes. Este é um verdadeiro princípio do direito obrigacional.

Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

Se, no concurso público, a prova apenas trouxer o exemplo de um contrato em que o credor C tem
uma relação obrigacional com os devedores D1, D2 e D3, sem mencionar a solidariedade passiva entre
eles, este credor apenas poderá cobrar de cada devedor a sua cota respectiva (no exemplo anterior, o cre-
dor C apenas poderia cobrar R$ 100,00 de cada um).
Portanto, se a questão não mencionar que, no contrato, existe previsão de solidariedade passiva ou
mesmo se não trouxer qualquer hipótese em que a solidariedade decorra da lei, deve-se entender que não
há solidariedade no caso. Não basta que a questão apenas dê a entender que existe solidariedade, é preci-
so que ela seja expressa a esse respeito.

2.3.3. Obrigação in solidum X obrigação solidária


O que se entende por obrigação in solidum? Na linha de pensamento de autores como Silvio Veno-
sa e Guillermo Borda (autor argentino), esse tipo de obrigação não se confunde com a obrigação solidá-
ria. Trata-se da situação jurídica em que devedores estão vinculados ao mesmo fato sem que exista soli-
dariedade entre eles.

250
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: sujeito celebrou contrato de seguro residencial contra incêndio. Um cidadão enlouquecido en-
tra naquela casa e derrama gasolina na sala, ateando fogo ao apartamento. Nesse caso, o proprietário do
imóvel poderá demandar contra essa pessoa que tocou fogo em sua casa, como também poderá deman-
dar a companhia de seguro. É até mais aconselhável que demande a seguradora (neste caso, ela poderá
ajuizar ação de regresso contra o criminoso).
Veja que, nesse caso, um único fato acabou por obrigar dois devedores: o terceiro que causou o ilí-
cito e a seguradora, que assumiu a proteção do patrimônio. Ambos são devedores a títulos diversos, mas
vinculados pelo mesmo fato (incêndio), sem que haja solidariedade entre eles.

2.3.4. Solidariedade passiva


A solidariedade passiva (entre devedores) é, na vida prática, a forma mais importante e comum de
solidariedade. Esse tema é disciplinado no CC/2002 a partir do art. 275:

Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou to-
talmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores conti-
nuam obrigados solidariamente pelo resto.

Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor
contra um ou alguns dos devedores.

Ex.: credor “C” tem crédito de R$ 300,00, contra três devedores em solidariedade passiva. “C” po-
de demandar qualquer dos devedores isoladamente, parte dos devedores ou até mesmo todos os devedo-
res, por parte ou por toda a dívida.
O que caracteriza a solidariedade passiva é a possibilidade de o credor demandar apenas um dos
devedores por todo o crédito. E, como visto, o devedor que pagar todo o crédito terá ação regressiva con-
tra os demais devedores.
E o que acontece se o credor apenas demandar um dos devedores por sua parte na dívida (R$
100,00)? Nesse caso, os outros continuam solidariamente responsáveis pelo restante.
Se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam solidários pelo resto. O
parágrafo único diz que não haverá renúncia da solidariedade no caso de propositura de ação pelo credor
contra um ou alguns dos devedores.
Caso: “A” é credor e “B”, “C” e “D” são devedores. A dívida é de R$ 30 mil. Se “B” paga R$ 10 mil a
“A”, os demais, inclusive o “B”, continuam obrigados por R$ 20 mil.
O Enunciado 348 da IV Jornada de Direito Civil, de autoria de Gustavo Tepedino, estabelece que o
pagamento parcial não implica, por si só, renuncia à solidariedade, a qual deve derivar dos termos ex-
pressos da quitação ou de forma inequívoca das circunstâncias do caso concreto.

Enunciado 348 – Arts. 275/282: O pagamento parcial não implica, por si só, renúncia à solida-
riedade, a qual deve derivar dos termos expressos da quitação ou, inequivocamente, das circuns-
tâncias do recebimento da prestação pelo credor.

251
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.3.4.1. Responsabilidade civil dos devedores

Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste pa-
ra todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.

Ex.: três devedores solidários se obrigaram a entregar ao credor um cavalo do qual são proprietá-
rios. Imagine que o credor já se antecipou e pagou o valor do cavalo aos três devedores. Antes da entrega,
o devedor D1 culposamente deu ração estragada para o animal e a prestação se impossibilitou porque o
animal morreu. De acordo com o CC, todos os devedores continuam obrigados a devolver o equivalente
(restituir o preço recebido). Isso porque, do contrário, haveria enriquecimento sem causa dos devedores.
No entanto, pelas perdas e danos só responderá o culpado (D1).
Cumpre observar que, se a ração tivesse sido dada pelos três devedores obrigados, todos responde-
riam por perdas e danos solidariamente (porque a solidariedade passiva estava prevista no contrato).
Em resumo, Flávio Tartuce apresenta regras quanto à solidariedade passiva:
1.ª Regra – Na obrigação solidária passiva, o credor tem direito a exigir e receber de um ou de al-
guns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum. Se o pagamento tiver sido parcial, todos os
demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto (art. 275, caput, do CC). Não
importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedo-
res (art. 275, parágrafo único, do CC).
2.ª Regra – Como ocorre com a solidariedade ativa181, o art. 276 do CC traz regra específica envol-
vendo a morte de um dos devedores solidários. Assim, se um dos devedores solidários falecer deixando
herdeiros cada um destes será obrigado a pagar a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário
(até os limites da herança). A regra não se aplica se a obrigação for indivisível. Outra exceção é feita pelo
comando, eis que todos os herdeiros reunidos são considerados um único devedor em relação aos de-
mais devedores.
3.ª Regra – Tanto o pagamento parcial realizado por um dos devedores como o perdão da dívida
(remissão) por ele obtida não têm o efeito de atingir os demais devedores na integralidade da dívida (art.
277 do CC). No máximo, caso ocorra o pagamento direto ou indireto, os demais devedores serão benefi-
ciados de forma reflexa, havendo desconto em relação à quota paga ou perdoada.
4ª regra - O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida aproveitam
aos outros devedores até a quantia paga ou perdoada (CC, art. 277).
5ª Regra – Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste
para todos o encargo de pagar o equivalente à prestação; mas pelas perdas e danos só responde o
culpado.

181 Obs.: Tanto na solidariedade passiva quanto na ativa, existem duas relações: a) Relação externa: credor e

devedores (una). b) Relação interna: entre devedores (fracionável).

252
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6ª regra - O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as co-
muns (exemplos: pagamento e prescrição). Não poderá, entretanto, opor as exceções pessoais de outros
devedores (CC, art. 281). Ante à relevância, o tema será tratado em minúcias no item 2.3.4.2.
7.ª Regra – O Código Civil de 2002 continua admitindo a renúncia à solidariedade, de forma par-
cial (a favor de um devedor) ou total (a favor de todos os codevedores), no seu art. 282, caput (“O credor
pode renunciar à solidariedade em favor de um, de alguns ou de todos os devedores”). A expressão re-
núncia à solidariedade pode ser utilizada como sinônima de exoneração da solidariedade. Enuncia o pa-
rágrafo único do dispositivo que “Se o credor exonerar da solidariedade um ou mais devedores, subsistirá
a dos demais”.
Obs.: não confundir a renúncia à solidariedade com a remissão (perdão). Nesta, o beneficiado fica
totalmente liberado (CC, art. 388 e Enunciado n. 350 – IV Jornada de Direito Civil)
8.ª Regra – O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos code-
vedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se
iguais, no débito, as partes de todos os codevedores (art. 283 do CC). Entretanto, se a dívida solidária
interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este por toda ela para com aquele que a pagar
(art. 285 do CC).

2.3.4.2. Oposição de defesas

Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as
comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro codevedor.

Inicialmente, cumpre asseverar que, no contexto do art. 281, a palavra exceção é usada no sentido
de defesa.
Os devedores D1, D2 e D3 são solidariamente responsáveis pelo pagamento de uma dívida de R$
300,00 ao credor C. Em dado momento, C resolve ajuizar demanda contra o devedor D1. O devedor soli-
dário, uma vez demandado, poderá opor ao credor defesas pessoais dele ou defesas comuns a todos os
devedores, mas não poderá opor as defesas pessoais de outro devedor solidário. Ex.: D1 pode dizer que
não vai pagar porque quando assinou o contrato foi vítima de coação por parte de C. Trata-se de defesa
pessoal deste credor D1. Da mesma forma, esse devedor poderá alegar uma defesa que sirva a qualquer
dos devedores, como a prescrição da pretensão de cobrança da dívida. O que D1 não pode é usar uma
defesa pessoal de D2 ou D3. Assim, não pode se defender alegando que D3 foi vítima de dolo.
O art. 281, em síntese, impede que um dos devedores solidários utilize defesa pesso-
al e exclusiva de outro devedor.
A solidariedade passiva é algo muito comum na prática. Em geral, quando um contrato estabelece
diversos coobrigados a uma mesma dívida, é fixada a solidariedade passiva entre eles. Exemplo comum é

253
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o de contrato de locação em que o fiador renuncia ao benefício de ordem (ou excussão) 182, vinculando-se
solidariamente ao inquilino pelo pagamento do aluguel. O fiador, na locação, quase não tem defesa, por-
que, em geral, renuncia a esse benefício previsto pela lei.
Como exceção, o fiador pode renunciar ao beneficio de ordem ou assumir a condição de devedor
solidário por força do contrato. São duas coisas diferentes (em uma, ele apenas renuncia ao benefício e,
em outra, ele assume a condição de devedor) e essa solidariedade não é legal, mas convencional. Isso
quer dizer que o fiador, em regra, é devedor subsidiário. Ou seja, primeiro deve ser demandado o deve-
dor principal e depois, de forma subsidiária, o fiador.
No contrato de fiança, a cláusula de renúncia ao benefício de ordem é nula quando inserida em
contrato de adesão. É o que estabelece o Enunciado 364 da IV Jornada de Direito Civil (2006) e o art.
424 do CC.

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada
do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

Enunciado 364 – Arts. 424 e 828: No contrato de fiança é nula a cláusula de renúncia antecipa-
da ao benefício de ordem quando inserida em contrato de adesão.

Lembrando que o contrato de adesão é aquele com conteúdo imposto por uma das partes.

2.3.4.3. Questões especiais sobre solidariedade passiva

2.3.4.3.1. Solidariedade passiva na obrigação alimentícia

O STJ decidiu, julgando o REsp 775.565/SP, que existe solidariedade passiva na obrigação alimen-
tícia em favor de credor idoso.
No campo do parentesco, a obrigação de pagar alimentos é conjunta e complementar. Existe, em
regra, uma ordem para pagamento de alimentos. Pela ordem do CC, aquele que necessita de alimentos
demandará, em primeiro lugar, seus pais. Em seguida, demandará seus avós e, não havendo ascendentes
de quem possa pedir alimentos, os filhos ou outros descendentes. Por fim, o alimentando demandará
seus irmãos. Há, portanto, uma ordem de preferência para pedir alimentos.
Se o credor de alimentos, todavia, for uma pessoa idosa, ele pode demandar qualquer dos parentes
legitimados passivamente a pagar alimentos, porque, segundo o Estatuto do Idoso, eles são devedores
solidários. Assim, a avó que precisa de alimentos poderá demandar diretamente algum de seus netos, por
exemplo.

182 O fiador tem a prerrogativa de, quando for demandado, indicar bens do devedor a serem executados. Es-
se benefício de ordem, característica típica da fiança, pode ser afastado. Silvio Rodrigues revela que a fiança, no
Brasil, tem perdido algumas de suas características básicas, porque, na prática, o fiador tem se equiparado ao deve-
dor principal, vinculando-se solidariamente à obrigação.

254
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Se o neto pagar integralmente a pensão, ele poderia ingressar com ação regressiva contra o seu pai.
Isso porque é razoável que o pai, vivo, com condições de pagar, contribua com essa prestação

2.3.4.3.2. Solidariedade passiva entre o proprietário e o condutor do veículo

O STJ tem entendimento no sentido de que existe solidariedade passiva entre o proprietário do ve-
ículo e o terceiro que o conduzia, em caso de acidente automobilístico (REsp 577.902/DF).
Portanto, deve-se tomar muito cuidado ao emprestar o carro para alguém. Embora o CC não traga
uma regra específica sobre a responsabilidade civil no comodato, o STJ entendeu haver responsabilidade
civil nessa hipótese de acidente de veículo conduzido pelo terceiro não proprietário (a quem se empres-
tou o veículo). Em responsabilidade civil, será exposta uma visão crítica acerca desse entendimento.

2.3.4.3.3. Remissão da dívida solidária X renúncia à solidariedade

Não se deve confundir a remissão da dívida solidária com a renúncia à solidariedade. Tratam do
tema os artigos 277 e 282, do CC, bem como os Enunciados 349 e 350 da IV Jornada de Direito Civil.

Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não apro-
veitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.

Voltando ao exemplo dos três devedores em solidariedade passiva, que se obrigam a pagar R$
300,00 ao credor. Se o credor perdoar D1, remitindo a dívida em relação a ele, significa que esse credor
está perdoando a parte que lhe toca (R$ 100,00). Assim, os demais devedores permanecem vinculados
solidariamente ao pagamento do restante da dívida (R$ 200,00).

Art. 282. O credor pode renunciar à solidariedade em favor de um, de alguns ou de todos os de-
vedores.

Parágrafo único. Se o credor exonerar da solidariedade um ou mais devedores, subsistirá a dos


demais.

Uma coisa é o credor perdoar o devedor D1. Se ele o fizer, remitindo a dívida, o devedor D1 desapa-
rece da relação obrigacional. Assim, abatido o valor da cota devida por D1, a dívida continua existindo em
relação aos demais.
Situação diversa é aquela em que o credor renuncia à solidariedade em relação a um dos devedores.
Nesse caso, C não perdoa D1, ele apenas renuncia à solidariedade em relação a D1. Isso significa que C
somente poderá cobrar de D1 R$ 100,00 e não outro montante ou a totalidade da dívida. Veja que, aqui,
como D1 não teve sua dívida perdoada, ele continua vinculado à relação obrigacional.
Se a prova disser que o credor perdoou um dos devedores, isso significa que esse devedor saiu da
relação obrigacional, remanescendo a solidariedade passiva em relação ao restante da dívida para os ou-
tros devedores. Mas, se o credor apenas renunciou à solidariedade, o devedor continua obrigado, mas
apenas à sua parcela na dívida.

Enunciado nº 350 – Art. 284: A renúncia à solidariedade diferencia-se da remissão, em que o

255
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

devedor fica inteiramente liberado do vínculo obrigacional, inclusive no que tange ao rateio da
quota do eventual codevedor insolvente, nos termos do art. 284.

Para Pablo, se o credor renunciar à solidariedade em relação a D1, ele poderia, em tese, cobrar de
D2 ou D3 a totalidade da dívida. No entanto, existe tendência na doutrina, conforme se percebe do
Enunciado 349, no sentido de que, ainda que só haja renúncia da solidariedade em face de um dos deve-
dores, o credor só poderá cobrar dos demais o valor remanescente.

Enunciado nº 349 - Art. 282: Com a renúncia à solidariedade quanto a apenas um dos devedo-
res solidários, o credor só poderá cobrar do beneficiado a sua quota na dívida, permanecendo a
solidariedade quanto aos demais devedores, abatida do débito a parte correspondente aos bene-
ficiados pela renúncia.

Ou seja, a doutrina tende a afirmar que, quando houver essa renúncia, C apenas poderá cobrar dos
demais devedores o restante da dívida. Esse entendimento não parece muito lógico, porque D3, se pagas-
se a totalidade da dívida (R$ 300,00), teria direito de regresso contra os demais devedores (D1 e D2).
Ora, C não está perdoando D1, que não está saindo da relação obrigacional.
Essa é uma posição que ainda não está sumulada nem prevista em lei. Por isso, em prova aberta, é
importante trazer essa visão crítica ao Enunciado.
O art. 283 estabelece que, na solidariedade passiva, o devedor que satisfez a dívida por inteiro tem
direito de exigir de cada um dos codevedores as suas quotas correspondentes, havendo uma presunção
relativa de divisão igualitária. Porém, o art. 285 diz que se a dívida solidária interessar exclusivamente a
um dos devedores, responderá este por toda a dívida para com aquele que a pagou.

Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos codeve-
dores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-
se iguais, no débito, as partes de todos os codevedores.

Art. 285. Se a dívida solidária interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este
por toda ela para com aquele que pagar.

Ex.: locação, havendo dois locatários e uma dívida de R$ 20 mil. O locatário 1 pagou os R$ 20 mil
para o locador. Depois de pagar, poderá cobrar do locatário 2 R$ 10 mil (aplicação do art. 283).
Ex.: havendo locador, locatário e fiador (devedores solidários) e uma dívida de R$ 20 mil, se o fia-
dor pagar os R$ 20 mil, poderá cobrar do locatário os R$ 20 mil.

2.3.5. Solidariedade ativa


A solidariedade ativa, menos frequente na prática, é aquela que se dá entre credores. Há uma plu-
ralidade de credores. Essa matéria é disciplinada a partir do art. 267 do CC.

256
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: devedor D se obriga a pagar a C1, C2 e C3 a quantia de R$ 300,00. Se esse contrato estabelecer
a solidariedade entre os credores, C1 poderá cobrar tanto seu montante (R$ 100,00), quanto a totalidade
ou outra parcela da dívida. Mas, se o credor cobrar mais que sua parte no crédito, ele deverá repassar o
valor aos demais credores.

Art. 267. Cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumprimento da
prestação por inteiro.

Veja o perigo disso: é necessário haver muita confiança entre os credores para que se estabeleça a
solidariedade ativa. Isso porque qualquer um dos credores poderá cobrar do devedor a totalidade do cré-
dito.

Art. 268. Enquanto alguns dos credores solidários não demandarem o devedor comum, a qual-
quer daqueles poderá este pagar.

Ex.: sujeito deve R$ 10.000,00 a Pablo, Freddie e Luiz Flávio, que são credores em solidariedade
ativa. Enquanto os credores não demandarem o devedor, esse sujeito pode pagar toda a dívida a Pablo.
Nesse caso, extingue-se a obrigação pelo pagamento integral da dívida.
Aliás, o credor solidário pode, sozinho, perdoar toda a dívida (claro que isso não impede que ele
tenha de responder perante os demais credores). Por isso, é importante conhecer a pessoa com quem se
celebra o contrato. Isso pode trazer muitos perigos e até por isso não é tão comum haver contratos pre-
vendo a solidariedade entre os credores.
Há vários exemplos de normas que preveem regras de solidariedade passiva. Todavia, há exemplo
de lei que estabeleça solidariedade ativa? Quase não existe, e por isso o examinador costuma cobrar esse
assunto.
Assim, embora não muito comum, a solidariedade ativa (entre credores) pode derivar da própria
lei, a exemplo do que se lê no art. 2º, da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) e no art. 12, da Lei 209/48:

Art. 2º Havendo mais de um locador ou mais de um locatário, entende-se que são solidários se o
contrário não se estipulou.

Parágrafo único. Os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares presumem-se locatários


ou sublocatários.

Art. 12. O débito ajustado constituir-se-á à base de garantias reais ou fideijussórias existentes e
se pagará anualmente pena de vencimento, em prestações iguais aos credores em solidariedade
ativa rateadas em proporção ao crédito de cada um.

Parágrafo único - Para os casos de execução judicial é usada a cláusula penal de 10% sôbre o
principal e acessórios da dívida.

257
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Relativamente à solidariedade ativa por força de contrato, há um tipo de contrato no Brasil que
costuma prever a solidariedade ativa. O contrato de abertura de conta corrente conjunta frequentemente
prevê solidariedade ativa entre os correntistas, como inclusive já entendeu o STJ no REsp 708.612/RO.
Ex.: Luis e Denise mantêm conta corrente conjunta e têm em depósito R$ 10.000,00. O banco, de-
positário, é o devedor (que assume a obrigação de gerenciar aquele valor). Qualquer dos correntistas,
credores do valor em depósito, pode movimentar todo o valor do crédito (porque há solidariedade ativa).
Assim, um dos credores pode sacar todo o crédito (e, claro terá de se ver com o outro posteriormente).
Foi realizada aplicação atípica da matéria no REsp 1.229.329/SP. Nesse julgado, o STJ entendeu
que o valor depositado na conta corrente conjunta poderia ser penhorado para assegurar o pagamento de
dívida tributária, ainda que apenas um dos correntistas fosse devedor do tributo. No entanto, a solidarie-
dade entre os correntistas na conta é ativa, quanto ao crédito. Assim, se um dos correntistas é devedor da
fazenda nacional, o outro não poderia ser afetado pela execução fiscal. O entendimento do STJ acaba
reconhecendo uma solidariedade passiva onde existe, na verdade, uma solidariedade ativa.
Pablo acredita que essa interpretação atípica feita pelo STJ teria sido feita para alcançar um bem
maior.
O STJ, no Informativo 539, decidiu que a penhora de valores depositados em conta bancária con-
junta solidária somente poderá atingir a parte do numerário depositado que pertença ao correntista que
seja sujeito passivo do processo executivo, presumindo-se, ante a inexistência de prova em contrário, que
os valores constantes da conta pertencem em partes iguais aos correntistas. STJ. 4ª Turma. REsp
1.184.584-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/4/2014.
A estrutura da solidariedade ativa é a seguinte: a relação externa (credores/devedor) é não fracio-
nável; só será fracionável a relação interna (entre credores).
Se um dos credores solidários falecer deixando herdeiros, cada um deles terá direito a exigir e rece-
ber a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário (art. 270).

Art. 270. Se um dos credores solidários falecer deixando herdeiros, cada um destes só terá direi-
to a exigir e receber a quota do crédito que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a
obrigação for indivisível.

O legislador se equivoca quanto à ressalva da obrigação indivisível, pois não se relaciona com a
obrigação solidária.
Ex.: A, B e C são credores solidários. D é o devedor e a dívida é de R$ 30.000. Caso C venha a fale-
cer, os herdeiros E e F poderão cobrar apenas R$ 5.000 (sua quota parte). A e B poderão cobrar R$
30.000, pois quanto a eles ainda há solidariedade (isso antes dos herdeiros de C receberem sua quota
parte).
O art. 271 do CC dispõe que, convertendo-se a prestação em perdas e danos, permanece, para todos
os efeitos, a solidariedade. Esse efeito diferencia a solidariedade da indivisibilidade. Na solidariedade,

258
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

quando há conversão em perdas e danos, ela permanece. Todavia, quando a obrigação indivisível é con-
vertida em perdas e danos, a indivisibilidade é extinta:

Art. 271. Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste, para todos os efeitos, a solida-
riedade.

Em resumo, Flávio Tartuce apresenta as regras de tratamento para a solidariedade ativa:


1.ª Regra – Na solidariedade ativa, cada um dos credores solidários tem direito a exigir do deve-
dor o cumprimento da prestação por inteiro (art. 267 do CC). Em complemento, enquanto alguns dos
credores solidários não demandarem o devedor comum, a qualquer daqueles poderá este pagar (art. 268
do CC), porém, caso um dos credores demande o devedor, por meio de ação de cobrança ou similar, o
pagamento somente poderá ser efetuado para aquele que demandou (prevenção judicial quanto à dívi-
da).
2.ª Regra – O pagamento feito a um dos credores solidários extingue a dívida até o montante do
que foi pago (art. 269 do CC).
3.ª Regra183 – Se um dos credores solidários falecer deixando herdeiros, em relação ao de cujus a
solidariedade desaparece e cada dos herdeiros só terá direito a exigir e receber a quota do crédito que
corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível (art. 270 do CC).
4.ª Regra – Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste (permanece), para todos os
efeitos, a solidariedade (art. 271 do CC).
5.ª Regra – O credor que tiver remitido (perdoado) a dívida ou recebido o pagamento responderá
aos outros pela parte que lhes caiba (art. 272 do CC). Percebe-se que a obrigação solidária ativa não é
fracionável em relação ao devedor (relação externa), mas fracionável em relação aos sujeitos ativos da
relação obrigacional (relação interna). Ressalve-se que foram utilizadas as expressões não fracionável e
fracionável apenas para fins didáticos, uma vez que a obrigação solidária de modo algum se confunde
com a obrigação indivisível.
6.ª Regra – Como novidade na atual codificação material, preceitua o art. 273 que “a um dos cre-
dores solidários não pode o devedor opor as exceções pessoais oponíveis aos outros”. As exceções pesso-
ais são defesas de mérito existentes somente contra determinados sujeitos, como aquelas relacionadas
com os vícios da vontade (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão) e as incapacidades em geral, como
é o caso da falta de legitimação. Na obrigação solidária ativa, o devedor não poderá opor essas defesas
contra os demais credores diante da sua natureza personalíssima.
7.ª Regra – O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais. O julga-
mento favorável aproveita-lhes, sem prejuízo da exceção pessoal que o devedor tenha em relação a qual-
quer um deles (CC, art. 274, alterado pelo Art. 1.068 do Novo CPC184)

183 A regra consagra a refração do crédito.

259
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.3.6. Solidariedade mista ou recíproca


Solidariedade mista ou recíproca é aquela que existe, ao mesmo tempo, entre credores e devedores.
Pode ser: i) legal, que é aquela que existe entre locadores e locatários (art. 2º, da Lei 8.245/91); e ii) con-
vencional, que existe por força de contrato.

2.3.7. Solidariedade condicional e a termo

Art. 266. A obrigação solidária pode ser pura e simples para um dos cocredores ou codevedores,
e condicional, ou a prazo, ou pagável em lugar diferente, para o outro.

O art. 266 do CC traz a possibilidade da chamada “obrigação solidária condicional e a termo”. A


obrigação solidária pode ser pura, sem elemento acidental em relação a uma das partes e condicional ou
a termo em relação às outras partes. Exemplo: A é credor e B, C e D são devedores. Em relação a B, a
obrigação é pura; já em relação a C, haverá uma condição (ele será devedor somente se ocorrer a condi-
ção); e quanto a D, há uma obrigação com um termo.
O art. 266 fala apenas em condição e em termo, não fala em encargo (também elemento acidental
do negócio jurídico). É possível que na obrigação solidária exista encargo em relação a um determinado
credor? Sim, porque o rol do art. 266 é meramente exemplificativo. Nesse sentido, Enunciado 347 da IV
Jornada de Direito Civil.

Enunciado 347 – Art. 266: A solidariedade admite outras disposições de conteúdo particular
além do rol previsto no art. 266 do Código Civil.

Qual a diferença entre obrigação solidária e obrigação fracionária? Na obrigação solidária, os cre-
dores podem cobrar a dívida toda, no caso de solidariedade ativa, e os devedores podem ser cobrados
pela dívida toda, no caso de solidariedade passiva. Veja que na obrigação fracionária cada uma das partes
responde ou tem direito em relação a uma cota prevista geralmente no instrumento do contrato.
Exemplo: na obrigação fracionária, havendo uma dívida de R$ 30.000,00, cada um dos devedores
poderá ser cobrado por R$ 10.000,00. Já na obrigação solidária, cada um poderá ser cobrado por R$
30.000,00.

2.3.7.1. Obrigação natural


Obrigação natural é um tema que já foi tão recorrente em concursos públicos que a tendência é que
ele não seja cobrado185.

184 CC Art. 274 “O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais, mas o julgamento

favorável aproveita-lhes, sem prejuízo de exceção pessoal que o devedor tenha direito de invocar em relação a qual-
quer deles”.
185 Quem desejar se aprofundar no assunto deve consultar a obra “A obrigação natural: elementos para uma
possível teoria”, de Sérgio Covello.

260
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Alguns autores também denominam a obrigação natural de obrigação imperfeita (é preferível, no


entanto, a utilização da expressão “obrigação natural”).
Obrigação natural é aquela relação jurídica obrigacional desprovida de exigibilidade jurídica. Cos-
tumeiramente, fala-se que a obrigação natural é uma “dívida de honra”.
A estrutura da obrigação natural, em termos ontológicos, é muito parecida com a de uma obrigação
civil comum. Na obrigação natural, há o credor de um lado e o devedor do outro, e ambos são unidos por
um vínculo abstrato obrigacional.
A diferença está no fato de que a obrigação natural é desprovida de coercibilidade (exigibilidade ju-
rídica). Deste modo, o credor não poderá juridicamente (judicialmente) exigir o cumprimento da obriga-
ção natural (ele até poderá ajuizar a ação, mas não obterá êxito).
Sobre o tema, importante destacar os art. 814 e 882 do CC.
A dívida de jogo é exemplo de obrigação natural. Veja que não se trata das dívidas relativas aos jo-
gos oficiais (como a loteria), que são exigíveis:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a
quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou
interdito. (...)

Outro exemplo de obrigação desprovida de exigibilidade é a dívida prescrita:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação
judicialmente inexigível.

É equivocado dizer que o credor “perde” o direito, quando a dívida prescreve. Mesmo com a pres-
crição da dívida, remanescerá o direito do credor e a obrigação do devedor. Ocorre que, sendo uma obri-
gação natural, ela deixa de ser juridicamente exigível.
Embora desprovida de coercibilidade jurídica, a obrigação natural tem um efeito fundamental: a
soluti retentio, ou seja, a retenção do pagamento. Isso significa que, na obrigação natural, o devedor não
é obrigado a pagar, mas, se o fizer, o credor pode reter o pagamento. Assim, o sujeito que paga uma dívi-
da prescrita, mesmo que não estivesse compelido a fazê-lo, não irá reaver o valor.

2.4. Quanto à divisibilidade (ou indivisibilidade) do objeto obrigaci-


onal: Obrigações divisíveis e indivisíveis (Arts. 257 a 263, CC)

Segundo Flávio Tartuce, a classificação da obrigação no que toca à divisibilidade (ou indivisibilida-
de) leva em conta o seu conteúdo, ou seja, a unicidade da prestação e somente interessam se houver mais
de um credor e/ou mais de um devedor (obrigações compostas subjetivas: ponto em comum com as
obrigações solidárias).

2.4.1. Conceito

261
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As obrigações divisíveis são aquelas que admitem o cumprimento fracionado ou parcial da presta-
ção. Já as obrigações indivisíveis só podem ser cumpridas por inteiro (arts. 257 e 258):

Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigação divisível, esta pre-
sume-se dividida em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.

Art. 258. A obrigação é indivisível quando a prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não
suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econômica, ou dada a razão de-
terminante do negócio jurídico.

2.4.2. Formas de indivisibilidade


Em doutrina, costuma-se dizer que a indivisibilidade pode ser natural, legal ou convencional.

2.4.2.1. Natural
Ex.: obrigação de entregar um cavalo. Essa é uma prestação naturalmente indivisível.

2.4.2.2. Legal

A indivisibilidade legal se dá quando a própria lei, em geral por razão de ordem econômica, consi-
dera o bem indivisível. Silvio Venosa dá o exemplo de uma lei municipal de zoneamento urbano que es-
tabeleça que determinados imóveis não possam ser fracionados. Se esses imóveis forem objetos de obri-
gações futuras, sua indivisibilidade decorrerá da lei.
Ex.: o módulo rural é a pequena propriedade rural indivisível, por força de lei.

2.4.2.3. Convencional

As partes podem convencionar, no contrato, a indivisibilidade da prestação. Ex.: três sujeitos se


obrigam a pagar R$ 300.000,00 ao credor. Se o contrato nada disser, cada um deles deverá pagar R$
100.000,00. Mas o contrato pode dizer que a prestação apenas poderá ser cumprida por inteiro, reco-
nhecendo a indivisibilidade da obrigação. Note que, na sua essência, a obrigação de dar dinheiro é divisí-
vel, mas, no exemplo, esta será uma prestação indivisível porque assim convencionado.
Nesse sentisdo, a divisibilidade conforme previsão do Art. 257 constitui uma presunção relativa
(iuris tantum), que admite regra ou prova em contrário, consagração da regra cuncursu partes fiunt,
segundo a qual os sujeitos obrigacionais não terão direitos ou serão obrigados além da parte material da
prestação assumida

2.4.3. Indivisibilidade X solidariedade


Não confundir a obrigação indivisível com a solidariedade da obrigação! A solidariedade se refere
aos sujeitos, ao passo que a indivisibilidade se refere à coisa. Existem diferenças.
Na obrigação solidária passiva, se a coisa se impossibilitar por culpa de um dos devedores, todos
devolvem o preço, mas só o culpado responde por perdas e danos. Todavia, se todos forem culpados, to-
dos respondem pelas perdas e danos em solidariedade.

262
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No caso da obrigação indivisível, se a prestação se impossibilitar, cada um responde na proporção


de sua culpa. Somente a solidariedade sobrevive à impossibilidade da prestação. No exemplo, se o ca-
chorro morrer antes de ser entregue porque os três criadores lhe deram ração podre, não se pode dizer
que há uma solidariedade passiva, porque a obrigação era apenas indivisível.
Se o contrato estipular, além da indivisibilidade, também a solidariedade, aí sim responderão os
devedores pelas perdas e danos em solidariedade.
Se a questão apenas mencionar a indivisibilidade, não se pode dizer que a obrigação é solidária,
porque são coisas diversas (a solidariedade deveria vir prevista no contrato). A diferença ficará mais clara
com a análise do tópico subsequente.

Obrigações indivisíveis Obrigações solidárias

Decorrem da natureza da prestação. Decorrem da lei ou da vontade das partes.

Origem objetiva. Origem subjetiva.

Se convertidas em perdas e danos, a Se convertidas em perdas e danos, a


indivisibilidade é extinta. solidariedadepermanece.

2.4.4. Regras quanto às obrigações indivisíveis


1ª Regra - havendo pluralidade de devedores, cada um será obrigado pela dívida toda. O devedor
que paga a dívida sub-roga-se nos direitos do credor em relação aos demais devedores (CC, art. 259).
Trata-se de sub-rogação legal, automática ou pleno iure, enquadrada no art. 346, inc. III, do Código
Civil atual – terceiro interessado que poderia ser responsável pela dívida, no todo ou em parte.

Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestação não for divisível, cada um será obri-
gado pela dívida toda.

Parágrafo único. O devedor, que paga a dívida, sub-roga-se no direito do credor em relação aos
outros coobrigados.

Ex.: os devedores D1, D2 e D3 são proprietários de um cachorro de raça e o credor C pagou pelo
Poodle R$ 100.000,00. Essa é uma obrigação naturalmente indivisível. Desse modo, qualquer dos deve-
dores, alguns deles ou todos poderão entregar o animal todo. O devedor que se desincumbir da obrigação
terá obviamente direito em relação aos demais.
2ª Regra - Havendo pluralidade de credores, casa um destes poderá exigir a dívida inteira. Porém,
o devedor ou devedores se desobrigarão pagando (CC, art. 260): I – A todos os credores conjuntamente.
II – A um dos credores, dando este caução de ratificação dos outros credores (garantia).

263
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: imagine que fulana é devedora da entrega de um cavalo a três credores C1, C2 e C3. A obriga-
ção, neste caso, é indivisível. A qual dos credores a devedora deve entregar o cavalo? Ela deve reunir os
três credores e entregar a eles ao mesmo tempo, exigindo o recibo dos três credores?

Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poderá cada um destes exigir a dívida inteira; mas o
devedor ou devedores se desobrigarão, pagando:

I - a todos conjuntamente;

II - a um, dando este caução de ratificação dos outros credores.

Nos termos do art. 260, havendo pluralidade de credores da prestação indivisível, o devedor se de-
sonera pagando a prestação a todos conjuntamente. Poderá também pagar a prestação a apenas um dos
credores, mas, neste caso, o credor que recebeu deverá apresentar ao devedor um documento chamado
“caução de ratificação”. Esse documento demonstra que os outros credores concordam que ele receba em
nome de todos e que o credor que recebe irá repassar as quotas dos demais.
Portanto, se em prova for formulada uma questão prática em que o devedor deve uma prestação
indivisível a três credores e o examinador nada disser sobre a solidariedade ativa, a obrigação será extin-
ta com o pagamento conjunto aos três credores ou a apenas um, desde que ele entregue a caução de rati-
ficação.
Se a prova disser que a obrigação indivisível era também solidária entre os credores, a caução de
ratificação não será necessária. Isso porque, havendo solidariedade ativa, qualquer dos credores
pode receber a dívida. Essa é mais uma prova de que a solidariedade não se confunde com a indivisibili-
dade.
3ª Regra - Se um dos credores remitir (perdoar) a dívida, a obrigação não ficará extinta para com
os outros. Porém, estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente. O mesmo critério se
observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão, a teor do art. 262 do CC:

Art. 262. Se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não ficará extinta para com os outros;
mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.

Parágrafo único. O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou


confusão.

Em tais casos, os credores restantes somente poderão exigir as suas quotas correspondentes.
4ª Regra - Perde a qualidade de indivisível, a obrigação que se resolver em perdas e danos (dife-
rente da solidariedade). Passa a ser divisível. CC, art. 263: a) Havendo culpa de todos os devedores, res-
ponderão em partes iguais. b) Se houver culpa de só um dos devedores, ficarão exonerados os outros,
respondendo só o culpado por perdas e danos.
Segundo Flávio Tartuce no art. 263, caput, do CC, reside a principal diferença, entre a obrigação
indivisível e a obrigação solidária.

264
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Conforme o comando em análise, a obrigação indivisível perde seu caráter se convertida em obri-
gação de pagar perdas e danos, que é uma obrigação de dar divisível. Já a obrigação solidária, tanto ativa
quanto passiva, conforme demonstrado oportunamente, não perde sua natureza se convertida em perdas
e danos.
Inicialmente, caso haja culpa lato sensu por parte de todos os devedores no caso de descumprimen-
to da obrigação indivisível, todos responderão em partes ou frações iguais, pela aplicação direta do prin-
cípio da proporcionalidade, devendo o magistrado apreciar a questão sob o critério da equidade (art. 263,
§ 1.º, do CC).
Porém, se houver culpa por parte de um dos devedores, somente o culpado responderá por perdas
e danos, bem como pelo valor da obrigação (art. 263, § 2.º, do CC).
Nesse sentido, em que pese entendimento em minoritário em contrário186, o Enunciado n. 540 do
CJF/STJ proclama que:

Enunciado n. 140 do CJF/STJ: “havendo perecimento do objeto da prestação indivisível por culpa
de apenas um dos devedores, todos respondem, de maneira divisível, pelo equivalente e só o cul-
pado, pelas perdas e danos”.

2.5. Quanto ao tempo do pagamento187

A obrigação, sob o prisma do tempo do pagamento, pode ser assim visualizada:


a) Obrigação instantânea com cumprimento imediato – é aquela cumprida imediatamente
após a sua constituição. Se a regra estiver relacionada com o pagamento, será ele à vista, salvo previsão
em contrário no instrumento obrigacional (art. 331 do CC).
b) Obrigação de execução diferida – é aquela cujo cumprimento deverá ocorrer de uma vez
só, no futuro. Exemplo típico é a situação em que se pactua o pagamento com cheque pós-datado ou pré-
datado. Repise-se que para a jurisprudência nacional o depósito antecipado do cheque pós-datado pode
caracterizar dano moral (Súmula 370 do STJ).
c) Obrigação de execução continuada ou trato sucessivo – muito comum na atualidad pela
ausência de crédito imediato, sendo aquela cujo cumprimento se dá por meio de subvenções periódicas.
Como exemplos, podem ser citados os financiamentos em geral e o contrato de locação imobiliária.

2.6. Obrigação de meio e de resultado

A obrigação de meio é aquela em que o devedor se obriga a empreender uma atividade, sem garan-
tir o resultado esperado. Ex.: o advogado realiza uma obrigação de meio, pois se compromete a, segundo

186 Flávio Tartuce, por todos, entende que a exoneração mencionada no parágrafo em análise é total, eis que
atinge tanto a obrigação em si quanto a indenização suplementar, de modo a restringir a responsabilidade pelo
inadimplemento obrigacional a quem culposamente lhe deu causa.
187 Retirado de Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E

ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

265
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a melhor técnica, empreender a atividade (ele não garante o resultado final, de êxito). O médico também,
em geral, realiza uma obrigação de meio.
Na obrigação de resultado, o devedor se obriga também a produzir o resultado esperado pelo cre-
dor. Ex.: contrata-se engenheiro para realizar uma obra. Nesse caso, o engenheiro se obriga a produzir o
resultado a que se obrigou.
Obs.: Em geral, a obrigação do médico é de meio, ressalvada a decorrente da cirurgia plástica em-
belezadora/estética, em que o STJ já reconheceu ser a obrigação de resultado (AgRg no Ag 1.132.
743/RS).
E a cirurgia de miopia a laser? A revista consultor jurídico (de 25 de junho de 2007) cita precedente
do TJMG (que foi o tribunal que mais decidiu sobre o assunto) no sentido de que, mesmo na cirurgia de
miopia a laser (em geral, pelo método LASIK), a obrigação do médico continua sendo de meio. Até por-
que o médico avisa ao paciente de que, mesmo com a cirurgia, ele poderá continuar sendo míope (o mé-
dico não pode garantir o resultado final). O que não pode haver, segundo a jurisprudência, é uma piora
na acuidade visual, pois isso ensejará responsabilidade médica (isso não significa que se trate de obriga-
ção de resultado).

3. Transmissão das obrigações


Clóvis do Couto e Silva escreveu a obra intitulada “A obrigação como um processo”, na qual de-
monstra que uma relação obrigacional não é um ente estático, mas é dinâmica como um processo. Da
mesma forma que os atos processuais se sucedem até chegarem à sentença, na relação obrigacional se
verifica uma sucessão de atos que culminam na satisfação do credor.
Neste tópico, serão estudados os mecanismos jurídicos que permitem a transmissibilidade das
obrigações. Antunes Varella traz o exemplo de um instituto que bem demonstra esse caráter dinâmico
das obrigações, em que há a possibilidade de transmissão do crédito (e, por conseguinte, da obrigação): o
endosso. Quando o cidadão endossa um cheque, a obrigação está circulando (sendo transferida de uma
pessoa a outra). Sucede que o endosso é instituto de direito cambiário/empresarial.
Aqui, serão vistos institutos próprios do direito civil que tratam dessa circulação das obrigações.
São eles: i) cessão de crédito; ii) cessão de débito ou assunção de dívida; iii) cessão de posição contratual
(coloquialmente chamada de “cessão de contrato”).

3.1. Cessão de crédito

A cessão de crédito já estava prevista no CC de 1916. Será enfatizada a cessão negocial de crédito,
ou seja, a cessão derivada do negócio jurídico. Há também hipóteses de cessão de crédito derivada da lei
ou até de decisão judicial, mas a mais importante é aquela que deriva do negócio jurídico.

3.1.1. Conceito

266
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A cessão de crédito, forma de transmissão da obrigação, configura-se quando o credor originário


(cedente) transmite total ou parcialmente o seu crédito a um terceiro (cessionário), mantendo-se a mes-
ma relação jurídica com o devedor (cedido).
Imagine que o credor originário tenha crédito de R$ 1.000,00 com determinado devedor. Ele
transmite esse crédito ao cessionário (terceiro). Nesse caso, a relação obrigacional com o devedor se
mantém a mesma (é o mesmo contrato), mas há uma alteração no polo ativo.

3.1.2. Cessão de crédito X novação subjetiva ativa


Não se deve confundir a cessão de crédito com a novação de crédito subjetiva ativa. Na novação
subjetiva ativa, quando se opera a mudança de credor, considera-se que foi criada uma obrigação nova.
Na cessão de crédito, ao revés, mantém-se a mesma relação anterior (a única diferença é que o credor
transmitiu o crédito a outrem).

3.1.3. Cessão de crédito onerosa e pagamento com sub-rogação convencional


Qual a diferença entre cessão de crédito e pagamento com sub-rogação convencional? Imagine que
o credor tem um crédito de R$ 1.000,00 com o devedor e tem pressa em receber. No entanto, o devedor
não tem dinheiro para pagá-lo imediatamente (a dívida ainda não venceu). O novo credor oferece ao cre-
dor originário R$ 900,00, sob a condição de que lhe transmita esse crédito de R$ 1.000,00. Se o novo
credor pagar pelo crédito, haverá uma cessão de crédito onerosa (porque o credor originário cedeu o cré-
dito ao terceiro) que se confunde com o pagamento com sub-rogação convencional.
Ou seja, cessão de crédito onerosa e pagamento com sub-rogação convencional são duas formas
de dizer a mesma coisa.
Não se pode chegar à conclusão absurda de que o pagamento com sub-rogação se confunde com a
cessão de crédito, por vários motivos. O mais óbvio deles é que a cessão de crédito pode ser gratuita (nes-
se caso, não há se falar em pagamento com sub-rogação).

3.1.4. Situações em que não poderá haver cessão de crédito


A cessão de crédito é disciplinada a partir do art. 286 do CC. A regra geral é que todo credor pode
ceder o seu crédito. Mas essa não é uma regra absoluta, porque o credor não poderá ceder o crédito a
depender da natureza da obrigação, da lei ou da convenção com o devedor:

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a
lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao ces-
sionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

3.1.4.1. Em razão da natureza da obrigação


Em determinadas situações, dada a natureza do próprio direito, ele não poderá ser cedido, a exem-
plo de um direito personalíssimo (ex.: direito à vida) ou do direito aos alimentos.

267
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.1.4.2. Em razão do que dispõe a lei


Também a lei pode proibir a cessão de um crédito. Ex.: o art. 1.749, III, do CC proíbe que o tutor se
torne cessionário de um crédito contra o tutelado. É a própria lei a cessão de crédito nessa hipótese.

Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade: (...)

III - constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor.

3.1.4.3. Em razão de convenção com o devedor


Finalmente, também pode haver estipulação do credor originário com o devedor proibindo a cessão
do crédito (), que só terá eficácia em face de terceiro de boa-fé se constar do próprio.
Pode acontecer de o credor originário estipular com o devedor no contrato que o crédito não pode
ser cedido (pacto de non cedendo: o contrato que estabelece a relação obrigacional contém cláusula que
proíbe a cessão do crédito). Tal cláusula, no entanto, só terá eficácia se expressamente constar do ins-
trumento da obrigação (que, em geral, é o contrato). Não basta mero acordo verbal entre as partes. Isso
se faz para que o terceiro interessado tenha ciência de que está proibida a cessão de crédito naquele con-
trato. É o que diz a parte final do art. 286:

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a
lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao ces-
sionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

3.1.5. Cessão de crédito e acessórios

Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus
acessórios.

O art. 287 traz uma regra básica segundo a qual, na cessão de crédito, ficam abrangidos todos os
seus acessórios. Isso é até óbvio, e vem da ideia da gravitação jurídica (o acessório segue a sorte do prin-
cipal).

3.1.6. Cessão de direitos hereditários


A cessão de direitos hereditários, vale complementar a título de curiosidade, está regulada no art.
1.793 do CC (os artigos seguintes também trazem regras sobre a cessão de direitos hereditários, mas a
matriz de qualquer resposta sobre o tema encontra-se no art. 1.793):

Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro, pode
ser objeto de cessão por escritura pública.

§ 1º Os direitos, conferidos ao herdeiro em consequência de substituição ou de direito de acres-


cer, presumem-se não abrangidos pela cessão feita anteriormente.

§ 2º É ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da heran-
ça considerado singularmente.

268
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro,
de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.

3.1.7. Autorização prévia do devedor?188


Para que haja a cessão de crédito ao novo credor, é necessária a autorização do devedor? Se o deve-
dor tiver alguma razão justificada ou mesmo um argumento de ordem pública para se opor à cessão de
crédito, tudo bem. Mas isso nem sempre ocorrerá. Logo, não se exige uma autorização prévia do devedor
para que a cessão de crédito se opere.
Todavia, é indispensável, como condição de eficácia, à luz do princípio da boa-fé objetiva e do pró-
prio dever de informação, que o devedor seja notificado da cessão operada (art. 290 do CC). Isso é até
óbvio, uma vez que o devedor deve ter conhecimento da cessão para saber a quem deve pagar. Veja que
quem tem mais interesse em notificar o devedor da cessão feita é o cessionário:

Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este noti-
ficada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou
ciente da cessão feita.

De acordo com a regra do art. 290, o devedor será tido por notificado caso se declare, por docu-
mento escrito público ou particular, ciente da cessão.
A notificação do devedor é essencial, especialmente sob o prisma de se saber a quem pagar (art.
292). Além disso, nos termos do art. 294 (com regra semelhante no art. 1.474 do Código Civil Argentino),
uma vez notificado, o devedor poderá opor ao novo credor (cessionário) as defesas que tinha contra o
credor antigo:

Art. 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor
primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apre-
senta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pú-
blica, prevalecerá a prioridade da notificação.

Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as
que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.

Imagine que o credor originário coagiu ou enganou o devedor a assinar um contrato, no qual ficaria
obrigado a entregar-lhe R$ 10.000,00. Nesse caso, o devedor poderá opor a defesa relativa ao vício tam-
bém ao novo credor. Isso se faz para evitar qualquer tipo de fraude. Caso não fosse possível opor essas

188 Sobre o tema, Cristoph Fabian escreveu uma obra intitulada “O direito de informar no Direito Civil”, Ed.
RT.

269
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

defesas, o credor originário simplesmente poderia combinar com um amigo de ceder-lhe o crédito para
“validá-lo”.

3.1.8. Responsabilidade pela cessão do crédito: cessão pro soluto e cessão pro solvendo
Imagine que o credor ceda um crédito de R$ 500,00 a terceiro. Esse credor cedente deve garantir a
existência do crédito ao cessionário? Se sim, além de garantir que o crédito existe, deve ele garantir que o
devedor vai pagar?
É intuitivo, de bom senso, perceber que cabe ao credor cedente garantir a existência do crédito.
Mas daí a exigir que ele também garanta a solvabilidade e o pagamento pelo devedor já é um pouco de-
mais.
Regra geral, nos termos dos art. 295 a 297 do CC, o cedente deve garantir apenas a existência do
crédito que cedeu (cessão pro soluto); todavia, caso também se responsabilize pelo pagamento, a cessão
será pro solvendo.
Recomenda-se ler com cuidado esses artigos, porque eles trazem algumas exceções relativas à ces-
são gratuita. Regra geral, o credor cedente se obriga apenas pela existência da dívida, mas poderá, por
sua autonomia privada, garantir o pagamento pelo devedor.

3.2. Cessão de débito (assunção de dívida)

Esse tema é tratado em poucos artigos no CC de 2002.


A cessão de débito ou assunção de dívida consiste em um negócio jurídico por meio do qual o deve-
dor (cedente), com expresso consentimento do credor, transmite a um terceiro a sua dívida (art.
299 do CC):

Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso
do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era
insolvente e o credor o ignorava.

Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assun-
ção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa.

Veja que o mecanismo é o mesmo da cessão de crédito, com a diferença que a modificação se opera
no polo passivo. Aqui também se mantém a mesma relação jurídica obrigacional, razão pela qual a as-
sunção de dívida não pode ser confundida com a novação subjetiva passiva. Na novação, com a mudança
do devedor, considera-se criada uma obrigação nova.
A cessão de débito pressupõe, necessariamente, a anuência do credor. Isso é lógico, pois do con-
trário o devedor transmite a dívida a um cidadão que sequer tem condição de se sustentar (em patente
fraude).

270
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No momento em que há cessão do débito, o devedor antigo sai da obrigação. Isso não ocorrerá, no
entanto, se o novo devedor for insolvente e o credor não sabia desta situação. Se isso ocorrer, o velho
devedor retornará à relação. É o que diz o “caput” do art. 299.
Aqui não se aplica a regra do “quem cala consente”. Imagine que o devedor cedeu o débito ao novo
devedor e o credor foi notificado a se pronunciar em 10 dias. Se, neste prazo, o credor não se manifestar,
interpreta-se seu silêncio como recusa (isso é pegadinha de prova).189

3.3. Cessão de posição contratual (“cessão de contrato”)

A cessão de crédito já era prevista no Código de 1916. A cessão de débito foi ineditamente prevista
pelo legislador no CC de 2002. E a cessão de posição contratual sequer foi prevista pelo novo CC (o que
Pablo considera uma pena). Ainda assim, a cessão de posição contratual é amplamente admitida no Di-
reito brasileiro, pela doutrina e jurisprudência.

3.3.1. Conceito
Segundo o jurista italiano Emilio Betti, a cessão de contrato realiza a forma mais completa de
transferência da relação obrigacional, pois, em um único ato, o sujeito assume um dos polos da própria
obrigação. Vale dizer, diferentemente da simples cessão de crédito ou de débito, transfere-se a própria
posição contratual, como um todo, mediante a anuência da outra parte (ver os art. 424 a 426 do CC de
Portugal):

Artigo 424º (Noção. Requisitos)

1. No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a
terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração
do contrato, consinta na transmissão.

2. Se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir
da sua notificação ou reconhecimento.

Artigo 425.º (Regime)

A forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios da vontade e as re-


lações entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão.

Artigo 426.º (Garantia da existência da posição contratual)

189 Recomenda-se a leitura dos demais artigos relacionados à cessão de débito no Código Civil (arts. 300 e
seguintes).

271
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1. O cedente garante ao cessionário, no momento da cessão, a existência da posição contratual


transmitida, nos termos aplicáveis ao negócio, gratuito ou oneroso, em que a cessão se integra.

2. A garantia do cumprimento das obrigações só existe se for convencionada nos termos gerais.

Silvio Rodrigues, por exemplo, elenca uma série de contratos em que é muito comum a cessão de
posição contratual. Ex.: contrato de locação, contratos de empreitada, contratos de financiamento. Usa-
se, coloquialmente, a expressão “fulano passou o contrato de financiamento pra frente”.
Na cessão de crédito, o cedente transfere o crédito e, na cessão de débito, o débito. Na cessão de
posição contratual, não se transfere apenas o crédito ou o débito, mas a posição de parte contratual como
um todo (é algo muito mais pleno/abrangente). Não se transfere apenas o direito ou o dever, mas a posi-
ção no contrato.

3.3.2. Teoria unitária sobre a cessão de posição contratual


Uma vez que, na cessão de contrato, transmite-se a própria posição contratual como um todo, ra-
zão assiste à teoria unitária (Pontes de Miranda, Silvio Venosa), e não à teoria atomística ou da decompo-
sição (Ferrara), que não aceitava a transferência global e unitária da própria posição do contrato.
Ex.: sujeito celebrou contrato de financiamento com a CEF para aquisição de casa própria. No cur-
so do pagamento das prestações, o devedor, percebendo que não tem mais condições de pagar, pretende
transferir o contrato a um interessado. Assim, o devedor e o interessado vão à CEF e celebram instru-
mento de cessão contratual, com anuência do credor.
Para a teoria unitária, o devedor transmite a posição do contrato como um todo, de forma unitá-
ria/global/plena. Os adeptos da teoria da decomposição entendiam que a transferência não se operava de
forma global, entendendo que a cessão de contrato seria decomposta em muitas cessões de crédito e dé-
bito (a cessão de contrato seria um conjunto de cessões de crédito e de débito). Os alemães chamavam a
teoria da decomposição de Zerlegungskonstruktion (doutrina da decomposição).

3.3.3. Contrato de gaveta


Não se pode olvidar de um detalhe bem explicitado por Emilio Betti em sua obra. Para a cessão de
um contrato, é indispensável a anuência da outra parte. Aliás, a anuência é condição de validade e eficá-
cia da cessão.
Na prática, muitos “passam o contrato para frente” sem a anuência da outra parte contratante. Em
decorrência disso, surge uma figura “brasileiríssima”. Ex.: cidadão financia a moto, não consegue pagar
as prestações, então celebra um contrato com seu vizinho para que este fique com a moto e quite as de-
mais prestações. O banco financiante não tem a menor ideia desse acordo firmado entre eles. Da peculiar
inventividade brasileira, surge, então, a interessante figura do “contrato de gaveta”.

272
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O denominado contrato de gaveta traz em seu bojo, salvo situações excepcionais, grande risco ao
cedente, a par de uma inequívoca irregularidade. Risco porque o cedente continua com seu nome for-
malmente no contrato, e irregularidade porque a outra parte não foi ouvida.
Nesse caso da moto, os interessados deveriam procurar o banco e lá colher a autorização do agente
financiador para que, formalmente, o interessado se colocasse na posição do mutuário originário. Mas,
em geral, as pessoas não fazem isso. Assim, quando o terceiro que ficou com a moto deixa de pagar as
prestações, o nome que “vai para o pau” é o do mutuante originário, porque o banco não tem conheci-
mento dessa cessão informal.
A regra geral é no sentido de que a instituição financeira, especialmente no âmbito do SFH, deve
anuir na cessão de contrato (REsp 1.102.757/CE, REsp 783.389/RO), excepcionada a especial situação
prevista no art. 20 da Lei 10.150/2000 (REsp 653.415/SC):

Art. 20. As transferências no âmbito do SFH, à exceção daquelas que envolvam contratos en-
quadrados nos planos de reajustamento definidos pela Lei n o 8.692, de 28 de julho de 1993, que
tenham sido celebradas entre o mutuário e o adquirente até 25 de outubro de 1996, sem a inter-
veniência da instituição financiadora, poderão ser regularizadas nos termos desta Lei.

Parágrafo único. A condição de cessionário poderá ser comprovada junto à instituição financia-
dora, por intermédio de documentos formalizados junto a Cartórios de Registro de Imóveis, Tí-
tulos e Documentos, ou de Notas, onde se caracterize que a transferência do imóvel foi realizada
até 25 de outubro de 1996.

Portanto, se o mutuário quiser ceder sua posição contratual no contrato de financiamento da casa
própria, ele deve buscar a anuência do banco. O STJ já decidiu isso em diversas oportunidades. Nesse
âmbito do SFH, há uma exceção prevista em lei (talvez seja a única admitida), a qual foi aceita por de-
terminado período de tempo. Somente em caráter excepcional, contrato de gaveta no âmbito de SFH
celebrado até 25 de outubro de 1996 é aceito.
Conforme observam os ministros do STJ, a solvabilidade do devedor é condição especial à celebra-
ção do contrato de financiamento (por isso é indispensável a anuência da outra parte).
Aquele que celebrou o contrato de gaveta, cedendo sua posição, assumiu o risco. Poderá haver mui-
tos problemas decorrentes desse tipo de ajuste, sem que se dê anuência ao banco. Imagine que o sujeito
que cedera sua posição no contrato de financiamento do imóvel morreu. O terceiro pagara todas as pres-
tações e não houve tempo de ser feita a transferência do imóvel para ele depois de encerrado pagamento.
Os herdeiros do cedente podem muito bem se recusar a fazer a transferência ajustada. Com isso, começa-
rá uma grande briga judicial.

3.3.4. Cessão de contrato imprópria ou cessão legal

273
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A transmissão da posição contratual se dá por meio de um acordo de vontades (de um contrato).


Isso é o que se dá em regra, mas em concurso já se questionou o candidato sobre a cessão de posição con-
tratual imprópria.
A denominada cessão contratual imprópria ou cessão legal é uma figura esdrúxula em que a cessão
da posição contratual decorre da própria lei, independentemente da anuência da outra parte. Para que
esta cessão se opere é necessário, ao menos, que o terceiro manifeste seu interesse em figurar naquele
contrato (mas a outra parte não será ouvida sobre a cessão).
Exemplo dessa hipótese está no art. 31, da Lei 6.766/79 (Lei de Parcelamento de Solo Urbano):

Art. 31. O contrato particular pode ser transferido por simples trespasse, lançado no verso das
vias em poder das partes, ou por instrumento em separado, declarando-se o número do registro
do loteamento, o valor da cessão e a qualificação do cessionário, para o devido registro.

§ 1º - A cessão independe da anuência do loteador mas, em relação a este, seus efeitos só se pro-
duzem depois de cientificado, por escrito, pelas partes ou quando registrada a cessão.

§ 2º - Uma vez registrada a cessão, feita sem anuência do loteador, o Oficial do Registro dar-lhe-
á ciência, por escrito, dentro de 10 (dez) dias.

4. Teoria do pagamento: Adimplemento obrigacional (arts.


304 a 388, CC)
4.1. Conceito

Lembra Clóvis Bevilaqua que pagar não é apenas dar dinheiro, na medida em que é mais amplo o
conceito de pagamento. Pagamento, em verdade, significa cumprimento voluntário da obriga-
ção, não só de dar, mas também de fazer ou não fazer.

4.2. Elementos

O pagamento é composto por três elementos: i) o vínculo obrigacional que será extinto; ii) o sujeito
ativo do pagamento (o devedor); e iii) o sujeito passivo do pagamento (o credor)190.

4.3. Natureza jurídica

A doutrina aponta grande divergência quanto à natureza jurídica do pagamento191. Partindo da


premissa de que o pagamento é um fato jurídico, alguns afirmam que se trata de um ato em sentido estri-
to. Outros preferem a natureza de ato negocial. A vantagem de dizer que o pagamento tem natureza ne-

190 Cuidado, pois nas obrigações o sujeito ativo é o credor, e o passivo o devedor!

191 Cf. Caio Mário e Roberto de Ruggiero.

274
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

gocial é que fica mais fácil justificar a aplicação de determinados vícios do ato negocial (ex.: pagamento
por erro).

4.4. Requisitos ou condições para o pagamento

O famoso ditado popular diz que “quem paga mal paga duas vezes”. Com efeito, o sujeito que não
exige recibo pode ter de pagar novamente.

4.4.1. Condições subjetivas do pagamento


Trata-se de estudar quem deve pagar e a quem se deve pagar.

4.4.1.1. Quem deve pagar ou solvens (arts. 304 e 305 do CC)

Deve pagar o devedor ou seu representante (que não exige poderes especiais). O direito brasileiro,
no entanto, prevê a legitimidade do terceiro para o pagamento. Há dois tipos de terceiro, o interessado e
o desinteressado:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opu-
ser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do
devedor, salvo oposição deste.

Obs.: o interesse é patrimonial, e não há afetivo ou de outra ordem. Exemplo: pai que paga a dívida
do filho, em regra, é terceiro não interessado
i) terceiro interessado:
Terceiro interessado é aquele que detém interesse jurídico no cumprimento da obrigação, uma
vez que em sua própria esfera jurídica ela poderá repercutir, a exemplo do fiador que paga a dívida do
devedor principal.
Em situações como esta, o terceiro interessado não apenas terá direito ao reembolso pelo que pa-
gou, como se sub-rogará em todos os privilégios e garantias do credor principal. Ex.: o fia-
dor que paga crédito também garantido por hipoteca terá o direito não só ao reembolso da quantia paga
como à garantia hipotecária.
ii) terceiro não interessado:
O terceiro não interessado não detém interesse jurídico no pagamento, mas moral, afetivo etc. A
obrigação e seu eventual inadimplemento não repercute na esfera jurídica dele.
Assim, quando ele paga, o que ocorre? Se o terceiro não interessado pagar em seu próprio no-
me, embora não se sub-rogue em todas as garantias e privilégios do credor originário, terá, pelo menos,
o direito ao reembolso pelo que pagou. Mas, se pagar em nome do próprio devedor, não terá direito
a nada.

Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a re-

275
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

embolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor.

Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento.

O art. 306 do Código Civil admite que o devedor se oponha ao pagamento feito por terceiro, desde
que apresente justificativa plausível, a exemplo da prescrição da dívida ou de já haver efetuado o paga-
mento:

Art. 306. O pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não
obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação. [Quando fa-
la em “meios para ilidir a ação”, o legislador quer significar que o devedor tinha
meios de pagar.]

Pablo vai além. Para o autor, até mesmo com base na teoria dos direitos da personalidade, o deve-
dor pode se opor ao pagamento feito por terceiro, desde que demonstre meios de pagamento.
Ex.: imagine que o Google tenha uma dívida de R$ 100.000.000,00. A Microsoft paga a dívida, pa-
ra se tornar credora do Google (com o objetivo de humilhá-lo, por exemplo). O site pode se opor ao pa-
gamento, se apresentar razão plausível, demonstrando que pode pagar o credor. Isso porque o credor
tem o direito de receber a dívida.

4.4.1.2. A quem se deve pagar ou Accipiens (arts. 308 e 309 do Código Civil)
O pagamento deve ser feito ao credor, ao seu representante ou a um terceiro. Vale lembrar que o
pagamento feito ao terceiro, nos termos do art. 308, só terá eficácia se for ratificado pelo credor ou, não o
sendo, o devedor provar que reverteu em seu proveito:

Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de
só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.

Ex.: todo mês o sujeito paga o aluguel à locadora, mediante recibo. Em determinado mês, ele vai ao
local e é recebido por um rapaz, que recebe o pagamento sem procuração. O pagamento só será válido se
a locadora ratificá-lo. Caso ela não o faça, o devedor terá de provar em juízo que o valor se reverteu em
favor dela (o que é muito difícil).
Especial situação é a do pagamento feito ao credor putativo ou aparente (art. 309). Trata-se de uma
aplicação da teoria da aparência que, segundo Mauricio Pereira da Mota, passou a ter força principiológi-
ca no Brasil. Em outras palavras, o pagamento feito pelo devedor de boa-fé, à luz do princípio da confian-
ça, poderá ter eficácia jurídica, para preservar o próprio valor de segurança nas relações sociais (Nelson
Nery Jr.):

Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não
era credor.

Ex.: pagamento a funcionário, com a roupa da loja, que acabou de ser demitido, sendo que o sujeito
sempre pagava àquele funcionário. O juiz deve ser convencido de que o sujeito estava de boa-fé.

276
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Guilherme Nogueira da Gama lembra, inclusive, na linha Celso Aleixo, que também o pagamento
feito ao mandatário ou procurador putativo, com base no mesmo princípio, poderá ter eficácia jurídica.
Ex.: o locador passa uma procuração à administradora de imóveis, que emitia os recibos ou os bole-
tos para pagamento. O locador resolve o contrato e a imobiliária, de má-fé, se apresentando ainda como
representante dele, recebe os valores. Esse pagamento terá eficácia jurídica, desde que comprovada a
boa-fé do devedor.
Flávio Tartuce adverte que se o devedor não sabe a quem pagar (ou tem dúvidas), o melhor é con-
signar. Isso, sob pena de aplicação da máxima, “quem paga mal, paga duas vezes” (CC, art. 310), hipótese
de pagamento subjetivamente indevido.
Nesse sentido, não vale o pagamento cientemente feito ao credor incapaz de dar quitação, se o de-
vedor não provar a reversão do valor pago em seu benefício. Essa incapacidade deve ser tida em sentido
genérico, significando falta de autorização, ou mesmo incapacidade absoluta ou relativa daquele que re-
cebeu (arts. 3.º e 4.º do CC). Em casos tais, o pagamento deverá ocorrer novamente.

4.4.2. Condições objetivas do pagamento


As condições objetivas do pagamento estudam o objeto do pagamento e sua prova, o tempo e o lu-
gar do pagamento.

4.4.2.1. Do objeto do pagamento


O objeto do pagamento é a prestação, podendo o credor se negar a receber o que não foi pactuado,
mesmo sendo a coisa mais valiosa, a teor do Art. 313, CC:

Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que
mais valiosa.

Trata-se de concretização da antiga máxima romana nemo aliud pro alio invito creditore solvere
potest.
Em complemento ao artigo supracitado, determina o artigo seguinte que, mesmo sendo a obrigação
divisível, não pode ser o credor obrigado a receber, nem o devedor a pagar em partes, salvo previsão ex-
pressa em contrato (art. 314 do CC). Eis aqui a consagração do princípio da identidade física da presta-
ção.

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obri-
gado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

277
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não existe direito a parcelamento. À pessoa somente assiste tal direito quando isso for ajustado ou
a lei assim o determinar (ex.: a lei permite o parcelamento do imposto de renda em até seis vezes ou a
“moratória legal” do Art. 916 do CPC/15192).

4.4.2.1.1. Pagamento em dinheiro, princípio do nominalismo e a correção monetá-


ria

O art. 315 traz importantes informações:

Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo va-
lor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.

Ninguém tem direito de pagar com cheque. Com efeito, não há como exigir que o comerciante acei-
te o adimplemento da obrigação em cheque ou cartão. O dispositivo deixa claro que, quanto às obriga-
ções pecuniárias, é a moeda corrente (Real) que tem curso forçado, razão por que o credor pode se recu-
sar a receber cheque ou pagamento em cartão. Isso, todavia, não significa que o vendedor possa discri-
minar ou humilhar o comprador.
O mesmo artigo ainda consagra, acompanhando tradição brasileira, o vetusto “princípio do nomi-
nalismo”, segundo o qual o devedor deve pagar a mesma quantidade de moeda nominalmente prevista
no título da obrigação. Sucede que, como não vivemos em uma sociedade utópica, a existência de inflação
impõe, por equidade, a flexibilização do princípio pelos índices de correção monetária.
Ex.: duas pessoas celebram contrato hoje, em que uma delas empresta R$ 1.000,00, a serem pagos
em um ano. Pelo princípio do nominalismo, a quantia a ser paga deveria ser a mesma. Ocorre que, por
conta da inflação, o poder de compra vai se perdendo ao longo do tempo. A correção monetária, criada
na década de 1980, atualiza o valor da moeda. Trata-se de pedido implícito. Não é juro (“plus”), mas ape-
nas a flexibilização do princípio do nominalismo.
A Lei 6.899/81 estabeleceu a correção monetária nos débitos decorrentes de decisão judicial. A
partir dela, a correção monetária passou a fazer parte da vida do brasileiro para, flexibilizando o princí-
pio do nominalismo, atualizar e corrigir o poder aquisitivo do dinheiro na obrigação pecuniária (ex.:
IGPM, INPC, IPCA etc.):

Art 1º - A correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial, inclu-
sive sobre custas e honorários advocatícios.

§ 1º - Nas execuções de títulos de dívida líquida e certa, a correção será calculada a contar do
respectivo vencimento.

192 CPC, Art. 916. “No prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito
de trinta por cento do valor em execução, acrescido de custas e de honorários de advogado, o executado poderá
requerer que lhe seja permitido pagar o restante em até 6 (seis) parcelas mensais, acrescidas de correção monetária
e de juros de um por cento ao mês.”.

278
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 2º - Nos demais casos, o cálculo far-se-á a partir do ajuizamento da ação.

Vale lembrar que somente por exceção se admite a variação cambial como índice de correção mo-
netária, nos termos do art. 6º da Lei 8.880/1994 (contratos internacionais ou de captação de recursos
internacionais) e do Ag. Rg. 845.988/SP:

Art. 6º - É nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto
quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil ce-
lebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos
provenientes do exterior.

O salário mínimo pode ser usado para efeito de correção de obrigação pecuniária? O art. 7º, IV, da
CR, veda a vinculação do salário mínimo a qualquer fim, no que é seguido pela Súmula Vinculante nº 4
do STF:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social: (...)

IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessida-
des vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuá-
rio, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder
aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Súmula Vinculante 4 - SALVO NOS CASOS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO, O SALÁRIO MÍ-


NIMO NÃO PODE SER USADO COMO INDEXADOR DE BASE DE CÁLCULO DE VANTAGEM
DE SERVIDOR PÚBLICO OU DE EMPREGADO, NEM SER SUBSTITUÍDO POR DECISÃO
JUDICIAL.

No entanto, como lembra Maria Berenice Dias, é possível a vinculação do salário mínimo como ín-
dice de correção de pensão alimentícia. Trata-se de situação especial, amplamente admitida pela juris-
prudência do STF (RE 274.897 e RE 170.203)
Ademais, são nulas as estipulações de pagamento em moeda estrangeira (obrigação valutária) ou
em ouro (cláusula ouro). É a regra prevista no art. 318193, CC. Exceção: contratos internacionais (Dec.-Lei
n. 857/69).
Entretanto, o pagamento pode ser cotado dessas formas, desde que conste o correspondente em re-
ais.

4.4.2.1.2. Licitude da convenção do aumento progressivo das prestações sucessivas

193 CC, art. 318: “São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para

compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação espe-
cial”.

279
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 316 do CC prevê a licitude da convenção do aumento progressivo das prestações sucessivas, a
que se dá o nome de cláusula de escala móvel ou cláusula de escolamento.:

Art. 316. É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas.

Nas palavras de Flávio Tartuce, o dispositivo em questão refere-se somente à correção monetária da
obrigação, sendo possível afirmar que que não houve qualquer revogação do Decreto 22.626/1933, a Lei
de Usura, que continua em vigor, eis que o Código Civil de 2002 consagra os princípios da função social da
obrigação, da boa-fé objetiva e a vedação do enriquecimento sem causa. Dessa forma, continua sendo proi-
bida a cobrança de juros abusivos (superiores ao dobro da taxa legal), bem como o anatocismo (juros so-
bre juros).

4.4.2.1.3. Adimplemento substancial (“substantial performance”)

Por meio da teoria do adimplemento substancial, defende-se que, se o adimplemento da obrigação


foi muito próximo ao resultado final, a parte credora não terá direito de pedir a resolução do contrato
porque isso violaria a boa-fé objetiva, já que seria exagerado, desproporcional, iníquo.
O instituto tem origem no século XVIII, quando um grupo de marinheiros foi contratado para levar
determinada carga da Jamaica a Londres. Pouco antes de chegar à Inglaterra, aproximando-se do porto,
o comandante morre de escorbuto. O oficial seguinte do barco cumpre a prestação. O contrato é conside-
rado descumprido pelo Lorde que contratara o transporte, sob a alegação de imperfeição do adimple-
mento. A esposa do falecido então procura o Lorde e alega que a obrigação foi quase que integralmente
cumprida, na medida em que o marido dela falecera quase ao chegar a Londres. Essa é tida como o cerne
da doutrina do adimplemento substancial.
A doutrina do adimplemento substancial sustenta que, à luz dos princípios da equidade e da confi-
ança, não se deve considerar resolvida a obrigação quando a atividade do devedor, posto não haja sido
perfeita ou atingido plenamente o fim proposto, aproxima-se consideravelmente do seu resultado final
(Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil, que invoca até outros princípios):

Enunciado nº 361 - Arts. 421, 422 e 475: O adimplemento substancial decorre dos princípios ge-
rais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé
objetiva, balizando a aplicação do art. 475.

O STJ em 2016, no julgamento do REsp 1581505-SC estabeleceu três requisitos para a aplicação da
teoria:
a) Existência de expectativas legitimas geradas pelo comportamento das partes;
b) O pagamento faltante há de ser ínfimo em se cnisiderando o total do negócio;
c) Deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de
pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.

280
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entretanto, segundo o Tribunal Cidadão, não se aplica a teoria do adimplemento substan-


cial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69.194

4.4.2.2. Da prova do pagamento


A prova do pagamento é importantíssima e, a rigor, não se dá com o recibo. Numa visão eminen-
temente técnica, a prova do pagamento opera-se, nos termos do art. 319 do Código Civil, por meio de um
ato jurídico denominado de quitação. Recibo, que pode ser eletrônico, é o instrumento da quitação:

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto
não lhe seja dada.

O devedor a quem se negue a quitação regular poderá recorrer à consignação em pagamento, tema
inserido na grade de direito processual civil.
O art. 320 traz os elementos da quitação:

Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor
e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do
pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

Parágrafo único. Ainda sem os requisitos estabelecidos neste artigo valerá a quitação, se de seus
termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida.

A quitação sempre poderá ser dada por instrumento particular. Pouco importa o valor da aquisi-
ção ou se se trate de bem imóvel de alto valor, com aquisição por escritura pública.
Conectado aos princípios da função social e da boa-fé objetiva, o parágrafo único serve aos humil-
des jurisdicionados que não têm conhecimento da descrição dos elementos do caput.
O recibo deve ser sempre exigido para o pagamento. As empresas com as quais as pessoas têm
prestações continuadas são obrigadas a enviar, no ano subsequente, recibo de todas as prestações pagas
no ano anterior.
Os arts. 322 a 324 consagram situações em que o devedor não tem recibo, mas há presunção de pa-
gamento. Essas presunções são relativa e beneficiam o devedor, de modo que caberá ao credor fazer a
contraprova do não pagamento.

Art. 322. Quando o pagamento for em quotas periódicas, a quitação da última estabelece, até
prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriores.

Assim, nas obrigações de trato sucessivo cujo pagamento se da em quotas periódicas, a quitação da
última parcela gera presunção de pagamento das anteriores

194 STJ. 2ª Seção. REsp 1622555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze,

julgado em 22/2/2017 (Info 599).

281
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Sendo um bem acessório, caso o credor não faça a reserva de juros, haverá presunção de pagamen-
to deles, cabendo àquele realizar a contraprova, em respeito ao já visto princípio da gravitação jurídica..

Art. 323. Sendo a quitação do capital sem reserva dos juros, estes presumem-se pagos.

A devolução do título gera presunção relativa do pagamento. É mais seguro que o devedor, ao res-
gatar a nota, peça também o recibo.

Art. 324. A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento.

Parágrafo único. Ficará sem efeito a quitação assim operada se o credor provar, em sessenta di-
as, a falta do pagamento.

Flávio Tartuce alerta para uma dúvida em relação à previsão desse dispositivo, se confrontada com
o art. 386 do mesmo Código Civil, que trata da remissão de dívidas ou perdão.
Segundo o Art. 386, “A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular,
prova desoneração do devedor e seus coobrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de
adquirir”.
A dúvida surge, pois, os dois dispositivos tratam da entrega de títulos. Como resolver a questão?
Haveria, em casos tais, pagamento direto ou remissão de dívidas? Entendemos ser melhor compreender
tal confrontação no sentido de que o art. 324 do CC trata de entrega de título de crédito (promissória,
cheque), hipótese de presunção de pagamento; enquanto que o art. 386 está relacionado à entrega de
instrumento particular (confissão de dívida) que representa a dívida, é hipótese de remissão.

4.4.2.3. Do lugar do pagamento


A regra geral do direito brasileiro, nos termos do art. 327, é no sentido de que as dívidas devem ser
pagas no domicílio do devedor (divida quesível ou querable)195. A palavra “quesível” deriva de um
verbo com raiz latina que significa buscar, procurar. O credor procura o devedor em seu domicílio:

Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem


diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.

Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre eles.

Todavia, excepcionalmente, poderá a dívida ser paga no domicílio do próprio credor, caso em que
passa a ser denominada dívida portável (ou portable).
Se o contrato previr dois ou mais lugares para o pagamento, quem faz a escolha não é o devedor,
como na maioria dos casos em que o ordenamento privilegia a parte mais fraca da relação. Veja que o

195 Lembrar que o Seu Barriga, no Chaves, sempre se desloca ao domicílio do Seu Madruga para cobrar o
aluguel.

282
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

parágrafo único do art. 327 traz norma específica no sentido de que, designados dois ou mais lugares,
cabe ao credor escolher entre eles.
Obs.: Esta é a única previsão na teoria geral das obrigações em que o credor escolhe (“in fa-
vor creditoris”)
Alguns aspectos do pagamento não podem ser convencionados em sentido diverso da lei. Caso haja
a venda de um imóvel, ainda que a escritura seja lavrada em outro tabelionato, o registro deverá ser feito
no Cartório de Registro de Imóveis de atribuição da zona territorial respectiva:

Art. 328. Se o pagamento consistir na tradição de um imóvel, ou em prestações relativas a imó-


vel, far-se-á no lugar onde situado o bem.

O art. 330 do Código Civil196 exemplifica a aplicação da regra proibitiva do venire contra factum
proprium, podendo também ser compreendida nas perspectivas das noções de supressio e surrectio,
temas que serão estudados oportunamente:

Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor re-
lativamente ao previsto no contrato.

O artigo tem íntima relação com o princípio da boa-fé objetiva, uma vez que apresenta dois concei-
tos parcelares daquele princípio.
Dois desses conceitos são a supressio e a surrectio:
a) Supressio (Verwirkung) significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma po-
sição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos.
b) Surrectio (Erwirkung), é a surreição, o surgimento de um direito este que não existia juridica-
mente até então, mas que decorre da efetividade social, de acordo com as práticas, os usos e os
costumes.
A supressio e a surrectio são faces da mesma moeda: uma (devedor) adquire, enquanto o outro
(credor) perde o direito, por exemplo, de pagar a dívida na mesma cidade, caso essa conduta reiterada
tenha, por muito tempo, sido aceita pelo credor.
Dessa maneira, pela letra da lei, mesmo que o credor notifique o devedor a voltar a pagar no local
do contrato, este poderia recusar-se a fazê-lo, invocando a regra. É o direito civil moderno, privilegiando
o princípio da eticidade
O dispositivo tras ainda a regra do venire que em função da etificade e boa-fé proíbe comporta-
mento contraditório. Impede que uma mesma pessoa, ao longo do tempo, tenha comportamentos in-
compatíveis entre si.

4.4.2.4. Do tempo do pagamento

196 O dispositivo é “adorado” pelas provas de concurso e pelos manuais de direito civil.

283
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em geral, o tempo do pagamento é o vencimento da própria dívida. Todavia, existem obrigações


sem vencimento certo, caso em que devem ser observados os artigos 331 e 332 do Código Civil.
O art. 331 determina que se a obrigação tiver vencimento, é ele o tempo do pagamento. Todavia,
obrigações que não tenham vencimento podem ser exigidas pelo credor de imediato.

Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento,
pode o credor exigi-lo imediatamente.

O art. 332 ressalva a regra, tratando das obrigações condicionais, que são exigíveis na data do im-
plemento da obrigação:

Art. 332. As obrigações condicionais cumprem-se na data do implemento da condição, cabendo


ao credor a prova de que deste teve ciência o devedor.

Vale acrescentar que o art. 333 consagra hipóteses de antecipação do vencimento da dívida:

Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no
contrato ou marcado neste Código:

I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;

II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;

III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais,


e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.

Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não
se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.

Quando se pensa na regra do art. 331, o primeiro tipo de obrigação que vem à mente é a de entrega
de dinheiro. No entanto, deve-se atentar para o fato de que o mútuo de dinheiro cai na exceção da lei. No
caso de empréstimo de dinheiro, nos termos do art. 592, II, do CC, não tendo sido fixada época para o
pagamento, o credor não pode exigi-lo de imediato, pois o devedor tem pelo menos 30 dias para pagar:

Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será: (...)

II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;

É de se notar que além dessas situações, o vencimento antecipado também pode ocorrer, para as
obrigações em geral, por convenção entre as partes, nos casos envolvendo inadimplemento, de modo a
concluir que o rol do vencimento antecipado é exemplificativo (numerus apertus) e não taxativo (nume-
rus clausus).197

197 Nas palavras de Flávio Tartuce, o CC/2002 adotou um sistema aberto, fundado em cláusulas gerais, con-

forme a realidade tridimensional de Miguel Reale (Direito é fato, valor e norma).

284
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5. Formas especiais de pagamento198


5.1. Pagamento em consignação (art. 334 a 345 do CC)

5.1.1. Conceito
O pagamento em consignação é um depósito judicial ou extrajudicial, efetuado pelo devedor ou por
terceiro, para afastar os efeitos da mora ou do inadimplemento absoluto. Trata-se de um ato unilateral
que constitui regra especial de pagamento.
Na verdade, todo ato unilateral é regra especial de pagamento. Se fosse bilateral, seria pagamento
indireto.
Houve uma transformação conceitual na consignação, mas é possível encontrar o entendimento de
que a consignação seria uma forma judicial de pagamento.
A consignação em pagamento é um instituto híbrido, de direito processual civil e de direito civil,
pois o depósito pode ser feito extrajudicialmente em conta bancária (art. 539 do CPC/2015199) ou por
meio de ação judicial.

5.1.2. Hipóteses de cabimento


Geralmente, em provas de concurso, são questionadas as hipóteses nas quais é cabível a consigna-
ção (art. 335 do CC):

Art. 335. A consignação tem lugar:

I - se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar quitação na
devida forma;

II - se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condição devidos;

III - se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou residir em lugar
incerto ou de acesso perigoso ou difícil;

IV - se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento;

198 Consignação em pagamento, transação e arbitragem não serão tratadas aqui, pois integram a grade de
processo.
199 CPC, art. 539: “Nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com efeito de pagamen-

to, a consignação da quantia ou da coisa devida. § 1º: Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o valor ser
depositado em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, cientificando-se o
credor por carta com aviso de recebimento, assinado o prazo de 10 (dez) dias para a manifestação de recusa. § 2º:
Decorrido o prazo do § 1º, contado do retorno do aviso de recebimento, sem a manifestação de recusa, considerar-
se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. § 3º: Ocorrendo a recu-
sa, manifestada por escrito ao estabelecimento bancário, poderá ser proposta, dentro de 1 (um) mês, a ação de con-
signação, instruindo-se a inicial com a prova do depósito e da recusa. § 4º: Não proposta a ação no prazo do § 3º,
ficará sem efeito o depósito, podendo levantá-lo o depositante”.

285
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

V - se pender litígio sobre o objeto do pagamento.

São elas:
i) recusa de recebimento pelo credor:
Trata-se da mora no recebimento (accipiendi). Se o credor não pode ou se recusa a receber, o deve-
dor pode consignar.
ii) se o credor não cumprir a obrigação quanto ao recebimento (não cumprimento):
Trata-se também de mora do credor (accipiendi);
iii) incapacidade, desconhecimento, ausência ou impossibilidade física do credor:
Esta regra é desnecessária, pois já está incluída no inciso I. Há uma discussão sobre se seria hipóte-
se de mora do credor ou não.
iv) dúvida sobre quem deve legitimamente receber o pagamento:
O inciso IV prevê hipótese de dúvida subjetiva ativa, ou seja, se o devedor não sabe a quem pagar, o
melhor é consignar.
v) litígio sobre o objeto da dívida:
Trata-se, por exemplo, do caso do locatário que não sabe mais quem é o locador, pois há dois cre-
dores litigando sobre o imóvel.

5.1.3. Questões jurisprudenciais


A jurisprudência do STJ tem destacado dois pontos no que tange à consignação em pagamento:
i) revisão da obrigação na ação de consignação:
É possível rever a obrigação na própria ação de consignação (REsp 275.279/SE), que possui rito
especial. A revisão da obrigação comporta rito especial. Aliás, isso mostra também que o rol do art. 335 é
exemplificativo, porque uma hipótese de consignação não contida no referido artigo é justamente a revi-
são do contrato.
ii) dever de depósito da parte incontroversa:
Em razão do princípio da boa-fé objetiva, na ação de revisão da obrigação do contrato, o autor deve
depositar a parte incontroversa da obrigação. Isso porque, o devedor deve depositar em juízo ou fora dele
a parte incontroversa exatamente para demonstrar sua boa-fé (REsp 817.530/RS). Exemplo: o devedor
que discute uma revisão de um contrato de R$ 5.000 para R$ 3.000 deve depositar os R$ 3.000 em juí-
zo.

5.1.4. Eficácia da consignação


Para que a consignação tenha eficácia de pagamento, devem ser observadas as regras fundamentais
do pagamento direto. São elas: partes, objeto, lugar e tempo (arts. 336 e 337). Assim, em regra, se a con-
signação for feita no local errado, não terá eficácia, exceto se o credor aceitar o pagamento:

Art. 336. Para que a consignação tenha força de pagamento, será mister concorram, em relação

286
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

às pessoas, ao objeto, modo e tempo, todos os requisitos sem os quais não é válido o pagamento.

Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o
depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado improcedente.

5.2. Imputação do pagamento (Art. 352 a 355, CC)

5.2.1. Conceito
Imputar significa apontar ou indicar.
Imputação do pagamento é a indicação feita pelo devedor, pelo credor ou pela lei de qual dívida es-
tá sendo paga, nos casos de pluralidade de obrigações entre as mesmas partes.
Veja que, aqui, essas obrigações devem ser líquidas (certas quanto à existência e determinadas
quanto ao valor) e vencidas.

5.2.2. Ordem de imputação


Imagine duas obrigações “A” e “B”, com mesmo credor e devedor. A obrigação “A” é de R$
1.000,00 e a obrigação “B” é de R$ 2.000,00. As duas são líquidas e vencidas, e o devedor pagou R$
1.500,00. É aqui que ocorre a imputação.
A ordem da imputação é a seguinte:
1º lugar: primeiro o devedor deve dizer o que está pagando (imputa);
2º lugar: caso ele não faça, o credor deve imputar;
3º lugar: na hipótese de nenhum dos dois (credor e devedor) se manifestar quanto à imputação,
ocorrerá a imputação legal, na seguinte ordem:
i) havendo capital e juros, primeiro o pagamento recairá sobre juros e depois sobre o capital;
ii) não havendo juros, a imputação ocorrerá na dívida que venceu em primeiro lugar (dívida mais
antiga);
iii) caso as dívidas vençam na mesma data, a imputação recairá na dívida mais onerosa.
No exemplo, efetuando o pagamento de R$ 1.500,00 e não havendo previsão de juros, considera-se
que o devedor pagou parte da obrigação B, por ser a de maior valor.
E se as duas dívidas forem idênticas, ou seja, sendo as dívidas líquidas, vencidas ao mesmo tempo e
iguais, a imputação será relacionada a todas as dívidas na mesma proporção, segundo entendimento
doutrinário (Vilaça, Pablo Stolze, Pamplona e Flávio Tartuce ). Não há previsão legal.

5.3. Pagamento com sub-rogação

Nas palavras de Flávio Tartuce a sub-rogação é conceituada pela melhor doutrina contemporâ-
nea como a “substituição de uma coisa por outra, com os mesmos ônus e atributos, caso em
que se tem a sub-rogação real, ou a substituição de uma pessoa por outra, que terá os mesmos direi-

287
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tos e ações daquela hipótese em que se configura a sub-rogação pessoal de que trata o Código Civil no
capítulo referente ao pagamento com sub-rogação”.
Assim sendo, no âmbito obrigacional, nosso Código Civil trata da sub-rogação pessoal ativa, que
vem a ser a substituição em relação aos direitos relacionados com o crédito, em favor daquele que pagou
ou adimpliu a obrigação alheia.

5.3.1. Noções gerais


O pagamento com sub-rogação, forma especial de cumprimento da obrigação regulada a partir do
art. 346 do CC, traduz a ideia do pagamento feito por terceiro, caso em que sai o credor originário, in-
gressando um novo credor.
Assim, pelo pagamento com sub-rogação há a substituição do credor primitivo por outro, manten-
do-se os demais elementos obrigacionais, caso dos acessórios da dívida (juros, cláusula penal, garantias e
fiança) (CC, art. 349200).
Veja que o pagamento com sub-rogação é um pagamento com substituição de credores. A palavra
sub-rogação remete justamente à ideia de substituição.
Credor e devedor estão unidos pela relação obrigacional. Se um terceiro (ex.: o fiador), paga a dívi-
da, ele sub-roga-se nos direitos do credor original. Sai o credor velho, em face do qual a obrigação está
extinta, e entra o novo.
A sub-rogação pode ser de duas espécies: i) legal, automática ou de pleno direito (pleno iure) (art.
346), em que a substituição se opera por força de lei; e ii) convencional (art. 347), em que a substituição
depende de convenção, acordo de vontades entre as partes, baseada na autonomia privada.

5.3.2. Hipóteses de sub-rogação legal (art. 346)


A sub-rogação legal é ato unilateral e decorre da lei, sendo considerada uma regra especial de pa-
gamento.

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:

I - do credor que paga a dívida do devedor comum;

Ex.: imagine que um sujeito é devedor de quatro credores, que devem receber na seguinte ordem:
C1, C2, C3 e C4. Caso C1 tenha um crédito de R$ 10.000,00 e C2 tenha um crédito de R$ 10.000,00, na-
da impede que C2 pague a dívida a C1 e se sub-rogue nos direitos dele. Normalmente, C1 é o ente público.
C2 pode ter interesse em pagar logo a dívida porque, em se tratando de débitos tributários, a multa e os
juros são muito altos. O objetivo de C2 é evitar que o patrimônio todo desapareça, em virtude da inércia
do devedor.

200 CC, art. 349: “A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do

primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores”.

288
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro
que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;

O inciso II prevê duas hipóteses diversas:


i) adquirente do imóvel hipotecado que paga ao credor hipotecário:
É possível a venda de um imóvel hipotecado. Todavia, a hipoteca a acompanha. O devedor que pa-
ga ao credor hipotecário sub-roga-se nos direitos dele.
ii) terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel:
Ex.: imagine que “A” é locatário de “B”, locador e proprietário. “A”, percebendo que “B” está de-
vendo R$ 10.000,00 a um banco, para não ser privado de sua locação em decorrência da hasta pública,
paga os R$ 10.000,00 ao banco, sub-rogando-se nos direitos de credor da instituição financeira.

III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou
em parte.

O inciso III prevê os casos, por exemplo, do fiador e do avalista.

5.3.3. Hipóteses de sub-rogação convencional (art. 347)


O art. 347 do Código Civil, à luz do princípio da autonomia privada, consagra situações em que a
substituição de credores pressupõe um necessário acordo de vontades, por isso, trata-se de uma forma de
pagamento indireto.

Art. 347. A sub-rogação é convencional:

I - quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus
direitos;

A hipótese prevista neste inciso I se aproxima do instituto da cessão de crédito, que será estudado
oportunamente. Entretanto, deve-se compreender que não haverá uma cessão de crédito propriamente
dita, mas apenas aplicação residual das regras de cessão (Art. 348201), como é o caso daquela que prevê a
necessidade de notificação do devedor, informando quem é o novo credor (art. 290 do CC).
Imagine que um credor tenha um crédito de R$ 1.000,00, que vencerá em 30 dias. Um terceiro ce-
lebra com ele um acordo pelo qual pagará R$ 900,00, para a transferência daquele crédito de R$
1000,00. Trata-se de uma hipótese de pagamento com sub-rogação convencional, uma cessão de crédito
onerosa. Trata-se do mecanismo do factoring e do pagamento de duplicatas, ainda que lá haja princípios
cambiários próprios.

II - quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a
condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

201 CC, art. 348: “Na hipótese do inciso I do artigo antecedente, vigorará o disposto quanto à cessão do crédi-
to”.

289
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Mútuo é o empréstimo de coisa fungível. O principal exemplo é o empréstimo de dinheiro. Mutu-


ante é aquele que empresta. Na hipótese do inciso II, o terceiro empresta o dinheiro ao devedor, para
pagamento ao credor, sob a condição de sub-rogar-se nos direitos do credor originário.
Ex.: (Venosa) trata-se de prática comum dos bancos oficiais. Determinada classe de agricultores,
devendo milhões a bancos privados, recebem linha de crédito de banco oficial de desenvolvimento (CEF,
BNDES), aplicando taxas de juros menores, com a condição de sub-rogar-se nos direitos do banco credor
satisfeito.
Nesses casos, não se aplica o art. 348 do Código Civil.

5.3.4. Efeitos da sub-rogação (art. 349)

Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias
do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.

Nos termos do art. 349, a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios
e garantias do credor primitivo, contra o devedor e os seus fiadores. Ex.: caso o credor tenha como garan-
tias uma hipoteca e um relógio empenhado, o terceiro que paga a dívida sub-roga-se naqueles direitos de
garantia.
Quando a sub-rogação for legal, não há dúvidas acerca da aplicação do art. 349. Na convencional,
entretanto, pode ocorrer de as partes preverem no novo contrato celebrado o desaparecimento de alguma
das garantias. Portanto, no pagamento com sub-rogação convencional, em tese, eis que deriva da vonta-
de das próprias partes, é razoável concluir-se no sentido da mitigação do art. 349.

5.3.5. Limitação da cobrança na sub-rogação legal


O art. 350 do Código Civil, seguindo a linha do art. 593 do Código de Portugal, estabelece que a co-
brança é limitada ao valor efetivamente desembolsado:

Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor,
senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.

Assim, a regra estabelece que a sub-rogação legal não pode ter intuito oneroso ou especulativo,
sendo que a doutrina distuce se a sub-rogação convencional poderia. São duas correntes:
Flávio Tartuce entende que a resposta é negativa, pois, caso contrário, a sub-rogação ficaria com a
mesma feição da cessão de crédito, que tem natureza onerosa, ou seja, um intuito especulativo. A sub-
rogação, conforme a mais atenta doutrina, somente pode ter natureza gratuita.
Sub-rogação Cessão de crédito

Pagamento. Transmissão da obrigação.

Não há necessidade de notificação do devedor, em Há necessidade de notificação do devedor, sob pena de


regra.
ineficácia (CC, art. 290).
Exceção: CC, art. 347, I.

290
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Intuito não especulativo (gratuito). Pode ter intuito especulativo (gratuito ou oneroso).

Carlos Roberto Gonçalves por outro lado entende que na sub-rogação convencional, em que predomina
a autonomia da vontade por isso é possível o caráter especulativo, equiparando o instituto à cessão de crédito.

5.4. Dação em pagamento

5.4.1. Conceito
A dação em pagamento também é conhecida como datio in solutum, segundo lembra Antunes Va-
rela. Trata-se de uma forma de pagamento indireto, regulada a partir do art. 356 do CC, pela qual, na
mesma relação obrigacional, o credor aceita receber prestação diversa da que lhe é devida.
Assim, pela dação as partes convencionam a substituição da prestação por outra, mantendo-se os
demais elementos obrigacionais.
Na dação em pagamento os acessórios da dívida são mantidos (juros, cláusula penal e garantias).
Porém, há uma exceção, pois, a fiança é extinta por força do art. 838, III202.
Ex.: pagamento de determinada dívida em dinheiro por meio da entrega de um carro. Aceita a da-
ção em pagamento (o credor não está obrigado a fazê-lo), opera-se a extinção da relação jurídica obriga-
cional, com o adimplemento da dívida.
Há quem diga que a dação em pagamento deve ser sempre de coisa. Todavia, Pablo discorda dessa
posição. Para o autor, em 99,9% das vezes ela corresponderá à entrega de uma coisa, mas não há óbice na
entrega de uma prestação de fazer, como o pagamento através da realização de um curso, por exemplo.

5.4.2. datio in sulutum vs. dação pro solvendo


A dação em pagamento satisfaz de imediato do direito do credor. Todavia, não se pode confundir a
dação em pagamento ora tratada (datio in sulutum), que satisfaz efetivamente o direito do credor, com a
mera dação pro solvendo, também chamada dação por causa ou em função de pagamento, uma vez que
esta última figura não satisfaz imediatamente o credor, a exemplo da dação de um título de crédito (art.
358). O interesse do credor não restará ainda satisfeito, pois dependerá de cobrança posterior, por exem-
plo, do cheque:

Art. 358. Se for título de crédito a coisa dada em pagamento, a transferência importará em ces-
são.

Pablo considera inadequado dizer que seria hipótese de dação pro solvendo aquela em que o credor
que aceita cheque do próprio devedor, em vez de dinheiro. A depender do doutrinador, contudo, poderá
haver entendimento diverso, no sentido de que teria havido alteração da forma de pagamento.

202 CC, art. 838: “O fiador, ainda que solidário, ficará desobrigado:(...) III - se o credor, em pagamento da dí-

vida, aceitar amigavelmente do devedor objeto diverso do que este era obrigado a lhe dar, ainda que depois venha a
perdê-lo por evicção”.

291
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.4.3. Anuência do credor


Ressalte-se que, segundo o STJ, para a ocorrência da dação em pagamento, é indispensável a
anuência do credor203. Ela só é possível quando o credor aceita a prestação diversa da que lhe é devida.
A pessoa que deve alimentos pode dar um imóvel em pagamento? A rigor, a dação em pagamento
depende da anuência do credor. Todavia, há uma decisão do STJ admitindo a dação de um imóvel para
pagamento de pensão alimentícia, para beneficiar o paciente (HC 20.317/SP). Considerou o tribunal que
a regra da necessidade de aceitação poderia ser mitigada, no caso, por se tratar de uma situação em que a
liberdade está em jogo.

5.4.4. Evicção da coisa dada em pagamento


Evicção traduz a ideia de perda. A explicação vem da raiz latina evincere (ser vencido). Conceitu-
almente, ocorre a evicção quando o adquirente de um bem vem a perder a sua posse e propriedade em
virtude de ato judicial ou administrativo que reconhece direito anterior de outrem.
Em geral, na evicção existem três personagens: o alienante, o adquirente (a pessoa que perde a coi-
sa, também chamado de “evicto”) e o terceiro (a pessoa que prova o direito anterior sobre a coisa, tam-
bém chamado de “evictor”). Ex.: sujeito compra carro, que resta apreendido, por ser roubado. Existe o
direito anterior da pessoa roubada. O adquirente perde o carro em virtude do direito anterior de outra
pessoa.
A evicção será tratada mais adiante no curso, mas o que interessa aqui é a vinculação da evicção
com a dação em pagamento.
Nos termos do art. 359 do Código Civil, se o credor vier a perder a coisa recebida em pagamento,
restabelecer-se-á a obrigação inicial, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de tercei-
ros:

Art. 359. Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obrigação
primitiva, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros.

Exemplo: imagine que um contrato preveja a obrigação do devedor de entregar um carro. O deve-
dor, em vez de entregar o carro, propõe a entrega de um barco (dação em pagamento, em decorrência da
oferta de prestação diversa da devida). Aceito o pagamento por meio do barco, uma semana depois o cre-
dor perde o barco por evicção. Nesse caso, restabelecer-se-á a obrigação do devedor de entregar o carro.
Se o carro já estiver sido vendido a terceiro de boa-fé, a obrigação não mais poderá ser prestada,
razão pela qual se resolverá em perdas e danos.

203(...) Para configuração da dação em pagamento, exige-se uma obrigação previamente criada; um acordo pos-
terior, em que o credor concorda em aceitar coisa diversa daquela anteriormente contratada e, por fim, a entrega da
coisa distinta com a finalidade de extinguir a obrigação (STJ, REsp 1.138.993/SP, 3.ª Turma, Rel Min. Massami
Uyeda, j. 03.03.2011, DJe 16.03.2011).

292
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nos termos do art. 359, portanto, se o credor for evicto da coisa dada em pagamento, a obrigação
primitiva é restabelecida. No entanto, isso não será possível se houver prejuízo a terceiro de boa-fé, caso
em que o direito do credor resolverá em perdas e danos.

5.5. Novação (Art. 360 a 367, CC)

5.5.1. Noções gerais


Novação remete à noção de algo novo. Vem da raiz latina novatio, (que significa novo). Portanto, a
novação traduz a ideia de uma obrigação nova.
Segundo Flávio Tartuce é a forma de pagamento indireto em que as partes substituem uma obriga-
ção antiga por uma nova, pela substituição dos seus elementos.
A ideia básica é de que, diferentemente das outras formas de extinção por pagamento, na novação,
por meio de estipulação negocial, cria-se uma obrigação nova, destinada a substituir e extinguir a anteri-
or. Ex.: B obriga-se a pagar a A uma prestação de R$ 15.000,00, dia 29, mediante a constituição de uma
hipoteca. Nada impede que as partes criem obrigação nova, de natureza diversa (ex.: de fazer), no mesmo
valor, em data e com garantia diversas.
Para saber se houve ou não novação é preciso que se identifique se houve ou não a constituição de
uma obrigação nova, que substitua e liquide a anterior.
Na dação em pagamento, a relação obrigacional é a mesma. Na novação, as partes criam obrigação
nova. Ex.: o nome de B estava negativado em virtude de obrigação primitiva. O prazo prescricional estava
correndo, assim como os juros. Novada a dívida, o nome do devedor terá de sair do SPC/Serasa, os pra-
zos prescricionais recomeçam do zero, as datas de vencimento mudam etc. Por isso que as instituições
financeiras não gostam de realizar novação.
A doutrina consagrou, como verdadeiro dogma, a ideia de que a novação é sempre negocial, ou se-
ja, de que por meio de um novo negócio as partes criam uma obrigação nova, destinada a substituir e
extinguir a obrigação anterior. Assim, segundo a boa técnica, a novação deve ser sempre negocial.
Assim, a novação, em regra, gera a extinção de todos os elementos da obrigação anterior, inclusive
os seus acessórios (juros, cláusula penal, garantias e fiança - CC, arts. 364 e 366. Como exceção, é possí-
vel a novação parcial.
Todavia, o art. 59, caput, da Lei 11.101/2005 (Lei de Falências) estabelece uma forma anômala de
novação legal (imposta por lei). Trata-se de uma figura excepcional e já reconhecida pelo próprio STJ
(Ag. Rg. no CC 110.250/DF):

Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e
obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o dis-
posto no § 1o do art. 50 desta Lei. (...)

293
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A lei diz que o plano de recuperação judicial implica novação. É uma novação “enfiada goela abai-
xo” das partes. Portanto, por força de lei, são consideradas novadas as obrigações no plano de recupera-
ção judicial.

5.5.2. Requisitos da novação


A existência de uma novação exige a observância de determinados requisitos, que serão analisados
neste tópico.

5.5.2.1. Existência de uma obrigação anterior


Nova-se pressupondo a existência de uma obrigação anterior. Vale observar, todavia, nos termos
do art. 367, que se a obrigação primitiva for nula ou extinta, não poderá ser novada, mas se for simples-
mente anulável, poderá:

Art. 367. Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obriga-
ções nulas ou extintas.

A obrigação primitiva nula não pode ser novada porque a obrigação nula não pode ser convalidada.
Isso não ocorre com a anulável, que pode ser convalidada e, portanto, pode ser novada.
A obrigação natural é aquela juridicamente inexigível, embora contenha todos os elementos da
obrigação (ex.: obrigação prescrita, dívida de jogo). A doutrina divide-se quanto à possibilidade de novar
uma obrigação natural. Autores como Barros Monteiro e Clóvis Beviláqua são contra a ideia. Já Marcel
Planiol, Serpa Lopes, Silvio Rodrigues e Guilherme da Gama são favoráveis.
Para Pablo, a tese favorável é mais convincente, nos termos do § 1º do art. 814 do CC:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a
quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou
interdito.

§ 1o Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento,


novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro
de boa-fé. (...)

A dívida de jogo e de aposta é espécie de obrigação natural. A própria lei admite que se possa novar
a dívida de jogo, que nesse contexto é justamente uma obrigação natural. Trata-se, no entanto, de um
aspecto eminentemente teórico, não havendo manifestação jurisprudencial a respeito.

5.5.2.2. A criação de uma obrigação nova, substancialmente diversa da primeira


Para que haja novação, deve ficar demonstrado ter sido criada uma obrigação nova, com elemento
novo (aliquid novi). Isso não significa que na novação deve necessariamente ser alterado o objeto da
obrigação. As partes podem, por exemplo, novar uma obrigação anterior de dar dinheiro criando outra
de dar dinheiro.

294
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Orlando Gomes entende que não há novação quando as partes renegociam a mesma dívida, mu-
dando aspectos secundários da obrigação (ex.: abatimento de uma multa, redução de um juro, concessão
de um parcelamento, alteração do prazo ajustado etc.)
Para o autor, mudanças secundárias, como a redução de uma multa ou a concessão de um prazo
não traduzem necessária novação. Isso porque, para haver novação, é necessário que tenha sido criada
uma obrigação nova, um elemento novo, e não simplesmente que tenha havido a renegociação
da mesma dívida.
Com efeito, tecnicamente, quem renegocia a mesma dívida não está novando. As partes devem ce-
lebrar, tácita ou expressamente, um novo contrato. 90% das pessoas que renegociam cheque especial não
estão novando. Por isso que os bancos tendem a não retirar o nome dos órgãos de proteção ao crédito
enquanto o devedor está pagando o parcelamento.

5.5.2.3. Animus novandi (art. 361)

Para haver novação, é necessário que reste demonstrada a intenção que as partes tiveram de novar:

Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação
confirma simplesmente a primeira.

Diferentemente do que dispõe o art. 2.215 do Código Civil do México, a intenção de novar, no Bra-
sil, pode ser expressa ou tácita. O Código Mexicano exige que as partes, ao novarem, digam expressa-
mente que estão novando. No Brasil, é possível que o juiz identifique a novação da análise dos requisitos
do contrato.
Exemplos:
i. Novação com intenção de novar expresso: instrumento particular de novação.
ii. Simples concessão de moratória não implica em novação.
iii. Dar cheque em pagamento de duplicata não gera novação (não há ânimo de novar tácito).
iv. Trocar duplicatas por cheques gera novação, havendo ânimo de novar tácito.
Finalmente, assevera Flávio Tartuce que em casos de dúvidas, não há novação, pois essa deve ser
inequívoca.

5.5.3. Espécies de novação


Fundamentalmente, há três tipos de novação: objetiva, subjetiva ativa e subjetiva passiva.

5.5.3.1. Novação objetiva (art. 360, I)

Art. 360. Dá-se a novação:

I - quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior; (...)

295
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Eduardo Espínola chamava a novação objetiva de “novação real”. Trata-se da novação em que as
mesmas partes criam uma obrigação nova, destinada a substituir e extinguir a anterior. É a forma mais
comum de novação.

5.5.3.2. Novação subjetiva ativa (art. 360, III)

Art. 360. Dá-se a novação: (...)

II - quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor;

III - quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o de-
vedor quite com este.

A novação subjetiva poderá ser ativa, quando um novo credor sucede o antigo, considerando-se
criada uma obrigação nova, ou passiva, quando um novo devedor sucede o antigo considerando-se criada
uma obrigação nova.
Exemplo de novação subjetiva ativa: A deve R$ 5,00 a B, que deve R$ 5,00 a C. Se B simplesmente
determinar que A pague a C, haverá cessão de crédito. Se na questão de concurso contiver informação
segundo a qual, com o surgimento do novo credor, houve a criação de uma obrigação nova, ocorrerá no-
vação subjetiva ativa. A prova tem de dar o indicativo segundo o qual, com a saída do credor velho e a
entrada do novo, foi criada nova obrigação.

5.5.3.3. Novação subjetiva passiva (art. 360, II do CC)


O mesmo raciocínio aplica-se à novação subjetiva passiva. Todavia, neste caso, trocam-se os deve-
dores, considerando-se criada uma obrigação nova. Se o devedor cede o débito a um terceiro, com a
anuência do credor, sem que tenha havido a criação de uma nova obrigação, terá havido mera assunção
de dívida. Na novação subjetiva passiva, é necessário que saia o devedor antigo e entre o novo, com novos
prazos, condições etc. Assim, é muito mais interessante ao credor o instituto da assunção de dívida, pois
se mantêm os juros, os prazos, as condições antigas etc.
Na novação subjetiva passiva, mais uma vez é importante ressaltar, com o ingresso do novo deve-
dor considera-se criada obrigação nova.
Esta mudança de devedores pode se dar de duas maneiras: por delegação, em que todos os en-
volvidos ajustam o ato novatório ou, nos termos do art. 362, por expromissão204, caso em que o
antigo devedor sequer é ouvido:

Art. 362. A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independentemente de con-
sentimento deste.

204 O expromitente é aquele que entra sem ser convidado.

296
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A expromissão é um ato do credor. Ele ajusta com o terceiro, sem a participação do devedor, a cria-
ção de uma obrigação nova, que extingue a anterior. É algo como se o devedor fosse simplesmente expul-
so.
Os artigos 364 a 366 do CC trazem a regra geral e óbvia de que, com a novação, as garantias primi-
tivas, se não forem ressalvadas, cairão:

Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipu-
lação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a an-
ticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.

Art. 365. Operada a novação entre o credor e um dos devedores solidários, somente sobre os
bens do que contrair a nova obrigação subsistem as preferências e garantias do crédito novado.
Os outros devedores solidários ficam por esse fato exonerados.

Art. 366. Importa exoneração do fiador a novação feita sem seu consenso com o devedor princi-
pal.

Ex.: o sujeito refaz o parcelamento de uma dívida que tem com o Banco Bradesco. Nesse caso, co-
mo visto, não há novação. Todavia, se o banco celebra novo contrato, constituindo obrigação nova, há
novação.
De qualquer modo, tendo renegociado ou novado a mesma obrigação, caso permaneça uma cláusu-
la abusiva, o banco alegará que o correntista, tendo renegociado e mantido a cláusula abusiva, não pode-
rá voltar atrás, sob pena de violar o princípio que veda comportamentos contraditórios (venire contra
factum proprium). O STJ, entretanto, já assentou o entendimento no sentido de que, mesmo que tenha
havido renegociação ou até mesmo novação da obrigação, é possível a revisão do contrato e a impugna-
ção de cláusula abusiva (Ag. Rg. no Ag. 801.930/SC e Súmula 286), em respeito ao próprio princípio da
função social:

Súmula 286 - A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possi-
bilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores.

5.6. Compensação (arts 368 a 380, CC)

5.6.1. Noções gerais


A compensação é uma forma de extinção da obrigação em que as partes são, ao mesmo tempo, cre-
dora e devedora, uma da outra (art. 368 do CC):

Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obri-
gações extinguem-se, até onde se compensarem.

É uma forma de pagamento indireto, em que ocorre a extinção de dívidas mútuas ou recíprocas até
o ponto em que se encontrarem. Remete à ideia de economia processual, pois dispensa o ajuizamento de
duas demandas.

297
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na compensação, as duas partes são, reciprocamente, credora e devedora uma da outra. A compen-
sação pode ser integral ou parcial. As duas obrigações extinguem-se até onde se compensarem.
Entretanto, a compensação não poderá ser feita em prejuízo de terceiros de boa-fé. A boa-fé vence
a compensação, nos termos do Art., 380, CC.205

5.6.2. Classificação da compensação

5.6.2.1. Quanto à amplitude ou extensão

Quanto à amplitude ou extensão, a compensação pode ser:


i) total:
Ocorre compensação total quando há identidade total entre as dívidas que são extintas. Exemplo:
“A” e “B” são credores e devedores entre si de R$ 100,00. As dívidas serão, então, compensadas.
ii) parcial ou propriamente dita:
Na compensação parcial ou propriamente dita, não há identidade total entre as dívidas, sendo certo
que uma dívida é extinta e a outra é compensada (resta ainda parte de uma dívida, que é reduzida). A
grande questão é identificar a dívida que está sendo compensada.

5.6.2.2. Quanto à origem


Quanto à origem, há fundamentalmente três espécies de compensação: legal, convencional e judi-
cial:
i) compensação legal:
A compensação legal é aquela em que, reunidos os requisitos da lei, uma vez alegada pelo interes-
sado, deverá o juiz reconhecê-la. É a forma mais importante de compensação (arts. 368 a 370 do CC):

Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.

Art. 370. Embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, objeto das duas prestações, não se
compensarão, verificando-se que diferem na qualidade, quando especificada no contrato.

Em resumo, para que ocorra a compensação legal, são necessários os seguintes requisitos: recipro-
cidade de débitos; liquidez das dívidas, que devem ser certas quanto à existência e determinadas quanto
ao objeto e valor; exigibilidade atual das prestações, estando estas vencidas; e fungibilidade dos débitos,
havendo identidade entre a natureza das obrigações.
ii) compensação convencional (ou facultativa):
A compensação convencional é aquela que, segundo a autonomia privada, independe dos requisitos
da lei. Ocorre por acordo entre as partes, não havendo necessidade de se observar os requisitos

205 CC, art. 380: “Não se admite a compensação em prejuízo de direito de terceiro. O devedor que se torne

credor do seu credor, depois de penhorado o crédito deste, não pode opor ao exeqüente a compensação, de que
contra o próprio credor disporia”.

298
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

rígidos da compensação legal. É inclusive possível a compensação de dívidas ilíquidas (obviamente, as


dívidas devem ser lícitas).
Pode ainda ser afastada ou renunciada pelas partes, de modo que é perfeitamente possível a cláu-
sula de exclusão dessa forma de compensação, nos moldes do art. 375 do CC, desde que o contrato seja
civil e paritário.
iii) compensação judicial (ou processual):
A compensação judicial é aquela reconhecida pelo juiz no próprio processo. Entretanto, Flávio Tar-
tuce assevera que a compensação judicial pode ter origem legal ou no acordo entre as partes do processo
(convencional), o que até coloca em dúvida a necessidade dessa terceira categoria do instituto.
Em geral, a compensação não deve ser reconhecida de ofício pelo juiz, por ser uma defesa indireta
de mérito. Cabe ao interessado alegá-la. Ex.: “A” cobra R$ 1.000,00 de “B” que, citado, alega a compen-
sação na contestação, como preliminar de mérito.
A compensação judicial ou processual, todavia, nem sempre depende da alegação da parte. Isso
porque, num processo, é possível que as partes sejam, ao mesmo tempo, vencedor e vencido. É comum
haver compensação das custas (custas pro rata), em que as partes dividem honorários e despesas pro-
cessuais. Nessa hipótese, o juiz pode reconhecer a compensação de ofício.
Segundo entendimento do STJ, a compensação pode ser alegada em defesa em contestação.206

5.6.3. Requisitos da compensação legal


O tipo fundamental de compensação é a legal. São requisitos da compensação legal:

5.6.3.1. Reciprocidade das obrigações


Na compensação legal, as partes devem ser, ao mesmo tempo, credora e devedora uma da outra. É
um requisito claro e até óbvio.
Todavia, o art. 371 do CC, relativizando este requisito, admite que o fiador (que não é parte, e sim
um simples terceiro) alegue compensação de crédito do afiançado em sua defesa:

Art. 371. O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever; mas o fiador
pode compensar sua dívida com a de seu credor ao afiançado.

Ex.: o credor A tem um crédito de R$ 1.000,00 contra B, garantido por um fiador C. Se B não pa-
gar, A cobrará de C. Se C tiver um crédito próprio contra A, poderá opô-lo em compensação. Além disso,
se C descobrir que B tem um crédito contra A, poderá alegar essa compensação em seu favor.

206 Não é razoável exigir o ajuizamento de ação reconvencional para a análise de eventual compensação de
créditos, devendo-se prestigiar a utilidade, a celeridade e economia processuais, bem como obstar enriquecimento
sem causa” (STJ, REsp 1.524.730/MG, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 18.08.2015, DJe
25.08.2015).

299
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A compensação é uma exceção pessoal? O art. 371 fundamenta a ideia de que a compensação não é
exceção pessoal. Isso porque o fiador pode compensar a dívida em relação a um crédito do devedor (o
fiador pode compensar sua dívida com aquilo que o credor deve ao devedor principal).
Vale observar que, em homenagem à boa-fé objetiva (tu quoque207) o prazo de moratória não obsta
a compensação, nos termos do Art. 372, CC208.

5.6.3.2. Liquidez das dívidas


Para a compensação legal, as dívidas devem ser certas e determinadas.

5.6.3.3. Vencimento das obrigações recíprocas


Só pode haver compensação de dívidas recíprocas já vencidas, exigíveis. Se uma delas está a vencer
(vincenda), não pode haver compensação legal.

5.6.3.4. Homogeneidade das dívidas

Para que haja compensação legal, as dívidas devem ser da mesma natureza, nos termos do art. 370
do CC:

Art. 370. Embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, objeto das duas prestações, não se
compensarão, verificando-se que diferem na qualidade, quando especificada no contrato.

Ex.: dinheiro se compensa com dinheiro; gado nelore com gado nelore. Se a espécie da dívida vem
indicada, não pode a compensação ser realizada com prestações do mesmo gênero (ex.: gado nelore não
pode ser compensado com gado holandês; sacas de arroz tipo A não se compensam com sacas de arroz
tipo B; R$ 50.000,00 não se compensa com uma coleção de moedas raras; R$ 10.000,00 não se com-
pensa com um cavalo de raça do mesmo preço).
Se houver diferença na qualidade, não haverá compensação, conforme disciplina o art. 370 do CC.

5.6.3.5. Coisas fungíveis


A compensação deve ocorrer entre coisas fungíveis, ou seja, substituíveis.
Preenchidos esses cinco requisitos, o juiz deve reconhecer a compensação, desde que alegada em
defesa. Na chamada compensação convencional, que depende de acordo de vontades e é facultativa, po-
derão ser afastados os requisitos acima. Portanto, segundo Pablo, nada impede que as partes, por meio
de acordo de vontades, afastem os requisitos da lei para, por exemplo, compensar dinheiro com soja ou
café com chocolate (é a denominada compensação convencional).
Vale lembrar a revogação do art. 374 pela Lei 10.677/2003:

207 Essa faceta da boa-fé objetiva visa impedir que o infrator de uma norma ou obrigação almeje valer-se pos-
teriormente da mesma norma ou obrigação antes transgredida para exercer um direito ou pretensão. Em resumo
veda que a pessoa crie uma situação para que após possa tirar proveito.
208 CC, art. 372: “Os prazos de favor, embora consagrados pelo uso geral, não obstam a compensação”.

300
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 374. A matéria da compensação, no que concerne às dívidas fiscais e parafiscais, é regida
pelo disposto neste capítulo. (Revogado pela Lei nº 10.677, de 22.5.2003)

Pablo sempre interpretou o art. 374 no sentido de que ele não seria um salvo-conduto para a com-
pensação de dívidas fiscais e parafiscais, mas dependeria de lei específica autorizando a compensação.
Para o autor, o dispositivo funcionava como mecanismo que permitia aplicação subsidiária das regras da
compensação às dívidas fiscais. O governo, entretanto, com medo de que justificasse compensação dire-
ta, houve por bem revogar o dispositivo.
Perdeu a importância de outrora o Enunciado nº 19, da I Jornada de Direito Civil:

Enunciado nº 19 - Art. 374: A matéria da compensação no que concerne às dívidas fiscais e para-
fiscais de estados, do Distrito Federal e de municípios não é regida pelo art. 374 do Código Civil.

5.6.4. Causa dos débitos recíprocos


Em regra, a causa dos débitos recíprocos não importa para a compensação, com as exceções do art.
373 do Código Civil:
i) dívidas provenientes de esbulho, furto ou roubo:

Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto:

I - se provier de esbulho, furto ou roubo;

Não pode haver compensação se qualquer das dívidas provier de esbulho, furto ou roubo. Uma das
partes tem de indenizar a outra por conta do crime cometido.
ii) dívida originada de comodato, depósito ou alimentos:

Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto: (...)

II - se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;

Comodato é empréstimo de coisa infungível. Ex.: sujeito empresta o apartamento e pede o imóvel
de volta. O comodatário não pode recusar-se a devolver o bem alegando a compensação. O dono do esta-
cionamento não pode ficar com o carro lá estacionado por ser credor do dono do carro. Dívida de alimen-
tos também não é passível de compensação. O mesmo ocorre com o contrato de depósito, pois são con-
tratos personalíssimos.
A despeito de a dívida alimentícia, por sua natureza, não admitir compensação, o STJ já aceitou a
tese em circunstância especial (REsp 982.857/RJ). No caso, foi admitida a flexibilização da regra no caso
em que o alimentante pagara IPTU e condomínio do imóvel em que residiam a mãe e o alimentado. Para
que eles não fossem despejados, o alimentante pagou as dívidas e a compensação foi admitida.
iii) coisas impenhoráveis:

Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto: (...)

III - se uma for de coisa não suscetível de penhora.

301
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo de coisa não suscetível de penhora é o salário. O empregador não pode reter o salário do
trabalhador alegando possuir crédito contra ele (salvo norma específica da legislação trabalhista). O ban-
co não pode bloquear dinheiro oriundo de salário alegando compensação.
No Ag Rg. no Ag. 353.291/RS, firmou-se a impossibilidade de bloqueio automático de crédito sala-
rial a título de compensação.

5.6.5. Exclusão ou renúncia à compensação


O art. 375 prevê que as partes podem excluir ou renunciar à compensação:

Art. 375. Não haverá compensação quando as partes, por mútuo acordo, a excluírem, ou no caso
de renúncia prévia de uma delas.

São exceções a essa regra:


i) contratos de consumo (art. 51 do CDC):

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao forneci-
mento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qual-


quer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas re-
lações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser
limitada, em situações justificáveis. (...)

ii) contratos de adesão (aqueles com conteúdo imposto), segundo o art. 424 do CC:

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada
do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

5.7. Confusão obrigacional (Arts. 381 a 384, CC)

5.7.1. Conceito
Confusão obrigacional é uma forma de pagamento indireto em que, por ato inter vivos ou mortis
causa, confundem-se na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor:

Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de
credor e devedor.

Não se deve confundir a compensação com a confusão, uma vez que na confusão as qualidades de
credor e devedor reúnem-se na mesma pessoa. Ex.: sujeito é devedor do tio. Com o falecimento do tio,
em sendo o sobrinho o único herdeiro, ele se torna credor dele mesmo. Na compensação, diferentemen-
te, há duas partes.
O exemplo clássico de confusão que envolve evento mortis causa: imagine-se que o filho deve ao
pai um milhão de reais, sendo seu único sucessor. O pai morre. Nesse caso, a dívida é extinta por confu-
são. Agora o filho será credor e devedor da obrigação ao mesmo tempo.

302
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: a empresa “A” deve dois milhões para a empresa “B”. A empresa “A”, posteriormente, adquire
a empresa “B”. Ocorre, também neste caso, a confusão e a consequente extinção da dívida.
Obs.: A confusão obrigacional que não se confunde com a confusão real (mistura de líquidos que
gera a aquisição da propriedade – CC, art. 1.272209).

5.7.2. Classificação da confusão quanto à amplitude ou extensão


Pelo art. 382 do Código Civil, a confusão pode verificar-se a respeito de toda a dívida, ou só de par-
te dela. No primeiro caso haverá confusão total ou própria, com a extinção da totalidade da dívida. No
segundo, haverá a confusão parcial ou imprópria.
Assim, quanto à quanto à amplitude ou extensão, a confusão pode ser:
i) total ou própria:
Confusão total ou própria é aquela em que a dívida é totalmente extinta. Os dois casos acima são
exemplos de confusão própria:

Art. 382. A confusão pode verificar-se a respeito de toda a dívida, ou só de parte dela.

ii) parcial ou imprópria:


Como o próprio nome diz, na confusão parcial ou imprópria a dívida é parcialmente extinta, como
ocorre no caso de solidariedade (art. 383 do CC):

Art. 383. A confusão operada na pessoa do credor ou devedor solidário só extingue a obrigação
até a concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a so-
lidariedade.

Imagine que o pai de um sujeito e seu tio são credores solidários. O devedor é o filho ou sobrinho. A
dívida é de um milhão de reais. O filho é o único sucessor do pai, que morre. A confusão na solidariedade
ocorrerá somente em parte. Assim, o tio poderá cobrar 500 mil do sobrinho. Na solidariedade, portanto,
opera-se uma confusão parcial.
Cessando a causa da confusão, a obrigação é restabelecida, com todos os seus acessórios (art. 384
do CC):

Art. 384. Cessando a confusão, para logo se restabelece, com todos os seus acessórios, a obriga-
ção anterior.

O fenômeno pode acontecer, por exemplo, no caso de abertura da sucessão provisória em razão da
declaração de ausência e posterior aparecimento do presumidamente morto, no caso de renúncia da he-
rança ou, ainda, em caso de anulação de testamento já cumprido, que conferiu ao devedor direitos here-
ditários, confundindo-se, nesse mesmo devedor, o direito ao crédito e o onus debitoris. Nestas hipóteses,

209CC, art. 1.272: “As coisas pertencentes a diversos donos, confundidas, misturadas ou adjuntadas sem o
consentimento deles, continuam a pertencer-lhes, sendo possível separá-las sem deterioração”.

303
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

não se pode falar que a confusão efetivamente extinguiu a obrigação, mas que somente a neutralizou ou
paralisou até ser restabelecida por um fato novo.
No tocante à prescrição, deve-se entender que ela não corre nesses casos presente uma condição
suspensiva, nos moldes do art. 199, inciso I, do CC. Em reforço, o próprio art. 384 consagra que a obriga-
ção se restabelece, sem fazer qualquer ressalva.

5.8. Remissão de dívida (Arts. 385 a 388, CC)

5.8.1. Conceito
A remissão é o perdão da dívida:

Art. 385. A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de
terceiro.

Qual a diferença, para o direito civil, entre remissão e remição? Remissão é perdão. Remição, no
direito civil (não no direito penal210), é o resgate da coisa pelo pagamento. Na parte do CC que trata da
hipoteca, o legislador faz menção à “remissão” quando queria dizer “remição”.
No CC/02, remissão passou a ser um negócio jurídico bilateral, pois deve ser aceita pelo devedor.
Tal aceitação é obrigatória.

5.8.2. Classificações da remissão

5.8.2.1. Quanto à amplitude

Quanto à amplitude, a remissão pode ser:


i) total:
Na remissão total, toda a dívida é perdoada.
ii) parcial:
Aqui, apenas parte da dívida é perdoada. Um exemplo de remissão parcial é a solidariedade (art.
388 do CC):

Art. 388. A remissão concedida a um dos codevedores extingue a dívida na parte a ele corres-
pondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não
pode cobrar o débito sem dedução da parte remitida.

5.8.2.2. Quanto à forma

Quanto à forma, a remissão pode ser:


i) expressa:
Na remissão expressa, é confeccionado um documento, instrumento.

210 Remição é o desconto a pena pelo trabalho do preso.

304
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) tácita:
Na remissão tácita, não há instrumento. Ex.: devolução voluntária de instrumento particular do
credor ao devedor, que importa em remissão da dívida (art. 386):

Art. 386. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova de-
soneração do devedor e seus coobrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de
adquirir.

Note que a devolução de objeto empenhado (oferecido em penhor) não gera remissão, mas apenas
renúncia ao penhor (art. 387 do CC). Ex.: a CEF devolve a joia que fora emprenhada. A dívida não é per-
doada, há apenas renúncia à garantia:

Art. 387. A restituição voluntária do objeto empenhado prova a renúncia do credor à garantia
real, não a extinção da dívida.

Observação final: a transação e o compromisso não são tratados pela teoria geral das obrigações
no Código de 2002 como ocorria na Ordem de 16. Passaram a ser tratados como contratos que geram a
extinção da obrigação: a) Transação (CC, arts. 840 a 850): é o contrato que gera a extinção da obrigação
concessões mútuas ou recíprocas; b) Compromisso (CC, art. 851 a 853): é o contrato que conduz à arbi-
tragem.

6. Teoria do inadimplemento (Arts. 389 a 420, CC)


Clóvis do Couto e Silva, na obra “Obrigação como um processo”, lembra que a relação obrigacional
é dinâmica, podendo desembocar no adimplemento (pagamento), no inadimplemento absoluto ou no
inadimplemento relativo da obrigação.
Assim, inadimplemento é o descumprimento da obrigação e na visão clássica, que remonta ao Di-
reito Romano, existem duas modalidades de inadimplemento que tanto pode ser absoluto como relativo.
Desde já, cabe observar que a doutrina contemporânea apresenta uma terceira modalidade de ina-
dimplemento, que é a violação positiva da obrigação ou do contrato, doutrina desenvolvida na Alema-
nha, por Staub211, em 1903.
Trata-se da quebra de um dos deveres anexos à boa-fé objetiva, em qualquer das fases contratuais
(pré-contratual, contratual ou pós-contratual). Esses deveres anexos são aqueles ínsitos a quaisquer ne-
gócios. São exemplos: dever de lealdade, de informar a outra parte, dever de transparência, dever de con-
fiança, dever de colaboração com a outra parte, dever de agir honestamente etc.

211Nas palavras de Jorge Ferreira da Silva“Para Staub, tanto o inadimplemento absoluto quanto a mora cor-
respondiam a violações negativas do crédito: no primeiro, a prestação não é realizada, no segundo, a prestação não
é realizada no momento adequado. Já as hipóteses por ele elencadas acarretariam descumprimento obrigacional
exatamente porque a prestação foi realizada. Por isso, para diferenciar esses casos dos anteriores, entendeu chamar
essas hipóteses de violações positivas do contrato.”.

305
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O Enunciado 24 da I Jornada prevê que a violação positiva do contrato é uma terceira modalidade
de inadimplemento, gerando responsabilidade objetiva (independentemente de culpa), por se aplicar
tanto à fase pré como pós-contratual.

Enunciado 24 – Art. 422: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Có-
digo Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independente-
mente de culpa.

Existem julgados nesse sentido do STJ212, prevendo que após acordo ou pagamento da dívida o
credor tem o dever de retirar o nome do devedor de cadastro de inadimplentes, sob pena de responsabi-
lidade pós-contratual. Se o credor não retira o nome do devedor do cadastro, não está agindo de acordo
com o dever de lealdade e colaboração (deveres anexos). Este tema já foi perguntado em concursos fede-
rais.

6.1. Inadimplemento absoluto (Arts. 389 a 393, CC)

O inadimplemento absoluto traduz o descumprimento total da obrigação, podendo ser fortuito (art.
393 do CC) ou culposo (art. 389 do CC).
No inadimplemento absoluto culposo, a obrigação poderá ser resolvida em perdas e danos, tema
especialmente desenvolvido na teoria do contrato:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atua-
lização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advoga-
do.

Quando o inadimplemento é fortuito, a obrigação se resolverá, mas não haverá perdas e danos (não
há o que indenizar):

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos
não era possível evitar ou impedir.

Por ocasião do estudo da responsabilidade civil, serão analisadas não apenas as noções de caso for-
tuito e de força maior, como peculiares situações de descumprimento fortuito da obrigação em que ine-
xiste o dever de indenizar (é o caso do assalto a mão armada em ônibus, por exemplo, como decidiu o
STJ, no REsp 402.227/RJ).

212 O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. – A

violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa.”
(STJ, REsp 595.631/SC, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.06.2004, DJ 02.08.2004, p. 391).

306
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Quando há inadimplemento absoluto, haverá reponsabilidade civil contratual. Em regra, essa res-
ponsabilidade depende de culpa (é subjetiva), entretanto, mesmo presente a responsabilidade culposa do
devedor, a doutrina majoritária sustenta a inversão do ônus da prova a favor do credor, se for comprova-
da a violação do dever contratual:

Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato
aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma
das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.

Tartuce considera que, em regra, é necessária culpa em relação aos contratos gratuitos e onerosos.
No comodato, todavia, o comodatário responde por simples culpa e o comodante por dolo, conforme
prevê o art. 392 do CC.
Uma exceção, em que a responsabilidade contratual será objetiva, verifica-se no contrato de trans-
porte, pois há uma obrigação de resultado em relação ao transportador.
A ideia é confirmada pelo art. 393 do CC, já estudado, segundo o qual, em regra, a parte contratual
não responde por caso fortuito e força maior.
Na doutrina de Cavalieri Filho, seguida por Flávio Tartuce o caso fortuito é o evento totalmente
imprevisível, já a força maior é o evento previsível, mas inevitável.
As consequências do inadimplemento absoluto estão previstas nos arts. 389 e 391 do CC. A parte
inadimplente responde por: i) perdas e danos (todos os prejuízos suportados); ii) correção monetária; iii)
juros; iv) multa, se houver previsão no contrato ou na lei; e v) honorários de advogado.
Há, ainda, como consequência, a responsabilidade patrimonial. Isto é, os bens do devedor respon-
dem pela dívida (art. 391):

Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

O dispositivo diz que todos os bens do devedor respondem pelo inadimplemento das obrigações.
Todavia, há uma imprecisão técnica, pois há bens protegidos pela impenhorabilidade.
A tendência é que os honorários de advogado a que se refere o art. 389 sejam os contratuais e não
os de sucumbência (tese adotada por Maria Helena Diniz e pelo STJ). Tartuce concorda com essa ideia. O
Enunciado 425 da V Jornada de Direito Civil adotou-a, em parte, ainda que a parte final tenha ficado um
pouco sem sentido:

Enunciado 425 - Art. 389. Os honorários advocatícios previstos no art. 389 do Código Civil não
se confundem com as verbas de sucumbência, que, por força do art. 23 da Lei n. 8.906/1994,
pertencem ao advogado.

6.2. Inadimplemento relativo (Arts. 394 a 401, CC)

307
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ao lado do absoluto, há o inadimplemento relativo da obrigação, caracterizado pelo instituto da


mora. Quando se fala em mora, a primeira coisa que vem à cabeça é atraso do pagamento pelo devedor.
Todavia, a mora pode também ser do credor.
Ocorre a mora, que tanto pode ser do devedor como do credor, quando o pagamento não é feito no
tempo, lugar ou forma convencionados (art. 394 do Código Civil). É bem verdade que em 95% das vezes a
mora será do devedor:

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não qui-
ser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

Cuidado: Mora não é somente o atraso temporal, pois pela redação do art. 394 existem três crité-
rios para a mora: i) tempo, ii) lugar e iii) forma de cumprimento.
Veja que, no caso do direito brasileiro, a mora engloba o cumprimento inexato ou imperfeito da
obrigação, que envolve forma de cumprimento. Ex.: vícios redibitórios, vícios do produto ou do serviço
(em relações consumeristas).
Isso porque, segundo Flávio Tartuce, nos termos do art. 394 do CC, a mora está configurada quan-
do houver um cumprimento parcial não somente em relação ao tempo, mas também quanto ao lugar e à
forma de cumprimento. Em conclusão, o cumprimento inexato, pelo Código Civil brasileiro, é espécie de
mora.

6.2.1. Mora do credor

6.2.1.1. Conceito

A mora do credor, também chamada de mora credendi ou accipiendi, ocorre quando, sem motivo
justificado, ele se recusa a receber o pagamento, nos termos da lei, ou se recusa injustificadamente a emi-
tir a quitação. Em ambos os casos, o pagamento deverá ser feito pela via da consignação.
O art. 813 do Código Civil português disciplina a mora do credor. Não há dispositivo semelhante no
CC/2002:

Mora do credor

Artigo 813º (Requisitos)

O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é ofe-
recida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.

Silvio Rodrigues lembra que a mora do credor independe da investigação de sua culpa. Basta a re-
cusa injustificada, para que reste caracterizada.

6.2.1.2. Efeitos

308
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 400 do Código Civil estabelece quais são os efeitos da mora do credor213:

Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conserva-
ção da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a
recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabeleci-
do para o pagamento e o da sua efetivação.

Ex.1: se o devedor de um cavalo vai à fazenda do credor, em determinada data contratada, e o cre-
dor recusa-se injustificadamente a recebê-lo, o devedor fica isento da responsabilidade pela conservação
do animal. Logicamente, o devedor não poderá matá-lo ou largá-lo na rua. Deverá consigná-lo.
Ex.2: se o devedor teve gastos de ração com o animal, o credor deverá ressarci-lo das despesas.
Ex. 3: o devedor obriga-se à entrega de uma cabeça de gado nelore, em 10 de junho. De acordo com
o ajuste, o credor pagaria o valor do animal pela arroba do dia. No dia da entrega, o animal é pesado, e
estava com 15 arrobas, sendo que a cotação da arroba, no dia, era de R$ 20,00. O credor pagaria R$
300,00 pelo boi. O credor recusa-se a receber o animal injustificadamente, entrando em mora. No dia do
recebimento (20 de junho), quando o credor recebe o animal, se a cotação do dia era R$ 30,00, ele paga-
rá o valor maior. Para Pablo, inclusive, se o valor maior se deu no interregno entre o vencimento e a en-
trega (ex.: dia 18 de junho), deverá pagá-lo pelo valor maior, pois o animal estava à disposição do credor
para recebê-lo.
Em resumo, os três efeitos da mora “accipiendi”:
a) O devedor só responde por dolo se a coisa se perder.
b) O credor deve ressarcir o devedor pelas despesas de conservação da coisa.
c) Se o valor da coisa oscilar, o credor é obrigado a recebê-la da maneira mais vantajosa ao de-
vedor.
d) O Art. 334 ainda prevê o direito à consignação.
6.2.2. Mora do devedor

6.2.2.1. Conceito

A mora do devedor é também chamada de mora debendi, debitoris ou solvendi. Ela se dá, em li-
nhas gerais, ocorre, em regra, quando o devedor culposamente retarda (Art. 396, CC)214 o cum-
primento da obrigação, ainda viável para o credor.
A mora solvendi comporta uma importante sub-divisão em:
a) Mora “ex re” ou automática (CC, art. 397, “caput”): típica da obrigação positiva (de dar ou
fazer), líquida (certa quanto à existência e determinada quanto ao valor) e com data fixada para

213 É importante memorizá-lo.


214 CC, art. 396: “Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.

309
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o adimplemento, independe de notificação do devedor pelo credor, aplicando- se a máxima “di-


es interpellat pro homine” (o dia do vencimento interpela a pessoa).
Ocorre na hipótese de obrigação positiva e líquida no seu termo final ou vencimento.
b) Mora “ex persona” ou pendente (CC, art. 397, parágrafo único): fica caracterizada se não
houver estipulação de termo final para a execução da obrigação assumida e depende de notifi-
cação do devedor pelo credor (judicial ou extrajudicial).
Ocorre na hipótese de obrigação positiva e líquida, mas sem termo final. Exemplo: contrato com
prazo interminado.
c) Mora presumida ou irregular (CC, art. 398): nos casos de atos ilícitos (responsabilidade
civil extracontratual) considera-se o devedor em mora desde a prática do ato.

6.2.2.2. Requisitos
Na linha do pensamento de Clóvis Bevilaqua, a mora do devedor teria os seguintes elementos (ou
requisitos):
i) existência de uma dívida líquida e certa:
Se a dívida é ilíquida, ainda não há mora.
ii) vencimento da dívida:
Para que haja a mora do devedor, a dívida deve ser exigível.
Quando a dívida tem vencimento certo, salvo eventual disposição legal em contrário, a mora é au-
tomática (não é necessária nenhuma comunicação do credor ao devedor), pois o próprio dia do venci-
mento interpela pelo credor (dies interpellat pro homine). Nesse caso, fala-se em mora ex re (art. 397,
caput):

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno di-
reito em mora o devedor. (...)

Caso o credor precise comunicar ao devedor a sua mora, especialmente na hipótese de não haver
sido ajustado termo de vencimento, a mora passa a se denominar ex persona (art. 397, parágrafo único):

Art. 397 (...) Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação ju-
dicial ou extrajudicial.

No descumprimento de obrigação garantida por meio da alienação fiduciária em garantia, a lei exi-
ge que se junte na petição inicial a notificação do banco ao devedor. Hoje, em toda ação de busca e apre-
ensão o banco junta aquela notificação para que o juiz conceda a liminar. Isso leva a crer que se trataria
de uma mora ex persona. Todavia, o STJ já firmou entendimento no sentido de que, em sede de aliena-
ção fiduciária, a mora do devedor é automática, ou seja, ex re, de maneira que a notificação por ele rece-
bida é apenas comprobatória da mora que já existia (Ag. Rg. 997.534/GO e REsp 1.041.543/RS).
iii) culpa do devedor:

310
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A mora do devedor pressupõe um fato a ele imputável (art. 396 do CC):

Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.

Ex.: se no dia do vencimento o banco tiver um problema no sistema, o devedor não estará em mo-
ra. Evidentemente que deverá haver a análise do caso concreto.
iv) a viabilidade do cumprimento tardio da obrigação:
Se, em virtude da mora, não há mais interesse objetivamente útil do credor no cumprimento da
obrigação, tecnicamente não houve simplesmente “mora”, mas inadimplemento total da obrigação, a ser
resolvido em perdas e danos (sem prejuízo, é claro, de eventual tutela específica).
Ex.: no dia seguinte à data marcada para a realização da festa de formatura, a empresa contratada
para organizar o evento não está simplesmente em mora, pois não há mais viabilidade no cumprimento
da obrigação. Para se diagnosticar se ainda há interesse para o credor, é importante tomar como referên-
cia o parágrafo único do art. 395 e o enunciado 162 da III Jornada de Direito Civil. Ou seja, há de se in-
vestigar se há interesse objetivamente útil ao credor:

Art. 395. (...) Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este po-
derá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

Enunciado nº 162 - Art. 395: A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por
parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manuten-
ção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor. [Sinalagma é a
ideia pela qual, num contrato, a prestação de uma parte é causa da prestação da
outra parte. Ele marca a correspectividade e, de certa forma, um equilíbrio.]

Como exemplo de filtro para a conversão proposta pelo Enunciado, é teoria do adimplemento subs-
tancial, já tratada acima, cuja previsa se da no sentido de se o contrato for quase todo cumprido, sendo a
mora insignificante, não caberá sua extinção, mas apenas outros efeitos como a cobrança.215

6.2.2.3. Efeitos
Fundamentalmente, nos termos do art. 395 e 399 do CC, a mora do devedor acarreta dois efeitos:
i) responsabilidade civil pelo prejuízo causado ao credor durante a mora:

Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização
dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de ad-
vogado. (...)

Quando purga a mora (paga a dívida tardiamente), o devedor poderá ser compelido a pagar multa
(cláusula penal moratória) e juros moratórios.

215 O tema voltará a ser tratado em Contratos.

311
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: Purgação da mora (Art. 401,CC): purgação ou emenda da mora, significa afastar os efeitos
decorrentes do inadimplemento parcial, principalmente do atraso no cumprimento. Nos termos do art.
401 do CC, a purgação da mora pode se dar de duas formas:
a) Por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes
do dia da oferta;
b) Por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da
mora até a mesma data.
Flávio Tartuce assevera que se houver uma regra especial de pagamento ou pagamento indireto es-
tará presente a cessação da mora.
ii) perpetuatio obligationis:

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impos-
sibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo
se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportuna-
mente desempenhada.

A pertetuatio obligationis consiste na responsabilidade do devedor pela integridade da coisa devi-


da, ainda que se trate de caso fortuito ou força maior.
Ex.: no dia do vencimento, o devedor não entrega a vaca. No dia seguinte, a vaca morre. O devedor
responde, ainda que a vaca morra em decorrência de caso fortuito ou força maior.
Caso a prestação se impossibilite durante o atraso, o devedor em mora somente poderá alegar em
sua defesa: isenção de culpa na mora (ex.: quis pagar no vencimento, mas o credor não apareceu – tecni-
camente, o devedor aqui sequer está em mora) e que o dano sobreviria ainda que a obrigação tivesse sido
oportunamente cumprida (ex.: poderá o devedor provar que a mesma enchente que matou o animal ma-
tou também todos os animais da fazenda do credor).

6.2.3. Moras simultâneas do credor e do devedor


É possível que numa mesma relação obrigacional haja, ao mesmo tempo, mora do credor e do de-
vedor?
Pablo considera possível que haja, em momentos diferentes, mora do devedor e do credor. Ex.: o
devedor atrasa quatro dias o pagamento, e quando vai fazê-lo, o credor recusa-se injustificadamente a
receber a dívida, recebendo somente 5 dias depois.
Havendo mora simultânea (do credor e do devedor), segundo Washington de Barros Monteiro, elas
se compensam, ficando tudo como está (ou seja, ninguém indeniza ninguém).

312
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.3. Cláusula penal216 (Arts. 408 a 416, CC)

6.3.1. Conceito e espécies


A cláusula penal, também chamada de “pena convencional”, consiste em um pacto acessório pelo
qual as partes fixam previamente a indenização devida em caso de descumprimento total da obrigação
(cláusula penal compensatória) ou, ainda, em caso de descumprimento de determinada cláusula do con-
trato ou de mora (cláusula penal moratória).
Segundo Flávio Tartuce trata-se da penalidade instituída por lei ou pela vontade das partes para os
casos de inadimplemento absoluto ou relativo da obrigação.

Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe
de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

Costuma-se chamar a cláusula penal de multa. Pablo não gosta dessa expressão. O termo técnico é
cláusula penal, moratória ou compensatória. A multa tem uma função precípua (primitiva), que é a puni-
ção (sanção). A cláusula penal tem por função principal indenizar. A cláusula penal compensatória é a
modalidade de cláusula penal mais importante.

Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode
referir-se à inexecução completa da obrigação [compensatória], à de alguma cláusula especial
ou simplesmente à mora [moratória].

A cláusula penal prevista para o caso de inexecução total da obrigação é a compensatória. A previs-
ta apenas para o caso de mora ou de inexecução de uma cláusula específica do contrato é comumente
chamada pela doutrina de cláusula penal moratória.

6.3.2. Modalidades da cláusula penal

6.3.2.1. Quanto à origem


a) Legal:
b) Convencional:

6.3.2.2. Quanto ao inadimplemento

a) Compensatória: quando estipulada para a hipótese de total inadimplemento da obrigação (art.


410);
b) Moratória: quando destinada a assegurar o cumprimento de outra cláusula determinada ou a
evitar o retardamento, a mora (art. 411).

216 Sobre a cláusula penal, recomenda-se a leitura dos Enunciados 355 a 359 da IV Jornada de Direito Civil e
o artigo escrito por Pablo, juntamente com Salomão Viana, sobre a Súmula 381 do STJ.

313
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.3.3. Natureza jurídica


Nas lições de Flávio Tartuce cláusula penal tem natureza de um pacto secundário e acessório, pois
sua existência e eficácia dependem da obrigação principal (arts. 409, 411 e 413, CC).
Assim, a multa não pode existir sozinha, não pode ser superior à obrigação principal (CC, art.
412) e tudo o que ocorre na obrigação principal repercute na multa.
Tem ainda natureza sancionatória e punitiva, de modo que visa ao cumprimento da obrigação prin-
cipal, servindo de pena nos casos de inadimplemento, em regra (Art. 408, CC), exige culpa do devedor.
Finalmente, funciona ainda como antecipação das perdas e danos. Por isso, em regra, para se exigir
a multa não é necessário alegar e provar o prejuízo (Art. 416, CC).

6.3.4. Efeitos da cláusula penal


a) Cláusula penal compensatória — dispõe o art. 410 do Código Civil:

“Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta
converter-se-á em alternativa a benefício do credor.”.

Assim, em regra, não cabe cumulação, se isso não foi convencionado. Se o tiver sido, a multa vale
como mínimo de indenização devendo a parte provar o prejuízo excedente (CC, art. 416, parágrafo úni-
co). A alternativa que se abre para o credor é:
i. Pleitear a pena compensatória, correspondente à fixação antecipada dos eventuais prejuí-
zos;
ii. Postular o ressarcimento das perdas e danos, arcando com o ônus de provar o prejuízo; ou
iii. Exigir o cumprimento da prestação.
Não pode haver cumulação porque, em qualquer desses casos, o credor obtém integral ressarci-
mento sem que ocorra o bis in idem.
A expressão “a benefício do credor” significa que a escolha de uma das alternativas compete ao cre-
dor, e não ao devedor. Não pode este dizer que prefere pagar o valor da cláusula penal a cumprir a pres-
tação. Quem escolhe a solução é aquele, que pode optar por esta última, se o desejar.
b) Cláusula penal moratória — entretanto, quando a cláusula penal for moratória, terá aplicação o
art. 411 do Código Civil, que prescreve:

“Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra
cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, junta-
mente com o desempenho da obrigação principal.”

Como, neste caso, o valor da pena convencional costuma ser reduzido, o credor pode cobrá-la cu-
mulativamente com a prestação não satisfeita. É bastante comum devedores atrasarem o pagamento de
determinada prestação e serem posteriormente cobrados pelo credor, que exige o valor da multa contra-
tual (em geral, no montante de 10 ou 20% do valor cobrado) mais o da prestação não paga.

314
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce entende que por tal comando, no caso de multa moratória, haverá uma faculdade
cumulativa ou conjuntiva a favor do credor: exigir a multa e (+) a obrigação principal.

6.3.5. Cláusula penal e o prejuízo do credor


Conforme já visto, a cláusula penal antecipa o valor da indenização pelo descumprimento da obri-
gação. Ela, de certa forma, representa um mecanismo de economia processual (evitando que o credor
ingresse com uma ação de cobrança).
A cláusula penal compensatória é mais robusta e abrangente, porque diz respeito ao descumpri-
mento da própria obrigação principal. O art. 410 do Código Civil, na linha do art. 1152 do Código da Es-
panha e de jurisprudência do próprio STJ (Ag. Rg. no Ag. 788.124/MS), aponta no sentido de não se po-
der cumular a execução da cláusula penal compensatória e pedido indenizatório autônomo:

Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obriga-
ção, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.

Por óbvio, a escolha entre uma ou outra figura é uma faculdade conferida ao credor. O dispositivo,
que traz uma ideia óbvia, busca evitar o enriquecimento sem causa do credor, evitando que haja bis in
idem em seu favor.
Se o valor da cláusula penal compensatória for inferior ao do prejuízo, o credor pode exigir indeni-
zação suplementar? O parágrafo único do art. 416 admite expressamente a indenização suplementar, se
tal possibilidade houver sido prevista no próprio contrato:

Art. 416 (...) Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não po-
de o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a
pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Sob pena de enriquecimento sem causa, nos termos do art. 412, a cláusula penal não pode exceder
o valor da obrigação principal:

Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação prin-
cipal.

Se a cláusula penal tem a função de, antecipadamente, apurar o valor da obrigação em caso de uma
prestação descumprida, ela não pode estipular indenização superior ao da prestação, sob pena de enri-
quecimento sem causa.
Flávio Tartuce lembra que o juiz, nos termos do art. 413, deverá reduzir o valor de uma cláusula
penal, mas não suprimi-la:

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver
sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessi-
vo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

315
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Caso a obrigação tenha sido cumprida em parte, não é justo que o devedor tenha de pagá-la toda.
Além disso, o juiz também reduzirá a cláusula se ela superar o valor da obrigação.
Flávio Tartuce ensina que o artigo 413 é considerado norma de ordem pública. Sendo assim, não
cabe renúncia ao seu teor (Enunciado n. 355217 – IV Jornada de Direito Civil) e a redução é de ofício pelo
juiz (Enunciado n. 356218 – IV Jornada de Direito Civil). Ademais, a redução não deve ser proporcional-
mente idêntica ao percentual adimplido (Enunciado n. 359219 - IV Jornada de Direito Civil).

6.3.6. Cláusula penal, retenção de prestações pagas e o CDC


Imagine que um sujeito compra um apartamento financiado e, das 60 prestações, paga 42. É lícita
a cláusula penal prevista no contrato no sentido de que, descumprida a obrigação principal, a construtora
poderia reter todas as prestações?
Isso viola, em primeiro lugar, o bom senso. Entretanto, o STJ já pacificou o entendimento no senti-
do de que o CDC não se aplica a contratos anteriores à sua vigência. Pablo achou diversas decisões do
tribunal, anteriores ao CDC, defendendo a possibilidade de retenção pela financiadora, a título de cláusu-
la penal, das prestações já pagas. Os contratos firmados antes do CDC, portanto, correm esse risco. É
bem verdade que há decisões considerando essa prática abusiva, mesmo antes do CDC. Para os contratos
celebrados após o CDC, essa estipulação é evidentemente abusiva.
Assim, jurisprudência anterior ao CDC já aceitou como válida cláusula penal que estabeleceu a
perda de todas as prestações pagas (REsp 399.123/SC), mas posições contrárias também existiam (Ag.
Rg. no REsp 479.914/RJ). O fato é que, com a entrada em vigor do CDC, a corrente que sustentava a abu-
sividade desse tipo de cláusula ganhou muito mais força.
Vale lembrar que no caso de consórcio, que tem regramento próprio (Lei 11.795/2008), o STJ ad-
mite que o consorciado desistente receba as parcelas pagas, após o encerramento do grupo, abatida a
taxa de administração.

6.4. Arras ou sinal (Arts, 417 a 420, CC)

6.4.1. Conceito
Segundo a doutrina de Clóvis Beviláqua, as arras ou sinal traduzem um valor ou um bem que uma
parte entrega à outra como firmeza da obrigação pactuada.

217Enunciado nº 355 - “Não podem as partes renunciar à possibilidade de redução da cláusula penal se ocor-
rer qualquer das hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, por se tratar de preceito de ordem pública”.
218 Enunciado nº 356 - Art. 413: Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a
cláusula penal de ofício.
219 Enunciado nº 359 - “A redação do art. 413 do Código Civil não impõe que a redução da penalidade seja

proporcionalmente idêntica ao percentual adimplido”.

316
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nas palavras de Flávio Tartuce, são o valor pago ou a coisa entregue, em antecipação, quando da
celebração do contrato preliminar com o intuito de toná-lo definitivo.
Em geral, arras ou sinal são entregues em dinheiro, mas nada impede que elas caracterizem outro
bem (ex.: joias). As arras são como uma espécie de solenidade de que aquela obrigação foi pactuada entre
as partes.
Obs.: Doutrina e jurisprudência entendem que o artigo 413 do Código Civil aplica-se às arras, se
elas forem exageradas (função social das arras). Nesse sentido: Enunciado n. 165 – III Jornada de Direito
Civil220 e STJ221.

6.4.2. Espécies
Há duas espécies de arras: i) confirmatórias (mais comuns); e ii) penitenciais.

6.4.2.1. Arras confirmatórias


Não obstante, na tradicional teoria de direito civil, as arras sejam sinônimo de sinal, na prática cos-
tuma-se designar sinal as arras confirmatórias, por serem elas mais frequentes e mais importantes do
que as penitenciais.
As arras confirmatórias marcam o início da execução do próprio contrato. Ex.: o sujeito adquire
apartamento de forma parcelada, em 60 meses. As construtoras, em geral, exigem o pagamento de um
sinal, que marca o início da execução do contrato.
As arras confirmatórias estão previstas no art. 417 do Código Civil:

Art. 417. Se, por ocasião da conclusão do contrato, uma parte der à outra, a título de arras, di-
nheiro ou outro bem móvel, deverão as arras, em caso de execução, ser restituídas ou computa-
das na prestação devida, se do mesmo gênero da principal.

As arras confirmatórias são computadas na própria prestação devida: pago o sinal, ele integra a
própria prestação principal. Há lojas que utilizam como técnica publicitária a primeira prestação de R$
1,00. Isso não se trata de mera benevolência, na medida em que, paga a primeira prestação, está o cliente
vinculado ao cumprimento do contrato.
Assim, uma vez que as arras confirmatórias marcam o início da execução do contrato, não pode a
parte querer voltar atrás, pois não há, aqui, direito de arrependimento. É uma forma de tornar a obriga-
ção forte, de vinculação das partes ao cumprimento do pactuado.
Aquele que, tendo dado as arras confirmatórias, desiste do contrato, é considerado inadimplente. A
parte que dá o sinal não pode voltar atrás, sob pena de perder o valor dele. Se a outra parte, que recebe o

220 Enunciado nº 165 - “Em caso de penalidade, aplica-se a regra do art. 413 ao sinal, sejam as arras confir-
matórias ou penitenciais”.
221 (REsp 1513259/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em

16/02/2016, DJe 22/02/2016).

317
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sinal, descumprir o contrato, terá de devolvê-lo e, além disso, pagar ao inocente valor equivalente ao si-
nal pago.
Ex.: adquirido determinado produto que vale R$ 10.000,00 em 10 parcelas de R$ 1.000,00, sendo
a primeira a título de sinal. Se o adquirente descumprir o contrato, perderá os R$ 1.000,00 pagos. Se a
loja, por sua vez, for quem descumpriu o contrato, terá de devolver os R$ 1.000,00 ao adquirente e lhe
pagar mais R$ 1.000,00. É o que determina o art. 418 do Código Civil:

Art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito,
retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato
por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo ín-
dices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado.

Se o valor do sinal não for suficiente para cobrir as despesas que a parte inocente teve com o início
da execução do contrato, ela poderá pedir indenização suplementar ou exigir a execução do contrato,
valendo as arras como mínimo de indenização.
Ex.: para a elaboração de determinado produto de alta complexidade, o sujeito cobra R$
10.000,00, exigindo R$ 3.000,00 a título de sinal. Ocorre que, até a manifestação inequívoca do outro
contratante de não prosseguir na execução do contrato, ele já teve gastos de R$ 7.000,00. Nesse caso, o
sinal pago será retido e será possível a cobrança de indenização suplementar de R$ 4.000,00.
Esse direito está previsto no art. 419 do Código Civil:

Art. 419. A parte inocente pode pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valen-
do as arras como taxa mínima. Pode, também, a parte inocente exigir a execução do contrato,
com as perdas e danos, valendo as arras como o mínimo da indenização.

6.4.2.2. Arras penitenciais


As arras penitenciais são completamente diferentes das confirmatórias. A palavra penitência vem
da raiz latina jus penitendi, que significa penitenciar-se, arrepender-se.
Assim, sendo exercido o direito constante da cláusula de arrependimento, a outra parte somente
pode exigir as arras. Sem perdas e danos.
As arras penitenciais garantem o direito de arrependimento, a despeito da sua perda em favor da
parte que não se arrependeu:

Art. 420. Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer das partes, as
arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste caso, quem as deu perdê-las-á em
benefício da outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os ca-
sos não haverá direito a indenização suplementar.

Se o contrato previu o pagamento de sinal (puro), está tratando das arras confirmatórias, que mar-
cam o início da execução do contrato e não dão direito de arrependimento. O sujeito que desiste do con-
trato perde o sinal. Se o contrato previu, por sua vez, que o sinal pago também dá o direito de arrepen-

318
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dimento, as arras são penitenciais. É difícil encontrar nos contratos esse tipo de arras. É espécie bastante
rara.
Ex.: “A” adquire de “B” um apartamento, no valor de R$ 500.000,00, em 50 prestações. As partes
preveem um direito recíproco de arrependimento (vigendo ou não por determinado período), estipulan-
do que serão pagas arras penitenciais no valor equivalente a R$ 10.000,00. Havendo arrependimento do
comprador, ele perderá o valor das arras em favor do vendedor, o qual terá de devolver as parcelas pagas
(abatendo-se evidentemente, o valor das arras). Caso o vendedor desista da venda, terá de devolver ao
comprador as arras, as prestações pagas e pagar-lhe mais R$ 10.000,00, a título de arras penitenciais.
No caso de previsão de arras penitenciais, a parte que se arrepende não poderá ser considerada
inadimplente (não podendo ter seu nome negativado, portanto).
Assim, se as arras são penitenciais, qualquer das duas partes pode se arrepender, mas o valor do
sinal indenizará aquela que não se arrependeu.
Além disso, nas arras penitenciais, uma vez que há o direito de arrependimento, não há o direito da
parte inocente a indenização suplementar.
Em resumo:

Arras Confirmatórias Arras Penitenciais

– Sem cláusula de arrependimento. – Com cláusula de arrependimento.

– Com perdas e danos. – Sem perdas e danos.


6.4.3. Arras X cláusula penal
Por fim, cumpre destacar que as arras, em que pese de natureza jurídica similar a da cláusula penal
com ela não se confunde, (que, como visto, é um pacto que pré-liquida o valor de uma indenização devi-
da, em caso de inadimplemento). As arras são simplesmente sinal, ainda que possam vir a ter função
indenizatória. São pagas no início do contrato, enquanto que a cláusula penal é paga posteriormente e
somente no caso de descumprimento.
222CLÁUSULA PENAL ARRAS PENITENCIAIS

Atua como elemento de coerção, para evitar o Por admitirem o arrependimento, facilitam o des-
inadimplemento contratual. cumprimento da avença. Sabem as partes que a
pena é reduzida, consistindo somente na perda do
sinal dado ou na sua devolução em dobro, nada
mais podendo ser exigido a título de perdas e danos

222 Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos / Carlos

Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P.

319
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

(CC, art. 420; STF, Súmula 412).

Pode ser reduzida pelo juiz, em caso de cum- Não podem ser reduzidas pelo juiz.
primento parcial da obrigação ou de montante
manifestamente excessivo.
Torna-se exigível somente se ocorrer o inadim- São pagas por antecipação.
plemento do contrato.
Aperfeiçoa-se com a simples estipulação no ins- A entrega de dinheiro ou de outro objeto é indis-
trumento, nada mais sendo necessário para pensável para a sua configuração.
completá-la, nem mesmo a entrega de dinheiro
ou de qualquer outro objeto.

6.5. Juros no CC/02

6.5.1. Conceito
Os juros são frutos civis ou rendimentos. São valores devidos pela utilização de capital alheio. Daí
se percebe que o conceito é totalmente diferente de correção monetária, que visa a atualizar a quantia no
tempo, no caso de dívida de valor, por isso ambos são cumuláveis.
De acordo com o art. 407 do CC, os juros têm inclusive um caráter punitivo, em decorrência de
inadimplemento. A correção monetária não tem esse caráter punitivo. Assim, para que sejam exigidos os
juros, não é necessário demonstrar prejuízo em razão do inadimplemento:

Art. 407. Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se con-
tarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes es-
teja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.

6.5.2. Classificações dos juros, no âmbito do direito privado


Quanto à origem, os juros podem ser: i) convencionais: decorrem de convenção das partes; ii) le-
gais: decorrem da lei.

6.5.2.1. Quanto à origem, os juros podem ser:


a) Juros convencionais – decorrem de acordo entre as partes.
b) Juros legais – decorrem da norma jurídica.

6.5.2.2. Quanto ao inadimplemento ou efeitos, os juros podem ser:

320
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Moratórios:
São pagos pelo devedor como forma de indenizar o credor quando ocorre um atraso no cumpri-
mento da obrigação (art. 395 do CC). É como se fosse uma sanção (punição) pela mora (inadimplemento
culposo) na devolução do capital. São devidos pelo simples atraso, ainda que não tenha havido prejuízo
ao credor (art. 407 do CC). Ex: José pactuou com o banco efetuar o pagamento do empréstimo no dia 10.
Ocorre que o devedor somente conseguiu pagar a dívida no dia 20. Logo, além dos juros remuneratórios,
terá que pagar também os juros moratórios, como forma de indenizar a instituição por conta deste atra-
so.
Os juros de mora podem ser legais ou convencionais. Serão convencionais quando as partes fixa-
rem, no contrato, as regras sobre o percentual e o termo inicial. Isso porque se trata de direito disponível.
Mas, mesmo que as partes não o façam, ainda assim o devedor estará obrigado a pagá-los, porque essa
imposição decorre da própria lei. Neste caso, serão considerados juros legais.
b) Compensatórios ou remuneratórios:
São pagos pelo devedor como uma forma de remunerar (ou compensar) o credor pelo fato de ele
ter ficado privado de seu capital por um determinado tempo. É como se fosse o preço pago pelo “aluguel”
do capital. Ex: José precisa de dinheiro emprestado e vai até um banco, que dele cobra um percentual de
juros como forma de remunerar a instituição financeira por esse serviço.
Os juros compensatórios serão necessariamente contratuais.
O CC/02 só trata dos juros legais e dos moratórios, em seu art. 406:

Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipula-
da, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver
em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

A respeito dessa taxa prevista, há duas correntes. Em concurso, pode-se adotar tanto uma quanto a
outra. Tartuce é adepto da primeira:
1ª corrente: a taxa é de 1% ao mês (12% ao ano), aplicando-se o art. 161, § 1º, do CTN. É,
Inclusive, o que consta do Enunciado 20 da Jornada de Direito Civil:

Enunciado 20 – Art. 406: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, §
1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês. A utilização da taxa Selic como
índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhe-
cimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem
somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo
Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o
art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao
ano.

2ª corrente: trata-se da taxa SELIC. É uma posição adotada em julgados mais recentes.
Obs.: Os juros podem ser, também, simples e compostos:

321
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Juros simples: são sempre calculados sobre o capital inicial;


b) Juros compostos: são capitalizados anualmente, calculando-se juros sobre juros, ou se-
ja, os que forem computados passarão a integrar o capital.

6.5.3. Limite dos juros convencionais


O limite dos juros convencionais no Brasil, em regra, levando-se em conta a Lei de Usura (DL
22.626/33), é o dobro da taxa legal. Para o mútuo (empréstimo de dinheiro a juros, chamado de mútuo
oneroso ou feneratício), a máxima taxa de juros é o dobro da prevista no art. 406 do CC.
Porém, para o STF e o STJ, esses dispositivos não se aplicam às instituições bancárias e financeiras,
que podem cobrar as famosas taxas de mercado (as taxas de mercado são fixadas pelas próprias institui-
ções). Nesse sentido, confiram-se as Súmula 596 do STF e 296, 382 e 283 do STJ.

Súmula 596 - AS DISPOSIÇÕES DO DECRETO 22626/1933 NÃO SE APLICAM ÀS TAXAS DE


JUROS E AOS OUTROS ENCARGOS COBRADOS NAS OPERAÇÕES REALIZADAS POR INS-
TITUIÇÕES PÚBLICAS OU PRIVADAS, QUE INTEGRAM O SISTEMA FINANCEIRO NACIO-
NAL.

Súmula 296 – Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são de-

vidos no período de inadimplência à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do
Brasil, limitada ao percentual contratado.

Súmula 382 - A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não in-
dica abusividade.

Súmula 283 - As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e,


por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura.

6.5.4. Contagem dos juros de mora


Somente se pode falar em mora se houver inadimplemento relativo da obrigação. A mora pode ser
ex re (automática) ou ex persona (exige interpelação judicial ou extrajudicial do devedor), nos termos do
art. 397 do CC.
Em regra, a mora será ex re se a obrigação a ser cumprida for positiva (de dar ou fazer), líquida e
com dia certo de vencimento, nas obrigações de fazer e nas decorrentes de ato ilícito. Será ex persona
quando, no contrato, não tiver sido estipulado um prazo certo de vencimento ou quando, havendo prazo
certo, a lei exigir interpelação (ex.: leasing).

322
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 405 do CC estabelece que se contam os juros de mora desde a citação inicial. Todavia, é pre-
ciso ter cuidado, pois o dispositivo somente se aplica à mora ex persona. Para a mora ex re, os juros são
contados desde o vencimento ou inadimplemento (a partir do descumprimento da obrigação):

Art. 405. Contam-se os juros de mora [ex persona] desde a citação inicial.

Segundo recente decisão do STJ, os juros moratórios contratuais, em regra, correm a partir da cita-
ção. No entanto, no caso de obrigação positiva e líquida, com vencimento certo, os juros moratórios cor-
rem a partir da data do vencimento da dívida (Informativo 537, EREsp 1.250.382).
Na mora irregular (decorrente de ato ilícito), os juros de mora contam-se a partir do evento danoso
(Súmula 54 do STJ e Enunciado 428 da V Jornada de Direito Civil):

Súmula 54 - Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade


extracontratual.

Enunciado 428 – Art. 405. Os juros de mora, nas obrigações negociais, fluem a partir do adven-
to do termo da prestação, estando a incidência do disposto no art. 405 da codificação limitada às
hipóteses em que a citação representa o papel de notificação do devedor ou àquelas em que o
objeto da prestação não tem liquidez.

Termo inicial dos juros de mora


Responsabilidade extracontratual Responsabilidade contratual
Os juros fluem a partir do evendo dano- i) obrigação líquida: juros contados a
so (art. 398 do CC e Súmula 54 do STJ) partir do vencimento da obrigação. É o caso
das obrigações com mora ex re;
ii) obrigação ilíquida: juros contados a
partir da citação (art. 405 do CC). É o caso das
obrigações com mora ex persona.

TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

1. Noções introdutórias
Os contratos são negócios jurídicos (ajuste de vontades) para a composição de interesses privados.
Através dele, há negócios jurídicos de cunho econômico. Na verdade, o contrato é o mais importante me-
canismo jurídico de circulação de riquezas. Ele necessariamente diz respeito à composição de interesses
privados econômicos. Sem a economicidade, não há contrato.
O contrato é tão importante que, cotidianamente, celebram-se contratos sem perceber (ex.: em-
préstimo de uma caneta, doação de uma folha de papel etc.)

1.1. Conceito de contrato

323
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tanto o Código Civil de 1916 como o Código Civil de 2002 não definiram o contrato, relegando a
matéria para a doutrina.
Nesse sentido, Flávio Tartuce leciona que em uma visão clássica ou moderna, o contrato pode ser
conceituado como sendo um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação
ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. Esse conceito clássico está muito próximo
daquele que consta do Código Civil Italiano. São autores que seguem essa doutrina clássica Maria Helena
Diniz, Álvaro Vilaça.
Todo contrato é um ato jurídico bilateral, dependente de pelo menos duas pessoas ou de-
clarações de vontade, cujo objetivo é a criação, a alteração ou até mesmo a extinção de di-
reitos e deveres. Os contratos são, em suma, todos os tipos de convenções ou estipulações que possam
ser criadas pelo acordo de vontades e por outros fatores acessórios.
Ressalta-se que o contrato é o negócio jurídico “inter vivos” por excelência, não se confundindo
com os negócios “mortis causa”. Exemplo: testamento. Essa separação consta do artigo 426 do Código
Civil223: não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva (nulidade do pacto sucessório ou “pacta
corvina”).
Ressalta-se que o conceito clássico, exige que o contrato tenha um conteúdo patrimonial, ou a pa-
trimonialidade, como afirmam italianos. Nessa visão, o casamento, por exemplo, não seria um contrato,
eis que o seu conteúdo é mais do que patrimonial, é afetivo, visando a uma comunhão plena de vida, co-
mo se extrai do art. 1.511 do CC.
Nesse sentido, é na patrimonialidade, que se sustentam as principais críticas à visão clássica, moti-
vo pelo qual, Paulo Nalin apresenta um conceito contemporâneo “contrato é uma relação intersubje-
tiva baseada no solidarismo constitucional e que traz efeitos existenciais e patrimoniais não somente em
relação às partes contratantes, mas também em relação a terceiros.”.
Finalmente, Flávio Tartuce assevera que “o instituto contrato não se confunde com o instrumento
contrato. Existem institutos que são instrumentalizados por contratos, mas não assumem a feição do insti-
tuto. Podem ser citados, para ilustrar, o penhor e a hipoteca, que não são contratos como institutos, mas
direitos reais (art. 1.225, VIII e IX, do CC).”.
Obs.: O contrato também traz efeitos existenciais relativos à tutela da pessoa humana. Exemplos:
Uma cláusula ou um contrato que viola a dignidade humana é antissocial e, portanto, nulo por ilicitude
do objeto (CF, art. 1º, III e CC, arts. 421 e 166, II) ou o descumprimento de um contrato que pode gerar
dano moral quando envolver valor fundamental previsto na Constituição Federal de 1988 (Enunciado n.
411 – V Jornada de Direito Civil). Exemplos: saúde e moradia (CF, art. 6º).

2. Elementos de validade do contrato

223 CC, art. 426: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.

324
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1. Capacidade do agente

Para a celebração do contrato, o agente tem de ser capaz. Caso não seja, é necessária representação
ou assistência.

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

O contrato regulariza-se se o agente estiver representado ou assistido, salvo se houver expressa


proibição legal para a celebração da avença pelo incapaz.
Com efeito, há hipóteses em que o ordenamento obsta a manifestação de vontade do assistente ou
representante do incapaz, que não se torna bastante, sendo essencial a autorização judicial. Ex.: doação e
venda de bem imóvel pertencente a incapaz.
Assim, o representante e o assistente não poderão regularizar a representação (a capacidade) em
determinados negócios jurídicos celebrados por incapaz. É muito comum verificar, nos acordos de sepa-
ração ou divórcio consensuais, que determinado imóvel acabe doado para o filho. Isso acaba gerando um
problema, pois como o filho é menor, caso os pais queiram, dali em diante, vender o bem, passa a ser
necessária autorização judicial, ouvido o MP.
É importante lembrar que nada impede a celebração de um contrato por entes despersonalizados.
Isso porque eles possuem capacidade jurídica, malgrado não tenham personalidade. Ser dotado de capa-
cidade significa justamente essa possibilidade de celebração de um contrato. Ex.: o condomínio edilício, a
sociedade de fato e a massa falida celebram diversos contratos (compra e venda, contrato de emprego
etc.)

2.2. Objeto lícito, possível e determinado ou determinável

A ilicitude ou indeterminabilidade do objeto implica nulidade do contrato. Assim, se o objeto é ilí-


cito ou indeterminado, naturalmente o contrato será nulo, de acordo com o art. 166 do Código Civil:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...)

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

Cumpre advertir, todavia, que a ilicitude do objeto do contrato não se confunde com a falsidade da
causa. Essas expressões podem gerar confusão conceitual, especialmente em provas de concurso. Se o
objeto é ilícito, a consequência é a nulidade. Se a causa (motivo ou objeto) é falsa, a consequência é a
anulabilidade do contrato (art. 140 do Código Civil, localizado no capítulo que trata do erro):

Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determi-
nante.

Veja, portanto, que a diferença é crucial para a compreensão da matéria. Um contrato que tenha
por objeto transporte de substância entorpecente é nulo, por ilicitude do objeto. O contrato com motivo
325
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

falso será anulável, por poder caracterizar erro. É o caso, por exemplo, de um empresário que adquire
empresa do mesmo ramo de atividade, que sempre se apresentou historicamente com melhores condi-
ções (lucratividade, poder econômico etc.) e, depois de comprar, percebe que ela era deficitária. Nesse
caso, há evidente exemplo de causa falsa, pois aquele que celebrou contrato partiu da premissa de que a
empresa era lucrativa, quando na verdade ela não era. Quanto o falso motivo é a razão determinante da
declaração de vontade, haverá a anulabilidade do negócio por erro.
Ainda, quanto ao objeto, cumpre invocar a advertência feita por Orlando Gomes: o objeto, além de
lícito, possível, determinado ou determinável deve ser também provido de economicidade. Isso significa
que somente seria possível celebrar um contrato cujo objeto fosse um ajuste patrimonial. Essa era a posi-
ção da doutrina clássica.
Houve uma evolução da doutrina, entretanto, que passou a admitir que não apenas ajustes patri-
moniais sirvam de objeto de contrato. Hoje é absolutamente possível que um contrato tenha por objeto
um direito de família ou de personalidade. Um contrato de convivência (ajuste da união estável) é exem-
plo de contrato de direito de família. A cessão de direito da personalidade ou de direitos autorais são
exemplos de relações jurídicas cujo objeto não tem economicidade.
Assim, hoje, a relação jurídica contratual não necessariamente tem de ter objeto provido de eco-
nomicidade. Houve uma ampliação do objeto das relações contratuais.

2.3. Formalidade (forma prescrita ou não defesa em lei)

A regra geral é de que os contratos são consensuais, ou seja, para a sua formação basta a manifesta-
ção de vontade das partes. Não se pode esquecer, todavia, que em determinados casos previstos em lei ou
pela vontade das partes, o contrato pode se tornar formal, solene.
Aqui, surge uma observação importante: se a regra geral é da consensualidade, quando houver pre-
visão de lei ou expressa deliberação das partes, a formalidade passa a integrar a substância do ato, preci-
sando ser cumprida, sob pena de nulidade (art. 166, IV, do CC):

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...)

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

Exemplos clássicos de contratos formais são os negócios imobiliários. Vale ressaltar, todavia, que
eles serão sempre escritos (não há dúvida), mas o art. 108, prestando homenagem aos usos e costumes
do Brasil, dispensa escritura pública nos contratos imobiliários cujo valor não exceda 30 vezes o salário
mínimo:

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios
jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais so-
bre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

326
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Veja que o contrato não deixa de ser solene, em vista da exigência de que seja escrito. Apenas é dis-
pensada a escritura pública. Sobre esse assunto, vale lembrar que, apesar da dispensa de escritura públi-
ca, não se dispensa o registro, que continua sendo condição necessária para a aquisição do bem.
Não se deve confundir a formalidade com a prova do contrato. Trata-se de distinção extremamente
sensível.
Quando a formalidade for exigida por lei ou pela vontade das partes, ela integra a substância do
ato, sob pena de nulidade. Veja que se trata da forma. Até porque, como visto, quando nem a lei nem a
vontade das partes exigir, o contrato será consensual. A forma integra o plano da validade (art. 166, IV,
do CC): não obedecida a forma, quando exigida, o contrato será nulo.
O art. 401 do CPC, por outro lado, trata da prova do contrato, que não tem a ver com nenhum dos
planos de existência, validade e eficácia. Ele estabelece que não se admite prova exclusivamente teste-
munhal nos contratos cujo valor exceda o décuplo do salário mínimo:

Art. 401. A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda
o décuplo do maior salário mínimo vigente no país, ao tempo em que foram celebrados.

Isso, entretanto, não significa dizer que os contratos que excedam o décuplo do salário mínimo se-
riam formais e solenes. O dispositivo legal não diz respeito à forma, mas somente à prova. Veja que o
contrato é existente, válido e eficaz, mas se exceder 10 salários mínimos, sua prova não poderá ser exclu-
sivamente testemunhal. O STJ, todavia, vem mitigando a dureza desse dispositivo: a depender do tipo de
contrato, admite a prova exclusivamente testemunhal, ainda que ele venha a exceder dez salários míni-
mos. Exemplo emblemático é o do contrato de empreitada.
O contrato que desobedece a sua forma é nulo. A nulidade não se convalida, não se ratifica (é exa-
tamente isso que diferencia a nulidade da anulabilidade). Todavia, apesar disso, os contratos nulos admi-
tem a conversão substancial (art. 170 do Código Civil), que ocorre quando o juiz recategoriza o contrato
(transmuda um contrato em outro, aproveitando a vontade):

Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quan-
do o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a
nulidade.

Ex.: uma senhora sem herdeiros necessários e no gozo de suas faculdades mentais faz doação de
seu único imóvel à sua enfermeira, gravando a doação com cláusula de usufruto em seu favor. Sobrevin-
do a morte da doadora, a enfermeira requer o arrolamento e adjudicação do bem. A sobrinha da falecida
se habilita no arrolamento e alega nulidade da doação, por ausência de forma (doação por instrumento
particular). O contrato, de fato, é nulo. Todavia, é possível preservar a vontade (que era válida), ainda
que a forma fosse nula: o juiz pode, nesse caso, converter o contrato em testamento particular.
Incide também, nos contratos nulos, a redução parcial da invalidade, prevista no art. 184 do CC.
Trata-se do isolamento da invalidade. É possível que, dentro de um contrato, haja uma ou algumas cláu-

327
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sulas nulas e outras válidas. Nesse caso, aproveita-se a declaração de vontade. Isola-se a nulidade somen-
te naquela ou naquelas cláusulas. A cláusula nula será afastada (invalidada) e as demais aproveitadas:

Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o
prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a
das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

Ótimo exemplo de aplicação do art. 184 é a Súmula 302 do STJ:

Súmula 302 - É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a interna-
ção hospitalar do segurado.

A cláusula limitadora do tempo de internação hospitalar nos contratos de plano de saúde é nula.
Assim, contrato com cláusula desse tipo será válido. Somente essa previsão é que será nula. Tudo por
conta da possibilidade de redução parcial da nulidade.
Os contratos, como visto, são de regra consensuais e, excepcionalmente, formais. Há, todavia, uma
categoria que merece destaque. Os contratos reais (que nada têm a ver com direito real) são aqueles que,
sendo consensuais ou formais, exigem a tradição para o seu aperfeiçoamento. Exemplos: comodato, mú-
tuo e depósito.

2.4. Vontade livre e desembaraçada

Vontade livre e desembaraçada significa declaração de vontade sem vícios. A declaração de vontade
não pode ser viciada, sob pena de anulabilidade.
O silêncio pode servir como manifestação de vontade. O Código Civil, em seu art. 111, pela primeira
vez, traz previsão que admite que o silêncio seja interpretado como manifestação de vontade. Trata-se de
uma das mais importantes novidades do novo Código:

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não
for necessária a declaração de vontade expressa.

Todavia, para que isso ocorra, devem estar presentes duas condições: i) os usos e circunstâncias au-
torizem; e ii) não seja necessária formalidade. Não se pode doar algo por silêncio (os usos e circunstân-
cias não admitem), mas é possível receber doação por silêncio (os usos e circunstâncias permitem).

3. Direito intertemporal dos contratos


O art. 2.035 do Código Civil regulamenta o direito intertemporal dos contratos:

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vi-
gor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus
efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se
houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais

328
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos con-
tratos.

Todo contrato é uma relação jurídica continuativa, ou seja, de trato sucessivo. Como tal, com o pas-
sar do tempo, ele pode ficar submetido a diferentes normas. Basta imaginar contrato celebrado antes da
vigência do CC/02 (ou seja, sob a égide do CC/16) e que, depois dele, continua produzindo efeitos. Veja
que não há que se falar em direito intertemporal se o contrato for celebrado e se encerrar sob a égide de
uma lei.
A indagação natural é a seguinte: a lei nova aplica-se automaticamente ao contrato que ainda pro-
duz efeitos? Dica: ao pensar em uma relação continuativa (uma das quais é o contrato), deve-se lembrar
da escada Pontiana (existência, validade e eficácia). A existência e a validade de um contrato ficam sub-
metidas à norma do tempo de sua celebração. A eficácia, no entanto, fica submetida à norma atual.
Portanto, para se discutir se um contrato celebrado sob a égide do CC/16 é nulo ou anulável, deve-
se aplicar o CC/16. Todavia, para saber se ele continua produzindo efeitos, deve-se aplicar o CC/02.
Exemplos:
i) redução da multa para o atraso do pagamento da taxa condominial:
O CC/02 reduziu a multa para o atraso do pagamento da taxa condominial de 20% para 2%. A mul-
ta de 2% aplica-se às Convenções de Condomínio celebradas antes do CC/02 que previam percentuais
mais elevados? Sim, pois a multa situa-se no plano da eficácia (REsp 722.904/RS).
ii) modificação do regime de bens:
O CC/16 não permitia a mudança do regime de bens. O novo permite. As pessoas casadas na vigên-
cia o CC/16 podem alterar seu regime de bens? Lembre-se que casamento é contrato. Como o regime de
bens diz respeito ao plano da eficácia (e não da validade), é possível a alteração (REsp 730.546/MG).
iii) proibição de contratação de sociedade entre pessoas casadas:
O art. 977 do CC proíbe a contratação de sociedade entre pessoas casadas no regime da comunhão
universal de bens ou no da separação obrigatória:

Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não
tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

Essa proibição aplica-se às sociedades que já existiram? O Enunciado 204 da I Jornada de Direito
Civil, interpretando o art. 977, diz que a proibição somente atinge as sociedades constituídas após a vi-
gência do Novo Código. Isso porque se se trata de exigência situada no plano de validade da sociedade:

Enunciado nº 204 - Art. 977: A proibição de sociedade entre pessoas casadas sob o regime da
comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vi-
gência do Código Civil de 2002.

4. Princípios fundamentais do direito contratual

329
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O Código de 2002 estabeleceu três princípios fundamentais de direito contratual: i) boa-fé objetiva
(arts. 113 e 422); ii) função social do contrato (art. 421); e iii) equilíbrio econômico e financeiro dos con-
tratos (arts. 317 e 478).
Flávio Tartuce irá abordar ainda os princípios da Autonomia privada, força obrigatória da conven-
ção e relatividade dos efeitos contratuais.
Importante lembrar ainda que o Enunciado n. 167 – III Jornada de Direito Civil224 chancelou a
apregoada aproximação principiológica entre o Código Civil de 2002 e o CDC em matéria contratual,
gerando adesão imediata à teoria do diálogo das fontes, que decorre substancialmente dos princípios
sociais contratuais encampados pela nova codificação, quais sejam a função social dos contratos e a boa-
fé objetiva.
Nesse sentido, Flávio Tartuce entende que é possível aplicar a determinado contrato tanto o CDC
quanto o CC ao mesmo tempo, desde que isso não prejudique o consumidor vulnerável.

4.1. Principío da autonomia privada

Segundo a clássica lição de Carlos Roberto Gonçalves, o princípio da autonomia da vontade se


alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus
interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes
a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos
nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados.
Essa liberdade abrange o direito de contratar se quiserem, com quem quiserem e sobre o que qui-
serem, ou seja, o direito de contratar e de não contratar, de escolher a pessoa com quem fazê-lo e de es-
tabelecer o conteúdo do contrato.
Entretanto, Flávio Tartuce propõe a substituição do modelo liberal puro do princípio da autono-
mia da vontade pelo princípio da autonomia privada, uma vez que a autonomia não é da vontade,
mas da pessoa humana.
Nas palavras do autor, a autonomia privada é o direito que a parte tem de regulamentar os próprios
interesses (direito de autorregulamentação contratual), é o poder que os particulares têm de regular, pelo
exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva
disciplina jurídica.
Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, segundo Francis-
co Amaral, com ela, porém não se confunde, existindo entre ambas sensíveis diferenças. A expressão ‘auto-
nomia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder
da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real.

224 “Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o

Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de
uma nova teoria geral dos contratos”.

330
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No plano contratual essa autonomia desdobra-se em duas liberdades:


a) Liberdade de contratar: tem relação com o momento em que se contrate e com a parte com
quem se contrata.
b) Liberdade contratual: conteúdo do contrato, ou seja, as cláusulas contratuais propriamente di-
tas.
Desse modo, Flávio Tartuce conclui o princípio da autonomia privada é um regramento básico, de
ordem particular (autonomia da vontade) – mas influenciado por normas de ordem pública –
pelo qual na formação do contrato, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores: psicoló-
gicos, políticos, econômicos e sociais.
Tratando-se em última anáçise do direito indeclinável da parte de autorregulamentar os seus inte-
resses, decorrente da dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública,
particularmente nos princípios sociais contratuais.
Finalmente, é de se lembrar que a autonomia privada não é um princípio absoluto, pois encontra
limitações em outros princípios e, como visto, em normas de ordem pública.

4.2. Princípio da função social do contrato

4.2.1. Noções gerais


A função social é um elemento presente em todo o direito civil. Não há dúvidas da sua importância
para a matéria. Assim como a boa-fé relaciona-se à diretriz da eticidade, a função social representa a in-
corporação ao Código Civil de 2002 da diretriz da socialidade. É por essa razão que no Código há menção
à função social em vários dispositivos (da família, dos contratos, da propriedade etc.)
O movimento acerca da importância da função social iniciou-se na década de 1970, com o livro de
Norberto Bobbio “Da estrutura à função”. Na época, todos os estudos jurídicos estavam voltados a con-
ceituar o que era o direito. O autor advertia, todavia, que o importante não era saber o que era direito
(era algo relativamente fácil: bastava olhar o Vade Mecum). Muito mais importante era saber para que
servia o direito. Com isso, estava preconizando uma evolução no estudo do direito, da estrutura para a
função.
Assim, a função social (de qualquer coisa) significa o seguinte: “para que serve determinada figura
dentro do direito”. Em se tratando de função social do contrato, ela significa: “para que serve o contra-
to?”
A função social do contrato é, nas palavras de Flávio Tartuce, um princípio contratual de ordem
pública (CC, art. 2.035, parágrafo único) pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, interpretado e
visualizado de acordo com o contexto da sociedade. A palavra função social deve ser visualizada com o
sentido de finalidade coletiva e gera como principal efeito a mitigação ou relativização da força obrigató-
ria do contrato (“pacta sunt servanda”).

331
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se da superação da visão egoística, individualizada dos institutos do direito civil, de modo
que cada instituto de direito civil serve para instrumentalizar esses interesses sociais.
O art. 421 consagra a função social do contrato no Código Civil, a qual acaba por mitigar o histórico
princípio da relatividade dos efeitos do contrato:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do con-
trato.

Na esteira da melhor doutrina Flávio Tartuce assevera que o dispositivo traz dois equívocos técnicos:
a) 1º erro: o certo é liberdade contratual e não de contratar. A liberdade de contratar, relacionada
com a celebração do contrato, é, em regra, ilimitada, pois a pessoa celebra o contrato quando
quiser e com quem quiser, salvo raríssimas exceções. Por outra via, a liberdade contratual, rela-
cionada com o conteúdo negocial, é que está limitada pela função social do contrato, ou seja,
pela finalidade coletiva do contrato.
b) 2º erro: “em razão “: função social do contrato não é razão do contrato, que é formada pela au-
tonomia privada, mas sim, limitação da autonomia privada, mitigando, como visto, a força
obrigatória.
Outrora, se dizia que o contrato somente produziria efeitos entre as partes. A função social repre-
senta a superação dessa falsa ideia. O contrato pode sim atingir terceiros, justamente por ter função soci-
al. Na verdade, o contrato deve garantir os direitos de terceiros. A função social flexibilizou a relatividade
dos efeitos do contrato ao determinar que o contrato deve servir a ajustar os interesses das partes, sem,
contudo, prejudicar terceiros.

4.2.2. Tríplice função da função social do contrato


A função social do contrato, assim como a boa-fé objetiva, possui uma tríplice função:
i) o contrato celebrado entre duas partes não pode prejudicar terceiros (ou seja, outras pessoas in-
teressadas);
ii) o contrato entre duas partes não pode prejudicar a coletividade;
iii) terceiros não devem prejudicar contratos alheios.
A partir dessa tríplice função, surgem dois institutos até então desconhecidos: o do terceiro ofensor
(lesante) e do terceiro ofendido (lesado). Esses conceitos eram incompatíveis com a relatividade dos efei-
tos dos contratos. Agora, pode haver contratos prejudicando terceiros e terceiros prejudicando contratos.
Exemplos:
i) terceiro ofendido: a Súmula 308 do STJ

Súmula 308 - A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior
à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imó-
vel.

332
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se da chamada “Súmula Incol”. A empresa construía prédios, fazia empréstimos no banco e
dava em garantia o prédio. O banco executava a hipoteca e dizia que os proprietários que supostamente
tinham pagado mal teriam de pagar duas vezes.
ii) terceiro ofensor: art. 608 do Código Civil

Art. 608. Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem
pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber
durante dois anos.

Trata-se do aliciamento do prestador de serviços. É o caso, por exemplo, do imbróglio envolvendo o


cantor Zeca Pagodinho, a Brahma e a Nova Sckin.
iii) função social nos contratos de seguro:
Dentre as várias decisões que há no STJ acerca da função social do contrato, vale destacar o REsp
401.718/PR, que trata da função social nos contratos de seguro. Para o tribunal, a ação indenizatória em
decorrência de danos causados pelo segurado pode ser ajuizada diretamente contra o segurador, com
base na função social do contrato.

4.2.3. Função social do contrato e a ampliação da legitimidade ativa para as ações de


revisão e resolução do contrato
Para Chaves, um dos mais importantes aspectos da função social do contrato é exatamente a am-
pliação da legitimidade processual, justamente o exemplo do REsp 401.718/PR, estudado acima.
Antes dela, a legitimidade para requerer a revisão ou a resolução do contrato era somente das par-
tes, como decorrência do princípio da relatividade contratual. Com o advento do novo Código, a função
social do contrato resultou na ampliação da legitimidade ativa para a propositura ações revisionais ou
resolutórias, alcançando sujeitos que não fizeram parte da contratação, como terceiros lesados e o MP,
quando houver interesse coletivo.
Ex.: o condomínio pode ajuizar ação de resolução de contrato de locação (ainda que não seja parte
dele) contra locatária que está causando confusão no prédio, na hipótese de recusa do locador em despe-
já-la.

4.2.4. Dupla Eficácia da função social do contrato


Tem prevalecido a ideia de que a função social do contrato tem tanto eficácia interna (entre as par-
tes), quanto eficácia externa (para além das partes).
A função social do contrato foi historicamente estudada pelo ângulo da eficácia externa (basta ver
os conceitos de terceiro ofensor e ofendido). Porém, de alguns anos para cá, ao lado da eficácia exógena,
a doutrina passou a conceber também uma eficácia interna.
A eficácia interna (intersubjetiva) da função social do contrato impõe que nenhuma relação contra-
tual pode violar a dignidade dos contratantes, mesmo que haja o consentimento deles.

333
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplos:
i. Tutela da pessoa humana no contrato: (Enunciado n. 23 – I Jornada de Direito Civil)225
Ex. Proibição do programa chamado “Teste de Fidelidade” (Redetv), em que as pessoas eram cap-
tadas em situações violadoras da sua dignidade, mas a empresa celebrava posterior contrato com os par-
ticipantes, que acabavam por ceder seus direitos de imagem;
ii. Nulidade de cláuculas antissociais, tidas como abusivas, Ex. Súmula 302 do STJ consagra a
nulidade da cláusula limitadora do tempo de internação hospitalar nos contratos de plano de
saúde:

Súmula 302 - É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a interna-
ção hospitalar do segurado.

iii. Vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual: função social da cláusula pe-
nal, extraída do art. 413 do Código Civil, é um ótimo exemplo de eficácia interna da função
social do contrato:
O dispositivo prevê que a multa pode ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação princi-
pal tiver sido cumprida em parte ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo (ou seja,
quando a cláusula penal se mostrar abusiva):

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver
sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-
se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

Os Enunciados 355 e 356 da Jornada de Direito Civil afirmam, respectivamente, que a redução da
cláusula penal pode ser determinada de ofício pelo juiz e a cláusula de renúncia à possibilidade de redu-
ção pelo juiz é nula. Isso demonstra que a redução nada mais é que uma manifestação da função social do
contrato e, como tal, irrenunciável:

Enunciado 356 - Art. 413: Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá re-
duzir a cláusula penal de ofício.

Enunciado 355 - Art. 413: Não podem as partes renunciar à possibilidade de redução da cláusula
penal se ocorrer qualquer das hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, por se tratar de
preceito de ordem pública.

iv. Conservação contratual: A extinção do contrato deve ser a última medida a ser tomada, a ul-
tima ratio. Essa correlação foi reconhecida pelo Enunciado n. 22 do CJF/STJ da I Jornada de
Direito Civil.226

225 Enunciado 23 - “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o prin-

cípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metain-
dividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

334
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

v. Proteção do vulnerável contratual: Enquanto o CDC tutela o consumidor como parte vulnerá-
vel da relação contratual, o CC/2002, tuela o aderente contratual que é aquele a quem o con-
teúdo do contrato de adesão227 é imposto (Arts. 423 e 424, CC228).
vi. Frustração do fim do contrato ou desaparecimento da causa (Enunciado n. 166 – III Jornada
de Direito Civil229). Quando o contrato perde a sua razão de ser, deve ser reputado extinto
sem culpa das partes. Exemplo: aluguel de casa para acompanhar o carnaval. Posteriormente,
o carnaval é cancelado.
De outro lado, a eficácia externa propõe que o contrato também gera efeitos perante terceiros, sen-
do exemplos na lição de Flávio Tartuce:
i. Tutela dos efeitos difusos e coletivos: conforme consta do sempre citado Enunciadn. 23 do
CFJ/STJ, não podendo o contrato prejudicá-los. Por isso, sustenta-s doutrinariamente a
função socioambiental do contrato. Exemplo: contrato para extração de areia que, apesar de
ser um instrumento justo e equilibrado, regula uma atividade que causa desequilíbrio eco-
lógico. Nesse caso, é possível dizer que o contrato é nulo ou ineficaz, pois contraria a função
socioambiental do contrato.
ii. Tutela externa do crédito – possibilidade do contrato gerar efeitos perante terceiros ou de
condutas de terceiros repercutirem no contrato. Caso previsto no Enunciado n. 21 da I Jor-
nada de Direito Civil que trata da exceção ao princípio da relatividade dos efeitos contratu-
ais.
Como exemplo, pode ser citada a teoria do terceiro cúmplice estampada no art. 608 do CC230, se-
gundo a qual aquele que aliciar pessoas obrigadas por contrato escrito a prestar serviços a outrem, paga-
rá a este o correspondente a dois anos da prestação de serviços.

4.3. Princípio da força obrigatória da convenção ou do contrato

226 Enunciado 22 - “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula

geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.
227 O contrato de adesão é aquele em que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte,

o aderente, duas opções: aceitar ou não (“take it or leave it”, como dizem os americanos).
228 CC, art. 423: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á

adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”.


CC, art. 424: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do ade-
rente a direito resultante da natureza do negócio.”.
229 Enunciado 166, III JDC: “A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a im-

possibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art.
421 do Código Civil”.
230 CC, art. 608: “Aquele que aliciar [BRAHMA] pessoas obrigadas em contrato escrito [ZECA PAGODINHO]

a prestar serviço a outrem [NOVA SCHIN] pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste des-
feito, houvesse de caber durante dois anos”.

335
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na precisa lição de Flávio Tartuce, o princípio decorre da ideia clássica de autonomia da vontade, a
força obrigatória dos contratos preconiza que tem força de lei o estipulado pelas partes na avença, cons-
trangendo os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico
Encontra consubstanciado na clássica expressão pacta sunt servanda, de modo que é possível
afirmar que ainda contiua em vigor a máxima de que o contrato faz lei entre as partes, retirado dos dis-
positivos sobre inadimplemento (CC, arts. 389, 390 e 391).
Entretanto, conforme visto acima, tal princípio encontra-se fortemente mitigado pelos princípios
sociais contratuais (função social do contrato e boa-fé objetiva).
Entretanto, parte da doutrina advoga no sentido de o princípio em questão teria sido definitivamen-
te extinto pela codificação emergente, em sentido contrário, Flávio Tartuce entende que a a realidade jurídica
e fática do mundo capitalista e pós-moderno não possibilita mais a concepção estanque do contrato, de
modo que o princípio é ainda prerevisto em nosso ordenamento jurídico, mas não mais como regra geral,
como antes era concebido.

4.4. Princípio da boa-fé objetiva (Arts. 113, 187 e 422, CC)

4.4.1. Boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva


O Código Civil utiliza a expressão “boa-fé” sem qualificá-la, sem adjetivá-la. Então, no CC/02, a ex-
pressão é encontrada com dois sentidos (com dupla possibilidade hermenêutica): objetiva e subjetiva.
A boa-fé objetiva231 é comportamental (baseada na confiança). A subjetiva é de conhecimento (psi-
cológica). Cabe ao intérprete do dispositivo legal identificar a modalidade de que se trata. Exemplos:
i) art. 1.561:

Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o ca-
samento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anula-
tória.

§ 1o Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e
aos filhos aproveitarão.

§ 2o Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos
filhos aproveitarão.

O dispositivo, que disciplina o casamento putativo, trata da boa-fé em sentido subjetivo. Trata-se
da boa-fé no sentido de conhecimento (psicológica). Ex.: casar com a irmã sem saber dessa condição.
ii) art. 113:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de

231 Segundo Menezes Cordeiro, a boa-fé objetiva trata-se de uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do

plano intencional (boa-fé subjetiva), para o plano da conduta de lealdade das partes (boa-fé objetiva).

336
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sua celebração.

O dispositivo, ao tratar do sentido de determinada cláusula contratual, fala da boa-fé objetiva (do
comportamento das partes contratantes).
Boa-fé objetiva é norma-princípio. Ou seja, tem conteúdo aberto. Boa-fé subjetiva é norma-regra.
Como tal, tem conteúdo fechado, previamente definido.
Segundo Flávio Tartuce, é possível esquematizar o instituto da boa-fé no direito privado da seguin-
te forma:
 Boa-fé subjetiva (“Guten Glauben”):
 Estado psicológico.
Boa-fé no Direito  Boa-intenção.
Privado  Posse (CC, art. 1.20119).

 Boa-fé objetiva (“Treu und Glauben” ou“correttezza” ) - associada


aos deveres anexos ou laterais:
 Agir com lealdade.
 Boa conduta.
 Contrato (CC, art. 422).
Neste tópico, será analisada a boa-fé objetiva, que serve como princípio contratual. Isso não signifi-
ca que a subjetiva não deva estar presente nos contratos.

4.4.2. Boa-fé objetiva e a eticidade


A boa-fé objetiva decorre de uma das diretrizes estabelecidas pelo CC/02: a eticidade232. Isso por-
que ela nada mais é que a ética que se espera dos contratos. Numa perspectiva mais ampla, ela traduz o
sentimento ético que se espera das pessoas.
Nem tudo deve ser dito. Alguns sentimentos e expectativas são implícitos. A boa-fé objetiva é aqui-
lo que se espera de alguém por força de um sentimento ético. O fundamento jurídico da boa-fé objetiva
vem da constitucionalização do direito civil (arts. 1º e 3º da CR: dignidade da pessoa humana e solidarie-
dade social). A finalidade da boa-fé objetiva é flexibilizar o sistema contratual, permitindo encontrar so-
luções adequadas nos casos concretos.
A boa-fé objetiva, portanto, é aplicada em favor de ambas as partes, e não somente do mais fraco.
Ela não é instrumento de correção de posições de hipossuficiência das partes. Ambas as partes precisam
ter um comportamento ético. Evidentemente, a boa-fé é flexível, mas em última análise ela serve a ambas
as partes.

232 Vale lembrar que o CC/02 traz três importantes diretrizes: eticidade, socialidade e operabilidade.

337
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4.4.3. A tríplice função da boa fé objetiva


A boa-fé objetiva é multifuncional, desempenhando três diferentes funções: interpretativa, integra-
tiva e limitadora.

4.4.3.1. Função interpretativa (Art. 113, CC233)


A função interpretativa significa que toda cláusula contratual deve ter o seu sentido e alcance defi-
nidos conforme a ética que se espera das partes.
Nesse sentido, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
da sua celebração.
Da letra do artigo denota-se que a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do aplicador do direi-
to para a interpretação dos negócios, da maneira mais favorável a quem esteja de boa-fé. Essa função de
interpretação, repise-se, também parece estar presente no Novo CPC, no seu art. 489, § 3.º, devendo o
julgador ser guiado pela boa-fé das partes ao proferir sua decisão.
Ex.: um locatário, compelido contratualmente a devolver o imóvel “pintado”, entregou o bem pin-
tado de preto. Ele foi condenado a pintar corretamente o imóvel, por haver violado a boa-fé, segundo a
interpretação da cláusula feita pelo magistrado.

4.4.3.2. Função integrativa (Art. 422, CC)

A função integrativa estabelece deveres anexos, implícitos, independentes da vontade das partes.
Ou seja, ela é fonte autônoma de obrigações, pois os deveres estarão presentes, queiram as partes ou não
e devem integrar todas as fases contratuais
São exemplos de deveres anexos a informação, a lealdade e a segurança.
São consequências da função integrativa:
i) faz surgir os conceitos de responsabilidade civil pré e pós contratual:
Os deveres anexos estão presentes desde antes até depois do contrato. O contrato, portanto, traz
agora consigo uma pré e uma pós-eficácia. A eficácia do contrato sempre foi tida como existente durante
o contrato.
Exemplos: a empresa russa “Lada” foi condenada a manter peças de reposição por cinco anos. A
CICA por vários anos incentivou a safra de tomates, provendo cursos, sementes etc. aos fornecedores,
tendo em todas as ocasiões adquirido as safras. Num determinado ano, mantendo conduta idêntica, re-
solveu não mais comprar. Acabou condenada a pagar indenização, por haver frustrado as expectativas
criadas. Há precedentes no STJ nesse sentido234.

233 CC, art. 113: “ Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração.”.
234 (REsp 1309972/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2017,

DJe 08/06/2017).

338
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em relação à responsabilidade pós contratual aponta-se a Súmula 548 STJ235 que prevê a obrigação
do credor tem o prazo de cinco dias úteis, após o efetivo pagamento da dívida, para retirar o nome do
devedor do cadastro de inadimplentes, sob pena de uma responsabilidade pós-contratual (“post pactum
finitum”).
ii) violação positiva de contrato (REsp 988.595/SP):
A violação positiva de contrato ocorre quando a parte cumpre todos os deveres contratuais, mas
descumpre os deveres anexos da boa-fé objetiva. A violação positiva de contrato é extracontratual, é vio-
lação de dever legal. Naturalmente, portanto, não está limitada ao valor do contrato.
Ex.: determinada empresa contrata a inserção de 20 placas de “outdoor” para campanha publicitá-
ria dirigida à classe “A”, mas a contratada as instala na periferia. Há, nessa hipótese, descumprimento de
deveres anexos.
Da função de intrgração são retirados os “conceitos parcelares” da boa-fé objetiva:

4.4.3.2.1. “Supressio” (“Verwirkung”).

Conforme visto em itens acima, trata-se da perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu
não exercício no tempo (renúncia tácita).

4.4.3.2.2. “Surrectio” (“Erwirkung”)

Nas palavras de Flávio Tartuce, enquanto a supressio constitui a perda de um direito ou de uma po-
sição jurídica pelo seu não exercício no tempo; a surrectio é o surgimento de um direito diante de práticas,
usos e costumes.
Ambos os conceitos podem ser retirados do art. 330 do CC/2002, constituindo duas faces da mes-
ma moeda, conforme afirma José Fernando Simão.
A tese encontra guarida no STJ, que já acolheu a Teoria dos atos próprios, ao decidir que “A su-
pressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das
partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima
expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.”.236

4.4.3.2.3. “Tu quoque”.

Do ponto de vista contratual, traduz a regra de ouro da boa-fé “não faça contra o outro o que
você não faria contra si mesmo.”.

235 Súmula 548, STJ: “Incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor no cadastro
de inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, a partir do integral e efetivo pagamento do débito”.
236 (REsp 1202514/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe

30/06/2011).

339
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, leciona Flávio Tartuce que um contratante que violou uma norma jurídica não pode-
rá, sem a caracterização do abuso de direito, aproveitar-se dessa situação anteriormente criada pelo des-
respeito. Assim, uma parte contratual não pode criar uma situação fática para depois dela tirar proveito.
Deriva da expressão “Até tu?” externada pelo Imperador Julio Cesar ao seu filho adotivo Brutus,
que o traiu.

4.4.3.2.4. “Exceptio doli”.

Segundo Flávio Tartuce, a exceptio doli é conceituada como sendo a defesa do réu contra ações do-
losas, contrárias à boa-fé. Aqui a boa-fé objetiva é utilizada como defesa, tendo uma importante função
reativa, conforme ensina José Fernando Simão.
Exemplo clássico encontra-se no Art. 476, CC237: exceção de contrato não cumprido. Em um contra-
to bilateral, uma parte não pode exigir que a outra cumpra com a sua obrigação se não cumprir com a
própria.

4.4.3.2.5. “Venire contra factum proprium non potest”.

Segundo Flávio Tartuce, estabelece a vedação do comportamento contraditório.


A máxima traduz a ideia de que determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrari-
ando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes
da boa-fé objetiva.
Tem previsão no Enunciado 362, IV Jornada de Direito Civil238 e possuí como fundamento o dever
de confiança.
Anderson Schreiber, aponta quatro pressupostos para aplicação da proibição do comportamento
contraditório:
1.º) um fato próprio, uma conduta inicial;
2.º) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo dessa conduta;
3.º) um comportamento contraditório com este sentido objetivo;
4.º) um dano ou um potencial de dano decorrente da contradição
Pela análise dos requisitos, Flávio Tartuce assevera que a diferença entre o venire e a supres-
sio/surrectio é que o venire demanda ao menos um comportamento positivo, ao passo que as
outras figuras se verificam mais por uma omissão dos contratantes.
O conceito, assim, como os institutos da supressio e surrectio, mantém relação com a tese dos atos
próprios, (advinda do Direito Espanhol que tem como expoente Luís Díez-Picazo) e já foi aplicado pelo

237 CC, art. 476: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode
exigir o implemento da do outro.”.
238 Enunciado 362, IV: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-

se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil.”.

340
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

STJ na oportunidade em que o locatário, após assinar o contrato de locação, alegou que não pagaria os
aluguéis porque o locador não era proprietário 239.

4.4.3.2.6. “Duty to mitigate the loss”

Trata-se do dever imposto ao credor de mitigar suas perdas, ou seja, o próprio prejuízo. Sobre essa
premissa foi aprovado o Enunciado n. 169 do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil, inspirado pelo está
inspirado no art. 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre a venda internacional de mercadorias (CISG)
pelo qual “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

4.4.3.2.7. “Nachfrist”

De origem alemã, a máxima informa que o comprador poderá conceder ao vendedor prazo razoável
e suplementar para o cumprimento da obrigação. Nesse prazo, em regra, não cabe ação fundada no ina-
dimplemento.
Encontra-se prevista pelo art. 47 da mesma Convenção de Viena sobre Compra e Venda (CISG)240.
Trata-se da concessão de um prazo adicional ou período de carência pelo comprador para que o
vendedor cumpra a obrigação, o que tem o intuito de conservar a avença. Diante da relação com a manu-
tenção da autonomia privada, não se pode negar que o conceito também tem amparo na função social do
contrato.
O instituto foi discutido pela primeira vez em julgamento recente exarado pelo TJ/RS (2017) no
"Caso dos Pés de Galinha".241

4.4.3.3. Função limitadora, restritiva ou de controle (Art. 187, CC)


A função limitadora (restritiva ou de controle) estabelece um “freio” na contratação, impedindo o
exercício de direitos subjetivos contratuais que se mostrem abusivos.
Segundo a lição de Flávio Tartuce, aquele que viola a boa-fé objetiva no exercício de um direito co-
mete abuso (ilícito).
O Professor aponta como consequências dessa função a nulidade absoluta e responsabilidade civil
objetiva (Enunciado n. 37 – I Jornada de Direito Civil242).

239 (STJ, Ag. Rg. Nos EDcl nos EDcl no Ag 704.933/SP):


240 CISG, art. 47: “ (1) O comprador poderá conceder ao vendedor prazo suplementar razoável para o cum-
primento de suas obrigações; (2) Salvo se tiver recebido a comunicação do vendedor de que não cumprirá suas
obrigações no prazo fixado conforme o parágrafo anterior, o comprador não poderá exercer qualquer ação por des-
cumprimento do contrato, durante o prazo suplementar. Todavia, o comprador não perderá, por este fato, o direito
de exigir indenização das perdas e danos decorrentes do atraso no cumprimento do contrato”.
241 (Apelação Cível Nº 70072362940, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 14/02/2017).


242 Enunciado 37, I JDC: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fun-

damenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

341
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É possível dizer que a segunda e terceira funções são tese e antítese: uma estabelece direitos ane-
xos, a outra limita deveres estabelecidos. Já a terceira função está intimamente ligada ao abuso de direi-
to.
Exemplos:
i) limitações ao anatocismo (juros compostos);
ii) tese do adimplemento substancial (“substantial performance”, adimplemento substancial ou
inadimplemento mínimo)

4.5. Princípio da relatividade dos efeitos contratuais (res inter alios)

O princípio estabelece que o contrato, em regra, gera efeitos entre as partes contratantes, pois é
instituto de direito pessoal, de modo que excepcionalmente é possível que o contrato gere efeitos perante
terceiros.
Assim, Flávio Tartuce aponta como exceções:
1ª exceção: estipulação em favor de terceiro (CC, arts. 436 a 438).
O contrato beneficia um terceiro que não é parte, mas que pode exigir o seu cumprimento. Os efei-
tos contratuais são de dentro para fora do contrato (efeitos exógenos). Exemplo: seguro de vida.
2ª exceção: promessa de fato de terceiro (CC, arts. 439 e 440).
Um contratante promete ao outro uma conduta alheia que, se não praticada, gera o seu inadim-
plemento. Os efeitos são de fora para dentro do contrato (efeitos endógenos). Exemplo: promessa de um
“show” de um cantor que não comparece.
3ª exceção: princípio da função social do contrato na sua eficácia externa (Enunciado n. 21 – I
Jornada de Direito Civil - Tutela externa de crédito).
Obs.: Seria possível que a vítima de um acidente de trânsito demandasse diretamente a seguradora
do culpado?
Sim (REsp. 444.716/BA).
Não (REsp. 962.230/RS) – Súmula 529, STJ243.
Ressalva (REsp. 1.584.970/MT) – a vítima pode demandar diretamente quando estiver reconhe-
cida, em sede administrativa, a responsabilidade da seguradora.
4º exceção: O contrato com pessoa a declarar ou com cláusula pro amico eligendo (arts. 467 471
do CC) – no momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se à faculdade de indicar
a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as obrigações dele decorrentes (art. 467 do CC). Tal figu-
ra é muito comum no contrato preliminar.

243 Súmula 529, STJ: “No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo

terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.”.

342
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, por meio dessa previsão, a indicação do terceiro que assumirá a posição contratual no mo-
mento do contrato definitivo deverá ser efetivada com prazo de antecedência de cinco dias antes do con-
trato definitivo (em regra) (pode constar prazo maior para a indicação – CC, art. 468).

4.6. Princípio do equilíbrio econômico e financeiro dos contratos

4.6.1. Noções gerais


O Código de 1916 consagrou o princípio do pacta sunt servanda. No ápice daquela noção, não se
falava em equilíbrio dos contratos, pois se dizia que o contrato fazia lei entre as partes. Dizia-se: “morra,
mas cumpra”.
Em 1918, na França, foi editada a primeira norma permitindo a revisão ou a resolução dos contra-
tos (a chamada “Lei Faillot”). A norma resgatou do direito romano a cláusula rebus sic stantibus e com
ela consagrou a teoria da imprevisão. Assim, a teoria da imprevisão permitiu, pela primeira vez, a revisão
ou a resolução dos contratos.
A Lei Faillot surgiu no pós guerra, para buscar rever contratos celebrados antes dela. Até então,
prevalecia o pacta sunt servanda. Com a consagração da teoria da imprevisão e a possibilidade de reso-
lução e revisão, houve a primeira manifestação do princípio do equilíbrio econômico e financeiro dos
contratos. Na verdade, foi a primeira vez que o direito contratual se preocupou com o princípio.

4.6.2. Requisitos para a aplicação da teoria da imprevisão


São requisitos para a aplicação da teoria da imprevisão (cumulativos):
i) o contrato deve ser de trato sucessivo, ou seja, de execução continuada, não instantâneo;
ii) deve haver desequilíbrio entre a prestação e contraprestação, chamado de “onerosidade excessi-
va”;
iii) deve estar presente a álea extraordinária, consubstanciada no evento imprevisível e extraordi-
nário que gerou o desequilíbrio;
iv) inexistência de culpa da parte.

4.6.3. Teoria da imprevisão e teoria da base objetiva do negócio no direito brasileiro


O primeiro livro escrito no Brasil acerca da teoria da imprevisão foi de Arnoldo Medeiros da Fonsa-
ca (RJ), chamado “Teoria da imprevisão e caso fortuito”. A doutrina, à época, estabeleceu que somente
seria possível a aplicação da teoria quando houvesse caso fortuito ou força maior.
A tímida teoria confirmava que a regra era o pacta sunt servanda. Consequência disso foi a asfixia
que sofreu a teoria da imprevisão pela jurisprudência nas décadas de 1970 e 1980. Com efeito, os tribu-
nais estabeleceram que a aplicação da teoria da imprevisão seria restrita às hipóteses inimagináveis à
vontade das partes. Ou seja, somente naqueles casos em que as partes nunca imaginariam a ocorrência

343
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

do evento é que seria possível a aplicação da teoria da imprevisão. Basta verificar que, no Brasil, a infla-
ção, a alta do dólar, a alteração de planos econômicos ou até o confisco são imagináveis.
A teoria da imprevisão, portanto, restou asfixiada em sua dimensão.
Veio então o CDC, que em seus arts. 4º e 6º se divorciou da teoria da imprevisão e passou a adotar
a teoria da base objetiva do contrato, preconizada, dentre outros, por Karl Larenz. Essa teoria também é
chamada de “teoria da onerosidade excessiva pura”:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das neces-
sidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus in-
teresses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmo-
nia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008,
de 21.3.1995) (...)

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização
da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição
Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedo-
res;

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua


revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

A teoria da base objetiva do contrato dispensa a imprevisibilidade. Vale dizer, mesmo que o evento
seja previsível, é possível a revisão ou a resolução quando houver onerosidade excessiva. Não há dúvidas
de que esta teoria é uma evolução da teoria da imprevisão (um desdobramento).
Em 1999, o STJ proferiu importante decisão acerca do tema, julgando demanda relacionada a con-
trato de leasing reajustável pelo dólar (que até então variava muito pouco). Por conta de crise cambial,
essa variação foi muito intensa e gerou desequilíbrio. Com base na teoria da imprevisão o STJ não conse-
guiria rever aqueles valores, o que só foi possível por se tratar de questão envolvendo relação de consu-
mo.
O CC/02 finalmente manifestou-se acerca do tema, em seus arts. 478 e 317, acolhendo, de maneira
ilógica e na contramão da evolução legislativa, a teoria da imprevisão:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se
tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de aconteci-
mentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efei-
tos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

344
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da
prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de
modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

E o pior: acolheu a teoria da imprevisão qualificada (adjetivada), porque além dos clássicos requisi-
tos acrescentou mais um, que não estava presente quando da construção, da teoria: a correspondência
entre o prejuízo sofrido por uma parte e a vantagem excessiva obtida pela outra.
Observe que se trata de um requisito perigosíssimo. Numa análise perfunctória, percebe-se que a
desvantagem de uma parte não necessariamente corresponde à vantagem da outra. Claramente, o legis-
lador brasileiro quis distinguir as relações de consumo (em que se aplica a teoria da base objetiva) das
relações de direito civil (em que se aplica a teoria da imprevisão qualificada).
De todo modo, presentes os requisitos da teoria da imprevisão, será possível a revisão ou a resolu-
ção dos contratos.
A decisão sobre se será o caso de revisão ou resolução cabe à parte interessada (prejudicada), com
apenas uma exceção: nas relações de consumo, quando o pedido for formulado pelo fornecedor. Nessa
hipótese, ele somente poderá pleitear a revisão. Isso porque, ao requerer a extinção do contrato, o forne-
cedor ele está obstando o acesso ao produto ou serviço. Nos demais casos, o interessado decide entre
rever ou resolver a avença.

4.6.4. Observações finais


A primeira observação é a seguinte: como visto, a histórica compreensão da teoria da imprevisão
sempre foi muito tímida, pois exigir a ocorrência de um evento imprevisível e extraordinário é relegar a
teoria a um segundo plano, na medida em que o evento imprevisível é muito difícil de ocorrer.
Numa tentativa de salvar a aplicação dos artigos 478 e 317 do Código Civil, a doutrina brasileira vai
desenvolvendo a tese de que a imprevisibilidade e a extraordinariedade não devem estar na causa, mas
nos efeitos.
A segunda observação é que o art. 479 do Código Civil permite que o réu da ação de revisão ou re-
solução se predisponha a cumprir o contrato sem a vantagem. Nesse caso, evita-se a procedência do pe-
dido:

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as
condições do contrato.

O réu, portanto pode evitar a resolução do contrato, ao concordar com a revisão. Daniel Assunção
esclarece que essa oferta pode ser realizada pelo réu tanto em reconvenção quanto em exceção substanci-
al dentro da própria contestação.

5. Regras de interpretação dos contratos

345
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Contrato é baseado na vontade. E a vontade humana nem sempre é clara. Nem sempre é fácil in-
terpretá-la. O CC/02, por isso, estabeleceu regras de interpretação dos contratos, para que a vontade
pudesse ser esclarecida e respeitada.
No CC/02, as regras estabelecidas dividem-se em dois grupos:
i) regra de ouro (trata-se da regra principal de interpretação);
ii) regras acessórias combinantes.
Toda e qualquer interpretação, portanto, passa pela regra principal, que estará sempre presente. A
regra acessória combinante serve apenas para facilitar a interpretação de determinados contratos.

5.1. Regra principal

A regra principal de interpretação dos contratos é a boa-fé objetiva (art. 113 do Código Civil):

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de
sua celebração.

5.2. Regras acessórias combinantes

5.2.1. Interpretação dos contratos com reserva mental


Reserva mental é o propósito secreto, obscuro, de não cumprir aquilo que se estava declarando (a
vontade declarada). Se uma das partes tem reserva mental, significa que ela está dizendo algo que não irá
cumprir.
O art. 110 do CC apresenta a regra de interpretação dos contratos com reserva mental:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de
não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

Se a reserva mental é desconhecida da parte contrária, o contrato subsiste e eventual prejuízo so-
frido pela parte inocente é resolvido em perdas e danos. Contudo, se a reserva mental é conhecida da
contraparte, ou seja, se a parte contrária sabe da reserva mental, caracteriza-se simulação e o contrato é
nulo. Veja, se uma parte sabe que a outra não cumprirá o contrato e mesmo assim o celebra, é porque ela
também não o cumprirá.
Ex.: somente se permite a denúncia dos contratos de locação de imóveis urbanos nos casos previs-
tos em lei (locação por tempo determinado, inferior a 30 meses). É o que se chama denúncia motivada
(ou “cheia”). Pretendendo o locador reaver o imóvel, por possuir proposta mais favorável, e não havendo
nenhum dos motivos previstos em lei para o despejo, ele celebra com um amigo um contrato de compra e
venda do imóvel, para viabilizar o despejo do locatário. Trata-se de negócio jurídico nulo, na medida em
que simulado.

5.2.2. Interpretação da declaração de vontade nos contratos

346
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 112 do Código Civil estabelece que nos contratos é mais importante a intenção que o sentido
literal da linguagem:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que
ao sentido literal da linguagem.

Exemplo de Caio Mário: o sujeito quer fazer uma doação para o bombeiro X, que salvou a vida do
seu filho. Descobre-se que, na verdade, quem salvou o filho foi o bombeiro Y. Nesse caso, receberá a doa-
ção o bombeiro Y, pois o que mais importa é a vontade consubstanciada no negócio, e não o sentido lite-
ral da linguagem.

5.2.3. Interpretação restritiva dos contratos


A regra que determina a interpretação restritiva de determinados contratos está prevista no art. 114
do CC:

Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

Estarão obrigatoriamente submetidos a interpretação restritiva a fiança, o aval, a renúncia, as dis-


posições benéficas e as sanções.
Ex.: nos termos da Súmula 214 do STJ, o fiador, na locação de imóveis urbanos, não responde por
obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu. Trata-se de uma interpretação restritiva da fi-
ança:

Súmula 214 - O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao
qual não anuiu.

O entendimento consubstanciado na Súmula, todavia, não afasta a incidência da nova redação do


art. 39 da Lei de Locações (Lei 8.245/1991), que estabelece que o fiador locatício fica atrelado ao contrato
até a efetiva devolução das chaves:

Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende
até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por
força desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.112, de 2009)

Numa interpretação superficial, poderia parecer que a Sumula 214 e o art. 39 da Lei de Locações
estariam em rota de colisão: um dizendo que o fiador não se responsabiliza por deveres decorrentes de
aditamento ao qual não anuiu e o outro dizendo que ele está vinculado à renovação. Todavia, as normas
não colidem, na medida em que o contrato de locação possui cláusula de renovação automática.
Veja que se trata de situação injusta com o fiador. Em razão disso, a lei prevê que assim que o ga-
rante toma conhecimento da renovação automática, ele dispõe o prazo de 30 dias para informar o loca-
dor de que se exonerará. Notificado, o locador pode exigir do locatário uma nova garantia, em 180 dias,
durante os quais o fiador permanece como garante, atrelado ao contrato. Se nesses 180 dias o locatário

347
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

não der outra garantia, ocorrerá despejo em 15 dias. Veja que são três prazos diferentes (30 dias para o
fiador que toma conhecimento da prorrogação notificar o locador, 180 dias para que o locatário provi-
dencie outra garantia e 15 dias para o despejo, se não oferecida a garantia).
A lei procura equalizar os interesses do locador, do locatário e do fiador.

5.2.4. Interpretação do autocontrato (ou contrato consigo mesmo)


Pode parecer estranho falar em autocontrato em matéria contratual, na medida em que o contrato
envolve a vontade de ao menos duas partes. Todavia, é plenamente possível o contrato consigo mesmo,
no caso da representação privada (uma pessoa concede poderes a outra para atuar em seu nome).
Obs.: nem toda representação é contrato de mandato e nem todo mandato traz consigo a represen-
tação. No contrato de sociedade, é possível que seja estabelecido que um dos sócios represente a socieda-
de (representação sem mandato); no mandato em causa própria, há mandato sem representação. Não se
pode negar, todavia, que o mais eloquente exemplo de representação é o contrato de mandato.
Imagine que o proprietário concede poderes a um amigo para que venda um terreno. Esse manda-
tário, se celebrar o contrato de compra e venda com ele mesmo, celebra autocontrato.
O autocontrato, portanto, se caracteriza quando a mesma pessoa figura, simultaneamente, em am-
bos os polos da relação contratual, em um deles em nome próprio e no outro em nome alheio, por força
de representação.
É humano pensar que, atuando em ambos os polos da relação contratual, a parte agirá defendendo
mais os seus interesses que os do terceiro, como reação intuitiva. Por isso, o CC/02 estabelece que a in-
terpretação do autocontrato será anulável se celebrado no interesse do representante e em prejuízo do
representado.
Esta anulabilidade se dará, por exemplo, se o representante, ao vender o terreno a ele mesmo, fixe
preço inferior ao praticado no mercado.
Se o contrato é de consumo ou de adesão, o autocontrato é nulo, e não anulável, na medida em que
não haverá declaração de vontade, a qual resta asfixiada. Exemplo de nulidade de autocontrato é a hipó-
tese da Súmula 60 do STJ (cláusula de autocontrato no mútuo):

Súmula 60 - É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao


mutuante, no exclusivo interesse deste.

Trata-se da abusiva previsão contratual segundo a qual o mutuário concede poderes à CEF para ge-
rir o contrato em seu nome, podendo ela emitir título cambiário em favor dela própria.

6. Formação dos contratos no Código Civil de 2002


Nas palavras de Flávio Tartuce o contrato nasce da conjunção de duas ou mais vontades coinciden-
tes, sem prejuízo de outros elementos, o que consubstancia aquilo que se denomina autonomia privada.
Sem o mútuo consenso, sem a alteridade, não há contrato.

348
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Neste tópico, serão analisados os diferentes momentos pelos quais passam os contratos durante a
sua formação, sendo interessante notar que os efeitos jurídicos são crescetntes, ou seja, a cada fase supe-
rada aumenta a força vinculativa do contrato.

6.1. Tratativas, negociações preliminares ou puntuação

Nesta fase, ocorrem os debates prévios e iniciais para a celebração do contrato definitivo. Exemplo:
carta de intenções ou “acordo de cavalheiros”.
As negociações preliminares ou tratativas não constituem, propriamente, um momento de forma-
ção do contrato, mas a um estudo prévio do interesse de contratar. Ex.: as minutas são exemplo de nego-
ciação preliminar.
De se lembrar que essa fase não está prevista no Código Civil de 2002 e, segundo Flávio Tartuce,
não vincula os participantes quanto à celebração do contrato definitivo.
Assim, durante as tratativas, não há que se falar em contrato e, consequentemente, em responsabi-
lidade contratual. Todavia, é possível cogitar de responsabilidade civil pré-contratual por violação da
boa-fé objetiva (exemplo da empresa CICA, visto acima). Lembre-se que a responsabilidade pré-
contratual, de acordo com a doutrina majoritária244, tem natureza extracontratual ou aquiliana, segundo
Saleilles, Maria Helena Diniz, Junqueira, Caio Mário, Carlos Alberto Bittar e Cristiano Zanetti. Como tal,
não está limitada pelo valor do contrato.

6.2. Proposta, oferta ou policitação (Arts. 427 a 435, CC)

Proposta é a declaração de vontade dirigida à celebração de um contrato. Ou seja, é a manifestação


da intenção de contratar.
Nesse ponto, duas figuras são importantes:
a) Proponente, solicitante ou policitante: aquele que faz a proposta, estando a ela vinculado.
b) Oblato, solicitado ou policitado: aquele que recebe a proposta. Se aceitá-la, torna-se aceitante,
estando o contrato aperfeiçoado pelo encontro das vontades. O oblato poderá formular uma
contraproposta, situação em que os papéis se invertem: o proponente passa a ser oblato e vice-
versa.
O Código Civil, nesse ponto, andou bem. Estabeleceu que o proponente fica vinculado e responde
pelos termos da proposta. Ele deve cumpri-la. Vinculam-se à proposta (isto é, precisam cumpri-la) tanto
o proponente como os seus sucessores. O Código Civil, na mesma linha do CDC (Art. 30), determina que
a proposta feita ao público vincula nos mesmos moldes que a individual. Aliás, a grande maioria das pro-
postas hoje é feita ao público (TV, internet, rádio etc.)

244 Em minoria e pela responsabilidade contratual temos Mengoni, Galgano e Pablo Stolze e Pam-
plona e Tartuce.

349
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A maior novidade que o Código implantou no estudo da proposta é que a responsabilização do pro-
ponente se dará por meio de perdas e danos ou de execução específica, conforme o interesse da parte. No
CC/16, a tutela jurídica da proposta era sempre de perdas e danos.
O artigo 428 do Código Civil245 prevê as hipóteses em que a proposta deixa de ser obrigatória.
Inc. I: se, feita sem prazo à pessoa presente, não foi imediatamente aceita (contrato com declaração
consecutiva). Considera presente quem contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante.
Inc. II: se, feita sem prazo à pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta
ao conhecimento do proponente (contrato com declarações intervaladas).
Inc. III: se, feita à pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta no prazo dado.
Inc. IV: se, antes da resposta (ou proposta) ou simultaneamente a ela, chegar ao conhecimento do
oblato a retratação do proponente.

6.2.1. Aceitação
A aceitação, também chamada de “oblação”, é a anuência da pessoa a quem a proposta foi dirigida.
O CC/02 estabelece que a aceitação deve ser plena e integral. Isso significa que toda e qualquer
aceitação com adição, restrição, modificação ou fora do prazo não vale como aceitação (não produz efei-
tos, consequências jurídicas).
Neste ponto, o Código promove uma conversão legal: ele converte a aceitação com adição, restri-
ção, modificação ou fora do prazo em nova proposta. Tal conversão é automaticamente feita pela lei. Ex.:
havendo anúncio de grande feirão no domingo, se o sujeito vai ao local na segunda, ele está realizando
nova proposta (por conversão legal).
Realizada a aceitação, o contrato está formado. Todavia, essa regra segundo a qual o contrato se
forma com a aceitação terá perfeita aplicação aos contratos entre pessoas presentes (inter praesentes),
mas não vale para contratos celebrados entre ausentes (inter absentes - ex.: contrato eletrônico, pela
Internet) 246, na medida em que, nesta última hipótese, as partes não estão juntas.
Nesse sentido, Flávio Tartuce rememora que para que se verifique a contratação entre presentes,
ambos os contratantes devem estar no mesmo ambiente (ainda que virtual), distância e tempo (pergunta
e resposta de imediato).

245CC, art. 428: “Deixa de ser obrigatória a proposta: I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imedia-
tamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação
semelhante; II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao
conhecimento do proponente; III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo
dado; IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente”.
246 Exemplo clássico é o contrato epistolar cuja proposta é formulada por carta, via correio. Entretanto, di-
ante dos novos métodos de comunicação eletrônica, tal figura contratual perdeu a sua importância prática.

350
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A doutrina brasileira (Caio Mário e outros) defende que o melhor critério para a formação de con-
tratos entre ausentes seria a teoria da cognição, segundo a qual o contrato forma-se no momento em que
o proponente toma conhecimento da aceitação.
Não é o critério do CC/02, que optou, em regra, pela teoria da agnição por expedição, de
acordo com a qual o contrato se forma no momento em que o aceitante (o oblato) expede
sua aceitação. Veja que se trata de um critério inseguro.
Como exceção à regra, CC/02 adota ainda a teoria da agnição por recepção mediante a qual o
contrato se forma no momento em que a aceitação é recebida pelo proponente (CC, art. 434, I, II e III).
Exemplo: quando a teoria for convencionada entre as partes.
Obs.: Para os contratos eletrêonicos entre ausentes, aplica-se a teoria da agnição por recepção se-
gundo o Enunciado n. 173 – III Jornada de Direito Civil247
Por oportuno, vale tecer alguns comentários acerca do lugar do contrato, tema interessante para
fins de prova objetiva.
O CC/02, em seu art. 435, consagra que o lugar do contrato é o da realização da proposta:

Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto.

Entretanto, o art. 9º, § 2º, da LINDB determina que o lugar do contrato é o da residência do pro-
ponente:

Art. 9º (...) § 2o A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir
o proponente.

Surge o problema evidente: qual das normas é aplicável? Nenhuma delas foi revogada, de modo
que ambas são aplicáveis: o Código Civil é aplicável aos contratos internos e a LINDB aos contratos in-
ternacionais.
Sob o ponto de vista prático, é importante ressaltar que não se confundem o lugar do contrato e o
foro de eleição contratual, que é o lugar estipulado pelas partes para dirimir eventuais conflitos sobre
aquele contrato.

6.3. Contrato preliminar (art. 462 a 466, CC)

O contrato preliminar é também chamado de pré-contrato ou promessa de contrato. Trata-se de


uma obrigação de fazer assumida pelas partes, consistente na obrigação de manifestar vontade para a
celebração de outro contrato:

Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenci-
ais ao contrato a ser celebrado.

247 Enunciado 173, III JDC: “A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio eletrôni-

co, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente”.

351
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nessa oportunidade, já existe um contrato preparatório, documentado, com efeitos jurídicos pró-
prios, visando ao contrato definitivo. Exemplo de efeitos jurídicos próprios: arras ou sinal (CC, arts. 417 a
420).
É preciso muito cuidado no estudo do contrato preliminar, pois não há relação de subordinação (de
dependência) entre o contrato preliminar o prometido. Isso significa que o contrato preliminar não é
acessório e o definitivo não é principal, pois são contratos autônomos e independentes entre si.

6.3.1. Modalidades de contrato preliminar


Como aponta Maria Helena Diniz, duas são as modalidades básicas de contrato preliminar (com-
promisso de contrato).

6.3.1.1. Compromisso unilateral de contrato ou contrato de “opção” (Art.466, CC)

Nas palavras de Flávio Tartuce, trata-se de hipótese em que as duas partes assinam o instrumento,
mas somente uma das partes assume um dever, uma obrigação de fazer o contrato definitivo. Assim, existe
para o outro contratante apenas uma opção de celebrar o contrato definitivo. Exemplo: promessa de doa-
ção.

6.3.1.2. Compromisso bilateral de contrato

Conforme leciona Flávio Tartuce, nessa espécie de compromisso, as duas partes assinam o instru-
mento e, ao mesmo tempo, assumem a obrigação de celebrar o contrato definitivo.
Para gerar os efeitos constantes no atual Código Civil, no contrato preliminar não poderá constar
cláusula de arrependimento, conforme consta do art. 463 da codificação. Assim como ocorre com o com-
promisso unilateral de contrato, o compromisso bilateral pode ter como objeto bens móveis ou imóveis.
A promessa de compra e venda e a promessa de comodato são dois ótimos exemplos compromissos
bilaterais. Em ambos os casos há a promessa de celebrar o contrato futuro. Na promessa de compra e
venda, uma das partes entrega o bem e a outra promete pagar. Pago o preço, o promitente vendedor ce-
lebrará o contrato de compra e venda.
Partindo da premissa de que não há relação subordinativa (acessório e principal), o contrato preli-
minar precisa atender a todos os requisitos do contrato prometido, exceto a forma, assim o contrato pre-
liminar não exige escritura pública p. ex. Se o contrato preliminar fosse acessório, teria de cumprir a
forma do contrato principal, dessa forma, a promessa de compra e venda de bem imóvel, portanto, pode
ser feita por instrumento particular.
Em relação ao compromisso de compra e venda de imóvel, existem duas figuras possíveis, as quais
dependerão do registro ou não do contrato preliminar na matrícula do imóvel (CRI, RGI, RI).

352
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce, eventual registro do compromisso é apenas um fator de eficácia perante
terceiros (Enunciado n. 30 – I Jornada de Direito Civil248). Não é requisito de validade.
Nesse sentido, o registro cria um direito real de aquisição (CC, art. 1.225, VII). Assim, são possíveis
as seguintes figuras jurídicas:
i. Compromisso de compra e venda de imóvel não registrado na matrícula:
a) Há um contrato preliminar propriamente dito.
b) Efeitos obrigacionais “inter partes”.
c) Gera obrigação de fazer o contrato definitivo.
d) Pode haver cláusula de arrependimento ou não.
Se não constar a cláusula de arrependimento e o promitente vendedor não celebrar o contrato defi-
nitivo, o compromissário comprador que tiver pagado o preço terá as seguintes opções:
1ª) CC, art. 463: ação de obrigação de fazer. O juiz fixa um prazo para a outorga do contrato defini-
tivo.
2ª) CC, art. 464: esgotado o prazo, o juiz pode suprir a vontade do réu (promitente vendedor) (ad-
judicação compulsória “inter partes” – S. 239 STJ e Enunciado n. 95 – I Jornada de Direito Civil249).

Súmula 239 - O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromis-


so de compra e venda no cartório de imóveis.

3º) CC, art. 465: resolução mais perdas e danos.


ii. Compromisso de compra e venda de imóvel registrado na matrícula (CC, arts.
1.225, VII, 1.417 e 1.418, Dec.-Lei n. 58/37, Lei n. 6.766/79 e Lei 13.786/2018).
a) Direito real de aquisição o que produz efeitos reais “erga omnes”.
b) Segundo aFlávio Tartuce, existe uma obrigação de dar (Orlando Gomes, Maria Helena Diniz
e José Osório).
Obs.: Afirmava-se que o compromisso registrado seria irretratável, pois é nula a cláusula de arre-
pendimento (Súmula n. 166 STF250). Porém, a Lei 13.786/2018 passou a possibilitar o exercício do direito
de arrependimento do art. 49, CDC (desde que exercido em até 7 dias), só passando a ser irretratável
depois desse prazo.
Se o promitente vendedor não celebrar o contrato definitivo, o compromissário comprador que
pagar o preço terá ação de adjudicação compulsória contra ele ou contra terceiros (efeitos “erga omnes”).

248 Enunciado n. 30, I JDC: “A disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código Civil deve ser inter-

pretada como fator de eficácia perante terceiros”.


249 Enunciado n. 95, I JDC: “O direito à adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo Código Civil), quando

exercido em face do promitente vendedor, não se condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartó-
rio de registro imobiliário (Súmula n. 239 do STJ)”.
250 Súmula 166, STF: “É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regi-

me do Decreto-Lei 58, de 10.12.1937”.

353
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No exemplo da promessa de comodato (ex.: promessa de emprestar o apartamento a um amigo du-


rante o carnaval), talvez o mais interessante sejam as perdas e danos (no exemplo, o sujeito aluga outro
apartamento e o promitente paga o preço).

6.4. Contrato definitivo

A última fase de formação do contrato é a fase do contrato definitivo, quando ocorre o choque ou en-
contro de vontades originário da liberdade contratual ou autonomia privada. A partir de então, o contrato
estará aperfeiçoado, gerando todas as suas consequências como, por exemplo, aquelas advindas da res-
ponsabilidade civil contratual, retirada dos arts. 389 a 391 do Código Civil de 2002.
Se houver inadimplemento, aplicam-se as regras quanto ao tema (CC, art. 389 a 416) havendo ain-
da aplicação integral da boa-fé objetiva, com todos os seus deveres anexos ou laterais à essa fase, bem
como à fase pós-contratual.

7.Intervenção de terceiros nos contratos


Como estudado anteriormente, este tópico não existiria sob a égide do CC/16. O CC/02 prevê três
hipóteses de intervenção direta de terceiros em contratos: a promessa de fato de terceiro, a estipulação
em favor de terceiro e o contrato com pessoa a declarar.

7.1. Promessa de fato de terceiro (art. 439 e seguintes do CC)

A promessa de fato de terceiro ocorre quando uma pessoa se compromete a uma prestação que será
cumprida por outra. É um típico exemplo de obrigação de fazer com que um terceiro cumpra a prestação.
O drama da promessa de fato de terceiro é o inadimplemento. Não cumprida a promessa pelo ter-
ceiro, quem é que paga por isso (quem responde pelo inadimplemento)? O Código estabelece que res-
ponde o promitente, nunca o prometido. Ou seja, no exemplo do empresário que atua no ramo artístico e
promete que realizará show com determinado artista, caso o show não seja realizado, quem responderá é
o empresário:

Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando es-
te o não executar.

Parágrafo único. Tal responsabilidade não existirá se o terceiro for o cônjuge do promitente, de-
pendendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo regime do casamento, a inde-
nização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens.

O prometido somente responderá diretamente pelo inadimplemento em duas hipóteses: i) se o


promitente era representante do prometido (neste caso, trata-se de promessa de fato próprio, não de fato
de terceiro); e ii) quando o prometido anui com a promessa:

Art. 440. Nenhuma obrigação haverá para quem se comprometer por outrem, se este, depois de
se ter obrigado, faltar à prestação.

354
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No REsp 249.008/RJ há um bom exemplo de promessa de fato de terceiro. O Clube dos 13 cele-
brou contrato com determinada empresa televisiva, prometendo exclusividade. Os clubes passaram a
celebrar contratos, individualmente, com outras empresas televisivas. O Clube dos 13 responderá pelos
danos causados à empresa prejudicada (e não os clubes).

7.2. Estipulação em favor de terceiro (arts. 436 e seguintes do CC)

Ocorre estipulação em favor de terceiro quando duas pessoas celebram um contrato cujos efeitos
benéficos serão produzidos em favor de uma terceira pessoa. Portanto, na estipulação em favor de ter-
ceiro existem três sujeitos: o estipulante, o contratado e o estipulado (terceiro ou beneficiário).
Exemplos são o seguro de vida e os divórcios consensuais (é comum que marido e mulher, no meio
do litígio, ajustem a realização de uma doação em favor dos filhos).
O estipulado (beneficiário) não precisa ser solvente nem capaz, pois não é parte no contrato, mas
um mero beneficiário dos efeitos do contrato. Como não é parte, ele não responde pelo contrato (por
obrigações contratuais). Todavia, apesar disso, ele tem legitimidade para executar o contrato nas mesmas
condições contratadas.
Veja que curioso: o estipulado pode ser substituído a qualquer tempo e independentemente da
anuência do outro contratante. Isso porque a indicação do estipulado é direito potestativo do estipulante.
O estipulante não pode exonerar o contratado do cumprimento de suas obrigações. Se assim o fi-
zer, ele prejudica o terceiro, violando a função social do contrato. Também não pode substituir o estipu-
lado se já houve execução do contrato.

7.3. Contrato com pessoa a declarar (arts. 467 e seguintes do CC)

O contrato com pessoa a declarar é uma espécie curiosa. Caracteriza-se pela possibilidade de um
contratante, ou ambos, resguardarem para si o direito de, posteriormente, em determinado prazo, indi-
car a pessoa que figurará em seu lugar naquele contrato, assumindo a sua posição contratual.
Esta pessoa ocupará a posição contratual (tornar-se-á parte no contrato) e, portanto, assumirá as
obrigações e exercerá os direitos. E o fará retroativamente à data da celebração do contrato. Ou seja, terá
de cumprir tudo o que a pessoa que o indicou prometera. Haverá, portanto, sub-rogação.
Porque haverá sub-rogação, é preciso que a pessoa indicada seja capaz, solvente e aceite a condição
que lhe é atribuída. Se o terceiro é incapaz, insolvente ou não aceita a posição atribuída, o contrato se
mantém entre as partes originárias.
O prazo para a indicação do terceiro estabelecido pelo Código é de cinco dias, salvo se outro não for
estipulado pela vontade das partes (justa homenagem à autonomia privada).
O contrato com pessoa a declarar pode cumprir importante papel no campo tributário. Uma pessoa
que investe em imóveis (compra e revende) tem de pagar dois ITBI’s, um da sua compra e ou outro da
revenda. Esse investidor pode fazer uma estipulação em favor do terceiro, o qual futuramente será indi-

355
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cado. Veja que, nesse caso, ambas as partes têm vantagens: o indicado paga o tributo e a escritura é pas-
sada diretamente ao nome dele.
O Código determina que a aceitação da pessoa indicada deve se revestir da mesma forma da cele-
bração do contrato.

8. Revisão judicial dos contratos


I A matéria de revisão contratual por fato superveniente dos contratos civis pode ser retirada dos
arts. 317 e 478 do CC, a hipótese tratada verifica-se na ocorrência de um problema no sina-
lagma funcional, ou seja, a avença ficou desequilibrada depois de sua celebração.
O que é diferente de eventual problema no sinalagma genético, oportunidade em que o
contrato já nasceu desequilibrado (CC, art. 156 e 157).

8.1. Teoria adotada pelo CC para a revisão dos contratos

Nas palavrade Flávio Tartuce, atualmente existem duas correntes bem definidas sobre a teoria ado-
tada pelo CC/2002 a respeito da revisão contratual por fato superveniente:
i. Uma primeira corrente doutrinária afirma que o atual Código Civil consagrou a teoria im-
previsão, de origem francesa, que remonta à antiga cláusula rebus sic stantibus.
Para tal corrente, defendida por Álvaro Villaça Azevedo, Maria Helena Diniz, Carlos R. Gonçalves, e
Flávio Tartuce, predomina na prática a análise do fato imprevisível a possibilitar a revisão por fato su-
perveniente. Na jurisprudência do mesmo modo predominam as menções à teoria da imprevisão
ii. Para uma segunda corrente, o Código Civil de 2002 adotou a teoria da onerosidad ex-
cessiva, com inspiração no Código Civil Italiano de 1942, eis que o nosso art. 478 equivale
ao art. 1.467 do Codice.

8.2. Requisitos clássicos para a revisão dos contratos

i. Contrato bilateral ou sinalagmático (em regra): aquele que traz direitos e deveres para am-
bas as partes de forma proporcional. Exceção: CC, art. 480, que possibilita a revisão dos
contratos unilaterais.
ii. O contrato deve ser oneroso, com prestação e contraprestação, para que a eventu onerosi-
dade excessiva esteja presente.
iii. O contrato deve ser de execução diferida ou de trato sucessivo, ou seja, deve ainda gerar
efeitos no tempo (art. 478 do CC).
Assim, em regra, não é possível rever contrato instantâneo já celebrado e aperfeiçoado.
Nas palavras de Flávio Tartuce o contrato de execução diferida é aquele em que o cumprimento
ocorre de uma vez só no futuro. No contrato de trato sucessivo, o cumprimento ocorre repetidamente no
tempo, de forma sucessiva (v.g., financiamentos em geral).

356
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como excessão, pode-se apontar a Súmula 286 do STJ, segundo a qual a renegociação de contrato
bancário ou a confissão de dívida não afasta a possibilidade de revisão de contratos extintos, se houver
abusividade. Em suma, em casos excepcionais, admite-se a revisão de negócios concretizados.
iv. Deve assumir o negócio a forma comutativa, tendo as partes envolvidas ciência quanto às
prestações.
Nesse sentido, em regra a revisão por imprevisibilidade e onerosidade excessiva não poderá ocorrer
caso o contrato assuma a forma aleatória, instituto negocial tipificado nos arts. 458 a 461 do CC. Porém,
é possível rever a parte comutativa de negócios aleatórios - exemplo: prêmio do seguro (Enunciado n.
440 – V Jornada de Direito Civil251).
v. A lei exige ainda motivo imprevisível (art. 317) ou acontecimentos imprevisíveis e extraordi-
nários (art. 478).
Como visto acima, de maneira majoritária, entende-se que o CC adotou a teoria da imprevisão para
a revisão dos contratos, cuja pedra de toque é o “Fator imprevisibilidade”, ou seja, a superveniência de
fato extraordinário e imprevisível, que tenha operado a mutação do ambiente objetivo de tal forma que o
cumprimento do contrato implique por si só o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro, o
que torna a revisão praticamente impossível.
Isso se observa uma vez que o fato imprevisto tem, no entendimento Jurisprudência Superior252, como
parâmetro o mercado, o meio que envolve o contrato e não a parte contratante. Segundo Flávio Tartuce, a
partir dessa análise, em termos econômicos, na sociedade pós-moderna globalizada, nada é imprevisto,
tudo se tornou previsível.
Na contramão, a doutrina, especialmente no Enunciado 17 da I Jornada de Direito Civil e no Enun-
ciado 175 da III Jornada de Direito Civil253 propõem uma mitigação da análise da imprevisibilidade, in-
cluindo fatos previsíveis, mas que sejam imprevisíveis pela parte prejudicada quando da contratação, ou
seja, os resultados dos acontecimento devem ser imprevisíveis, não o fato em si, é a chamada Função
social às avessas.

251 Enunciado 440, V JDC: “É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleató-
rios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione com a álea assumida no con-
trato”.
252 Exemplo: “Caso da soja” em que o STJ decidiu que pragas, crise econômica e variações de preço são previ-

síveis não sendo motivo para rever ou resolver o contrato (REsp 945.166/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALO-
MÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/02/2012, DJe 12/03/2012).
253 Enunciado 17, I JDC: “A interpretação da expressão "motivos imprevisíveis" constante do art. 317 do novo

Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não-previsíveis como também causas previsíveis, mas de
resultados imprevisíveis.”.
Enunciado 175, III JDC: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Códi-
go Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às
conseqüências que ele produz.”.

357
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

vi. Estar presente onerosidade excessiva (quebra do sinalagma obrigacional ou da base objeti-
va do contrato, efeito gangorra), situação desfavorável a uma das partes da avença, nor-
malmente à parte mais fraca ou vulnerável, que assumiu o compromisso obrigacional.
Importa notar que em que pese o Art. 478 mencione a necessidade de “extrema vantagem para a
outra parte”, deve-se entender que o fator onerosidade, a fundamentar a revisão ou mesmo a resolução do
contrato, não necessita da prova de que uma das partes auferiu vantagens, bastando a prova do prejuízo e
do desequilíbrio negocial. Nesse sentido o Enunciado n. 365 – IV Jornada de Direito Civil.254.

8.2.1. Requisitos propostos pela jurisprudência


Além desses requisitos tradicionais, o STJ incluiu outros:

i. Ausência de mora, conforme Súmula. 380 STJ:


Súmula 380, STJ: “A simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a caracteriza-
ção da mora do autor”.

ii. Alegações verossímeis. Exemplo: perícia contábil comprovando eventual desequilibrio.


iii. Depósito da parte incontroversa – Boa-fé do autor.
Obs.: esses últimos requisititos foram incluídos no CPC/1973 (art. 285-B) pela Lei n.
12.810/13, posteriormente, foram confirmados pelo art. 330, § 2º do CPC/15255.

8.3. Revisão no CDC

Segundo Flávio Tartuce o CDC inseriu no sistema a regra de que mesmo uma simples onerosidade
excessiva ao consumidor poderá ensejar a chamada revisão contratual por fato superveniente, nos ter-
mos do art. 6.º, V, da Lei 8.078/1990.
O diploma consumerista não traz qualquer previsão a eventos imprevisíveis ou extraordinários,
sendo certo que o códice não adotou a teoria da imprevisão.
Há desse modo uma revisão por simples onerosidade excessiva, de modo que basta um fa-
to novo, superveniente, que gerou o desequilíbrio. Na esteira desse posicionamento, afirma-se que o Có-
digo de Defesa do Consumidor adotou a teoria da base objetiva do negócio jurídico, muito
bem desenvolvida na Alemanha por Karl Larenz.256

254 Enunciado 365, IV JDC: “A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental
da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade
excessiva, independentemente de sua demonstração plena”.
255 CPC, art. 330, § 2º: “Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação decorrente de empréstimo,

de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob pena de inépcia, discriminar na petição inicial, den-
tre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débi-
to”.
256 (...) A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do

Código de Defesa do Consumidor - CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que
determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um

358
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Revisão pelo CC/2002 Revisão pelo CDC


Teoria da imprevisão. Teoria da base objetiva do negócio jurídico.
Fato imprevisível + onerosidade excessiva. Fato superveniente + onerosidade excessiva.
Mais difícil. Mais fácil.

9. Vícios redibitórios (Arts. 441 a 446, CC)


9.1. Noções gerais

Nas palavras de Flávio Tartuce, vício redibitório são os vícios ocultos que atingem a coisa, objeto de
um contrato civil, desvalorizando-a ou tornando-a imprópria para o seu uso, em suma é um defeito na
estrutura de um bem adquirido onerosamente.
Na lição de Carlos Roberto Gonçalves tem como fundamento o princípio da garantia, segundo o
qual todo alienante deve assegurar ao adquirente, a título oneroso, o uso da coisa por ele adquirida e para
os fins a que é destinada.
Se o contrato é gratuito, de regra não incidem os vícios redibitórios (ex.: doação). Não faz sentido
que o sujeito doe, por exemplo, e tenha de responder pelo vício. Há, entretanto, duas exceções:
i) doação remuneratória: trata-se daquela feita em contraprestação de uma obrigação não exigível
(é o caso, por exemplo, do “flanelinha”);
ii) doação contemplativa de casamento: trata-se da doação para que alguém se case257.
O vício redibitório deve existir desde o momento da tradição (entrega da coisa), mas sua descoberta
tem de ser posterior, tornando a coisa imprestável para sua finalidade ou subtraindo seu valor econômico
(ex.: touro reprodutor estéril).
O contrato deve ser comutativo (aquele em que ambas as partes, de antemão, conhecem as presta-
ções que deverão cumprir). Ex.: compra e venda.
Segundo Flávio Tartuce é importante diferenciar os vícios redibitórios dos vícios do consentimento:
Vícios redibitórios Vícios do consentimento (erro, dolo)
Atingem a coisa. Atingem a vontade – “psiquê”.

contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da rela-
ção contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com reper-
cussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em
que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo
contratual, ou seja, sua base objetiva. (...) (REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO,
Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe
03/03/2015).
257 Chaves considera essa doação absurda, uma verdadeira uma subversão da natureza jurídica do casamen-
to. Isso porque introduz-se um elemento patrimonial numa relação que é eminentemente afetiva.

359
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Vícios objetivos. Vícios subjetivos.


Plano da eficácia (abatimento no preço ou Plano da validade (anulação ou nulidade relativa).
resolução).
9.2. Ações edilícias

Segundo Flávio Tartuce existe uma garantia legal nos contratos bilaterais, onerosos e comu-
tativos.258
Descoberto um vício redibitório, parte prejudicada (adquirente) deve reclamá-lo. Trata-se, portan-
to, de direito potestativo. A reclamação de vícios redibitórios realiza-se por meio de ações edilícias259.
No Código Civil, são basicamente duas: i) a ação redibitória; e ii) a ação estimatória (ou quanti mi-
noris) em que se pleiteia o abatimento proporcional no preço.
Redibitória é a ação para a restituição da coisa adquirida. Ela é ajuizada quando o vício comprome-
teu de tal modo a coisa que o adquirente não mais a deseja onde se pleiteia Resolução do contrato + de-
volução das quantias pagas + despesas contratuais + perdas e danos (.se houver má-fé do alienante.
A estimatória (ou quanti minoris) serve para o abatimento do preço. No exemplo do boi reprodutor
estéril, o adquirente pode querer usá-lo para outra finalidade, por exemplo.
Ressalta-se que a resolução do contrato cabe mesmo se o alienante não souber do ví-
cio (CC, art. 443260). O conhecimento ou ignorância sobre o vício só influencia nas perdas e danos, pois o
vício é objetivo (não é intencional).
Quando se tratar de compra e venda de bem imóvel, há uma terceira ação, a chamada “ação ex em-
pto”, que serve para a complementação de área, quando for possível complementá-la (ex.: numa fazenda,
essa complementação pode ser possível; num apartamento, nunca será).
Em se tratando de relação de consumo, é também possível a ação para a substituição do produto ou
do serviço.

9.3. Prazos decadenciais das ações edilícias

Inicialmente é importante lembrar que as ações edilícias são constitutivas negativas de modo que
os prazos previstos no art. 445 do CC para manejo dessas demandas são decadenciais.
Nesse sentido, o Enunciado n. 28 do CJF/STJ: “o disposto no ar 445, §§ 1.º e 2.º, do Código Civil
reflete a consagração da doutrina e da jurisprudência quanto à natureza decadencial das ações edilícias”.

258 Obs.: Essa garantia também existe nas doações onerosas, cabendo rejeição da coisa (CC, art. 441, parágra-

fo único). Exemplo: doação modal ou com encargo.


259 Segundo Flávio Tartuce a expressão edilícias tem origem no Direito Romano, pois a questão foi regula-

mentada pela aediles curules, por volta do século II a.C., “com o objetivo de evitar fraudes praticadas pelos vende-
dores no mercado romano. Ressaltemos que os vendedores eram, em geral, estrangeiros (peregrinos) que tinham
por hábito dissimular muito bem os defeitos da coisa que vendiam”.
260 CC, art. 443: “Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e

danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato”.

360
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entretanto, o método de contagem desses prazos é motivo de interpretação divergente na doutrina


e jurisprudência, que propões duas interpretações distintas:

9.3.1. 1ª interpretação (Simão, Fabio Ulhoa e Flávio Tartuce ):


De um lado José Fernando Simão observa que o art. 445 do Código traz três prazos decadenciais
diferentes para a propositura das ações edilícias:
i) vícios de fácil constatação:
Em se tratando de bens móveis, o prazo será de 30 dias, contados da tradição. Em se tratando de
imóveis, o prazo será de 1 ano, igualmente contado da tradição:

Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de
trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já esta-
va na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.

De se lembrar que se o adquirente já estava na posse, os prazos são reduzidos à metade e contados
da alienação.
ii) vício de difícil constatação:
Em se tratando de bens móveis, o prazo será de 180 dias, contados da descoberta do vício. Em se
tratando de bens imóveis, o prazo será de 1 ano, contado da descoberta do vício:

Art. 445 (...) § 1o Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo
contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias,
em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.

Vale observar que, no mais das vezes, o vício será de difícil constatação. Perceba que a diferença
entre as duas primeiras hipóteses se restringe ao prazo dos vícios em bens móveis e ao critério de conta-
gem.
iii) vícios em animais:
Em se tratando de venda de animais, o Código remete o prazo a previsão em lei especial (que não
existe). Enquanto não existir a lei, serão aplicáveis os usos e costumes do lugar. Não havendo, serão apli-
cáveis os prazos dos vícios de difícil constatação:

Art. 445 (...) § 2o Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão
os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no
parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a matéria.

Segundo Flávio Tartuce, essa lei especial pode ser o CDC, caso estejam presentes os elementos da
relação de consumo (arts. 2.º e 3.º da Lei 8.078/1990). A título de exemplo, pode ser citada a compra por
consumidores de animais de estimação em lojas especializadas ou pet shops

361
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalmente, ressalta-se que o art. 26 do CDC prevê prazos diferentes para o consumidor reclamar
pelos vícios aparentes ou de fácil constatação: 30 dias, caso o bem ou serviço fornecido seja durável, ou
90 dias, caso seja não durável:

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;

II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do tér-


mino da execução dos serviços. (...)

§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar eviden-
ciado o defeito.

Perceba que quando o vício for de difícil constatação ou quando o bem for imóvel, o prazo do Códi-
go Civil se mostrará mais favorável ao consumidor. Segundo o diálogo das fontes, para a proteção do hi-
possuficiente (consumidor, trabalhador etc.), a regra do Código Civil poderá ser aplicada às relações de
consumo.
Trata-se de via de mão única: nunca a regra do CDC poderá ser usada para uma relação de direito
civil, mas a regra de direito civil poderá ser aplicada a uma relação de consumo, se mais favorável ao con-
sumidor.

9.3.2. 2ª Interpretação (Tepedino e Enunciado n. 174 – III Jornada de Direito Civil) 261
De toda sorte, colaciona-se a existência de um entendimento em sentido diverso. Quando da III
Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, fo aprovado o
Enunciado n. 174, com teor controvertido, a saber: “Em se tratando de vício oculto, o adquirente tem os
prazos do caput do art. 445 para obter redibição ou abatimento de preço, desde que os vícios se revelem
nos prazos estabelecidos no parágrafo primeiro, fluindo, entretanto, a partir do conhecimento do defei-
to”. A proposta de enunciado foi formulada pelos professores Gustavo Tepedino e Carlos Edison do Rêgo
Monteiro Filho, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Esclarecendo o teor do enunciado doutrinário, ele está prevendo que, nos casos de vícios ocultos, o
adquirente terá contra si os prazos de 30 dias para móveis e 1 ano para imóveis (art. 445, caput, do CC),
desde que os vícios surjam nos prazos de 180 dias para móveis e 1 ano para imóveis (art. 445, § 1.º, do
CC), a contar da aquisição desses bens.
Parte considerável da doutrina concorda com a aplicação do raciocínio, que também já foi acolhido
pelo STJ262.

261 Retirado de Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E

ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

362
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

9.4. Hipóteses de descabimento da ação edilícia

Segundo Carlos Roberto Gonçalves não cabe a ação edilícia quando:


a) nas hipóteses de coisas vendidas conjuntamente. O defeito oculto de uma delas não auto-
riza a rejeição de todas (CC, art. 503), salvo se formarem um todo inseparável (uma coleção de livros ra-
ros, p. ex.);
b) nas de inadimplemento contratual (entrega de uma coisa por outra);
c) nas de erro quanto às qualidades essenciais do objeto, que é de natureza subjetiva.
Obs.: O Código Civil de 1916 excluía a possibilidade de o adquirente de bens em hasta pública que
apresentassem algum vício oculto se valesse das ações edilícias, o que não ocorre no CC, 2002, de modo
que poderá o adquirente lesado, em qualquer caso, mesmo no de venda feita compulsoriamente por au-
toridade da justiça, propor tanto a ação redibitória como a quanti minoris se a coisa arrematada contiver
vício redibitório.

9.5. Cláusula de garantia contratual ou decadência convencional

Enuncia o art. 446 do CC que:

“Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o ad-
quirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento,
sob pena de decadência”.

Nas palavras de Flávio Tartuce, trata o comando legal de prazo de garantia convencional que inde-
pende do legal e vice-versa, conforme consta do CDC (art. 50). Aqui, um dispositivo do CDC ajudará na
interpretação de comando legal do Código Civil havendo um diálogo de complementaridade.
Assim, na constância de garantia contratual, não correrão os prazos de decadência legal. Porém, o
adquirente deve denunciar o vício ao alienante nos 30 dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de
decadência.
Sobre a decadência mencionada, existem duas posições:
i. Só atinge a garantia convencional (Maria Helena Diniz e Flávio Tartuce), é a que prevalece.
ii. Atinge a garantia legal e a convencional (Simão), minoritária.

10. Evicção

262 “RECURSO ESPECIAL. VÍCIO REDIBITÓRIO. BEM MÓVEL. PRAZO DECADENCIAL. ART. 445 DO

CÓDIGO CIVIL. 1. O prazo decadencial para o exercício da pretensão redibitória ou de abatimento do preço de bem
móvel é de 30 dias (art. 445 do CC). Caso o vício, por sua natureza, somente possa ser conhecido mais tarde, o § 1º
do art. 445 estabelece, em se tratando de coisa móvel, o prazo máximo de 180 dias para que se revele, correndo o
prazo decadencial de 30 dias a partir de sua ciência. 2. Recurso especial a que se nega provimento” (REsp
1095882/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/2014, DJe
19/12/2014).

363
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Evicção é a perda da coisa objeto de um contrato (adquirida onerosamente, com duas exceções: do-
ação remuneratória e contemplativa, em que ela também ocorre), por conta de uma decisão judicial ou
administrativa que confere posse ou propriedade a um terceiro263.
Segundo Flávio Tartuce, a categoria tem origem no pragmatismo romano, especialmente na expres-
são latina evincere, que significa ser vencido ou ser um perdedor.
Do ponto de vista prático, a evicção é uma garantia legal que assegura o direito de regresso para
quem comprou e foi privado da coisa.
Obs.: Na visão clássica, evicção era a perda por sentença judicial, mas modernamento, a evicção
prescinde de sentença, de modo que é possível evicção em virtude de uma decisão judicial que não
seja sentença, conforme decidido no REsp n. 1.332.112/GO, ou até mesmo uma apreensão administrativa
de um veículo pelo DETRAN (evicção administrativa), como já decidio no REsp n. 259.726/RJ
Assim, como a categoria tem origem no pragmatismo romano, especialmente na expressão latina
evincere, que significa ser vencido ou ser um perdedor.
Assim como nos vícios redibitórios, existe uma garantia legal contra a evicção nos contratos bila-
terais, onerosos e comutativos.
Detalhe: o CC/02 admite a incidência das regras de evicção mesmo nas aquisições oriundas de has-
ta pública conform art. 447, CC:

Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda
que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

No que concerne à pessoa que responde em casos envolvendo a evicção de bem arrematado, ft en-
tende que a responsabilidade imediata é do devedor ou réu da ação, que é o primeiro beneficiado com a
arrematação. Assim, o credor ou autor tem responsabilidade subsidiária, por ser beneficiado indireta-
mente. Entretanto, a questão não é pacífica, pois há quem entenda pela responsabilidade imediata do
credor e subsidiária do devedor, nada esclarecido na jurisprudência.
O CC/02 permite que as partes, querendo, disponham sobre vícios redibitórios e evicção. Em ou-
tras palavras: se as partes quiserem, elas podem ampliar, diminuir ou, até mesmo, excluir as garantias da
evicção e dos vícios redibitórios. Todavia, nesses casos, o contrato não pode ser de consumo ou de ade-
são, hipóteses em que essa cláusula será nula. Mesmo nos contratos paritários, a cláusula de exclusão de
garantia de vício redibitório ou de evicção somente será válida se a parte for expressamente advertida dos
riscos e assumi-los (art. 449 do CC). O dispositivo visivelmente homenageia a boa-fé objetiva:

Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direi-
to o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou,

263 A evicção consiste na perda parcial ou integral do bem, via de regra, em virtude de decisão judicial que

atribui o uso, a posse ou a propriedade a outrem, em decorrência de motivo jurídico anterior ao contrato de aquisi-
ção, podendo ocorrer, ainda, em virtude de ato administrativo do qual também decorra a privação da coisa.

364
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dele informado, não o assumiu.

10.1. Partes da Evicção

São partes da evicção:


i. O alienante – aquele que transfere a coisa viciada, de forma onerosa.
ii. O evicto ou adquirente – aquele que perde a coisa adquirida.
iii. O evictor, evencente ou terceiro – tem a decisão judicial ou a apreensão administrativa a
seu favor.
A evicção se desenrola basicamente em 3 fases:

) Fase n. 1: alienante transmite o bem para o adquirente (evicto). Exemplo: compra e venda.
a) Fase n. 2: terceiro (evictor) pleiteia o bem do adquirente. Exemplo: ação reivindicatória.
b) Fase n. 3: denunciar da lide o alienante (CPC, art. 125, I264) (deixou de ser expressamente
obrigatória).

265

10.2. Extensão da garantia

Segundo Flávio Tartuce, a responsabilidade pela evicção decorre da lei, assim não precisa estar
prevista no contrato.

264 CPC, art. 125: “É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes:I - ao alienante
imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os
direitos que da evicção lhe resultam; (...)”.
265 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

365
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, só será excluída a responsabilidade do alienante se houver cláusula expressa (pac-
tum de non praestanda evictione), não se admitindo cláusula tácita de não garantia, sendo que podem
as partes reforçar a responsabilidade, atenuando ou agravando seus efeitos (art. 448 do Código Civil).
Quanto ao reforço em relação à evicção, diante da vedação do enriquecimento sem causa, tem-se
entendido que o limite é o dobro do valor da coisa, o que é correto, pela função social dos pactos.
A teor do Art., 449, CC não obstante essa cláusula excludente, se a evicção ocorrer, o adquirente
pode pleitear do alienante o preço pago pela coisa evicta; se, não sabia do risco ou dele informado, não
o assumiu.
Assim, para que o alienante não tenha qualquer responsabilidade, do contrato devem constar duas
cláusulas: a) Cláusula excludente de responsabilidade pela evicção, b) Ciência específica ou assunção do
risco pelo adquirente.

10.2.1. Fórmulas da evicção (Washington de Barros Monteiro)


Fórmula 1: Cláusula expressa de exclusão da garantia + conhecimento do risco da evicção pe evic-
to = isenção de toda e qualquer responsabilidade por parte do alienante.
Fórmula 2: Cláusula expressa de exclusão da garantia – ciência específica desse risco por part do
adquirente = responsabilidade do alienante apenas pelo preço pago pelo adquirente pela coisa evicta.
Fórmula 3: Cláusula expressa de exclusão da garantia, sem que o adquirente haja assumido o ris-
co da evicção de que foi informado = direito deste de reaver o preço que desembolsou.

10.3. Evicção total e parcial

10.3.1. Evicção total (CC, arts. 450 a 454)

O adquirente pode pleitear do alienante (CC, art. 450):

CC, art. 450: “Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral
do preço ou das quantias que pagou: I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a resti-
tuir; II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resulta-
rem da evicção; III - às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído”.

) O preço que pagou pela coisa (levando-se em conta o momento em que ela se perdeu).
a) Indenização pelos frutos que tiver sido obrigado a restituir ao terceiro.
b) Despesas contratuais e perdas e danos.
c) Custas judiciais e honorários advocatícios.
d) Benfeitorias necessárias e úteis não abonadas pelo terceiro (CC, art. 453), as voluptuárias
não!
10.3.2. Evicção parcial (CC, art. 455):
Dá-se a evicção parcial quando o evicto perde apenas parte ou fração da coisa adquirida em virtude
de contrato oneroso, sendo que a parte ou fração pode ser considerável ou não considerável.

366
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, a doutrina, em geral, considera parte considerável para esse
fim a perda que, atentando-se para a finalidade da coisa, faça presumir que o contrato não se aperfeiçoaria
caso o adquirente conhecesse a verdadeira situação.
Entretanto, a análise deve ser feita não somente sob o aspecto da quantidade (quantitativo) po-
de ser aferido o desfalque também em função da qualidade (qualitativo), que pode sobrelevar àquele.
Se, por exemplo, alguém adquire uma propriedade rural e perde uma pequena fração dela, porém justamen-
te aquela em que se situa a casa da sede ou o manancial de água, pode a evicção, não obstante a pouca exten-
são territorial subtraída, ser tida como considerável ou de grande monta, por atingir a própria finalidade
econômica do objeto.
Assim, se:
a) Parcial e Considerável: o adquirente pode optar entre a rescisão do contrato ou indenização pe-
la parte perdida, ou seja, restituição pelo desfalque.
A recisão no caso demanda a aplicação de todos os efeitos do Art. 450, CC, basicamente equiparan-
do à evicção total.
b) Parcial e Não considerável: cabe apenas indenização pela parte perdida, ou seja, a restituição pe-
lo desfalque.

10.4. Aspectos processuais da evicção

Inicialmente salienta-se que não corre a prescrição pendendo a ação de evicção (CC, art. 199, III)
entre alienante e adquirente.
Ademais, o novo CPC revogou integralmente o artigo 456, CC sendo que essa revogação teve como
finalidades:
a) Concentrar a matéria no CPC (arts. 125 e seguintes).
b) Abolir a denunciação da lide por saltos (“per saltum”).
Entretanto, o Novo Código de Processo Civil admite apenas uma única denunciação sucessiva por
parte do primeiro litisdenunciado
c) Tratar da matéria do parágrafo único do artigo 456, CC, de forma harmônica no seu artigo 128,
II (CPC).

11.Extinção dos contratos (CC, arts. 472 a 480)


O tratamento dado ao tema no CC, 1916 era, nas palavras de Flávio Tartuce confuso, uma vez que a
matéria não foi tratade de maneira sistematizada, tarefa que sempre coube à doutrina, com grandes di-
vergências entre os autores.
Com a chegada do Código de 2002 observa-se uma tentativa de organização metodológica do as-
sunto por parte do legislador.

367
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, pelo que consta do atual Código Civil e das lições da doutrina, quatro são as formas
básicas de extinção dos contratos, das quais decorrem as demais

11.1. Extinção normal

A extinção normal do contrato ocorre com o cumprimento, adimplemento, implemento, pagamen-


to, solvência ou advento do termo final.

11.2. Extinção por fatos anteriores à celebração

De maneira anormal, Flávio Tartuce leciona que a extinção dos contratos pode se dar por motivos
anteriores à celebração, surgindo três casos específicos relacionados a problemas de formação do contrato
(plano da validade) ou à autonomia privada.

11.2.1. Invalidade contratual


Haverá invalidade nos casos envolvendo o contrato nulo (eivado de nulidade absoluta) e o contrato
anulável (presente a nulidade relativa ou anulabilidade).
Importante lembrar que na extinção do contrato por invalidade, a causa extintiva (o vício) é origi-
nária. Ou seja, o contrato já se formou com essa causa (defeito no sinalágma genético).
Obs.: As regras quanto a essas hipóteses não se encontram no capítulo específico da teoria geral dos
contratos (arts. 421 a 480 do Código Civil), mas na Parte Geral do Código Civil, particularmente nos seus
arts. 166, 167 e 171.

11.2.2. Cláusula de arrependimento.


Constitui forma de extinção por fato anterior à celebração a previsão no negócio de direito de arre-
pendimento, inserido no próprio contrato, hipótese em que os contraentes estipulam que o negócio será
extinto, mediante declaração unilateral de vontade, se qualquer um deles se arrepender.
Trata-se de previsão contratual que dá às partes um direito potestativo de extinguir o contrato.,
de modo que, uma vez excercido, em regra não gera perdas e danos. Exemplo: compromisso de compra e
venda não registrado na matrícula do imóvel.
Obs.: Esse direito de arrependimento, de origem contratual, não se confunde com o direito de ar-
rependimento de origem legal previsto, por exemplo, no art. 49 do CDC, pelo qual, para as vendas reali-
zadas fora do estabelecimento comercial, o consumidor tem um prazo de arrependimento de sete dias, a
contar da assinatura do contrato ou do ato de recebimento do produto.
Conforme já visto em capítulos acima, a Lei 13.786/2018 (Lei do distrato imobiliário) inseriu o art.
35-A à Lei 4.591/1964 trazendo a possibilidade de direito de arrependimento em vendas em stands (art.
35-A, VIII).

11.2.3. Cláusula resolutiva expressa (Art. 474, CC)

368
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se de previsão contratual que associa a extinção do contrato a uma condição somada ao ina-
dimplemento, operando de pleno direito (pleno Iuri), de forma automática. Exemplo: compra e venda de
bem móvel. “Se até o dia 16.12.2019, o vendedor não entregar a coisa e o comprador não pagar o preço, o
contrato estará extinto e resolvido”.
Nesses casos, a teor do Enunciado n. 436 do CJF/STJ “A cláusula resolutiva expressa produz seus
efeitos extintivos independentemente de pronunciamento judicial”.
Entretanto, em alguns contratos, mesmo havendo a cláusula resolutiva expressa, será necessário
notificar a outra parte para extinguir o negócio (dever de informar – princípio da boa-fé objetiva).
Exemplo 1: “Leasing” ou arrendamento mercantil - Súmula 369, STJ266. Exemplo 2: Seguro – Sú-
mula 616, STJ267.

11.3. Extinção por fatos posteriores à celebração

O contrato pode ser ainda extinto por fatos posteriores ou supervenientes à sua celebração Toda vez
em que há a extinção do contrato por fatos posteriores à celebração, tendo uma das partes sofrido prejuízo,
fala-se em rescisão contratual268.
Segundo a lição de Flávio Tartuce, pode-se afirmar que a rescisão (que é o gênero) possui as se-
guintes espécies: resolução (extinção do contrato por descumprimento) e resilição (dissolução por
vontade bilateral ou unilateral, quando admissível por lei, de forma expressa ou implícita, pelo reconhe-
cimento de um direito potestativo). As duas situações básicas envolvem o plano da eficácia do contrato,
ou seja, o terceiro degrau da Escada Ponteana.

11.3.1. Resolução
Conforme visto acima a resolução demanda necessariamente o inadimplemento do contrato, po-
dendo estar presente em quatro hipóteses.

11.3.1.1. Inexecução involuntária

Trata-se de hipótese em que o descumprimento contratual ocorre por fato alheio à vontade dos con-
tratantes, situação em que estará caracterizada a resolução por inexecução involuntária.
Oportunidades em que a impossibilidade de cumprimento da obrigação se dá em decorrência de
caso fortuito (evento totalmente imprevisível) ou de força maior (evento previsível, mas inevitável).

266 Súmula 369, STJ: “No contrato de arrendamento mercantil (leasing), ainda que haja cláusula resolutiva

expressa, é necessária a notificação prévia do arrendatário para constituí-lo em mora”.


267 Súmula 616, STJ: ““A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado

acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do con-
trato de seguro.”
268 A doutrina clássica associava a rescisão à invalidade (Caio Mário e Orlando Gomes), já Carlos Roberto

Gonçalves entende que a rescisão ocorre com a dissolução de determinados contratos, como aqueles em que ocor-
reu lesão ou estado de perigo.

369
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como consequência, em regra, a outra parte contratual não poderá pleitear perdas e danos (Art. 393,
CC), sendo tudo o que foi pago devolvido e retornando obrigação à situação primitiva (resolução sem per-
das e danos).
Excepcionalmente se poderá pleitear as perdas e danos:
a) Se o devedor estiver em mora, a não ser que prove ausência de culpa ou que a perda da coisa
objeto da obrigação ocorreria mesmo não havendo o atraso (art. 399 do CC).
b) Havendo previsão no contrato para a responsabilização por esses eventos por mei da cláusula
de assunção convencional (art. 393 do CC), cuja validade é discutível nos contratos de consumo
e de adesão.
c) Em casos especificados em norma jurídica, como consta, por exemplo, do art. 583 do CC.

11.3.1.2. Inexecução voluntária


A resolução por inexecução voluntária está relacionada com a impossibilidade da prestação por
culpa ou dolo do devedor, podendo ocorrer tanto na obrigação de dar como nas obrigações de fazer e de
não fazer, cujas consequências encontram-se no Art., 475, CC.
Desse modo, na lição de Flávio Tartuce a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do
contrato. Mas, se não preferir essa resolução, a parte poderá exigir da outra o cumprimento do contrato, de
forma forçada, cabendo, em qualquer uma das hipóteses, indenização por perdas e danos

11.3.1.3. Resolução por onerosidade excessiva.

Nos termos do art. 478 do CC, poderá ocorrer a resolução do negócio em decorrência de um evento
extraordinário e imprevisível que dificulte extremamente o adimplemento do contrato, gerando a extinção
do negócio de execução diferida ou continuada (trato sucessivo). Aqui está presente a utilização da resolu-
ção contratual por fato superveniente, em decorrência de uma imprevisibilidade e extraordinariedade
somadas a uma onerosidade excessiva. Os efeitos da sentença que determinar a resolução retroagirão à
data da citação do processo em que se pleiteia a extinção (efeitos ex tunc).
Rememora-se que dentro da ação de resolução, é possível que seja realizada eventual revisão do
contrato, aplicando-se os seguintes dispositivos:
Obs.: Enunciado n. 367 – IV Jornada de Direito Civil269: para que a revisão seja possível, deve-se
ouvir a parte autora, respeitar a sua vontade e observar o contraditório.

11.3.1.4. Cláusula resolutiva tácita

269 Enunciado n. 367 - “Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por

objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a
parte autora, respeitada sua vontade e observado o contraditório”.

370
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se de uma previsão legal que associa a extinção do contrato a uma condição somada ao ina-
dimplemento, entretanto, diferentemente da cláusula resolutiva expressa, uma vez que a tácita decorre
diretamente da lei.
Segundo Flávio Tartuce, uma vez que essa cláusula decorre de lei, necessita de interpelação
judicial para gerar efeitos jurídicos (art. 474 do CC). Justamente por não decorrer da autono-
mia privada, mas da lei, é que a cláusula resolutiva tácita gera a extinção por fato superveniente à cele-
bração.

11.3.1.4.1. Exceção de contrato não cumprido (Art. 476, CC)

Exemplo clássico de condição resolutiva tácita é a exceção do contrato não cumprido (exceptio non
adimpleti contractus), prevista no art. 476 do Código Civil.270
A exceção prevê que em um contrato bilateral, uma parte não pode exigir que a outra
cumpra a sua obrigação se não cumprir com a própria. (Modalidade de exceptio doli, relacio-
nada à boa-fé objetiva)
O Art. 477, CC, nas palavras de Flávio Tartuce nos casos de risco de descumprimento parcial do con-
trato, o art. 477 do atual CC consagra a exceptio non rite adimpleti contractu.
A norma enuncia que, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes diminuição em seu
patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, poderá a outra
parte recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que o primeiro satisfaça a sua ou dê garantia bastante
para satisfazê-la.
O citado artigo ainda traz dois institutos importantes:
a) Exceção de inseguridade (suspensão).
Enunciado n. 438 – V Jornada de Direito Civil: “A exceção de inseguridade, prevista no art. 477,
também pode ser oposta à parte cuja conduta põe, manifestamente em risco, a execução do programa
contratual”.
b) Quebra antecipada do contrato. (antecipated breach of contract).
Segundo Flávio Tartuce pela citada teoria, se uma parte perceber que há risco real e efetivo, de-
monstrado pela realidade fática, de que a outra não cumpra com a sua obrigação, poderá antecipar-se,
pleiteando a extinção do contrato antes mesmo do prazo para cumprimento.
Enunciado n. 437 – V Jornada de Direito Civil: “A resolução da relação jurídica contratual também
pode decorrer do inadimplemento antecipado”.
Finalmente, discute-se na doutrina a possibilidade de renuncia aos direitos enunciados nos Arts.
476 e 477 através da chamada cláusula solve et repete (pague depois peça), pela qual obriga-se o contra-

270 CC, art. 476: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode

exigir o implemento da do outro”.

371
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tante a cumprir a sua obrigação, mesmo diante do descumprimento da do outro, resignando-se a, poste-
riormente, voltar-se contra este para pedir o cumprimento ou as perdas e danos.
Nas palavras de Flávio Tartuce, a cláusula é válida em contratos civis e paritários, desde que efeti-
vamente negociada, não havendo dúvidas de que tal cláusula será tida como abusiva, e, portanto,
nula nos contratos de consumo e de adesão, pois a parte está renunciando a um direito que lhe é
inerente, como parte em um contrato sinalagmático, em mais um exemplo da eficácia interna da função
social dos contratos, visando à proteção da parte vulnerável: o consumidor ou o aderente.

11.3.2. Resilição (exercício de um direito potestativo

11.3.2.1. Resilição bilateral ou distrato

Prevista no art. 472 do CC271, a resilição bilateral ou distrato é efetivada mediante a celebração de
um novo negócio em que ambas as partes querem, de comum acordo, pôr fim ao anterior que firmaram.
O distrato submete-se à mesma forma exigida para o contrato conforme expressa previsão legal.
Por outro lado, em linha de princípio, a força obrigatória dos contratos se mostra incompatível com
a denúncia (que é a inexecução do contrato pela vontade de uma das partes). Por isso somente se admite
a denúncia nos contratos em que houver expressa previsão das partes nesse sentido (ou seja, originaria-
mente as partes preveem tal possibilidade) ou pela natureza do contrato.
Ex.: compra e venda e doação, não admitem a denúncia, por sua natureza. O mandato, por outro
lado, é um exemplo emblemático de contrato que admite denúncia (tanto o mandante pode revogá-lo a
qualquer tempo quanto o mandatário pode denunciá-lo).
Nada impede que a lei limite a denúncia em contratos que a admitem. Ex.: a Lei 8.245/1991 (Lei de
Locação de Imóveis Urbanos) expressamente dispõe que na locação de imóveis urbanos o locador so-
mente pode denunciar o contrato imotivadamente quando se tratar de contrato de locação por tempo
indeterminado e a locação superar 30 meses (é o que se chama de denúncia vazia). Isso significa que nos
contratos de locação de imóveis urbanos por tempo determinado inferiores a 30 meses (ex.: uma locação
de imóveis de 18 meses), não se admite a denúncia vazia. Esta é uma hipótese de limitação legal ao direi-
to de denúncia.

11.3.2.2. Resilição unilateral ou denúncia


Encontra previsão no Art. 473, CC272 e se dá nos casos previstos em lei de forma expressa ou implí-
cita, mediante denúncia notificada (judicial ou extrajudicial).

271 CC, art. 472: “O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato”.
272 CC, art. 473: “A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera
mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das
partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito de-
pois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.

372
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce, resilição unilateral há o exercício de um direito potestativo, aquele que se
contrapõe a um estado de sujeição. Sendo assim, não há que falar, pelo menos em regra, na existência de
responsabilização civil da parte que exerce esse direito potestativo.
Flávio Tartuce273 cita como espécies de resilição unilateral:
a) Denúncia vazia: cabível na locação de coisa móvel ou imóvel regida pelo Código C e de coisa
imóvel regida pela Lei 8.245/1991 (Lei de Locação).
Findo o prazo, extingue-se de pleno direito o contrato celebrado entre as partes, sem qualquer mo-
tivo para tanto. É possível utilizar o termo denúncia igualmente para o contrato de prestação de serviços,
pelo que consta do art. 599 do CC.
b) Revogação: espécie de resilição unilateral cabível quando há quebra de confiança naqueles pac-
tos em que esta se faz presente como fator predominante.
Cabe revogação por parte do mandante – no mandato –, do comodante – no comodato –, do depo-
sitante – no depósito –, do doador – no caso de doação modal ou com encargo e por ingratidão.
c) Renúncia: outra forma de resilição unilateral cabível nos contratos baseados na confiança,
quando houver quebra desta.
Viável juridicamente a renúncia por parte do mandatário, comodatário, depositário e donatário,
nos contratos acima mencionados.
d) Exoneração por ato unilateral: novidade da codificação privada, a exoneração unilateral é cabí-
vel por parte do fiador, na fiança por prazo indeterminado.
Prevista no art. 835 do Código Civil, terá eficácia plena depois de 60 dias da notificação do credor,
efetivada pelo fiador. Pelo teor desse dispositivo legal, a exoneração unilateral não se aplica ao contrato
de fiança celebrado por prazo determinado. Entendemos que essa nova forma de resilição unilateral pre-
tende proteger o fiador, sempre em posição desprivilegiada, havendo relação direta com a eficácia inter-
na do princípio da função social dos contratos.
Por tal razão, o art. 835 é norma de ordem pública, não podendo a proteção nele prevista ser afas-
tada por convenção das partes. Ademais, deve o magistrado declarar essa proteção de ofício. O dispositi-
vo terá estudo aprofundado no capítulo que trata da fiança.
Finalmente, Art. 473, § único prevê a possibilidade de prorrogação compulsória do contrato
em respeito à boa-fé objetiva e função social do contrato, de modo que a resilição pode ser postergada
diante da realização de investimentos consideráveis, já aplicada pelo STJ em caso recente274.

11.4. Extinção por morte de um ou ambos os contratantes

273 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.610.


274 (STJ, REs 1.555.202/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13.12.2016, DJe 16.03.2017).

373
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Encerrando a análise do tema da extinção do contrato e o presente capítulo, como última forma bási-
ca de extinção dos contratos, para algumas categorias negociais a morte de um dos contratantes pode gerar
o fim do pacto. Isso somente ocorre nos casos em que a parte contratual assume uma obrigação personalís-
sima ou intuitu personae, sendo denominada cessação contratual, conforme expressão de Orlando Go-
mes.
Em casos tais, o contrato se extingue de pleno direito, situação que ocorre, por exemplo, na fiança.
Para este contrato, os herdeiros não recebem como herança o encargo de ser fiador, só respondendo até os
limites da herança por dívidas eventualmente vencidas durante a vida do seu antecessor (art. 836 do CC).
Em reforço, a condição de fiador não se transmite, pois ele tem apenas uma responsabilidade, sem que a
dívida seja sua (“obligatio sem debitum” ou “Haftung sem Schuld”).

374
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DOS CONTRATOS EM ESPÉCIE

1. Compra e venda (481 a 532, CC)


1.1. Noções conceituais

1.1.1. Conceito de compra e venda


Não há dúvidas de que a compra e venda é a mais importante forma de circulação de riquezas no
mundo moderno. Segundo Caio Mário, não fosse ela, o mundo não seria o mesmo. A compra e venda é a
evolução jurídica do contrato de troca ou permuta (antigamente chamado de escambo). Ou seja, ela é a
versão contemporânea do escambo.
O Código Civil andou bem ao cuidar da disciplina do contrato de troca ou permuta, na medida em
que mandou aplicar-lhe todas as regras da compra e venda. Há, entretanto, duas exceções a esta regra:
i) responsabilidade pelas despesas:
O Código Civil estabelece que no contrato de troca a responsabilidade pelas despesas é pro rata, ou
seja, dividida igualmente entre as partes. Na compra e venda, como será visto adiante, a regra é diversa.
ii) consentimento dos demais descendentes e do cônjuge:
No contrato de troca entre ascendente e descendente, somente será necessário o consentimento
dos demais descendentes e do cônjuge quando se tratar de troca de valores desiguais, sob pena de anula-
bilidade. Ou seja, em se tratando de troca de valores iguais, mesmo que entre ascendente e descendente,
é desnecessário o consentimento dos demais interessados.
O art. 481 do Código Civil apresenta uma definição da compra e venda:

Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio
de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.

O contrato de compra e venda é o negócio pelo qual uma parte se obriga a transferir
o domínio de certa coisa e o outro a pagar o preço.
Assim, pela compra e venda o vendedor se obriga a transferir ao comprador o domínio de coisa
móvel ou imóvel mediante uma remuneração, denominada preço
Nas palavras de Flávio Tartuce o contrato é translativo no sentido de trazer como conteúdo a
transmissão da propriedade, que se perfaz pela tradição nos casos que envolvem bens móveis, ou pelo
registro, nas hipóteses de bens imóveis, de modo que a compra e venda por si só não transmite a propri-
edade.
Quem cumpre o contrato primeiro é o comprador, salvo disposição em contrário. Assim, no silên-
cio das partes é o comprador que deve primeiro adimplir sua obrigação.

375
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A grande mensagem do art. 481, todavia, é a de que, no direito brasileiro, a compra e venda é um
contrato de natureza obrigacional. Nos contratos de eficácia real, o comprador passa a ter direito sobre a
coisa. Nos de natureza obrigacional, o comprador tem direito a uma prestação do vendedor.
O direito brasileiro, ao determinar que a compra e venda é relação jurídica meramente obrigacio-
nal, se afasta do sistema francês e se perfilha ao alemão. Assim, a compra e venda gera para o comprador
meramente o direito a uma prestação do vendedor, e não direito de propriedade sobre a coisa.
É possível enxergar, assim, dois momentos absolutamente distintos: o da celebração do contrato e
o da aquisição da propriedade. A celebração do contrato, como dito, gera efeitos meramente obrigacio-
nais. O segundo momento, que é o de aquisição de propriedade, se aperfeiçoa através da tradição ou do
registro. Este segundo momento sim é que tem eficácia real.
No direito brasileiro, a compra e venda não serve meramente para uso, mas sempre para fins de
consumo (o que não significa que ela será sempre um contrato de consumo, mas que a finalidade dela
será sempre o consumo de uma coisa). Isto porque, quando o comprador adquire o bem, ele passa a ter a
titularidade da coisa, podendo fazer com ela o que bem entender (consumi-la, exaurir a sua substância).

1.1.2. O contrato de leasing


O contrato de leasing (arrendamento mercantil) foi criado justamente para funcionar como uma
alternativa moderna à compra e venda. Ele pretendeu funcionar como uma compra e venda de uso. Isso
porque, às vezes, as pessoas não querem adquirir para si um bem, mas apenas utilizá-lo (ex.: uma lancha,
uma casa de praia). A ideia é que a pessoa apenas utilizaria a coisa, pagando pelo uso. Seria um arrenda-
mento. O exemplo mais comum é o de automóvel: como o sujeito precisa de um e não tem dinheiro para
pagar, ele celebra um contrato de leasing.
No leasing, uma instituição financeira adquire o bem para si (passa a ser a proprietária do bem) e o
arrenda (entrega a posse ao interessado), pelo prazo mínimo de 36 meses (exceto quando for automóvel,
em que o prazo mínimo cai para 24 meses), mediante um pagamento mensal de rendas. Evidente que
esse valor será bastante inferior ao da prestação de uma compra e venda. Pois bem, findo o prazo do con-
trato, abrem-se ao arrendatário três opções: i) renovar o contrato (esta opção não é boa ao arrendatário,
pois ele continuará pagando a renda por um bem usado); ii) extinguir o contrato, com a restituição da
coisa; e iii) exercer o direito de compra.
Já que pagou mensalmente somente as rendas, para o exercício do direito de compra, o arrendatá-
rio terá de pagar uma diferença, chamada de VRG (Valor Residual Garantido). Esta terceira opção é a
única que realmente interessa à instituição financeira.
Ocorreu que este contrato de leasing, que teria o intuito de facilitar a compra e venda de coisas
mais valiosas, terminou sufocado, na medida em que os arrendantes, percebendo que a terceira era a
única opção que lhes interessava, passaram a diluir o VRG no valor mensal das rendas. Com isso, o con-
trato deixa, na prática, de ser de leasing e passa a ser de compra e venda a prazo. O STJ, atento a essa

376
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

prática, com inteligência reconheceu o fenômeno e editou a Súmula 263, reconhecendo que a cobrança
antecipada do VRG desnatura o leasing, transformando-o em compra e venda a prazo:

Súmula 263 - A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de ar-
rendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação (cancelada).

No momento em que transformado o leasing em compra e venda a prazo, o proprietário passa a ser
o comprador (pois já houve tradição), de modo que deixa de ser cabível a reintegração de posse, poden-
do-se falar somente em execução do contrato. Quando as instituições financeiras perceberam que a co-
brança antecipada do VRG descambaria o negócio para uma compra e venda a prazo (e que, portanto,
perderiam o direito à reintegração), elas simplesmente pararam de celebrar contratos de leasing.
Quem achou isso ruim foram as grandes empresas do Brasil. A maioria dos aviões, dos equipamen-
tos custosos (navios, maquinários etc.) eram adquiridos por meio de contrato de leasing. Para elas, o
leasing é muito mais vantajoso (é impossível a uma companhia aérea ter 170 aeronaves caríssimas). Até
porque no leasing não há pagamento inicial de tributos, mas somente ao final.
Em vista disso, pressionado por essas grandes empresas, o STJ cancelou a Súmula 263 e editou a
293. Esta nova súmula, na prática, descaracterizou o contrato de leasing, que hoje não passa de compra e
venda a prazo, perdendo sua funcionalidade:

Súmula 293 - A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o
contrato de arrendamento mercantil.

1.2. Classificação do contrato de compra e venda

1.2.1. Bilateral
A compra e venda é o contrato mais bilateral, mais sinalagmático de todos. Nela, o sinalagma é per-
feito.

1.2.2. Oneroso
A compra e venda também será sempre onerosa, gerando vantagem econômica a ambas as partes.

1.2.3. Comutativo
A compra e venda, em regra, é comutativa uma vez que as prestações são conhecidas pelas partes.
Entretanto, as vantagens que dela decorrem podem eventualmente não ser previamente conheci-
das pelas partes. Ou seja, em alguns casos ela poderá se tornar aleatória em duas modalidades básicas:
i) art. 459 a 461 do Código Civil (a “venda de esperança”, também chamada de emptio spei, como a
venda de safra agrícola):

Art. 459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco
de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, des-
de que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade

377
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

inferior à esperada.

Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restitui-
rá o preço recebido.

a) Venda da esperança quanto à existência da coisa ou venda da esperança (Emptio spei)


Segundo Flávio Tartuce, refere-se à assunção de riscos por um dos contratantes no tocante à exis-
tência da coisa, caso em que o outro terá direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde
que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir. No contra-
to em questão não é fixada nem mesmo uma quantidade mínima como objeto, fazendo que o risco seja
maior.
b) Venda da esperança quanto à quantidade da coisa ou venda da esperança como coisa espe-
rada (Emptio rei speratae)
Novamente, leciona Flávio Tartuce que o contrato refere-se à assunção de riscos por um dos con-
tratantes sobre a quantidade da coisa, caso em que o alienante terá direito a todo o preço, desde que de
sua parte não tenha concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à espera-
da. Nessa situação, é fixada uma quantidade mínima para a compra, ou seja, neste contrato há um objeto
mínimo fixado para compra e venda.
ii) venda a contento.

1.2.4. Consensual (não solene)


A compra e venda é contrato consensual, nos termos do que determina o art. 482 do Código:

Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as
partes acordarem no objeto e no preço.

Em determinadas hipóteses, entretanto, a compra e venda tornar-se-á solene, como na compra e


venda de imóveis, em que, se o valor do imóvel exceder a 30 salários mínimos, o instrumento será por
escritura pública e, abaixo disso, poderá ser realizada por instrumento particular, mas em todo caso
será escrita. Veja que isso nada tem a ver com a aquisição da propriedade, que no caso dos imóveis
ocorre com o registro.
Obs.: Segundo Flávio Tartuce a compra e venda pode ser negócio formal (solene) ou informal (não
solene), uma vez que entende que a solenidade está relacionada com a escritura pública e não com a for-
ma escrita (formalidade é gênero, solenidade é espécie)

1.3. Elementos constitutivos da compra e venda

São os três elementos necessários para o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda: consen-
timento, preço e coisa. Como visto, a forma não é elemento essencial à compra e venda, pois de ordinário
o contrato será consensual, somente sendo exigida a forma nos casos previstos em lei (ex.: compra e ven-
da de imóveis).

378
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A forma, quando necessária, também não se confunde com a prova da compra e venda. A forma
somente será exigida por força de lei (como na compra e venda de imóveis). Quando houver previsão
legal, a forma integra a substância do ato, precisando ser atendida, sob pena de nulidade.
Já a prova do contrato (Art. 227 do CC) nada tem a ver com a sua substância, não influenciando na
validade da avença. Todavia, este dispositivo estabelece que não se admite prova exclusivamente teste-
munhal aos contratos que excedam dez vezes o salário mínimo. Isso não significa que um contrato de
compra e venda cujo objeto exceda o décuplo do salário mínimo tenha de ser necessariamente celebrado
por escrito, mas a prova deste contrato não será exclusivamente testemunhal:

Art. 227. Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negó-
cios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao
tempo em que foram celebrados.

Parágrafo único. Qualquer que seja o valor do negócio jurídico, a prova testemunhal é admissí-
vel como subsidiária ou complementar da prova por escrito.

O STJ, de qualquer maneira, vem mitigando estes dois dispositivos, afirmando que o juiz pode se
valer dos usos e costumes do local (quando os usos e costumes daquele lugar indicarem que o contrato é
celebrado verbalmente). Ex.: empreitada dificilmente é celebrada por escrito.

1.3.1. Consentimento dos sujeitos

1.3.1.1. Conceito

Consentimento é a manifestação de vontade das partes, que precisa ser livre e desembaraçada, sob
pena de anulabilidade por vício (erro, dolo, coação etc.)
Em determinadas hipóteses, todavia, além do consentimento das partes, o sistema pode exigir um
requisito (um elemento) específico. Ex.: na venda de bem imóvel de incapaz (pai e mãe pretendem ven-
der imóvel pertencente ao filho menor de idade, recebido por doação), o Código Civil exige autorização
judicial, ouvido o MP. Então, a simples manifestação de vontade não é suficiente, neste caso.
Por conta dessa regra, Chaves considera de duvidosa razoabilidade a estipulação dos pais em doar
imóvel aos filhos no divórcio, pois isso acaba, de certa forma, dificultando muito a disponibilidade acerca
do bem.

1.3.1.2. Situações especiais envolvendo o consentimento

1.3.1.2.1. Compra e venda de ascendente para descendente (art. 496)

Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o


cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de


bens for o da separação obrigatória.

379
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O Código Civil estabeleceu hipótese de legitimação para os casos de compra e venda de ascendente
para descendente: a validade do negócio dependerá do consentimento dos demais interessados.
Assim, salvo com o consentimento dos demais interessados, é anulável a venda de pai para filho.
Os interessados são os outros descendentes e o cônjuge. Vale observar que se trata de hipótese de anula-
bilidade, e não de nulidade, pela possibilidade de convalidação. Se a consequência fosse nulidade, não
seria possível convalidar o negócio.
A justificativa dessa anulabilidade é lógica: busca evitar a fraude sucessória. Se o pai doa para o fi-
lho, trata-se de antecipação de legítima (art. 544 do CC275), salvo se disse expressamente que a cota está
saindo da parte disponível. Um pai pode perfeitamente simular a venda ou vender o bem a preço vil, pre-
judicando os outros filhos. Para evitar esta hipótese é que o Código exige a anuência. O consentimento do
cônjuge também é exigido porque agora ele também é herdeiro.
Se o casamento é realizado no regime de separação obrigatória, dispensa-se o consentimento por-
que, neste caso, o cônjuge deixa de ser herdeiro, de acordo com o art. 1.829 do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640,
parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado
bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Se o regime é de separação convencional, o cônjuge é herdeiro, sendo, em tese, necessário seu con-
sentimento. Entretanto, o STJ, no REsp 992.749/MS, entendeu, contrariando o art. 1.829, que no regime
de separação convencional o cônjuge também deixa de ser herdeiro. A prevalecer esse entendimento,
também no regime de separação convencional será dispensado o consentimento do cônjuge.
Como o Código não diz nada a respeito, o prazo para a propositura da anulatória pelos interessados
é o do art. 179 (dois anos, contados da celebração do negócio). Como visto anteriormente, toda vez que o
Código estabelecer hipótese de anulabilidade e deixar de indicar o prazo, ele será decadencial de dois
anos.

275 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do
que lhes cabe por herança.

380
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ainda a respeito do prazo, com o advento do Código Civil de 2002, supera-se a Súmula 494 do STF.
Hoje, o prazo é decadencial de dois anos, e não prescricional de 20. Confirma esse entendimento o Enun-
ciado 368 da Jornada de Direito Civil276, bem como julgados recentes do STJ277

Súmula 494 - a ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos
demais, prescreve em vinte anos, contados da data do ato, revogada a súmula 152.

O Código determina que o prazo fluiria da conclusão do negócio. Todavia, invocando a teoria da ac-
tio nata, segundo a qual os prazos extintivos devem fluir da data do conhecimento (que não necessaria-
mente seria a da celebração), a melhor solução seria a de que o prazo fluiria do conhecimento. Essa é a
posição do STJ, contida na Súmula 278. Em prova objetiva, deve-se ficar com a lei. Em subjetiva, devem
ser expostas ambas as posições:

Súmula 278 - O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o
segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral.

Cumpre observar que a recíproca não é verdadeira: não se exige o consentimento dos demais inte-
ressados para a venda de descendente para ascendente (de filho para pai). A razão é simples: não há po-
tencialidade de fraude sucessória, pois, de ordinário, o pai não é herdeiro do filho. Todavia, se o negócio
for fraudulento (o filho, por exemplo, vendendo o bem a preço vil para o pai), aplicam-se as regras co-
muns do sistema (simulação, fraude contra credores). A inexistência de potencialidade de fraude suces-
sória justifica a inexistência de regra específica. Confirma este entendimento o Enunciado 177 da Jornada
de Direito Civil;

Enunciado nº 177 - Art. 496: Por erro de tramitação, que retirou a segunda hipótese de anulação
de venda entre parentes (venda de descendente para ascendente), deve ser desconsiderada a ex-
pressão “em ambos os casos”, no parágrafo único do art. 496.

Do mesmo modo, não incide a regra na venda de avô para neto, a menos que o neto seja herdeiro
por representação.
O art. 496 não tem aplicação na união estável, pois nela somente há efeitos entre as partes, nunca a
terceiros. Somente se exige o consentimento de pessoas casadas e dos demais descendentes.

276 Enunciado nº 368 - Art. 496: O prazo para anular venda de ascendente para descendente é decadencial de

dois anos (art. 179 do Código Civil).


277 1. Sob a égide do Código Civil de 1916, o exercício do direito de anular venda de ascendente a descendente

- que não contara com o consentimento dos demais e desde que inexistente interposta pessoa -, submetia-se ao
prazo "prescricional" vintenário disposto no artigo 177 do codex. Inteligência da Súmula 494 do STF. Tal lapso, na
verdade decadencial, foi reduzido para dois anos com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (artigo 179) (...)
(REsp 1.356.431/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe
21/09/2017).

381
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Se o filho comprou do pai por preço de mercado, sem o consentimento dos demais, o negócio seria
anulável? O STJ começou a exigir a prova do prejuízo para a procedência da anulatória. A simples ausên-
cia de consentimento, por si só, portanto, não é suficiente para anular o contrato.

1.3.1.2.2. Compra e venda entre cônjuges

A rigor a legislação só proíbe a compra e venda entre cônjuges se o contrato versar sobre bem co-
mum, ou seja, se a coisa negociada pertencer a ambos os cônjuges. A proibição se justifica porque não se
pode comprar aquilo que já é seu, nem pagar com dinheiro do próprio vendedor. Nessa hipótese, a com-
pra e venda, se realizada, não passa de uma ficção, de uma simulação.
De outro lado, se se tratar de bem excluído da comunhão, portanto que pertença exclusivamente a
um dos cônjuges, o negócio jurídico é válido. É o que está expresso no art. 499, do Código Civil:

Art. 499. É lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão.

Assim, mesmo nos casos em que o regime de bens do casal contratante é o da comunhão universal,
podem ser objeto de compra e venda os seguintes bens, a teor do que dispõe o art. 1.668 do Código Civil:
i) os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; ii)
os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição
suspensiva; iii) as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomuni-
cabilidade; iv) Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.
O mesmo se diga quando o regime de bens for o da comunhão parcial de bens. O art. 1.659, do Có-
digo Civil, exclui da comunhão: i) os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na
constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; ii) os bens adquiridos
com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares; iii)
os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão.
Por fim, adverte Maria Helena Diniz que essa venda é condenável sob o prisma moral, ante o fato
de um dos cônjuges poder influenciar o outro.

1.3.1.2.3. Compra e venda entre condôminos

Para vender o bem condominial (a coisa como um todo), exige-se o consentimento de todos. Ex.: se
três irmãos são proprietários de um terreno, é necessário o consentimento de todos para a venda do bem.
Caso um deles se recuse imotivadamente a dar o consentimento, cabe suprimento judicial por abuso do
direito (ato ilícito, nos termos do art. 187 do CC):

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-
mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costu-
mes.

Caso o condômino queira vender não o bem condominial, mas a sua quota-parte (nas palavras do
Código Civil, a sua “fração ideal”), tal venda independe do consentimento dos demais. Todavia, o condo-

382
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mínio é fonte de conflitos. Quanto menor o número de condomínios, menor o potencial conflitivo. Por
isso, para a venda da quota-parte, ainda que não seja necessário o consentimento, deve ser observado o
direito de preferência dos demais. Tal preferência deve ser materializada por meio de notificação (judici-
al ou extrajudicial), com prazo mínimo de 30 dias. Evidentemente que tal preferência somente terá de ser
observada em se tratando de compra e venda. Ela não é exigível no caso de doação (“quem tem dá o que
quer para quem quiser”).
Polêmicas:
i) o que ocorre se mais de um condômino quiser exercer seu direito de preferência? Quem terá pre-
ferência dentre aqueles que têm preferência?
O Código Civil faz justa homenagem à função social da propriedade: terá preferência quem tiver
realizado o maior número de benfeitorias. Caso não haja benfeitorias ou tenha sido realizado o mesmo
número de benfeitorias, terá preferência quem tiver o maior quinhão. Se os quinhões forem iguais, terá
preferência o condômino que oferecer o maior lance (art. 504):

Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro
consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda,
poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo
de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.

Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor
e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendi-
da os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.

ii) qual é a consequência da preterição do direito de preferência? Se um condômino vende sua quo-
ta sem dar a preferência aos demais, o que ocorre?
O Código Civil não previu, para essa hipótese, nulidade nem anulabilidade, para conferir maior di-
nâmica à relação. Estabeleceu a ineficácia em relação aos condôminos preteridos. Assim, os condôminos
prejudicados dispõem do prazo decadencial de 180 dias para proporem a ação de adjudicação compulsó-
ria, depositando o valor (“tanto por tanto”, ou seja, nas mesmas condições e acrescido das despesas do
registro) e adquirindo a propriedade.
Assim, entre as partes, o contrato de compra e venda celebrado preterindo condômino é existente,
válido e eficaz em relação aos celebrantes, somente não produzindo efeitos em relação ao preterido. Esta
solução foi bem melhor, pois se o Código houvesse estabelecido outra, ele estaria atacando o plano da
validade. O preterido teria de ajuizar ação anulatória, que é desconstitutiva e faz as partes voltarem ao
estado anterior: invalidado o negócio, o bem volta ao patrimônio do alienante, que não é mais obrigado a
vender o bem.
A solução do Código é mais consistente e efetiva ao condômino prejudicado, que não precisa des-
constituir o negócio, mas depositar o valor e adquirir a propriedade da coisa (tem de praticar um só ato, e
não dois).

383
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em resumo, a venda de fração ideal pelo condômino sem a preferência dos demais interessados ge-
ra ineficácia, e não invalidade, para que o negócio celebrado com o terceiro não precise ser desconstituí-
do. Basta ao prejudicado depositar o valor e adjudicar o bem.

1.3.1. Coisa
A coisa, o objeto da compra e venda, pode ser todo e qualquer bem alienável (móvel, imóvel, corpó-
reo, incorpóreo etc.) admitindo-se, inclusive, a compra e venda de coisa incerta ou alternativa.
Não existe compra e venda de bens incorpóreos ou imateriais, pois o contrato será de cessão onero-
sa de direitos.
A coisa deve ser lícita, possível e determinável, sob pena de nulidade absoluta da compra e venda
(CC, art. 166, II).
A coisa deve ainda ser alienável, ou seja, consumível juridicamente, a venda de um bem inalienável,
caso do bem de família voluntário ou convencional (arts. 1.711 a 1.722 do CC), é considerada nula, seja
pela ilicitude do objeto (art. 166, II) ou por fraude à lei imperativa (art. 166, VI).
A coisa pode ser atual ou futura (CC, art. 483278: venda sob encomenda - Exemplos: vestido, terno,
beca e incorporação imobiliária). Entretanto, e se a coisa vier a não existir o contrato será ineficaz, por
opção do legislador.
Demonstração definitiva de que quase tudo pode ser objeto de compra e venda é o fato de que po-
dem ser vendidas até coisas litigiosas. Com uma ressalva: em se tratando de venda de coisa litigiosa, não
incide a proteção contra os riscos da evicção (art. 457 do Código Civil):

Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigi-
osa.

O CC/02 em seu Art. 1.268279 admite até a venda a non domino (vender o que ainda não me per-
tence). O problema não é vender, mas encontrar quem queira comprar.
Nesse caso, a venda a non domino é caso de ineficácia do contrato, e não de sua inexistência ou inva-
lidade, de modo que fica condicionada à aquisição superveniente280. Ex.: posso vender o carro de Rogério
a Renato, mas o contrato de compra e venda celebrado com Renato não produz efeitos até que eu adquira
o carro de Rogério. Não posso cobrar de Renato o preço até que compre o carro de Rogério. Trata-se de
eficácia condicionada à aquisição superveniente.

278 CC, art. 483: “A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o

contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”.
279 CC, art. 1.268: “Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coi-

sa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao ad-
quirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono”.
280 (...) A venda a non domino é aquela realizada por quem não é o proprietário da coisa e que, portanto, não

tem legitimação para o negócio jurídico. Soma-se a essa condição, o fato de que o negócio se realiza sob uma con-
juntura aparentemente perfeita, instrumentalmente hábil a iludir qualquer pessoa (...) (STJ, REsp 1.473.437/GO,
4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07.06.2016, DJe 28.06.2016).

384
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não podem servir de objeto de compra e venda:


i) direitos da personalidade;
ii) bens fora do comércio (aqueles gravados com cláusula de inalienabilidade):
Vale observar que o art. 1.911 do CC determina que a cláusula de inalienabilidade faz presumir
também as cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade (mas a recíproca não é verdadeira):

Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica im-
penhorabilidade e incomunicabilidade.

iii) herança de pessoa viva:


O art. 426 do Código Civil proíbe o pacta corvina ou pacto sucessório (art. 426 do CC):

Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

1.3.2. Preço
O preço é a remuneração, a contra-prestação do contrato de compra e venda e deve ser certo e
determinado, sério, real e em moeda nacional corrente, pelo valor nominal, conforme o art.
315 do CC (princípio do nominalismo).
Assim, o preço tem de pago em dinheiro. Se puder se pago em algo diferente de dinheiro, o contra-
to não será de compra e venda, mas de troca ou permuta.
Nesse sentido, são nulas as estipulações do preço em moeda estrangeira ou em ouro,
em regra (CC, art. 318). Porém, o preço pode ser cotado dessas formas, desde que conste o correspon-
dente em reais (preço por cotação: CC, arts. 486 e 487).
A determinabilidade decorre do fato de que o preço pode estar submetido à bolsa de valores, índi-
ces econômicos, taxas de mercado etc. O preço pode até estar submetido ao arbitramento de um terceiro,
que funciona como mandatário das partes (não é árbitro, porque não há conflito). Ex.: o corretor de imó-
veis, numa compra e venda de imóvel.
O que não se admite é que o preço esteja submetido ao arbítrio exclusivo de uma das partes (ex.: o
sujeito cobra o quanto quiser) ou haja indeterminação absoluta do preço (quando não for possível fixá-lo
através de nenhum parâmetro). Nestes dois casos, o contrato será nulo.
O preço pode ser por moeda estrangeira? O art. 315 do CC consagra o princípio no nominalismo:

Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo va-
lor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.

Isso significa que o direito brasileiro não adota a “cláusula de escala móvel”, salvo disposição ex-
pressa das partes. Princípio do nominalismo significa que o preço deve ser sempre pelo valor nominal e
em moeda nacional, o Real.
Problema (que será sentido com mais clareza nos contratos a prazo): o valor de R$ 100,00, não va-
lerá o mesmo dentro de um ano. Não haveria, aqui, implicitamente, uma desarmonia contratual? O STJ

385
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

preencheu esta lacuna, estabelecendo que o princípio do nominalismo pressupõe correção monetária,
mas não juros. Assim, a correção monetária está implícita no preço. Os juros somente serão devidos com
expressa disposição das partes (é o que se chama de cláusula de escala móvel).
Há dois casos excepcionais, em que o preço na compra e venda pode ser fixado em moeda estran-
geira: i) compras realizadas no exterior (ex.: fatura do cartão de crédito em moeda estrangeira); e ii)
compras decorrentes de contrato de exportação.
Em se tratando de relação de consumo, o preço precisa ser devidamente informado ao consumidor.
O consumidor tem direito a clara informação acerca de todos os elementos do negócio. Ex.: nas gôndolas
de supermercado, o preço deve estar claramente exposto.
O preço, portanto, precisa ser sério, idôneo, determinado ou determinável. Isso não significa que o
preço precise ser justo. O Código estabeleceu diferentes consequências para a injustiça do preço, que lá é
chamada de onerosidade excessiva. Ou seja, a presença da onerosidade excessiva pode gerar diferen-
tes efeitos:
i) caso ela esteja presente no momento da formação do contrato, afetará a validade do contrato. Se-
rá caso de anulação do negócio. Se o contrato for de consumo, acarretará a nulidade; se o contrato for
civil, acarretará a anulabilidade.
ii) caso ela esteja presente posteriormente à formação do contrato, afetará a eficácia. Será o caso de
revisão ou resolução do contrato, a depender da intenção do interessado.

1.3.2.1. Outras modalidades de preço

i. Preço por avaliação (CC, art. 485281). Fixado por terceiro que tenha confiança das partes.
Exemplo: venda de imóvel - preço fixado por um corretor.
Se esse terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato (ineficácia), salvo quando
os contratantes concordarem em indicar outra pessoa.
ii. Preço tabelado, preço de costume e preço médio (CC, art. 488282).
Essa é a ordem a ser seguida se as partes não convencionaram o preço, não se resolvendo ou extin-
guindo o contrato.
Assim, se as partes não convencionarem o preço, valerá o preço tabelado, que por ter relação com a
ordem pública não pode ser contrariado (aplicação da função social do contrato). Não havendo conven-
ção ou tabelamento, valerão os preços de costume, decorrentes das vendas habituais. Por fim, em haven-
do vários preços habituais, prevalecerá o preço médio, a ser fixado pelo juiz.

281 CC, art. 485: “A fixação do preço pode ser deixada ao arbítrio de terceiro, que os contratantes logo desig-
narem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando
acordarem os contratantes designar outra pessoa”.
282 CC, art. 488: “Convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua determinação, se

não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se sujeitaram ao preço corrente nas vendas habituais do
vendedor. Parágrafo único. Na falta de acordo, por ter havido diversidade de preço, prevalecerá o termo médio”.

386
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii. Preço unilateral (CC, art. 489283). É fixado ao arbítrio exclusivo de uma das partes, sendo
nesses casos o contrato nulo.
Segundo Flávio Tartuce existem dúvidas sobre a interpretação do artigo, diante da prevalência dos
contratos de adesão (em que os preços são impostos). Para "salvar" a norma, é possível entender que ela
veda o preço cartelizado284 (cartéis).

1.4. Efeitos da compra e venda

O contrato de compra e venda estabelece quatro efeitos em relação às partes: i) responsabilidade


do vendedor por eventuais vícios redibitórios; ii) responsabilidade do vendedor pela evicção; iii) respon-
sabilidade pelo perecimento não culposo da coisa; e iv) responsabilidade pelas despesas de tradição e
registro.

1.4.1. responsabilidade do vendedor por eventuais vícios redibitórios


Este efeito já foi estudado anteriormente.

1.4.2. responsabilidade do vendedor pela evicção


Este efeito também já foi estudado anteriormente.

1.4.3. responsabilidade pelo perecimento não culposo da coisa


Se o perecimento da coisa é culposo, responde quem deu causa. Se não é culposo, aplica-se a regra
res perit domino (a coisa perece para o dono).
No contrato de compra e venda, a propriedade somente será transferida após a tradição, motivo pe-
lo qual, antes dela, a coisa perece para o vendedor. Após a tradição, a coisa perece para o comprador (que
passou a ser o dono).

1.4.4. responsabilidade pelas despesas de tradição e registro


O art. 490 do Código esclarece quem responde pelas despesas de tradição e registro:

Art. 490. Salvo cláusula em contrário, ficarão as despesas de escritura e registro a cargo do com-
prador, e a cargo do vendedor as da tradição.

A responsabilidade pelas despesas com o registro fica a cargo do comprador. O vendedor se res-
ponsabiliza pelas despesas com a tradição, salvo disposição em contrário das partes. A propaganda “frete

283 CC, art. 489: “Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das par-
tes a fixação do preço”.
284 Trata-se do preço manipulado por cartéis – grupo de empresas que se reúnem para estabelecer acordos

sobre fixação elevada de preços e cotas de produção para cada membro, com o fim de dominar o mercado e disci-
plinar a concorrência –, o que caracteriza abuso do poder econômico.

387
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

grátis” é redundante: no silêncio das partes, pressupõe-se que ele seja grátis, pelo que determina o art.
490 do Código Civil.

1.5. Situações especiais de compra e venda

As regras especiais da compra e venda são implícitas a determinados contratos e elas não se con-
fundem com as cláusulas especiais (pactos adjetos), que devem ser expressas.
Nesse sentido, em se tratando de venda por amostras, protótipo ou modelo (art. 484) e de venda ad
corpus e ad mensuram, o contrato ganha regras especiais, que serão estudadas a seguir.

1.5.1. Venda de coisa comum ou venda de bem em condomínio (Art. 504, CC)
A lei reconhece um direito de preferência, preempção ou prelação legal em favor do condômino de
bem indivisível, seja móvel ou imóvel. Essa preferência será em igualdade de condições com terceiros
(“tanto por tanto”).
Assim, na lição de Flávio Tartuce, a teor do art. 504 do CC285, não pode um condômino em coisa in-
divisível vender a sua parte a estranhos, se o outro condômino a quiser, tanto por tanto (em igualdade de
condições). O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver
para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de 180 dias, sob pena de decadência.
A doutrina diverge em relação à natureza da ação citada, sendo que para Maria Helena Diniz será
uma Ação anulatória, já Álvaro Villaça entende que se trata de uma Ação adjudicatória.
Segundo Flávio Tartuce independente da sua natureza, é certo tratar-se de uma ação com eficácia
real, vez que tem por objetivo a retomada do bem (proposta contra o outro condômino e o adquirente)
Sobre o início do prazo decadencial de 180 dias há três correntes doutrinárias:

a) Maria Helena Diniz286: ciência da venda (boa-fé objetiva). É a corrente que prevalece.
b) Villaça: registro imobiliário.
c) Venosa: da venda.
O STJ287 ampliou essa regra também ao bem divisível que se encontra em estado de indivisão.
Exemplo: loteamento.
Sendo vários os condôminos, o parágrafo único determina a ordem de Preferência entre os prefe-
rentes:

285 CC, art. 504: “Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro con-

sorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o
preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de deca-
dência. Parágrafo Único: Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta
de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a
quiserem, depositando previamente o preço”.
286 (RT 543/144).
287 (REsp 1207129/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2015,

DJe 26/06/2015).

388
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) 1º: benfeitorias de maior valor.


b) 2º: quinhão maior.
c) 3º: depositar previamente o preço.
Finalmente, destaca-se que essa forma de preferência não se confunde com outras preferências, co-
mo a preempção convencional (arts. 513 a 520 do CC) e com o direito de preferência do locatário (art. 33
da Lei 8.245/1991), institutos que ainda serão estudados de maneira separada.

1.5.2. Venda por amostras, protótipo ou modelo (art. 484)


A venda por amostras, protótipo ou modelo ocorre quando alguém compra à luz de uma demons-
tração (ex.: Avon, Natura):

Art. 484. Se a venda se realizar à vista de amostras, protótipos ou modelos, entender-se-á que o
vendedor assegura ter a coisa as qualidades que a elas correspondem.

Parágrafo único. Prevalece a amostra, o protótipo ou o modelo, se houver contradição ou dife-


rença com a maneira pela qual se descreveu a coisa no contrato.

O art. 484 estabelece duas regras:


i) o vendedor se responsabiliza (assegura) que a coisa a ser entregue tenha as mesmas qualidades e
características da amostra, protótipo ou modelo;
ii) havendo divergência entre a amostra e a coisa entregue, prevalecerá a amostra.
Venda por amostras é exemplo de contrato aleatório, pois há falta de certeza de que a coisa terá a
mesma qualidade. Por conta dessa falta de certeza, o comprador pode rejeitá-la.

1.5.3. Venda “ad corpus” e “ad mensuram”


Na venda de imóveis é possível que a sua área não seja simplesmente enunciativa, ou seja, trata-se
de um fator determinante do negócio jurídico. Exemplo: venda de um apartamento por m².
Trata-se da venda ad mensuram, aquela submetida a uma dimensão, medida ou extensão (ex: 500
metros quadrados, alqueires, hectares).
De outro lado, tem-se a venda ad corpus, venda de unidade, independentemente da dimensão. Ex.:
se o sujeito compra a Fazenda São Paulo ou o Sítio São Pedro, sem especificação de medida, há venda ad
corpus. Se compra a Fazenda São Paulo, com 5000 alqueires, há venda ad mensuram.
Se a relação é de consumo, a venda é obrigatoriamente ad mensuram. Se o contrato é civil, as par-
tes podem estabelecer uma venda ad corpus.
A diferença é importante para fins de vícios redibitórios: em se tratando de venda ad mensuram, é
possível reclamar vício redibitório por falta de medida. Se a venda for ad corpus, não há que se falar em
vício redibitório por falta de medida, pois neste caso a medida é irrelevante.

389
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Porém, cumpre lembrar do art. 500, § 1º, do CC, segundo o qual, na venda ad mensuram, não
haverá vício redibitório por falta de medida se a diferença encontrada for inferior a 1/20
(5%). Todavia, a regra não impede a responsabilização civil por inadimplemento contratual.

Art. 500. (...) § 1o Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa,
quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado
ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio.

O Código simplesmente diz que não haverá vício redibitório (rescisão do contrato), mas poderá ha-
ver indenização. O STJ288 reconheceu a nulidade das cláusulas que eventualmente impliquem em renún-
cia ao direito indenizatório do comprador por falta de medida. Isso porque, se renunciar, o comprador
fica sem nada (não pode alegar vício redibitório ou indenização).

1.5.3.1. Consequências na venda ad mensuram:


i. Se faltar área, o adquirente prejudicado terá as seguintes opções:

1º: exigir o complemento da área (ação “ex empto”), desde que haja viabilidade física.
2º: abatimento proporcional no preço (ação “quanti minoris”).
3º: resolução do contrato + quantias pagas + despesas contratuais (escritura pública e regis-
tro)+ (se houver má-fé do alienante) perdas e danos (ação redibitória).
ii. Se houver excesso de área, o vendedor que provar que tinha motivos para ignorar a me-
dida exata poderá ingressar em juízo. Nessa ação, o comprador tem duas opções:
1º: completar o preço; ou
2º: devolver o excesso.
Obs.: Prazo decadencial para todas essas ações (CC, art. 501): 1 ano, a contar do registro do título.
Entretanto, no § único do art. 501, há hipótese de impedimento de decadência (exceção ao artigo 207 do
CC): não corre o prazo se houver atraso na imissão de posse do bem. Exemplo: o imóvel foi invadido.

1.6. Cláusulas especiais (pactos adjetos) do contrato de compra e


venda

Os elementos constitutivos (consentimento dos sujeitos, preço e coisa) fazem com que a compra e
venda se torne válida e eficaz. É possível, contudo, que a autonomia privada estabeleça cláusulas especi-
ais ao negócio. Com efeito, as partes, querendo, podem estabelecer cláusulas acessórias (adjetas) a um

288 Uma disposição legal não pode ser utilizada para eximir de responsabilidade o contratante
que age com notória má-fé em detrimento da coletividade, pois a ninguém é permitido valer-se da
lei ou de exceção prevista em lei para obtenção de benefício próprio quando este vier em prejuízo
de outrem. - Somente a preponderância da boa-fé objetiva é capaz de materializar o equilíbrio ou
justiça contratual. Recurso especial conhecido e provido” (REsp 436.853/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,
TERCEIRA TURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 27/11/2006, p. 273).

390
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

contrato de compra e venda, as quais podem estar na lei (o Código prevê quatro) ou decorrer da autono-
mia privada.
Entretanto, para valerem e terem eficácia tais cláusulas devem constar expressamente do ins-
trumento, ponto que as diferencia das regras especiais, antes estudadas
Adiante, serão estudadas as quatro cláusulas adjetas previstas em rol exemplificativo do Código Ci-
vil.
Exemplo de cláusula não prevista no Código, que pode ser eleita pela vontade das partes, é a cláu-
sula (ou pacto) de melhor comprador. Trata-se da cláusula especial que permite ao vendedor vender a
coisa já vendida, se encontrar uma melhor oferta, dentro do prazo de um ano. Ela depende de previsão
expressa: somente quando ambos a desejarem ela produzirá efeito.

1.6.1. Retrovenda (art. 505, CC)


Retrovenda é a cláusula acessória no contrato de compra e venda que reserva ao vendedor o direito
potestativo (independentemente da vontade de quem comprou) de recomprar a coisa, no prazo decaden-
cial máximo de três anos:

Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo
de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do com-
prador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escri-
ta, ou para a realização de benfeitorias necessárias.

Nesses casos, a propriedade do comprador é resolúvel289, pois sujeita a condição.


O prazo decadencial de três anos para o exercício da retrovenda somente pode ser diminuído pela
autonomia da vontade. Jamais ampliado. O legislador considerou que, acima que três anos, o contrato se
tornaria muito inseguro.
Para que o vendedor exerça seu direito de comprar a coisa de volta, ele deve depositar o valor do
negócio “tanto por tanto” (nas mesmas condições). Isso significa que ele deve depositar o dinheiro pago,
acrescido das despesas (ex.: registro) e indenização por benfeitorias necessária (úteis e voluptuárias,
não).
A vontade do comprador é irrelevante, pois se trata de direito potestativo. Se o comprador não
aquiescer ao negócio voluntariamente, na lição de Flávio Tartuce, o vendedor, para exercer o direito de
resgate, as depositará judicialmente (art. 506 do CC). O dispositivo possibilita o ingresso da ação de
resgate, de rito ordinário (CPC/1973) ou procedimento comum (CPC/2015), pela qual vendedor obtém
o domínio do imóvel a seu favor, tendo a demanda eficácia erga omnes, diante do caráter real do institu-
to. Essa ação é constitutiva positiva, o que justifica o prazo decadencial de três anos.

289 Como visto propriedade resolúvel é aquela que depende de termo ou condição.

391
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A retrovenda não estabelece a celebração de um novo negócio (não surge um novo contrato de
compra e venda). Ela apenas desconstitui o negócio anteriormente celebrado. Exatamente por isso, não
haverá uma nova incidência fiscal não retrovenda (ITBI). Veja, por se tratar da desconstituição do negó-
cio anterior, não haverá um novo fato gerador.
Perceba que a retrovenda é uma condição resolutiva potestativa, na medida em que subordina
os efeitos do negócio de compra e venda a um direito potestativo do vendedor. O tema será visto com
mais minúcia adiante, por ocasião do estudo dos Direitos Reais, mas cumpre ressaltar que se trata de um
interessantíssimo caso de propriedade resolúvel. O que o comprador terá, nesse prazo de três anos, é
uma propriedade resolúvel (porque ela pode se extinguir). Expirado o prazo decadencial, a propriedade
se torna perpétua, pois a condição resolutiva já não mais produzirá efeitos.
Em se tratando de propriedade resolúvel, a retrovenda gera eficácia erga omnes, apesar de se tra-
tar de um direito puramente obrigacional. Essa situação é bastante interessante. A grande diferença en-
tre os direitos reais e obrigacionais é sua eficácia (erga omnes e intra partes, respectivamente).
Repita-se: a retrovenda, como todo direito obrigacional, não deveria ter eficácia com relação a ter-
ceiros. Todavia, excepcionalmente, apesar de ser um direito obrigacional, terá eficácia erga omnes. Ex.:
imagine que A vende um imóvel a B, gravado com cláusula de retrovenda, com prazo de três anos. Se,
nesse prazo, B resolver vender o imóvel a C (veja que a cláusula não implica direito de preferência a A), A
não tem relação jurídica com C, mas pode exercer contra ele o direito de retrovenda (o vendedor pode
exercer seu direito de retrovenda em face de terceiros, o que, curiosamente, confere a um instituto de
direito obrigacional, eficácia de direito real).
Isso fez professores como Fernando Noronha (SC) dizerem que a retrovenda teria virado um novo
tipo de direito real. Todavia, não se trata a retrovenda de um direito real em virtude do princípio da taxa-
tividade (o rol de direitos reais do art. 1225 do CC é numerus clausus).
Pela sua gênese patrimonial, a retrovenda admite transmissão, por ato inter vivos (ex.: cessão) ou
causa mortis.
O STJ vem admitindo retrovenda sobre bens móveis (REsp 260.923/SP).
O comprador que perde a coisa na retrovenda não tem direito a perdas e danos (evidentemente).
O art. 505, regra especial, afasta a aplicação do art. 122 do CC, que é regra geral:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos
bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio
jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

Ora, se há a possibilidade do exercício de um direito puramente potestativo por expressa previsão


legal, não há que se falar em ilicitude da cláusula de retrovenda.

392
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalmente, é de se lembrar que a cláusula de retrovenda é transmissível “inter vivos” ou


“mortis causa” (CC, art. 507290). Essa cláusula não é personalíssima ou intuitu personae.
Nas palavras de Flávio Tartuce, na prática o instituto encontra-se presente, muitas vezes, em casos
envolvendo fraudes ou atos ilícitos, especialmente para simular uma compra e venda onde em verdade
existe um empréstimo com cobrança de juros abusivos e pacto comissório real (Art. 1428, CC)291, vedados
pela lei.

1.6.2. Preempção, preferência ou prelação (Art. 513 a 520, CC)


Preempção ou preferência (art. 513) é a cláusula inserida na venda de móveis ou imóveis que impõe
ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender ou dar em pagamento,
em igualdade de condições (“tanto por tanto”)
Assim, o comprador assume a obrigação de, resolvendo vender a coisa, ofertá-la primeiramente a
quem lhe vendeu:

Art. 513. A preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor


a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação
na compra, tanto por tanto. (...)

A diferença em relação à retrovenda é evidente. Nesta, há um direito potestativo do vendedor. Na


preempção ou preferência, há uma obrigação jurídica do comprador (um dever que lhe é imposto).
A preempção ou preferência também é chamada de prelação. Na verdade, através da preempção ou
preferência as partes estabelecem o direito de prelação do vendedor.
O parágrafo único do art. 513 prevê prazo máximo de 180 dias, se móvel, ou de dois anos,
se o bem for imóvel, para o exercício do direito de preferência:

Art. 513 (...) Parágrafo único. O prazo para exercer o direito de preferência não poderá exceder a
cento e oitenta dias, se a coisa for móvel, ou a dois anos, se imóvel.

Esse prazo não pode ser confundido com o do art. 516:

Art. 516. Inexistindo prazo estipulado, o direito de preempção caducará, se a coisa for móvel,
não se exercendo nos três dias, e, se for imóvel, não se exercendo nos sessenta dias subseqüentes
à data em que o comprador tiver notificado o vendedor.

Inexistindo prazo estipulado, feita a notificação, o vendedor tem o prazo de três dias, se móvel, ou
de 60 dias, se imóvel, para exercer seu direito. Veja que é um prazo contado da notificação.

290 CC, art. 507: “O direito de retrato, que é cessível e transmissível a herdeiros e legatários, poderá ser exer-
cido contra o terceiro adquirente”.
291 CC, art. 1.428: “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com

o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor
dar a coisa em pagamento da dívida”.

393
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O prazo do art. 513, parágrafo único, pode ser reduzido, mas nunca ampliado pelas partes.
A preempção, como visto, é obrigação imposta ao comprador. Sua natureza jurídica é de promessa
unilateral de contrato. Isso porque o comprador está se comprometendo (assumindo a obrigação) de,
resolvendo vender, ofertar primeiro a quem lhe vendeu. Sendo promessa unilateral de contrato, haverá
na preempção incidência fiscal. Isso porque, evidentemente, haverá um novo contrato.
A preferência ou preempção incide não somente na compra e venda como na dação em pagamento.
Tanto a preferência como a retrovenda dependem de expressa previsão no registro.
Não se deve confundir preferência convencional com preferência legal. A preferência convencional
decorre da vontade das partes (tanto que exige o registro). A preferência legal é imposta por lei a deter-
minadas pessoas. Na convencional, é o comprador quem voluntariamente assume a obrigação. A prefe-
rência legal impõe a determinadas pessoas a obrigação de dar preferência a outras, quando resolverem
vender a coisa.
A diferença é importante porque se o direito de preferência é legal (ex.: venda de fração ideal con-
dominial, prevista no art. 504 do CC292), sua violação gera ineficácia do negócio em relação ao prejudica-
do e a possibilidade de adjudicação compulsória. Por sua vez, a violação da preferência convencional gera
apenas perdas e danos.
Importante ressaltar que o direito de preferência exige que a eventual oferta seja formulada nas
mesmas condições em que seria o outro contrato.
O direito de preferência convencional, portanto, produz efeitos distintos da legal,
na medida em que se resolve somente em perdas e danos, sendo o negócio jurídico cele-
brado com o terceiro se tornado válido e eficaz, respondendo solidariamente o terceiro
adquirente de má-fé.
Em resumo temos:
a) Preempção legal (exemplo: CC, art. 504): efeitos “erga omnes”: adjudicação da coisa.
b) Preempção convencional: efeitos “inter partes”: apenas perdas e danos, não cabe adjudi-
cação da coisa.

292 Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte
a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço,
haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de ben-
feitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a quise-
rem, depositando previamente o preço.

394
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: Christiano Chaves e Nelson Rosenvald sustentam que, malgrado o disposto expressamente
no art. 518 do CC293 (opção do legislador de 2002), haveria um caso em que o prejudicado poderia buscar
a anulação do negócio celebrado com o comprador: no caso de o terceiro saber do direito de preferência
e, de má-fé, assumir o risco. Isso por conta da função social do contrato, segundo o qual o contrato não
pode prejudicar terceiros. Perceba que, nesse caso, o contrato celebrado estaria prejudicando o direito do
primeiro vendedor.
O prazo para as perdas e danos, no caso da violação do direito de preferência, é o prescricional de
três anos.
Note que o art. 519 prevê hipótese de preferência legal:

Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços
públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.

Veja que, caracterizada a retrocessão (quando o bem expropriado não recebe o destino indicado no
decreto expropriatório), caberá ao expropriado o direito de preferência pelo preço atual da coisa.
O STJ, a partir do REsp 866.651/SP, passou a entender que não caracteriza a retrocessão se o bem
cumpre finalidade social distinta da indicada no decreto (ex.: o ente público expropria para construir
escola e constrói um hospital).
Obs.: Preempção convencional x Retrovenda:
Cláusula de preempção convencional Cláusula de retrovenda
Personalíssima ou “intuitu personae” Não é personalíssima
Não é cessível ou transmissível - “mortis causa” ou Ela é cessível e transmissível - “mortis causa” ou
“inter “inter
vivos”. vivos”.
CC, art. 520294 CC, art. 507

1.6.3. Cláusula de venda com reserva de domínio (art. 521, CC)


Reserva de domínio é a cláusula acessória inserida na venda de móveis infungíveis pela qual o
vendedor mantém a propriedade da coisa, tendo o comprador mera posse direta.
Porém, se o comprador paga integralmente o preço, adquire a propriedade; ou seja, a propriedade
do vendedor é resolúvel, nos termos do Art. 525, CC:

Art. 525. O vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir

293 Art. 518. Responderá por perdas e danos o comprador, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor ciên-
cia do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se tiver procedido
de má-fé.
294 CC, art. 520: “O direito de preferência não se pode ceder nem passa aos herdeiros”.

395
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial.

Dessa maneira, a venda com reserva de domínio é aquela em que, enquanto o preço não for inte-
gralmente pago, a propriedade não será transferida, mas somente a posse.
Trata-se de uma condição suspensiva com o intuito de dar segurança ao vendedor. Por isso, ela é
muito comum na compra e venda a prazo. Ou seja, se A quer comprar uma TV em 24 parcelas, enquanto
não pagar a última, não haverá transferência da propriedade. A cláusula confere ao vendedor o direito
de, na hipótese de inadimplemento, desfazer o negócio ou simplesmente cobrar a dívida, afinal, a propri-
edade ainda não foi transferida (CC, art. 526295).
Nesse sentido, Flávio Tartuce leciona que pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de
quando essa lhe é entregue (art. 524 do CC296). Essa hipótese revela a adoção pelo Código de 2002 do
princípio res perit emptoris (ou seja, a coisa perece para o comprador) como exceção ao princípio res
perit domino (a coisa perece para o dono)
Naturalmente, a cláusula de reserva de domínio é um negócio fiduciário (envolve a confiança), e
como todo negócio dessa natureza, exige o registro. A Súmula 92 do STJ é expressa nesse sentido. Se não
estiver registrada, a cláusula não produzirá efeitos com relação a terceiros:

Súmula 97 - A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certifica-
do de Registro do veículo automotor.

O Código expressamente se reporta à cláusula de reserva de domínio em relação aos bens móveis:

Art. 521. Na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar para si a propriedade, até que o
preço esteja integralmente pago.

O Código somente fala em bens móveis, pois, quando elaborado, somente era possível a alienação
fiduciária em se tratando de bens móveis. O dispositivo não foi atualizado, com o advento da Lei
9.514/1997, que passou a permitir a alienação fiduciária de bens imóveis. Em prova objetiva, contudo,
deve-se ficar com a letra da lei.
Para exercer as opções previstas no Art. 526, CC, o vendedor deverá constituir em mora o compra-
dor, mediante protesto do título ou interpelação judicial (CC, art. 525297). A notificação é requisito da
ação. Segundo decidido pelo STJ no REsp n. 1.629.000/MG a notificação pode ser extrajudicial.
É possível a aplicação, à cláusula de reserva de domínio, da teoria do adimplemento substancial
(“substantial performance”), conforme já decidiu o STJ298.

295
296 CC, art. 524: “A transferência de propriedade ao comprador dá-se no momento em que o preço esteja in-
tegralmente pago. Todavia, pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue”.
297 CC, art. 525: “O vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o

comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial”.


298 AGRAVO REGIMENTAL. VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. BUSCA E APREENSÃO. INDEFERI-

MENTO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. COMPROVAÇÃO. REEXAME DE PROVA. SÚMULA

396
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Importante salientar que no caso da retomada do bem, é facultado ao vendedor reter as prestações
pagas até o necessário para cobrir a depreciação da coisa, as despesas contratuais e o que mais lhe for
devido (multa e juros), entretanto, o excedente será devolvido ao comprador e o que faltar lhe será co-
brado (CC, art. 527). E havendo contrato de consumo, é nula a cláusula de decaimento, ou seja, a perda
automática de todas as parcelas pagas (CDC, art. 53299)
Eventual ação para recuperar a posse do bem é um tema que atualmente encontra divergência na
doutrina uma vez que sob a égide do CPC/1973 existia previsão expressa pela ação de busca e apreensão
(arts. 1.070 e 1.071), entretanto, o CPC/2015 não manteve a sistemática de seu antecessor, em decorrên-
cia disso surgiram duas correntes:
a) Ação de Reintegração de posse, entendimento seguido por Flávio Tartuce uma vez que o Código
Civil faz menção à recuperação da posse, no seu art. 526, parece ser mais viável a ação de rein-
tegração de posse, sujeita a liminar, nos termos dos arts. 554 a 566 do Novo CPC. Esse enten-
dimento já foi adotado pelo STJ no REsp n. 1.056.837/RN
b) Ação de procedimento comum com tutela provisória. Entendimento de Daniel Assumpção Ne-
ves e Fredie Didier, que também já foi adotado pela 3ª Turma do Tribunal Cidadão no citado
REsp n. 1.629.000/MG.
Finalmente, é de se observar que a cláusula de venda com reserva de domínio não se confunde com
a alienação fiduciária em garantia ou com o leasing ou arrendamento mercantil.
Flávio Tartuce apresenta as diferenças no quadro a seguir:

Cláusula de venda com reserva Alienação fiduciária em Leasing ou arrendamento


de domínio garantia mercantil
Natureza jurídica: cláusula es- Natureza jurídica: consti- Natureza jurídica: contrato
pecial da compra e venda (arts. tui direito real de garantia típico ou atípico, debate que di-
521 a 528 do CC). sobre coisa própria (arts. vide doutrina e jurisprudência
1.361 a 1.368 do CC, Decre- (Lei 6.099/1974 e resoluções do
to-lei 911/1969 e Lei Banco Central do Brasil).
9.514/1997).

7/STJ. 1. Tendo o decisum do Tribunal de origem reconhecido o não cabimento da busca e apreensão em razão do
adimplemento substancial do contrato, a apreciação da controvérsia importa em reexame do conjunto probatório
dos autos, razão por que não pode ser conhecida em sede de recurso especial, ut súmula 07/STJ. 2. Agravo regi-
mental não provido” (AgRg no Ag 607.406/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julga-
do em 09/11/2004, DJ 29/11/2004, p. 346).
299 CDC, art. 53: “Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em presta-

ções, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que esta-
beleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a
resolução do contrato e a retomada do produto alienado”.

397
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O vendedor mantém o domí- O devedor fiduciante Constitui uma locação com


nio (propriedade resolúvel), en- compra o bem de um tercei- opção de compra, com o pa-
quanto o comprador tem a posse ro, mas como não pode pagar gamento do VRG (Valor Resid-
direta da coisa alienada. Pagas as o preço, aliena-o, transferin- ual Garantido). A jurisprudên-
parcelas de forma integral, o do a propriedade ao credor cia vem entendendo que o VRG
comprador adquire a propriedade fiduciário. O proprietário do pode ser diluído nas parcelas ou
plena da coisa. bem é o credor fiduciário, pago no final do contrato de ar-
mas a propriedade é rendamento (Súmula 293 do
resolúvel, a ser extinta se o STJ).
preço for pago de forma inte-
gral pelo devedor fiduciante.
A ação cabível para reaver a A ação cabível para reaver A ação cabível para reaver a
coisa era a ação de busca e a coisa móvel é a ação de coisa é a ação de busca e
apreensão, na vigência do busca e apreensão prevista apreensão, conforme o art. 3.º,
CPC/1973. no Decreto-lei 911/1969. § 15, do Decreto-lei 911/1969,
Como o CPC/2015 não repro- Não cabe prisão, segundo incluído pela Lei 13.043/2014.
duziu tais comandos, surgirá decisões do STJ e do STF,
polêmica sobre a ação cabível na mais recentemente (Súmula
sua emergência. Podem ser Vinculante 25).
expostas, de imediato, duas
visões.
A primeira aponta ser cabível
uma ação de procedimento co-
mum, sujeita a tutela provisória.
A segunda corrente, por este
autor seguida, entende ser viável
uma ação de reintegração de
posse, sujeita a liminar.
300

1.6.4. Cláusula de venda a contento ou venda sujeita a prova (arts. 509 e 510)

300 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P. 712.

398
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A venda a contento e a venda sujeita a prova estabelecem condições resolutivas, submetendo os


efeitos do negócio à vontade do comprador (que precisa dizer se gostou ou não do bem adquirido). Veja
que, em ambos os casos, a vontade do comprador é a própria condição resolutiva.
Na venda a contento, em que a coisa ainda não é conhecida pelo comprador, (também chamada de
ad gustum ou touch and feel), o elemento de aferição é subjetivo. Importa a vontade de quem comprou e
mais nada. Trata-se de condição potestativa. Ex.: adquirido vestido de casamento com venda a contento,
com tudo correto (corte, tecido etc.), no corpo da compradora ele fica horroroso. O comprador não é
obrigado a levá-lo para casa, pois a venda a contento lhe confere a prerrogativa de rejeitar o bem, inde-
pendentemente de motivo.

Art. 509. A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva,
ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não
manifestar seu agrado.

Na venda sujeita a prova, a coisa já é conhecida, pois, o comprador conhece suas qualidades, o ele-
mento de aferição é objetivo. Importa a qualidade do bem, de modo que o comprador tem de dizer o mo-
tivo por que se recusa a ficar com a coisa:

Art. 510. Também a venda sujeita a prova presume-se feita sob a condição suspensiva de que a
coisa tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor e seja idônea para o fim a que se destina.

Tanto num caso como no outro, não há dúvida, trata-se de condição resolutiva, e o comprador deve
aprovar a coisa. Caso não aprovada, a compra e venda perde a sua eficácia e, enquanto o comprador não
aprova, as suas obrigações são de mero comodatário (CC, art. 511).
O instrumento pode fixar um prazo para aprovação e, não havendo prazo, o vendedor deverá noti-
ficar o comprador (judicial ou extrajudicial) para que o faça em prazo improrrogável.
Não se caracteriza venda a contento ou sujeita a prova o art. 49 do CDC, que estabelece o direito de
arrependimento imotivado do comprador, em 7 dias, nas vendas feitas fora do estabelecimento comerci-
al:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura
ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de
produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a
domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os


valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos,
de imediato, monetariamente atualizados.

2. Doação
2.1. Noções conceituais

399
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 538 do CC estabelece que a doação é o contrato em que o doador, por ato de liberalidade,
transfere ao donatário, do seu patrimônio, bens ou vantagens, sem qualquer remuneração:

Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu
patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

Trata-se de um contrato benéfico ou benévolo, que como tal, não admite intepretação extensiva.
Ademais, todo contrato de doação conjuga dois elementos, um objetivo e outro subjetivo.
O elemento objetivo é a transferência patrimonial. Toda doação é transferência de patrimônio. Se
não há transferência patrimonial, não há contrato de doação.
O transplante de órgãos humanos (Lei 9.434/1997), cotidianamente chamado de “doação de ór-
gãos”, não é doação. Ele não se encaixa no conceito de doação justamente porque não há a transferência
patrimonial.
O elemento subjetivo do contrato de doação é a liberalidade praticada pelo doador e aceita pelo be-
neficiário (o donatário). Nem toda liberalidade é doação, mas toda doação é uma liberalidade. Há outros
tipos de liberalidade que não são doações (ex.: testamento e renúncia de direitos). E mais, a doação é
uma liberalidade que reclama aceitação pelo beneficiário.
Nunca se deve confundir, em Direito Civil, liberalidade com solidariedade. Liberalidade é uma via
de mão única. Solidariedade tem mão e contramão. Liberalidade é unilateral; solidariedade é recíproca.
Doação é liberalidade (unilateral): se uma pessoa faz uma doação, o beneficiário não pode ser obri-
gado a, no futuro, fazer uma doação. O beneficiário da doação jamais será compelido a restituir. Os ali-
mentos são solidariedade: o beneficiário de alimentos poderá, no futuro, ser compelido a prestá-los ao
devedor. Exemplo de doação é o dízimo na Igreja. O fiel não poderá, futuramente, alegar vício redibitório
pela graça que não restou alcançada. Doação é liberalidade, é uma via de mão única (“dar sem olhar a
quem”). Nos alimentos, há uma via de mão e contramão: quem hoje é credor, amanhã poderá ser deve-
dor. O Direito Civil trabalha com esses dois conceitos, mas na doação há apenas liberalidade.
Considerando a diferença entre solidariedade e liberalidade, em se tratando de uma relação jurídi-
ca solidária (ou seja, com obrigações recíprocas), se o atual credor se comporta de modo ignóbil em rela-
ção ao devedor (ex.: pratica um ato de indignidade), não pode este requerer judicialmente a extinção da
obrigação por conta do comportamento daquele. Não pode o devedor requerer a extinção de uma obriga-
ção baseada na solidariedade por conta da indignidade. O que pode ocorrer é de a indignidade gerar a
diminuição no valor dos alimentos.
A indignidade do beneficiário de uma relação baseada na liberalidade, por outro lado, pode gerar a
revogação do ato. Exatamente porque o ato é liberal, aquele que pratica a liberalidade não pode ser sub-
metido a uma indignidade.
Assim, toda doação é uma liberalidade, pautada pelas respectivas regras, que não se confundem e
não produzem os mesmos efeitos da solidariedade.

400
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.2. Classificação da doação

2.2.1. Benéfico
O contrato de doação é benéfico. A ele aplica-se o art. 114 do CC, que diz que todo contrato com es-
sa natureza submete-se a uma interpretação restritiva:

Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

2.2.2. Unilateral
O contrato de doação é unilateral, em regra, porque gera obrigações somente ao doador. A grande
diferença entre a doação e a compra e venda é justamente a unilateralidade. A compra e venda é mais
bilateral dos contratos. A doação, por outro lado, é o contrato unilateral por excelência.
Obs.: A exceção se refere à doação modal ou com encargo, entretanto, há divergência:
a) Encargo é ônus: contrato unilateral imperfeito (Maria Helena Diniz e Flávio Tartuce ).
Segundo Flávio Tartuce, o encargo não constitui uma contraprestação, um dever jurídico a fazer
com que o contrato seja sinalagmático. Constitui sim um ônus, que, não atendido, traz consequências ao
donatário.

b) Encargo é dever: contrato bilateral (casal Nery).


2.2.3. Gratuito
O contrato de doação é, em regra, gratuito, pois somente o donatário obtém vantagens. A gratuida-
de da doação, cumpre ressaltar, pode ser excepcionada. É a chamada doação onerosa, que é o termo utili-
zado para designar a doação com vantagens recíprocas (ex.: doação com encargo).
Aliás, não se deve esquecer que, por se tratar de um contrato benéfico e gratuito, não incidem na
doação os vícios redibitórios ou evicção (trata-se da famosa regra: “cavalo dado não se olha os dentes”).
Há, entretanto, duas exceções a essa regra. São dois casos nos quais, excepcionalmente, incidem vícios
redibitórios e evicção na doação:
i) doação contemplativa para casamento:
Doação contemplativa para o casamento é a “doação da pessoa encalhada”. O sujeito faz uma doa-
ção para que um terceiro se case com ele ou com alguém por ele indicado. O CC/2002 diz que tal doação
é possível, mas, realizada, terá de ser garantida a idoneidade da coisa.
Chaves acha que a doação contemplativa do casamento ofende a essência afetiva do direito de famí-
lia. Se direito de família é afeto (e é), permitir doação contemplativa para o casamento é não somente
ofender a essência afetiva do direito de família como patrimonializar o casamento. O Brasil é um dos
poucos países do mundo que mantêm a doação contemplativa para o casamento.
ii) doação remuneratória:

401
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Doação remuneratória é aquela feita em retribuição a um serviço sem exigibilidade jurídica. Ex.: na
doação ao “flanelinha”, o sujeito não é obrigado a pagar, mas, se o fizer, será o caso de uma doação re-
muneratória, passível da incidência de vícios redibitórios e evicção.

2.2.4. Consensual
É contrato consensual, em regra, uma vez que tem aperfeiçoamento com manifestação de vonta-
de das partes. Exceção: doação manual (tem aperfeiçoamento com a entrega da coisa – art. 541, §único,
CC).

2.2.5. Comutativo
É contrato comutativo, uma veez que as prestações são conhecidas pelas partes.

2.2.6. Solene (art. 541, caput)

Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular. (...)

Todo contrato de doação tem de ser escrito. Não se trata de escritura pública, mas de contrato es-
crito. Pode ser instrumento público ou particular, com uma ressalva: em se tratando de doação de bem
imóvel, com valor superior a 30 salários mínimos, a doação terá de ser realizada obrigatoriamente por
escritura pública.
A regra da solenidade da doação uma tem exceção, estabelecida pelo art. 541, parágrafo único, do
CC, em homenagem aos usos e costumes brasileiros. Trata-se da chamada “doação manual”:

Art. 541 (...) Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de
pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição.

Doação manual é a doação de bens móveis de pequeno valor, seguida da tradição. Dízimo, esmolas,
uma folha de caderno etc. são doações manuais. Neste caso, a doação deixa de ser um contrato
solene e passa a ser um contrato real (por exigir a entrega, a tradição).
Há, todavia, um pequeno problema: uma joia pode ser dada de presente e ter elevado valor. Nesse
caso, o contrato (não escrito) pode ser considerado doação? Qual o conceito de “pequeno valor” estabele-
cido no Código? O que significa pequeno valor a uma pessoa pode não ter o mesmo sentido para outra.
Alguns autores propuseram o uso do salário mínimo como limite de referência. Segundo esse en-
tendimento, se valesse até um salário mínimo, o bem seria pequeno valor. No entanto, para quem ganha
pouco, um salário mínimo pode não ser pequeno valor. Por outro lado, para quem ganha muito, um salá-
rio mínimo será muito menos que pequeno valor.

402
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo estabelecido no Enunciado 622 da VIII JDC 301 e entendimento do STJ, no REsp
155.240/RJ, adotou-se o critério da proporcionalidade do valor do bem com o patrimônio do doador.
Para o tribunal e a doutrina, o conceito de pequeno valor depende do patrimônio daquele que
doa.
Assim, para quem tem um vasto patrimônio, o conceito de pequeno valor será eslastecido. Flávio
Tartuce considera esse critério muito mais razoável.
Finalmente é de se lembrar que a doação constitui ato inter vivos, não havendo doações causa
mortis no Ordenamento Jurídico Pátrio pois lhes falta o caráter de irrevogabilidade, que é inerente às libe-
ralidades.

2.3. Promessa de doação

A promessa de doação é um tema bastante atual. Historicamente, a doutrina se digladia acerca do


seu cabimento. O STJ possui posição formada sobre o assunto, que vem sendo reafirmada em julgados
recentes.
Alguns autores, como Sílvio Rodrigues e Pablo Stolze, entendem que é descabida a promessa de
doação, pois ela não é exigível. Partindo da premissa de que a doação é baseada num elemento subjetivo
(a liberalidade), que ganha o nome de animus donandi, a promessa de doação não seria exigível porque
toda doação é um ato liberal (dependente da vontade do doador). Não tendo o doador mais a vontade, ele
não poderá ser obrigado a doar.
Assim, para esses autores, a promessa de doação não é exigível por conta da ausência de animus
donandi (a vontade de praticar a liberalidade).
De outro lado, em posição majoritária na doutrina, Carlos Roberto Gonçalves, Flávio Tartuce, Wa-
shington de Barros Monteiro e Cristiano Chaves entendem que é exigível a promessa de doação. Para
esses autores, a promessa de doação tem exigibilidade jurídica porque o animus donandi (elemento sub-
jetivo) está presente no momento da promessa.
A estes argumentos Chaves acrescenta mais um: a boa-fé objetiva. Como visto, um dos deveres
anexos à boa-fé é justamente o da lealdade. Com base nele, conclui-se que um contratante não deve criar
no outro expectativas desleais. Por essa razão, a promessa de doação deve ser cumprida. Aquele que cri-
ou a expectativa deve honrá-la.
A posição do STJ é no sentido da segunda corrente, tendo o tribunal reconhecido expressamente a
exigibilidade da promessa de doação302. Esse entendimento foi adotado pela doutrina no Enunciado n.
549 – VI Jornada de Direito Civil.303

301 ENUNCIADO 622 – Art. 541: Para a análise do que seja bem de pequeno valor, nos termos do que consta
do art. 541, parágrafo único, do Código Civil, deve-se levar em conta o patrimônio do doador".
302 (REsp 1355007/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em

27/06/2017, DJe 10/08/2017).

403
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há um claro exemplo de promessa de doação: é muito comum, no momento do divórcio ou da dis-


solução da união estável consensuais, que para se verem livres uma da outra, as partes se comprometam
a transferir bens do casal para os filhos. Veja que, naquele momento, não resta celebrada uma doação,
que tem de ser celebrada por escrito, com contrato autônomo. O pai e a mãe que celebram tal promessa
têm de ser ver compelidos a realizá-la. Por isso que o professor se posiciona no sentido da exigibilidade
da promessa de doação.
A promessa de doação é contrato preliminar e está, portanto, submetida às regras do art. 462 do
Código Civil:

Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenci-
ais ao contrato a ser celebrado.

2.4. Elementos caracterizadores da doação

São elementos caracterizadores (componentes) de um contrato de doação: os sujeitos, o objeto do-


ado, o consentimento das partes e a forma prescrita em lei.

2.4.1. Sujeitos da doação


Fundamentalmente, na doação há dois sujeitos, doador e donatário. O doador precisa ser capaz,
sob pena de nulidade ou anulabilidade, a depender do grau de incapacidade.
A doação feita pelo pródigo, que é relativamente incapaz, é anulável. Para a validade da doação fei-
ta por incapaz, deve haver autorização judicial, ouvido o MP.
Se o doador for casado e a doação for de bens imóveis, exige-se o consentimento do cônjuge, sob
pena de anulabilidade, que deve ser requerida no prazo de dois anos, contados do término do casamento
(Chaves acha que o prazo deveria ser contado do conhecimento, e não do término do casamento).
Mesmo que o bem doado não integre a meação do casal, exige-se o consentimento. Ex.: quando do
casamento, o cônjuge já possuía um terreno e quer doá-lo. Considerando que o regime de bens adotado
foi o da comunhão parcial, o terreno pertence ao patrimônio exclusivo dele. Mesmo assim, exige-se a
anuência do outro cônjuge. A razão disso é que, apesar de o bem não integrar a comunhão, os frutos dele
se comunicam.
Dispensa-se o consentimento do cônjuge se o casamento for sob o regime de separação convencio-
nal. Se a separação for obrigatória, exige-se o consentimento. Se o casamento for sob o regime de partici-
pação final nos aquestos, o pacto antenupcial poderá dispensar o consentimento.

303 Enunciado n. 549 – VI Jornada de Direito Civil: “A promessa de doação no âmbito da transação constitui

obrigação positiva e perde o caráter de liberalidade previsto no art. 538 do Código Civil”.

404
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tais regras não se aplicam à união estável, em que não se exige o consentimento do companheiro.
Dica sobre a união estável: deve-se sempre lembrar que a união estável somente produz efeitos intra
partes, nunca para terceiros.
O donatário não precisa ser capaz. Ele pode ser incapaz e até nascituro (art. 542). Caso seja nasci-
turo, art. 542 do CC determina que deve haver a aceitação da sua representante legal:

Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal.

Se o CC/02 admite a doação ao nascituro, surge a indagação: ele permite também a doação ao em-
brião? Veja que se trata, aqui, do embrião laboratorial, e não do implantado no útero da mãe, hipótese
em que, para o direito, terá o nome técnico de nascituro. É possível doar ao embrião criogenizado?
Apesar da polêmica doutrinária, a posição que prevalece é que sim (com o que Chaves concorda).
Faz-se a seguinte analogia: se o CC/02 permite o testamento em favor do embrião de laboratório, tam-
bém permite que ele também receba doação. Evidentemente, essa doação submete-se ao prazo estabele-
cido pela lei para que ele receba herança em testamento, que é o de ser o embrião concebido (e não nas-
cido) no prazo decadencial (caducidade) de dois anos, contados da abertura da sucessão.

2.4.2. Objeto doado


Todo e qualquer bem de natureza patrimonial pode ser objeto da doação. Até porque, como visto,
se objeto doado tiver natureza personalíssima (ex.: transplante de órgãos), a natureza jurídica do contra-
to não será doação. A natureza jurídica do transplante de órgãos é, na verdade, dação.
Podem, portanto, servir como objeto da doação bens móveis e imóveis, corpóreos e incorpóreos e
até bens futuros. Essa doação de bens futuros é apelidada de doação a non domino. É doar aquilo que
ainda não pertence ao doador. Ela é admitida, pois a natureza jurídica da doação a non domino é de
promessa de doação.
É possível também a doação em prestações periódicas, também chamada de doação por subven-
ções periódicas (art. 545 do CC):

Art. 545. A doação em forma de subvenção periódica ao beneficiado extingue-se morrendo o do-
ador, salvo se este outra coisa dispuser, mas não poderá ultrapassar a vida do donatário.

Ocorre a doação em forma de subvenção periódica quando alguém quer doar a outrem uma renda
mensal. O art. 545 traz uma interessante regra temporal: a doação por subvenção periódica terá o prazo
indicado pelo doador (autonomia privada). No silêncio, o prazo será a vida do doador, salvo se ele vincu-
lou o espólio (ou seja, salvo se ele manteve a doação mesmo depois de sua morte). Nesta hipótese, a doa-
ção não poderá ultrapassar a vida do donatário.
A doação por subvenção periódica, evidentemente, pressupõe a existência de legítima. Tem nature-
za jurídica alimentícia (é uma obrigação alimentícia voluntária), mas não permite a execução por prisão
civil, mecanismo que só é possível para a cobrança de alimentos do direito de família.

405
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Também se admite doação com cláusula de reversão. Trata-se da previsão de que, se o donatário
morrer primeiro, o bem volta para o patrimônio do doador (art. 547 do CC):

Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver
ao donatário.

Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro.

A premoriência do donatário gera o retorno do bem. Ou seja, se o beneficiário da doação morrer


primeiro que o doador, os herdeiros daquele não receberão o bem como herança. Agora, se o doador
morrer primeiro, consolida-se a doação. Há aqui um bom exemplo de propriedade resolúvel.
O art. 547, parágrafo único, determina que não se admite cláusula de reversão em favor de tercei-
ros. Explica-se: feita a “A” uma doação com cláusula de reversão, não pode o doador dizer que, se “A”
morrer, o bem passa a “B”. A reversão somente se pode operar em favor do doador, sob pena de nulidade.
A maioria esmagadora dos autores entende que esta proibição de reversão em favor de terceiros significa
a proibição de fideicomisso no contrato de doação.
Fideicomisso, vale observar, é a substituição do beneficiário de um negócio gratuito.
Com essa posição majoritária, o fideicomisso fica limitado ao testamento, não cabendo em mais
nenhum instituto jurídico. Ex.: o testador deixa um bem testamento em favor de “A” e estipula que, se
“A” não cumprir determinada condição (ex.: passar num concurso), não receberá o bem, mas um substi-
tuto, igualmente previsto em testamento.
Chaves tem dúvidas quanto a essa posição, mas prevalece, para fins de concurso, que não se admite
fideicomisso na doação.
Não podem ser objeto da doação, sob pena de nulidade:
i) herança de pessoa viva;
ii) bens personalíssimos;
iii) bens gravados com cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabili-
dade).
Acerca deste assunto, importante lembrar o disposto no art. 1.911 do Código Civil, que determina
que a cláusula de inalienabilidade faz presumir as demais:

Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica im-
penhorabilidade e incomunicabilidade. (...)

De qualquer maneira, é possível alienar bens gravados com cláusulas restritivas com autorização
judicial (do Juiz da Vara de Registros Públicos).

2.4.3. Consentimento das partes

406
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O consentimento das partes na doação deve ser recíproco (de ambas as partes, doador e donatário).
Ninguém é obrigado a aceitar uma doação. Doação é liberalidade e o donatário não pode se comportar
mal contra o doador.
O Código permite que o consentimento seja:
i) expresso: por escrito;
ii) tácito: comportamental (ex.: sem declarar expressamente que aceita, o donatário recebe e vende
o bem);
iii) presumido: pelo silêncio, quando havia prazo previsto para a aceitação;
iv) ficto: em favor do incapaz (o CC/2002 diz que há uma ficção em favor do incapaz, no sentido de
que se presume o consentimento dele). Exceto, evidentemente, a doação onerosa em favor do incapaz,
que tem de ter consentimento expresso.
Como visto, a doação contemplativa de casamento dispensa a aceitação, porque tal aceitação é a
própria celebração do casamento. Também foi visto que a doação feita ao nascituro depende do consen-
timento da sua representante.
Observações:
Todo presente é doação e, como tal, irrevogável.
A doação interessa também ao direito tributário: para fins de tributação, a doação é fato gerador
(Súmula 328 do STF):

Súmula 328 - é legítima a incidência do imposto de transmissão "inter vivos" sobre a doação de
imóvel.

Por ocasião do estudo dos direitos da personalidade, foi visto que o embrião laboratorial não tem
personalidade jurídica, com base no art. 5º da Lei de Biossegurança. Como tal, não tem direitos da per-
sonalidade. Até porque, se os tivesse, não poderia ser descartado. No entanto, foi dito que o embrião la-
boratorial pode receber doação. Não há incoerência, pois para a prática de atos de caráter patrimonial,
não é necessária personalidade, mas capacidade (diversos entes despersonalizados podem praticar atos
de caráter patrimonial). O embrião laboratorial não é chamado de prole eventual (que é o filho que al-
guém eventualmente terá).

2.4.4. Forma prescrita em lei


Este último elemento da doação já foi estudado. É a solenidade (a forma escrita), prevista no art.
541 do CC. Toda doação é formal, exceto a doação manual, em que se dispensa a forma escrita.

2.5. Proibições legais à doação

O CC proíbe a doação em relação a algumas pessoas ou a alguns objetos. Neste tópico, serão anali-
sadas todas essas restrições.

2.5.1. Art. 548: proibição de doação universal


407
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a sub-
sistência do doador.

Proibição de doação universal significa a vedação de doar um volume tal de patrimônio que com-
prometa a subsistência do doador. Nesta hipótese, a doação será nula. Esse artigo é um eloquente exem-
plo da teoria do aproveitamento do negócio jurídico.
O Código diz que é nula a doação universal. Todavia, embora o CC não diga, de acordo com a teoria
acima, é nula a doação universal na parte que comprometer a subsistência do doador. Ou seja, no que
não comprometer, a doação será válida.
Não se deve deixar levar pelo “canto da sereia” em relação a este artigo, cedendo a um raciocínio
pueril no sentido de que seria nula a doação de todo o patrimônio. A nulidade não decorre da extensão
do objeto, mas da dignidade do doador. O sujeito pode doar tudo o que tem, e esta doação ser válida.
Basta que tenha renda mensal que permita a sua manutenção ou tenha clausulado a doação com reserva
de usufruto vitalício.
O art. 548 é fundamentado na dignidade da pessoa humana. Trata-se de aplicação da teoria do pa-
trimônio mínimo da pessoa humana. Essa teoria, em direito constitucional, é conhecida como “teoria do
mínimo existencial”.
O STJ confirmou que o fundamento da proibição da doação universal é a preservação da dignidade
humana (REsp 285.421/SP). Outro exemplo de patrimônio mínimo é o bem de família.

2.5.2. Art. 549: proibição de doação inoficiosa

Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento
da liberalidade, poderia dispor em testamento.

É nula a doação naquilo que exceder ao limite da legítima (o limite de 50% do patrimônio disponí-
vel do doador). Perceba que, aqui, a nulidade é parcial (naquilo que exceder). O fundamento desta nuli-
dade é a preservação do núcleo familiar.
A legítima é um limite resguardado somente em favor de quem tem herdeiros necessários. “São
herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge” (art. 1.845 do CC). Note que o com-
panheiro não foi contemplado em lei como herdeiro necessário. Porém, evidentemente que, numa inte-
pretação conforme a Constituição, ele deve ser considerado herdeiro necessário. Todavia, em prova obje-
tiva, deve-se marcar a alternativa que reflita a previsão legal.
Em que momento se calcula a legítima para fins de comprovação da nulidade por doação inoficio-
sa? A jurisprudência e a doutrina não pacíficas no sentido de que o cálculo realiza-se no próprio mo-
mento da liberalidade. Esta solução mostra-se adequada, por conferir segurança jurídica ao contrato.
Se a legítima fosse calculada no momento da abertura da sucessão, posteriormente, poderia ter havido
uma oscilação patrimonial, tornando a doação já realizada inoficiosa (a pessoa poderia ter patrimônio no
momento da doação, mas tal patrimônio ter se esvaziado posteriormente).

408
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

De acordo com o STJ (REsp 1.361.983, Informativo 539), o herdeiro que cede seus direitos heredi-
tários continua tendo legitimidade para pleitear a declaração de nulidade de doação inoficiosa realizada
pelo autor da herança em benefício de terceiros. Isso porque o fato de ter realizado a cessão não retira do
cedente a qualidade de herdeiro, que é personalíssima.
O prazo para ajuizamento dessa ação declaratória de nulidade é de dez anos, contados a partir do
registro do ato jurídico que se pretende anular (art. 205 do CC e REsp 1.049.078):

Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

2.5.3. Art. 550: proibição de doação ao concubino ou concubina do cônjuge adúltero (a)

Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou
por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.

O CC determina que a doação feita ao concubino é anulável, no prazo de dois anos, contados da
dissolução do casamento. Chaves tem lido em livros (preocupado) que o fundamento dessa vedação seria
a proteção da família. Isso é incorreto. A proteção da família é realizada pelo art. 549 do CC. O funda-
mento, aqui, é a moralidade. Isso porque uma pessoa pode dispor, dentro da cota permitida (a parte dis-
ponível), livremente de seu patrimônio, podendo inclusive realizar uma doação a um estranho. Mas não
pode fazer à concubina. O referencial, aqui, é um padrão de moralidade comportamental. Só não se sabe
se correto: o Código não proíbe que a pessoa tenha uma amante. Proíbe que seja realizada uma doação a
ela. Muito pior que doar é ter uma amante.
O STJ vem entendendo que se houver separação de fato, convalida-se a doação (REsp
408.296/RJ). Isso porque não se trata mais de concubinato, mas de união estável. Chaves abre, aqui, um
parêntesis: no direito brasileiro há uma verdadeira ojeriza à concubina. Não é dado ao direito ficar com
ciúmes da relação alheia. O direito brasileiro estabelece outras vedações à concubina: seguro de vida,
herança e legado em favor dela geram nulidade. Veja que a sanção é acentuada: no caso da doação, a san-
ção é meramente a anulabilidade. Não fica nada para ela. Só o amor.
É um resquício de um tempo em que os padrões comportamentais eram definidos pelo direito (o
padrão de moralidade alheio). O grande problema é que esse assunto não é jurídico. Está dentro da libe-
ralidade de cada um. Problemas afetivos resolvem-se no psicólogo.

2.5.4. Art. 158: vedação da doação pelo devedor insolvente

Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o de-
vedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anu-
lados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

No caso da doação pelo devedor insolvente, o CC/2002 presume a fraude.

409
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.6. Modalidades de doação e seus efeitos

Neste tópico, serão analisadas situações de doação que o CC/2002 tratou como especiais.

2.6.1. Doação remuneratória (Art. 540, CC)


Doação remuneratória é aquela realizada em retribuição a um serviço prestado, sem exigibilidade
jurídica, ou seja, cujo pagamento não poderia ser exigido pelo donatário. Ex. Dou um carro ao médi-
co que salvou a vida do meu filho.
Pela letra do Art. 540, CC, apesar do nome, não se trata de ato de liberalidade pura, mas de uma
remuneração por serviços prestados (doação onerosa):

CC, art. 540: “A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não perde o cará-
ter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao va-
lor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto”.

Ressalta-se que somente há liberalidade naquilo que exceder o valor do serviço prestado, dessde
modo, p. ex. na cirurgia que o médico fez o preço era R$ 10.000,00, mas o carro doado valia R$
40.000,00, assim nos R$ 10.000,00 há pagamento, nos R$ 30.000,00 há doação.
A doação remuneratória gera os seguintes efeitos jurídicos:
i. Cabe alegação de vício redibitório (CC, art. 441, parágrafo único9).
ii. Não cabe revogação por ingratidão ou indignidade do donatário (CC, art. 564, I).
iii. As doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente não estão sujeitas à colação
(CC, art. 2.011).
Obs.: segundo entendimento do STJ, a doação remuneratória também deve respeitar a proteção da
legítima, quota correspondente aos herdeiros necessários e que equivale a cinquenta por centro do pa-
trimônio do doador.304

2.6.2. Doação contemplativa ou meritória


A doação contemplativa ou meritória é aquela realizada em contemplação de um merecimento do
donatário, razão de virtude.
É o caso de alguém que recebe uma doação em razão de seu mérito, sendo que não há qualquer
efeito especial nesta figura e eventual inexistência do mérito não afeta a validade nem a efi-
cácia da doação.
Contudo, pode caracterizar erro, na forma do art. 140 do CC, e tornar o contrato anulável:

Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determi-
nante.

304 (STJ, REsp 1.708.951/SE, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14.05.2019, DJe 16.05.2019).

410
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O dispositivo determina que o falso motivo pode anular o contrato quando for a razão determinan-
te para a celebração. Veja que a falta de mérito, por si só, não afeta a validade e a eficácia do contrato.

2.6.3. Doação feita ao nascituro (Art. 542, CC)


Enuncia o art. 542 do CC que “a doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu represen-
tante legal”.
O nascituro, aquele que foi concebido, mas ainda não nasceu (infans conceptus), poderá receber a
doação, mas a sua aceitação deverá ser manifestada pelos pais ou por aquele incumbido de
cuidar dos seus interesses, nesse último caso, com autorização judicial.
Assim, para a validade (2º degrau pontiano) exige-se aceitação do representante legal do nascitu-
ro, quanto à eficácia (3º degrau pontiano) depende do nascimento com vida do nascituro, se-
gundo a doutrina majoritária (Maria Helena Diniz e Silmara Chimellato)
É possível a doação ao concepturo (prole eventual), a teor do Art. 546, CC.

2.6.4. Doação sob forma de subvenção periódica (CC, art. 545)


Trata-se da doação de rendas – doação de trato sucessivo (mês a mês) que, em regra, não pode ul-
trapassar a vida do doador, pois é personalíssima ou “intuitu personae”.
O doador pode estipular o contrário, onerando os herdeiros até os limites da herança (exceção ao
artigo 426 do Código Civil). Entretanto, no último caso, jamais poderá ultrapassar a vida do donatário
(personalíssima ou “intuitu personae”).
Obs.: Doação sob a forma de subvenção periódica X Contrato de constituição de renda:

Doação sob forma de subvenção periódica Contrato de constituição de renda

Constitui espécie. Constitui gênero.

É sempre negócio jurídico gratuito. Pode assumir forma gratuita ou onerosa (art.
804 do CC).305

Nunca estará relacionada com imóvel. A renda tem A renda pode estar relacionada com imóvel, de
origem no patrimônio do doador de forma direta onde é retirada

2.6.5. Doação “propter nuptias” ou em contemplação de casamento futuro (CC, art.


546)

305 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.1084

411
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se da doação realizada em contemplação de casamento futuro com pessoa certa e determina-
da.
Na lição de Flávio Tartuce, é doação condicional, pois presente condição suspensiva, de forma que
contrato não gera efeitos enquanto o casamento não se realizar.
Em que pese Carlos Roberto Gonçalves ententa tratar-se de um “presente de casamento”, com este
não se confunde, uma vez que o presente é doação pura.

2.6.6. Doação de ascendente para descendente e entre cônjuges (art. 544)


A doação de ascendente para descendente é antecipação de legítima (quota dos herdeiros necessá-
rios):

Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adianta-


mento do que lhes cabe por herança.

Há, no entanto, uma exceção (REsp 730.483/MG). Nesse julgado, o STJ estabeleceu que a doação
de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por
herança, “salvo se o doador, expressamente, no instrumento de doação (que como visto exige forma
escrita), disser que o bem está saindo de sua cota disponível”. Com esta exceção, é possível compreender
o art. 554.
Veja que a declaração precisa estar expressa no instrumento, não podendo ser posterior.
Desse modo, o herdeiro que recebeu a antecipação do pai precisa levar o bem à co-
lação (ou seja, leva-lo ao inventário). Se o bem não existe mais, colaciona-se o seu valor. O limite para
que o herdeiro colacione são as últimas declarações. Se não for colacionado até esse limite, o herdeiro
será punido com a sanção de sonegados (arts. 1.992 a 1.996 do CC/2002). Todavia, é possível que o
doador dispense essa colação (art. 2.006 do CC).

A sanção de sonegados significa a perda do direito sobre o bem que não foi apresentado. O bem
precisa ser colacionado para que não haja desigualdade na legítima.
Veja que há uma clara diferença entre a doação e a compra e venda entre ascendentes e descenden-
tes. Esta é anulável, salvo se com o consentimento dos demais interessados. Doação não exige o consen-
timento de ninguém. Basta doar. Em contrapartida, ela serve como antecipação de legítima. São situa-
ções distintas, portanto.
Em relação a doações entre os cônjuges, entende-se que poderá haver doação de um cônjuge a ou-
tro a depender do regime de bens adotados.
i. Comunhão parcial: sim - bens particulares.
ii. Participação final nos aquestos: sim - bens particulares.
iii. Comunhão universal: sim - bens particulares (CC, art. 1.66818).
iv. Separação de bens:

412
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Convencional (pacto antenupcial ou contrato de convivência): sim.


b) Obrigatória/legal (CC, art. 1.641): duas correntes:
b.1. Não: pois haveria fraude ao regime (Ministro Sanseverino).
b.2. Sim, em regra: não se pode presumir a fraude (STJ – Ag.Rg. no REsp n. 194.325/MG).

2.6.7. Doação com cláusula de reversão (Art. 547, CC)


Segundo Flávio Tartuce, a doação com cláusula de reversão (ou cláusula de retorno) é aquela em
que o doador estipula que os bens doados voltem ao seu patrimônio se sobreviver ao donatário (art. 547
do CC). Trata-se esta cláusula de uma condição resolutiva expressa, demonstrando o intento do doador
de beneficiar somente o donatário e não os seus sucessores, sendo, portanto, uma cláusula intuitu perso-
nae que veda a doação sucessiva.
Porém, o pacto de reversão só tem eficácia se o doador sobreviver ao donatário. Se falecer antes
deste, a condição não ocorre e os bens doados incorporam-se ao patrimônio do donatário definitivamen-
te, podendo transmitir-se, aos seus próprios herdeiros, com sua morte.
A cláusula de reversão, em função de sua natureza personalíssima ou “intuitu personae”, somente
pode ser estipulada ao doador e não para terceiro, pois é vedada a doação sucessiva.
Finalmente, alienado o bem e falecendo o donatário, essa alienação, em regra, é tornada sem efeito,
havendo condição resolutiva, nos termos do art. 1.359, CC.
Isso porque a propriedade daquele que adquiriu o bem com a referida cláusula é resolúvel. Nesse
contexto, eventual adquirente do bem sofrerá os já estudados efeitos da evicção, salvo boa-fé de terceiro.

2.6.8. Doação conjuntiva (art. 551)


A doação conjuntiva é aquela realizada em favor de duas ou mais pessoas. Salvo disposição contrá-
ria (autonomia privada), presume-se dividida em partes iguais:

Art. 551. Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se
distribuída entre elas por igual.

Parágrafo único. Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a
doação para o cônjuge sobrevivo.

O exemplo mais comum permite problematizar o instituto: doação feita em favor de marido e mu-
lher ou companheiro e companheira. Se a doação é em favor de marido e mulher (e o dispositivo aplica-
se à união estável), ocorrerá o chamado “direito de acrescer”. Trata-se da possibilidade de o cônjuge so-
brevivente somar à sua parte a fração do cônjuge falecido.
Imagine uma doação feita em favor de marido e mulher, presumidamente dividida em partes
iguais. Falecido o marido, a parte a ele doada não vai para o espólio (e aos herdeiros), ficando diretamen-
te com ela (a parte acresce ao cônjuge sobrevivente, privando a transmissão sucessória).

413
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se de um absurdo feito pelo Código, que prejudica os filhos. Os filhos cônjuge que morreu
não necessariamente serão filhos do cônjuge que ficou vivo. A partir do momento em que o cônjuge so-
brevivente acresce, está privando os filhos do cônjuge que morreu e transmitirá, com a posterior morte
do outro cônjuge, aos filhos deste, que não necessariamente são filhos daquele. Claramente, o CC esque-
ceu-se da pluralidade de entidades familiares (a possibilidade de famílias recompostas). O CC prejudica
os herdeiros do cônjuge que morre primeiro, salvo se ambos tiverem o mesmo filho.
A intenção do CC foi boa: evitar uma bitributação (duas sucessões, como dois pagamentos de tribu-
to). Mas, com isso, prejudicou os filhos do que morre primeiro.

2.6.9. Doação inoficiosa (Art. 549, CC)


Segundo o art. 549 do CC/2002, é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o do-
ador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Essa doação, que prejudica a legíti-
ma, a quota dos herdeiros necessários, correspondente a 50% do patrimônio do disponente, é denomi-
nada doação inoficiosa.

A fim de declarar a nulidade da doação inoficiosa, é necessária a chamada ação de redução (ação
declaratória de nulidade), que possuí algumas peculiaridades:
a) Pode ser proposta ainda estando vivo o doador.
b) Deve-se levar em conta o momento da liberalidade, em regra. (STJ – AR 3.493/PE).
c) A ação está sujeita a prazo prescricional de 10 anos uma vez que envolve direito patrimonial
(CC, art. 205) (REsp n. 1.321.998/RS) (não se aplica o art. 169 do CC24).
d) Somente pode ser proposta pelos interessados patrimoniais e não pelo Ministério Público
(REsp n. 167.069/DF) (não se aplica o art. 168 do CC).

2.6.10. Doação universal (Art. 548, CC)


É doação de todos os bens sem a reserva do mínimo para a sobrevivência do doador.
Segundo doutrina da Proteção do mínimo existencial ou patrimônio mínimo (Ministro Luiz Fa-
chin), é causa de nulidade absoluta e por envolver questão de ordem pública, poderá a ação declaratória
de nulidade ser proposta a qualquer tempo, sendo imprescritível.
Caberá ainda intervenção do MP e declaração de ofício dessa nulidade absoluta pelo juiz, que dela
tenha conhecimento (art. 169 do CC).
Obs.: É possível a doação da totalidade do patrimônio pelo doador, desde que remanesça uma fonte
de renda ou reserva de usufruto, ou mesmo bens a seu favor, que preserve um patrimônio mínimo à sua
subsistência, conforme já foi recolhecido pelo STJ306

306 (REsp 1183133/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2015,

DJe 01/02/2016).

414
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.6.11. Doação com condição, termo ou encargo


O Código permite ao doador gravar a sua doação com condição, termo ou encargo.
A condição é um evento futuro e incerto. Se for resolutiva, extingue os efeitos do contrato de doa-
ção. Mais interessante é a condição suspensiva. Isso porque ele obsta a produção de efeitos. Por isso, ha-
vendo condição suspensiva, enquanto ela não for implantada não há a aquisição nem o exercício de direi-
tos.
Todos dizem que o termo é um evento futuro e certo. Chaves prefere dizer que o termo é um evento
futuro e inevitável. Dizer que o termo é um evento futuro e certo é incorrer numa incoerência. “O termo é
um evento futuro certo, que pode ser certo ou incerto”. Isso porque, se houver uma data previamente
estipulada, é um termo certo. Mas pode não ter data estipulada, como a morte, que é um evento incerto.
Portanto, para Chaves, o termo é um evento futuro, certo ou incerto, mas inevitável (ele vai aconte-
cer).
Cumpre observar que a morte, numa determinada situação, deixa de ser termo e passa a ser condi-
ção. É a morte dentro de um lapso temporal. Ex.: o sujeito faz uma doação a “A”, se “A” não morrer no
próximo mês. Neste caso, a morte deixa de ser termo e passa a ser condição.
O termo final extingue a eficácia do contrato. Já o termo inicial impede a eficácia. E, enquanto o
termo não advier, há a aquisição, mas não há exercício. Como é um evento futuro e inevitável, o titular já
adquire o direito, mas não pode exercitá-lo. Diferente da condição, que, por ser incerta, não permite a
aquisição e o exercício do direito enquanto não implantada.
O encargo, também chamado de modo (o CC português é quem o faz, e alguns autores utilizam a
expressão) é uma contraprestação exigida do beneficiário de um negócio gratuito. Ex.: faço uma doação a
“A”, com o encargo de ele prestar serviços em determinado hospital.
Interessante observar que a presença do encargo num contrato de doação não afeta nem a aquisi-
ção nem o exercício. Havendo o encargo, há aquisição e o exercício. O eventual descumprimento do en-
cargo não afeta nem a validade nem a eficácia do contrato. Gera, apenas, execução. É a chamada “execu-
ção de encargo”.
No exemplo, se “A” não presta os serviços, a doação produzirá efeitos, mas o contrato poderá se
executado.
A legitimidade para a execução do encargo é:
i) do próprio doador;
ii) se morto o doador, dos seus herdeiros;
iii) do beneficiário do encargo (se o encargo for em favor do incapaz, terá legitimidade seu repre-
sentante ou assistente);
iv) do MP, se o encargo for em favor da coletividade.

415
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Só existe um caso em que o descumprimento do encargo afetará a aquisição e o exercício dos direi-
tos. Trata-se da hipótese em que o encargo for expresso sob a forma de condição. Isso porque o encargo
expresso sob a forma de condição seguirá as regras da condição.
Ex.: o sujeito faz uma doação a seu irmão se ele prestar serviços médicos em determinado hospital.

2.6.12. Doação para entidade futura (art. 554)


É o caso de uma doação para uma pessoa jurídica que ainda será constituída.
Se a entidade não estiver constituída no prazo de dois anos contados da efetuação da doação, cadu-
cará essa doação. A utilização da expressão “caducará” pelo dispositivo deixa claro que o prazo referido
no dispositivo é decadencial.
Assim, a doação é realizada sob condição suspensiva, pois o negócio fica pendente até a regulariza-
ção da empresa e sem efeito caso não regularizada. Ex.: fundação a ser constituída.

Art. 554. A doação a entidade futura caducará se, em dois anos, esta não estiver constituída re-
gularmente.

2.7. Revogação da doação (Art. 555 a 564, CC)

O Código permite a revogação da doação. Mas essa revogação tem de ser por ato judicial. Isso é cu-
rioso, pois se costuma pensar em revogação como retratação.
Assim, a revogação cabe ao doador como forma de resilição unilateral (CC, art. 473)
Ninguém pode revogar a doação por declaração de vontade. É nula a eventual cláusula derrogatória
(ou derrogativa), nos termos do art. 556 do CC:

Art. 556. Não se pode renunciar antecipadamente o direito de revogar a liberalidade por ingrati-
dão do donatário.

Trata-se da cláusula que retira do doador o direito de ajuizar a ação de revogação. Ou seja, é uma
cláusula de renúncia a direitos. É nula. Vale dizer: todo doador tem direito indisponível de ajuizar ação
de revogação.
Finalmente, observa-se que o direito de revogação é personalíssimo do doador, não se trans-
mitindo aos seus herdeiros, em regra (art. 560, CC307). Exceções: a) se a ação revogatória já tiver sido
iniciada pelo doador. b) No caso de homicídio do doador em que a ação cabe originariamente aos herdei-
ros dele - Art. 561, CC.
São duas as hipóteses de revogação da doação: i) descumprimento de encargo; e ii) ingratidão do
donatário.

307 CC, art. 560: “O direito de revogar a doação não se transmite aos herdeiros do doador, nem prejudica os

do donatário. Mas aqueles podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os her-
deiros do donatário, se este falecer depois de ajuizada a lide”.

416
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.7.1. Revogação por descumprimento de encargo


Como visto, o descumprimento de encargo permite a sua execução, foram estudados inclusive os
legitimados para essa execução.
Nesse sentido, é certo que o próprio instrumento pode fixar um prazo para a execução do encargo,
sendo que não havendo prazo, o doador deverá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo
razoável para que cumpra a obrigação (CC, art. 562 - mora “ex persona”).
Assim, na inexecução do encargo ou em caso de execução infrutífera, é possível ao doador requerer
a revogação através da Ação de revogação, Art. 559, CC, entretanto há polêmica em relação ao prazo. Du-
as correntes:
a) Encargo é ônus: é hipótese de resilição, uma vez que há direito potestativo do doador, de modo
que se aplica o artigo 559, ou seja, o prazo decadencial de 1 ano (Maria Helena Diniz, Pablo
Stolze, Pamplona e Flávio Tartuce).
b) Encargo é dever: é hipótese de resolução uma vez que houve descumprimento, direito subjeti-
vo, de modo que se aplica o artigo 205, que prevê o prazo prescricional de 10 anos, por tratar-se
de caso de inadimplemento contratual. (Nery, Sanseverino, Simão).
Para os seguidores desta corrente, em se tratando de prazo prescricional, percebe-se que a natureza
jurídica da revogação por descumprimento de encargo é a de pretensão condenatória. É a corrente que
prevalece na jurisprudência do STJ308.
Obs.: a aplicação do prazo decadencial de um ano, contado de quando chegue ao conhecimento do
doador o fato que a autorizar e de ter sido o donatário o seu autor possível também em relação à revoga-
ção por ingratidão do donatário, quanto a isso não há qualquer polêmica.

2.7.2. Revogação da doação por ingratidão do donatário


A revogação da doação por ingratidão do donatário tem prazo decadencial de um ano (deve-se
atentar para não confundir com a revogação da doação por descumprimento de encargo, que tem prazo
prescricional de dez anos). Na revogação da doação por ingratidão, a natureza da revogação é desconsti-
tutiva, e não condenatória (por isso que o prazo é de decadência).
A ação é personalíssima (portanto, quem pode promover é somente o doador), salvo na hipótese de
homicídio, hipótese em que caberá aos herdeiros. Veja que o CC fala em “salvo se o donatário houver
perdoado”. Entretanto, como ele poderá perdoar se foi morto? Lembre-se que, nas demais hipóteses, a
ação cabe apenas ao doador.
O art. 557 indica quatro hipóteses de ingratidão: i) homicídio doloso, tentado ou consumado; ii)
ofensa física; iii) injúria grave; e iv) abandono material:

308 (REsp 69.682/MS, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 13/11/1995,

DJ 12/02/1996, p. 2432).

417
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra
ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

De acordo com o entendimento do Tribunal Cidadão309 o rol do Art. 557, CC é exemplificati-


vo, ademais, o Enunciado 33 da Jornada, no mesmo sentido, entende que, podendo o juiz considerar
outras hipóteses que tenham a mesma finalidade:

Enunciado nº 33 - Art. 557: O novo Código Civil estabeleceu um novo sistema para a revogação
da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo,
excepcionalmente, outras hipóteses.

O nome dessa figura é “tipicidade finalística”: trata-se da possibilidade de o magistrado considerar


outras hipóteses, desde que tenham a mesma finalidade. Ex.: o juiz pode considerar auxílio, induzimento
ou instigação ao suicídio, pois têm a mesma finalidade de um homicídio. Mas não pode considerar o ho-
micídio culposo, que não tem a mesma finalidade da modalidade dolosa.
Confirmando a ideia acima, o Art. 558310 prevê que o ato de ingratidão também pode estar relacio-
nado a um familiar do doador (cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador
– rol exemplificativo).
Existem quatro hipóteses em que não é possível revogar a doação por ingratidão:
i) doação remuneratória;
ii) doação contemplativa do casamento (propter nuptias);
iii) doação onerosa com encargo cumprido;
iv) doação em cumprimento de obrigação natural (ex. dar gorjeta).
O cumprimento de obrigação natural caracteriza verdadeiro pagamento (dívida prescrita, dívida de
jogo).
Finalmente, Flávio Tartuce lembra que a revogação por ingratidão não prejudicará os direitos ad-
quiridos por terceiros, nem obrigará o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida,
pois nessa situação a sua condição de possuidor de boa-fé é presumida.

(REsp 1593857/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em
309

14/06/2016, DJe 28/06/2016).


310 CC, art. 558: “Pode ocorrer também a revogação quando o ofendido, nos casos do artigo anterior, for o

cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador”.

418
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No entanto, sujeita-o a pagar os frutos posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coi-
sas doadas, a indenizá-la pelo meio-termo de seu valor (art. 563 do CC).

3. Locação (CC, arts. 565 a 578; e Lei 8.245/1991)


3.1. Noções conceituais

O conceito de locação encontra-se estampado no art. 565, CC, de modo que na locação de coisas, o
locador se obriga a ceder ao locatário, por tempo determinado ou não, o uso e o gozo de coisa infungível,
mediante certa remuneração denominada aluguel311.

3.1.1. Normas aplicáveis


Segundo a lição de Flávio Tartuce, o Código Civil de 2002 não afastou a aplicação da Lei
8.245/1991 à locação de imóvel urbano, entretanto, o art. 2.036 do CC/2002 afastou a aplicação das
normas relativas à locação de coisas, às locações de imóveis urbanos, de modo que à estes apli-
cam-se as regras previstas na LL.
Ademais, é de se consignar que o dispositivo não tem o condão de afastar as regras ge-
rais da teoria geral dos contratos, sobretudo aquelas relativas aos princípios contratuais (função
social do contrato e boa-fé objetiva); ou os preceitos especiais de outros contratos típicos, caso da fiança,
nas relações envolvendo a locação urbana.
Nesse sentido, é fundamental verificar que o critério utilizado pela Lei de Locação (LL) para diferen-
ciar imóvel urbano de outras categorias de imóveis, p. ex. rural, rústico, estatal, etc. Nesse sentido:

3.1.1.1. Imóveis rurais ou rústicos

Os imóveis rurais são os destinados à agricultura, à pecuária ou ao extrativismo – Aplicação do Es-


tatuto da Terra (Lei 4.504/1964) – arrendamento rural.
Os imóveis rústicos são os terrenos baldios – Aplicação do Código Civil (arts. 565 a 578).
Segundo Flávio Tartuce, eventualmente, um imóvel localizado no perímetro urbano pode ser rural
para fins locatícios (exemplo: plantação de tomates no centro de uma grande cidade). De modo que para
tal classificação, é pertinente sempre verificar a atividade preponderante desenvolvida no
imóvel, não interessando, em regra, a localização do imóvel ou o seu estado (com construção ou sem
construção).

3.1.1.2. Imóveis urbanos


Os imóveis urbanos assim, são aqueles destinados à:
a) Residência;

311 Flávio Tartuce alerta que não é correto chamar o contrato de “contrato de aluguel” uma vez que, tecnica-

mento, aluguel é a remuneração pelo uso da coisa alugada, o correto é contrato de locação.

419
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

b) Indústria;
c) Comércio; e
d) Serviços não agrários.
De modo que à estas finalidades, aplica-se a Lei 8.245/1991, em regra:

Lei 8.4245, art. 1º: “Art. 1º A locação de imóvel urbano regula - se pelo disposto nesta lei:

Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais: a) as locações: 1.
de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e funda-
ções públicas; 2. de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veícu-
los; 3. de espaços destinados à publicidade; 4. em apart- hotéis, hotéis - residência ou equipara-
dos, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais se-
jam autorizados a funcionar; b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.”.

Como visto acima, outras regras devem ser estudadas, uma vez que, de acordo com o art. 1.º da Lei
de Locação, a norma especial não terá incidência no caso de locação de imóveis:
a) Propriedade do Estado;
Para esses bens devem se aplicados o Decreto-lei 9.760/1946 e a Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações)
A Lei de Locação poderá ser aplicada no caso de imóvel locado ao Poder Público, situação em que este for
locatário e dependendo da atividade desenvolvida no imóvel.

b) Vagas de garagem;
A locação desses bens deverá ser regida pelo Código Civil. Eventualmente se forem locados aparta-
mento e vaga de garagem, a Lei de Locação deverá incidir pela aplicação do princípio pelo qual o acessório
segue o principal.
Obs.: a Lei de Locação também tem aplicação para os casos de locação de espaços destinados pa-
ra estacionamentos, eis que a utilização do imóvel para prestação de serviços está no conteúdo dessa
norma especial312.

c) Espaços para publicidade;


Sobre eles incidem as regras do Código Civil.

d) Apart-hotéis, hotéis, residência e afins;


Aplica-se as regras do CC. Flávio Tartuce entende pela aplicação do CDC face à relação de consu-
mo.

e) Arrendamento mercantil – “leasing”.


Deve ser aplicada a Lei 6.099/1974, pa fins tributários, e resoluções do Banco Central do Brasil
(BACEN).

312 A locação de imóvel para exploração de serviços de estacionamento não afasta a incidência da Lei de Loca-

ções – Tese 17, edição 53, JTSTJ.

420
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.2. Classificação da locação

a) Contrato bilateral ou sinalagmático;


Por envolver prestações recíprocas. Gera obrigações para ambas as partes e, em consequência, admi-
te a aplicação da exceptio non adimpleti contractus prevista no art. 476 do Código Civil.
b) Oneroso;
c) Consensual;
d) Comutativo;
e) Informal, em regra – pois não se exige forma escrita.
Exceção: locação para temporada, a qual exige forma escrita (art. 48, Lei 8.245/91313).
f) Paritário ou de adesão
Em relação ao contrato de adesão, o conteúdo pode ser imposto. Entretanto, o STJ tem entendido
que não há relação de consumo entre locador e locatário, no caso de aplicação da Lei 8.245/1991314.

3.3. Locaçãode imóveis urbanos (Lei 8.245/1991)

3.3.1. Regras gerais


Inicialmente é importante consignar que o Art. 2º, Lei 8.245/91315 prevê solidariedade ativa legal
entre locadores e solidariedade passiva legal entre locatários, o que se estende entre os ocupantes de ha-
bitações coletivas.
Obs.: Segundo Maria Helena Diniz “A habitação coletiva é a casa, apartamento ou prédio que serve
de residência a várias pessoas, sem relação de parentesco, podendo, ainda, designar o local em que, mes-
mo acidentalmente, vivem várias pessoas. Mas, tratando-se de imóvel urbano que serve de moradia a pes-
soas pertencentes a várias famílias, os seus ocupantes presumir-se-ão locatários ou sublocatários”.
Em seguimento, nos termos do art. 3º, Lei 8.245/91 a locação pode ser estipulada por qual-
quer prazo, dependendo de outorga conjugal se igual ou superior a 10 anos.
Se o prazo for superior a 10 e não houver outorga conjugal, o cônjuge não estará obrigado a obser-
var o prazo excedente, o que denota que claro caso de ineficácia em relação ao outro cônjuge, não sendo o
contrato anulável.

313 Lei 8.245/91, art. 48: “Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do
locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros
fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja
ou não mobiliado o imóvel. Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato,
obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.”
314 Tese 1, edição 53, JT STJ: “O Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios re-

gidos pela Lei n. 8.245/91.”.


315 Lei 8.245/91, art. 2º: “Havendo mais de um locador ou mais de um locatário, entende - se que são solidá-

rios se o contrário não se estipulou. Parágrafo único. Os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares presu-
mem - se locatários ou sublocatários.”.

421
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Durante o prazo convencionado não poderá o locador reaver o imóvel alugado (art. 4.º da
Lei 8.245/1991). Trata-se de um dever legal que, se violado, gera a possibilidade de o locatário pleitear as
perdas e danos cabíveis, nos termos dos arts. 402 a 404 do CC.
No entanto, o locatário poderá devolvê-lo, na vigência do contrato, pagando a multa pactuada, nos
termos citado Art. 4º:

Lei 8.245, art. 4º: “Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador
reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia,
poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do con-
trato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.

Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel decorrer de


transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar serviços em localidades di-
versas daquela do início do contrato, e se notificar, por escrito, o locador com prazo de, no mí-
nimo, trinta dias de antecedência.”.

É importante notar que a multa poderá ser reduzida proporcionalmente ao cumprimento do contrato
ou nos termos do art. 413 do CC, se entender o juiz da causa que a penalidade é exagerada (Enunciado n.
357 CJF/STJ 316).
Entretanto, em tese, pela literalidade do art. 54-A da Lei 8.245/91317, não cabe a redução da mul-
ta no contrato “built to suit” (construir sob medida para “vestir” – locar), cujo limite é o valor dos alu-
guéis restantes (Art. 412, CC).
Finalmente, consigna-se que o locatário ficará dispensado da multa se o fim da locação for motiva-
do por transferência de emprego, de modo que basta a denúncia (notificação) com, no mínimo, 30 dias
de antecedência (caso de resilição contratual).

3.3.2. Aluguéis na Lei 8.245/91


O aluguel é a remuneração do locatário ao locador pela locação do bem, cuja convenção é livre en-
tre as partes, sendo vedada a sua estipulação em moeda estrangeira, atrelamento ao salário mínimo ou
alteração cambial sob pena de nulidade (art. 17, Lei 8.245/91).

316 Enunciado 357, IV Jornada de Direito Civil: “O art. 413 do Código Civil é o que complementa o art. 4º da
Lei n. 8.245/91.” / (REsp 1353927/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado em
17/05/2018, DJe 11/06/2018).
317 Lei 8.245/91, art. 54-A: “a locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia

aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo
pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente
pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei. § 1o Poderá ser convenciona-
da a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação. § 2 o
Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa conven-
cionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.”.

422
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em que pese posa ser pactuado de forma livre, o valor do aluguel encontra alguns limites no Art. 21
da LL:

Lei 8.245/91, art. 21: “O aluguel da sublocação não poderá exceder o da locação; nas habitações
coletivas multifamiliares, a soma dos aluguéis não poderá ser superior ao dobro do valor da lo-
cação. Parágrafo único. O descumprimento deste artigo autoriza o sublocatário a reduzir o alu-
guel até os limites nele estabelecidos.”.

A revisão dos aluguéis é cabível quando o valor não estiver condizente com a realidade do mercado
e pode ser feita:
a) Por acordo entre as partes (art. 18, Lei 8.245/91);
b) Por decisão judicial (art. 19, Lei 8.245/91).
Realizada na chamada ação revisional de aluguéis, que tem como requisito no mímimo 3 anos de
vigência do contrato ou de acordo anterior
Em relação ao pagamento dos aluguéis, a regra geral demanda que primeiro se mora/usa e depois
paga (art. 20, Lei 8.245/91), de forma que o locador não pode exigir aluguel de forma antecipada.
Entretanto, a exigência antecipada é possível na locação para temporada e locação sem garantias, a
teor do Art. 42, Lei 8.245/91318.

3.3.3. Deveres das partes na locação imobiliária


Segundo Flávio Tartuce, os deveres das partes encontram-se previstos nos arts. 22 e 23 da Lei de
Locação, de modo que ambas as partes assumem obrigações conjuntivas ou cumulativas, com várias
prestações de natureza diversa.
Nesse sentido, nota-se que o contrato de locação traz como conteúdo uma relação obrigacional
complexa, em que as partes são credoras e devedoras entre si, estando aí presente o sinalagma obrigaci-
onal.

3.3.3.1. Deveres do locador (Art. 22, Lei 8.245/91)

Os deveres do locador encontram-se basicamente ligados à estrutura do imóvel, e encontram previ-


são no art. 22 da Lei 8.245/1991:

Art. 22. O locador é obrigado a:

I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se destina;

II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado;

III - manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel;

318 Lei 8.245/91, art. 42: “Não estando a locação garantida por qualquer das modalidades, o locador poderá

exigir do locatário o pagamento do aluguel e encargos até o sexto dia útil do mês vincendo”.

423
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

IV - responder pelos vícios ou defeitos anteriores à locação;

V - fornecer ao locatário, caso este solicite, descrição minuciosa do estado do imóvel, quando de
sua entrega, com expressa referência aos eventuais defeitos existentes;

VI - fornecer ao locatário recibo discriminado das importâncias por este pagas, vedada a quita-
ção genérica;

VII - pagar as taxas de administração imobiliária, se houver, e de intermediações, nestas com-


preendidas as despesas necessárias à aferição da idoneidade do pretendente ou de seu fiador;

VIII - pagar os impostos e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra fogo, que in-
cidam ou venham a incidir sobre o imóvel, salvo disposição expressa em contrário no contrato;

IX - exibir ao locatário, quando solicitado, os comprovantes relativos às parcelas que estejam


sendo exigidas;

X - pagar as despesas extraordinárias de condomínio.

Parágrafo único. Por despesas extraordinárias de condomínio se entendem aquelas que não se
refiram aos gastos rotineiros de manutenção do edifício, especialmente:

a) obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel;

b) pintura das fachadas, empenas, poços de aeração e iluminação, bem como das esquadrias ex-
ternas;

c) obras destinadas a repor as condições de habitabilidade do edifício;

d) indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados, ocorridas em data


anterior ao início da locação;

e) instalação de equipamento de segurança e de incêndio, de telefonia, de intercomunicação, de


esporte e de lazer;

f) despesas de decoração e paisagismo nas partes de uso comum;

g) constituição de fundo de reserva.

Obs.: Não é possível transferir ao locatário as despesas extraordinárias de condo-


mínio, eventual cláusula nesse sentido é abusiva, a teor do art. 45, Lei 8.245/91. A situação fica agra-
vada se o contrato é de adesão (art. 424, CC).
A teor do Art. 25, Lei 8.245/91, em regra, os tributos relativos ao imóvel locado cabem ao proprie-
tário, vez que é obrigação propter rem. Entretanto, o dispositivo possibilita a transferência ao locatário.

3.3.3.2. Deveres do locatário (Art. 23, Lei 8.245/91)


O art. 23 da Lei 8.245/1991 traz os deveres do locatário, relacionados basicamente com despesas do
uso cotidiano do imóvel, a saber:

424
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 23. O locatário é obrigado a:

I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis,


no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao vencido, no imóvel
locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato;

II - servir - se do imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza


deste e com o fim a que se destina, devendo tratá - lo com o mesmo cuidado como se fosse seu;

III - restituir o imóvel, finda a locação, no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações de-
correntes do seu uso normal;

IV - levar imediatamente ao conhecimento do locador o surgimento de qualquer dano ou defeito


cuja reparação a este incumba, bem como as eventuais turbações de terceiros;

V - realizar a imediata reparação dos danos verificados no imóvel, ou nas suas instalações, pro-
vocadas por si, seus dependentes, familiares, visitantes ou prepostos;

VI - não modificar a forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento prévio e por es-
crito do locador;

VII - entregar imediatamente ao locador os documentos de cobrança de tributos e encargos con-


dominiais, bem como qualquer intimação, multa ou exigência de autoridade pública, ainda que
dirigida a ele, locatário;

VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e esgoto;

IX - permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação
prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, na
hipótese prevista no art. 27;

X - cumprir integralmente a convenção de condomínio e os regulamentos internos;

XI - pagar o prêmio do seguro de fiança;

XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio.

§ 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração respec-


tiva, especialmente:

a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos empregados do


condomínio;

b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum;

c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum;

d) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos, mecânicos e


de segurança, de uso comum;

e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum destinados à práti-

425
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ca de esportes e lazer;

f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas;

g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum;

h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da locação;

i) reposição do fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou complementação


das despesas referidas nas alíneas anteriores, salvo se referentes a período anterior ao início da
locação.

§ 2º O locatário fica obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo anterior, desde
que comprovadas a previsão orçamentária e o rateio mensal, podendo exigir a qualquer tempo a
comprovação das mesmas.

§ 3º No edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade da mesma


pessoa, os locatários ficam obrigados ao pagamento das despesas referidas no § 1º deste artigo,
desde que comprovadas

3.3.4. Transferência do contrato de locação


Segundo a lição de Flávio Tartuce, é possível que um contrato de locação seja transferido para ter-
ceiros por ato inter vivos, nas hipóteses de cessão, sublocação ou empréstimo, ou mortis causa, quando
da morte de um dos contratantes, do locador ou do locatário
A cessão locacional consiste na transferência a outrem, mediante alienação, da posição contratual
do locatário. O locatário desliga-se do contrato primitivo, desaparecendo a sua responsabilidade, deven-
do o cessionário regular as relações jurídicas com o locador. A cessão, por importar em transferência de
direito pessoal, rege-se pelas disposições do Código Civil atinentes à cessão de crédito
Pode ocorrer ainda o empréstimo do imóvel objeto da locação, hipótese em que o locatário cede o
imóvel locado a terceiro de forma gratuita e por breve tempo (contrato de comodato). Em situações tais,
o locatário continua responsável perante o locador.
Já a sublocação, segundo Flávio Tartuce consiste na concessão do gozo – parcial ou total – da coisa
locada, por parte do locatário, a uma terceira pessoa, que se torna locatária dolocatário, sendo-lhe asse-
gurados os mesmos direitos e deveres. Entretanto, o locatário primitivo, denominado sublocador, não se
exonera da locação original. Trata-se, desse modo, de uma cessão parcial de contrato.
A sublocação depende de autorização prévia e por escrito do locador, sob pena de inefi-
cácia, eventual descumprimento contratual e possibilidade de despejo:

Lei 8.245, art. 13: “A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou parci-
almente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador.

§ 1º Não se presume o consentimento pela simples demora do locador em manifestar formal-


mente a sua oposição.

426
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 2º Desde que notificado por escrito pelo locatário, de ocorrência de uma das hipóteses deste
artigo, o locador terá o prazo de trinta dias para manifestar formalmente a sua oposição.”.

Assim, na sublocação não se presume o consentimento pela simples demora do locador se manifes-
tar, mas pode ser tácita, se, após a notificação pelo locatário, o locador não se manifestar em 30 dias.
Aplicam-se à sublocação, no que couber, as mesmas regras da locação (art. 14, Lei 8.245/91).
Rescindida ou finda a locação, resolvem-se as sublocações (art. 15, Lei 8.245/9128).
O sublocatário responde subsidiariamente (responsabilidade indireta ou mediata) ao locador pela
importância que deve ao sublocador (art. 16, Lei 8.245/9129), a responsabilidade do sublocatário
não é solidária, devendo primeiro ser demandado o locatário (sublocador) e esgotadas todas as vias
para a satisfação obrigacional, o locador poderá demandar o sublocatário conforme já deciciu o STJ319.
Em relação à extinção e Trânsferência por morte, inicialmente consigna-se que o contrato de loca-
ção é intuitu familiae e não intuitu personae, de modo que a locação de imóvel urbano não é extinta pela
morte. Assim, a teor do Art. 10, Lei 8.245/91, morrendo o locador, a locação é transmitida aos herdeiros.
De outro lado, falecendo o locatário, têm direito à continuidade da locação, o cônjuge ou
companheiro sobrevivente e sucessivamente os herdeiros necessários e pessoas que viviam na
dependência econômica do locatário, desde que residentes no imóvel para fins residenciais, o que
caracteriza hipótese de sub-rogação subjetiva passiva, a teor do art. 11 da LL.
Novamente observa-se o que o caráter intuitu familiae (com intuito familiar). Como a tendência é
de ampliação do conceito de família, diante das mudanças sociais da contemporaneidade, deve-se
estender a regra também para as uniões entre pessoas do mesmo sexo ou uniões homoafetivas.
Nesse sentido, em casos de locação não residenciao, permenecerá o contrato tendo como parte o
Espólio do locatário falecido e a seguir o seu sucessor.
Finalment, nos casos de extinção e transferência no caso de dissolução do casamento ou da união
estável o Art. 12, Lei 8.245/91 prevê que em caso de separação, a locação residencial prosseguirá automa-
ticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel:

Lei 8.245/91, art. 12: “Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução
da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou compa-
nheiro que permanecer no imóvel.

§ 1o Nas hipóteses previstas neste artigo e no art. 11, a sub-rogação será comunicada por escrito
ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia locatícia.

§ 2o O fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta) dias


contado do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado, ficando responsável pe-

319 (STJ, AgRg no Ag 344.395/SP, Processo 2000/0118763-5, 6.ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, j. 21.02.2008 DJe 10.03.2008).

427
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

los efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador.”

3.4. Benfeitorias na locação imobiliária

Conforme se observa pelo art. 35 da LL, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário,
ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, estas desde que autorizadas, são inde-
nizáveis e permitem o direito de retenção.
Por outro lado, as benfeitorias voluptuárias não são indenizáveis, podendo ser levantadas
pelo locatário, finda a locação, desde que a sua retirada não afete a estrutura e a substância do imóvel (art.
36 da LL).
Acerca do tema é importante se atentar à Súmula 335, STJ:

“Nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfeitorias e ao

direito de retenção.”

Entretanto, como ressalva ao teor da Súmula, Flávio Tartuce320 alerta para o Enunciado 433, V
Jornada de Direito Civil:

“A cláusula de renúncia antecipada ao direito de indenização e retenção por benfeitorias neces-


sárias é nula em contrato de locação de imóvel urbano feito nos moldes do contrato de adesão.”

3.5. Garantias locatícias (Art. 37 a 42, Lei 8.245/91)

A teor do Art. 37 da LL, o locador só pode exigir do inquilino as seguintes modalidades de ga-
rantia:
a) Caução: Art. 38, LL
A caução pode ser prestada em bens móveis (equivale à um penhor) ou imóveis (equivale à hipote-
ca), em títulos e ações e em dinheiro, não podendo, neste último caso, exceder o equivalente a três meses de
aluguel;
b) Fiança
A fiança pode ser prestada por Pessoa natural ou Pessoa jurídica – fiança bancária.
c) Seguro de fiança locatícia; e
d) Cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (introduzida pela Lei n.
11.196, de 21-11-2005).
É vedada, sob pena de nulidade (absoluta), mais de uma dessas modalidades num mesmo
contrato de locação (arts. 37, parágrafo único, e 38). Assim, p. ex. se houver caução em dinheiro (3 alu-

320 “Em reforço, anote-se que o locatário é possuidor de boa-fé, tendo esse último direito de retenção ou de
ser indenizado pelas benfeitorias necessárias e úteis (art. 1.219 do CC). Como se pode perceber, há uma hipótese em
que a parte está renunciando a um direito que lhe é inerente.”. Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume úni-
co / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

428
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

guéis) e fiança, será nula a fiança, por ser a mais onerosa, em atenção ao princípio da função social
dos contratos
Ademais, quando o fiador oferece um imóvel de sua propriedade em garantia da locação, trata-se
apenas de uma prevalência daquele bem sobre outros, uma vez que é inerente ao contrato de fiança que
todo o patrimônio dele responde pela dívida – TJSP: não é dupla garantia.321
Destaque-se que a exigência da dupla garantia na locação configura contravenção penal, conforme
prevê o art. 43, II, da própria Lei 8.245/1991.
Obs.: Se a locação tiver mais de um locatário, é possível a fiança de um deles sobre os demais – fi-
ança recíproca.322.
Finalmente, Flávio Tartuce assevera que o art. 39 resolveu dilema material e processual anterior:

Lei 8.245/91, art. 39: “Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da loca-
ção se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo inde-
terminado, por força desta Lei.”

Assim, em uma locação com prazo determinado com fiança, vencido o prazo, a locação prorroga-se
automaticamente (locação com prazo indeterminado). Nesse caso, havia discussão sobre a continuidade
da fiança.
O STJ entendia que não – Súmula 214, STJ: o fiador não responde por aditamentos contratuais
com os quais não anuiu.
Entretanto, a partir da Alteração do art. 39 e do art. 40 da Lei 8.245/91 o entendimento se alinha
no sentido de que prorrogada a locação, prorroga-se automaticamente a fiança até a en-
trega das chaves. Porém, como a fiança passa a ser por prazo indeterminado, o fiador poderá exone-
rar-se (resilição unilateral) notificando o locador e garantindo a dívida por mais 120 dias após a notifica-
ção (art. 40, X323).

3.6. Extinção da locação imobiliária

No que concerne à extinção da locação de imóvel residencial, incluindo a locação para temporada, o
legislador estabeleceu que pode se dar de duas formas básicas:
a) Denúncia vazia: Art. 46, LL
Conforme visto acima, o locador, em regra não pode reaver o imóvel locado, na vigência do prazo
de duração do contrato, entretanto, é possível a retomada ao final deste, desde que a locação esteja

321 (TJSP, Apelação Cível 844.731-0/6, Mogi Mirim, 28.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Amaral Vieira, j.

28.06.2005).
322 Tese 6, edição 53, JTSTJ: “Havendo mais de um locatário, é válida a fiança prestada por um deles em rela-

ção aos demais, o que caracteriza fiança recíproca.”.


323 Lei 8.245/91, art. 40, X: “prorrogação da locação por prazo indeterminado uma vez notificado o locador

pelo fiador de sua intenção de desoneração, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante 120 (cento e
vinte) dias após a notificação ao locador.”.

429
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ajustada por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, de modo que,
independentemente de notificação ou aviso o contrato se rescinde no término do prazo, com prorrogação
por tempo indeterminado, caso silentes as partes por mais de trinta dias. Ocorrida a prorrogação, caberá
denúncia imotivada (denúncia vazia), a qualquer tempo, com 30 dias para a desocupação.
b) Denúncia cheia:
A denúncia cheia ocorre em oportunidades em que o locador precisa justificar a sua pretensão de
retomada do bem nas hipóteses legais
Inicialmente, a denúncia cheia é necessária em contratos fixados verbalmente ou por escrito, por
menos de trinta meses em que observa-se o tratamento dispensado no art. 47 da Lei de Locação:

Art. 47. Quando ajustada verbalmente ou por escrito e como prazo inferior a trinta meses, findo
o prazo estabelecido, a locação prorroga-se automaticamente, por prazo indeterminado, somen-
te podendo ser retomado o imóvel:

I - Nos casos do art. 9º;

II - em decorrência de extinção do contrato de trabalho, se a ocupação do imóvel pelo locatário


relacionada com o seu emprego;

III - se for pedido para uso próprio, de seu cônjuge ou companheiro, ou para uso residencial de
ascendente ou descendente que não disponha, assim como seu cônjuge ou companheiro, de
imóvel residencial próprio;

IV - se for pedido para demolição e edificação licenciada ou para a realização de obras aprovadas
pelo Poder Público, que aumentem a área construída, em, no mínimo, vinte por cento ou, se o
imóvel for destinado a exploração de hotel ou pensão, em cinqüenta por cento;

V - se a vigência ininterrupta da locação ultrapassar cinco anos.

§ 1º Na hipótese do inciso III, a necessidade deverá ser judicialmente demonstrada, se:

a) O retomante, alegando necessidade de usar o imóvel, estiver ocupando, com a mesma finali-
dade, outro de sua propriedade situado nas mesma localidade ou, residindo ou utilizando imóvel
alheio, já tiver retomado o imóvel anteriormente;

b) o ascendente ou descendente, beneficiário da retomada, residir em imóvel próprio.

§ 2º Nas hipóteses dos incisos III e IV, o retomante deverá comprovar ser proprietário, promis-
sário comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do
imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo.

São hipóteses do art. 9º, Lei 8.245/91:


a) Mútuo acordo; (resilição)
b) Infração legal/contratual; (resolução)
c) Falta de pagamento; (resolução)

430
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

d) Realização de obras ou reparos urgentes. (resilição)


A denuncia cheia ocorre ainda nas hipóteses do Art. 7º, Lei 8.245/9143 – Extinção do usufruto ce-
lebrada pelo usufrutuário: resilição unilateral pelo nu- proprietário e do Art. 8º, Lei 8.245/9144 – Extin-
ção pelo adquirente do imóvel, caso de resilição unilateral.

3.7. Aspéctos processuais324

3.7.1. Ação de despejo por falta de pagamento

3.7.1.1. Cumulação do pedido de despejo com o de cobrança dos aluguéis

Nas ações de despejo por falta de pagamento, o pedido de rescisão da locação poderá ser cumula-
do com o de cobrança dos aluguéis e seus acessórios. Nesta hipótese, citar-se-á o locatário para
responder ao pedido de rescisão e o locatário e os fiadores para responderem ao pedido de cobrança, de-
vendo ser apresentado com a inicial cálculo discriminado do valor do débito.
O locatário e o fiador poderão evitar a rescisão da locação, efetuando, no prazo de quinze dias,
contado da citação, o pagamento do débito atualizado, independentemente de cálculo e mediante
depósito judicial, incluídos os aluguéis que se vencerem até a data do pagamento, multas, juros, custas e ho-
norários de advogado (LI, art. 62, I e II, com a redação dada pela Lei n. 12.112, de 9-12-2009).

3.7.1.2. Hipótese de inadmissibilidade de emenda da mora


Não se admitirá emenda da mora se o locatário já houver utilizado essa faculdade nos vinte e
quatro meses imediatamente anteriores à propositura da ação (art. 62, parágrafo único, da Lei do Inqui-
linato, introduzido pela referida Lei n. 12.112, de 9-12-2009).

3.7.1.3. Despejo por medida liminar


A Lei n. 12.112/2009 ampliou a possibilidade de despejo por medida liminar, independentemen-
te de oitiva do locatário, mediante o acréscimo de quatro incisos ao § 1º do art. 59.
O § 3º dispõe que, “no caso do inciso IX do § 1º deste artigo, poderá o locatário evitar a rescisão da
locação e elidir a liminar de desocupação se, dentro dos quinze dias concedidos para a desocupa-
ção do imóvel e independentemente de cálculo, efetuar depósito judicial que contemple a totalidade dos
valores devidos, na forma prevista no inciso II do art. 62”.

3.7.1.4. Rescisão do contrato com a efetiva entrega das chaves do imóvel ao locador
Os aluguéis devidos pelo locatário são aqueles vencidos e não pagos até a imissão do locador na posse
do imóvel, ainda que este tenha sido anteriormente abandonado. O contrato de locação “somente é rescin-

324 Adaptado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 2 contratos em espécie e responsabilidade civil : es-

quematizado® : parte geral : obrigações e contratos / Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo : Saraiva
Educação, 2018. P.

431
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dido com a efetiva entrega das chaves do imóvel ao locador, ou sua imissão na posse por ato judicial,
sendo irrelevante para esse fim a simples desocupação do imóvel, fato que não exonera o locatário da res-
ponsabilidade pelo pagamento dos aluguéis e demais encargos contratuais”.

3.7.1.5. Efetivação do despejo


Julgada procedente a ação de despejo, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo,
que conterá o prazo de trinta dias para a desocupação voluntária (LI, art. 63, com a redação dada pela
Lei n. 12.112/2009). Esse prazo, todavia, poucas vezes será observado, em razão da nova redação conferida
à alínea b do § 1º do art. 63 pela Lei n. 11.112/2009, pois tanto para os despejos decretados com fundamen-
to no art. 9º como para os decretados no § 2º do art. 46 o prazo para a desocupação voluntária será de
apenas quinze dias.
Os prazos e as formalidades para a efetivação do despejo regular-se-ão pelos arts. 63 a 66 da Lei do
Inquilinato inclusive de hospitais, estabelecimentos de ensino, asilos etc., cujos prazos variam,
conforme a hipótese, de seis meses a um ano. Será recebida somente no efeito devolutivo a apelação
interposta contra sentença que decretar o despejo (art. 58, V).

3.7.2. Ação Renovatória


A ação renovatória dos contratos de locação de imóveis destinados ao uso comercial ou industrial en-
contra-se regulada nos arts. 71 a 74 da Lei n. 8.245/91, podendo ser ajuizada desde que:
a) o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
b) o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos
seja de cinco anos;
c) o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de
três anos (art. 51).

3.7.2.1. Prazo legal

Somam-se os prazos contratuais. Desse modo, o contrato posterior realizado entre locador e locatá-
rio, por prazo inferior a cinco anos, não importa em renúncia ao direito de renovação da locação. Para
verificação do prazo de carência, basta somar os prazos dos contratos ininterruptos.

3.7.2.2. Prazo decadencial para o ajuizamento da renovatória

A Lei n. 8.245/91 manteve o prazo decadencial para o ajuizamento da ação renovatória. Deve esta
ser proposta no interregno de um ano até seis meses anteriores ao final do contrato. Será intem-
pestiva se ajuizada antes ou depois desse prazo que, por ser decadencial, não se suspende nem se interrom-
pe.

3.7.2.3. Prova da exploração trienal do mesmo ramo de atividade

432
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O locatário deve apresentar a prova da exploração trienal do mesmo ramo de atividade com a ini-
cial da ação. Esse triênio deve remontar à propositura da ação. Entende a lei que o prazo de três anos é o
prazo mínimo para a criação do ponto e da clientela. Exploração por prazo inferior não confere
direito à renovação. O próprio locatário, pessoa natural ou jurídica, é quem deve estar na exploração do
ramo (escritório de contabilidade, salão de barbeiro, escola profissional etc.), por si ou por seus prepostos,
não se admitindo que terceiros, estranhos à relação locatícia, sejam os exploradores do ponto.

3.7.2.4. Improcedência da ação renovatória


Com a nova redação dada ao art. 74 da Lei do Inquilinato pela Lei n. 12.112, de 9-12-2009, não sen-
do renovada a locação, ou seja, julgada improcedente a demanda renovatória, o juiz determinará a
expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de trinta dias para a desocupação voluntária,
se houver pedido na contestação.

4. Prestação de serviços (Arts. 593 a 609, CC)


4.1. Noções conceituais

Nas palavras de Flávio Tartuce contrato de prestação de serviços é o negócio jurídico pelo qual al-
guém – o prestador – compromete-se a realizar uma determinada atividade com conteúdo lícito, no inte-
resse de outrem – o tomador –, mediante certa e determinada remuneração (salário civil, preço ou hono-
rários).
A teor do Art. 593, CC o Código Civil tem incidência para a prestação de serviços civis e empresari-
ais.
Entretanto, esse tipo de contrato é perfeitamente possível aplicar, com sentido de complementari-
dade, o CC/2002 e a CLT, ou o CC/2002 e o CDC a uma determinada prestação de serviço, em atenção à
teoria do diálogo das fontes (Erik Jayme e Cláudia de Lima Marques).

4.2. Classificação da prestação de serviços

a) Contrato bilateral ou sinalagmático


As partes são credoras e devedoras entre si. O tomador é ao mesmo tempo credor do serviço e de-
vedor da remuneração. O prestador é credor da remuneração e devedor do serviço
b) Contrato oneroso.
A prestação traz benefícios ou vantagens para um e outro contratante.
c) Contrato consensual.
A prestação de serviços se aperfeiçoa mediante o simples acordo de vontades, não é necessária
qualquer tradição.
d) Contrato comutativo.
O tomador e o prestador sabem de antemão quais são as suas prestações, qual o objeto do negócio

433
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

e) Contrato informal e não solene.


Obs.: A teor do estabelecido no art. 595 do Código Civil:

“quando qualquer das partes não souber ler, nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a ro-
go e subscrito por duas testemunhas”.

Assim, é possível a contratação verbal, de modo que a falta de contrato (o documento) não é fun-
damento suficiente para que uma pessoa que realmente se utilizou dos serviços de outrem se negue a efetuar
a retribuição pecuniária. Carlos Roberto Gonçalves leciona que o consentimento pode ser implícito,
inferido do próprio fato da prestação do serviço.

4.3. Regras quanto à prestação de serviços

Inicialmente o art. 594 do CC veda que o objeto do contrato de prestação de serviços seja ilícito,
dispondo que “toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada
mediante retribuição”.
Assim, se houver ilicitude na prestação do serviço, haverá nulidade absoluta (CC, art. 166, II).
Exemplos: matador de aluguel e “barriga de aluguel”.
Segundo Flávio Tartuce a menção à retribuição demonstra que o contrato é sempre oneroso, de
modo que não havendo remuneração, haverá, na verdade, uma doação de serviço, casos em que, diante
da atipicidade da prestação, deveriam ser aplicadas as regras previstas para a doação.
Entretanto, o Enunciado n. 541, VI Jornada de Direito Civil estabelece que “O contrato de presta-
ção de serviço pode ser gratuito”.
Conforme dispões o Art. 596, CC325 a remuneração, em regra, será fixada pelas partes. No silêncio,
a remuneração será fixada de acordo com usos e costumes (regras de tráfego), lugar, tempo e qualidade
do serviço.
Conforme dispõe o Art. 597326, em primeiro lugar deve o serviço ser prestado e em seguida a remu-
neração é paga.
Porém, uma vez que se trata de regra de ordem privada, o contrário pode resultar do contrato ou do
costume, havendo eventual adiantamento de valores, p. ex. pedreiro, marceneiro, pintor, parecer jurídi-
co.
A prestação é ao prazo máximo de quatro anos, decorridos prazo, estará findo o contrato, haven-
do ineficácia no excesso segundo Maria Helena Diniz e Paulo Lôbo.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves a regra tem lugar para evitar prestações de serviço por tempo
demasiadamente longo, caracterizando verdadeira escravidão, sob pena de redução pelo juiz (art. 598)327.

325 CC, art. 596: “Não se tendo estipulado, nem chegado a acordo as partes, fixar-se-á por arbitramento a re-
tribuição, segundo o costume do lugar, o tempo de serviço e sua qualidade”.
326 CC, art. 597: “A retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço, se, por convenção, ou costume, não

houver de ser adiantada, ou paga em prestações”.

434
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nota-se entretanto, que o Enunciado 32 da I Jornada de Direito Comercial328 prevê que esse prazo
não se aplica à prestação de serviços por empresário, entendimento encampado também na jurisprudên-
cia do TJSP329.

4.4. Extinção da prestação de serviços e seus efeitos

Quando celebrado sem prazo determinado, pode ser objeto de resilição330 (art. 599), pode-se
falar, ainda, em denúncia vazia, de forma unilateral:

CC, art. 599: “Não havendo prazo estipulado, nem se podendo inferir da natureza do contrato,
ou do costume do lugar, qualquer das partes, a seu arbítrio, mediante prévio aviso, pode resolver
o contrato. Parágrafo único. Dar-se-á o aviso: com antecedência de oito dias, se o salário se hou-
ver fixado por tempo de um mês, ou mais; II - com antecipação de quatro dias, se o salário se ti-
ver ajustado por semana, ou quinzena; III - de véspera, quando se tenha contratado por menos
de sete dias”.

Conforme se observa acima a resilição devera se dar mediante aviso prévio, que será dado:
i. Antecedência de oito dias, se o salário se houver fixado por tempo de um mês, ou mais;
ii. Com antecipação de quatro dias, se o salário se tiver ajustado por semana, ou quinzena;
iii. De véspera, quando se tenha contratado por menos de sete dias” (parágrafo único).
Flávio Tartuce salienta que são prazos de antecedências mínimas, que por serem decadenciais,
podem ser aumentados.
Ademais, a inobservância do aviso prévio pode acarretar prejuízo à outra parte, que terá o direito,
em consequência, de reclamar perdas e danos.
Finalmente, havendo justa causa, porém, para a resolução do contrato, desnecessário se torna o
aviso prévio.
De outro lado, caso a contratação tenha se dado “por tempo certo ou por obra determinada”, na vi-
gência do prazo, as partes devem respeitar o que foi convencionado, sob pena de resolução por inadim-
plemento (Art. 475, CC).

327 Consagração da velha regra romana de que o negócio não pode ser perpétuo (nemo potest locare opus in

perpetuum).
328 Enunciado n. 32, I Jornada de Direito Comercial: “Nos contratos de prestação de serviços nos quais as

partes contratantes são empresários e a função econômica do contrato está relacionada com a exploração de ativi-
dade empresarial, as partes podem pactuar prazo superior a quatro anos, dadas as especificidades da natureza do
serviço a ser prestado, sem constituir violação do disposto no art. 598 do Código Civil”.
329 (TJSP; Apelação 9081895-20.2006.8.26.0000; Relator (a): Ferraz Felisardo; Órgão Julgador: 29ª Câma-

ra de Direito Privado; Foro de São José dos Campos - 5ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 18/05/2011; Data de
Registro: 23/05/2011).
330 Segundo lição de Flávio Tartuce, a norma em questão menciona a possibilidade de resolução. Todavia,

não se trata de resolução propriamente dita, mas de resilição unilateral. Isso porque a resolução é uma forma de
extinção do contrato em virtude de descumprimento. Contudo, nota-se que o comando legal não trata de descum-
primento, mas sim de um direito potestativo que a parte tem em relação à extinção, nos termos do art. 473, caput,
do Código Civil em vigor.

435
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O prestador de serviço contratado por tempo certo ou por obra determinada não pode se ausentar
ou se despedir, sem justa causa, antes de preenchido o tempo, ou concluída a obra. Se o prestador se
despedir sem justa causa, terá direito à retribuição vencida, mas deverá pagar perdas e danos ao toma-
dor de serviços, a teor do Art. 602, CC, o mesmo vale se o prestador for despedido por justa causa.
Se o prestador de serviço for despedido sem justa causa, a outra parte será obrigada a pagar-
lhe por inteiro a retribuição vencida, e por metade do valor devido até o fim contrato (art. 603 do
CC). A “metade do valor devido” tem natureza de penalidade pois se trata de uma antecipação das perdas
e danos.
O Enunciado 33 da I Jornada de Direito Civil331 prevê que, nos contratos empresariais, é possível
estipular multas superiores ao previsto no artigo 603 do Código Civil.
Finalmente, é importante notar que prestação de serviços, em regra, é personalíssima ou intuitu
personae inter vivos, de modo que a teor do Art. 605, CC332 é vedada a cessão de contrato, sem que
haja autorização para tanto.
Ademais, o instrumento também é intuitu personae mortis causa, uma vez que, em regra, termina
com a morte de qualquer das partes, conforme dispões o Art. 607, CC333.

5. Empreitada
5.1. Noções conceituais

A empreitada é negócio jurídico pelo qual o empreiteiro ou prestador obriga-se a fazer ou mandar
fazer determinada obra ao seu dono mediante uma remuneração.
Segundo Flávio Tartuce se trata de uma modalidade especial e específica de prestação de serviços,
com algumas regras comuns e outras não.
Na empreitada é muito comum a aplicação do CDC, uma vez que o dono da obra é necessári-
mante consumidor, em atenção à famigerada teoria do diálogo das fontes (Erik Jayme e Cláudia de
Lima Marques).

5.2. Classificação da empreitada

O contrato de empreitada tem natureza jurídica igual à prestação de serviços:

331 Enunciado n. 33, I Jornada de Direito Comercial: “Nos contratos de prestação de serviços nos quais as

partes contratantes são empresários e a função econômica do contrato está relacionada com a exploração de ativi-
dade empresarial, é lícito às partes contratantes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato,
multas superiores àquelas previstas no art. 603 do Código Civil”.
332 CC, art. 605: “Nem aquele a quem os serviços são prestados, poderá transferir a outrem o direito aos ser-

viços ajustados, nem o prestador de serviços, sem aprazimento da outra parte, dar substituto que os preste”.
333 CC, art. 607: “O contrato de prestação de serviço acaba com a morte de qualquer das partes. Termina, ain-

da, pelo escoamento do prazo, pela conclusão da obra, pela rescisão do contrato mediante aviso prévio, por inadim-
plemento de qualquer das partes ou pela impossibilidade da continuação do contrato, motivada por força maior”.

436
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Contrato bilateral ou sinalagmático.


b) Contrato oneroso.
c) Contrato consensual.
d) Contrato comutativo.
e) Contrato informal e não solene.
Todos os comentários do item 3.2. supra são aplicáveis à este contrato.

5.3. Moalidades de empreitada

A doutrina classifica as modalidades de empreitada quanto à execução e quanto ao modo


de fixação do preço.

5.3.1. Quanto ao modo de execução (Arts. 610 a 612, CC)


A partir do que há de melhor na doutrina, três são as modalidades de empreitada, retiradas do art.
610 do CC:

5.3.1.1. Empreitada sob administração:


Trata-se da hipótese em que o empreiteiro apenas administra as pessoas contratadas pelo dono da
obra, que também fornece os materiais.
Nesses casos, empreiteiro assume obrigação de meio, tendo responsabilidade subjetiva (De-
mogue e Washington de Barros Monteiro).

5.3.1.2. Empreitada de mão de obra ou de lavor:


Ocorre quando o empreiteiro fornece a mão de obra, contratando as pessoas que irão executar a
obra. Os materiais, contudo, são fornecidos pelo dono da obra.
Nesses casos, p empreiteiro assume uma obrigação de meio, tendo responsabilidade subjeti-
va.

5.3.1.3. Empreitada mista ou de lavor e materiais:


É aquela em que o empreiteiro fornece tanto a mão de obra quanto os materiais, comprometendo-
se a executar a obra inteira.
Nesse caso, o empreiteiro assume obrigação de resultado perante o dono da obra.
Obs.: a teor do § 1.º do art. 610 do CC, a obrigação de fornecer materiais não pode ser presumida,
resultando da lei ou da vontade das partes.

5.3.2. Quanto ao modo de fixação do preço (Arts. 614 a 619, CC)

5.3.2.1. Empreitada por medida ou ad mensuram

Ocorre nos casos em que a execução do serviço é pactuada pelo empreiteiro e pelo dono da obra
em partes, conforme o andamento da obra (“marché sur devis”).

437
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na lição de Carlos Roberto Gonçalves não há fixação do preço para a obra como um todo. Pode-se
estabelecer o preço de certa medida, como o do metro quadrado de área construída, por exemplo.
Desse modo, somente ao final, depois de feita a medição completa, o empreiteiro conhecerá o exato
valor de sua remuneração. Esta modalidade proporciona ao proprietário a liberdade de efetuar mudanças no
projeto originário, aumentando ou diminuindo os trabalhos inicialmente convencionados.

5.3.2.2. Empreitada por preço global


O preço da empreitada pode ser ainda estipulado para a obra inteira, ou seja, por preço global,
não se levando em conta o fracionamento da atividade desenvolvida pelo empreiteiro ou o resultado da
mesma. Em casos tais, está presente a empreitada marché à forfait.

Essa modalidade admite uma subdivisão (CC, art. 619334):


a) Preço fixo absoluto: não pode ser revisto (regra).
b) Preço fixo relativo: parâmetro – pode ser revisto.

5.4. Regras quanto à empreitada

Segundo Flávio Tartuce a regra mais importante e incidente em concursos encontra no art. 618, CC
que estabelece uma garantia legal de 5 anos, cujo prazo é decadencial nos casos de empreitada mis-
ta:

CC, art. 618: “Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o
empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela
solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a
ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício
ou defeito”.

A regra é aplicada à empreitada mista de edifícios ou outras construções consideráveis – Exemplo:


estádio de futebol.
O prazo de 5 anos diz respeito à solidez e à segurança da obra e dos materiais (empreitada mista) e
conforme assevera Flávio Tartuce são dois prazos distintos:
a) Caput” do art. 618: prazo de garantia legal de 5 anos para o surgimento do vício, contados da
entrega da obra.

334CC, art. 619: “Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segun-
do plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas
modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra. Parágrafo único. Ain-
da que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acrés-
cimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se
estava passando, e nunca protestou”.

438
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

b) Parágrafo único do art. 618: prazo decadencial de 180 dias para redibição (resolução) ou
abatimento no preço, contados do seu conhecimento, desde que o direito esteja fundado
na presença de vício mencionado no “caput”.
O Enunciado 181, III Jornada de Direito Civil,335 prevê que o prazo do art. 618, §único (redibião –
180 dias), aplica-se somente ao vício estrutural previsto no “caput”, sem prejuízo da possibilidade de o
dono da obra demandar perdas e danos.
Na vigência do CC/2002, para se pleitear perdas e danos336:
a) Responsabilidade civil extracontratual: 3 anos (CC, art. 206, § 3º, V).
b) Responsabilidade civil contratual: 10 anos (CC, art. 205)337.
O STJ julgou que não se aplica o prazo do art. 26, CDC (90 dias)338.
Obs.: Regras quanto à responsabilidade civil:
a) O empreiteiro responde objetivamente pelos atos culposos de seus empregados ou prepostos
(art. 932, III, CC e art. 933, CC). A responsabilidade é solidária (art. 942, parágrafo único, CC).

b) O construtor ou o dono do prédio responde objetivamente por sua ruína (CC, art. 937).

Outra regra relevante encontra-se no Art. 625, CC e estabelece hipóteses de suspensão da obra pelo
empreiteiro:
a) Se houve culpa do dono ou força maior (impossibilidade de execução).
b) Dificuldade imprevisíveis de execução + onerosidade excessiva.
c) Se as modificações exigidas pelo dono da obra forem desproporcionais ao projeto original apro-
vado.
Subempreitada é contrato por meio do qual o empreiteiro transfere a outrem, total ou parcial-
mente, sua obrigação de realizar uma obra. Ela é permitida sempre que o ajuste inicial não tiver sido concre-
tizado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro.
Nesses casos, o artigo 622, CC, estabelece que o autor do projeto, desde que não assuma a direção
ou a fiscalização da obra, terá a sua responsabilidade limitada aos vícios do artigo 618 do Código Civil.
Finalmente, estabelece o Art. 626, CC339 que o contrato de empreitada, em regra, não é extinto pela
morte de qualquer das partes (não é contrato personalíssimo ou “intuitu personae mortis causae”), dife-
rente do que ocorre com a prestação de serviços (CC, art. 607).

335 Enunciado n. 181, III Jornada de Direito Civil: “O prazo referido no art. 618, parágrafo único, do Código

Civil refere-se unicamente à garantia prevista no caput, sem prejuízo de poder o dono da obra, com base no mau
cumprimento do contrato de empreitada, demandar perdas e danos”.
336 Segundo Flávio Tartuce a Súmula 194 STJ deve ser tida como cancelada.
337 (STJ, REsp 1.290.383/SE, 3.ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 11.02.2014, DJe

24.02.2014).
338 (REsp 1534831/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY

ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/02/2018, DJe 02/03/2018).

439
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entretanto, quando o que mais importa para a obra é que seja feita exclusivamente por determina-
do empreiteiro ou construtor, a obrigação desse é personalíssima e não se transmite aos seus herdeiros e
sucessores, conforme dispõe a segunda parte do art. 626, CC, conforme já decidiu o STJ340.

6. Emprestimo (Arts 579 a 592, CC)

Na lição de Flávio Tartuce é o contrato de empréstimo pode ser conceituado como o negócio jurí-
dico pelo qual uma pessoa entrega uma coisa a outra, de forma gratuita, obrigando-se esta a devolver a
coisa emprestada ou outra de mesma espécie e quantidade que abrange duas espécies:

a) Comodato – empréstimo de bem infungível e inconsumível, em que a coisa emprestada


deverá ser restituída findo o contrato (empréstimo de uso).
b) Mútuo – empréstimo de bem fungível e consumível, em que a coisa é consumida e desapa-
rece, devendo ser devolvida outra de mesma espécie e quantidade (empréstimo de consu-
mo).
Obs.: existe também o comodato de bem fungível, que é devolvido no fim do contrato. É o chamado
comodato “ad pompam vel ostentationem”. Exemplo: empréstimo de enfeites que serão utilizados em
uma festa.
Empréstimo e figuras afins em que há a entrega da coisa:
i. Para uso da coisa: comodato.
ii. Para consumo da coisa: mútuo.
iii. Para administração da coisa: mandato.
iv. Para guarda: depósito da coisa (art. 627 a 629, CC341) – No contrato de depósito, não é pos-
sível o uso da coisa.

6.1. Classificação do contrato de empréstimo

a) Contrato unilateral e gratuito,


Em regra, como exceção, admite-se o empréstimo oneroso.
b) Contrato real: tem aperfeiçoamento com a entrega da coisa (CC, art. 579).

339 CC, art. 626: “Não se extingue o contrato de empreitada pela morte de qualquer das partes, salvo se ajus-
tado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro”.
340 (REsp 703.244/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/04/2008, DJe

29/04/2008).
341 CC, artigos 627 a 629: “Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para

guardar, até que o depositante o reclame". "Art. 628. O contrato de depósito é gratuito, exceto se houver convenção
em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão. Parágrafo único. Se o
depósito for oneroso e a retribuição do depositário não constar de lei, nem resultar de ajuste, será determinada
pelos usos do lugar, e, na falta destes, por arbitramento". "Art. 629. O depositário é obrigado a ter na guarda e con-
servação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la,
com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante”

440
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Observa-se que todo contrato real é unilateral. Depois que a coisa foi entregue, quem entregou não
tem nenhum dever jurídico
c) Contrato comutativo, pois as prestações já são conhecidas.
d) Contrato informal e não solene. Pode ser verbal.
e) Contrato personalíssimo ou “intuitu personae”. Baseado na fidúcia (confiança).
f) Contrato temporário, com prazo determinado ou não.

6.2. Comodato (Art. 579 a 585, CC)

6.2.1. Noções conceituais


O direito brasileiro reconhece duas espécies de empréstimo, o comodato e o mútuo. O comodato é
empréstimo para uso. O mútuo é empréstimo para consumo. Por isso que o comodato é de bens infungí-
veis, enquanto o mútuo é de bens fungíveis. É a estrutura, a finalidade que diferencia as figuras.
O art. 579 do CC traz o conceito de comodato:

Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição
do objeto.

Em resumo, é o contrato unilateral, benéfico e gratuito em que alguém entrega a outra pessoa uma
coisa infungível, para ser utilizada por um determinado tempo e devolvida findo o contrato.
Trata-se do empréstimo gratuito de bem infungível, por tempo indeterminado, que se perfaz pela
tradição, de modo que o contrato pode ter como objeto bens móveis ou imóveis, pois ambos podem ser
infungíveis (insubstituíveis).
Comodante é quem empresta; comodatário é quem recebe.
O comodante não precisa ser proprietário, na medida em que não haverá transferência de proprie-
dade. Basta que tenha a administração do bem (ex.: usufrutuário e enfiteuta não são proprietários, mas
têm a administração do bem, podendo emprestá-lo).
Curiosamente, há alguns casos submetidos a regra especial:
i) locação e comodato: o locatário (que tem a administração) somente pode dar a coisa em comoda-
to com autorização do locador.
ii) subcomodato: o comodatário somente pode emprestar a outra pessoa com a autorização do co-
modante (pela própria finalidade do empréstimo).
iii) tutor, curador e administradores em geral de bens alheios não podem emprestar os bens sob a
sua administração sem autorização judicial, ouvido o MP, sob pena de nulidade absoluta virtual (CC, art.
166, VII). Trata-se de um caso especial de legitimação: requisito específico para a prática de um ato espe-
cífico (art. 580):

Art. 580. Os tutores, curadores e em geral todos os administradores de bens alheios não poderão
dar em comodato, sem autorização especial, os bens confiados à sua guarda.

441
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No comodato, portanto, há uma transferência provisória de posse, e não de propriedade. Por isso é
que não se exige a qualidade de proprietário do comodante.
À luz do conceito do art. 579, extrai-se a classificação do comodato: é contrato real (exige a tradi-
ção), unilateral (basta a vontade do comodante para se aperfeiçoar), gratuito (não exige contraprestação)
e consensual (não solene: não se exige formalidade, com uma exceção, prevista no art. 580):

Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição
do objeto.

O comodato é também contrato personalíssimo. Ou seja, é celebrado em razão de características


pessoais, peculiares ao comodatário. Exemplo claro é o comodato em contrato emprego (ex.: a empresa
empresta o imóvel para o empregado morar). Extinto o contrato de emprego, extingue-se o comodato. A
competência para a reintegração de posse ou busca e apreensão, nesse caso, é da Justiça do Trabalho
(STJ CC 57.524/PR).
O direito brasileiro admite a promessa de comodato, que nada mais é que contrato preliminar, nos
moldes do art. 462 do Código Civil342.

6.2.2. Características
O comodato caracteriza-se, fundamentalmente, por três aspectos: gratuidade, infungibilidade e
tradição.

6.2.2.1. Gratuidade

O comodato é gratuito. É da sua essência a gratuidade, por um motivo simples: se fosse oneroso, se
desvirtuaria para um contrato de locação. O fato de ele ser gratuito não impede que se imponham ao co-
modatário encargos sobre o bem. É o que se apelidou de “comodato modal” (ou com encargo). Ex.: em-
préstimo do apartamento, sob o encargo do pagamento do IPTU, condomínio etc. A eventual existência
desses encargos não altera a natureza gratuita do comodato.
O que não se admite é a existência de alguma contraprestação contratual no contrato de comodato.
Se houver, ele estará desvirtuado, não mais se tratando de comodato.

6.2.2.2. Infungibilidade
O objeto do comodato precisa ser infungível e inconsumível, por conta do natural dever de restitui-
ção.
Existe, entretanto, um caso excepcional, de hipótese de comodato de bens fungíveis e consumíveis:
trata-se do comodato para ornamentação (comodatum ad pompam vel ostentationem).

342 Dispositivo já analisado anteriormente.

442
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A vontade das partes pode alterar a natureza do bem. Nada impede que elas tornem infungível um
bem que, por natureza (sob o ponto de vista ontológico), seria fungível.

6.2.2.3. Tradição
A tradição é a efetiva entrega da coisa. Observe que a entrega da coisa não precisa ser real, podendo
ser ficta, simbólica.
Através da tradição, há um desdobramento de posse: o comodante entrega ao comodatário a posse
direta e reserva para si a posse indireta. Neste momento, o ordenamento viabiliza algo importante: am-
bos se mantêm na qualidade de possuidores (seja direto, seja indireto). Esse desdobramento serve para
permitir que o comodante não perca a qualidade de possuidor e, se necessário, possa exercer a defesa da
posse.
Com efeito, o comodante se mantém como possuidor indireto para que possa também defender a
coisa, valendo-se da proteção possessória. Possuidor direto e indireto podem se proteger contra terceiros.
Surge a indagação: pode o possuidor direto se valer de ação contra o indireto e vice versa? Sim. O Enun-
ciado 76, da I Jornada de Direito Civil, expressamente reconhece tal direito:

Enunciado nº 76 - Art. 1.197: O possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o
indireto, e este, contra aquele (art. 1.197, in fine, do novo Código Civil).

6.2.3. Prazo
Todo comodato precisa de prazo. Até porque, se não tiver prazo, o contrato não é de comodato,
mas de doação. É, portanto, da essência do comodato a temporariedade. O prazo do comodato pode se
verificar sob duas vertentes. Ele pode ser:
i) determinado pelas partes; ou
ii) determinável por lei.
Se as próprias partes estabelecem um prazo, ele tem de ser cumprido. Se não houver prazo decor-
rente da vontade das partes, tratar-se-á de comodato precário. Nesta hipótese, o art. 581 do CC determi-
na que o comodato terá a duração necessária para o uso da coisa:

Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso
concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo
juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que
se determine pelo uso outorgado.

Ex.: no empréstimo de apartamento durante o carnaval, o tempo do comodato será os dias do Car-
naval; o empréstimo de um trator durará o tempo da colheita; o empréstimo de um barco pesqueiro du-
rará o tempo da pescaria (Silvio Rodrigues). Salvo, evidentemente, expressa disposição diversa das par-
tes.

443
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Seja no comodato por prazo determinado, seja no precário, o comodante jamais poderá requerer a
restituição da coisa antes do prazo. Isso porque o comodato cria uma expectativa (uma confiança), que
precisa ser cumprida.
Há, todavia, uma excepcional hipótese (única), prevista no art. 581, em que o comodante pode re-
querer a restituição antecipada: “necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz”. Veja que há
um controle judicial da excepcionalidade.
Se o comodato tem prazo determinado, a mora será ex re. Se não tem prazo determinado, a mora
será ex persona. A diferença entre as moras ex re (efeitos automáticos) e ex persona (deflagração de efei-
tos dependente de prévia notificação) está prevista no art. 397:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno di-
reito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou ex-
trajudicial.

Assim, se o comodato tem prazo determinado, a mora é automática; se tem prazo determinável, é
necessária a notificação para a constituição do comodatário em mora, e somente após essa notificação
(judicial ou extrajudicial), caberá a ação de reintegração de posse (não cabe “busca e apreensão” nesses
casos).
Obs.: Conforme já decidiu o STJ, a notificação deve ser motivada, ou seja, é caso de denúncia
cheia343.

6.2.4. Obrigações do comodatário


A teor do previsto no Art. 582, CC O comodatário possui três obrigações:

CC, art. 582: “O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa empres-
tada, não podendo usá- la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de res-
ponder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pa-
gará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante”.

Em resumo, são obrigações do comodatério: i) conservar a coisa como se fosse sua; ii) usar a coisa
de forma adequada, sem alterar a sua finalidade; e iii) restituir a coisa.

6.2.4.1. Conservação da coisa

“Conservar a coisa como se fosse sua” significa que o comodatário deve ter o cuidado (o zelo) que
teria se fosse o proprietário. Aliás, é exatamente por isso que o comodatário responde pelas despesas
ordinárias.

343 (REsp 571.453/MG, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2006, DJ

29/05/2006, p. 230).

444
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É certo que o comodatário terá direito à indenização e retenção (Art. 1219, CC) pelas benfeitorias
necessárias, entretanto, em relação às benfeitorias úteis a questão não é pacífica.
Há julgados que negam o direito à indenização pelas úteis, (afinal de contas, ele cuida da coisa co-
mo se fosse sua)344, entretanto, o STJ recentemente decidiu que o comodatário tem direito de ser indeni-
zado por essas benfeitorias, salvo estipulação em contrário no contrato345. A indenização das necessárias
busca evitar enriquecimento sem causa.
Havendo situação de emergência, o comodatário é obrigado a salvar primeiro as coisas empresta-
das do que as suas próprias, sob pena de responsabilidade objetiva com risco integral (ou seja, não elimi-
nável sequer por caso fortuito ou força maior), a teor do Art. 583, CC:

CC, art. 583: “Se, correndo risco o objeto do comodato juntamente com outros do comodatário,
antepuser este a salvação dos seus abandonando o do comodante, responderá pelo dano ocorri-
do, ainda que se possa atribuir a caso fortuito, ou força maior”.

Interessante notar que hipóteses de responsabilidade objetiva com risco integral, como a do “co-
modatário egoísta” são bastante raras em direito civil.

6.2.4.2. Uso da coisa de forma adequada, sem alterar a sua finalidade

Pela obrigação de usar a coisa de forma adequada, sem alterar a sua finalidade, curiosamente, o
comodatário responde subjetivamente, ou seja, somente quando provada a sua culpa.
Ademais, no caso de comodato conjunto, a responsabilidade é solidária (comodato conjunto: dois
ou mais comodatários: CC, art. 585).
Entretanto, o comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas feitas com o
uso/gozo da coisa. Exemplo: despesas de condomínio.

6.2.4.3. Restituição da coisa


Normalmente, imagina-se o conceito de esbulho sob a ótica da violência (ex.: invasão do MST). O
STJ, entretanto, vem evoluindo muito na matéria, passando a admitir um novo tipo de esbulho: o ina-
dimplemento contratual caracterizado pela mora do comodatário (REsp 302.137/RJ). Trata-se, a toda a
evidência, da ampliação do conceito de esbulho, não circunscrito à violência.
Caracterizado esse esbulho pela mora do comodatário, é admissível a propositura de ação de rein-
tegração de posse (REsp 236.454).

344 Até porque seria um despautério (a subversão da lógica) que o comodante, que emprestou a coisa gratui-
tamente, tivesse de pagar para o comodatário as benfeitorias úteis (aquelas que servem para melhor uso da coisa).
345 (REsp 1316895/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS

CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 28/06/2013).

445
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O próprio STJ vem admitindo também a propositura de ação reivindicatória (REsp 81.967/MG).
Lembre-se que a mora pode ser ex re ou ex persona, conforme o caso, sabendo-se que, neste último caso,
dependerá a caracterização de notificação (judicial ou extrajudicial).
Caracterizado o esbulho pela mora, o comodatário passa a dever ao comodante aluguel (pena).
Detalhe: aluguel que será arbitrado pelo próprio comodante. Se ele abusar no valor do aluguel, cobrando
preço excessivo, admite-se controle judicial por abuso do direito (que é ato ilícito), conforme decidido
pelo STJ346 e previsto no Enunciado n. 180 – III Jornada de Direito Civil 347.
Flávio Tartuce alerta que não se trata de conversão do comodato para locação, nesse caso aluguel
pena tem natureza de cláusula penal.
Além disso, caracterizado o esbulho por conta da mora, a partir dele o comodatário passa a respon-
der pela perda ou deterioração da coisa com responsabilidade objetiva, com risco integral (ex.: não de-
volvido o carro emprestado no prazo, o comodatário responde inclusive se o veículo for furtado ou rou-
bado).
É importante notar que o contrato de comodato é gratuito (comodato é um gesto altruístico), mas
que gera duas hipóteses de responsabilidade objetiva com risco integral (salvamento primeiro das coisas
próprias e constituição de mora). É uma espécie de pêndolo.
A solidariedade não se presume. Havendo mais de um comodatário, eles respondem solidariamen-
te perante o comodante (art. 585):

Art. 585. Se duas ou mais pessoas forem simultaneamente comodatárias de uma coisa, ficarão
solidariamente responsáveis para com o comodante.

6.2.5. Obrigações do comodante


São obrigações do comodante:
i) aguardar a data da restituição, salvo necessidade imprevista e urgente reconhecida pelo juiz (art.
581);
ii) receber a coisa, quando da restituição, sob pena de mora creditoris (a mora do credor);
iii) não embaraçar o uso do comodatário, sob pena de ação possessória (como visto, o comodatário
tem ação contra o comodante, nos termos do Enunciado 76 da Jornada de Direito Civil);
iv) pagar as despesas extraordinárias (REsp 249.925);
v) pagar as benfeitorias necessárias, evitando enriquecimento sem causa;

346(REsp 1175848/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em
18/09/2012, DJe
26/09/2012).
347 Enunciado n. 180 – III Jornada de Direito Civil: “A regra do parágrafo único do art. 575 do novo Código

Civil, que autoriza a limitação pelo juiz do aluguel-pena arbitrado pelo locador, aplica-se também ao aluguel arbi-
trado pelo comodante, autorizado pelo art. 582, 2ª parte, do novo Código Civil”.

446
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

vi) indenizar vícios sobre a coisa que eram do seu conhecimento e não foram informados ao como-
datário. Não se trata, aqui, de vício redibitório e evicção, na medida em que o contrato é gratuito, o que o
torna incompatível com essas figuras.

6.3. Mútuo

6.3.1. Noções conceituais


O conceito de mútuo está previsto no art. 586 do Código Civil:

Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mu-
tuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

Segundo Flávio Tartuce é o ontrato pelo qual o mutuante transfere ao mutuário o domínio de coisa
fungível, devendo ser devolvida outra de mesmo gênero, quantidade e qualidade
Assim, mútuo é o empréstimo de coisa fungível, logo, a obrigação do mutuário (aquele que recebeu
o empréstimo) não é restituir a mesma coisa, mas uma outra da mesma espécie, quantidade, qualidade e
gênero. Seria impossível devolver a mesma coisa (porque ela será consumida).
Nesse sentido, o “mutuário da casa própria” é aquele que recebe o empréstimo de dinheiro para
comprar o imóvel.
Isso denota que o mútuo sempre tem como objeto bens móveis e nunca bens imóveis.
Se o mútuo é empréstimo para consumo, o mutuário pode dar a destinação que bem entender à
coisa (emprestar, doar, consumir, abandonar etc.), desde que restitua a mesma quantidade, qualidade e
gênero. Exemplo de mútuo é o empréstimo de dinheiro e o de grãos.
Uma vez que o mutuário irá consumir o bem, diferentemente do comodato, no contrato de mútuo,
por ser um contrato translativo, há transferência de propriedade, de posse e de domínio (“transfere-se
tudo no mútuo”).
Por isso, diversamente do comodato, no mútuo o mutuante tem de ser o proprietário da coisa (ele
permitirá que o mutuário dê à coisa a destinação que bem entender). Além da qualidade de proprietário
da coisa, o mutuante também precisa ter capacidade. Na medida em que ato de disposição, somente as
pessoas capazes podem praticar atos dessa natureza.
Nesse sentido, conclui-se que o mútuo feito a um incapaz é inválido. E, como tal, não gera direito
de restituição. Ou seja, quem empresta dinheiro a um incapaz não tem direito de exigir que o bem em-
prestado seja reavido (art. 588 do CC):

Art. 588. O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver,
não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores.

Há uma expressão latina correspondente à regra de vedação do mútuo a menor, ou seja, o emprés-
timo (de dinheiro) para menor de idade: senatus consulto macedoniano (dizem que houve um Senador,

447
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

chamado Macedo, que tinha um filho que o assassinou para obter recursos para pagar credores, o que
teria originado a regra).
Trata-se de claro caso de ineficácia do negócio, pois a obrigação é natural ou incompleta: a dívida
existe, mas não há a correspondente responsabilidade (“Schuld sem Haftung”).
Há exceções legais à impossibilidade de restituição, de modo que o mútuo feito a uma pessoa me-
nor será uma obrigação completa (art. 589).

Art. 589. Cessa a disposição do artigo antecedente:

I - se a pessoa, de cuja autorização necessitava o mutuário para contrair o empréstimo, o ratifi-


car posteriormente;

II - se o menor, estando ausente essa pessoa, se viu obrigado a contrair o empréstimo para os
seus alimentos habituais;

III - se o menor tiver bens ganhos com o seu trabalho. Mas, em tal caso, a execução do credor
não lhes poderá ultrapassar as forças;

IV - se o empréstimo reverteu em benefício do menor;

V - se o menor obteve o empréstimo maliciosamente.

Portanto, será possível reaver um empréstimo feito a menor nos seguintes casos:
i) quando houver posterior ratificação do representante ou assistente;
ii) quando o empréstimo for feito para manter os alimentos do próprio menor;
iii) quando o menor tiver renda própria (ex.: jogador de futebol, artista etc.);
iv) quando ficar provado que o mútuo reverteu em proveito do menor;
v) quando o menor dolosamente omitir a sua idade,
Os cinco casos estão todos entrelaçados pela ideia da proibição de enriquecimento sem causa. De-
talhe: o art. 589 e as exceções somente são aplicáveis ao menor de idade, e não aos demais incapazes.
Isso porque o art. 589 é exceção e toda a exceção tem obrigatoriamente de ser interpretada restritiva-
mente.
Por isso, nunca se poderá reaver o mútuo feito aos demais incapazes.

6.3.2. Características
São características do mútuo:
i) transferência de propriedade e dos riscos sobre a coisa:

448
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Perceba que há uma inversão da regra res perito domino348.


ii) fungibilidade e consumibilidade do bem;
iii) garantia de restituição (art. 590):

Art. 590. O mutuante pode exigir garantia da restituição, se antes do vencimento o mutuário so-
frer notória mudança em sua situação econômica.

A garantia de restituição funciona da seguinte forma: se houver notória modificação na capacidade


contributiva do mutuário, o mutuante pode exigir garantia. Trata-se de hipótese de inadimplemento an-
tecipado do contrato. O art. 590 conecta-se ao art. 477 do CC:

Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição
em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou,
pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete
ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

iv) é contrato real (aperfeiçoa-se com a tradição ou o registro);


v) é contrato consensual (não solene)
vi) pode ser gratuito ou oneroso:
Aqui reside uma das maiores e mais importantes regras do contrato de mútuo. O contrato de mú-
tuo pode ser gratuito ou oneroso a depender da vontade das partes ou da finalidade econômica do objeto.
O mútuo oneroso é chamado de feneratício.
A onerosidade do mútuo dependerá da vontade das partes (ex.: empréstimo de dinheiro a um ami-
go), hipótese em que somente poderá ser oneroso por determinação expressa, ou da finalidade econômi-
ca do contrato (ex.: empréstimo por instituição financeira), hipótese em que será sempre considerado
oneroso (feneratício).

6.3.3. Prazo
Todo mútuo tem prazo. Caso contrário, não seria empréstimo. O prazo do mútuo é o estipulado pe-
las partes.
Em se tratando de contrato para consumo, se as partes não estipularam prazo para o mútuo, o art.
592 estabelece que será:
i) até a próxima colheita (mútuo de produtos agrícolas);
ii) de 30 dias, pelo menos (mútuo de dinheiro);
iii) pelo prazo declarado pelo mutuante (mútuo de qualquer outra coisa fungível).

348 Reflexão pessoal: se há transferência de propriedade, como haveria uma inversão da regra segundo a qual
a coisa perece para o dono? Não seria justamente essa a aplicação da regra, uma vez que há assunção dos riscos
sobre a coisa?

449
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Neste último caso, não pode o mutuante abusar de seu direito (ex.: oferecendo prazo muito exí-
guo), sob pena de incorrer em ato ilícito.

Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:

I - até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo, como
para semeadura;

II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;

III - do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer outra coisa fungível.

6.3.4. Mútuo em dinheiro


São características do mútuo em dinheiro:
i) submete-se ao princípio do nominalismo (art. 315 do CC):

Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo va-
lor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.

Significa que o mútuo em dinheiro é devido pelo seu valor nominal, no qual é presumida a incidên-
cia de correção monetária.
ii) é presumidamente oneroso, quando houver finalidade econômica (é o chamado mútuo feneratí-
cio);
iii) os juros são devidos pela taxa do art. 161, § 1º do CTN (entendimento do Enunciado 20 da Jor-
nada):

Código Civil: Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem
taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que
estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

CTN: Art. 161. (...) § 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à
taxa de um por cento ao mês.

Enunciado nº 20 - Art. 406: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161,
§ 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.

De qualquer sorte, é bom saber que, a este respeito, há certa controvérsia.


iv) é proibido o anatocismo (a composição de juros), nos termos da Súmula 121 do STF:

Súmula 121 - é vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.

Sobre o tema, importante obsercar que para a jurisprudência superior, as instituições ban-
cárias e financeiras não estão sujeitas a tal limite ou ao limite previsto na Lei de Usura (Dec.-Lei
n. 22.626/33: dobro da taxa legal). Nesse sentido:

Súmula 596, STF: “As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e
aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas,

450
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

que integram o Sistema Financeiro Nacional”.

Súmula 283, STJ (cartão de crédito): “As empresas administradoras de cartão de crédito são
instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as li-
mitações da Lei de Usura”.

Súmula 382, STJ: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não
indica abusividade”.

Súmula 530, STJ (taxas de mercado): “Nos contratos bancários, na impossibilidade de compro-
var a taxa de juros efetivamente contratada - por ausência de pactuação ou pela falta de juntada
do instrumento aos autos -, aplica-se a taxa média de mercado, divulgada pelo Bacen, praticada
nas operações da mesma espécie, salvo se a taxa cobrada for mais vantajosa para o devedor”.

Em resumo, o limite na cobrança de juros não se aplica aos bancos, entretanto, apesar de os bancos
não estarem submetidos ao limite, tais juros não podem ser abusivos. Isso significa que o Judiciário pode
controlar os juros, mesmo nos contratos bancários.
Até porque o CDC se aplica aos contratos bancários (Súmula 297 do STJ):

Súmula nº 297 - O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.

7.Fiança (CC, arts. 818 a 839)


7.1. Noções conceituais

Conforme a letra do Art. 818, CC a fiança é o contrato pelo qual o fiador garante satisfazer ao cre-
dor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.
Nas palavras de Flávio Tartuce a relação jurídica principal é celebrada entre o fiador e o credor, as-
sumindo o primeiro uma responsabilidade sem existir um débito propriamente dito (“Haftung ohne
Schuld” ou, ainda, “obligatio sem debitum”) o que se confirma pela leitura do Art. 820:

CC, art. 820: a fiança pode ser celebrada sem o consentimento do devedor ou até contra a sua
vontade.

A caução fidejussória constitui uma garantia pessoal, em que todo o patrimônio do fiador respon-
de pela dívida, não se confundindo com as garantias reais, caso do penhor, da hipoteca e da anticrese.
Flávio Tartuce assevera que apesar de serem formas de garantia pessoal, a fiança não se confunde
com o aval. Primeiro, porque a fiança é um contrato acessório, enquanto o aval traz como conteúdo uma
relação jurídica autônoma. Segundo, porque a fiança é um contrato, enquanto o aval traduz uma obriga-
ção cambial. Terceiro, porque na fiança, em regra, há benefício de ordem a favor do fiador, enquanto no
aval há solidariedade entre o avalista e o devedor principal.

7.2. Classificação da fiança

451
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Contrato complexo e especial (“sui generis”).


b) Contrato unilateral, em regra.
c) Contrato gratuito ou benefício, em regra, pois o fiador não é remunerado.
Exceções: fiança bancária e seguro fiança (contratos atípicos).
Por ser benéfico o contrato, o Art. 819 prevê que a fiança não admite interpretação extensiva.

Súmula do 214, STJ: o fiador não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual
não anuiu.

d) Contrato consensual e comutativo.


e) Contrato formal e não solene.
Exige forma escrita, mas não exige escritura pública (CC, art. 819).
f) Contrato acessório (CC, art. 184):
Assim, é possível afirmar que não existe a fiança sem um contrato principal, onde se encontra a
obrigação que está sendo garantida, de modo que tudo o que ocorre no contrato principal repercute na
fiança, inclusive a invalidade. A FIANÇA NÃO EXISTE SOZINHA!

7.3. Principais regras da fiança

Inicialmente Flávio Tartuce assevera que, em regra, o fiador não é devedor solidário, mas subsidiá-
rio, de modo que tem em seu favor o chamado benefício de ordem ou de excussão, pelo qual será primei-
ro demandado o devedor principal, conforme prevê o Art. 827, CC:

CC, art. 827: “O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contesta-
ção da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor. Parágrafo único. O fiador que
alegar o benefício de ordem, a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no
mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito”.

Conforme visto no contrato de locação, a teor do Art. 828, CC o benefício de ordem não pode ser
alegado pelo fiador caso ele tenha renunciado expressamente, tenha se obrigado como devedor principal
ou solidário ou ainda se o devedor for insolvente, ou falido.
Lembrando que eventual renúncia ao benefício de ordem será nula quando inserida em contrato
de adesão (não necessariamente de consumo) (Enunciado n. 364 do CJF/STJ).

Entretanto, no caso de fiança conjunta (entre dois ou mais fiadores), há solidariedade passiva legal
entre eles, em regra, como exceção, é possível estabelecer benefício de divisão, ou seja, fixar para os fia-
dores a sua quota de responsabilidade (“pro rata”), CC, art. 830.
Finalmente, a teor do Art. 831, CC o fiador que paga a dívida sub-roga-se nos direitos do credor
(hipótese de sub-rogação legal), entretanto, dos outros fiadores, só pode cobrar as suas quotas (presun-
ção de divisão igualitária).

452
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Do devedor principal, o fiador pode cobrar toda a dívida (CC, art. 285), além disso, contrato pode
estabelecer a cobrança regressiva de perdas e danos de modo que o devedor responderá perante o fiador
por todas as perdas e danos que este pagar e pelos que sofrer em razão da fiança, desde que estabelecido
no contrato de fiança (CC, art. 832).

7.4. Extinção da fiança

Inicialmente o art. 835, prevê uma forma de resilição unilateral da fiança pelo fiador ao estabele-
cer que:

“Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo,
sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias
após a notificação do credor”.

Nesse sentido, o fiador notifica o credor e garante a dívida por mais 60 dias após a notificação, con-
forme visto, para a locação imobiliária, há regra específica no art. 40, X, da Lei 8.245/91.
Ademais, conforme dito acima, fiança é contrato personalíssimo ou “intuitu personae” de modo
que a morte do fiador causa espécie de cessação contratual, nas palavras de Orlando Gomes.
Assim, a é possível afirmar que condição de fiador não se transmite aos seus herdeiros,
mas apenas as obrigações vencidas enquanto era vivo o fiador e até os limites da herança (“intra vires
hereditatis”).
Como contrato acessório que é, as hipóteses de extinção da obrigação principal (pagamento da dí-
vida, prescrição e novação) também são causas extintivas do contrato de fiança, a teor do Art. 837, CC349.
A fiança extingue-se ainda por atos praticados pelo credor, especificados no art. 838, CC350:
a) Concessão de moratória (dilação do prazo contratual) ao devedor, sem o consentimento do fia-
dor, ainda que solidário.
b) Se por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos seus direitos e preferências (por abrir
mão da hipoteca, ou devolver o objeto empenhado p. ex.).
c) Aceitação, em pagamento da dívida, de dação em pagamento feita pelo devedor.
Finalmente, o retardo da execução pelo credor, somado à insolvência do devedor principal, tam-
bém gera a extinção da fiança, nos termos do Art. 839, CC351.

349 CC, art. 837: “O fiador pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais, e as extintivas da obriga-
ção que competem ao devedor principal, se não provierem simplesmente de incapacidade pessoal, salvo o caso do
mútuo feito a pessoa menor”.
350 CC, art. 838: “O fiador, ainda que solidário, ficará desobrigado: I - se, sem consentimento seu, o credor

conceder moratória ao devedor; II - se, por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos seus direitos e prefe-
rências; III - se o credor, em pagamento da dívida, aceitar amigavelmente do devedor objeto diverso do que este era
obrigado a lhe dar, ainda que depois venha a perdê-lo por evicção”.
351 CC, art. 839: “Se for invocado o benefício da excussão e o devedor, retardando-se a execução, cair em in-

solvência, ficará exonerado o fiador que o invocou, se provar que os bens por ele indicados eram, ao tempo da pe-
nhora, suficientes para a solução da dívida afiançada”.

453
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para tanto, deverá o fiador comprovar que os bens por ele indicados eram, ao tempo da penhora,
suficientes para a solução da dívida afiançada.

454
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

RESPONSABILIDADE CIVIL

1. Conceitos iniciais
Segundo José de Aguiar Dias, toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilida-
de. Ocorre que a responsabilidade jurídica é um conceito muito amplo, abrangendo a responsabilidade
do Estado, a responsabilidade penal, etc. Será objeto de estudo neste tópico apenas a responsabilidade
civil.
A responsabilidade civil, espécie de responsabilidade jurídica, deriva da transgressão de uma nor-
ma jurídica preexistente, impondo ao causador do dano a consequente obrigação de indenizar.
Vigora, no âmbito da responsabilidade civil, o princípio do neminem laedere, cultuado pelos auto-
res mais tradicionais, segundo o qual a ninguém é dado causar prejuízo a outrem, sob pena de reparação
integral à vítima. Portanto, o conceito de responsabilidade civil se inspira nesse dogma, porque, se a nin-
guém é dado causar prejuízo a outrem, o comportamento danoso que viole norma jurídica preexistente
vai impor ao agente a obrigação de indenizar.

1.1. Responsabilidade contratual e extracontratual

Do princípio do neminem laedere e do próprio conceito de responsabilidade civil decorre uma pri-
meira classificação da responsabilidade civil, baseada na modalidade de norma jurídica violada.
Em termos ontológicos, a responsabilidade civil é una, decorrendo da violação de norma jurídica
preexistente. Mas, em termos de metodologia e até didáticos ou de sistematização legal, costuma-se divi-
dir a responsabilidade em um primeiro critério classificatório: responsabilidade civil contratual e extra-
contratual.
Portanto, a depender da norma jurídica violada, a responsabilidade civil poderá ser: i) contratual,
quando a norma preexistente violada derivar de um contrato; e ii) extracontratual ou aquiliana, quando a
norma preexistente violada derivar da própria lei.

1.1.1. Responsabilidade civil contratual ou negocial:


É aquela relacionada ao inadimplemento de uma obrigação contratual (arts. 389, 390 e 391, CC),
foi objeto de estudo nos tópicos relativos à teoria geral dos contratos e contratos em espécie.
Em resumo, Flávio Tartuce leciona que o art. 389 trata do descumprimento da obrigação positiva
(dar e fazer). O art. 390, do descumprimento da obrigação negativa (não fazer). O art. 391 do atual Códi-
go Privado consagra o princípio da responsabilidade patrimonial, prevendo que pelo inadimplemento
de uma obrigação respondem todos os bens do devedor.

455
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.1.2. Responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana352:


Inicialente, anota-se que no Código Civil de 1916, a responsabilidade civil extracontratual estava
baseada em um único conceito - ato lícito (art. 159, CC/1916). O Código Civil de 2002 trouxe também o
abuso de direito.
Assim, a responsabilidade aquiliana é aquela baseada nos conceitos de ato ilícito (art. 186, CC) e de
abuso de direito (art. 187, CC).
Nesse sentido, necessária então, o estudo individual de ambos alicerces da responsabilidade no
atual cenário, quais sejam, ato ilícito e abuso de direito dessa forma:
a) Ato ilícito (Art. 186, CC)
A regra geral da responsabilidade civil está prevista no artigo 186 do Código Civil, que define o ato
ilícito. A redação desse dispositivo, por inspiração do Código Civil da França, consagra uma ilicitude sub-
jetiva (baseada na culpa ou no dolo):

Art. 186, CC: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito e353 causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Nota-se que o dispositivo prevê o ato ilícito puro ou indenizante354, que diz respeito à respon-
sabilidade civil.
Nas lições de Flávio Tartuce o ato ilícito é o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica, vio-
lando direitos e causando prejuízos a outrem. Diante da sua ocorrência, a norma jurídica cria o
dever de reparar o dano, o que justifica o fato de ser o ato ilícito fonte do direito obrigacional.
Nesse sentido, é possível afirmar que sem dano não há ilícito civil, nem dever de indeni-
zar, a teor do previsto no Art. 927, “caput”, CC.
Finalmente, segundo Flávio Tartuce o Art. 186 adotou o modelo culposo de responsabili-
dade subjetiva: o disposto faz referência ao dolo (ação ou omissão voluntária) e também a culpa (ne-
gligência ou imprudência).
b) Abuso de (do) direito (art. 187, CC)

Art. 187, CC: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede mani-
festamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-
tumes.”.

352 A expressão decorre de uma lei romana (“Lex aquilia de damno”) que supostamente introduziu, no século

III a.C., a responsabilidade civil por atos faltosos no sistema romano.


353 Onde está escrito “e” no art. 186, no Código de 1916 (art. 159) estava “ou”. Significado: “ato ilícito civil =

violação de um direito (dever) + dano”. Essa é a principal mudança na conceituação do ilícito civil, confrontando-se
os dois códigos.
354 Na classificação de Pontes de Miranda, existe também o ilícito nulificante (que gera a nulidade do negócio

jurídico, art. 166, inc. II, CC) e o ilícito caducificante (relacionado à perda de direitos, como ocorre na perda do po-
der familiar).

456
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se de um ilícito equiparado ou impuro355, tal conclusão decorre da dicção legal “também co-
mete ato ilícito...”. Para a configuração do abuso de dirieto adota-se a teoria dos direitos subjetivos
ou teoria dos atos emulativos, “o meu direito termina onde começa o seu direito”.
Assim, a noção de ato ilícito é ampliada, para considerar como precursor da responsabilidade civil
aquele ato praticado em exercício irregular de direitos, ou seja, o ato é originariamente lícito, mas foi
exercido fora dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé objetiva ou pelos bons
costumes.
Em resumo, trata-se do exercício irregular ou imoderado de um direito, presente quando o su-
jeito excede manifestamente três parâmetros (cláusulas gerais):
i. Função social ou econômica de um direito.
ii. Boa-fé.
iii. Bons costumes
Obs.: Para os fins de responsabilidade civil, o abuso de direito exige dano (art. 927, caput, CC). Pa-
ra outros fins, não, ex. concessão de tutela inibitória, por exemplo (art. 497, §único, CPC).
Obs.: Segundo a doutrina majoritária, abuso de direito não exige culpa. Isso porque o art. 187, CC,
adotou o modelo de responsabilidade objetiva, não se cogitando dolo ou culpa, bastando a conduta irre-
gular. (Enunciado n. 37, I - Jornada de Direito Civil356).

1.2. Abuso de direito

O conceito de abuso de direito, para Rubens Limongi França, é o seguinte: “O abuso de direito é lí-
cito quanto ao conteúdo e ilícito quanto às consequências.” Ou seja, a ilicitude está na forma de execução
do ato.
Segundo entendimento majoritário, a responsabilidade no abuso de direito é objetiva (Pablo Stolze,
Maria Helena Diniz, Cristiano Chaves, Gustavo Tepedino). Nesse sentido, o Enunciado nº 37, da I Jorna-
da de Direito Civil: a responsabilidade decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-
se somente no critério objetivo-finalístico.

Enunciado 37 – Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de


culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

O artigo 187 nitidamente afasta as noções de culpa e dolo para optar pelo elemento finalístico ou
teleológico na caracterização do abuso. Não importa, portanto, a culpa ou dolo daquele que comete abuso

355 Tem com fundamento o conceito de Limongi França: o abuso de direito é ilícito quanto ao seu conteúdo e
ilícito quanto às suas consequências (ilícito impuro), de modo que a ilicitude está na forma de execução do ato,
sendo que é a abusividade que conduz à ilicitude.
356 Enunciado 37, I JDC. “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fun-

damenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”.

457
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

de direito. O que importa é observar se o titular do direito extrapolou limites da função social, da boa-fé
etc., e não verificar qual a sua intenção (até porque se trata de algo de difícil aferição):

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-
mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costu-
mes.

Veja que o legislador não menciona voluntariedade ou negligência, pois a caracterização do abuso é
objetiva. Há muitos anos, na França, um sujeito se incomodava com os balões que passavam sobre a sua
propriedade. Assim, ele colocou grandes hastes bem altas para estourá-los. Entendeu a doutrina que ele
estava exercendo um direito (de propriedade) de forma abusiva.
O principal exemplo de abuso de direito no direito civil é o abuso no exercício do uso da proprieda-
de, chamado também de “ato emulativo” (art. 1.228, § 2º, do CC). Exemplos: perturbação do sossego e
saúde alheios no direito de vizinhança, excesso de barulho no apartamento, uso anormal da propriedade
(art. 1.227 do CC, direitos de vizinhança).
Por ocasião do estudo dos Direitos Reais, deve-se atentar para a aparente colidência ou conflito en-
tre o artigo 187 do CC e o § 2º do art. 1.228 do CC, que, ao definir o abuso do direito de propriedade, de-
sastradamente consagra uma ilicitude subjetiva, na medida em que exige da vítima a prova da intenção
de prejudicar (o dolo). Mas como provar a intenção de prejudicar? Essa regra beira o absurdo, eis que o
direito de propriedade é justamente a modalidade de direito mais passível de abuso. Para Pablo, foi um
escorrego do legislador:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. (...)

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e
sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

Essa parte final do § 2º conflita com o art. 187 que, ao definir precisa e objetivamente o abuso de
direito, dispensa a prova da intenção de prejudicar (dizendo que comete abuso de direito o titular que, ao
exercê-lo, desvirtua a finalidade do direito).
Por ser o art. 187 uma cláusula geral, Pablo defende que a parte final do § 2º deve ser desconside-
rada. Do contrário, bastaria ao proprietário alegar que não tinha a intenção de lesar para afastar sua res-
ponsabilidade. Isso, entretanto, deve ser devidamente fundamentado em prova aberta.
O infeliz § 2º baseia-se no art. 833 do Código Civil italiano. Entretanto, a própria doutrina italiana
já afastou essa ideia de que, para que haja abuso do direito de propriedade, deveria estar demonstrada a
intenção de prejudicar alguém.
Vale lembrar, por fim, que as situações de supressio e surrectio não caracterizam abuso de direito
(art. 330 do CC). Supressio e surrectio são desdobramentos da própria regra proibitiva do venire contra
factum proprium, segundo o princípio da confiança.

458
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor re-
lativamente ao previsto no contrato [supressio: perda de um direito em razão do seu
não exercício].

Como se sabe, o venire contra factum proprium, veda o comportamento contraditório e as noções
de supressio e surrectio assentam-se nessa base. Essa ideia proíbe que, ao longo do tempo, a pessoa as-
suma comportamentos contraditórios.
A supressio se caracteriza quando determinado direito ou faculdade permanece inerte ao longo do
tempo, gerando para a outra parte, via surrectio, a consolidação de um direito correspondente (exemplo:
art. 330 do CC).
Se a parte tem um direito contra a outra e pode exercê-lo, mas não o faz, sendo que a parte contrá-
ria exerce direito que a ela é correspondente, consolida-se esse direito correspondente. Exemplo: se o
contrato diz que o pagamento deve ser feito na cidade de Campinas, mas a parte efetua todo mês o pa-
gamento em Araçatuba, e o credor o recebe, consolida-se o direito de pagar em Araçatuba e não em
Campinas. Consolida-se uma situação contrária favorável, que faz com que a outra parte perca o seu di-
reito, que era exigir o pagamento em Campinas.
No REsp 1.245.712/MT, o STJ discute situação relacionada ao abuso do direito de propositura de
uma ação. O ordenamento jurídico brasileiro traz dois tipos de atos ilícitos: subjetivo e objetivo. O ato
ilícito objetivo, previsto no art. 187 do CC, é apelidado de abuso do direito. O abuso do direito e ato ilícito
objetivo, pois em seu âmago não está presente o elemento culpa. Fundamenta-se na boa-fé objetiva, na
confiança. O STJ consagra a regra segundo a qual a responsabilidade civil eventualmente decorrente do
abuso do direito será objetiva.
O STJ, nessa perspectiva, imputou responsabilidade civil objetiva a um advogado que ajuizou ação
de execução de honorários de sucumbência não só contra a sociedade limitada que exclusivamente cons-
tava como sucumbente no título judicial, mas também, sem qualquer justificativa, contra seus sócios di-
rigentes, os quais tiveram valores de sua conta bancária bloqueados sem aplicação da teoria da desconsi-
deração da personalidade jurídica. Determinou o pagamento de indenização a títulos de danos morais e
materiais aos sócios. É preciso pontuar que não era caso de desconsideração da personalidade jurídica.

2. Elementos da responsabilidade civil extracontratual ou


pressupostos do dever de indenizar
Há três elementos fundamentais para a caracterização de qualquer tipo de responsabilidade civil:
conduta humana, nexo de causalidade e dano ou prejuízo.

2.1. Conduta humana

A conduta humana traduz o próprio comportamento humano marcado pela voluntariedade, seja
comissivo, seja omissivo.
459
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Martinho Garcez Neto, já houve tempo na antiguidade em que se admitia o ajuizamento
de demandas contra animais. Hoje, toda responsabilidade civil pressupõe uma conduta humana marcada
pela voluntariedade. Voluntariedade não está relacionada relaciona à culpa ou ao dolo, mas à vontade
consciente no agir. Uma mera ação instintiva ou involuntária não caracteriza a conduta.
Uma pessoa que tenha crise episódica de sonambulismo ou hipnose não pode ser responsabilizada,
em virtude da ausência deste primeiro requisito (veja que o sonambulismo crônico não está incluído, na
medida em que previsível). Um sujeito com micro-hemorragia capilar que espirre sangue em determina-
do quadro, manchando-o, comete um ato reflexo, não podendo ser responsabilizado, pela ausência de
conduta.
Em regra, a pessoa responde por ato próprio, entretanto, a lei informa algumas exceções: Ato de
terceiro (arts. 932 e 933, CC), Fato do animal (art. 936, CC), Fato da coisa (arts. 937 e 938, CC), Produto
ou serviço (CDC).Sendo que todas as exceções são hipóteses de responsabilidade objetiva e serão estuda-
das oportunamente.
Ademais, é importante frisar que conduta humana pode se dar por ação (“culpa in comittendo”), é
a regra. Ou por omissão (“culpa in omittendo”), em hipóteses excepcionais.
Segundo Flávio Tartuce na omissão, para que o agente responda, é necessário provar:
i. Que o ato deveria ser praticado (omissão genérica). Exemplo: omissão de socorro.
ii. A omissão em si (omissão específica).
O qualificativo “ilícito” não é necessário à conduta. O ato ilícito é regra geral de responsabilidade,
mas não é absoluta. O elemento necessário a toda e qualquer forma de responsabilidade civil é a conduta
humana, e não a conduta humana ilícita. Pode haver responsabilidade civil decorrente de ato lícito.
Com efeito, embora não seja regra, autores como Garcez Neto, Von Thur e Paulo Lôbo lembram
que, excepcionalmente, pode haver responsabilidade civil decorrente de ato lícito. Exemplo é a desapro-
priação, um ato estatal lícito que gera a responsabilidade civil do Estado. Outro é o da passagem forçada
(art. 1.285, caput, do CC), que tem natureza jurídica de direito de vizinhança (propter rem) e dá o direito
ao proprietário do imóvel encravado de exigir o ato de passagem, pelo qual ele indeniza o que tem de
suportá-la, pelo dano causado:

Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, medi-
ante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será
judicialmente fixado, se necessário. (...)

2.1.1. Culpa latu sensu ou em sentido amplo

Segundo parte da doutrina a conduta humana e a culpa podem ser fundidas como um só elemen-
to subjetivo da responsabilidade civil, entretanto, conforme acima, Flávio Tartuce prefere dividir para
fins didáticos.

460
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Desse modo, quando se fala em responsabilidade com ou sem culpa, leva-se em conta a culpa em
sentido amplo ou a culpa genérica (culpa lato sensu), que engloba o dolo e a culpa estrita (stricto sen-
su).

2.1.1.1. Dolo: ação ou omissão voluntária (ato intencional).


O dolo constitui uma violação intencional do dever jurídico com o objetivo de prejudicar outrem.
Trata-se da ação ou omissão voluntária mencionada no art. 186 do CC.
Para o Direito Civil, havendo dolo ou culpa grave, os efeitos são os mesmos, aplicando-se a repara-
ção integral dos danos (art. 944, caput, CC), dessde modo, presente o dolo do agente, em regra, não se
pode falar em culpa concorrente da vítima ou de terceiro, a gerar a redução por equidade da indenização.
Flávio Tartuce ensina que o dolo, na responsabilidade civil, merece o mesmo tratamento da culpa
grave ou gravíssima. A conclusão, de que o dolo equivale à culpa grave, vem do brocardo latino culpa lata
dolo aequiparatur, originário do Direito Romano.
Ademais, para o Direito Civil, são irrelevantes os conceitos intermediários como preterdoloso e do-
lo eventual.

2.1.1.2. Culpa “stricto sensu” ou em sentido estrito:


A culpa em sentido estrito é a violação de um dever objetivo de cuidado, preexistente e relacionada
a três padrões de conduta:
a) Imprudência: falta de cuidado + ação (CC, art. 186).
b) Negligência: falta de cuidado + omissão (CC, art. 186).
c) Imperícia: falta de qualificação para o exercício de uma atribuição (CC, art. 951).
Obs.: Em relação à responsabilidade dos profissionais (Art. 951, CC) são necessárias algumas con-
siderações:
Em regra, essa responsabilidade civil é subjetiva, pois assumem obrigação de meio. Como exceção,
a tese de Demongue357 – muito aplicada pelo STJ. Segundo ela, se o profissional liberal assumir obriga-
ção de resultado, terá culpa presumida358 ou responsabilidade objetiva – exemplo: médico cirurgião plás-
tico estético.
Na doutrina nacional, Sérgio Cavalieri Filho apresenta três elementos na caracterização da culpa:
a) a conduta voluntária com resultado involuntário; b) a previsão ou previsibilidade; e c) a falta de cui-
dado, cautela, diligência e atenção.

357Tese de Demogue, nascida na França e mais adotada por aqui: Havendo obrigação de resultado, ou haverá
culpa presumida ou haverá responsabilidade objetiva.
358 Na culpa presumida, a responsabilidade é com culpa (subjetiva) e se o agente causador do dano provar

que não teve culpa, não responde. Na responsabilidade objetiva a responsabilidade é sem culpa (objetiva),
de modo que se o réu provar que não teve culpa, ele responde. Para não responder, deve provar uma
excludente de nexo de causalidade.

461
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1.1.2.1. Classificação da culpa no direito civil

Conforme já ressaltado acima, ao Direito Civil não importa se o autor agiu com dolo ou culpa, sen-
do a consequência inicial a mesma, qual seja, a imputação do dever de reparação do dano ou indenização
dos prejuízos. Entretanto, é pertinente estudar as principais classificações da culpa stricto sensu, cuja
análise impacta diretamente na redução equitativa da indenização, conforme consagra a melhor doutri-
na.
i. Quanto à sua presunção, surgem três modalidades de culpa:
a) Culpa in vigilando – há uma quebra do dever legal de vigilância como era o caso, por exemplo,
da responsabilidade do pai pelo filho, do tutor pelo tutelado, do curador pelo curatelado, do
dono de hotel pelo hóspede e do educador pelo educando.
b) Culpa in eligendo – culpa decorrente da escolha ou eleição feita pela pessoa a ser responsabili-
zada, como no caso da responsabilidade do patrão por ato de seu empregado.
c) Culpa in custodiendo – a presunção da culpa decorreria da falta de cuidado em se guardar uma
coisa ou animal.
Alerta Flávio Tartuce que essas três modalidades, no Código Civil de 2002, passaram a ser de res-
ponsabilidade objetiva, conforme artigos 932, 933 e 936. Portanto, elas foram banidas do sistema
como sendo casos de responsabilidade por culpa presumida.
Rememora-se que na culpa presumida, a responsabilidade é com culpa (subjetiva) e se o agente
causador do dano provar que não teve culpa, não responde. Na responsabilidade objetiva a respon-
sabilidade é sem culpa (objetiva), de modo que se o réu provar que não teve culpa, ele res-
ponde. Para não responder, deve provar uma excludente de nexo de causalidade.
ii. Quanto ao grau da culpa (Art. 944 e 945, CC)
a) Culpa “lata” (grave): reparação integral dos danos.
O agente até que não queria o resultado, mas agiu com tamanha culpa de tal forma que parecia que
o quisesse.
b) Culpa “leve” (intermediária): redução equitativa da indenização.
É a culpa intermediária, situação em que a conduta se desenvolve sem a atenção normalmente de-
vida. Utiliza-se como padrão a pessoa humana comum (culpa in abstrato).
c) Culpa “levíssima” (menor grau): redução equitativa da indenização (maior).
Trata-se da situação em que o fato só teria sido evitado mediante o emprego de cautelas extraordi-
nárias ou de especial habilidade. Entretanto, segundo as regras do Direito Civil, responde-se inclusive
pela culpa levíssima, porque a indenização se tem em vista à extensão do dano.

462
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em resuno, havendo contribuição causal da vítima (CC, art. 945), a indenização deve ser reduzida,
quando houver culpa concorrente, fato concorrente ou ainda risco concorrente da vítima, conforme
Enunciado 459, V JDC359.
Obs.: Em complemento á interessante a leitura do Enunciado 630, VIII JDC360.

2.2. Nexo de causalidade361

Inicialmente estuda-se aqui o elemento imaterial da responsabilidade. É uma relação de


causa e efeito entre a conduta e o dano, nas clássicas palagras de Aguiar Dias.
Nessa linha de raciocínio, Sérgio Cavalieri Filho ensina que “Trata-se de noção aparentemente fácil,
mas que, na prática, enseja algumas perplexidades (...). O conceito de nexo causal não é jurídico; decorre
das leis naturais. É o vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado”.
Com intuito didático, Flávio Tartuce ensina que, como elemento imaterial ou espiritual que é, po-
de-se imaginar o nexo de causalidade tal qual um cano virtual, que liga os elementos da conduta e do
dano.
Dessa forma:
i. Na responsabilidade subjetiva o nexo de causalidade é formado pela culpa genérica ou lato
sensu, que inclui o dolo e a culpa estrita (art. 186 do CC).
ii. Na responsabilidade objetiva o nexo de causalidade é formado pela conduta, cumulada com
a previsão legal de responsabilização sem culpa ou pela atividade de risco (art. 927, pará-
grafo único, do CC).
A regra do nexo de causalidade não é meramente jurídica, mas física (relação da causalidade, ação
e reação) e espiritual (“aqui se faz, aqui se paga”). O ato de soltar objeto gerará queda, por conta da gra-
vidade, e ocasionará eventualmente um dano.
O direito se preocupa com esse nexo, na medida em que, para haver responsabilidade civil, deve
haver esse “liame que une o agente ao prejuízo por ele causado”. A matéria foi desenvolvida em direito

359 Enunciado 459, V JDC. “A conduta da vítima pode ser fator atenuante do nexo de causalidade na
responsabilidade civil objetiva.”
Enunciado 630, VIII. “Art. 945: Culpas não se compensam. Para os efeitos do art. 945 do Código Civil, ca-
360

be observar os seguintes critérios: (i) há diminuição do quantum da reparação do dano causado quando, ao lado da
conduta do lesante, verifica-se ação ou omissão do próprio lesado da qual resulta o dano, ou o seu agravamento,
desde que (ii) reportadas ambas as condutas a um mesmo fato, ou ao mesmo fundamento de imputação, conquanto
possam ser simultâneas ou sucessivas, devendo-se considerar o percentual causal do agir de cada um.”
361 Recomenda-se a leitura do editorial nº 15, do site de Pablo, que fala de uma teoria de nexo de causalidade

específica e pouco comentada (thin skull rule). Recomenda-se, também, a leitura do editorial nº 24, sobre o método
bifásico da indenização por dano moral.

463
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

penal, e a teoria geral do nexo de causalidade pode ser transplantada para o campo civil, na medida em
que as teorias são as mesmas.
Dentre aquelas teorias, não há consenso acerca da que explica o nexo de causalidade no direito ci-
vil. De todos os elementos da responsabilidade, o nexo é o mais difícil362.

2.2.1. Teorias quanto ao nexto de causalidade


Fundamentalmente, três teorias se digladiam para explicar o nexo de causalidade: i) a teoria da
equivalência de condições (conditio sine qua non); ii) a teoria da causalidade adequada; e iii) a teoria da
causalidade direta e imediata.
i. Teoria da equivalência das condições ou do histórico dos antecedentes:
Desenvolvida pelo filósofo Von Buri, a teoria da equivalência das condições sustenta não haver di-
ferença entre os antecedentes fáticos do resultado danoso, de maneira que tudo aquilo que concorra para
o resultado é considerado causa. Assim, a teoria afirma que todos os fatos relativos ao evento danoso
geram a responsabilidade civil.
Essa teoria foi se aperfeiçoando ao longo dos anos, sobretudo no direito penal à luz da imputação
objetiva, mas, em sua concepção pura, todo antecedente que concorre para o resultado é causa, de modo
que não é adotada em qualquer hipótese no direio civil.
A grande crítica que se faz é que ela pode chegar a uma espiral de condições infinitas e soluções ab-
surdas. A compra da arma que dá o tiro também é causa da morte. Assim, aquele que fabrica ou vende a
arma também dá causa ao resultado.
Até no campo do direito penal, todavia, essa teoria não é entendida de forma pura, sofrendo ama-
durecimento e ponderações pela teoria da imputação objetiva.
A teoria da equivalência das condições não é predominante em direito civil. Ela não conta com
simpatia dos civilistas, mesmo com as ponderações da imputação objetiva, do risco criado.
ii. Teoria do dano direto e imediato ou teoria da interrupção do nexo causal:
Havendo violação do direito por parte do credor ou do terceiro, haverá interrupção do nexo causal
com a consequente irresponsabilidade do suposto agente. Desse modo, somente devem ser reparados os
danos quedecorrem como efeitos necessários da conduta do agente.
iii. Teoria da causalidade adequada:
Foi desenvolvida por Von Kries, pela qual se deve identificar, na presença de uma possível causa,
aquela que, de forma potencial, gerou o evento dano. Por esta teoria, somente o fato relevante ao evento
danoso gera a responsabilidade civil, devendo a indenização ser adequada aos fatos que a envolvem,
mormente nas hipóteses de concorrência de causas.

362 Acerca desse tema, ver o texto de Gustavo Tepedino, intitulado “Notas sobre o nexo de causalidade”
(RTDC de junho/01).

464
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A teoria da causalidade adequada é mais refinada. Para ela, causa não é qualquer antecedente fáti-
co que concorra para o resultado, mas, lembra Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil),
somente aquele antecedente fático adequado ou abstratamente idôneo à consecução do resultado.
A simples compra da arma não é a causa adequada à morte de alguém. É, todavia, o tiro na cabeça
de alguém. A causa adequada exige a investigação, dentre os antecedentes fáticos, o adequado ao resulta-
do, segundo um juízo de probabilidade.
Ex.: o cidadão está no aeroporto e tem vontade terrível de ir ao banheiro. Após se trancar no ba-
nheiro, passa um infeliz que, vendo o outro com a calça arriada, bota Durepox na fechadura. O cidadão,
preso, perde o voo das 14 horas e só pega o das 17. O voo das 17 cai e ele morre. O rapaz que trancou o
sujeito no banheiro, para a primeira teoria, poderia ser responsabilizado pela morte, enquanto que para a
segunda não, pois trancar alguém no banheiro, pelas regras de experiência, não é causa de morte de al-
guém.
A segunda e a terceira teorias são muito próximas. Tanto que é comum verificar julgadores trocan-
do uma pela outra. Quer se faça um raciocínio por uma, quer se faça por outra, pode-se chegar ao mesmo
resultado. Existem, entretanto, nuances distintivas. A terceira teoria tem dicção conceitual mais clara,
para Pablo.
Para a teoria da causalidade direta, defendida por autores como Gustavo Tepedino e Carlos Rober-
to Gonçalves, causa é o comportamento antecedente que determina o resultado como uma consequência
sua, direta e imediata.
Dizer se uma causa é adequada ou não é algo carregado de subjetivismo. A terceira teoria quer algo
mais objetivo. Ela não exige a análise da adequação da causa, mas uma relação de necessariedade entre a
causa e o resultado. Dar um soco em alguém não é necessariamente causa de morte, se esse alguém, que
vai ao hospital após o soco, morre em decorrência de acidente automobilístico.
Na prática, não é simples diferenciar ambas as teorias. Pablo, que defendia a segunda teoria, mu-
dou seu pensamento, para passar a defender a terceira. Ele considera que, com a teoria da causalidade
adequada, é mais fácil investigar o nexo, na medida em que ela evita o jogo abstrato de tentar analisar a
adequação da causa.
Pablo arrisca dizer, da extensa pesquisa feita por ele, que a maioria da doutrina brasileira (ex.: Ca-
valieri Filho), na linha de autores franceses como Carbonnier, Mazeaud-Tunc, prefere a teoria da causa-
lidade adequada, contra a opinião de juristas como Tepedino e Gonçalves.
O dispositivo que serve de base ao nexo causal no CC é o art. 403. Pablo entende que ele reforça a
terceira teoria, ao falar em “efeito direto e imediato”, muito embora haja controvérsia a esse respeito363:

363 A decisão proferida no REsp 686.208/RJ é mais bem explicada pela teoria da causalidade direta e imedia-
ta.

465
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os
prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do dispos-
to na lei processual.

Flávio Tartuce assevera que essa teoria consta dos arts. 944 e 945 CC, e tem prevalecido na doutri-
na como adotada pelo Direito Civil, vide Enunciado n. 47 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil364, e
os atuais julgados dos Tribunais Superiores.

2.3. Dano ou prejuízo

2.3.1. Conceito
É o elemento objetivo da responsabilidade civil, traduz uma lesão a um interesse jurídico tutela-
do, material ou moral. É a perda ou prejuízo que a parte sofreu

Para Pablo, o prejuízo é um elemento da responsabilidade civil. Ainda que eventualmente seja pre-
sumido, somente haverá responsabilidade civil se ele estiver presente. Não se indeniza o mero aborreci-
mento.

2.3.2. Requisitos
Não é qualquer dano que enseja indenização. Para que o dano seja indenizável, alguns requisitos
devem estar presentes:
i) violação a um interesse jurídico, material ou moral:
A dor do fim do afeto não traduz dano indenizável, por não representar violação a interesse jurídi-
co. Todavia, se com o fim do relacionamento houver violação a direito da personalidade, haverá dano
indenizável. A dor do fim do afeto é muito mais intensa, por exemplo, que ter o nome indevidamente
inscrito no SPC. Mas a inscrição indevida gerará a indenização; a dor do fim do afeto não.
ii) subsistência do dano:
Subsistência do dano como requisito significa que, se o dano já foi reparado, compensado, recom-
posto, não há o que indenizar.
iii) certeza do dano:
Não se indeniza o dano incerto, abstrato ou hipotético. Mesmo o dano moral tem de ser certo.

2.3.3. Espécies de dano


Inicialmente salienta Flávio Tartuce no atual cenário da responsabilidade civil existe uma tendên-
cia de ampliação ao rol de categorias autônomas de eventuais danos passiveis de indenização de modo
que a matéria encontra a seguinde divisão na realidade jurídica nacional:

364 Enunciado 47, I JDC. “O art. 945 do novo Código Civil, que não encontra correspondente no Código Civil

de 1916, não exclui a aplicação da teoria da causalidade adequada.”.

466
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i. Danos clássicos ou tradicionais – Danos materiais e danos morais.


ii. Danos novos ou contemporâneos – Danos estéticos, danos morais coletivos, danos so-
ciais e danos por perda de uma chance. Para alguns autores, essas categorias entrariam
em dano moral, ou seja, não seriam categorias separadas.

2.3.3.1. Danos patrimoniais ou materiais


Nas palavras de Flávio Tartuce os danos patrimoniais ou materiais constituem prejuízos ou perdas
que atingem o patrimônio corpóreo de alguém e encontram previsão nos Art. 402 a 404, CC.
Ademais, conforme previsão dos arts. 186 e 403 do Código Civil não cabe reparação de dano hipo-
tético ou eventual, necessitando tais danos de prova efetiva, em regra.

2.3.3.1.1. Classificação dos danos materiais

O art. 402 do CC, prevê a classificação dos danos materiais:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lu-
crar.

i. Danos emergentes ou danos positivos – o que efetivamente se perdeu.


Trata-se do prejuízo já suportado pela vítima do dano, é o dano pretérito. Como exemplo típico,
pode ser citado o estrago do automóvel, no caso de um acidente de trânsito.
Flávio Tartuce ilustra com outro exemplo, a regra do art. 948, I, do CC, para os casos de homicídio,
devendo os familiares da vítima ser reembolsados pelo pagamento das despesas com o tratamento do
morto, seu funeral e o luto da família.
i. Lucros cessantes ou danos negativos – o que razoavelmente se deixou de lucrar.
É a frustração de um lucro No caso de acidente de trânsito, poderá pleitear lucros cessantes o taxis-
ta, que deixou de receber valores com tal evento, fazendo-se o cálculo dos lucros cessantes de acordo com
a tabela fornecida pelo sindicato da classe e o tempo de impossibilidade de trabalho365.
Novamente, sobre os lucros cessantes, cite-se, no caso de homicídio, a prestação dos alimentos in-
denizatórios, ressarcitórios ou indenitários, devidos aos dependentes do falecido, mencionada no art.
948, inc. II, do CC366.

365 (TJSP, Apelação Cível 1.001.485-0/2, São Paulo, 35.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Artur Marques,
28.08.2006, v.u., Voto 11.954).
366 "Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I - no pagamento

das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral (enterro, cremação, caixão) e o luto da família (missa de sé-
timo dia). II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração prová-
vel da vida da vítima (o parâmetro é a expectativa de vida do IBGE – atualmente 75/76 anos)".

467
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: Segundo já decidiu o STJ367, o cálculo deve englobar 2/3 do salário da vítima por mês + 13º
salário + férias + FGTS (se tinha carteira assinada), multiplicado pelo número de anos até o limite de
vida provável, conforme tabela do IBGE (75/76 anos) .

2.3.3.2. Danos Morais

2.3.3.2.1. Evolução histórica

O reconhecimento do dano moral não é algo que ocorreu de uma hora para a outra. Em um primei-
ro momento, o dano moral não teve reconhecimento jurídico (Zulmira Pires de Lima, Boletim da Facul-
dade de Direito de Coimbra).
Ao longo da história brasileira, posto o Código Civil de 1916 não proibisse a reparação por dano
moral (Arruda Alvim, em uma de suas palestras), foi somente com a Constituição da República de 1988,
especialmente o art. 5º, V e X, que o dano moral passou a ser efetivamente reconhecido, admitindo-se a
sua autonomia jurídica em face do dano material (Yussef Said Cahali, em “O Dano Moral”):

Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização


por dano material, moral ou à imagem; (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...)

Com efeito, o dano moral só adquiriu autonomia jurídica no Brasil após a CR/88. Antes dela, era
difícil encontrar decisões determinando a reparação autônoma dos danos morais. As decisões que havia
só previam a indenização moral ligada a um dano material.
Vale acrescentar que o CC/02, em seu art. 186, expressamente admite o dano moral como categoria
autônoma:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

2.3.3.2.2. Conceito

Dano moral é, na lição de Limongi França, a lesão a direito da personalidade. Aquele que sofre da-
no à imagem, honra, sigilo etc. sofre dano à personalidade.
Por ocasião do estudo da parte geral, foi analisada a questão relativa ao dano moral à pessoa jurídi-
ca (Súmula 227 do STJ):

Súmula 227 - A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

367 (REsp 698443/ SP, Relator Ministro JORGE SCARTEZZINI, Quarta Turma, julgado em 01/03/2005, DJ

28/03/2005).

468
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Os danos morais da pessoa jurídica só atingem a sua honra objetiva (reputação), e não a
sua honra subjetiva (autoestima). Lembrando que honra objetiva é o que os outros pensam do sujeito,
honra subjetiva é o que o sujeito pensa de si.
Flávio Tartuce assevera que que não há, no dano moral, uma finalidade de acréscimo patrimonial
para a vítima, mas sim de compensação pelos males suportados368.
Ademais, é importante salientar que no dano moral não há necessidade de sentimentos
humanos desagradáveis como dor, tristeza, amargura e depressão (Enunciado 445 da V Jornada de
Direito Civil369).
Finalmente, é de se rememorar que os danos morais não se confundem com os meros aborreci-
mentos que a pessoa sofre no cotidiano. (Enunciado 159 da III Jornada de Direito Civil370).

2.3.3.2.3. Natureza jurídica do dano moral

A jurisprudência busca sempre criar critérios para coibir a indústria da reparação por dano moral
existente no Brasil. Todavia, por outro lado, não é justo que haja a reparação ínfima a determinados da-
nos morais.
Juristas como Agostinho Alvim observaram que a reparação por dano moral se desenvolveu ao
longo do século XX partindo dos juízes que tiveram longa experiência na advocacia, e não por juízes de
carreira.
A primeira finalidade da indenização por danos morais é a compensação da vítima. Ou seja, em
primeiro plano, é indiscutível que a reparação por dano moral tenha uma natureza compensatória. Toda-
via, por influência do direito norte-americano (punitive damages), lembra Salomão Reseda, em sua obra
“A Função Social do Dano Moral”, que a indenização por dano moral também teria uma função punitiva
ou pedagógica, visando a desestimular o ofensor, especialmente em ilícitos graves ou reincidentes.
Em concurso, deve-se sustentar a natureza compensatória dos danos morais, em decorrência da le-
são ao direito da personalidade. Ocorre que, em 1947, Boris Starck publicou obra observando que a inde-
nização civil não poderia ter apenas essa função, mas a de pena privada, de desestímulo. O direito norte-
americano desenvolveu muito essa teoria do desestímulo. Lá, a decisão judicial fixa a compenstory da-
mage e a punitive damage.
Nos EUA, buscam-se critérios para evitar o superdimensionamento das teorias por eles criadas. No
Brasil, há problemas diversos. Em casos graves e de grande incidência, a tutela individual pátria não é
suficiente para evitar que as grandes empresas violem direitos do consumidor. Para elas, muitas vezes é

368 Tal dedução justifica a não incidência de imposto de renda sobre o valor recebido a título de indenização
por dano moral, o que foi consolidado pela Súmula 498 do Superior Tribunal de Justiça.
369 Enunciado 445, V JDC: “O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de senti-

mentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento.”.


370 Enunciado 159, III JDC: “O dano moral, assim compreendido todo dano extrapatrimonial, não se caracte-

riza quando há mero aborrecimento inerente a prejuízo material.”

469
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mais vantajoso responder às demandas iniciais que rever seus setores de atendimento ao cliente ou suas
linhas de montagem. As verbas punitivas têm essa função de evitar que os problemas se repitam, nota-
damente nesses casos graves e de grande incidência.
O juiz não pode olvidar essa teoria, portanto, segundo a qual o dano moral tem caráter punitivo-
pedagógico. Isso porque existe também uma função social na responsabilidade civil.
No Brasil, não há lei a respeito do tema, mas deveria haver. Para Pablo, numa visão acadêmica, se o
juiz aplicasse a teoria do desestímulo, a verba maior (não reparatória), ainda que no campo da tutela in-
dividual, não deveria ir à vítima, mas a um fundo especial, como ocorre nas ações civis públicas.
Na prática, apesar de não haver lei disciplinando a teoria do desestímulo, vez por outra a tese é in-
vocada pela jurisprudência para majorar a indenização devida (REsp 860.705/DF e REsp 965.500/ES).
O Enunciado 379 da IV Jornada e o Projeto de Reforma do CC, em sua redação original, expressa-
mente acatam a teoria pedagógica do desestímulo. A jurisprudência, entretanto, ainda é tímida. Vez por
outra ela invoca a teoria para majorar a indenização, que vai para a própria vítima:

Enunciado nº 379 - Art. 944: O art. 944, caput, do Código Civil não afasta a possibilidade de se
reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil.

O Projeto de Reforma do CC vai ainda além: ele prevê alteração para dizer que a indenização servi-
rá para indenizar a vítima e desestimular o ofensor. Por mais que a doutrina abrace o desestímulo, há a
necessidade de previsão legal para ampliar a aplicação da teoria.
No REsp 1.258.389/PB, o STJ discutiu a questão da indenização por danos morais a pessoa jurídi-
ca. Em verdade, essa discussão brota do art. 52 do CC, que estabelece que a pessoa jurídica não dispõe de
direitos da personalidade, mas merece a proteção que deles decorre. Os direitos da personalidade trazem
consigo um atributo de elasticidade, pois embora não sejam aplicáveis às pessoas jurídicas, a proteção
que deles decorre as alcança. O STJ solidificou o entendimento de que a pessoa jurídica pode sofrer dano
moral (Súmula 227 do STJ). Trata-se de resguardar a credibilidade mercadológica ou a reputação nego-
cial da empresa, que poderiam ser paulatinamente fragmentadas por violações de sua imagem. Contudo,
o STJ entendeu que essa proteção não alcança a pessoa jurídica de direito público, que não tem direito à
indenização por danos morais relacionados à violação da honra ou da imagem. Isso porque a estrutura e
a finalidade da pessoa jurídica de direito público são diferentes da pessoa jurídica de direito privado. São
circunstancias diferentes, portanto, o mesmo cenário não se verifica.

2.3.3.2.4. Classificações do dano moral

2.3.3.2.4.1. Quanto ao sentido da categoria:

i. Dano moral próprio (dano moral in natura): relacionado com aquilo que a pessoa sente
(Ex.: dor, tristeza, amargura, depressão etc.).

470
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. Dano moral impróprio (ou lato sensu): Lesão a direito da personalidade (não precisa de
sentimento humano desagradável).

2.3.3.2.4.2. Quanto à necessidade de prova

i. Dano moral subjetivo: é aquele que necessita ser provado


Ex.: Dano moral da pessoa jurídica, em regra, segundo jurisprudência do STJ, tem que ser provado
(REsp 1.564.955/SP)
ii. Dano moral objetivo ou in re ipsa: É aquele que dispensa prova em juízo, ou seja, traduz um
prejuízo presumido.
Ex.1: Morte de pessoa da família - Art. 948 do CC;
Ex.2: Uso indevido de imagem com fins econômicos ou comerciais – Súmula 403, STJ:

Súmula 403, STJ: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autoriza-
da de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.”.

2.3.3.2.4.3. Quanto à pessoa atingida

i. Dano moral direto: é aquele que atinge a própria pessoa, a sua honra subjetiva (autoestima)
ou objetiva (repercussão social da honra).
Como exemplo, podem ser citados os crimes contra a honra, que geram a responsabilidade civil
daquele que os pratica, nos termos do art. 953 do Código Civil.
ii. Dano indireto, reflexo ou “em ricochete”: é o dano atinge uma pessoa ou coisa e repercute
em outra pessoa, como uma bala que ricocheteia.
Desenvolvido também na França e reconhecido pelo STJ, dano reflexo ou em ricochete é aquele so-
frido pela vítima indireta ligada à vítima direta do ilícito causado (ver REsp 1.208.949/MG). Ex.: o pai é
vítima de assassinato. O pai é a vítima direta, mas o filho sofre também o dano (reflexo ou em ricochete).
Obs.: segundo parte da doutrina a expressão “danos indiretos” caracteriza situação diversa. É a hi-
pótese em que a mesma vítima sofre um dano imediato e outros danos indiretos ou sucessivos. Ex.: o
cavalo, comprado por R$ 10.000,00, está doente. Além de comprar animal doente (dano direto), o cavalo
infectou três éguas do comprador (danos indiretos).
Obs.: Parcela da doutrina define ainda o dano bumerangue como aquele em que a vítima, titular do
direito a indenização, reage ilicitamente, causando um indevido dano de retorno ao seu agressor 371. É

371 Em “A função social do dano moral”, página 152, edição de 2009, Ed. Conceito.

471
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

uma inversão de polos: quem é vítima se torna agressor, e vice versa. O sujeito ativo torna-se sujeito pas-
sivo, numa relação de reciprocidade.

2.3.3.2.5. Prazo prescricional para a indenização por danos morais

O prazo prescricional para se pleitear a reparação por danos morais é de três anos (art. 206, § 3º,
V, do CC) ou de cinco anos (art. 27 do CDC), conforme o caso:

Art. 206. Prescreve: (...)

§ 3º Em três anos: (...)

V - a pretensão de reparação civil;

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do pro-
duto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir
do conhecimento do dano e de sua autoria. (...)

2.3.3.2.6. Quantificação do dano moral

Em teoria, há dois sistemas de quantificação do dano moral: sistema do tarifamento legal e sistema
livre ou do arbitramento judicial.

2.3.3.2.6.1. Sistema do tarifamento legal

Inspirado na antiga Lei de Imprensa, o sistema do tarifamento legal propugna que a própria lei es-
tabeleça um tabelamento prévio das indenizações devidas por dano moral.
Esse sistema pretende que a lei previamente tabele a indenização por dano moral. Para Pablo, ain-
da que haja abusos, essa não é a melhor solução, Flávio Tartuce entende que o tabelamento por dano
moral viola a cláusula geral de tutela da pessoa humana, retirada do art. 1.º, inc. III, da CF/1988.
Este sistema já foi considerado inconstitucional pelo STJ, quanto do julgamento do tarifamento re-
alizado pela Lei de Imprensa.

2.3.3.2.6.2. Sistema livre ou do arbitramento judicial

O sistema livre ou do arbitramento judicial, ainda que passível de críticas e merecendo aprimora-
mento é defendido por autores como Ronaldo Andrade e Carlos Alberto Bittar, e consiste na busca do
valor indenizatório (quantum debeatur) através do juízo equânime do magistrado.
Assim, não se admite que o juiz fixe a indenização sem critério algum, uma vez que o sistema não
dá ao juiz completa liberdade.
Nesse sentido, o STJ adota critérios para balizar a atuação do magistrado na averiguação do quan-
tum debeatur:
i. Extensão do dano (Art. 944, caput, CC)
ii. Grau de culpa do agente e contribuição causal da vítima (Art. 944, p.u, e 945 CC).

472
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii. Condições dos envolvidos (sociais; culturais; econômicas; psicológicas do agente e da víti-
ma) – Sem previsão na lei.
iv. Caráter pedagógico, educativo ou até punitivo da indenização (caráter de desestímulo) –
EUA: punitive damages - Sem previsão na lei.
v. Vedação do enriquecimento sem causa da vítima e da ruína do ofensor - Sem previsão na
lei.
Em complemento aos critérios, tem sido utilizado o denominado método bifásico372, pelo qual,
dentro do sistema do arbitramento judicial, o juiz inicialmente busca um valor básico de inde-
nização, tomando como referência casos semelhantes na jurisprudência, extrai uma média,
para, em seguida, majorar ou minorar o valor segundo as peculiaridades do caso concre-
to.
Obs.: Flávio Tartuce entende que o citado modelo bifásico parece trazer um equívoco de redundân-
cia, uma vez que tais elementos acabam entrando tanto no primeiro quanto no segundo momento da
atribuição do quantum, assim em verdade o modelo bifásico é unifásico.

2.3.3.2.7. Dano moral no STJ

No que se refere aos danos morais, deve-se atentar, especialmente, às seguintes Súmulas do STJ:

Súmula 420 - Incabível, em embargos de divergência, discutir o valor de indenização por danos
morais.

Súmula 402 - O contrato de seguro por danos pessoais compreende os danos morais, salvo cláu-
sula expressa de exclusão.

Súmula 388 - A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral.

Súmula 387 - É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.

Súmula 385 - Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização
por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.

Súmula 370 - Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado.

Súmula 362 - A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data
do arbitramento.

Súmula 281 - A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Im-
prensa.

Súmula 227 - A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

Súmula 37 - São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mes-

372 Expressão cunhada pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino na obra “Princípio da reparação integral dos
danos”.

473
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mo fato.

A Súmula 387 do STJ permite a cumulação de danos moral e estético. Uma atriz que tem a face
queimada por um fotógrafo tem de receber pelos danos materiais (gastos com tratamento), morais (cons-
trangimento pelo rosto queimado) e o estético (prejuízo à sua imagem plástica).
Segundo a Súmula 385, negativado o nome do sujeito indevidamente por uma segunda dívida, caso
o nome dele já estivesse sujo por dívida legítima, ele tem o direito de cancelar o segundo registro, mas
não à reparação por dano moral. Pablo não concorda com esse entendimento. Para ele, o dano moral tem
natureza reparatória e punitiva.
Jurisprudencia em teses STJ - Tese 2) “A simples aquisição do produto considerado impróprio para
o consumo, em virtude da presença de corpo estranho, sem que se tenha ingerido o seu conteúdo, não
revela o sofrimento capaz de ensejar indenização por danos morais.”.
Jurisprudencia em teses STJ - Tese 3) “A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em
seu interior corpo estranho, expondo o consumidor a risco concreto de lesão à sua saúde e segurança,
ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofen-
sa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa huma-
na.”.
Finalmente, salienta-se que é possível constatar que em situações de desgastes que geram o esgo-
tamento emocional dos consumidores por culpa exclusiva dos fornecedores, que os forçam a permanecer
longos e constantes perídios para tentar desfazer erros cometidos pelos próprios prestadores de serviço,
como por exemplo em atendimento nas Call Centers, filas de bancos/lotéricas, levar repetidas vezes o
produto para a manutenção, situações estas que se repetem dia após dia, configura apropriação/extorsão
indevida e ilícita do tempo livre, dando ensejo a indenização por danos morais373.

2.3.3.3. Danos estéticos


Conforme leciona Flávio Tartuce, os danos estéticos são tratados atualmente tanto pela doutrina
quanto pela jurisprudência como uma modalidade separada de dano extrapatrimonial, o que está de
acordo com a tendência de reconhecimento dos novos danos, como visto acima.
Assim, o dano estético admite cumulação com eventuais danos emergentes, lucros cessantes, danos
morais (sentimento desagradável que sofreu e pela própria lesão que sofreu à imagem) e, eventualmente,
perda da chance.
Nessa esteira, para o STJ, o dano estético seria a terceira modalidade de dano por duas razões prin-
cipais:

373 (STJ, REsp 1.218.497/MT, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/09/2012,

DJe 17/09/2012).

474
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i. Porque haveria uma lesão a mais à pessoa natural374;


ii. Porque o art. 5º, V da CF dispõe sobre o dano à imagem de forma separada do dano moral.
Segundo a Professora Teresa Ancona Lopes o dano estético é aquele relacionado a uma alteração
morfológica da pessoa natural
Na lição clássica da Maria Helena Diniz o dano estético é aquele que causa um “enfeiamento da
pessoa”
Salienta-se que basta a pessoa ter sofrido uma “transformação” para que o referido dano esteja ca-
racterizado, de modo que não precisa estar necessariamente apararente (dano interno).
Ademais, é possível a elaboração de uma perícia médica, a fim de determinar a extensão do dano
sofrido, e fixando-se a partir daí o quantum indenitário.
Finalmente Flávio Tartuce, citanto o professor Enéas Matos apresenta os seguintes critérios que
devem ser levados em conta na quantificação dos danos estéticos: a) o grau de avaliação do dano estético
pelo médico perito, conforme os parâmetros por último expostos; b) grau de culpa das partes; c) posição
cultural e socioeconômica das partes; d) reincidência do ofensor; e) punição e exemplaridade, se cabível;
e f) independência do valor arbitrado a título de dano moral.

2.3.3.4. Danos morais coletivos


O dano moral coletivo surge como outro candidato dentro da ideia de ampliação dos danos repará-
veis e segundo Flávio Tartuce pode ser denominado como o dano que atinge, ao mesmo tempo, vários
direitos da personalidade, de pessoas determinadas ou determináveis (danos morais somados ou acres-
cidos), que envolvem interesses individuais homogêneos e interesses coletivos em sentido estrito.
O Código de Defesa do Consumidor admite expressamente a reparação dos danos morais coleti-
vos, mencionando-os no seu art. 6.º, VI.
Ex.: Caso das “Pílulas de Farinha”. STJ – Resp. 866.636/SP375 - Foram indenizadas as mulheres
que tomaram a pílula Microvlar sem o composto ativo e engravidaram. Nota-se que há um grupo deter-
minado de pessoas que sofreram o prejuízo.

2.3.3.5. Danos morais sociais

O art. 6º, VI, CDC, há danos morais coletivos e danos sociais ou difusos (cumuláveis). Toda a soci-
edade é atingida.

374Geralmente, o STJ utiliza os mesmos critérios do dano moral, dobrando o valor


375Obs.: Interessante notar que nesse julgado o STJ rejeitou a tese da empresa sobre a “teoria do evento
abençoado” no sentido de que ter filho não causa dano moral, pois se trata de um evento abençoado. Contudo, a
Ministra Nancy disse que, na verdade, o dano moral não é pelo filho, mas sim pela frustração ao planejamento. A
mulher que toma pílula planeja não engravidar. A empresa frustrou esse planejamento.

475
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Envolvem interesses difusos, em que as vítimas são indeterminadas. Por esta razão, a indenização
não vai para as vítimas, mas sim para um fundo de proteção de acordo com o direito lesado ou para uma
instituição de caridade a critério do juiz. Nos danos morais coletivos, a indenização vai para as vítimas.
Estudioso do tema, o Prof. Antônio Junqueira de Azevedo conceitua os danos sociais como
aqueles que causam um rebaixamento no nível de vida da coletividade, e que decorrem de condutas
socialmente reprováveis.

Obs.: Danos morais coletivos X danos morais sociais376:

Danos morais coletivos Danos sociais ou difusos

Atingem vários direitos da personalidade Causam um rebaixamento no nível de vida da


coletividade

Direitos individuais homogêneos ou coletivos em Direitos difusos – vítimas indeterminadas.


sentido estrito – vítimas determinadas ou deter- Toda a sociedade é vítima da conduta.
mináveis.

Indenização é destinada para as próprias vítimas Indenização para um fundo de proteção ou


instituição de caridade

2.3.3.6. Danos por perda de uma chance

A “teoria da perda de uma chance”, de origem francesa, desenvolvida por autores como Sérgio No-
vais Dias e Fernando Gaburri, admitida pelo próprio STJ 377, relativiza o requisito da certeza do dano, na
medida em que admite que a vítima seja indenizada pela perda de uma provável situação ou direito que
lhe seria conferido.
Nesse sentido, responsabiliza o autor de danos que decorrem da frustração de uma expectativa ou
da perda de uma oportunidade, a qual, possivelmente, ocorreria em circunstâncias normais
Vale dizer, a perda de uma chance pode ser indenizável por afastar uma expectativa favorável ao le-
sado (Fernando Gaburri).

376 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio
de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.
377 A teoria da perda de uma chance pode ser utilizada como critério para a apuração de responsabilidade ci-

vil ocasionada por erro médico na hipótese em que o erro tenha reduzido possibilidades concretas e reais de cura de
paciente que venha a falecer em razão da doença tratada de maneira inadequada pelo médico. (REsp 1.254.141-PR,
Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.)

476
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Dano emergente é o dano efetivo sofrido. Lucro cessante é o valor que o sujeito razoavelmente per-
ceberia, se o dano não tivesse ocorrido. Silvio Venosa lembra que, para muitos autores, a perda de uma
chance é uma categoria especial de dano, que não se confunde com o dano emergente (efetivo) e nem
com o lucro cessante, conforme estabelecido no Enunciado 444, V JDC378.
É uma categoria especial, pois se indeniza a vítima por uma expectativa provável de percepção de
uma vantagem, nesse sentido, é necessário que a chance seja séria e real, não ficando adstrita a
percentuais apriorísticos.
Em corrente objetivista, Sérgio Savi leciona que a perda da chance estará caracterizada quando a
probabilidade da oportunidade for superior a 50% (cinquenta por cento).

2.3.3.6.1. Perda de uma chance e a jurisprudência

i. Condenação de advogados que perdem prazos de seus clientes pela perda da chance de vitó-
ria judicial. (STJ, Ag. Reg. no Ag 932.446/RS).
ii. Perda da chance de cura do paciente, pelo emprego de uma técnica malsucedida pelo pro-
fissional da área de saúde (STJ, REsp. 1.254.141/PR).

iii. Investidor indenizado pelo banco que vendeu ações sem sua autorização (REsp
1.540.153/RS):

3. Classificação da responsabilidade quanto à culpa


3.1. Responsabilidade subjetiva

Segundo entendimento majoritário, a reponsabilidade civil subjetiva constitui ainda a regra geral,
pela aplicação da teoria da culpa. O autor da ação tem o ônus de provar a culpa lato sensu do réu.
Quando se fala em culpa lato sensu fala-se em dolo, culpa e culpa stricto sensu.
Para alguns doutrinadores, o CC/02 adotou um sistema dualista, na medida em que convivem res-
ponsabilidade subjetiva e objetiva, sem que a primeira seja a regra. Nesse sentido, Gustavo Tepedino,
Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona, Cláudio Bueno de Godoi e Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery.
Contudo, para concurso, esse entendimento não é adotado.
Quando se tem uma ação de responsabilidade civil, no aspecto processual, ela funciona como uma
“corrida com duas barreiras”. Para que o autor obtenha êxito, é necessária a comprovação da culpa e do
dano. Portanto, regra geral, há dois ônus para o autor: i) comprovar a culpa; e ii) comprovar o dano so-
frido.

Enunciado 444, V JDC: “A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos
378

extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a
natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísti-
cos.”

477
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Quando a responsabilidade for objetiva, não será necessária a comprovação da primeira barreira. O
dano pode ser presumido em algumas situações, hipóteses em que não será necessário comprová-lo.
Mas, em regra, para que o autor da ação de responsabilidade civil obtenha provimento, será necessária a
comprovação da culpa e do dano.

3.2. Responsabilidade objetiva

O século XX foi marcado por profundas mudanças na vida das pessoas. Viver em sociedade é arris-
cado. Percebendo isso, a doutrina francesa passou a entender que a responsabilidade não poderia mais se
basear exclusivamente na culpa. Não seria justo que se imputasse a prova da culpa à vítima nos casos em
que o causador do dano houvesse aumentado o risco da produção do resultado.
O atual sistema de responsabilidade civil, portanto, acompanhando a mutação social e a evolução
jurídica ao longo do século XX, consagrou o sistema de responsabilidade baseada na culpa (subjetiva) e
também a responsabilidade objetiva, baseada no risco.
Não é, entretanto, qualquer atividade de risco que gera a responsabilidade objetiva, pois tudo na
vida envolve algum risco. Haverá responsabilização independentemente de culpa quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo causador do dano (em caráter habitual, segundo o jurista Roger Agui-
ar), por sua natureza, envolve ou cria um risco para os direitos de outrem (ou seja, expõe a vítima a
uma probabilidade de dano maior do que outros membros da coletividade)379.
Se qualquer atividade de risco ensejasse a responsabilização objetiva, o fato de um sujeito guiar seu
carro em determinada rua faria com que essa ação, que gerou risco, transformasse a responsabilidade
dele em objetiva, pelos danos causados em virtude de eventual atropelamento. Isso porque aquela vítima
não está reiteradamente exposta pela atividade de risco do causador do dano.
Diverso é o caso em que a Petrobrás, ao construir seus dutos, exponha a risco uma senhora que re-
side no pé do morro. Não se trata de uma atividade episódica da empresa, mas de uma atividade nor-
malmente desenvolvida que expõe aquela vítima a um risco maior do que outros membros da coletivida-
de. Neste caso, a senhora não será consumidora equiparada.
Vale acrescentar, ainda, lembrando Alvinio Lima (na tese “Da Culpa ao Risco”) que a responsabili-
dade objetiva se justifica no próprio proveito que o agente causador do dano persegue ao criar a situação
de risco. Ou seja, a responsabilidade civil deve ser imposta às pessoas que, com sua atividade reiterada,
incrementam um risco para obter determinado proveito.
Como visto, a responsabilidade civil objetiva constitui exceção no sistema civil brasileiro, segundo
entendimento majoritário.

379 Acerca do tema, ver a obra “Responsabilidade civil e atividade de risco”, de Roger Aguiar.

478
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Representa a aplicação da teoria do risco, gerando responsabilidade civil sem culpa. Assim, nes-
sas hipóteses, o autor da ação não tem o ônus de provar a culpa do réu.
Nessa esteira, segundo Flávio Tartuce380 a responsabilidade objetiva independe de culpa e é funda-
da na teoria do risco, em uma de suas modalidades, sendo as principais:
i. Teoria do risco administrativo: adotada nos casos de responsabilidade objetiva do Estado
(art. 37, § 6.º, da CF/1988).
ii. Teoria do risco criado: está presente nos casos em que o agente cria o risco, decorrente de
outra pessoa ou de uma coisa. Cite-se a previsão do art. 938 do CC, que trata da responsabi-
lidade do ocupante do prédio pelas coisas que dele caírem ou forem lançadas (defenestra-
mento).
iii. Teoria do risco da atividade (ou risco profissional): quando a atividade desempenhada cria
riscos a terceiros, o que pode se enquadrar na segunda parte do art. 927, parágrafo único,
do CC/2002.
iv. Teoria do risco-proveito: é adotada nas situações em que o risco decorre de uma atividade
lucrativa, ou seja, o agente retira um proveito do risco criado, como nos casos envolvendo
os riscos de um produto, relacionados com a responsabilidade objetiva decorrente do Códi-
go de Defesa do Consumidor. Dentro da ideia de risco-proveito estão os riscos de desenvol-
vimento, nos termos do Enunciado n. 43 do CJF/STJ. Exemplificando, deve uma empresa
farmacêutica responder por um novo produto que coloca no mercado e que ainda está em
fase de testes.
v. Teoria do risco integral: nessa hipótese não há excludente de nexo de causalidade ou de
responsabilidade civil a ser alegada, como nos casos de danos ambientais, segundo os auto-
res ambientalistas (art. 14, § 1.º, da Lei 6.938/1981). Anote-se que o entendimento pelo ris-
co integral para os danos ambientais é chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça (ver,
por todos: REsp 1.114.398/PR, 2.ª Seção, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 08.02.2012, DJe
16.02.2012. Publicado no Informativo n. 490 do STJ).
Ademais, o art. 927, parágrafo único, do CC, em termos gerais, prevê essa modalidade de responsa-
bilidade civil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repa-
rá-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano im-
plicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem [atividade de risco].

380 Retirado de Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E

ampl. – Rio de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.

479
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 927, parágrafo único, do CC prevê duas origens para a responsabilidade objetiva: i) a lei e ii)
atividade de risco.

3.2.1. Responsabilidade objetiva decorrente da lei


Um exemplo de lei que trata da responsabilidade objetiva é o CDC, no qual a responsabilidade ob-
jetiva é a regra e a subjetiva é exceção (art. 14, § 4º: responsabilidade objetiva dos fornecedores e presta-
dores de serviço). Pelo CDC, os profissionais liberais respondem mediante culpa (exceção).
Outra importante hipótese prevista em lei é a responsabilidade por danos ambientais, prevista no
art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente). Segundo entendimento majo-
ritário, a legislação ambiental adotou a teoria do risco integral, que não admite excludentes de res-
ponsabilidade civil.
Os principais casos de responsabilidade civil objetiva no CC/02 são o abuso de direito e a respon-
sabilidade civil objetiva indireta (responsabilidade por ato de terceiro), ambos já estudados anteriormen-
te.

3.2.2. Responsabilidade objetiva decorrente de atividade de risco


A atividade de risco traduz aquilo que a doutrina chama de “cláusula geral de responsabilidade ob-
jetiva”. É preciso tomar cuidado com os conceitos de atividade e risco. Atividade é uma soma de atos co-
ordenados, com finalidade específica. Esse conceito é de Tulio Ascarelli. Percebe-se que apenas um ato
isolado não traduz atividade.
Por sua vez, risco é uma iminência de dano ou de prejuízo. É uma situação acima da normalidade,
mas está abaixo do perigo. A lei não exige perigo, mas risco. Contudo, se houver perigo, haverá risco.
Exemplo: para uma fábrica de fogos de artifício, a responsabilidade decorre da lei, tendo em vista a Lei
Ambiental. Não decorre da atividade de risco, pois é hipótese já prevista em lei.
Há uma escala de risco: no primeiro patamar, há uma situação de normalidade; no segundo, situa-
ção de risco; e no patamar mais elevado, a situação de perigo. Nos dois últimos patamares, aplica-se a
responsabilidade civil objetiva do art. 927, parágrafo único, do CC, a teor do Enunciado n. 448 – V Jor-
nada de Direito Civil381.
Os principais exemplos de aplicação da cláusula geral de responsabilidade objetiva no direito brasi-
leiro são os seguintes:
i) acidentes de trabalho em que o empregador submete o empregado a uma atividade de risco (jul-
gado do TST envolvendo “motoboy”):

381 Enunciado n. 448 – V Jornada de Direito Civil: “A regra do art. 927, parágrafo único, segunda parte, do
CC aplica- se sempre que a atividade normalmente desenvolvida, mesmo sem defeito e não essencialmente perigo-
sa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios de avaliação desse
risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência”.

480
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 927, parágrafo único, do CC, mitiga a regra da responsabilidade subjetiva do empregador
(art. 7º, XXVIII, da CR). Este é um exemplo consolidado. É também o que estabelece o Enunciado 377 da
Jornada de Direito Civil.

Enunciado 377 – Art. 927: O art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição Federal não é impedimento
para a aplicação do disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil quando se tratar de
atividade de risco.

ii) polêmica a respeito da aplicação do art. 927, parágrafo único, do CC para ambientes virtuais,
principalmente para sites de relacionamento e redes sociais:
Debate-se se nos ambientes virtuais (principalmente nos sites de relacionamento) haveria ambien-
te de risco para lesão a direitos da personalidade. Há julgados em vários TJ’s entendendo que sim. Con-
tudo, o STJ responde que não, dizendo que a empresa que mantém o site só responde se não retirar o
conteúdo após solicitação da vítima. Isso demonstra que a responsabilidade seria subjetiva, ou seja, de-
ve-se demonstrar a culpa, que a empresa não retirou o conteúdo, mesmo após o pedido da vítima (REsp
118.6616/MG, da lavra da Min. Nancy Andrighi).

4. Causas excludentes da responsabilidade civil


Em geral, as causas excludentes da responsabilidade civil são alegadas pelo réu em defesa, para não
indenizar. Em razão disso, quando há o ajuizamento de uma demanda de responsabilidade, o próprio réu
é que tem de prová-las.

4.1. Estado de necessidade e legítima defesa

Na forma do art. 188, I, primeira parte, e II, do Código Civil, tanto o estado de necessidade como a
legítima defesa excluem a ilicitude do ato e, por consequência, a própria responsabilidade civil:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo


iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o
tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção
do perigo.

Pela letra da lei, portanto, quem atua em estado de necessidade agressivo e legítima defesa não
cometeria ato ilícito. Sucede que, excepcionalmente, nos termos dos arts. 929 e 930 do CC, por “solidari-
edade social” (Gisele Sampaio), se terceiro inocente for atingido, deverá o agente indenizá-lo,
cabendo ação regressiva contra o verdadeiro culpado. É uma hipótese em que o sujeito indeniza mesmo
tendo havido ato lícito:

481
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem cul-
pados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este
terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Ex.: o sujeito colide o carro contra um muro para evitar o atropelamento de uma criança que enga-
tinhava na rua. Ele indenizará o dono da casa que teve o muro afetado e terá ajuizar ação regressiva con-
tra os pais da criança.
O conceito de legítima defesa pode ser retirado do art. 25 do Código Penal 382, in verbis: “entende-se
em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual
ou iminente, a direito seu ou de outrem”
Assim, se atuando em legitima defesa, alguém agride o direito de terceiro, deverá indenizar esse
terceiro, cabendo ação regressiva contra o verdadeiro causador do perigo. O CC/02 é patrimonialista
nesse sentido e as provas de concurso têm considerado a indenização do terceiro como regra.
Um bom exemplo de legítima defesa no direito civil é a legitima defesa da posse (art. 1.210, pará-
grafo 1º, do CC) no âmbito privado.

Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de
esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

§ 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força,
contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável
à manutenção, ou restituição da posse.

Tema importante referente à legítima defesa são as ofendículas. São artifícios utilizados para tutela
e proteção da posse e da propriedade. Exemplo: cerca elétrica, cacos de vidro no muro etc.
Se houver excesso nas ofendículas, estará caracterizado o abuso de direito no exercício da defesa.
Haverá enquadramento no art. 187 do CC (abuso de direito) gerando responsabilidade objetiva.
Questão de concurso: legítima defesa putativa ou aparente não exclui a responsabilidade civil, se-
gundo o STJ383. Cuidado: putare quer dizer crer ou imaginar. Assim, na legitima defesa putativa o agente
imagina estar agindo em legítima defesa, mas essa situação não é verdadeira. Exemplo: sujeito pensa
estar sendo seguido e joga o carro contra o outro para impedi-lo, contudo, não estava sendo seguido, por-
tanto, não há exclusão da responsabilidade civil.

382 A Lei 13.964/19 (pacote anticrime) incluiu o parágrafo único no Art. 25 do CP, com a seguinte redação:
“Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defe-
sa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática
de crimes”. Resta aguardar para verificar se essa mudança terá reflexos significantes no âmbito civil.
383 (REsp 513.891/ RJ, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Terceira Turma, julgado em 20/03/07, DJ

16/04/07).

482
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Outro exemplo de responsabilidade civil por ato lícito, que é plenamente possível, como nas hipó-
teses de legítima defesa putativa ou aparente, é o estado de necessidade agressivo, entretanto, nesses
casos é permitido ao juiz, por arbitramento, fixar uma indenização moderada, e não aquela
“indenização do prejuízo que sofreram” os lesados conforme já decidiu o STJ384.

4.2. Exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever le-


gal

Na mesma linha, quem atua no exercício regular de um direito (art. 188, I, 2ª parte), conceito que
compreende a própria noção de estrito cumprimento do dever legal (Frederico Marques), não comete ato
ilícito e, por consequência, não seria responsabilizado civilmente. O exercício regular do direito é o con-
traponto do abuso do direito.
Não há na lei uma regra sobre estrito cumprimento do dever legal. No Código Civil, art. 188, I, 1ª
parte, há referência apenas ao exercício regular de um direito reconhecido. O que importa é que aquele
que atua dessas formas está protegido por excludente de ilicitude. Não há dever de indenizar.
Exemplos de exercício regular de direito: guarda-volumes de supermercado, porta giratória do
banco. Apesar de causarem desconforto, são permitidos. Claro que, havendo excesso na abordagem, po-
derá haver indenização, pois o exercício do direito deixará de ser regular.
O STJ, julgando o emblemático REsp 164.391/RJ, não acolheu a tese de exercício regular de direi-
to, reconhecendo excesso, no caso em que empregadores prenderam a empregada doméstica no quarto,
suspeita de furto, que se matou.
O simples ajuizamento de demanda não gera dano moral, na medida em que configura exercício
regular de direito (Ag. Rg. no Ag. 1.030.872/RJ). O mesmo com relação ao sujeito que comparece à Dele-
gacia para noticiar crime que sabe que ocorreu (exercício regular de direito). Diversas são as hipóteses do
abuso do direito de ação (ex.: mulher ajuíza ação de investigação de paternidade contra o sujeito sabendo
que não teve relação sexual com ele) e daquele que noticia crime que sabe não ter ocorrido (nesta hipóte-
se, será o caso de abuso de direito e crime).
O policial que faz a revista regular, sem excesso, o oficial de justiça que arromba porta com manda-
do judicial e o funcionário da INFRAERO, no Raio-X, atuam em exercício regular de direito e estrito
cumprimento de dever legal.
Outro exemplo ilustrativo refere-se à inclusão do nome de devedores no rol dos inadimplentes ou
devedores, em cadastros de natureza privada (Serasa e SPC). Por uma questão lógica, a inscrição nos
casos de inadimplência constitui um exercício regular de direito do credor, conforme entendimento unâ-
nime de nossos Tribunais e dicção do art. 43 do CDC.

384 (REsp 1292141, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 04/12/2012, DJe

12/12/12).

483
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Porém, a inscrição indevida em cadastro de inadimplentes é abuso de direito (exercício irregular de


um direito). Com a aplicação do CDC, a responsabilidade é objetiva.
Obs.: Antes da inscrição no cadastro, deve ocorrer a comunicação pelo órgão que o mantém:

Súmula 359 STJ: “Cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação
do devedor antes de proceder à inscrição”.

Obs.: O prazo máximo de manutenção do nome da pessoa no cadastro é de cinco anos:

Súmula 323, STJ: “A inscrição do nome do devedor pode ser mantida nos serviços de proteção
ao crédito até o prazo máximo de cinco anos, independentemente da prescrição da execução”.

Obs.: Se a pessoa já teve o nome inscrito (ou tem) não pode pleitear indenização por danos morais.

Súmula 385, STJ: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indeni-
zação por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancela-
mento”385.

4.3. Excludentes do nexo de causalidade

4.3.1. Caso fortuito e força maior

4.3.1.1. Noções gerais


Existe acesa divergência doutrinária a respeito dos conceitos de caso fortuito e força maior, como é
possível observar se comparadas as obras de Maria Helena Diniz, Álvaro Villaça Azevedo e Silvio Rodri-
gues (Maria Helena Diniz tem uma opinião, Villaça tem opinião contrária e Silvio Rodrigues equipara as
figuras).
Força maior relaciona-se a fatos da natureza. Exemplo de caso fortuito é o do sujeito que falta ao
trabalho por ter sido sequestrado.
O CC/2002 adotou postura de neutralidade jurídica (uma dicção neutra), razão pela qual a juris-
prudência brasileira, em geral, utiliza as expressões indistintamente. O próprio Código Civil, no parágra-
fo único do art. 393, apesar de prever as excludentes, não cuida de se intrometer na divergência doutri-
nária a respeito dos conceitos:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos

385 “O entendimento da Súmula n. 385/STJ é aplicável às ações opostas em face do suposto credor que efe-
tivou a inscrição irregular” (Jurisprudência em Teses – Ed. n. 59 – Tese n. 8).

484
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

não era possível evitar ou impedir.

Em regra, o devedor não responde por caso fortuito ou de força maior, salvo previsão contratual
(como é o caso das seguradoras).
Existem seis correntes que diferenciam as figuras. Todavia, aqui serão tratadas as duas correntes
principais:
1ª corrente (Pontes de Miranda): os conceitos são sinônimos, ou seja, são o evento não pre-
visto pelas partes.
2ª corrente (Orlando Gomes): esta corrente é seguida por Sérgio Cavalieri, Pablo Stolze,
Rodolfo Pamplona e Flávio Tartuce. Caso fortuito é o evento totalmente imprevisível, ao passo que
a força maior é o evento previsível, mas inevitável.
Para os autores que adotam a segunda corrente, o caso fortuito é mais do que a força maior, pois
evento totalmente imprevisível.
O caso fortuito e a força maior devem ser analisados caso a caso.
Ademais, na lição de Flávio Tartuce, é preciso verificar se o evento correlato tem ou não relação
com o risco do empreendimento ou risco-proveito, ou seja, com a atividade desenvolvida pelo suposto
responsável, de modo a ser imperioso constatar se o fato entra ou não no chamado risco de negócio
(eventos internos e externos), o que remonta à antiga e clássica conceituação feita por Agostinho Al-
vim386.

4.3.1.2. Fortuito interno e fortuito externo


O que são fortuito interno e fortuito externo? A palavra “fortuito”, aqui, é usada em sentido genéri-
co. Autores como Carlos Roberto Gonçalves e Cavalieri Filho reconhecem a distinção, especialmente nas
relações de consumo.

4.3.1.2.1. Fortuito interno

O fortuito interno integra a própria elaboração do produto ou execução do serviço, não eximindo a
responsabilidade do fornecedor.
Ex.: um pequeno abalo sísmico ocorrido no Brasil prejudica a elaboração de uma peça automotiva,
causando dano ao consumidor. Neste caso, a responsabilidade da empresa não está afastada, pois esse
fortuito integrou a fabricação do produto. É obrigação da indústria ter um controle de qualidade dos bens
que coloca no mercado.
É por conta disso que, na prática, se observam diversos recall’s, mesmo sem culpa da empresa.

4.3.1.2.2. Fortuito externo

386 “A força maior, portanto, é o fato externo que não se liga à pessoa ou à empresa por nenhum laço de cone-

xidade. Enquanto o caso fortuito propriamente traduz a hipótese em que existe aquele nexo de causalidade”.

485
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O fortuito externo, por sua vez, é alheio à própria atividade do fornecedor, rompendo o nexo causal
e, segundo boa doutrina, a própria responsabilidade civil.
Ex.: a Companhia Aérea não poderá ser responsabilizada pelo atraso no voo decorrente de más
condições climáticas, por se tratar de fortuito externo, que rompe o nexo causal e, por consequência, a
responsabilidade civil.
Há consumeiristas radicais, que não afastam responsabilidade do fornecedor em hipótese alguma.
Pablo não concorda com essa posição.
O STJ já pacificou, por sua Segunda Seção, que o assalto em interior de ônibus é fortuito externo à
atividade da transportadora, de maneira que a sua responsabilidade civil é afastada (Ag. Rg. no REsp
620.259/MG). Alguns tribunais inferiores têm, no entanto, precedentes entendendo que a empresa po-
derá ser responsabilizada em determinadas situações, como aquela em que o assalto é tão constante na
linha que se torna quase que previsível (TJRJ). Pablo não concorda com esse julgado, entendendo que,
mesmo havendo habitualidade no assalto, a segurança pública é atribuição do poder público, e a empresa
de ônibus não tem liberdade para cancelar determinada linha.

4.3.1.2.3. Jurisprudência do STJ acerca do tema

A jurisprudência do STJ também tem dividido os eventos em internos e externos. Como dito, os in-
ternos são aqueles que têm relação com o risco do negócio ou risco do empreendido e, portanto, não são
excludentes de responsabilidade. Já os eventos externos são aqueles que não têm relação com o risco do
negócio ou do empreendimento. Sendo assim, são excludentes da responsabilidade. Isso tudo surgiu
porque o CDC não previu o caso fortuito e a força maior como excludentes de responsabilidade do forne-
cedor, e o STJ generalizou a questão.
Exemplo 1: como visto, o STJ diz que o assalto a ônibus é um evento externo. Portanto, enquadrá-
vel como caso fortuito ou força maior. A empresa de ônibus não responde, pois o assalto não tem relação
com o risco do negócio (REsp 783.743/RJ). Flávio Tartuce entende que, nesse caso, é o Estado que deve
responder. Todavia, há parte da doutrina administrativista que defende ser essa responsabilidade subje-
tiva, ou seja, ser necessária a demonstração de culpa. É uma contradição, pois em estabelecimentos pri-
vados, caso ocorra um assalto, a responsabilidade é objetiva. A esse respeito, ver o Informativo 370 STJ.
Exemplo 2: no caso de assalto a banco, o evento é interno, pois o risco é inerente ao negócio ou
empreendimento, então o banco responde até o estacionamento, conveniado ou não (REsp
1.284.962/MG).
Exemplo 3: assalto a shopping é um caso complicado, limítrofe. Segundo o STJ, é um evento inter-
no, de modo que há responsabilidade (REsp 1.269.961/PB). O STJ entende que é dever do estabeleci-
mento manter a segurança, até o seu estacionamento. Todavia, esse entendimento não é pacífico.

486
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo 4: ataque de psicopata a shopping (caso Matheus da Costa Meira, que metralhou um ci-
nema no shopping Morumbi): o STJ (REsp 1164889 / SP), reformando decisão do TJ/SP, entendeu que
se trata de evento externo, ou seja, que a responsabilidade não poderia ser atribuída ao shopping.
Exemplo 5: Súmula 479, STJ: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos
gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações
bancárias”

4.3.2. Culpa exclusiva da vítima


A culpa exclusiva da vítima também pode romper o nexo jurídico de causalidade e, por consequên-
cia, afastar a responsabilidade civil. Trata-se de uma das mais fortes causas excludentes, que deve ser
provada em juízo (REsp 439.408/SP), com aplicação inclusive no direito administrativo e do consumi-
dor.
Essa causa excludente pode, inclusive, afastar a responsabilidade objetiva, a depender do caso. Isso
porque ela não afasta a culpa, propriamente, mas a ilicitude ou o nexo causal, conforme a hipótese.
Além das excludentes de nexo de causalidade, existem fatores atenuantes do nexo que geram redu-
ção do quantum indenizatório:
i) culpa concorrente da vítima:
A culpa (fato ou até mesmo o risco) concorrente da vítima (contribuição causal), enquanto causa
que implica redução da indenização, está prevista no art. 945 do CC:

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização se-
rá fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano
[aplica-se para responsabilidade subjetiva e objetiva].

Aqui, a indenização é atenuada porque ambas as partes têm responsabilidade.


ii) desproporção entre a extensão do dano e o grau de culpa do agente:
O art. 944, caput, do CC prevê que a indenização será fixada de acordo com a extensão do dano:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. (...)

Portanto, se o agente agiu com dolo ou culpa grave, aplica-se a reparação integral dos danos. Signi-
fica dizer que todos os prejuízos suportados pela vítima serão indenizados (é a máxima romana de que a
culpa grave equivale ao dolo).
De outro lado, se houver culpa leve ou levíssima do agente, a indenização será reduzida por equi-
dade:

Art. 944 (...) Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o
dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

A diminuição do quantum indenizatório vale apenas para a responsabilidade subjetiva ou vale


também para a responsabilidade objetiva? Ou seja, o art. 945 do CC também se aplica à responsabilidade

487
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

objetiva? O Enunciado 46 da I Jornada de Direito Civil previa na sua redação original que não. Porém, o
Enunciado 380, da IV Jornada de Direito Civil prevê o contrário, afirmando que o art. 945 do CC tam-
bém tem aplicação para a hipótese de responsabilidade objetiva:

Enunciado 46 – Art. 944: A possibilidade de redução do montante da indenização em face do


grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve
ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral
do dano[,] não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva. (Alterado pelo Enunciado
380 – IV Jornada)

Enunciado 380 – Art. 944: Atribui-se nova redação ao Enunciado n. 46 da I Jornada de Direito
Civil, pela supressão da parte final: não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva.

Atenção! A lei, a doutrina e a jurisprudência admitem o fato ou culpa concorrente da vítima como
atenuante da responsabilidade objetiva.
As excludentes de nexo da causalidade são válidas para as duas modalidades de responsabilidade.
Assim, por que a culpa concorrente não valeria para também atenuar a responsabilidade objetiva?
Exemplo: o art. 738, parágrafo único, do CC determina que a responsabilidade no transporte de pessoas é
objetiva. Contudo, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização, caso haja concorrência da vítima
para o dano:

Art. 738 (...) Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à
transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá equitativamente a indeni-
zação, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.

É um caso de atenuação da responsabilidade objetiva do transportador. É o caso envolvendo “pin-


gente de trem”, pessoa que viaja pendurada do lado de fora do vagão do trem (REsp 226.348/SP):
A jurisprudência do STJ reduz a indenização por culpa concorrente do consumidor. Lembre que no
CDC a responsabilidade é objetiva (Ex.: REsp 287.849/SP, que trata do caso do escorregador da piscina
de hotel que não sinaliza a profundidade).
No caso da concorrência, a indenização é reduzida, podendo as culpas até se compensar. Ex.: mo-
toqueiro tem danos mais graves em atropelamento, por estar sem capacete. Haverá concorrência de cul-
pas, ainda que não se compensem.

4.3.3. Fato de terceiro


Rompendo o nexo jurídico de causalidade, o fato de terceiro também poderá afastar a responsabi-
lidade civil.
Esta é a categoria mais complicada. Venosa entende que não se trata de uma categoria legal. Nor-
malmente, os juízes até a invocam, mas afastam a responsabilidade por equidade. Ex.: o sujeito, em peça

488
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

de teatro, dispara arma contra o outro ator, imaginando tratar-se de bala de festim, sendo que a bala era
normal. O ator, demandado, embora tenha sido o agente físico do dano, não será o agente jurídico causa-
dor do resultado, mas aquele que colocou a bala verdadeira.
A Empresa Gol, em tese, poderia alegar fato de terceiro, afirmando que estava na rota perfeita dela,
quando o jato Legacy, não se sabe se por culpa dele ou dos agentes de monitoramento aéreo, bate a ponta
da asa, que corta a asa de seu avião. “Em tese”, pois a Súmula 187 do STF impede que o transportador,
em caso de acidente com passageiro, alegue fato de terceiro:

Súmula 187 - A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DO TRANSPORTADOR, PELO ACI-


DENTE COM O PASSAGEIRO, NÃO É ELIDIDA POR CULPA DE TERCEIRO, CONTRA O
QUAL TEM AÇÃO REGRESSIVA.

Vale dizer, a empresa indenizará o passageiro, sem prejuízo de uma eventual ação de regresso con-
tra causador do dano.
Imagine um engavetamento, em que “C” colide com “B”, que, arremessado para frente, colide com
“A”. “B”, demandado por “A”, alegará fato de terceiro (batida de “C”). Costuma-se chamar essa alegação
de fato de terceiro de “teoria do corpo neutro”. “B” funcionaria como a bola branca no bilhar, um corpo
neutro. Nessa linha de raciocínio, “A” deve demandar “C”, que é o responsável. Pablo já viu autores di-
zendo que “A” poderia demandar “B”, que teria ação regressiva contra “C”, mas considera esse entendi-
mento absurdo. “B” foi vítima, funcionou como corpo neutro, um mero projétil. Não se trata de estado de
necessidade ou legítima defesa, em que o agente indeniza e ajuíza ação de regresso, mas de fato de tercei-
ro (“B” não atua voluntariamente, desviando o veículo, atingindo o inocente, hipótese em que se trataria
de estado de necessidade). Não é justo que o sujeito, arremessado como uma bola de boliche, tenha de
responder pelo ato involuntário.
O STJ, julgando o REsp 54.444/SP, entendeu justamente que não há responsabilidade, por aplica-
ção da teoria do fato de terceiro ou do corpo neutro, daquele condutor que, arremessado como um projé-
til, involuntariamente atinge outrem.

4.4. Responsabilidade pressuposta

Giselda Hironaka possui obra intitulada “Responsabilidade Pressuposta”, em que defende posição
ousada. Buscando inspiração na obra de Shanks, sustenta que quando alguém realiza um comportamen-
to que causa dano a outrem, deverá indenizar sempre.
Para a autora, o sistema de responsabilidade deve ser preventivo de danos. Realizando dano injus-
to, a vítima deve ser indenizada e o causador se voltar contra o eventual culpado. A tese coloca a vítima
em primeiro plano. Inverte o sistema, dizendo que o dano não autorizado à vitima deverá ser indenizado,
independentemente de excludentes.
Portanto, segundo a tese da professora Giselda Hironaka, estabelecido o nexo de causalidade, sem
que se admitam causas excludentes, se o agente causa um dano não autorizado à vítima, deverá indenizá-

489
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

la, cabendo-lhe, apenas, eventual e futura ação de regresso. É como se a responsabilidade de todo agente
causador de dano estivesse já pressuposta no próprio ordenamento jurídico.
Essa tese vai além até da responsabilidade objetiva, que possui pressupostos, como visto. Perceba
que não é uma teoria adotada.

5. Responsabilidade pelo fato da coisa e do animal


Anteriormente, foi estudado que a responsabilidade civil é oriunda sempre de manifestação huma-
na. Se um animal causa um dano, sempre haverá uma pessoa causadora do fato. Hoje, as pessoas vivem
numa sociedade em que as coisas e os animais, como nunca, incrementam o risco. Mas sempre haverá
um homem por trás deles.
Quem é o responsável pelo fato da coisa e do animal? Embora o proprietário esteja em primeiro
plano, a responsabilidade não será sempre dele. Com efeito, em regra, a responsabilidade civil pelo fato
do animal ou da coisa é do seu proprietário. Todavia, situações há, na lei brasileira, em que não apenas o
proprietário é responsável. Por isso, sob influência do direito francês, é melhor dizer que a responsabili-
dade recai sobre a pessoa que detenha poder de comando sobre a coisa ou o animal (seu guardião).
O proprietário é o guardião presuntivo, mas há situações em que nem sempre o proprietário será o
responsável. A ideia geral é de que a responsabilidade será do guardião, que é a pessoa que tem poder de
comando da coisa ou do animal.

5.1. Responsabilidade pelo fato do animal

No Código Civil, a responsabilidade pelo fato do animal está prevista no art. 936, e é uma hipótese
de responsabilidade objetiva:

Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa
da vítima ou força maior.

É de se notar que o Código Civil de 2002 traz somente duas excludentes do dever de indenizar
(culpa exclusiva da vítima e força maior), entretanto, Flávio Tartuce entende ser também excludente o
caso fortuito (evento totalmente imprevisível) que é mais do que a força maior (evento previsível, mas
inevitável), obstando ou rompendo com o nexo de causalidade.
O CC/16 não era assim. Ele abria a possibilidade de discussão de culpa em se tratando de fato do
animal (máximo cuidado na guarda). Deve-se atentar para o fato de que situações ocorridas até janeiro
de 2003 serão disciplinadas pela legislação anterior.
No CC/02, não há espaço para a discussão acerca da culpa in vigilando. Não há que se discutir se
teria ou não havido culpa do proprietário ou do detentor na guarda de animal. Ex.: o proprietário trans-
fere o poder de comando do “Pit Bull” para o responsável pela empresa especializada em adestramento.
Se, naquele período, o animal morde alguém, a responsabilidade passa a ser da empresa, e não do pro-
prietário.
490
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O dono de imóvel com cão de guarda não responderá, em razão da culpa exclusiva da vítima, se ela
ingressa de forma não autorizada em local com muros altos e sinalização e é atacada. Situação diversa é
aquela do proprietário que mantém cachorros agressivos, com muro baixo e sem sinalização. Nesse caso,
responderá objetivamente.
Leciona Flávio Tartuce ser possível aplicar a responsabilidade objetiva do Código de Defesa do
Consumidor para acidentes causados por animais, em diálogo das fontes com o Código Civil
Nesse sentido, já decidiu o STJ pela responsabilidade subjetiva do Estado de omissão na fiscaliza-
ção e sinalização de rodovia federal em caso de acidente causado por animal na pista, (REsp
438.831/RS). Ex.: local com animais silvestres e/ou muita passagem de gado. Mas, caso a rodovia seja
pedagiada (privatizada), a responsabilidade da concessionária é objetiva, com base no CDC (REsp
647.710/RJ). Como outra ilustração, o Tribunal Superior desenvolveu o raciocínio de incidência do CDC
para responsabilizar objetiva e solidariamente o shopping center e o circo, pelo trágico acidente ocorrido
nas dependências do último, instaladas no estacionamento do primeiro. No evento danoso, leões do Cir-
co Vostok vitimaram uma criança, sendo a demanda proposta por seus pais, justamente indenizados na
espécie (STJ, REsp 1100571/PE, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07.04.2011, DJe
18.08.2011).

5.2. Responsabilidade pelo fato da coisa

No Código Civil, a responsabilidade pelo fato da coisa envolve duas modalidades de responsabili-
dade: i) pela ruína de edifícios ou construções (art. 937); e ii) por objetos lançados ou caídos (art. 938).

5.2.1. Responsabilidade pela ruína de edifícios ou construções

Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se
esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.

A responsabilidade pela ruína de edifícios ou construções deve ser estudada em conjunto com o art.
618 do CC (responsabilidade dos construtores):

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o em-
preiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela so-
lidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. (...)

O art. 937 cuida da responsabilidade do dono do edifício pela ruína do edifício; o art. 618 estuda a
responsabilidade da construtora (pois, às vezes, a ruína se dá pela má construção da obra).
Pablo filia-se à corrente doutrinária segundo a qual a responsabilidade pela ruína de edifícios ou
construções é do dono e objetiva. Não cabe provar que ele fez as obras ou reparos necessários. Se o
dano ocorreu, é porque o reparo devido não foi feito. Ainda que haja a responsabilidade do construtor, o
dono deverá indenizar e ajuizar demanda regressiva contra aquele. Note que a responsabilidade é do do-
no, ainda que a posse direta seja do locatário ou do comodatário.

491
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce leciona que na grande maioria das situações que envolvem a queda de edifício será
aplicada responsabilidade objetiva da Lei 8.078/1990. Os proprietários do edifício podem ser considera-
dos consumidores diretos; enquanto que moradores e outras vítimas do evento de consumo serão con-
sumidores indiretos, por equiparação ou bystander (art. 17 do CDC).

5.2.2. Responsabilidade por objetos lançados ou caídos (defenestramento)

Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coi-
sas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.

A responsabilidade prevista no art. 938 do CC não é caso de ruína, mas de objeto lançado ou caído
do prédio.
Aqui, não há divergência: a responsabilidade é objetiva diante de um risco criado e não admite
aplicação do CDC. Não se discute culpa (não precisa haver prova da culpa daquele que habita prédio ou
parte dele). A demanda que a vítima ajuíza, neste caso, é chamada de actio de efusis et dejectis.
A responsabilidade pelo projétil lançado ou caído é do dono da unidade autônoma de onde caiu. A
dicção do CC/02 é genérica. É quase uma regra de imputação, não de causalidade. Fala naquele “que
habitar”. Poderá se tratar de proprietário, locatário, comodatário etc. Também não importa quem lançou
o projétil: responde aquele que habita. Mesmo que o convidado lance o projétil, a regra não muda (sem
prejuízo da possibilidade de ação de regresso).
Segundo a teoria da causalidade alternativa, caso não se identifique a unidade de onde partiu o
projétil, a responsabilidade é de todo o condomínio, ressalvadas, logicamente, as fachadas ou os blocos
de onde seria impossível o arremesso. Isso para evitar que a vítima fique irressarcida. Para aquela teoria,
alternativamente, de qualquer das unidades poderia ter partido o projétil.
Em resumo, se a coisa cair de um condomínio edilício, não sendo possível identificar de qual uni-
dade, responderá todo o condomínio em pulverização dos danos na sociedade nas palavras de Silvio Ve-
nosa, assegurado o direito de regresso contra o culpado387.

6. Responsabilidade por ato de terceiro


6.1. Noções gerais

As hipóteses de responsabilidade por ato de terceiro estão previstas no art. 932 do Código Civil. O
pai tem responsabilidade objetiva por ato culposo do filho; o dono de hotel tem responsabilidade objetiva
em relação aos atos culposos dos hóspedes. Segundo Álvaro Vilaça Azevedo, há aqui uma responsabilida-
de objetiva impura, pois a pessoa responde objetivamente pelo ato culposo da outra pessoa. Não é neces-

387 Enunciado n. 557 – VI Jornada de Direito Civil e REsp 64682/RJ, Relator Ministro BUENO DE SOUZA,

Quarta Turma, julgado em 10/11/1998, DJ 29/03/1999.

492
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sário comprovar a culpa dos primeiros (pais, hotel, escola, empregador), bastando a comprovação da
culpa dos últimos.
Assim, os primeiros elencados respondem objetivamente, desde que comprovadas as culpas
dos segundos
Em virtude do quanto disposto no art. 933, elas consagram a responsabilidade objetiva, afastando
as antigas presunções de culpa. São situações que, no sistema do CC/16, eram baseadas em presunção de
culpa (in vigilando ou in elegendo, ou seja, culpa presumida na vigilância ou na escolha). Como bem
aponta Alvino Lima, a culpa presumida gerava responsabilidade subjetiva no CC/16 (arts. 1.521 e 1.522).
Ex.: o pai responderia por conta de presunção de que vigiara mal o filho; o empregador por ter presumi-
damente escolhido mal o empregado:

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja
culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

Como dito, essas presunções desapareceram com o CC/02. As hipóteses de responsabilidade pe-
lo fato de terceiro foram objetivadas, nos termos do art. 933, a teor do Enunciado 451, V JDC388.

Ex.: Vitor, motorista particular de “A”, guiando o carro dele, colide com o carro de “B”, vítima, titu-
lar de direito de indenização. “B” pode demandar diretamente Vitor, mas isso não ocorre normalmente,
pois quem tem o dinheiro é o patrão. O empregador responde objetivamente, não podendo se defender
alegando que não teve culpa na escolha do empregado. Todavia, pode o empregador, na contestação,
dizer que o empregado não teve culpa no evento danoso.
Assim, merece revisão crítica a Súmula 341 do STF que estabelece ser presumida a culpa do patrão
ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.
Súmula 341 - É PRESUMIDA A CULPA DO PATRÃO OU COMITENTE PELO ATO CULPOSO DO
EMPREGADO OU PREPOSTO.
A responsabilidade do patrão pelo ato culposo do empregado é objetiva. Conjugando o art. 932, III,
com o art. 933 do CC, essa Súmula deve ser tida como cancelada, apesar de ainda não tê-lo efetivamente
sido pelo STF.
O representante responde objetivamente pelo ato do representado, mas isso não quer dizer que na
relação externa não se possa apurar a ausência de culpa do representado no acidente. O pai pode alegar
que o filho não teve culpa no fato ilícito.
Ademais, paga a dívida pelo empregador, ele tem ação regressiva contra o empregado. Todavia, ca-
so se trate do pai ressarcindo o dano causado pelo filho, não cabe ação de regresso. O direito de regresso,
na responsabilidade por ato de terceiro, existe, nos termos e nas condições do art. 934:

388 Enunciado 451, V JDC: “A responsabilidade civil por ato de terceiro funda-se na responsabilidade objetiva

ou independente de culpa, estando superado o modelo de culpa presumida”.

493
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daque-
le por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente
incapaz.

Em razão do que dispõe o dispositivo, o ascendente não tem direito de regresso contra o descen-
dente incapaz. Quando o CC/02 foi elaborado, entendia-se que isso seria um absurdo. Atualmente, há
uma tendência de modificação desse entendimento, principalmente com as ações de descendente contra
ascendente por abandono afetivo.
Ressalta-se que os casos do artigo 932, analisados abaixo são de responsabilidade solidária,
em regra, onde há opção de demanda, ou seja, a vítima escolhe contra quem promove a ação. Exce-
ção: CC, art. 928, que trata da responsabilidade civil do incapaz, que é subsidiária389 e excepcional, de
mod que ele só responde:
i. Se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo; ou
ii. Se essas pessoas não dispuserem dos meios suficientes.
Frisa-se ainda que eventual a indenização tem que ser equitativa para proteger o patrimônio míni-
mo do incapaz e de seus dependentes, conforme Enunciado 39 da I JDC.390

6.2. Hipóteses de responsabilidade objetiva por fato de terceiro


Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do


trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro,


mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quan-
tia.

6.2.1. Responsabilidade dos pais, tutores e curadores

389 (REsp 1319626/MG, Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 26/02/2013,

DJe 05/03/2013).
390 Enunciado n. 39 – I Jornada de Direito Civil: “A impossibilidade de privação do necessário à pessoa, pre-

vista no art. 928, traduz um dever de indenização equitativa, informado pelo princípio constitucional da proteção à
dignidade da pessoa humana. Como consequência, também os pais, tutores e curadores serão beneficiados pelo
limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem ao patrimônio do incapaz se dará não quando
esgotados todos os recursos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessário à manutenção de sua
dignidade.”.

494
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nos termos do art. 932, I e II, do CC, os pais respondem pelos filhos menores que estiverem sob
sua autoridade e em sua companhia, assim como o tutor e o curador, pelos atos dos pupilos e curatela-
dos, que se acharem nas mesmas condições.
Mutatis mutandis, tudo o quanto for dito acerca da hipótese do inciso I servirá para a do inciso II.
Neste ponto, a matéria sofreu uma reviravolta. O CC/16, em seu art. 156, equiparava os menores re-
lativamente incapazes aos maiores, pelos ilícitos praticados, considerando, por outro lado, o absoluta-
mente incapaz inimputável, o que levantou críticas da doutrina (Silvio Rodrigues, José de Aguiar Dias):

Art. 156. O menor, entre dezesseis e vinte e um anos, equipara-se ao maior quanto às obrigações
resultantes de atos ilícitos, em que for culpado.

À luz do CC/16, se o filho com 17 anos causasse acidente, em racha, ele responderia solidariamente
com o pai pelo dano. Se o absolutamente incapaz (que era sinônimo de inimputável) causasse dano vul-
toso, ele não responderia. Isso gerava situação injusta, pois o filho, aos 15 anos, mesmo que tivesse pa-
trimônio muito maior que o do pai, não responderia. Somente responderia o responsável, ainda que po-
bre.
O CC/02, no art. 932, I e II, cumulado com o art. 928, revolucionou o tratamento da matéria, ao
admitir a responsabilidade, ainda que subsidiária, do relativa ou absolutamente incapaz:

Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não
tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. (...)

Veja que o fato de se tratar de responsabilidade subsidiária não significa que o sistema anterior, de
responsabilidade solidária, era melhor. A responsabilidade subsidiária nada mais é que uma responsabi-
lidade solidária com preferência.
Exemplo de hipótese do art. 928, em que os pais não têm obrigação de reparar o dano, é o caso da
medida socioeducativa aplicada pelo juiz consistente na obrigação de reparar o dano. Não faz sentido que
se obrigue os pais a fazê-lo, uma vez que se trata de medida aplicada contra o adolescente.
Nos termos do art. 928, parágrafo único, do CC, não poderá a indenização privar o incapaz do seu
sustento:

Art. 928 (...) Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não
terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

Cumpre ressaltar que o art. 932, I, determina que os pais seriam responsáveis somente pelos filhos
menores que estivessem sob sua autoridade e em sua companhia. Assim, segundo Pablo, interpretação
literal do dispositivo conduziria à ideia de afastar a responsabilidade do pai que não detivesse a guarda e,
por consequência, não tivesse a criança ou o adolescente em sua companhia, havendo decisão do STJ
nesse sentido o REsp n. 1.232.011/SC de lavra da 3ª Turma, corrente que encontra guarida na doutrina
de José Fernando Simão e Flávio Tartuce.

495
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Todavia, julgando o REsp n. 1.436.401/MG a 4ª Turma) do STJ entendeu que a responsabilidade


pode ser de ambos, uma vez que o dever de orientação (o dever de educar) recairá tanto no pai como na
mãe.
Conforme determina o art. 1.583, § 3º, do CC, a companhia está umbilicalmente ligada à guarda.
Entretanto, o dispositivo prevê o dever de supervisão do filho, mesmo do pai que não detém a guarda
unilateral:

Art. 1.583 (...) § 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar
os interesses dos filhos. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).

Esse é também o entendimento majoritário da doutrina, conforme Enunciado 450 da V JDC391.


Finalmente, ressalta-se que a única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do
menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado voluntariamente, conforme Enunciado n. 41 – I
Jornada de Direito Civil.

6.2.2. Responsabilidade do empregador ou comitente


Nos termos do art. 932, III, do CC, o empregador e o comitente (contrato de comissão) respondem
por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm realizado uma interpretação extensiva do dispositi-
vo, levando-se em conta a relação de pressuposição. Tem-se ampliado o art. 932, III para muito além de
relação de emprego, abrangendo as relações de confiança.
O dispositivo abarca inclusive a hipótese do empregado que leva o carro da empresa para casa e, no
trajeto para o trabalho, causa um dano. Se, ao invés de ir para o trabalho, o empregado estivesse indo
para o jogo do Palmeiras, pela letra do dispositivo, o empregador não responderia. Todavia, o STJ enten-
de que o empregador ainda assim responderá, pois o proprietário responde pelo acidente causado pela
pessoa a quem ele permitir a condução do seu automóvel. Ou seja, de um modo ou de outro, o emprega-
dor responderá.
Outros exemplos: o comodante responde pelo comodatário no acidente de veículo, diante da rela-
ção de confiança392, a responsabilidade objetiva do hospital pelo ato culposo praticado pelo médico in-
tegrante do seu corpo clínico (caso o médico não seja integrante do corpo médico, não haverá responsa-

391 Enunciado n. 450, V JDC: “Considerando que a responsabilidade dos pais pelos atos danosos praticados

pelos filhos menores é objetiva, e não por culpa presumida, ambos os genitores, no exercício do poder familiar, são,
em regra, solidariamente responsáveis por tais atos, ainda que estejam separados, ressalvado o direito de regresso
em caso de culpa exclusiva de um dos genitores”.
392 "(...)O proprietário do veículo que o empresta a terceiros responde solidariamente pelos danos decorren-

tes de sua utilização. Precedentes" (STJ, Ag. Rg. no Ag 823.567/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI,
QUARTA TURMA, julgado em 22/09/2015, DJe 01/10/2015).

496
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

bilidade do hospital, conforme decidido pelo STJ393). Cuidado, pois essa questão do hospital é pegadinha
de concursos e finalmente interessante observar o teor da Súmula 492 do STF:

Súmula 492 STF: “A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o loca-
tário, pelos danos por este causados a terceiro, no uso do carro locado”.

6.2.3. Responsabilidade dos donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos


Segundo o que determina o art. 932, IV, do CC, respondem os donos de hotéis, hospedarias, casas
ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes,
moradores e educandos.
Embora a norma não seja tão clara, a escola está incluída na regra.
Pela letra do CC/02, o dono do hotel, motel e hospedaria responde pelo ato de seu hóspede. José de
Aguiar Dias, em sua obra, coloca que a responsabilidade do hoteleiro, nesse caso, justifica-se por conta
da existência de uma cláusula geral de segurança (o hotel seria uma extensão da casa das pessoas). Por
essa razão que, quando o hóspede começa a se embriagar no bar do hotel, o barman para de vender be-
bida a ele.
Além disso, os donos das escolas respondem pelos atos de seus educandos menores. No momento
em que o pai entrega o filho à direção da escola, ele transfere a ela o poder de comando de seu filho. Se o
filho causa um dano a outra criança (a terceiro), o dono da escola responde. Essa regra não faz sentido
em se tratando de alunos maiores, numa faculdade, por exemplo. A faculdade pode ser responsabilizada
em decorrência das normas do CDC, mas não pelo art. 932, IV.
O dono da escola tem responsabilidade mais aguçada porque ele funciona, naquele momento, co-
mo se fosse pai. Evidentemente que, em se tratando de escola pública, o responsável será o Poder Públi-
co.
O bullying traduz uma forma de constrangimento psicológico, físico e moral que tem como princi-
pal vítima o educando, podendo em tese, justificar a responsabilidade civil do dono da escola por omis-
são fiscalizatória e, eventualmente, dos próprios pais. Há projeto de lei do Senado incluindo a responsa-
bilidade das escolas de evitar essa prática.

6.2.4. Responsabilidade daqueles que participam do produto do crime


Segundo o art. 932, V, do CC, respondem os que gratuitamente houverem participado nos produtos
do crime, até a concorrente quantia.
Lembram Barros Monteiro e Rui Stocco que o dispositivo, em verdade, nada mais faz que consa-
grar uma regra para a devolução da coisa, evitando o enriquecimento ilícito. Ele não tem a ver com as
hipóteses previstas nos incisos I a IV, que tratam da responsabilidade do representante pelos atos do

393 Enunciado n. 191 – III Jornada de Direito Civil e REsp n. 1.145.728/MG.

497
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

representado. O dispositivo não deveria estar no rol de hipóteses de responsabilidade por fato de tercei-
ro, por se tratar de uma regra geral.

7.Responsabilidade civil do transportador


7.1. Transporte de pessoas (Art. 734, CC)

A responsabilidade do transportador é objetiva e tal fato de da por três razões.


Inicialmente pela aplicação histórica do Decreto n. 2.681, de 7 de dezembro de 1912, que regula a
responsabilidade civil das estradas de ferro.
Ademais, a obrigação assumida pelo transportador é uma obrigação de resultado onde deve ser ob-
servada a cláusula de incolumidade, ou seja, de levar o passageiro de maneira incólume, são e salvo, e a
mercadoria sem avarias, ao seu destino.
A não obtenção desse resultado importa o inadimplemento das obrigações assumidas e a
responsabilidade pelo dano ocasionadotal, sendo que a obrigação mantem-se até o momento em que
um passageiro deixa a condução e atravessa o portão de saída da estação de desembarque.
Finalmente, na grande maioria das hipóteses fáticas é patente a relação de consumo nesses casos
que deve ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, pois afinal de contas o transportador presta
um serviço de forma profissional e muitas vezes há um destinatário final, fático e econômico na outra
ponta da relação jurídica (diálogo das fontes entre o CC/2002 e o CDC).

Nesse sentido, oArt. 734, caput confirma a responsabilidade objetiva, uma vez que prevê que a
cláusula de não indenizar é considerada nula no transporte de pessoas:

CC, art. 734, caput: “O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e
suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da respon-
sabilidade”.

Ademais, o art. 735 do atual Código Civil enuncia que havendo acidente com o passageiro não cabe
a excludente da culpa exclusiva de terceiro, contra o qual o transportador tem ação regressiva.
Desse modo, leciona Carlos Roberto Gonçalves que ocorrendo um acidente de transporte, não pode
o transportador, assim, pretender eximir-se da obrigação de indenizar o passageiro, após haver
descumprido a obrigação de resultado tacitamente assumida, atribuindo culpa ao terceiro (ao motorista
do caminhão que colidiu com o ônibus, por exemplo). Deve, primeiramente, indenizar o passageiro,
para depois discutir a culpa pelo acidente, na ação regressiva movida contra o terceiro.

Finalmente, dispõe o art. 736 do CC que não haverá responsabilidade contratual objetiva,
mas sim subjetiva do transportador no caso de transporte gratuito ou benévolo, também denomi-
nado carona. Em casos tais a responsabilidade daquele que dá a carona depende da comprovação

498
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

de dolo ou culpa (responsabilidade extracontratual subjetiva, nos termos do art. 186 do CC), no
sentido da Súmula 145 STJ:

Súmula. 145 STJ: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será ci-
vilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa
grave”.

Entretanto, a teor do parágrafo único do Art. 736, se aquele que deu a carona aferir “vantagens in-
diretas” terá responsabilidade objetiva, uma vez que essa “carona” equivale ao transporte, como p. ex.
pagamento de combustível, pedágio ou alimentação ou ainda programa de milhagem ou pontos em com-
panhia aérea394.

7.2. Transporte de coisas (Art. 750, CC)395

O transporte de coisas está disciplinado nos arts. 743 a 756 do Código Civil, aplicando-se, no que
couber e não conflitar com este, o Código de Defesa do Consumidor.
Quando começa a responsabilidade do transportador? A responsabilidade do transportador, que é
presumida e limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus pre-
postos, recebe a coisa.
E quando termina? Só termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aque-
le não for encontrado (art. 750, que não prevê tarifação).
A quem as mercadorias devem ser entregues? Devem ser entregues ao destinatário, ou a quem
apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as recla-
mações que tiver, sob pena de decadência dos direitos. No caso de perda parcial ou de avaria não percep-
tível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o
dano em dez dias a contar da entrega (art. 754).
E se houver dúvida acerca de quem seja o destinatário? Nesse caso, o transportador deve depositar
a mercadoria em juízo, se não lhe for possível obter instruções do remetente; se a demora puder ocasio-
nar a deterioração da coisa, o transportador deverá vendê-la, depositando o saldo em juízo (art. 756).
No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano
causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o
ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver
ocorrido o dano (art. 756).

394 Enunciado 559, VI JDC: “Observado o Enunciado 369 do CJF, no transporte aéreo, nacional e internacio-
nal, a responsabilidade do transportador em relação aos passageiros gratuitos, que viajarem por cortesia, é objetiva,
devendo atender à integral reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais”.
395 Retirado de Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 2 : esquematizado® : responsabilidade / coisas / famí-

lias e sucessões/ Carlos Roberto Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. P.

499
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Se o transporte não puder ser feito ou sofrer longa interrupção, o transportador solicitará, inconti-
nenti, instruções ao remetente, e zelará pela coisa, por cujo perecimento ou deterioração responderá,
salvo força maior. Perdurando o impedimento, sem motivo imputável ao transportador e sem manifesta-
ção do remetente, poderá aquele depositar a coisa em juízo, ou vendê-la, obedecidos os preceitos legais e
regulamentares, ou os usos locais, depositando o valor (art. 753 e § 1º).

8. Responsabilidade civil na jurisprudência brasileira


8.1. Responsabilidade civil médica396

“Erro médico” é o dano injusto imputável ao profissional da medicina, o qual, nos termos do art.
14, § 4º, do CDC, e do art. 951 do CC, tem responsabilidade baseada na culpa profissional:

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por
aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia,
causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.

Art. 14 (...) § 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a
verificação de culpa.

Em geral, o serviço prestado pelo médico é enquadrado como relação de consumo. “Em geral”, pois
não estão incluídas aqui as hipóteses de atuação emergencial (ex.: médico no avião). A responsabilidade
do médico é subjetiva, baseada na culpa do profissional liberal. Perceba que, a despeito de o CDC trazer
como regra a responsabilidade objetiva, o profissional liberal, pessoa física que presta serviço técnico ou
científico, tem responsabilidade subjetiva.
No entanto, apesar de a responsabilidade do médico basear-se na culpa profissional, admite-se a
inversão do ônus da prova, nos termos do CDC (REsp 171.988/RS).
No caso do cirurgião estético, há quem diga que ele teria responsabilidade objetiva. Pablo discorda
dessa posição. Para ele, em sendo médico, a responsabilidade será baseada na culpa. Ainda que se trate
de responsabilidade de resultado e não seja alcançado o resultado projetado, haverá uma presunção de
culpa, que não transforma a responsabilidade em objetiva. A matéria, entretanto, não tem pacificidade
na jurisprudência.
Portanto, a situação do cirurgião plástico é mais delicada, na medida em que, se a cirurgia plástica
é estética, assume obrigação de resultado, de maneira que a responsabilização é mais facilitada, havendo
quem sustente ser objetiva.

396 O Informativo do STJ de 9 de novembro de 2008 anota que, nos últimos seis anos, a quantidade de pro-
cessos envolvendo erro médico que chegou à Corte aumentou em 200%.

500
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Hospital é pessoa jurídica que exerce atividade de risco, com contrapartida pecuniária (em geral).
Pablo entende que se o paciente for demandar o médico que integra o quadro do hospital e comete erro
médico, a responsabilidade será baseada na culpa. Agora, se o paciente for demandar o hospital, a res-
ponsabilidade será objetiva, com base no CDC. O hospital demandado, se quiser, ajuíza demanda regres-
siva, discutindo a culpa do profissional.
Entretanto, quanto a esta matéria, o STJ está desencontrado (está literalmente se digladiando). Há
um ano e meio, estava se pacificando a tese segundo a qual a responsabilidade do hospital, no que tange
aos seus médicos, seria subjetiva (para demandá-lo, ter-se-ia que demonstrar a culpa), exceto quanto a
atividades secundárias, não médicas, como a cama quebrada ou a comida estragada, hipóteses em que a
responsabilização seria objetiva. Todavia, hoje há decisões reconhecendo a responsabilidade objetiva do
hospital.
Portanto, ainda não foi firmada jurisprudência uníssona no Tribunal quanto à natureza jurídica da
responsabilidade do hospital pelo erro na prestação do serviço médico, havendo decisão que a entende
subjetiva (REsp 258.389/SP), bem como decisão que a entende objetiva (REsp 696.284/RJ).
O STJ tem decisões admitindo a responsabilidade da seguradora pelo erro do médico credenciado
(REsp 328.389/RJ). Academicamente, a responsabilidade da seguradora será objetiva. Não há que se
falar em subjetiva, nesse caso.
O cirurgião-chefe responde pelo erro cometido pela sua equipe. O anestesiologista, todavia, res-
ponde autonomamente (responsabilidade baseada na culpa profissional).
Existe divergência na doutrina quanto à possibilidade de um médico intervir para salvar a vida do
paciente, mesmo contra a sua vontade, em razão da aparente colidência entre o direito à vida e a liberda-
de de consciência e crença filosófica e religiosa.
Termo de consentimento esclarecido ou informado é o documento entregue pelo médico ao pacien-
te pelo qual, à luz da boa-fé objetiva e do dever de informação, lhe dá conhecimento das consequências e
riscos do procedimento clínico.
Miguel Kfouri Neto lembra que esse termo de conhecimento informado, baseado no art. 15 do
CC397, não é um salvo-conduto ao médico. Ele não blinda o profissional. Se comete erro médico, ele res-
ponderá pelo ato. O termo protege o médico quanto à alegação do paciente de desconhecimento dos ris-
cos e consequências inerentes ao procedimento médico que será adotado.
Vale acrescentar, finalmente, que a teoria da perda de uma chance, lembra Julio Meirelles, também
pode ser aplicada à atividade médica, justificando indenização, ainda que reduzida. Ex.: sujeito com do-
res abdominais poderia ser encaminhado a uma tomografia. O paciente tem um tumor, que piora por

397 Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a inter-
venção cirúrgica.

501
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

conta do diagnostico tardio, e morre. Não foi o médico que colocou o tumor lá, nem isso significa que o
paciente poderia ser curado, mesmo que diagnosticado em tempo. Todavia, nesse caso é cabível uma
indenização, pela perda da chance de cura, arbitrada equitativamente.
A responsabilidade do cirurgião dentista, por ser um profissional liberal, também se baseia na cul-
pa profissional, valendo mencionar o texto de Ricardo Zart acerca do tema (www.jus.com.br).

8.2. Responsabilidade do advogado398

O advogado também responde por culpa profissional.

8.3. Responsabilidade das locadoras de veículos

Tecnicamente, quando o locatário recebe da operadora a guarda de um carro, a responsabilidade


acerca dos fatos por ele praticados seria dele. Todavia, a Súmula 492 do STF estabelece ser solidária a
responsabilidade da locadora de veículos com o locatário pelos danos causados no uso do carro locado:

Súmula 492 - A EMPRESA LOCADORA DE VEÍCULOS RESPONDE, CIVIL E SOLIDARIA-


MENTE COM O LOCATÁRIO, PELOS DANOS POR ESTE CAUSADOS A TERCEIRO, NO USO
DO CARRO LOCADO.

Isso porque a empresa, com sua atividade, cria ou incrementa o risco da produção do resultado.
Ainda que a responsabilidade solidária não se presuma, devendo decorrer da lei, trata-se de hipóte-
se de presunção. A Súmula seria, portanto, questionável. Mas é válida e aplicável.

8.4. Responsabilidade pelo transporte de mera cortesia (carona)

Transporte de mera cortesia é o transporte desinteressado (a carona). Quando o transporte é inte-


ressado (ex.: o corretor dá uma carona ao cliente até a corretora, para celebrar com ele um contrato), a
situação é outra.
A pessoa que toma a carona pode demandar o condutor pelo dano causado, em virtude de acidente
automobilístico? A matéria é sumulada no STJ (Súmula 145): admite-se a responsabilidade civil do
transportador (em transporte desinteressado ou carona), somente se tiver havido de sua parte dolo ou
culpa grave:

Súmula 145 - No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civil-


mente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa gra-
ve.

398 Acerca do tema, Pablo recomenda a obra: “Responsabilidade civil do advogado pela perda de uma chan-
ce”, de Sergio Novaes Dias (LTR).

502
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O parágrafo único do art. 944 do CC também traz situação em que o juiz, analisando o grau da cul-
pa, pode reduzir a indenização a ser paga pelo réu:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá
o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Esse redutor, nos termos dos Enunciados 46 e 380 da Jornada de Direito Civil, também poderia ser
aplicado às hipóteses de responsabilidade objetiva:

Enunciado 46 - Art. 944: A possibilidade de redução do montante da indenização em face do


grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve
ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral
do dano [,] não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva. (Alterado pelo Enuncia-
do 380 – IV Jornada)

Enunciado 380 - Art. 944: Atribui-se nova redação ao Enunciado n. 46 da I Jornada de Direito
Civil, pela supressão da parte final: não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva.

Essa ideia de gradação da culpa não é comum na área cível. Em se tratando de responsabilidade
criminal, o juiz analisa culpa e dolo na fixação da pena base. Para efeito de responsabilidade civil, em
princípio, o grau de culpa não interessa, pois a indenização mede-se pela extensão do dano.
Sucede que, de vez em quando, a gradação aparece, como é o caso desse parágrafo único do art.
944. Ele diz, em outras palavras, que se o réu teve culpa leve no evento, a defesa pode invocar a regra
para convencer o magistrado a reduzir a indenização devida. Ex.: o sujeito deixa a “bituca” de cigarro
acesa na ponta do cinzeiro da casa do amigo. Ela cai e incendeia o apartamento inteiro.
Vale indagar: o redutor seria constitucional, à luz do princípio da dignidade humana e do princípio
da indenização integral da vítima?
Outra dúvida diz respeito à redução nas demandas de responsabilidade objetiva. Os Enunciados
acima citados dizem que o redutor poderia ser utilizado mesmo nos casos em que não haja discussão de
culpa. Pablo considera esse entendimento equivocado, na medida em que se trará ao processo a discus-
são acerca de algo que teria de ser afastado.

8.5. Responsabilidade civil do transportador aeronáutico

Acerca da responsabilidade civil do transportador aeronáutico, vale conferir o noticiário do STJ de


5 de julho de 2009. Para fins de concursos, serão destacados alguns aspectos a seguir.

8.5.1. extravio de bagagem

503
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Após o advento do CDC, a responsabilidade do transportador acerca do extravio de bagagem su-


bordina-se ao princípio da ampla reparação, afastando-se indenização tarifada, inclusive da Convenção
de Varsóvia (Ag. Rg. no Ag. 1.230.663/RJ).

8.5.2. responsabilidade das agências de viagem por atrasos em voo


O REsp 797.836 sustentou a tese de que, salvo situações excepcionais, as agências de viagem não
podem ser responsabilizadas por atrasos em voo quando elas vendem as passagens, muito embora o
mesmo tribunal também haja decidido que haverá responsabilidade pelo mau serviço vendido em pacote
turístico com voo fretado (REsp 783.016).

8.5.3. brasileiro barrado no exterior


Alguns brasileiros têm tido o dissabor de serem barrados no exterior. Chegando ao Brasil, ajuízam
ação de reparação de danos morais contra o Estado que o barrou. Os juízes têm julgado extintas essas
demandas, mas o STJ tem mandado citar os Estados (o que não significa que as demandas serão julgadas
procedentes).

8.5.4. overbooking
Quanto ao overbooking, o STJ também já decidiu que se trata de prática ilícita, que só vê a conve-
niência da própria companhia aérea, podendo gerar responsabilidade civil (REsp 211.604/SC).
No caso do overbooking (o sistema da companhia emite mais passagens do que assentos), deve-se
registrar ocorrência na ANAC, sem prejuízo da indenização por danos morais e materiais.

8.6. Responsabilidade civil dos condomínios

Acerca da responsabilidade civil dos condomínios, ver o noticiário do STJ de 10 de maio de 2009.
O Tribunal já consolidou o entendimento de que é possível a utilização de área comum em caráter exclu-
sivo por condômino, desde que haja autorização da assembleia (REsp 281.290).
No que tange a furtos em garagem ou cometimento de atos ilícitos em áreas comuns, entende o STJ
que a responsabilidade do condomínio só existirá se estiver expressamente prevista na Convenção (REsp
268.669 e REsp 618.533). Na prática, isso significa que não haverá responsabilização, pois as Conven-
ções quase nunca preveem tal responsabilização.

504
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DIREITO DAS COISAS

1. Introdução
1.1. Direito das coisas X Direitos reais

A utilização dos termos Direito das Coisas e Direitos Reais sempre gerou dúvidas entre os estudan-
tes e aplicadores do Direito, nesse sentido, é necessária uma diferenciação.
Assim, na lição de Flávio Tartuce Direito das Coisas é o ramo do Direito Civil que tem por objeto o
estudo e a regulamentação das relações de domínio que uma pessoa exerce sobre uma coisa. Como coi-
sas, pode-se entender tudo aquilo que não é humano.
A referida relação de domínio (fático – posse / jurídico – propriedade) é exercida pela pessoa (su-
jeito ativo) sobre a coisa, de outro lado, nota-se que não há sujeito passivo determinado, sendo esse toda
a coletividade.
Obs.: Prevalece o entendimento segundo o qual não existe posse ou propriedade sobre bens incor-
póreos ou imateriais. Portanto, para os civilistas não é correta a expressão “propriedade intelectual”, em-
pregando-se “direitos intelectuais” ou “direitos de autor” (José de Oliveira Ascensão e Silmara Chinella-
to)399
De outro lado, o termo “Direitos Reais” significa um conjunto de categorias ou institutos relaciona-
dos à propriedade - previstos no art. 1.225 do Código Civil -, seja a propriedade plena ou limitada.

Art. 1.225. São direitos reais:

I - a propriedade;

II - a superfície;

III - as servidões;

IV - o usufruto;

V - o uso;

VI - a habitação;

VII - o direito do promitente comprador do imóvel;

VIII - o penhor;

IX - a hipoteca;

399 De se notar que se houvesse propriedade ou posse sobre esses direitos, os mesmo poderiam ser usucapi-

dos, entretanto, essa não é a posição da jurisprudência, a teor da Súmula 228 do STJ: “É inadmissível o interdito
proibitório para a proteção do direito autoral”

505
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

X - a anticrese.

XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) 400

XII -a concessão de direito real de uso; e (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

XIII - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Esta-
dos, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e respectiva cessão e
promessa de cessão. (Incluído pela Medida Provisória nº 700, de 2015) Vigência encerrada

XIII - a laje. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Nesse sentido, é possível afirmar que os direitos reais gravitam o conceito de propriedade, e, como
tal, apresentam caracteres próprios que os distinguem dos direitos pessoais de cunho patrimonial.
Segundo a lição de Flávio Tartuce podem ser apontadas as seguintes características dos direitos
reais:
i. Oponibilidade erga omnes, ou seja, contra todos os membros da coletividade.
ii. Existência de um direito de sequela, que segue a coisa.
iii. Previsão de um direito de preferência a favor do titular de um direito real.
iv. Possibilidade de abandono dos direitos reais, de renúncia a tais direitos.
v. Viabilidade de incorporação da coisa por meio da posse.
vi. Previsão da usucapião como um dos meios de sua aquisição.
vii. Suposta obediência a um rol taxativo (numerus clausus) de institutos, previstos em lei, o que
consagra o princípio da tipicidade dos direitos reais.
viii. Regência pelo princípio da publicidade dos atos, o que se dá pela entrega da coisa ou tradição (no
caso de bens móveis) e pelo registro (no caso de bens imóveis).
Obs.: Sobre a taxatividade Flávio Tartuce aponta uma divergência na doutrina sendo que:
a) Visão clássica (1ª corrente) (majoritária, inclusive para provas de 1ª fase): rol taxativo
(princípio da taxatividade) (Caio Mário, Orlando Gomes, Maria Helena Diniz e Álvaro Villaça).
b) Visão contemporânea (2ª corrente) (minoritária, por enquanto): rol exemplificativo.
Subcorrentes:
b.1) Não há taxatividade, mas há tipicidade, ou seja, necessidade de previsão em lei (Gustavo
Tepedino), exemplo é a alienação fiduciária em garantia, tratada pelo Decreto- lei 911/1969 –
em se tratando de bens móveis – e pela Lei 9.514/1997 – para os imóveis.
b.2)Não há taxatividade, nem tipicidade. A autonomia privada pode criar direitos reais
(Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald). Exemplo: “Time-sharing” 401 ou multipropriedade

Incisos XI e XII foram incluídos pela Lei n. 11.481/07. São concessões especiais do Poder Público. São di-
400

reitos reais de gozo ou fruição.


401 O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma es-

pécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de em imóvel (casa,

506
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

imobiliária ( o instituto foi positivado pela Lei 13.777/2018 introduziu ou artigos 1.358-B a
1.358-U no Código Civil)”.

1.2. Diferenças entre direitos reais e direitos pessoais

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, o direito das coisas, como visto, trata das relações jurídicas
concernentes aos bens corpóreos suscetíveis de apropriação pelo homem. Incluem-se no seu âmbito so-
mente os direitos reais. Nesse sentido, é necessário estabelecer a distinção entre direitos reais e pessoais.
Inicialmente, Flávio Tartuce apresenta um quadro-resumo trazendo as principais diferenças entre
as espécies, segundo a doutrina majoritária:
Direitos reais (ex. propriedade) Direitos pessoais patrimoniais (ex. contrato)
Relação entre um sujeito ativo e uma coisa. O Relação pessoal entre um sujeito ativo (credor) e um
sujeito
sujeito passivo (devedor).
passivo é universal.
Princípio da publicidade (tradição ou registro). Princípio da autonomia privada.
Rol taxativo. Rol exemplificativo.
Efeitos “erga omnes” (absolutos) Efeitos “inter partes” (relativos).
A coisa responde. O patrimônio do devedor responde.
Caráter permanente. Caráter transitório, em regra, o que vem sendo miti-
gado pelos contratos relacionais ou cativos de longa
duração.
Em que pese as diferenças ainda existam, atualmente, há uma tendência de aproximação entre os
direitos reais e os direitos pessoais patrimoniais, de modo a “contratualizar” o Direito das Coisas, nesse
sentido, Flávio Tartuce apresenta ainda alguns aspectos dessa aproximação:
1º aspecto: como visto, há uma tendência em se afirmar que o rol do art. 1.225 do Código Civil é
exemplificativo.
2º aspecto: em muitos casos, com previsão na lei, o direito real origina-se da autonomia privada.
3º aspecto: há tendência doutrinária de aplicação da boa-fé objetiva aos direitos reais.
4º aspecto: nem sempre o direito real terá efeitos “erga omnes”. E nem sempre o direito pessoal te-
rá efeitos “inter partes”.402

chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e
perpétuo durante certo período do ano.
402 Exemplos: Súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou

posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. e
Enunciado n. 21, I JDC: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula
geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a
tutela externa do crédito”.

507
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5º aspecto: nem sempre o direito real terá caráter permanente - exemplos: alienação fiduciária e
condomínio comum. E nem sempre o contrato será transitório – exemplo: contratos cativos de longa
duração (Cláudia Lima Marques) (“casamentos contratuais”).
Finalmente, além dos aspéctos de aproximação citados acima, é importane atenção aos conceitos
mistos:
i. Posse: trata-se de um direito de natureza especial, que não se enquadra como direito real
ou pessoal, como se verá adiante.
ii. Obrigações propter rem ou próprias da coisa: situam-se em uma zona intermediária en-
tre os direitos reais e os direitos patrimoniais, sendo ainda denominadas obrigações híbri-
das ou ambulatórias, pois perseguem a coisa onde quer que ela esteja.
iii. Abuso de direito no exercício de propriedade ou ato emulativo: retirado dos arts.
187 e 1.228, § 2.º,do CC. Trata-se de um instituto híbrido uma vez que o exercício de um
direito real repercute no direito das obrigações, gerando o dever de indenizar.
iv. Ônus reais: são obrigações que limitam o uso e gozo da propriedade, constituindo grava-
mes ou direitos oponíveis erga omnes, por exemplo, a renda constituída sobre imóvel. Ade-
rem e acompanham acoisa.
v. Obrigações com eficácia real: são as que, sem perder seu caráter de direito a uma pres-
tação, transmitem-se e são oponíveis a terceiro que adquira direito sobre determinado bem
(v. arts. 576, 1.417 e 1.418 do CC).

2. Posse (Art. 1.196 a 1.224, CC)


2.1. Noções gerais sobre a posse

2.1.1. Conceito e teorias justificadoras da posse


Historicamente, o conceito de posse esteve submetido ao de propriedade. A posse era vista como
mero apêndice desta. Em outras palavras, a posse estava submetida à propriedade.
Esse panorama de submissão se manteve até a edição da histórica obra de Savigny, chamada “Teo-
ria da Posse”. A importante colaboração dada pelo autor foi que, pela primeira vez, a posse se desatrelou
da propriedade. Portanto, a relevância histórica dessa teoria foi que ela libertou a posse da submissão à
propriedade.
Ao apontar os requisitos da posse, Savigny estabeleceu que para havê-la seria necessária a conjuga-
ção de dois requisitos: i) corpus: a apreensão, o contato físico; e ii) animus rem sibi habendi (também
chamado de animus domini): a intenção de ter a coisa como sua.
Esta teoria era estabelecida com viés subjetivista, por conta da presença da vontade (o animus).
Por isso, ela foi chamada de teoria subjetiva da posse.

508
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ocorre que é possível que alguém tenha a posse de algo sem ter a intenção de ser dono. Basta pen-
sar no locatário, no comodatário ou no usufrutuário. Nesses casos, a pessoa tem o corpus, mas não tem a
intenção de ter a coisa como sua. Daí dá para perceber o equívoco em que incorreu a teoria de Savigny.
Essa teoria, todavia, traz o mérito indiscutível de ser a primeira teoria acerca da autonomia da pos-
se. Ainda que não esteja imune a críticas, ela tem uma importância histórica fundamental.
O maior discípulo da Savigny, R. Von Ihering contestou a teoria subjetiva da posse, no livro “Teoria
Simplificada da Posse”. Para Ihering, havia na teoria anterior uma superafetação de requisitos. Para sim-
plificá-la, precisou retirar o animus, passando a sustentar que a posse era apenas o corpus, o contato
físico, a apreensão. A teoria de Ihering ficou conhecida com o justo nome de teoria objetiva da posse.
Perceba que a teoria objetiva explica com mais facilidade as situações do locatário, do comodatário e do
usufrutuário.
O art. 1.196 do Código Civil acolheu a teoria objetiva:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de
algum dos poderes inerentes à propriedade.

Todavia, não se pode esquecer que o Código faz concessões, em determinados momentos, à teoria
subjetiva. Ex.: ao tratar da usucapião, o Código exige posse com animus domini, claramente inclinando-
se pela teoria subjetiva, malgrado a regra geral do sistema seja a objetiva.
Portanto, diante da teoria objetiva do art. 1.196, já se pode afirmar que possuidor é aquele que
exerce um dos poderes da propriedade sobre a coisa, mais especificamente o uso ou o gozo (fruição,
retirada de utilidades). Isso porque quem tem o uso ou o gozo tem contato físico com a coisa.
A propriedade é formada pelos poderes de usar, gozar e fruir, livre dispor e reivindicar a coisa.
Quem tem os quatro poderes inerentes à propriedade, mais título (registro), tem propriedade. Todavia,
pode ocorrer de o titular ter os poderes, mas não o título (ex.: aquele que usucapiu mas não ajuizou a
ação). Quem tem os quatro poderes, mas não tem o título, tem o chamado domínio.
A propriedade é exercida perante a coletividade, por conta dos efeitos erga omnes decorrentes do
registro; o domínio é exercido sobre a coisa, sem oponibilidade a terceiros. Perceba a diferença: proprie-
dade é a soma dos poderes com o título; domínio é meramente a soma dos poderes, sem o título.
Quem tem propriedade, portanto, tem domínio; mas nem todo aquele que tem domínio tem pro-
priedade. A forma de defesa da propriedade é a ação reivindicatória; o mecanismo de defesa do do-
mínio é a ação publiciana. São coisas diferentes.
Até o advento do CC/02, as expressões domínio e propriedade eram tidas como sinônimas, de mo-
do que o domínio é a propriedade eram defendidos pela reivindicatória. Com o esclarecimento de que
não são a mesma coisa, há que se falar em ação publiciana.
Quem tem o uso ou o gozo do bem tem posse, e para a defesa da posse devem ser ajuizadas as
ações possessórias.

509
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A compreensão do Código deixa claro que propriedade, domínio e posse são coisas diversas, mas
que eventualmente podem estar juntas. É possível que haja a posse com ou sem domínio. E também pos-
se com ou sem propriedade.
Todavia, se um proprietário perder os poderes de sua propriedade (o contato com a coisa), a ação a
ele recomendada é a possessória. A posse, por ser submetida a um requisito objetivo, traz consigo a ideia
de imediatidade. Isso faz com que as possessórias sejam mais céleres, pois elas objetivam reaver o conta-
to físico com a coisa.
A diferença entre posse, domínio e propriedade deixa clara a adoção da teoria objetiva pelo Código
Civil. Posse e propriedade são institutos jurídicos próprios, com tutelas jurídicas próprias. A posse não é
mais um apêndice da propriedade. Ela ganhou autonomia. Posse é contato físico.
Hoje, a doutrina mais contemporânea (inclusive Flávio Tartuce) vem entendendo que este histórico
debate (teoria objetiva versus subjetiva) cedeu espaço a uma nova teoria, construída na Espanha, por
Hernández Gil, trazida ao Brasil por Luiz Edson Fachim, do Paraná, chamada de “Teoria Sociológica da
Posse”.
Para Hernandez Gil, o debate está envelhecido, pois é insuficiente para explicar os problemas pos-
sessórios do mundo contemporâneo, como os grandes conflitos fundiários. O que se deve ter em mente,
diz o autor, é a teoria sociológica, que significa: “para que serve a posse?” Ou seja, o que interessa não é
mais saber qual a teoria correta, mas dar à posse uma função social. O CC/02 adota implicitamente a
teoria da função social da posse.
Carlos Roberto Gonçalves apresenta em resumo as três teorias tratadas acima:
i. Subjetiva (de Savigny): a posse caracteriza-se pela conjugação do corpus (elemento objeti-
vo que consiste na detenção física da coisa) e do animus (elemento subjetivo, que se encontra
na intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio — animus rem sibi
habendi). P (posse) = C (corpus) +AD (animus dommini). Essa teoria não foi adotada
(nem pelo CC 16, nem pelo CC 2002), somente é relevante para fins de usucapião (posse “ad
usucapionem”).

ii. Objetiva ou simplificada (de Ihering): considera o animus já incluído no corpus, que
significa conduta de dono. Esse animus não é de ser proprietário, mas de explorar
economicamente a coisa. A posse assim pode ser analisada objetivamente, sem a neces-
sidade de pesquisar-se a intenção do agente. A posse, então, é a exteriorização do domínio. O
CC brasileiro adotou tal teoria (art. 1.196). P (posse) = C (corpus).
iii. Sociológica (de Perozzi, Saleilles e Hernandez Gil): dá ênfase ao caráter econômico e à fun-
ção social da posse. P = C + FS (função social). Pela teoria, a função sociel é componente da
posse e é atendida quando é dada à posse uma destinação positiva, ex. morar no imóvel, la-
vorar na terra (posse-trabalho para Miguel Reale)

510
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em resumo, na lição de Flávio Tartuce, a posse pode ser conceituada como o domínio fático que
uma pessoa exerce sobre uma coisa.
Nesse sentido, a posse estará presente quando a pessoa tiver pelo menos um dos atributos relativos
à propriedade – GRUD, ou seja, Gozar/fruir, Reaver/buscar, Usar/utilizar, Dispor/alienar.
É de se observar que basta o exercício de um dos atributos do domínio para que a pes-
soa seja considerada possuidora, podendo-se afirmar que todo proprietário é possuidor (direto ou
indireto), mas nem todo possuidor é proprietário.

2.1.2. Natureza jurídica


Segundo Carlos Roberto Gonçalves, atento à lição de Moreira Alves, a posse tem natureza dupla, ou
seja, é fato e direito. Considerada em si mesma, é um fato, mas, pelos efeitos que gera, entra na esfera do
direito. Segundo Beviláqua, a posse não é direito real, nem pessoal, mas um direito especial
Flávio Tartuce assevera que a posse é um direito de natureza especial ou “sui generis”. Portanto,
não é direito real nem pessoal.

2.1.3. Função social da posse

2.1.3.1. Noções gerais


A CR, em seu art. 5º, XXII e XXIII, reconheceu como garantia fundamental o direito de proprieda-
de, desde que cumprida a sua função social:

Art. 5º (...) XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Perceba que a função social é uma condicionante do direito de propriedade. Ou seja, para que o
proprietário tenha proteção, ele precisa cumprir sua função social (a proteção de propriedade decorre do
cumprimento dessa condicionante).
Da função social da propriedade decorre a função social da posse. É que pode ocorrer de o proprie-
tário eventualmente não cumprir a função social e alguém (um terceiro) cumpri-la em seu lugar. Se um
terceiro cumpriu a função social no lugar do proprietário, está-se diante da função social da posse (e não
da função social da propriedade).
Logicamente, somente se enxergará a função social da posse quando o proprietário não cumpre tal
função social (estar-se-ia, aí, falando da função social da propriedade).
O CC/02, segundo a Exposição de Motivos do Professor Miguel Reale, acolhe a teoria da função so-
cial da posse implicitamente. Para ele, a função social da posse pode ser chamada de posse-trabalho (ou
seja, se alguém estiver trabalhando, desempenhando a função social da propriedade no lugar do proprie-
tário, haverá função social da posse).
Em concurso, ao falar da função social, deve-se citar Norberto Bobbio. Função social significa “para
que serve?” Portanto, o direito protege a posse para que ela exerça sua função de pacificação social.
511
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A função social da posse confirma, de uma vez por todas, a autonomia conceitual da posse. A partir
da função social da posse, percebe-se que o juiz não julga, agora, necessariamente, em favor do proprie-
tário, mas de quem cumpre a função social. A propriedade não subjuga mais a posse, que é autônoma e
deve ser tratada autonomamente.

2.1.3.2. Exemplos de função social da posse

2.1.3.2.1. Art. 1.238, parágrafo único, e art. 1.242, parágrafo único, do CC/02

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um
imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao
juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Re-
gistro de Imóveis. [usucapião extraordinário]

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver
estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter
produtivo.

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente,
com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. [usucapião ordinário]

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adqui-
rido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteri-
ormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado inves-
timentos de interesse social e econômico.

Esses dois dispositivos estabelecem a possibilidade de redução do prazo de usucapião (o prazo do


extraordinário é de quinze anos; o do ordinário, dez) em cinco anos, quando o usucapiente estiver mo-
rando ou tiver tornado a terra produtiva (ou seja, quando estiver cumprindo a sua função social).
Detalhe: trata-se de hipótese de função social da posse, não da propriedade, na medida em que o
usucapiente é possuidor.

2.1.3.2.2. Súmula 239 do STJ

Súmula 239 - O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromis-


so de compra e venda no cartório de imóveis.

A súmula estabelece uma regra sobre promessa de compra e venda. A aquisição de imóveis ocorre
em várias parcelas, em geral. No caso, o promitente comprador celebra o contrato, recebe a posse e passa
a pagar. Em geral, ele não registra a promessa para não ter de pagar os emolumentos do registro (pois
terá de pagar de novo na transmissão da propriedade).

512
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A Súmula estabelece que o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro. Se é as-
sim, o promitente comprador tem posse e, como está morando, está cumprindo a função social da posse.
É um exemplo de prestígio à função social da posse.

2.1.3.2.3. Súmula 364 do STJ

Súmula 364 - O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel


pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Trata-se da impenhorabilidade do bem de família da pessoa sozinha (chamada pelo STJ de single,
conceito que não se confunde com o de solteiro). O single tem a proteção do bem de família, mas não é
família. Família tem “s”, ou seja, tem pluralidade.
Se toda família é plural, a pessoa sozinha não é família de si mesma, não sendo protegida pelo bem
de família. Todavia, a Súmula determina que o “conceito” de impenhorabilidade também se aplica a ela,
porque tem posse.

2.1.3.2.4. Desapropriação judicial indireta (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do CC/02)

Art. 1.228 (...) § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de conside-
rável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente,
obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário;


pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

2.1.3.2.4.1. Conceito

A desapropriação judicial indireta é o melhor exemplo de função social da posse. Não se deve cha-
má-la de “desapropriação indireta”, que tem um sentido próprio, específico e diverso.
A desapropriação judicial indireta ocorre quando o proprietário perde a propriedade para um gru-
po indeterminado de pessoas.

2.1.3.2.4.2. Requisitos da desapropriação judicial indireta

São requisitos da desapropriação judicial indireta:


i) extensa área, rural ou urbana:
O conceito de área extensa é aberto, variando de um lugar para o outro.
ii) posse coletiva, por cinco anos;
iii) grupo indeterminado de pessoas:
Veja que, até aqui, todos os requisitos são bem abertos.
iv) boa-fé:

513
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exige-se que os possuidores estejam de boa-fé. O conceito de boa-fé não é o conceito clássico (boa-
fé subjetiva). A doutrina entende que a boa-fé não está no conhecimento da titularidade, mas no conhe-
cimento (nos efeitos) da posse. Caso contrário, o instituto nunca seria utilizado.
v) realização de obras e serviços relevantes;
vi) pagamento de indenização fixada pelo juiz:
Se há indenização, não se trata de usucapião. Quem tem indenização é a desapropriação. Curiosa-
mente, esta desapropriação não é decretada pelo Executivo, mas concedida pelo Poder Judiciário.
Alguns autores sustentavam que a indenização deveria ser paga pelo Poder Público. Outros diziam
que pelos possuidores. Na Jornada de Direito Civil, chegou-se ao entendimento de quem paga essa inde-
nização são os próprios possuidores, exceto quando se tratar de população de baixa renda, hipótese em
que o Poder Público é quem pagará, por se tratar de questão relacionada ao direito real de moradia.

Enunciado 84 - Art. 1.228: A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social
(art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória,
eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização.

Enunciado 308 - Art. 1.228: A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropria-
ção judicial (art. 1.228, § 5º) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no con-
texto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de bai-
xa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo
os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito
Civil.

Importante destacar que, quando se tratar de população de baixa renda, o Poder Público terá de ser
convocado (citado) para o processo, pois terá de custear a indenização (a União, se a área for rural e o
Município, se a área for urbana). Curiosamente, nesse caso haverá um deslocamento de competência
(Justiça Federal ou Vara da Fazenda Pública, conforme o caso).
vii) (requisito processual) a desapropriação judicial indireta tem de ser alegada por meio de ação
autônoma ou como exceção substancial em uma ação já em trâmite:
Os possuidores podem ajuizar uma ação autônoma de desapropriação judicial indireta. Pode ocor-
rer de o proprietário ajuizar uma ação reivindicatória contra eles, antes. No momento em que citados,
eles podem alegar, em exceção substancial, desapropriação judicial indireta.
Discutiu-se se o MP teria legitimidade para tal alegação. Chegou-se ao entendimento de que sim,
quando envolver direito coletivo de moradia. Detalhe: mesmo quando a ação for promovida pelo MP, o
título somente pode ser registrado após o pagamento da indenização ao proprietário.
Numa favela, por exemplo, há uma ótima hipótese de desapropriação judicial indireta. A Defenso-
ria Pública está absolutamente legitimada para tal alegação.
O art. 1.228, § 4º, do CC, portanto, é o melhor exemplo de função social da posse.
514
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1.3.2.4.3. Desapropriação judicial indireta e usucapião especial urbano coletivo

Importante não confundir desapropriação judicial indireta com usucapião especial urbana coletiva,
prevista nos arts. 10 a 12 do Estatuto da Cidade:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por
população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de
serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro
imóvel urbano ou rural. (...)

Os institutos têm alguns pontos de aproximação, mas não se confundem. É possível, por exemplo, a
desapropriação judicial indireta de bem público. Já a usucapião especial urbana coletiva é uma manifes-
tação do direito civil dos pobres.
São requisitos da usucapião especial urbana coletiva:
i) área urbana superior a 250 metros quadrados:
Caso a área do imóvel seja inferior a 250 metros quadrados, a usucapião será individual.
ii) posse coletiva por cinco anos:
Veja que este requisito é igual ao da desapropriação judicial indireta.
iii) população de baixa renda;
iv) boa ou má-fé:
Perceba que a boa-fé não é requisito da usucapião especial coletiva urbana, mas deve estar presente
na desapropriação judicial indireta.
v) fixação de moradia;
vi) inexistência de contraprestação:
Diferentemente da desapropriação, na usucapião não haverá contraprestação.
vii) alegação por meio de exceção substancial ou de ação autônoma:
O Estatuto da Cidade diz que a alegação de usucapião especial urbana coletiva pode ser formulada
por cada um dos possuidores, individualmente, por alguns ou todos, coletivamente, ou pela associação de
moradores, na qualidade de substituto processual (art. 12):

Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:

I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;

II – os possuidores, em estado de composse;

III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente


constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representa-
dos. (...)

515
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Curiosamente, o MP não tem legitimidade para ser autor do pedido. Ele atuará apenas como fiscal
da lei. Não será parte.
Se o interessado puder, ele enquadrará o pedido como usucapião. Somente buscará a desapropria-
ção judicial indireta quando seu caso não se for hipótese de usucapião, pois a desapropriação envolve o
pagamento de indenização. Veja, mais uma vez, que se trata dos dois mais eloquentes exemplos de fun-
ção social da posse:
Desapropriação Judicial Indireta Usucapião Especial Coletiva Urbana
Extensa área, rural ou urbana. Área urbana superior a 250 metros quadrados.
Posse coletiva, por cinco anos. Posse coletiva, por cinco anos.
Grupo indeterminado de pessoas. População de baixa renda.
Boa-fé. Boa ou má-fé.
Realização de obras e serviços relevantes. Fixação de moradia.
Pagamento de indenização fixada pelo juiz. Inexistência de contraprestação.
Alegação por meio de ação autônoma ou como exceção Alegação por meio de ação autônoma ou como exceção
substancial em uma ação já em trâmite. substancial em uma ação já em trâmite.

2.2. Objeto da posse

Partindo da teoria objetiva, posse é apreensão. Na medida em que o objeto da posse depende do
contato físico, conclui-se que ele obrigatoriamente será um bem corpóreo. Os bens incorpóreos são in-
suscetíveis de apreensão. Consequentemente, insuscetíveis de posse.
Fixada essa premissa, anotam-se dois efeitos:
i) inadmissibilidade de uso dos interditos possessórios para a defesa de bens incorpóreos:
Os bens incorpóreos não podem ser defendidos por meio das ações possessórias. Exemplos de bens
incorpóreos: direito autoral e direito intelectual. Nesse exato sentido é a Súmula 228 do STJ:

Súmula 228 - É inadmissível o interdito proibitório para a proteção do direito autoral.

A defesa dos bens incorpóreos deve ser feita por meio de ação indenizatória ou de tutela específica,
a depender da escolha do titular, que é quem deliberará o tipo de tutela que entende mais adequada.
ii) impossibilidade de usucapião de bens incorpóreos:
Um dos requisitos da usucapião é justamente a posse. Se insuscetíveis de posse, os bens incorpó-
reos não são idôneos à usucapião.
Há, todavia, uma única exceção, prevista na Súmula 193 do STJ (que, na verdade, não ocorrerá
nunca mais): linha telefônica. Isso somente servia para a época em que as linhas telefônicas tinham al-
gum valor:

Súmula 193 - O direito de uso de linha telefônica pode ser adquirido por usucapião.

2.3. Mera detenção

516
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.3.1. Noções gerais


Como visto, o CC/02 adota, em linhas gerais, a teoria objetiva (art. 1.196):

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de al-
gum dos poderes inerentes à propriedade.

A partir do dispositivo, chega-se à conclusão de que o conceito de posse se relaciona ao contato físi-
co, à apreensão.
Porém, o CC entende que algumas pessoas, apesar de terem o contato físico (a apreensão), não po-
dem ser qualificadas como possuidoras. Ou seja, o Código estabelece uma desqualificação de alguns su-
jeitos, para evitar que eles sejam tratados como possuidores, não querendo que determinadas situações
sejam tratadas como posse, para evitar a produção de determinados efeitos jurídicos.
Se a regra geral é de que posse é contato físico, todos os casos de desqualificação dependem de pre-
visão legal. Ou seja, somente haverá desqualificação do possuidor nos casos previstos em lei. A eles, se dá
o nome de mera detenção. São, portanto, meros detentores, e não possuidores, apesar de terem conta-
to físico.
Segundo Flávio Tartuce o detentor pode se converter em possuidor (CC, art. 1.198, parágrafo úni-
co). Isso é possível por força de contrato, nos casos em que a pessoa passa a se comportar como possui-
dora, na linha do Enunciado 301, IV Jornada de Direito Civil403.
Por fim, a posse e a detenção não se confundem com a tença, sendo a última “uma mera situação
material de apreensão física do bem, sem qualquer consequência jurídica protetiva”.

2.3.2. Hipóteses de mera detenção


São hipóteses de mera detenção:
i) fâmulo (ou gestor) da posse (art. 1.198 do CC):

Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com
outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. (...)

Trata-se daquele que apreende a coisa em nome de outrem por força de uma relação subordinativa,
de dependência jurídica. Ex.: o caseiro, o adestrador, o capataz da fazenda, o veterinário etc.
ii) atos de mera tolerância (art. 1.208 do CC):

Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autori-
zam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a
clandestinidade.

Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância. Ex.: abuso de confiança.

403 Enunciado 301, IV JDC: “É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordina-

ção, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios.”.

517
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii) permissão de uso de bem público:


Quando a administração autoriza o uso de bem público, especialmente em relação à ocupação irre-
gular de terras públicas: a posição do STJ sempre foi no sentido de detenção (REsp n. 556.721/DF). Em
2016 (REsp n. 1.484.304/DF – Inf. 579), entendeu-se que há posse, a qual não possibilita usucapião, mas
possibilita ação possessória contra quem invade a área. Em 2018, voltou-se à tese da detenção, com edi-
ção da Súmula 619, STJ:

Súmula 619, STJ: “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza
precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.”.

2.4. Composse

A composse também pode ser chamada de “coposse” ou “compossessão”. Trata-se do exercício si-
multâneo da posse por duas ou mais pessoas, é uma espécie de “condimínio da posse”.
Nas palavras de Flávio Tartuce, em relação ao seu estado, a composse admite a seguinte classifica-
ção:
i. Composse pro indiviso ou indivisível – os compossuidores têm fração ideal da posse, pois
não é possível determinar, no plano fático e corpóreo, qual a parte de cada um. Exemplo:
dois irmãos têm a posse de uma fazenda e ambos a exercem sobre todo o imóvel, retirando
dele produção de hortaliças.

ii. Composse pro diviso ou divisível – cada compossuidor sabe qual a sua parte, que é deter-
minável no plano fático e corpóreo, havendo uma fração real da posse. Exemplo: dois ir-
mãos têm a composse de uma fazenda, que é dividida ao meio por uma cerca. Em metade
dela um irmão tem uma plantação de rabanetes; na outra metade, o outro irmão cultiva be-
terrabas.

Exige-se, para a caracterização da composse, pluralidade de sujeitos e indivisibilidade do


objeto.
Caracterizada a composse, decorrerão dois efeitos:

518
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) cada copossuidor exercerá seus direitos sobre o todo e poderá defender o todo, independente-
mente de sua fração ideal. Até porque, como visto, a coisa tem de ser indivisível.
ii) se cada copossuidor exerce seu direito sobre o todo, a regra geral é a inadmissibilidade de usu-
capião por um copossuidor sobre os outros. Portanto, não pode, como regra, alegar usucapião um copos-
suidor, porque todos exercem a posse sobre o todo.
Há, todavia, uma exceção: o STJ admite a usucapião de bem condominial (ou em composse) quan-
do o usucapiente estabelecer posse com exclusividade, alijando (afastando) os demais.
A composse tem também um efeito processual. A ação possessória não é ação real, porque posse
não é um direito real. A consequência natural disso é a inexigibilidade de citação dos cônjuges (o CPC
exige a citação dos cônjuges quando se tratar de ações reais imobiliárias, como a reivindicatória e a usu-
capião):
Assim, por não se tratar de uma ação real imobiliária, promovida uma possessória contra um réu
casado, o cônjuge dele não precisaria ser citado.

2.5. Classificação da posse e seus efeitos

2.5.1. Quanto à relação pessoa coisa, ao desdobramento ou ao paralelismo (Posse dire-


ta e indireta – Art. 1.197, CC)
A possibilidade de desdobramento da posse produz como consequência a classificação da posse em
direta ou indireta.
O desdobramento de posse decorre sempre de um negócio jurídico, pelo qual o legítimo possuidor
entrega o contato físico da coisa a um terceiro, mas não perde a qualidade de possuidor.
Os dois melhores exemplos são locação e comodato. Em ambos os casos, o legítimo possuidor
(proprietário), por conta de um negócio jurídico, concede o contato físico da coisa a um terceiro, que pas-
sa a ser o possuidor direto, permanecendo o proprietário como possuidor indireto.
Desdobra-se a posse em direta e indireta para permitir que aquele que conferiu o contato físico a
um terceiro continue sendo tratado como possuidor e, consequentemente, continue dispondo da defesa
da posse.
Ex.: vigente uma locação, o locatário viaja para o exterior e, quando retorna, o imóvel foi invadido
pelo locador. O locatário ingressa com ação de reintegração de posse contra o locador. O locador, em de-
fesa, alega apenas ser proprietário do imóvel (“exceptio proprietates”). Essa ação deve ser julgada proce-
dente, pois nas ações possessórias não cabe a alegação de propriedade ou de outro direito real sobre a
coisa (art. 1.210, §2º, CC).
Portanto, tanto o possuidor direto quanto o indireto podem se valer de defesa possessória contra
terceiros. A dúvida é: um pode se valer da proteção contra o outro? O Enunciado 76 da Jornada de Direi-
to Civil responde afirmativamente:

519
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Enunciado 76 - Art. 1.197: O possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o indi-
reto, e este, contra aquele (art. 1.197, in fine, do novo Código Civil).

Não podem usucapir a coisa nem o possuidor direto, nem o indireto. O indireto não vai usucapir
porque já é proprietário. O direto também não, pois um dos requisitos da usucapião é a posse com ani-
mus domini. Posses direta e indireta dependem da existência de um negócio jurídico: havendo negócio
jurídico, não haverá animus domini. Destrói-se um dos requisitos da usucapião.
A única hipótese em que o possuidor direto pode usucapir ocorre quando o possuidor direto rom-
pe a relação jurídica base. Mais uma vez: o desdobramento da posse envolve a existência de um negócio
jurídico. Rompido o negócio jurídico, caracteriza-se o esbulho, que não envolve necessariamente violên-
cia, podendo decorrer do inadimplemento de um contrato.
Se o possuidor direto rompe a relação jurídica base, ele poderá usucapir, pois cessa imediatamente
o desdobramento. Ex.: como visto por ocasião do estudo do comodato, o comodatário não pode usucapir
a coisa, por ser possuidor direto, a menos que, notificado, não devolva a coisa, caracterizando o esbulho e
cessando o desdobramento da posse.
O proprietário é possuidor pleno. Somente haverá possuidor direto quando houver indireto. E vice-
versa.
Assim, em resumo tem-se:
a) Posse direta ou imediata: é a daquele que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em
virtude de contrato (a posse do locatário, p. ex., que a exerce por concessão do locador — CC, art.
1.197).
b) Posse indireta ou mediata: é a daquele que cede o uso do bem (a do locador, p. ex.). Dá-se o
desdobramento da posse. Uma não anula a outra. Nessa classificação não se propõe o problema
da qualificação da posse, porque ambas são posses jurídicas (jus possidendi) e têm o mesmo
valor.

2.5.2. Quanto à presença de título (Posse com e sem título):


a) Posse com título – situação em que há uma causa representativa da transmissão da posse, caso
de um documento escrito, como ocorre na vigência de um contrato de locação ou de comodato,
por exemplo.
b) Posse sem título – situação em que não há uma causa representativa, pelo menos aparente, da
transmissão do domínio fático. Exemplo: alguém acha um tesouro, depósito de coisas precio-
sas, sem a intenção de fazê-lo.
Nesse caso, a posse é qualificada como um ato-fato jurídico, pois não há uma vontade juridicamen-
te relevante para que exista um ato jurídico.
Obs.: Três regras quanto ao achado do tesouro (arts.1.264 e 1.265, CC):
i. Achei no meu terreno: é meu.

520
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. Achei no do outro, de boa-fé: meio a meio.


iii. Achei no de outro, de má-fé: é do outro (dono do terreno).

2.5.3. Quanto ao tempo (Posse nova e velha):


a) Posse nova – é a que conta com menos de um ano e um dia, ou seja, é aquela com até um ano.
b) Posse velha – é a que conta com pelo menos um ano e um dia, ou seja, com um ano e um dia ou
mais.
Segue-se, nessa classificação, a doutrina de Maria Helena Diniz e Carlos Roberto Gonçalves, entre-
tanto, há quem entenda que a posse velha é aquela com mais de um ano e um dia (Caio Mário).
Obs.: A classificação da posse quanto ao tempo é fundamental para a questão processual relativa às
ações possessórias, sendo preciso verificar a data da ameaça, da turbação ou do esbulho. Se forem:
i. Novos (menos de 1 ano e 1 dia): caberá a ação de força nova. A ação segue o rito especial e
cabe liminar.
ii. Velhos (pelo menos 1 ano e 1 dia): caberá a ação de força velha. A ação não tem rito especial,
seguindo o procedimento comum. Não cabe liminar, mas eventualmente, caberá tutela pro-
visória (art. 300 a 311, CPC).

2.5.4. Quanto à boa-fé subjetiva ou intencional (Posse de boa e de má-fé - art. 1.201 do
CC):
Seguindo a dicção de Flávio Tartuce temos:
a) Posse de boa-fé – presente quando o possuidor ignora os vícios ou os obstáculos que lhe impe-
dem a aquisição da coisa ou quando tem um justo título que fundamente a sua posse.
Orlando Gomes a divide em posse de boa-fé real quando “a convicção do possuidor se apoia em
elementos objetivos tão evidentes que nenhuma dúvida pode ser suscitada quanto à legitimidade de sua
aquisição” e posse de boa-fé presumida “quando o possuidor tem o justo título”, que traz uma presunção
relativa ou iuris tantum da boa-fé (presunção que admite prova em contrário)404.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, justo título é uma causa representativa que tenha fundamen-
to no ordenamento jurídico, que pode ser documentado ou não. Exemplo: um contrato válido e eficaz é
justo título (locação, comodato, depósito e compromisso de compra e venda, registrado ou não na matrí-
cula - CRI).
Obs.: Enunciado 302, IV Jornada de Direito Civil405

404 Enunciado 303, IV Jornada de Direito Civil – O justo título pode estar materializado em instrumento pú-
blico ou particular.
405 Enunciado 302, IV Jornada de Direito Civil – é justo título, o ato capaz de transmitir a posse “ad usucapi-

onem”, observado o disposto no art. 113, CC, o qual trata da boa-fé objetiva.

521
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

b) Posse de má-fé – situação em que alguém sabe do vício que acomete a coisa, mas mesmo assim
pretende exercer o domínio fático sobre esta.
Neste caso, o possuidor nunca possui um justo título, pois sabe que não pode ser o dono da propri-
edade. De qualquer modo, ainda que de má-fé, esse possuidor não perde o direito de ajuizar a ação pos-
sessória competente para proteger-se de um ataque de terceiro.
Diferentemente do que ocorre na teoria geral dos contratos, a boa ou má-fé de que trata a classifi-
cação da posse é a subjetiva. Ou seja, a classificação da posse em de boa ou de má-fé depende do conhe-
cimento do vício que pesa sobre ela: se o possuidor sabe dele, está de má-fé; se não sabe, está de boa-fé.
Para fins de usucapião, a boa-fé é irrelevante. Mesmo o possuidor de má-fé pode usucapir. Mas, pa-
ra fins de responsabilidade civil, frutos e benfeitorias, haverá diferença de tratamento entre os possuido-
res de boa e de má-fé.
Esta classificação não se confunde com vista a seguir, pois, naquela, os vícios são objetivos (justa
ou injusta); aqui os vícios são subjetivos (boa e má-fé). Ademais, essa classificação gera efeitos para
os frutos, as benfeitorias e responsabilidades por perda e deterioração da coisa.
Art. 1.214 a 1.220 CC Frutos Benfeitorias Responsabilidades

Sim, com exceção dos Sim, tem direito às Somente responde por
frutos pendentes. benfeitorias dolo ou culpa
necessárias e às úteis (responsabilidade
(direito à indenização subjetiva).
Posse de boa-fé e retenção). Além
(ex: locatário) disso, pode levantar as
voluptuárias (as de
mero luxo). 406
Não tem direito aos Sim, tem direito
Responde pela coisa
frutos e responde apenas às benfeitorias
Posse de má-fé até por fato acidental
pelos que colheu e necessárias (somente
(ex: invasor) pelos que deixou direito à indenização). (caso fortuito ou força
de colher. maior).
Obs.: O locatário é possuidor de boa-fé, sendo comum, por força do contrato, a renúncia ao direito
de indenização por benfeitorias necessárias e úteis (Art. 35 da Lei 8.245/1991). Confirmando tal possibi-
lidade, há a Súmula 335, STJ, a qual prevê que é válida a cláusula que versa sobre a renúncia ao direito
de indenização por benfeitorias, sem qualquer ressalva para os contratos de adesão. Entretanto, o Enun-
ciado 433, V Jornada de Direito Civil, prevê que é nula a cláusula de renúncia à indenização e de retenção

406 Possuidor de boa-fé e benfeitorias: segundo a doutrina e jurisprudência, aplica-se a mesma regra para as

acessões (construções e plantações). Nesse sentido: Enunciado 81, I Jornada de Direito Civil 6 e REsp 1.316.895/SP.

522
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

por benfeitorias necessárias, quando inseridas em contrato de adesão. Esse enunciado tem grande pres-
tígio doutrinário, mas não tem sido aplicado pela jurisprudência.

2.5.5. Quanto aos vícios objetivos (Posse justa e injusta - Art. 1.200, CC)
Segundo Flávio Tartuce:
i. Posse justa – é a que não apresenta os vícios da violência, da clandestinidade ou da precari-
edade, sendo uma posse limpa.
ii. Posse injusta – apresenta os referidos vícios, pois foi adquirida por meio de ato de violên-
cia, ato clandestino ou de precariedade, nos seguintes termos:
a) Posse violenta – é a obtida por meio de esbulho, for força física ou violência moral
(vis). A doutrina tem o costume de associá-la ao crime de roubo. Exemplo: movimento
popular invade violentamente, removendo e destruindo obstáculos, uma propriedade
rural produtiva, que está sendo utilizada pelo proprietário, cumprindo a sua função so-
cial.
b) Posse clandestina – é a obtida às escondidas, de forma oculta, à surdina, na calada da
noite (clam). É assemelhada ao crime de furto. Exemplo: movimento popular invade,
à noite e sem violência, uma propriedade rural que está sendo utilizada pelo proprie-
tário, cumprindo a sua função social.
c) Posse precária – é a obtida com abuso de confiança ou de direito (precario). Tem
forma assemelhada ao crime de estelionato ou à apropriação indébita, sendo também
denominada esbulho pacífico. Exemplo: locatário de um bem móvel que não devolve o
veículo ao final do contrato.
Diferentemente do que se pode imaginar, a posse injusta produz efeitos jurídicos. Posse é contato
físico, de modo que haverá posse mesmo quando ela for injusta.
Há possibilidade de convalescimento da posse, também chamada de “intervessão da posse”. Conva-
lescer é curar, sanar o vício. A posse injusta convalesce em dois casos:
i) quando cessada a causa que lhe originou, independentemente de prazo;
ii) quando passado o prazo de ano e dia.
Em ambos os casos, a posse injusta torna-se justa.
Entretanto, segundo a posição majoritária, a posse precária não pode ser convalidada, pois não está
mencionada no art. 1.208 do Código Civil, segundo o qual o ato de mera tolerância não induz posse, qua-
lificando-se como mera detenção:

Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autori-
zam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a
clandestinidade.

523
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Perceba que a res furtiva pode ser objeto de usucapião, na medida em que o furto gera posse clan-
destina (a qual, como visto, convalesce).
A despeito do quanto dito acima, existe um caso em que a posse precária convalesce: quando hou-
ver mutação da natureza da posse. No comodato, há posse precária. Se, na data da restituição, o comoda-
tário não devolver o bem, a partir de então ele passa a ter posse violenta, e não precária. Claro que isso é
uma excepcionalidade.
Ademais, é de se notar que segundo a corrente majoritária (Maria Helena Diniz, Carlos R. Gonçal-
ves, casal Nery), o critério para a convalidação da posse é temporal, ou sejam passados 1 ano e 1 dia, a
posse passa a ser justa (art. 558, CPC407). Em sentido contrário, Marco Aurélio Bezerra de Meloe Flávio
Tartuce defendem que o critério deveria ser a função social da posse.
Finalmente, Flávio Tartuce assevera que em relação aos seus efeitos, os vícios da violência, da
clandestinidade ou da precariedade não influenciam na questão dos frutos, das benfeitorias e das
responsabilidades. Para tais questões, leva-se em conta se a posse é de boa-fé ou má-fé, ou seja, critérios
subjetivos, analisados acima. Ainda, aquele que tem posse injusta não tem a posse usucapível (ad
usucapionem), ou seja, não pode adquirir a coisa por usucapião. O possuidor justo tem ainda ação
possessória contra o injusto; mas este não tem contra aquele, entretanto o possuidor injusto tem
ação possessória contra terceiro.

2.5.6. Quanto aos efeitos (Posse ad interdicta e ad usucapionem – Art. 1.210, CC):
a) Posse ad usucapionem – exceção à regra, é a que se prolonga por determinado lapso de tempo
previsto na lei, admitindo-se a aquisição da propriedade pela usucapião, desde que obedecidos
os parâmetros legais. ]
Em outras palavras, é aquela posse com olhos à usucapião (posse usucapível), pela presença dos
seus elementos. A posse ad usucapionem deve ser mansa, pacífica, duradoura por lapso temporal previs-
to em lei, ininterrupta e com intenção de dono (animus domini – conceito de Savigny). Além disso, em
regra, deve ter os requisitos do justo título e da boa-fé.
b) Posse ad interdicta – constituindo regra geral, é a posse que pode ser defendida pelas ações
possessórias diretas ou interditos possessórios.
Exemplificando, tanto o locador quanto o locatário podem defender a posse de uma turbação ou
esbulho praticado por um terceiro. Essa posse não conduz à usucapião.
Existem três situações determinadas, que geram três ações, havendo fungibilidade total entre elas:
i. Na ameaça, a ação cabível é o interdito proibitório.
ii. Na turbação (atentado momentâneo), a ação cabível é a manutenção da posse.

407 CPC, art. 558, caput: “Regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as normas da Se-

ção II deste Capítulo quando a ação for proposta dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho afirmado na petição
inicial.”

524
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii. No esbulho (atentado definitivo, que pode contempla total ou parcialmente o imóvel), a
ação cabível é a reintegração da posse. O esbulho pode ser invasão total ou parcial.
Flávio Tartuce assevera que além dessas ações judiciais, existem mecanismos de autotutela civil
como a legítima defesa da posse, cabível em casos de ameaça ou turbação bem como o desforço imediato
cabível nos casos de esbulho408.
Nos casos de legítima defesa, esta deve ser proporcional, razoável e imediata (incontinenti). É pos-
sível o uso de prepostos pelo possuidor.
Além disso, o detentor pode, no interesse do possuidor, fazer uso dos mecanismos de autotutela ou
autodefesa da posse. Ou seja, aquele que exerce detenção também pode usar esses mecanismos de auto-
tutela (Enunciado 493, V Jornada de Direito Civil409). Exemplo: o caseiro de uma fazenda pode fazer uso
desses mecanismos.

2.5.6.1. Espécies de ações possessórias

Como visto, a proteção civil da posse é também chamada “tutela jurisdicional da posse”. São as
ações possessórias (ou interditos possessórios). São três as ações possessórias, cada uma com uma finali-
dade específica:
i) reintegração de posse:
A ação de reintegração de posse serve para a hipótese de esbulho. Esbulho é a perda, a privação da
coisa. Como visto, embora a maioria dos casos de esbulho esteja ligada à violência, ele não se prende ne-
cessariamente à ideia de violência (mas de privação da coisa). O esbulho pode decorrer, por exemplo, do
inadimplemento contratual.
ii) manutenção de posse:
A ação de manutenção de posse serve para a hipótese de turbação. Turbação é o embaraço, a per-
turbação da posse.
iii) interdito proibitório:
O interdito proibitório serve para a hipótese de mera ameaça. Ameaça é temor, receio.
Vale aqui destacar um problema de ordem processual. Autores como Maria Helena Diniz e Wa-
shington de Barros Monteiro afirmam que essas três não seriam as únicas ações possessórias do direito
brasileiro. Dizem eles que existiriam outras, a exemplo de: i) imissão na posse; ii) dano infecto; iii) nun-
ciação de obra nova; e iv) embargos de terceiro. Para os autores, todas essas seriam também ações para a
proteção da posse.

408 Enunciado n. 495 do CJF/STJ - “no desforço possessório, a expressão ‘contanto que o faça logo’ deve ser
entendida restritivamente, apenas como a reação imediata ao fato do esbulho ou da turbação, cabendo ao possuidor
recorrer à via jurisdicional nas demais hipóteses”
409 Enunciado 493, V JDC: “O detentor (art. 1.198 do Código Civil) pode, no interesse do possuidor, exercer a

autodefesa /do bem sob seu poder.”

525
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O equívoco, todavia, salta aos olhos. No direito brasileiro somente são encontradas três ações pos-
sessórias (reintegração, manutenção e interdito proibitório). Nenhuma outra. Essas outras não são pos-
sessórias. Ação possessória é a proteção civil da posse (serve apenas para proteger a posse).
As quatro ações acima, malgrado possam até estar baseadas na posse, não são possessórias, pois a
finalidade delas não é proteger a posse.
A imissão na posse não pode ser ação possessória porque nela falta justamente o pressuposto bási-
co de uma ação possessória, que é a posse. A ação de imissão na posse tem procedimento comum ordiná-
rio e serve para que aquele que não tem a posse busque obtê-la. Todavia, se o contrato, por meio de cláu-
sula constituti, transfere a posse, a questão muda, pois aí poderá haver a possessória.
A ação de dano infecto não é possessória, mas cominatória. Através dela, o autor pretende a fixação
de uma multa para que o réu tome cuidado com obra ou construção que está realizando, evitando a ocor-
rência de um dano no vizinho. Trata-se de um ótimo exemplo de tutela inibitória. Se o dano precavido se
concretizar, o autor da ação terá direito à multa, sem prejuízo da indenização por perdas e danos. A ação
de dano infecto pode ser ajuizada tanto pelo possuidor quanto pelo proprietário. Se é assim, ela não é
possessória, ainda que possa estar baseada na posse.
A nunciação de obra nova é o procedimento especial de jurisdição contenciosa que tem como fina-
lidade proteger direitos de vizinhança, de condôminos ou os regulamentos administrativos sobre cons-
trução do Poder Público. Assim, a legitimidade para promover essa ação será do proprietário, do possui-
dor, do condomínio e do Poder Público. Exemplos: i) alguém começa a construir uma casa sem autoriza-
ção e a Prefeitura embarga a obra. O proprietário continua, sem alvará a construir a casa. A ação cabível é
a nunciação de obra nova; ii) o vizinho está abrindo uma janela ou construindo uma varanda ou terraço a
menos de um metro na zona urbana, ou três metros, em zona rural. Caberá igualmente a nunciação.
Veja que a nunciação até pode ser ajuizada pelo possuidor, mas não é ação possessória, pois defen-
de direitos de vizinhança, do condômino ou do Poder Público.
Segundo a jurisprudência, a nunciação de obra nova somente cabe se a obra não estiver acabada. O
critério é a fase de decoração. Se a obra estiver acabada, a ação cabível é a demolitória. A jurisprudência,
todavia, tem admitido a fungibilidade entre essas ações.
A nunciação de obra nova pode ocorrer de mãos próprias. É o segundo exemplo de autotutela. A
doutrina apelidou essa hipótese de jato de pedra (o direito romano admitia que fossem jogadas pedras).
O interessado realiza notificação pessoal do construtor para a cessação, com AR ou duas testemunhas, e
posteriormente requer a homologação judicial.
Por fim, a ação de embargos de terceiro, igualmente, não é ação possessória. É um procedimento
de jurisdição contenciosa tendente a atacar uma indevida constrição judicial (penhora) sobre bem de
pessoa que não é legitimada para figurar no processo de execução. Ex.: caso um dos cônjuges responda a
uma ação indenizatória e o juiz determine a penhora do bem do casal, o outro cônjuge prejudicado ajui-
zará embargos de terceiro, para a defesa de sua quota-parte.

526
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O próprio CPC diz que os embargos de terceiro podem ser manejados tanto pelo proprietário quan-
to pelo possuidor. Portanto, não há dúvidas de que eles até podem estar baseados na posse, mas jamais
se confundem com as ações possessórias.

2.5.6.2. Princípio da fungibilidade


É conveniente lembrar que a sistemática processual determina a aplicação do princípio da fungibi-
lidade entre as ações possessórias, do qual decorrem dois efeitos:
i) a possibilidade de propositura errônea da ação:
Ajuizada a ação errada, o juiz pode aproveitar a propositura para conceder a proteção possessória
apropriada.
ii) a fungibilidade aproveitará a mutação da causa de pedir durante o procedimento:
Ex.: na propositura, estava havendo turbação. Durante a ação, ocorre o esbulho. Aproveita-se o
procedimento.
Evidentemente, não se aplica a fungibilidade se, no lugar de uma possessória, for ajuizada outra
ação não possessória (ex.: imissão na posse, dano infecto etc.)

2.5.7. Posse natural e posse civil


A posse civil é também chamada de “contratual”, “constituto possessório” ou “cláusula constituti”
(art. 1.205 do CC):

Art. 1.205. A posse pode ser adquirida:

I - pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;

II - por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.

A regra geral é de que toda posse é obtida naturalmente, pelo contato físico (posse é contato físico).
Todavia, a legislação permite a aquisição de posse por força de uma relação contratual. Ou seja, a posse
pode ser adquirida independentemente de contato físico, através de um contrato, um negócio jurídico. A
isso se dá o nome de constituto possessório.
A cláusula constituti, portanto, é a aquisição da posse por força de um negócio jurídico. Existe por-
que alguém que nunca teve o contato quer ser tratado como possuidor para ter direito aos efeitos proteti-
vos da posse. Isso porque, dentre ações reivindicatória, publiciana e possessória, a que mais tem imedia-
tidade é a possessória.
Um ótimo exemplo é o contrato de leasing. O banco compra um automóvel para ele, mas quem tem
a posse do bem é o contratante. Se o contratante para de pagar as rendas mensais, o banco ajuizará rein-
tegração de posse. No contrato de leasing, o contratante transfere ao banco a posse indireta e fica com a
direta. Parando de pagar, o banco ajuíza a reintegração de posse.

2.6. Efeitos jurídicos da posse

527
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.6.1. Possibilidade de aquisição de propriedade por usucapião


A possibilidade de aquisição de propriedade por usucapião é o primeiro efeito jurídico da posse.
Veja que nem toda posse poderá gerar usucapião. Ou seja, nem toda posse será ad usucapionem.
Posse direta e indireta, como visto, não dão ensejo à usucapião.
Já a posse de má-fé e a posse injusta poderão gerar usucapião.
Importante observar que o usucapiente tem mais do que posse. Ele tem domínio. Por isso, a dou-
trina brasileira como um todo tem cometido uma injustiça com a natureza da usucapião. Ela não é ape-
nas declaratória de domínio, mas constitutiva da propriedade.
Pontes de Miranda, no Tratado das Ações, sustenta que não existem sentença puras. Toda sentença
traz consigo mais de uma carga eficacial. Assim, nada impede que essa sentença da usucapião seja, ao
mesmo tempo, declaratória de domínio e constitutiva da propriedade. E mais: se não fosse constitutiva
da propriedade, não geraria o efeito esperado, que é a oponibilidade erga omnes.

2.6.2. Responsabilidade civil do possuidor pela perda ou deterioração da coisa


A segunda consequência da posse é a responsabilização do possuidor pela perda ou deterioração da
coisa.
Neste ponto, o Código Civil realizou distinção entre a posse de boa e a de má-fé. Não há dúvidas de
que o possuidor, no exercício da posse, poderá presenciar o perecimento ou a deterioração da coisa. Se o
possuidor é de boa-fé, a responsabilidade civil dele pela deterioração da coisa será subjetiva, depen-
dendo da prova de sua culpa, com ônus de prova pela vítima (ela é que tem de provar que o possuidor
atuou culposamente).
Se o possuidor é de má-fé, diferentemente, a sua responsabilidade será objetiva, com risco inte-
gral (portanto, ele responde mesmo que o dano seja proveniente de caso fortuito ou de força maior).
Vale observar que, a rigor, o direito brasileiro não traz nenhuma hipótese de responsabilidade obje-
tiva com risco integral. Sempre haverá uma excludente. Mesmo no caso dano nuclear. Ex.: a família do
terrorista que explode uma usina nuclear (hipótese mais contundente de risco integral) não poderá de-
mandar a União pela morte dele na explosão. Nesse caso, haverá culpa exclusiva da vítima.
Assim, o possuidor de má-fé responderá mesmo nos casos de caso fortuito ou força maior, salvo se
provar que a coisa teria se perdido ou deteriorado mesmo sem a sua posse.

2.6.3. Direito à percepção de frutos


Se o possuidor é de boa-fé, ele tem o direito à percepção de todos os frutos produzidos pela coisa,
exceto os que estiverem pendentes na data de restituição da coisa. Estando pendentes, eles não podem
ser retirados, pois não estão ainda no tempo de serem colhidos. Retirados antecipadamente os frutos
pendentes, haverá responsabilidade civil.

528
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Para evitar enriquecimento sem causa, apesar de não poder colher os frutos pendentes, o possuidor
de boa-fé será ressarcido das despesas.
Se o possuidor é de má-fé, ele não faz jus a nenhum fruto. E, se colher qualquer um deles, terá de
indenizar.
Evidentemente, se o possuidor de má-fé teve despesas com a conservação dos frutos, será indeni-
zado, para evitar enriquecimento sem causa. Neste caso, muito provavelmente haverá uma compensação,
pois naturalmente ele também terá de indenizar.

2.6.4. Direito à indenização por benfeitorias


O direito à indenização por benfeitorias é o quarto e último efeito da posse de direito material.
A regra geral é de que o possuidor de boa-fé tem direito de indenização pelas benfeitorias úteis e
necessárias e de retenção (direito de se manter com a coisa até que o valor seja pago). Quanto às voluptu-
árias, ele tem direito de levantá-las, se for possível retirá-las. Não sendo possível, ele simplesmente as
perde.
O conceito de benfeitorias é finalístico. Isso significa que não há uma classificação antecipada das
benfeitorias (não há uma classificação apriorística). Elas são classificadas levando em conta a finalidade,
e não a natureza delas.
Portanto, uma mesma coisa pode se enquadrar em diferentes tipos de benfeitorias, a partir do cri-
tério finalístico. Exemplo da piscina: uma piscina na academia de natação é benfeitoria necessária. Numa
academia de ginástica, útil. Numa casa em Campos de Jordão, Petrópolis ou Gramado, do lado de fora,
sem aquecimento e em pleno inverno, ela será desnecessária, inútil e voluptuária.
Segundo o que determina o CPC, o direito de retenção deve ser exercido no processo de execução,
por meio de embargos de retenção.
Com a nova sistemática do cumprimento de sentença, Chaves vem entendendo que o direito de re-
tenção deve ser alegado pelo autor na petição inicial e pelo réu na contestação. Isso porque, em ambos os
casos, o juiz, ao proferir a sentença, já determinará efetivamente o cumprimento da retenção, ao estabe-
lecer as regras do cumprimento da sentença.
Se a parte interessada, autor ou réu, não alegar a retenção no processo de conhecimento, terá de
alegá-la no processo de execução. Segundo esse entendimento, os embargos de retenção assumiriam um
caráter residual.
Há três exceções à regra geral de indenização por benfeitorias. Ou seja, existem três possuidores de
boa-fé que se afastam da regra da indenização das benfeitorias úteis e necessárias e da possibilidade de
retirada das voluptuárias:
i) locação de imóveis urbanos (art. 35 da Lei 8.245/1991):
O art. 35 da Lei 8.345/1991 (Lei de Locações) estabelece que o locatário (possuidor de boa-fé) só te-
rá direito de indenização e retenção pelas benfeitorias úteis se houver prévia autorização do locador:

529
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 35. Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introdu-
zidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que auto-
rizadas, serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção.

Chaves entende que essa regra não pode ser aplicada às benfeitorias necessárias, sob pena de enri-
quecimento sem causa. Caso fosse, era melhor que o locatário deixasse a casa cair.
Começou-se a discutir se a cláusula prevendo renúncia antecipada ao direito de indenização e re-
tenção nos contratos de locação seria válida (ex.: “o locatário renuncia antecipadamente a todo e qual-
quer direito de indenização e de retenção”). Veja que a maioria (99,99%) dos contratos de locação é de
adesão. À luz da boa-fé objetiva, a cláusula é nula (essa é a lógica). O problema é o disposto na Súmula
335 do STJ, que a entende válida:

Súmula 335 - Nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfei-
torias e ao direito de retenção.

A Chaves, parece que essa súmula está em rota de colisão com a boa-fé objetiva. Mas, para fins de
concurso, ela deve ser sustentada.
ii) contrato de comodato (art. 584 do CC):

Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas feitas com o uso
e gozo da coisa emprestada.

Comodato é empréstimo gratuito de coisa infungível. Veja, o sujeito empresta gratuitamente uma
coisa infungível e o comodatário realiza benfeitorias úteis (aquelas que melhoram a utilidade, e não as
que garantem a integridade física da coisa, como as necessárias). A benfeitoria útil gera vantagem ao co-
modatário, especificamente no uso da coisa. Seria um absurdo que o comodante ainda tivesse de pagar
por elas.
Por isso, no contrato de comodato, somente serão indenizáveis as benfeitorias necessárias. Eviden-
temente, com direito de retenção. As benfeitorias úteis não geram indenização nem retenção. As volup-
tuárias nunca gerarão retenção e indenização.
iii) art. 26 do DL 3.365/1941 (Lei de Desapropriações):

Art. 26. No valor da indenização, que será contemporâneo da avaliação, não se incluirão os di-
reitos de terceiros contra o expropriado. (Redação dada pela Lei nº 2.786, de 1956)

§ 1º Serão atendidas as benfeitorias necessárias feitas após a desapropriação; as úteis, quando


feitas com autorização do expropriante. (Renumerado do Parágrafo Único pela Lei nº 4.686, de
1965) (...)

O art. 26 da Lei de Desapropriações estabelece que as benfeitorias realizadas nos imóveis desapro-
priados devem ser computadas no preço (todas elas, até a publicação do decreto expropriatório).

530
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Contudo, a indenização das benfeitorias realizadas no lapso temporal compreendido entre a publi-
cação do decreto expropriatório e a imissão na posse do Poder Público expropriante tem regra própria: as
voluptuárias não serão indenizáveis; as necessárias serão sempre indenizáveis (impede enriquecimento
sem causa); e as benfeitorias úteis somente serão indenizáveis com prévia autorização do Poder Público
expropriante.
Vale aqui realizar uma observação, que não tem fundamento legal. A doutrina e a jurisprudência
começaram a atentar para a seguinte situação hipotética: o possuidor de boa-fé é notificado para restituir
a coisa, dentro de determinado prazo (ex.: num comodato sem prazo, o comodatário é notificado para
devolver a coisa). Durante esse prazo, ele é evidentemente um possuidor de boa-fé (será de má-fé somen-
te se não restituir a coisa depois do prazo). Pois bem. Caso realize inúmeras benfeitorias úteis no prazo,
ele terá de ser indenizado, sob pena de direito de retenção. Com base nesse direito, ele poderia, hipoteti-
camente, ficar muito mais tempo no bem. E, como ele estaria de boa-fé, poderia continuar realizando
benfeitorias úteis, para prorrogar a posse indefinidamente.
Por conta dessa situação, a doutrina e a jurisprudência passaram a entender que as benfeitorias
úteis realizadas após a notificação do possuidor de boa-fé para a restituição da coisa continuam gerando
direito de indenização, mas não geram direito de retenção. Evidentemente, essa regra não se aplica às
benfeitorias necessárias. Também é bom lembrar que ela não se aplica às benfeitorias úteis realizadas
antes da notificação.
O possuidor de má-fé, ordinariamente, não tem direito à indenização por benfeitorias. Isso tem ló-
gica, pois, afinal de contas, ele está de má-fé. Ao contrário, será obrigado a indenizar o prejuízo que even-
tualmente causar. Todavia, com base na proibição de enriquecimento sem causa (arts. 884 e 885), é re-
conhecido ao possuidor de má-fé o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir
o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é
obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na
época em que foi exigido.

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enrique-
cimento, mas também se esta deixou de existir.

Isso também tem sentido, pois ao realizar as benfeitorias, o possuidor de má-fé garantiu a idonei-
dade da coisa. Do ponto de vista prático, provavelmente será caso de compensação, pois o possuidor de
má-fé tem a obrigação de indenizar o prejuízo causado em decorrência do uso indevido da coisa.

2.6.5. Proteção possessória

531
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O sistema jurídico brasileiro prevê uma proteção possessória binária (dualista). Ela é, a um só tem-
po, penal e civil. A proteção possessória penal se caracteriza por meio do desforço incontinenti (art.
1.210, § 1º, do CC). Já a proteção possessória civil se dá através dos chamados interditos (que significam
“ações”) possessórios. Eles são a chamada “tutela jurisdicional da posse”.

2.6.5.1. Proteção civil da posse

2.6.5.1.1. Ações possessórias de força nova e de força velha

As ações possessórias podem ser de força nova ou de força velha. Serão de força nova quando o es-
bulho ou turbação datar de menos de ano e dia. Serão de força velha quanto o esbulho ou turbação passar
de ano e dia. Note que o interdito proibitório é sempre de força nova. Podem ser de força nova ou velha
apenas as ações de reintegração e de manutenção de posse.
A diferença entre as modalidades refere-se à extensão procedimental. Se a ação é de força nova, ela
é possessória, com juízo exclusivamente possessório (ou seja, nela só se discute a posse). Veja, portanto,
que é uma ação de procedimento especial, pois prevê a possibilidade de concessão de liminar initio litis.
Se a ação é de força velha, ela é possessória (pois continua se destinando à defesa da posse), mas
tem juízo petitótio (e não possessório), passando a ter procedimento comum ordinário. E, portanto, sem
a possibilidade de concessão de liminar.
Não é possível discutir propriedade na possessória de força nova, mas é possível tal discussão na de
força velha (lembre-se de que ela é petitória). Veja que a cognição é mais ampla na ação possessória de
força velha.
A ação possessória de força nova tem procedimento com a possibilidade de concessão de liminar
initio litis, como visto. A de força velha não tem liminar, porque o procedimento é comum ordinário. To-
davia a maioria da doutrina e jurisprudência entende que, presentes os requisitos genéricos da petição
inicial, é possível uso das tutelas provisórias. Veja que tais requisitos são bem mais profundos que os da
concessão de liminar.
A ação de interdito proibitório, portanto, será sempre de força nova e terá procedimento especial.

2.6.5.2. Proteção penal da posse (desforço incontinenti ou desforço imediato)

Art. 1.210 (...) § 1o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do
indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

O desforço incontinenti é a legítima defesa da posse. Submete-se, naturalmente, aos mesmos re-
quisitos exigidos para a legítima defesa do direito penal (atualidade ou iminência, moderação nos meios
necessários para a repulsa etc.) Trata-se de um caso típico de autotutela e, consequentemente, de mitiga-
ção da regra da tutela jurisdicional (aquela segundo a qual a tutela deve ser provida pelo Estado). Vale
lembrar que sempre a autotutela deve ter previsão legal expressa.

532
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A legítima defesa da posse pode ser feita pelo possuidor direto, pelo indireto e pelo pleno.
Quando se estuda legítima defesa em direito penal, é comum se encontrar referências ao excesso
culposo. Aqui no direito possessório, isso não pode ser diferente.
Assim, é possível falar em excesso culposo na legítima defesa da posse. Quando ele ocorre, a res-
ponsabilidade do possuidor será objetiva, pois caracterizará abuso de direito, regra prevista no art. 187
do CC:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-
mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costu-
mes.

Caracterizado o abuso, a responsabilidade será objetiva. A esse respeito, vale também destacar o
Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil:

Enunciado nº 37 - Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe


de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

Se o desforço incontinenti for realizado pelo mero detentor, a responsabilidade civil recairá sobre a
pessoa a quem ele era subordinado.

2.7. Aquisição, transmissão e perda da posse

2.7.1. Aquisição da posse


Conforme se observa da análise do Art. 1.204, CC, o Código Civil adotou um modelo aberto, diferen-
temente do Código Civil de 1916.
Assim, pelo sistema atual, a posse é obtida quando se adquire qualquer dos atributos da
propriedade (GRUD:

CC, art. 1.204: “Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em
nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.”.

Exemplos: apreensão da coisa; exercício de direito; tradição (entrega da coisa); e a disposição da


coisa.
O art. 1.205, CC, prevê que a posse pode ser adquirida pela própria pessoa, pelo representante des-
sa pessoa ou por terceiro sem mandato (gestor de negócios). A aquisição da posse pode ser:
i. Originária: há um contato direto entre a pessoa e a coisa.
ii. Derivada: há uma intermediação pessoal.
Como forma originária, o exemplo típico se dá no ato de apreensão de bem móvel, quando a coisa
não tem dono (res nullius) ou for abandonada (res derelictae). Como forma derivada, o caso mais impor-
tante envolve a tradição.

2.7.1.1. Tradição no direito civil:

533
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nas palavras de Flávio Tartuce a tradição é em resumo a entrega da coisa e trata-se da principal
forma de aquisição da propriedade móvel.

2.7.1.1.1. Classificação da tradição (Washington de Barros Monteiro)

i. Tradição real (traditio rei) – dá-se pela entrega efetiva ou material da coisa, como ocorre
na entrega do veículo pela concessionária em uma compra e venda.
ii. Tradição simbólica – há um ato representativo da transferência da coisa como, por exem-
plo, a entrega das chaves de um apartamento.
É o que ocorre na traditio longa manu, em que a coisa a ser entregue é colocada à disposição da
outra parte. Ilustrando, o CC/2002 passou a disciplinar, como cláusula especial da compra e venda, a
venda sobre documentos, em que a entrega efetiva do bem móvel é substituída pela entrega de documen-
to correspondente à propriedade, cláusula conhecida como trust receipt (arts. 529 a 532 do CC).
iii. Tradição ficta – é aquela que decorre de uma presunção relativa.
Ocorre v.g na traditio brevi manu, em que o possuidor possuía em nome alheio e agora passa a
possuir em nome próprio (o exemplo típico é o do locatário, que já possuía o bem e compra o imóvel,
passando a ser também o proprietário).
Também há tradição ficta no constituto possessório ou cláusula constituti, em que o possuidor
possuía em nome próprio e passa a possuir em nome alheio (o caso do proprietário que vende o imó-
vel e nele permanece como locatário).
Obs.: Classificação da tradição segundo Orlando Gomes:
i. Tradição real.
ii. Tradição ficta ou presumida (equivale à tradição simbólica de WBM)
iii. Tradição consensual (equivale à tradição ficta ou presumida de WBM)).

2.7.2. Transmissão da posse


Segundo Flávio Tartuce quanto à transmissão da posse, prevê o art. 1.206 do Código Civil em vigor
que “a posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres”.
Trata-se de expressão do princípio da continuidade do caráter da posse que, em regra, mantém os
mesmos atributos da sua aquisição.

Nesse sentido, O art. 1.207, CC, difere duas situações:

i. Sucessor universal – caso do herdeiro legítimo ou testamentário: tem-se a continuidade da


posse (obrigatória);

ii. Sucessor singular – caso do legatário (disposição testamentária específica): tem-se a união
da posse (facultativa).

534
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ademais frisa-se que o princípio da continuidade do caráter da posse não é absoluto, podendo ser
mitigado. Como salienta Maria Helena Diniz, há uma presunção relativa (iuris tantum) de que a posse
mantém o seu caráter e não uma presunção absoluta ou iure et de iure.
Finalmente, conforme Enunciado 494, V JDC: “A faculdade conferida ao sucessor singular de so-
mar ou não o tempo da posse de seu antecessor não significa que, ao optar por nova contagem, estará
livre do vício objetivo que maculava a posse anterior.”, de modo a evitar fraudes em ações de usucapião.

2.7.3. Perda da posse


Quanto à perda da posse, o legislador civil, adotando novamente o modelo aberto, utiliza expres-
sões genéricas no seu art. 1.223: “perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor,
o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196”.
Dessa forma, cessando os atributos relativos à propriedade, cessa a posse, que é perdida, extinta.
A sistemática do CC/16 previa expressamente os casos de perda da posse, que atualmente servem
como exmplos (rol numerus apertus):
i. Pelo abandono da coisa (derrelição), fazendo surgir a coisa abandonada (res derelictae).
Essa figura não se confunde com a coisa sem dono (res nullius), nem com a coisa perdida (res per-
dita). A coisa perdida deve ser devolvida ao dono, havendo direito a uma recompensa (achádego).
ii. Pela tradição, entrega da coisa, que pode ser real, simbólica ou ficta.
iii. Pela perda ou destruição da coisa possuída.
iv. Se a coisa for colocada fora do comércio, isto é, se for tratada como bem inalienável (incon-
sutibilidade jurídica – art. 86 do CC).
v. Pela posse de outrem, ainda que contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido,
ou reintegrado à posse, em tempo competente.
vi. Pelo constituto possessório ou cláusula constituti, hipótese em que a pessoa possuía o bem
em nome próprio e passa a possuir em nome alheio (forma de aquisição e perda da posse,
ao mesmo tempo).

3. Propriedade
3.1. Noções gerais

O art. 1.228 do CC determina que o direito de propriedade é um direito subjetivo, oponível erga
omnes (absoluto), que confere ao titular um feixe de quatro poderes: uso, gozo (fruição), livre disposição
e reivindicação:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de rea-
vê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. (...)

535
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

De início, Flávio Tartuce observa que tais atributos, em regra, são faculdades jurídicas, em claro in-
tuito de abrandamento da propriedade, como bem apontado por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald.
Somente o atributo de reaver continua sendo um direito.
Importante observar ainda que o CC estabelece que, além dos quatro poderes, o proprietário preci-
sa ter também o título. Ou seja, o direito de propriedade é a soma desses quatro poderes com o título, o
qual é imprescindível para conferir a oponibilidade erga omnes. Na verdade, tal oponibilidade vem exa-
tamente do título.
Até porque, como visto, se o titular tem os quatro poderes sem o título, ele não tem propriedade,
mas mero domínio. E não tem propriedade justamente por não ter oponibilidade erga omnes.
Assim, fica fácil perceber que o direito de propriedade é exercido perante a coletividade. Já o do-
mínio é exercido sobre a coisa. O sujeito que está usucapindo e não promoveu a ação (ou ela não foi jul-
gada) tem o domínio, mas não a propriedade. Mais uma vez: somente tem propriedade quem tem título.
Além disso, quem tiver um só dos poderes (uso ou gozo), tem posse.
Os conceitos de domínio, propriedade e posse são autônomos. De ordinário, quem tem propriedade
tem domínio e posse. Todavia, o proprietário esbulhado não tem posse.
O direito de propriedade é elástico. Isso significa que os poderes do domínio podem ser fraciona-
dos. Com efeito, o proprietário pode conceder a um terceiro, por exemplo, o uso e a fruição, e permane-
cer com o título. O direito real na coisa alheia nasce exatamente desse fracionamento dos poderes do
domínio, da propriedade. Ou seja, toda vez que se fraciona o direito de propriedade, concedendo a um
terceiro um dos poderes a ela inerentes, constitui-se um direito real na coisa alheia. Todavia, tal conces-
são não abala o direito de propriedade, que permanece incólume em razão do título.
Na verdade, a constituição do direito real na coisa alheia abala severamente o domínio, sem com-
prometer a propriedade, pois o título continua gerando oponibilidade erga omnes, enquanto que o do-
mínio fica limitado.
A propriedade fica inabalada (ou seja, o proprietário não deixa de sê-lo) mesmo no caso de um di-
reito real na coisa alheia em que o terceiro receba todos os poderes do domínio. É o que ocorre na enfi-
teuse. O enfiteuta tem todos os poderes do domínio, mas não tem o título e, portanto, não tem proprie-
dade.
Isso prova que domínio, propriedade e posse são conceitos autônomos.
Nesse sentido, Flávio Tartuce conceitua a propriedade como a relação de domínio jurídico que uma
pessoa exerce sobre uma coisa. Trata-se de um direito subjetivo e fundamental, condicionado à sua fun-
ção social, conforme art. 5º, XXII e XXIII, CF. A propriedade é o direito real por excelência (art. 1.225, I
do CC).

3.1.1. Atributos da propriedade

536
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce assevera que se determinada pessoa tiver todos os atributos relativos à propriedade,
terá a propriedade plena ou alodial (G + R+ U + D). Se tiver pelo menos um dos atributos, haverá posse.
Obviamente, os referidos atributos podem ser distribuídos entre pessoas distintas, havendo a proprieda-
de restrita.
Nesse sentido, necessária uma análise pontual de cada atributo:
i. Faculdade de gozar ou fruir da coisa (antigo ius fruendi) – trata-se da faculdade de retirar
os frutos da coisa410, que podem ser naturais, industriais ou civis (os frutos civis são os ren-
dimentos) a teor do Art. 1.232, CC411, p. ex. o proprietário de um imóvel urbano poderá locá-
lo a quem bem entender, o que representa exercício direto da propriedade.
Obs.: Os frutos saem do bem principal sem diminuir a sua quantidade. Os produtos, por sua vez,
saem diminuindo.
ii. Direito de reivindicar a coisa contra quem injustamente a possua ou a detenha (ius vindi-
candi) – esse direito será exercido por meio de ação petitória412, fundada na propriedade,
sendo a mais comum a ação reivindicatória, principal ação real fundada no domínio (rei
vindicatio).
Nessa demanda, o autor deve provar o seu domínio, oferecendo prova da propriedade, com o res-
pectivo registro e descrevendo o imóvel com suas confrontações. A ação petitória não se confunde com as
ações possessórias, sendo certo que nestas últimas não se discute a propriedade do bem, mas a sua posse.
Nesse sentido, o art. 1.210, §2º, CC413, baniu a exceptio proprietatis estabelecendo a separação en-
tre os juízos possessório e petitório.
O caput do art. 1.228 do CC possibilita expressamente que a ação reivindicatória seja proposta con-
tra quem injustamente possua ou detenha a coisa. O exemplo típico envolve a ação proposta contra um
caseiro, que ocupa o imóvel em nome de um invasor (injusto possuidor).
iii. Faculdade de usar a coisa, de acordo com as normas que regem o ordenamento jurídico
(antigo ius utendi) –esse atributo encontra limites na CF/1988, no CC/2002 (v.g., regras
quanto à vizinhança) e em leis específicas, caso do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).
Obs.: O art. 1.277 do CC414 trata da chamada regra dos 3 S, que forma os seus três parâmetros: Saú-
de; Sossego; e Segurança.

410 Quanto à origem, os frutos podem ser de 3 tipos: Naturais - decorrem da essência do bem (frutas). In-

dustriais - decorrem da atividade humana (cimento de uma fábrica). Civis – rendimentos privados (juros de capi-
tal, dividendos de ações, aluguéis de imóvel).
411 CC, art. 1.232: “Os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados, ao seu proprietá-

rio, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem.”


412 Prevalece o entendimento de imprescritibilidade dessa ação (por todos: STJ, REsp 216.117/RN, 3.ª Turma,

Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 03.12.1999, DJ 28.02.2000, p. 78).


413 CC, art. 1.210, §2º: “Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de

outro direito sobre a coisa.”

537
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iv. Faculdade de dispor da coisa (antigo ius disponendi), seja por atos inter vivos ou mortis
causa – como atos de disposição podem ser mencionados a compra e venda, a doação e o
testamento.
Importante notar que os atributos da propriedade podem ser distribuídos entre pessoas distintas,
o que ocorre nos direitos reais sobre coisa alheia, especialmente nos direitos reais de gozo ou fruição.
Nesse sentido, Flávio Tartuce, ilustrando de forma mais profunda, no usufruto percebe- se uma di-
visão proporcional dos atributos da propriedade: o nu-proprietário mantém os atributos de dispor e rea-
ver a coisa; enquanto que o usufrutuário tem os atributos de usar e fruir (gozar) da coisa.
Finalmente, Flávio Tartuce destaca que a doutrina contemporânea apresenta uma distinção entre o
conceito de domínio e propriedade.
Nesse sentido, segundo Chaves e Rosenvald “O domínio é instrumentalizado pelo direito de propri-
edade. Ele consiste na titularidade do bem. Aquele se refere ao conteúdo interno da propriedade, é relati-
va, posto ser intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres positivos e
negativos de seu titular perante a coletividade”. De modo que um existe em decorrência do outro.

3.1.2. Características da propriedade


Flávio Tartuce aponta ao menos seis características no entendimento da doutrina (Maria Helena
Diniz):
i. Direito absoluto – não prevalece sob qualquer direito, mas é um direito absoluto no sen-
tido de ter uma eficácia erga omnes (contra todos).
P. Ex. existem claras limitações dispostas no interesse do coletivo, caso da função social e socio-
ambiental da propriedade (art. 1.228, § 1.º, do CC).
ii. Direito exclusivo – em regra, a propriedade se presume plena e exclusiva. É presunção
relativa ou iuris tantum.
O art. 1.231 do Código Civil prevê que a propriedade se presume plena e exclusiva até prova em
contrário. Exceção: nos casos de condomínio ou copropriedade.
iii. Direito perpétuo – a propriedade tem solução de continuidade até que ocorra um fato
modificativo ou extintivo.
Assim, o direito de propriedade permanece independentemente do seu exercício, enquanto não
houver causa modificativa ou extintiva. Exceção: Propriedade resolúvel – aquela que depende de
condição ou termo.
iv. Direito elástico – a propriedade pode ser distendida ou contraída de acordo com os seus
atributos.

414 CC, art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências

prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizi-
nha".

538
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Definição trazida por Orlando Gomes, assim, na propriedade plena, há a máxima elasticidade. No
usufruto, no uso e na habitação, vai-se diminuindo sua elasticidade.

v. Direito complexo – é complexo por seu conceito de difícil visualização e por seus atribu-
tos.
vi. Direito fundamental – previsto na CF, no art. 5º, incisos XXII e XIII.
Por tratar-se de cláusula pétra, admite o uso da técnica de ponderação de Robert Alexy com outros
direitos fundamentais, a qual foi adotada pelo CPC no art. 489, parágrafo 2º, CPC/2015.
Ademais, para Flávio Tartuce esse caráter faz que a proteção do direito de propriedade e a corres-
pondente função social sejam aplicados de forma imediata nas relações entre particulares, pelo que cons-
ta do art. 5.º, § 1.º, do Texto Maior (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).

3.2. Função social e socioambiental da propriedade (art. 5º, XXIII,


CF; art. 186, CF; art. 170, CF; art. 225, CF; art. 1228, § 1º, CC).

A função social da propriedade está prevista nos arts. 5º, XXII e XXIII, e 170, III, da CR:

Art. 5º (...) XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observa-
dos os seguintes princípios: (...)

III - função social da propriedade;

No Código Civil, ela está no art. 1.228, § 1º. O tema é muito caro e comum em concursos públicos:

Art. 1.228 (...) § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas fina-
lidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabe-
lecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

539
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Cumpre novamente advertir que, ao tratar do tema em concurso, devem ser realizadas duas refe-
rências:
i) Norberto Bobbio, “Da estrutura à função”:
Nesse livro, o autor defende que tudo o que se ensinou na ciência jurídica sempre disse respeito à
estrutura. Ou seja, sempre se ensinou “o que é o direito”. Mas Bobbio advertiu que, muito mais impor-
tante que o estudo da estrutura é o averiguar “para que serve o direito” (a sua função). Daí o título da
obra.
Nesse caminho, Bobbio disse que todo instituto jurídico deve ter uma função (um “para que serve”)
e esta função deve ser a pacificação social.
A maior prova do acerto da teoria de Bobbio é que o CC/02 possui três paradigmas/diretrizes: eti-
cidade, operabilidade e socialidade. Esta terceira diretriz, apresentada na Exposição de Motivos do CC,
nada mais é que o “para que serve” de Bobbio. Portanto, função social da propriedade é o “para que ser-
ve” a propriedade.
ii) Eros Grau:
O autor tem uma lição encantadora acerca da função social da propriedade. Ele diz que ela repre-
senta, para o direito brasileiro, “a revanche da Grécia sobre Roma”.
Grécia era humanista, democrática. O ambiente grego era de pensamento, reflexão. Roma era ex-
pansionista, bélica. No embate entre ambas, Roma venceu, expandindo-se para o Ocidente. Os valores
incorporados são sempre os do vencedor. No direito de propriedade, esse modelo expansionista reflete-
se na propriedade absoluta do CC/16 (nele, o proprietário só tinha direitos, não deveres). Com o CC/02,
o proprietário passa a ter deveres e direitos. Trata-se da humanização da propriedade, ou seja, o direito
de propriedade incorporando valores gregos (humanistas, filosóficos), numa revanche aos modelos tota-
litaristas romanos.
A função social da propriedade foi estabelecida no CC/02 como uma condicionante ao exercício do
direito da propriedade. Na CR, é garantido o direito de propriedade, desde que atendida sua função soci-
al (art. 5º, XXII e XXIII).
A função social da propriedade está posicionada no âmbito interno da propriedade, não no externo.
Isso significa que ela não é um limite exógeno (externo) para o exercício da propriedade, mas o próprio
conteúdo daquele direito. E é o próprio conteúdo exatamente por ser uma condicionante.
Se a função social é uma condicionante, o proprietário que não cumpri-la pode ser dela privado.
Prova disso é a desapropriação judicial indireta, estudada anteriormente. Trata-se de um excelente
exemplo da privação do direito de propriedade que pode ser imposta àquele que não cumpre a sua fun-
ção social.
A função social da propriedade impõe ao proprietário o cumprimento de obrigações positivas e ne-
gativas. Em outras palavras: a função social implica numa “obrigacionalização” do direito de proprieda-
de. Isso porque o proprietário, como dito, deixa de ter somente poderes e passa a ter também deve-

540
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

res/obrigações. É mais ou menos o ditado: “a todo bônus corresponde o ônus”. Essas obrigações podem
ser de diferentes naturezas (são as obrigações mais diversas imagináveis).
A função social da propriedade hospeda diferentes funções. Dentro dela estão, por exemplo, as fun-
ções ambiental (ex.: reserva legal de imóvel rural, que na região amazônica pode chegar a 80%), econô-
mica, humana (direito de moradia). Veja que o sujeito que tem dez apartamentos, mora em um e aluga
nove cumpre a função social (humana e econômica). Aquele que possui uma grande fazenda, com pecuá-
ria, agricultura etc. cumpre também a função social. O “para que serve” da propriedade, portanto, pode
ser de diversos modos (diferentes funções e, portanto, diferentes modos de cumprimento da função soci-
al da propriedade).
O STF entende que a função social é um valor de aplicação direta, ou seja, que independe de lei.
Exemplo disso está em sua Súmula 668, que trata da questão relativa ao IPTU progressivo:

Súmula 668 - É INCONSTITUCIONAL A LEI MUNICIPAL QUE TENHA ESTABELECIDO,


ANTES DA EMENDA CONSTITUCIONAL 29/2000, ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS PARA O
IPTU, SALVO SE DESTINADA A ASSEGURAR O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE URBANA.

O IPTU progressivo, cuja cobrança somente foi autorizada pela EC 29/2000, já era cobrado através
de leis municipais anteriores a ela, que tiveram a constitucionalidade questionada no STF. O Supremo se
manifestou no sentido de que, antes da EC 29/2000, as leis municipais que instituíram a cobrança do
IPTU progressivo seriam inconstitucionais, salvo se o fundamento para a cobrança fosse o descumpri-
mento da função social da propriedade. Ou seja, o STF disse que a função social da propriedade já pode-
ria ter sua aplicação direta no caso concreto. Consequentemente, não haveria necessidade de outra nor-
ma.
Hoje, há uma tese muito moderna, apelidada de “função social das propriedades”. Isso porque se
vem chamando a atenção para o fato de que não é uma ou outra propriedade que tem de cumprir a fun-
ção social, mas todo e qualquer tipo de propriedade (rural, urbana, intelectual etc.) Por isso falar-se em
“propriedades”, no plural, e não apenas em “propriedade”.
Exemplos:
i) função social da propriedade rural:
Exemplo de observância da função social da propriedade rural é desapropriação para fins de re-
forma agrária.
ii) função social da propriedade urbana:
Segundo o Estatuto da Cidade, o descumprimento da função social implica na aplicação pelo pre-
feito das seguintes sanções: edificação compulsória, parcelamento compulsório, IPTU progressivo e de-
sapropriação. Tão importante é essa regra que o Estatuto da Cidade diz que, se o Prefeito deixar de fazê-
lo, responde por improbidade.
iii) função social da propriedade intelectual:

541
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo de observância da função social da propriedade intelectual é a mitigação da proteção con-


ferida ao direito autoral. Os municípios do Rio de Janeiro e de Campina Grande foram autuados por es-
tarem realizando festas públicas sem o recolhimento dos direitos autorais ao ECAD. O STJ entendeu que,
quando as festas forem públicas, difundindo cultura, o proprietário não terá direito autoral. Trata-se e
exemplo da função social do direito autoral. Outro exemplo: quebra de patente de medicamentos para a
AIDS.
iv) função social da empresa:
Exemplo de função social da empresa é a norma que determina que toda e qualquer pessoa jurídica
(de direito público ou privado) precisa ter estabelecimentos com adaptações para garantir a acessibilida-
de às pessoas com deficiência. Não há subsídio do governo, abatimento de tributos etc. O ônus do paga-
mento dessas adaptações é do proprietário. Outro exemplo: meia-entrada estudantil. O governo não sub-
sidia, mas a empresa está limitada à observância da regra.
A função social da empresa é uma variação da função social da propriedade. Define-se como a
“empresarialidade responsável”.

3.2.1. Função Social da propriedade


Na lição de Orlando Gomes, a palavra "função" quer dizer finalidade. A palavra "social” tem o sen-
tido de coletivo, assim, a propriedade tem uma finalidade coletiva. O raciocínio do jurista clássi-
co foi inspirado nos ensinamentos de Leon Duguit (jurista francês) que adotou a ideia de que a proprie-
dade é função social, ou seja, a propriedade deve atender, ao mesmo tempo, aos interesses dos seus titu-
lares e ao bem-estar social, funcionando como um limite para o exercício da propriedade bem como defi-
ne o conteúdo da propriedade.
De um lado, a doutrina de Duguit é o marco doutrinário da função social da propriedade, de outro,
a Constituição Alemã de Weimar (1919) é seu marco legislativo, uma vez que ao adotar a tese do Francês,
trouxe a concepção de que a propriedade traz em seu âmago, além de direitos, obrigações415.
Ademais, Segundo José de Oliveira Ascensão, deve-se compreender a função social da propriedade
com dupla intervenção, a) Intervenção limitadora (ou negativa) – na medida em que ela limita ou res-
tringe o exercício e b) Intervenção impulsionadora (ou positiva) – pois, ela impõe condutas. Ideia de dar
uma destinação positiva à coisa (utilizar o bem para o bem).

415Artigo 14 da Constituição Alemã em vigor. [Propriedade – Direito de sucessão – Expropriação] 1. A


propriedade e o direito de sucessão são garantidos. Seus conteúdos e limites são definidos por lei. 2. A propriedade
obriga. Seu uso deve servir, ao mesmo tempo, ao bem comum. 3.Uma expropriação só é lícita quando efetuada para
o bem comum. Pode ser efetuada unicamente por lei ou em virtude de lei que estabeleça o modo e o montante da
indenização. A indenização deve ser fixada tendo em justa conta os interesses da comunidade e dos afetados. Quan-
to ao montante da indenização, em caso de litígio, admite-se o recurso judicial perante os tribunais ordinários.”.

542
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Esse raciocínio é estampado no artigo 186, CF416, que prevê parâmetros para o atendimento da fun-
ção social da propriedade rural. Segundo a doutrina, esses parâmetros podem ser utilizados para a fun-
ção social da propriedade urbana. Entendimento de José Afonso da Silva e Gustavo Tepedino.
Portanto, são 4 os requisitos simultâneos para a função social:
i. Desenvolvimento sustentável;
ii. Tutela do bem ambiental;
iii. Proteção dos trabalhadores;
iv. Bem-estar geral.
Não atendendo a um desses requisitos, a propriedade não cumpre a sua função social. A sanção, no
caso de descumprimento da função social da propriedade, é a desapropriação agrária (imóvel rural – art.
184, CF).
Na contramão da previsão do Art. 186, a própria CF estabelece no artigo 185, CF, que não cabe de-
sapropriação agrária de propriedade produtiva.
Assim, Luiz Edson Fachin, Paulo Lôbo, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald, Gustavo Tepedino e
Flávio Tartuce defendem que cabe desapropriação agrária de propriedade produtiva que não atenda a
função social, vez que o Art. 186 prevalece sobre o Art. 185.

3.2.2. Função Socioambiental da propriedade


Na lição de Flávio Tartuce, a Lei Civil foi além de tratar da função social, pois o Art. 1.228, § pri-
meiro consagra a função socioambiental da propriedade:

CC, art. 1.228, § 1o “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas fina-
lidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabe-
lecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

Nesse sentido, o CC/2002, há tanto uma preocupação com o ambiente natural (fauna, flora, equilí-
brio ecológico, belezas naturais, ar e águas), como com o ambiente cultural (patrimônio cultural e artísti-
co).
Para tanto, os Tribunais Superiores têm tentado concretizar o quanto previsto pelo artigo, de modo
que tem entendido que o adquirente do imóvel deve fazer a sua recuperação ambiental, mesmo não sen-
do o causador do dano, a teor da Súmula 623:

Súmula 623, STJ: As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível

416CF, art. 186: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segun-
do critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e ade-
quado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância
das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores".

543
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.”.

3.3. Extensão do direito de propriedade

O art. 1.229 do CC estabelece com clareza que a propriedade do solo abrange também o espaço aé-
reo e o subsolo. Todavia, o proprietário não pode se objetar a atividades que não violem o seu legítimo
interesse. Ex. ele não pode se objetar à passagem do avião ou do metrô:

Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altu-
ra e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que
sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse
legítimo em impedi-las.

O subsolo não pertence à União. Segundo o art. 1.230 do CC, pertencem à União somente as rique-
zas minerais existentes no local (ou seja, muito melhor):

Art. 1.230. A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os
potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis
especiais. (...)

De qualquer maneira, se o proprietário quiser, poderá utilizá-las para emprego imediato na cons-
trução civil, sem exploração econômica (art. 1.230, parágrafo único: sem “transformação industrial”). Só
quem pode autorizar a exploração econômica é a União:

Art. 1.230 (...) Parágrafo único. O proprietário do solo tem o direito de explorar os recursos mi-
nerais de emprego imediato na construção civil, desde que não submetidos a transformação in-
dustrial, obedecido o disposto em lei especial.

3.4. A descoberta

Os operadores do direito têm obsessão por palavras difíceis ou pela mutação do sentido original da
palavra (ex.: tradição é a mera entrega). O art. 1.233 do CC trata da descoberta:

Art. 1.233. Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo pos-
suidor.

Parágrafo único. Não o conhecendo, o descobridor fará por encontrá-lo, e, se não o encontrar,
entregará a coisa achada à autoridade competente.

Para o direito civil, descoberta é encontrar coisa alheia móvel perdida. Aquele que o faz é chamado
de “descobridor”. Trata-se de um ato-fato jurídico.
O descobridor terá direito a uma indenização (se provar que teve despesas em decorrência da des-
coberta) e a uma recompensa. Esta recompensa é chamada de “achádego”.

544
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O achádego será fixado pelo juiz, em valor não inferior a 5% do valor da coisa. Ex.: encontrado um
cachorro perdido, o descobridor terá direito às despesas que teve com o veterinário, ração e a uma re-
compensa.
O descobridor é obrigado a devolver a coisa. Em direito civil, não se aplica o ditado: “achado não é
roubado”. A restituição deve ser feita ao legítimo proprietário. Não sendo conhecido, deve ser feita à au-
toridade policial.
Somente existem dois casos em que o descobridor pode ficar com o bem para si:
i) quando o proprietário não quiser pagar a recompensa e renunciar à coisa;
ii) quando, não encontrado o proprietário, o Poder Público municipal não tiver interesse na coisa.
Fora dessas duas hipóteses, a coisa alheia móvel descoberta tem de ser restituída, com direito a re-
compensa.
A descoberta não se confunde com dois institutos que muito se parecem com ela:
i) ocupação (art. 1.263 do CC):

Art. 1.263. Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não
sendo essa ocupação defesa por lei.

Ocupação é a localização de coisa móvel sem dono. Ela tem natureza jurídica de modo originário de
aquisição da propriedade móvel (diversamente da descoberta, que é ato-fato e não gera aquisição de pro-
priedade). Exemplo de ocupação: caça e pesca.
ii) arrecadação de coisas vagas (art. 1.175 do CPC):

Art. 1.175. O procedimento estabelecido neste Capítulo aplica-se aos objetos deixados nos hotéis,
oficinas e outros estabelecimentos, não sendo reclamados dentro de 1 (um) mês.

Na arrecadação de coisas vagas, o que se tem é o abandono de um bem móvel em um estabeleci-


mento. Ex.: lavanderia, oficina mecânica, assistência técnica.
A cláusula segundo a qual o cliente perde a coisa se não buscá-la em determinado prazo é nula de
pleno direito. Todo objeto abandonado em estabelecimento gera procedimento de arrecadação de coisas
vagas, que de jurisdição voluntária. O interessado ajuíza a ação, formulando o requerimento. O juiz cita o
réu para pagar a dívida e recuperar a coisa. Se não pagar, o juiz manda a coisa à hasta pública e, com o
dinheiro arrecadado, paga o autor. Não existe a hipótese de o autor ficar com o bem para si. Seria hipóte-
se de exercício arbitrário das próprias razões.

3.5. Tutela jurídica da propriedade

A tutela jurídica da propriedade se dá através de ação reivindicatória, que é um mecanismo de pro-


teção da propriedade.

545
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É importante perceber que nada impede que o proprietário se valha de outras ações (ex.: dano in-
fecto, nunciação de obra nova, embargos de terceiros etc.) Várias ações podem estar baseadas na propri-
edade, mas a ação de defesa da propriedade é a reivindicatória.
É pressuposto da ação reivindicatória a apresentação do título (do registro). A ação reivindicatória
depende da prova do título, sem o qual ela não é cabível, mas a publiciana (que é aquela voltada à pro-
teção do domínio).
A ação reivindicatória é meramente declaratória e, por conseguinte, imprescritível. E mais: subme-
te-se a procedimento comum ordinário, sem a possibilidade de concessão de liminar (mas com a possibi-
lidade de tutela antecipada, atendidos os requisitos genéricos do CPC).
A competência para processar e julgar a reivindicatória é do foro da situação da coisa, regra de
competência absoluta:

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da
coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio
sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nun-
ciação de obra nova.

3.6. Propriedade resolúvel

3.6.1. noções gerais


A regra geral é a de que o direito de propriedade é perpétuo. Perpétuo é o direito que permanece
mesmo depois da morte do seu titular. Vitalício é o direito que dura até a morte de seu titular, como os
direitos da personalidade. O direito de propriedade não é vitalício, mas perpétuo.
Os arts. 1.359 e 1.360 do CC, contudo, estabelecem uma exceção à regra da perpetuidade da propri-
edade. É o que se chama de “propriedade resolúvel”, na qual a propriedade se extinguirá antes da morte
do seu titular.
Mas veja, se a regra geral é a da perpetuidade, a propriedade somente poderá ser resolúvel nos ca-
sos previstos em lei.
Condição e termo são exemplos de propriedade resolúvel.

3.6.2. Causas de resolubilidade


A propriedade será resolúvel com base em dois diferentes motivos (também chamados de “causas
de resolubilidade”): i) resolubilidade com causa originária (art. 1.359 do CC); e ii) resolubilidade com
causa superveniente ou derivada (art. 1.360 do CC).

3.6.2.1. Resolubilidade com causa originária

Art. 1.359. Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, en-
tendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário,
em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou dete-

546
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

nha.

A resolubilidade terá causa originária quando o próprio título aquisitivo de propriedade indicar o
seu término. Em outras palavras: terá causa originária quando já nascer resolúvel, com data certa para se
extinguir.
Exemplos:
i) retrovenda (art. 505 do CC):

Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo
de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do com-
prador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escri-
ta, ou para a realização de benfeitorias necessárias.

Retrovenda é a cláusula acessória do contrato de compra e venda que prevê a possibilidade de o


vendedor comprar a coisa de volta no prazo máximo de três anos.
Assim, havendo cláusula de retrovenda, durante três anos, a qualquer tempo, o vendedor pode ad-
quirir o bem de volta. Nesse prazo decadencial, o adquirente terá propriedade resolúvel com causa origi-
nária, pois a qualquer tempo ela pode se extinguir e a causa de sua extinção está prevista originariamen-
te.
ii) fideicomisso (art. 1.952 do CC):

Art. 1.952. A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao
tempo da morte do testador.

Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adqui-
rirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduci-
ário.

É possível contemplar uma prole eventual em testamento, indicando um substituto. Fideicomisso é


justamente a indicação de substituto no testamento deixado em favor de prole eventual (conceituada
como o filho que alguém terá). Veja que não se trata de contemplação do nascituro (não há que se falar
em nascituro se a mulher não está grávida).
No fideicomisso, o substituto (fiduciário) recebe primeiro, aguardando a concepção. Haverá o pra-
zo de dois anos, contados da abertura da sucessão, para a concepção do filho. Advindo a concepção den-
tro desse prazo, com nascimento com vida, extingue-se a propriedade a consolida-se a propriedade na
prole que veio à vida. Trata-se de mais um exemplo de propriedade resolúvel, que fica nas mãos do subs-
tituto. O substituto (fiduciário) sabe de antemão que, a qualquer tempo, poderá perder a propriedade
para o fideicomissário.
Se, dentro desse prazo de dois anos, não ocorrer a concepção, a propriedade resolúvel se transmu-
da em perpétua, consolidando-se em favor do substituto.

3.6.2.2. Resolubilidade com causa superveniente ou derivada


547
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.360. Se a propriedade se resolver por outra causa superveniente, o possuidor, que a tiver
adquirido por título anterior à sua resolução, será considerado proprietário perfeito, restando à
pessoa, em cujo benefício houve a resolução, ação contra aquele cuja propriedade se resolveu
para haver a própria coisa ou o seu valor.

A propriedade será resolúvel com causa superveniente quando, apesar de ter nascido perpétua, por
força de decisão judicial ela se extingue antes do óbito do titular. Somente a decisão judicial é que, consi-
derando esse fato, transmudará a natureza da propriedade de perpétua para resolúvel.
Exemplo: revogação da doação (art. 557 do CC):

Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encar-
go.

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra
ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

Feita a doação em favor de alguém, o donatário recebe propriedade perpétua. Caso o donatário, por
exemplo, tente matar o doador, o juiz, reconhecendo esse fato, revoga a doação realizada.

3.6.3. efeitos da propriedade resolúvel


Relativamente à propriedade resolúvel, o mais importante a se estudar são os seus efeitos. São eles:
i) resolubilidade com causa originária:
Extinta a propriedade, extinguem-se também os direitos constituídos em sua pendência (ex.: hipo-
teca). Neste caso, não há terceiros de boa-fé (ex.: banco que realiza a hipoteca), pois a causa de resolução
já constava do título aquisitivo.
ii) resolubilidade com causa superveniente:
Extinta a propriedade, são preservados os direitos constituídos em sua pendência, em proteção aos
terceiros de boa-fé. Ex.: realizada uma doação, o donatário vende o imóvel a um terceiro. Esse terceiro
compra uma propriedade perpétua (estando, repita-se, de boa-fé). Revogada a doação, ele não é atingido,
ficando com o imóvel para si. Todos os efeitos são mantidos e o legítimo proprietário disporá de ação
regressiva.
Em resumo, a propriedade resolúvel sempre se extinguirá para o titular. O problema é saber se a
extinção atingirá ou não os terceiros de boa-fé. Se a causa é originária, ele não está de boa-fé, sendo atin-
gido. Se superveniente, o terceiro estará de boa-fé, não sendo atingido.

548
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.7. Propriedade aparente

A propriedade aparente é um tema pouco explorado no Brasil. O primeiro autor a tratar dela foi
Orlando Gomes. Trata-se de uma hipótese de incidência da teoria da aparência.
É uma situação jurídica em que uma pessoa se apresenta (se comporta) aos olhos de todos como se
o legítimo proprietário fosse. Mas, independentemente de sua boa-fé, desperta interesse de terceiros de
boa-fé. Quando isso ocorre, esses terceiros de boa-fé estarão efetivamente protegidos.
Ex.: uma pessoa morre e não deixa filhos. Os pais arrecadam a herança e, penosos, resolvem ven-
der os bens adquiridos por força da herança. O terceiro que compra a coisa está de boa-fé (os vendedores
tinham título e eram proprietários). Depois da venda, é ajuizada ação de investigação de paternidade
post mortem, cumulada com petição de herança, que resta julgada procedente, reconhecendo o filho do
de cujus. Nessa hipótese, os compradores não são atingidos, por serem terceiros de boa-fé. O legítimo
proprietário tem direito de regresso contra os avós, proprietários aparentes.
Assim, o ordenamento protege sempre o terceiro de boa-fé. O proprietário aparente responderá em
nível de regresso.
Mudando um pouco o exemplo, se os pais houvessem realizado uma doação, a questão muda. Por
causa da gratuidade, doação tem presunção de má-fé (de fraude contra credores). Presunção relativa,
evidentemente. A boa-fé presume-se nos negócios onerosos.
O CC não fala de propriedade aparente de forma expressa, mas nos arts. 1.827 e 1.828 trata do her-
deiro aparente (exemplo acima), que é um tipo de propriedade aparente:

Art. 1.827. O herdeiro pode demandar os bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem
prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

Parágrafo único. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a ter-
ceiro de boa-fé.

Art. 1.828. O herdeiro aparente, que de boa-fé houver pago um legado, não está obrigado a pres-
tar o equivalente ao verdadeiro sucessor, ressalvado a este o direito de proceder contra quem o
recebeu.

Veja que o ordenamento não protege o proprietário aparente, mas o terceiro de boa-fé. É, portanto,
irrelevante se o proprietário aparente está de boa ou de má-fé.

3.8. Modos aquisitivos da propriedade

O ordenamento jurídico distingue os modos aquisitivos da propriedade em: i) originários; e ii) de-
rivados. O modo originário de aquisição é sem translatividade, que é a relação jurídica entre o anterior e
o novo proprietário. Se o modo é derivado, existe translatividade.

549
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Essa distinção é importante por um motivo: se o modo é originário, a propriedade será adquirida
livre e desembaraçada de vícios que recaiam sobre ela; se é derivado, será adquirida com todos os vícios
que porventura possua.
Até porque ninguém pode dar mais do que tem. Se o proprietário tem uma propriedade viciada
(ex.: embaraçada com um gravame), ele a transmitirá com tal gravame.
No CC/02, são três os modos de aquisição da propriedade:
i) registro imobiliário (derivado);
ii) acessões (originário);
iii) usucapião (originário).
Na usucapião e nas acessões, portanto, a propriedade é adquirida livre e desembaraçada. Se o imó-
vel hipotecado for adquirido por usucapião, cessa a hipoteca; se por registro, permanece a hipoteca.

417

3.8.1. Aquisição por registro público

3.8.1.1. Disciplina legal

O direito brasileiro disciplina a aquisição por registro público através do CC/02 e da Lei de Regis-
tros Públicos, a qual facilitou a terminologia, chamando, para fins de registro de imóvel, tudo de “regis-
tro” (e não de “matrícula”, “anotação”, “averbação”), no que se refere aos efeitos do ato.
Diferentemente do direito alemão, no direito brasileiro o registro público tem força probante rela-
tiva de propriedade (ou seja, presunção relativa). Assim, ele comporta prova em contrário. Exemplo disso

417 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

550
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

é a evicção: uma pessoa compra e registra o imóvel como seu. Vem uma sentença e tira o imóvel do pro-
prietário, conferindo-o a um terceiro.
Se é assim, no direito brasileiro pode haver a invalidade do registro público (ex.: por uma falsida-
de).
O art. 214 da LRP estabelece que a invalidade de um registro público pode ser reconhecida em
qualquer tipo de ação, não sendo necessária uma ação específica para tanto:

Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, indepen-
dentemente de ação direta. (Renumerado do art. 215 com nova redação pela Lei nº 6.216, de
1975). (...)

Ajuizada uma ação de invalidade de registro (aquela em que se quer anular ou declarar nulo deter-
minado registro), o réu pode alegar em seu favor o chamado “usucapião tabular” (art. 214, § 5º, da LRP)
com o qual ele consegue evitar a declaração de nulidade ou a anulação pleiteada:

Art. 214 (...) § 5º A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preen-
chido as condições de usucapião do imóvel. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

Isso porque, se o réu já preencheu os requisitos da usucapião, ao reconhecer a invalidade o magis-


trado atenta contra a celeridade e a economia, já que o perdedor poderia ajuizar a ação de usucapião.
A usucapião tabular, portanto, pode ser alegada em qualquer ação em que se discuta a invalidade
ou a nulidade do registro (as quais, por sua vez, podem ser arguidas em qualquer ação).
Há somente um caso em que o registro público tem presunção absoluta de veracidade: é o caso do
“registro torrens”, aquele feito por procedimento judicial e por prazo determinado. O Brasil tem pouca
tradição nesse instituto, que é exclusivo dos imóveis rurais. É um procedimento judicial, ouvido o MP e
publicados editais.

3.8.1.2. Retificação de registro público


A lei prevê três diferentes espécies de retificação de registros:
i) retificação em cartório:
A retificação do registro pode ser feita diretamente em cartório quando não houver interesse de
terceiros. Ex.: retificação do nome do adquirente, por um erro.
ii) retificação em juízo registral (ou seja na Vara de Registros Públicos):
A retificação em juízo registral tem de ser realizada quando houver interesse de terceiros, mas não
decorrer ampliação de área. Seria, por exemplo, o caso de modificação do valor da compra e venda (o
Fisco e o alienante são interessados, no exemplo). Neste caso, trata-se de procedimento de jurisdição
voluntária.
iii) retificação em Vara Cível, por meio de ação ordinária:

551
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A retificação em Vara Cível, por meio de ação ordinária, ocorrerá quando houver interesse de ter-
ceiros e ampliação de área. Trata-se da hipótese do proprietário querer modificar as medidas do imóvel
(ex.: o imóvel tem 500 e não 50 metros quadrados).
Hoje, a doutrina já alude à “função social registral”. É a preocupação com os impactos, as conse-
quências que decorrem de um registro público sobre a boa-fé de terceiros. As pessoas tendem a crer no
Registro Público (até porque ele tem presunção de veracidade). De fato, se um terceiro realiza um negó-
cio acreditando em um registro público, ele merece proteção.

3.8.2. Acessões
As acessões são acréscimos da coisa, gerando ampliação ou aquisição de propriedade. O CC/02 as
divide em dois grupos:
i) artificiais (também chamadas de “humanas”), decorrentes da ação humana: são as construções e
as plantações.
ii) naturais (decorrentes da natureza): são a avulsão, o aluvião, o abandono de álveo e a formação
de ilhas.
Trata-se de assunto de muita importância prática, recorrente em Estados com rios.

3.8.2.1. Avulsão
Avulsão é o desprendimento abrupto e repentino de terras de uma propriedade ribeirinha, as quais
se prendem a outra propriedade. A enchente pode ser causadora de uma avulsão, se arrastar um pedaço
de terra.
O proprietário prejudicado dispõe do prazo decadencial de um ano para reclamar a avulsão. Isso
porque ele não tinha como impedir o desprendimento abrupto ou repentino. O proprietário que adquire
pode optar por indenizar ou devolver as terras adquiridas, se for possível a devolução (o que quase nunca
ocorrerá).

3.8.2.2. Aluvião
Aluvião é o desprendimento lento e paulatino de terras, que se vão somando a outra propriedade. O
exemplo, aqui, não é da enchente, mas do assoreamento. Se aluvião é lenta e paulatina, ela pode ser evi-
tada. Não há, em razão disso, previsão de indenização: o proprietário poderia tê-la evitado. Se não o fez,
assumiu o risco.

3.8.2.3. Álveo abandonado


O art. 9º do Código de Águas traz a definição de álveo:

Art. 9º Álveo é a superfície que as águas cobrem sem transbordar para o sólo natural e ordinari-
amente enxuto.

552
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Trata-se do o leito do rio ordinariamente encoberto pelas águas, ou seja, da superfície do rio nor-
malmente encoberta pelas águas. O álveo está normalmente submerso. Todavia, fenômenos naturais ou
humanos podem implicar no seu abandono. O rio que seca abandona o álveo.
Surge a dúvida: a quem pertence o álveo abandonado? Ao proprietário ribeirinho, na proporção de
suas testadas, mesmo que este rio seja navegável. Rio navegável pertence à União. O álveo abandonado
de um rio navegável não pertence, por essa razão, à União. O rio secou. Se não tem mais água, não será
mais navegável, passando a pertencer ao proprietário ribeirinho.

3.8.2.4. Formação de ilhas


Ilhas são acúmulos de detritos ou de terras dentro de um rio ou de um mar. Regra geral, o regime
jurídico delas é de direito público, e não privado. As ilhas formadas nos mares e nos rios navegáveis or-
dinariamente pertencerão à União. Todavia, se a ilha se forma em rio não navegável, ela não pertencerá à
União, sendo matéria de direito privado.
Assim, a quem pertence a ilha formada no rio não navegável? Aos proprietários ribeirinhos, na
proporção de suas testadas, respeitada a linha de Talveg (a linha imaginária que divide o rio no meio). Se
a ilha se formar no meio do rio, portanto, ela será dividida no meio entre os proprietários ribeirinhos, na
proporção de sua testada e no limite daquela linha.

3.8.2.5. Construções e plantações

Construções e plantações são acessões desenvolvidas pela ação humana. O CC/02 as submete ao
postulado da gravitação jurídica: o acessório segue o principal. O principal é o solo. Portanto, as constru-
ções e plantações pertencem ao titular do solo.
Aquele que planta ou constrói em terreno alheio ordinariamente perde a construção ou plantação
para o proprietário do solo.
Evidente que o proprietário do solo pode ser obrigado a indenizar a melhoria, para evitar enrique-
cimento sem causa. Por outro lado, se ela não for de interesse do proprietário do solo, o construtor ou
plantador pode ser obrigado a desfazer a construção ou plantação.
O art. 1.255, parágrafo único, do CC abriu uma exceção à incidência da regra da gravitação: se o
construtor ou plantador estiver de boa-fé e o valor da construção ou plantação excede manifestamente o
do terreno, inverte-se a gravitação. Isso significa que o dono do acessório adquire o principal, indenizan-
do:

Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do propri-
etário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.

Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno,


aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamen-
to da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

553
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: em Aracaju, um homem faleceu, deixando cinco filhos e um vasto patrimônio. O inventário foi
feito consensualmente, tendo os filhos resolvido construir um hotel, em terreno localizado na frente da
praia. Tempos depois, aparece um testamento que o falecido havia feito, homologado pelo juiz, provando
que aquele terreno tinha sido legado a um terceiro. Esse terceiro afirmou que o hotel pertenceria a ele,
pela teoria da gravitação. Não foi o que ocorreu: os donos do hotel, que estavam de boa-fé, adquiriram o
terreno e tiveram de indenizar.
Construção e plantação não se confundem com benfeitoria. Alguns autores estabelecem a diferença
por um critério quantitativo, que não é o melhor. Para Chaves, o melhor é o finalístico: se o acréscimo
tem uma finalidade específica em relação à coisa principal, é benfeitoria; se não tem finalidade específi-
ca, é acessão (construção ou plantação). Uma churrasqueira ou uma lavanderia construída no fundo da
casa têm finalidade específica: são benfeitorias. Uma casa construída sobre a casa, para a filha morar,
não tem finalidade em relação à outra casa, sendo construção. Um curral em fazenda com pecuária é
benfeitoria (tem finalidade).
Essa diferença é meramente doutrinária, acadêmica. Sob o ponto de vista prático, não haverá pro-
blemas: o destino das acessões é o mesmo das benfeitorias (na prática, ambas darão no mesmo lugar).
Não há distinção do regime jurídico (são acessórios, seguindo o principal), exceto pelo seguinte: a regra
de inversão da gravitação serve somente às acessões, nunca às benfeitorias.

3.8.3. Usucapião

3.8.3.1. Noções gerais

Em sentido clássico, nas palavras de Caio Mario da Silva Pereira, a usucapião418 é tida como uma
forma de prescrição aquisitiva. Além disso, trata-se de uma forma originária de aquisição da proprieda-
de, em que há um contato direto entre a pessoa e a coisa, a palavra usucapião provém do latim “usuca-
pio”: aquisição pelo uso.
Como forma originária de aquisição, apropriedade é “zerada” ou “resetada”, o que gera alguns
efeitos como a abertura de uma matrícula nova, o desaparecimento de todos os ônus, encargos e direitos
reais que eventualmente recaiam sobre o bem (ex.: dívidas condominiais e hipoteca).
A ocorrência da usucapião demanda existência de posse qualificada que se transforma em proprie-
dade. Há transmudação do domínio fático em domínio jurídico, desde que presentes os requisitos de
uma posse qualificada (posse ad usucapionem).
A sentença que reconhece a usucapião, para a maioria da doutrina, é meramente declaratória de
domínio (posição de prova objetiva). Somente Sílvio Rodrigues diz que ela seria constitutiva. Para Cha-

418 Pode ser A ou O usucapião, ortograficamente ambas formas estão corretas, mas o CC/2002 adotou a gra-

fia “a” usucapião, motivo pelo qual será também adotado pelo Professor Flávio Tartuce.

554
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ves, ambas as correntes estão corretas: ela é declaratória de domínio e constitutiva do título de proprie-
dade. Pontes de Miranda já destacava no Tratado das Ações a inexistência de sentenças puras.
Segundo Flávio Tartuce a divergência é retórica, uma vez que o Art. 1.241, CC é claro no sentido de
atribuir à ação natureza declaratória e por consequência imprescritível:

Art. 1.241, CC: “Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usu-
capião, a propriedade imóvel. Parágrafo único. A declaração obtida na forma deste artigo consti-
tuirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.”

Ademais, a aquisição da propriedade se dá com o preenchimento dos requisitos da usucapião, não


se dando com o trânsito em julgado da sentença ou do registro imobiliário.
A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de
posse (ex.: direito de superfície, servidão e enfiteuse). Imagine uma servidão de passagem: uma pessoa
passa pelo terreno do vizinho para ter acesso mais fácil à praia por 25 anos. Depois desse prazo, o vizinho
constrói e acaba com a passagem. O vizinho ajuíza ação de usucapião para usucapir não a propriedade,
mas a passagem.
O tipo de direito usucapido (propriedade ou outro direito real sobre a coisa alheia) dependerá do
ânimo do usucapiente.
Os bens públicos não são passíveis de usucapião. É possível, todavia, a usucapião de enfiteuse so-
bre terra pública. O que não é possível de usucapir é a propriedade pública. Enfiteuse é um direito real
sobre a coisa alheia. A propriedade continua com o Poder Público. O particular passa a ter apenas o direi-
to real sobre a coisa alheia. O STJ tem precedentes confirmando essa tese.
Finalmente Flávio Tartuce destaca algumas regras gerais, que são aplicáveis à todas as modali-
dades de usucapião.
A usucapião pode ser alegada em petição inicial ou em defesa (Súmula 237 do STF419). Por exem-
plo, pode ser arguida em defesa na ação reivindicatória (imprescritível).
Finalmente, o Art. 1.243, CC trata da accessio possessionis, que é a soma das posses para fins de
usucapião. Exemplo: entre sucessores e herdeiros.

Art. 1.243, CC: “O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos anteceden-
tes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contí-
nuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.”.

Há exceções, conforme posição majoritária abaixo transcrita:


Enunciado 317 da IV JDC: A accessio possessionis de que trata o art. 1.243, primeira parte, do Có-
digo Civil não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 [usucapião constitucio-

419 Súmula, 237, STF: “O usucapião pode ser argüido em defesa.”

555
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

nal agrária e usucapião constitucional urbana] do mesmo diploma legal, em face da normativi-
dade do usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente.
O art. 1.244 do CC prevê que são aplicáveis à usucapião as seguintes regras da prescrição extintiva:
artigos 197, 198, 199 e 202 (regras de impedimento, suspensão e interrupção da prescrição):

Art. 1.244, CC: “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que
obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.”.

Nesse sentido, a aplicação de tais regras é de rigor, pois a usucapião como prescrição aquisitiva é
uma via de mão dupla.
Com efeito, a prescrição traz consigo, a um só tempo, uma via extintiva e outra aquisitiva. Nessa via
de mão dupla, nesse entrechoque de situações, aplicam-se à usucapião as regras de prescrição, porque ele
não é senão a prescrição, vista pelo ângulo aquisitivo.
Exemplificando: aplicam-se à usucapião as regras de suspensão e interrupção da prescrição. Desse
modo, se não corre prescrição não corre também prazo usucaptivo. Exemplos:
i) não corre prescrição contra o brasileiro que estiver no estrangeiro prestando serviço público. Não
é possível usucapir, dessa forma, o imóvel do embaixador do Brasil na Argentina;
ii) não é possível a usucapião do marido pela mulher, na constância do casamento (ressalvada, evi-
dentemente, a hipótese da usucapião especial urbana familiar, prevista no art. 1.240-A, do CC).
iii) na usucapião extraordinária (de 15 anos), exatamente quando se perfez o décimo ano de posse,
falece o titular, deixando como proprietário um filho com dez anos de idade. Faltam, nesse caso, 11 anos
para usucapir, pois quando ele fizer dezesseis, começa a correr o prazo, mas ainda faltavam cinco para a
prescrição (11 anos, portanto).

3.8.3.2. Requisitos obrigatórios da usucapião


São requisitos cumulativos e obrigatórios da usucapião: posse qualificada, idoneidade da coi-
sa usucapida e lapso temporal.

3.8.3.2.1. Posse qualificada (posse com a intenção de dono)

Posse qualificada é a posse mansa, pacífica e com animus domini, nesse sentido entra em cena o
conceito de posse de Savigny, que tem como conteúdo o corpus (domínio fático) e o animus domini (in-
tenção de dono).
Na lição de Flávio Tartuce a intenção de dono não está presente, em regra, em casos envolvendo vi-
gência de contratos, como nas hipóteses de locação, comodato e depósito. Todavia, é possível a alteração

556
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

na causa da posse (interversio possessionis), admitindo-se a usucapião em casos excepcionais, Ex.: ces-
sação da locação por desaparecimento do locador por longo tempo.420
Segundo Flávio Tartuce mansa e pacífica é a posse sem oposição, ou seja, exercida sem qualquer
manifestação em contrário de quem tenha legítimo interesse, ou seja, sem a oposição do proprietário do
bem. Se em algum momento houver contestação dessa posse pelo proprietário, desaparece o requisito da
mansidão
O simples ajuizamento de ação somente muda a natureza da posse se o pedido for julgado proce-
dente. Se julgado improcedente, ela continuará mansa e pacífica. Nem toda posse tem animus domini
(lembrar do estudo da posse indireta versus direta).

3.8.3.2.2. Idoneidade da coisa usucapida

Para a usucapião, a coisa usucapida precisa ser idônea, hábil. Existem determinados bens insusce-
tíveis de usucapião, como o bem público, a área comum no condomínio edilício etc.
Perceba que é possível usucapir bem de família, bem gravado com cláusula restritiva e até bem
condominial (veja que, aqui, se trata de um condômino adquirindo a parte dos outros), segundo o STJ,
quando um condômino estabelece posse com exclusividade, afastando os demais.

3.8.3.2.3. Posse conínua

É a posse sem intervalos, sem interrupção, de modo que quando se fala em posse contínua,
há que se respeitar um determinado lapso temporal previsto em lei, que pode ser de 2, 5, 10 e 15
anos, em casos de usucapião de propriedade imobiliária.

Imperioso notar que O CC/02 permite a soma de posses: um usucapiente pode somar à sua a posse
de seus antecedentes, seja por ato inter vivos (ex.: contrato), seja por ato causa mortis (ex.: herança). A
transmissão por ato inter vivos chama-se acessio possessionis; a por ato causa mortis chama-se sucessio
possessionis.
Ressalta-se que a teori do Enunciado n. 497 do CJF/STJ “o prazo, na ação de usucapião, pode ser
completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor”.

3.8.3.2.4. Posse justa

A posse violenta, clandestina ou precária não é usucapível.


Assim, segundo Flávio Tartuce a posse usucapível deve se apresentar sem os vícios objetivos, ou se-
ja, sem a violência, a clandestinidade ou a precariedade. Se a situação fática for adquirida por meio de

420 (STJ - REsp: 154733 DF 1997/0081019-4, Relator: Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Data de Julgamento:

05/12/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 19/03/2001 p. 111 JBCC vol. 189 p. 421 LEXSTJ vol.
143 p. 126 RSTJ vol. 143 p. 370 RT vol. 790 p. 217).

557
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

atos violentos ou clandestinos, não induzirá posse, enquanto não cessar a violência ou a clandestinidade
(art. 1.208, 2.ª parte, do CC).

3.8.3.3. Requisitos facultativos


São requisitos facultativos da usucapião: justo título e boa-fé.

3.8.3.3.1. Justo título

Justo título é um documento (instrumento público ou privado) que seria hábil/idôneo a transferir a
propriedade, não fosse um vício que pesasse sobre ele. Ex.: uma escritura pública inválida (exemplo visto
anteriormente). Na hipótese de a escritura pública ser inválida, como visto, o interessado pode alegar na
contestação em que tal invalidade é contestada a usucapião tabular.

3.8.3.3.2. Boa-fé

Se a boa-fé não é requisito obrigatório, até a res furtiva (proveniente de furto) pode ser usucapida,
caso a posse se mostre mansa e pacífica.
A presença dos requisitos facultativos tem como efeito a redução do prazo para a usucapião.

3.8.3.4. Espécies de usucapião

3.8.3.4.1. Usucapião extraordinário

A usucapião extraordinária está prevista no art. 1.238, caput, do CC:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um
imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo reque-
rer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório
de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver
estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter
produtivo.

O prazo é de 15 anos. Entretanto, o prazo é reduzido para 10 anos se estiver presente a famigerada
posse-trabalho (dar uma destinação positiva ao bem, atendendo à função social da posse, com o estabele-
cimento da moradia ou realização de obras ou serviços de caráter produtivo).
Para que esta modalidade ocorra, devem estar presentes os requisitos obrigatórios (posse qualifi-
cada, idoneidade da coisa e lapso temporal).
Ademais, Flávio Tartuce assevera que nos dois casos não há necessidade de se provar a boa-fé ou o
justo título, havendo uma presunção absoluta ou iure et de iure da presença desses elementos. O requisi-
to, portanto, é único, isto é, a presença da posse que apresente os requisitos exigidos em lei.
Perceba que há um erro terminológico: este deveria ser a usucapião “ordinário”, por ser o comum,
e não o “extraordinário”.

558
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.8.3.4.2. Usucapião ordinário

A usucapião ordinária está prevista no art. 1.242 do CC:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente,
com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido ad-
quirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada poste-
riormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado in-
vestimentos de interesse social e econômico.

O prazo é de 10 anos. Assim como no anterior, o juiz pode reduzir esse prazo de 10 para 5 anos, se
o usucapiente estiver morando ou tiver tornado a terra produtiva (em outras palavras, se estiver cum-
prindo a função social da propriedade) e o justo título se constituir por documento público, é a chamada
usucapião tabular.
Para que esta modalidade ocorra, devem estar presentes ose seguintes requisitos:
i. Posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini por 10 anos. O CC/2002 reduziu e
unificou os prazos anteriormente previstos, que eram de 10 anos entre presentes e de 15
anos entre ausentes (art. 551 do CC/1916).
ii. Justo título.
iii. Boa-fé, no caso a boa-fé subjetiva, existente no campo intencional ou psicológico (art. 1.201
do CC).
Perceba, vale destacar mais uma vez, que a presença da boa-fé e do justo título gera ape-
nas a redução do prazo de usucapião. Nada mais.

3.8.3.4.3. Usucapião agrária, especial rural (ou pro labore)

A usucapião especial rural (ou pro labore) está previsto no art. 191 da CR421:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por
cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cin-
qüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua
moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiri-
dos por usucapião.”422

421 A regra foi reproduzida, na literalidade, pelo art. 1.239 do CC/2002; estando o instituto da usucapião
constitucional ou especial rural do mesmo modo regulamentado pela Lei 6.969/1981.
422 Nessa esteira, O art. 2º da Lei 6.969/1981 admite a usucapião de terras devolutas (terras vazias ou sem

dono). As terras devolutas são bens públicos dominiais e, portanto, não são usucapíveis (art. 191, § único, CF/88 e
Súmula 340 do STF). Assim, o art. 2º da Lei 6.969/1981 também não foi recepcionado pela CF/1988.

559
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O prazo é de 5 anos e o imóvel não pode ser superior a 50 hectares. Além disso, o usucapiente não
pode ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano e deve estar morando ou ter tornado a terra pro-
dutiva.
Em resumo, Flávio Tartuce informa qua são requisitos dessa modalidade:

i. Área rural não superior a 50 hectares423;


ii. Posse ad usucapionem de 5 anos;
iii. O imóvel deve ser utilizado para desenvolvimento de atividade agrária, desenvolvida pelo
possuidor ou alguém de sua família, com estabelecimento de moradia;
iv. O possuidor que pretende usucapir não pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou ru-
ral;
Novamente observa-se que não há qualquer necessidade quanto ao justo título e à boa-fé, pois tais
elementos se presumem de forma absoluta (presunção iure et de iure) pela destinação que foi dada ao
imóvel, atendendo à sua função social.
É possível mais de uma aquisição a este título, desde que o usucapiente adquira o bem, venda e ad-
quira novamente. Trata-se de uma aplicação do chamado “direito civil dos pobres”.
Flávio Tartuce aponta alguns Enunciados do CJF relevantes para o tema:
Enunciado 312 da IV JDC: “Observado o teto constitucional, a fixação da área máxima para fins de
usucapião especial rural levará em consideração o módulo rural e a atividade agrária regionalizada.”.
Pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/1964), o módulo rural é a área em que a atividade agrária é oti-
mizada, equivalendo à pequena e à média propriedade, cuja classificação se encontra na Lei 8.629/1993:
a) Pequena Propriedade = 1 a 4 módulos fiscais;
b) Média Propriedade = 4 a 15 módulos fiscais;
c) Grande Propriedade = acima de 15 módulos fiscais.
(Os Módulos Fiscais são definidos por cada município e são utilizados como parâmetro para fins de
determinação do Módulo Rural).
Enunciado 313 da IV JDC: “Quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é
possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se
quer usucapir.”.
Entretanto, são cabíveis, as modalidades ordinária e extraordinária quando a área for superior a
esses limites.
Enunciado 594 da VII JDC: “É possível adquirir a propriedade de área menor do que o módulo ru-
ral estabelecido para a região, por meio da usucapião especial rural.”.

423 O art. 1º da Lei 6.969/1981 estabelece a área de 25 hectares, enquanto a CF/88 estabelece 50 hectares. Es-

te dispositivo não foi recepcionado pela CF/88.

560
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Inferior a 1 módulo fiscal = minifúndio. Esse enunciado está de acordo com a jurisprudência (STJ,
Resp 1.040.296/ES), que afirma não haver previsão constitucional de área mínima para a usucapião.

3.8.3.4.4. Usucapião especial urbana individual (ou pro moradia ou pro misero)

A usucapião especial urbana (ou pro moradia) está previsto no art. 183 da CR:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadra-
dos, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou ru-
ral. (...)

O prazo é de 5 anos e o imóvel não pode ser superior a 250 metros quadrados. Além disso, o usu-
capiente não pode ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano, e deve o bem servir de moradia para
ele ou a família dele.
Flávio Tartuce aponta de forma sintetizada os requisitos da usucapião constitucional ou especial
urbana:
i. Área urbana não superior a 250 m2.
ii. Posse mansa e pacífica de cinco anos ininterruptos, sem oposição, com animus domini.
iii. O imóvel deve ser utilizado para a sua moradia ou de sua família, nos termos do que prevê o
art. 6.º, caput, da CF/1988 (pro misero).
iv. Aquele que adquire o bem não pode ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano;
Assim, como na usucapião agrária, não há menção quanto ao justo título e à boa-fé pela presunção
absoluta ou iure et de iure de suas presenças, entretanto, diferente daquela, esta modalidade não permite
mais de uma aquisição pelo mesmo título. Em outras palavras: quem adquiriu uma vez por usucapião
especial urbano não poderá fazê-lo novamente.
Finalmente, Flávio Tartuce adverte que o art. 9º, § 3º, da Lei 10.257/2001424 (Estatuto da Cidade),
estabelece regra específica sobre a accessio possessionis (soma das posses), pois somente o herdeiro
legítimo (não o testamentário) poderá somar a sua posse ao do seu antecessor, desde que já resida no
imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

3.8.3.4.4.1. Usucapião especial familiar ou conjugal (ou por abandono do lar)

A usucapião especial familiar (ou conjugal) está previsto no art. 1240-A do CC:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse di-
reta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros qua-
drados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utili-

424 § 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu anteces-

sor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

561
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

zando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011) (...)

O prazo é de 2 anos, o imóvel deve ser urbano e não superior a 250 metros quadrados, o usucapi-
ente não pode ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano, e deve ter fixado moradia.
Além disso, há dois requisitos específicos: seja o bem pertencente a uma entidade familiar (casa-
mento, união estável, união homoafetiva) e tenha ocorrido abandono de lar (ex.: sujeito sai de casa e o
divórcio é ajuizado quatro anos depois). Importante salientar que o imóvel precisa pertencer à comunhão
do casal (não pode se tratar, por exemplo, de bem pertencente a apenas um dos cônjuges). É um típico
caso de usucapião condominial, pois a posse de um dos condôminos é exercida com exclusividade.
Flávio Tartuce sintetiza os requisitos:
i. Área urbana não superior a 250 metros quadrados;
ii. Posse ad usucapionem direta e exclusiva, por pelo menos 2 anos;
iii. Propriedade deve ser dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro;
iv. Abandono do lar pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro;
v. O possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural;
Assim, como a usucapião especial urbana, esse direito somente pode ser reconhecido uma única
vez.
A competência para julgar esta nova modalidade de usucapião continua a ser do juízo cível, e não
da vara de família.
Obs.: Enunciados relevantes sobre o tema:
Enunciado 498 da V JDC: “A fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a
nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n.
12.424/2011.”
Enunciado 500 da V JDC: “A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil
pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familia-
res, inclusive homoafetivas.”.
Enunciado 501 da V JDC: “As expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no art. 1.240-A
do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio.”.
Enunciado 502 da V JDC: “O conceito de posse direta referido no art. 1.240-A do Código Civil não
coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código.”.[Desconsidera-se a expressão “posse
direta”, pois a posse pode ser exercida por pessoa da família].
Enunciado 595 da VII JDC: “O requisito ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na ótica do institu-
to da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da
família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável.
Revogado o Enunciado 499.”.

562
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.8.3.4.5. Usucapião especial urbano coletivo

A usucapião especial urbana coletiva, já tratada anteriormente, está prevista nos arts. 10 a 12 do Es-
tatuto da Cidade:

“Art. 10. Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos e cuja
área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros qua-
drados por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possui-
dores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.”.

Flávio Tartuce sucintamente aponta os requisitos dessa espécie:


i. Área urbana, sendo certo que a área total, dividida pelo número de possuidores, deve ser in-
ferior a 250 m2 por possuidor.
ii. Posse de cinco anos ininterruptos, sem oposição, com animus domini, não havendo exigên-
cia de que a posse seja de boa-fé.
iii. Existência no local de um núcleo urbano informal ou de um núcleo urbano informal conso-
lidado425.
iv. Aquele que adquire não pode ser proprietário de outro imóvel – rural ou urbano.
O Estatuto da Cidade diz que a alegação de usucapião especial urbana coletiva pode ser formulada
por cada um dos possuidores, individualmente, por alguns ou todos, coletivamente, ou pela associação de
moradores, na qualidade de substituto processual (art. 12):

Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:

I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;

II – os possuidores, em estado de composse;

III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente


constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representa-
dos. (...)

Curiosamente, o MP não tem legitimidade para ser autor do pedido. Ele atuará apenas como fiscal
da lei. Não será parte. Veja que se trata dos dois mais eloquentes exemplos de função social da posse.
Nessa sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independen-
temente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os
condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. Nesse sentido, será fixado um condo-

425 Na lição de Flávio Tartuce a nova lei define o núcleo urbano informal como aquele clandestino, irregular
ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legisla-
ção vigente à época de sua implantação ou regularização (art. 11, inc. II). Há também previsão quanto ao núcleo
urbano informal consolidado, o de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações,
a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem
avaliadas pelo Município (art. 11, inc. III).

563
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mínio indivisível entre os possuidores. Ex.: habitação coletiva, como casas de pensão, cortiços
etc.

Finalmente, observa-se que na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobresta-
das quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao
imóvel usucapiendo a teor do Art. 11 da Lei 10.257/01.

3.8.3.5. Usucapião especial indígena


Flávio Tartuce leciona que além das formas de usucapião previstas no Código Civil de 2002, na
Constituição Federal, na Lei Agrária e no Estatuto da Cidade, é preciso apontar e estudar a usucapião
especial indígena, tratada pelo Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973). Enuncia o art. 33 dessa Lei especial
que “o índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra infe-
rior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena”.
Em resumo, pelo que consta da norma, são requisitos da usucapião indígena:
i. Área de, no máximo, 50 ha.
ii. Posse mansa e pacífica por dez anos, exercida por indígena.

3.8.3.6. Usucapião extrajudicial ou administrativa


A usucapião administrativa ou extrajudicial prevista no Novo CPC (art. 1.071), que incluiu o art.
216-A na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), aplica-se a todas as modalidades de usucapião e
requer o consenso, ou seja, a concordância de todos (proprietário anterior e confrontantes).
É necessária ata notarial para comprovar a posse “ad usucapionem”.

Lei de Registros Públicos, art. 216-A: “Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de
reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório
do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento
do interessado, representado por advogado [...]”

A Lei 13.465/2017 alterou o procedimento e voltou à regra do “quem cala consente”, de forma que o
trecho final do § 2.º do art. 216-A da Lei de Registros Públicos passou a ser a locução “interpretando o
silêncio como concordância”.

3.8.3.7. Usucapião como matéria de defesa


Todas as modalidades de usucapião, na permissão da Súmula 237 do STF, podem ser alegadas co-
mo matéria de defesa, na contestação:

Súmula 237 - O USUCAPIÃO PODE SER ARGÜÍDO EM DEFESA.

Mas a sentença que julga o pedido, acolhendo a alegação de usucapião, não pode ser levada a regis-
tro, por não ter oponibilidade erga omnes (por não terem sido expedidos os editais), salvo em se tratan-
do de usucapião especial urbano, individual ou coletivo (art. 13 do Estatuto da Cidade):

564
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, va-
lendo a sentença que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis.

4. Condomínio
4.1. Noções gerais

Condomínio é copropriedade. Ou seja, é o exercício simultâneo do mesmo direito de propriedade,


sobre a mesma coisa, por duas ou mais pessoas. Trata-se de uma exceção ao artigo 1.231 do Código Civil,
pelo qual a propriedade se presume como exclusiva, até prova em contrário.
É intuitivo pensar que o condomínio poderia violar a natureza exclusiva do direito de propriedade.
Entretanto, esse caráter de exclusividade do direito de propriedade não resta relativizado no condomínio,
mantendo-se.
Isso porque, no condomínio, há o exercício simultâneo, por duas ou mais pessoas, do mesmo di-
reito de propriedade, sobre a mesma coisa (ou seja, há pluralidade de sujeitos, com unicidade de obje-
to).
Cumpre chamar a atenção para um detalhe interessante: se há duas ou mais pessoas exercendo o
mesmo direito de propriedade sobre a mesma coisa, o condomínio se apresenta como uma realidade
quantitativamente diferente, mas qualitativamente igual. Isto porque cada condômino tem a sua cota
parte, chamada pelo Código de “fração ideal”.
Essa realidade “quantitativamente diferente” ocorre justamente porque cada condômino tem sua
fração ideal, seu quinhão. Mas como todos exercem o mesmo direito sobre o todo, a situação jurídica é
“qualitativamente igual”.
Mantendo essa mesma lógica (pluralidade de sujeitos, unicidade de objetos), sob o ângulo dos su-
jeitos, o condomínio é uma comunhão (uma união de sujeitos). Sob a perspectiva do objeto, o condo-
mínio é uma indivisão (mais uma vez: quantitativamente diferente, qualitativamente igual).
O condomínio, por agregar diferentes pessoas exercendo o mesmo direito sobre o todo, é uma fonte
induvidosa de conflitos. Em razão disso, o Código tenderá naturalmente à sua extinção. O ideal, para
evitar brigas, é a concentração da propriedade nas mãos de uma só pessoa.
Já para os gregos o condomínio era uma fonte de discórdia. Na mitologia grega, a deusa da discór-
dia, Eres, lançou o pomo da maçã (“o pomo da discórdia”) à deusa mais bonita, para ser disputado entre
três deusas (Atena, Era e Afrodite). Cada uma ficou com uma parte da maçã, constituindo-se sobre ela
um condomínio. Consequentemente, a instaurou-se a discórdia.

4.1.1. Modalidades

4.1.1.1. Quanto à estrutura interna


i. Condomínio Romano - Direito das Coisas: condomínio por quotas.

565
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. Condomínio Germânico - Direito de Família: mão comum ou mancomunhão (os condômi-
nos têm a propriedade total).

4.1.1.2. Quanto à origem


i. Condomínio voluntário ou convencional – decorre do acordo de vontade dos condôminos,
nasce de um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, como exercício da autonomia privada.
Ex.: Alguns amigos compram um imóvel para investimentos em comum. No silêncio do instrumen-
to de sua instituição, presume-se que a propriedade estará dividida em partes iguais (concursu partes
fiunt). Destaque-se que o condomínio edilício, via de regra, tem essa origem, mas com estudo e trata-
mento em separado.
ii. Condomínio incidente ou eventual – origina-se de motivos estranhos à vontade dos condô-
minos. Ex.: Duas pessoas recebem determinado bem como herança.
iii. Condomínio necessário ou forçado – decorre de determinação de lei, como consequência
inevitável do estado de indivisão da coisa. Nasce dos direitos de vizinhança tal como na hi-
pótese de paredes, muros, cercas e valas (art. 1.327 do CC).

4.1.1.3. Quanto ao objeto ou conteúdo


i. Condomínio universal – compreende a totalidade do bem, inclusive os seus acessórios, caso
de frutos e benfeitorias. Em regra, o condomínio tem essa natureza.
ii. Condomínio particular – compreende determinadas coisas ou efeitos, o que geralmente é
delimitado no ato de instituição.

4.1.1.4. Quanto à forma ou divisão:

i. Condomínio pro diviso – aquele em que é possível determinar, no plano corpóreo e fático,
qual o direito de propriedade de cada comunheiro. Há, portanto, uma fração real atribuível
a cada condomínio. Ex.: parte autônoma em um condomínio edilício.
ii. Condomínio pro indiviso – não é possível determinar de modo corpóreo qual o direito de
cada um dos condôminos que têm uma fração ideal. Ex.: parte comum no condomínio edilí-
cio.

4.2. Espécies

O Código Civil trabalhava com duas categorias/espécies de condomínio:


i) condomínio tradicional (ou condomínio comum);
ii) condomínio edilício (ou condomínio por unidades autônomas).
O condomínio tradicional está disciplinado somente no Código Civil. Já o condomínio edilício está
disciplinado no Código Civil e, residualmente, na Lei 4.591/1964, porém, posição majoritária é que essa
lei está revogada na parte relativa ao condomínio edilício (revogação tácita parcial - LINDB, art. 2º).

566
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce informa que a par das modalidades acima, a Lei n. 13.465/17 (REURB) incluiu duas
novas modalidades de condomínio:
a) Condomínio de lotes (CC, art. 1.358-A426). Exemplo: condomínio de casas em loteamento. O
regime passou a ser o mesmo do condomínio edilício.
O objetivo da mudança foi tornar obrigatório o pagamento das contribuições de uso no condomínio
de lotes, em função dessa polêmica, a jurisprudência superior entendia pela ausência dessa obrigatorie-
dade (STF – RE n. 432.106 – e STJ – REsp n. 1.280.871/SP). Fundamento: associações de moradores
(CF, art. 5º, II e XX).
b) Condomínio urbano simples (Lei n. 13.465/17, arts. 61 a 63427).
O objetivo foi regularizar as “casas dos fundos” – aplicação das regras de condomínio edilício.

4.2.1. Condomínio tradicional (Art. 1.314 a 1.326, CC)

4.2.1.1. Conceito

Condomínio tradicional é a copropriedade exercida por duas ou mais pessoas. Vale dizer, são duas
ou mais pessoas que exercem simultaneamente a propriedade. Ex.: casamento, união estável e herança.
No casamento, os bens que pertencem à comunhão estão submetidos à regra do condomínio. Ma-
rido e mulher, companheiro e companheira, são duas pessoas exercendo o mesmo direito de propriedade
sobre a mesma coisa. O mesmo com relação aos herdeiros.

4.2.1.2. Direitos recíprocos dos condôminos

4.2.1.2.1. Uso e fruição do todo, independentemente de qual seja sua fração ideal

426 CC, art. 1.358-A: “Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e
partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcio-
nal à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no
ato de instituição. § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste
Capítulo, respeitada a legislação urbanística. § 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a
infraestrutura ficará a cargo do empreendedor ”.
427 Lei 13.465/2017, arts. 61 a 63: “Art. 61. Quando um mesmo imóvel contiver construções de casas ou cô-

modos, poderá ser instituído, inclusive para fins de Reurb, condomínio urbano simples, respeitados os parâmetros
urbanísticos locais, e serão discriminadas, na matrícula, a parte do terreno ocupada pelas edificações, as partes de
utilização exclusiva e as áreas que constituem passagem para as vias públicas ou para as unidades entre si. Parágra-
fo único. O condomínio urbano simples será regido por esta Lei, aplicando-se, no que couber, o disposto na legisla-
ção civil, tal como os arts. 1.331 a 1.358 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Art. 62. A institui-
ção do condomínio urbano simples será registrada na matrícula do respectivo imóvel, na qual deverão ser identifi-
cadas as partes comuns ao nível do solo, as partes comuns internas à edificação, se houver, e as respectivas unida-
des autônomas, dispensada a apresentação de convenção de condomínio. § 1 o Após o registro da instituição do con-
domínio urbano simples, deverá ser aberta uma matrícula para cada unidade autônoma, à qual caberá, como parte
inseparável, uma fração ideal do solo e das outras partes comuns, se houver, representada na forma de percentual.
§ 2o As unidades autônomas constituídas em matrícula própria poderão ser alienadas e gravadas livremente por
seus titulares. § 3o Nenhuma unidade autônoma poderá ser privada de acesso ao logradouro público. § 4 o A gestão
das partes comuns será feita de comum acordo entre os condôminos, podendo ser formalizada por meio de instru-
mento particular. Art. 63. No caso da Reurb-S, a averbação das edificações poderá ser efetivada a partir de mera
notícia, a requerimento do interessado, da qual constem a área construída e o número da unidade imobiliária, dis-
pensada a apresentação de habite-se e de certidões negativas de tributos e contribuições previdenciárias.”

567
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É aqui que reside o conflito. Aquele que tem percentual menor exerce o mesmo direito sobre o todo
que aquele que tem o maior quinhão. Isso porque a coisa é indivisível.

4.2.1.2.2. Exercer a defesa do todo, independentemente de sua fração ideal

Este segundo direito é como que uma decorrência do primeiro. O condômino defende a coisa como
um todo através das ações possessórias e da ação reivindicatória. Surge aqui a polêmica: que essas ações
sirvam para a defesa da coisa contra terceiros, não há dúvida. Todavia, cada condômino pode se valer
também de ação possessória e reivindicatória contra outro condômino?
Cada condômino pode, sem dúvida, se valer de ação possessória contra outros condôminos. Mas da
reivindicatória não. Isso porque ela é a ação para proteger o direito de propriedade, o qual também é
exercido pelos outros condôminos. Assim, possessória pode ser usada contra terceiros e contra outros
condôminos; reivindicatória somente contra terceiros.

4.2.1.2.3. Direito de voto

O direito de voto haverá, evidentemente, quando for o caso, ou seja, quando o condomínio tiver de
deliberar sobre algo. Ele é proporcional à fração ideal.
O CC/02 prestou justa homenagem à função social da propriedade, ao determinar que o direito de
voto depende da comprovação de que o condômino estava em dia com as quotas condominiais (as despe-
sas de condomínio), quando for o caso.

4.2.1.2.4. Direito de alienação ou oneração da coisa condominial

Alienar é vender ou doar. Onerar é dar em garantia. Cada condômino pode alienar ou onerar o bem
condominial como um todo, desde que haja o consentimento de todos. Ora, se todos são proprietá-
rios/comunheiros, é natural que o direito de alienar e dar em garantia dependa de todos.
Todavia, o condômino pode objetar fundamentadamente e, com isso, retirar a esmagadora vontade
da maioria. Por isso, a recusa imotivada do condômino pode caracterizar abuso de direito (ato ilícito do
art. 187 CC) e, consequentemente, permitir suprimento judicial do consentimento. Lembre-se que para a
caracterização do abuso do direito não se leva em conta o elemento culpa. Ou seja, não é necessária a
vontade de prejudicar, bastando que o comportamento prejudique. O abuso do direito é um ilícito objeti-
vo.

4.2.1.2.5. Alienação ou oneração da sua própria fração ideal

Para alienar ou onerar a sua fração ideal, o condômino não precisa do consentimento dos demais.
Mas há um detalhe: é preciso respeitar o direito de preferência (“uma coisa é uma coisa; outra coisa é
outra coisa”). Isso para que os demais condôminos possam ir adquirindo as demais frações ideais, com
vistas à extinção do condomínio.

568
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Esse direito de preferência é exclusivo da alienação onerosa. Não se aplica à gratuita. Vale dizer: se
o condômino quer doar sua fração ideal, ele não tem de respeitar o direito de preferência. Doação é libe-
ralidade. Sendo liberalidade, não há preferência.
O direito de preferência se consubstancia por meio de notificação (judicial ou extrajudicial, tanto
faz). Ou seja, o condômino que quiser vender sua fração ideal precisa notificar os demais, para que digam
se pretendem exercer sua preferência, nas mesmas condições do terceiro.
Surge o problema: se mais de um condômino exercer sua preferência, terá preferência qual dos
condôminos com preferência? São três regras especiais, que serão repetidas:
1º lugar: quem tiver o maior número de benfeitorias (justa homenagem à função social da proprie-
dade);
2º lugar: não havendo benfeitorias, ou se elas tiverem o mesmo volume, terá preferência quem ti-
ver o maior quinhão;
3º lugar: caso os quinhões sejam iguais, terá preferência quem oferecer a melhor proposta.
Ainda sobre o tema, cumpre destacar uma questão: se o condômino aliena ou onera sua fração sem
dar preferência aos demais, qual será a consequência? O art. 504 do Código Civil determina que será caso
de ineficácia da venda em relação aos condôminos prejudicados:

Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro
consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda,
poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo
de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.

Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor
e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendi-
da os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.

Veja que entre as partes a venda é valida e eficaz. Mas não produzirá efeitos em relação aos demais
condôminos, os quais poderão ajuizar ação de adjudicação compulsória, no prazo de 180 dias contados
do conhecimento da venda. Nesta ação de adjudicação compulsória, haverá um litisconsórcio passivo
necessário entre o condômino alienante e o terceiro adquirente. E não adianta que o terceiro diga que
estava de boa-fé.

4.2.1.3. Deveres dos condôminos

São deveres dos condôminos:


i) respeitar a finalidade do bem:
Os condôminos não podem alterar finalidade do bem. Ex.: se o condomínio é residencial, não po-
derá ser dada a ele finalidade comercial.
ii) não dar posse, uso ou gozo a terceiro sem o consentimento dos demais;
iii) dividir os frutos da coisa comum colhidos individualmente:

569
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como ciência humana, as coisas no direito variam a depender da perspectiva de que se olhe. Num
condomínio de um sítio ou fazenda, se um dos condôminos colhe um fruto, deve dividir com os demais.
Isso é até evidente e óbvio.
Todavia, isso não é tão óbvio no caso de um casamento ou união estável. Caso o marido ou a mu-
lher saia da casa e o outro permaneça no imóvel comum, aquele que fica na casa pode acabar colhendo
sozinho os frutos comuns. Em vista dessa realidade, disse o STJ que aquele que se mantiver sozinho em
imóvel comum deverá indenizar o outro: o juiz deve arbitrar aluguel, dividir o valor pela metade e de-
terminar o pagamento ao que saiu (REsp 622.472/RJ). Trata-se de um passivo flutuante, o qual poderá
até comprometer a respectiva meação.
iv) dividir as coisas comuns:
O condômino pode não querer dividir as despesas comuns, se perceber que o rateio supera o valor
de sua fração ideal. Em vista disso, o CC/2002 permite a esse condômino que não quer participar do ra-
teio a possibilidade de renunciar à sua fração ideal. Nesse caso, os demais condôminos acrescerão a fra-
ção ideal do renunciante e responderão pelas despesas correspondentes.
Como visto por ocasião do estudo do direito das obrigações, solidariedade não se presume. A res-
ponsabilidade dos condôminos pelas despesas, em razão disso, não é solidária, mas proporcional à fração
ideal de cada um deles (art. 1.316 do CC):

Art. 1.316. Pode o condômino eximir-se do pagamento das despesas e dívidas, renunciando à
parte ideal.

§ 1º Se os demais condôminos assumem as despesas e as dívidas, a renúncia lhes aproveita, ad-


quirindo a parte ideal de quem renunciou, na proporção dos pagamentos que fizerem.

§ 2º Se não há condômino que faça os pagamentos, a coisa comum será dividida.

O CC, evidentemente, presume a igualdade de cotas. Mas essa presunção somente pode ser relati-
va, podendo ser produzida prova em contrário.

4.2.1.4. Administração do condomínio


A administração do condomínio será definida por eleição, submetida ao critério da maioria das fra-
ções ideais (critério econômico, portanto). Se houver empate, haverá necessidade de decisão judicial a
esse respeito.
Nessa eleição, haverá uma minoria vencida. O CC admite o direito da minoria vencida de impugnar
judicialmente a eleição. Trata-se de um ótimo exemplo de direito das minorias.
Não somente a minoria vencida, mas todo e qualquer condômino tem o direito de exigir a presta-
ção de contas do administrador. Um aspecto relevante da ação de prestação de contas é que ela tem pro-
cedimento dúplice.
Há uma teoria nova, que não está no CC, mas que trafega com tranquilidade tanto na doutrina
quanto na jurisprudência: a teoria do administrador aparente. O administrador aparente (ou mandatário
570
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

aparente) nada mais é que a aplicação da teoria da aparência. O ex-síndico (ex-administrador) que conti-
nua se comportando como tal e, aos olhos de terceiro, seria o atual administrador é exemplo de adminis-
trador aparente.
Se o administrador aparente celebrar negócios com terceiros, criando expectativas, o condomínio
responde, com direito regressivo contra ele. O fundamento dessa responsabilidade do condômino é a
proteção do terceiro de boa-fé. Entende-se que o condomínio deveria ter tomado uma providência para
que essa pessoa não ficasse por aí se apresentando como seu administrador.

4.2.1.5. Espécies de condomínio tradicional


O CC/2002 se refere a duas espécies de condomínio tradicional: i) voluntário; e ii) legal. O condô-
mino legal, por sua vez, pode ser forçado ou fortuito.
O condomínio voluntário decorre de ato espontâneo das partes. Ex.: regime de bens no casamento
e na união estável.
O condomínio legal forçado ocorre quando a lei impõe sua formação. Ex.: muro, cerca, vala, pastos
etc. Quando se constrói uma casa, muitas vezes se aproveita o muro do vizinho. Construído o muro sobre
a linha divisória, presume-se o condomínio e, consequentemente, a divisão de despesas. Nesse caso, se os
condôminos não chegarem a um denominador comum acerca das despesas, o juiz decidirá sobre as cons-
truções pelo valor médio.
O condomínio legal fortuito é o que decorre do acaso. Ex.: herança.

4.2.1.6. Extinção

Como visto, o Código tente a facilitar a extinção do condomínio.


Inicialmente, é preciso deixar claro que o condomínio legal não se dissolverá. Afinal de contas, foi
estabelecido por meio de lei. Assim, só a lei (e não a vontade) estabelece as regras de extinção do condo-
mínio legal.
Todavia, o voluntário pode ser extinto pela vontade das partes. O CC, entretanto, estabeleceu um
prazo de indivisão, que é de cinco anos, renovável por mais um período (pela vontade das partes), exceto
se o condomínio se formou por herança ou doação (quando não se admitirá igual prazo de renovação).
Durante esse prazo de indivisão, o condomínio não poderá ser extinto, salvo se presente justa causa. Na
verdade, havendo justa causa, o condomínio pode ser extinto a qualquer tempo.
Ultrapassado o prazo de indivisão, o condômino interessado pode ajuizar ação de divisão a qual-
quer tempo. Se a coisa for indivisível (ex.: um apartamento), a ação será de alienação judicial de coisa
comum.
O STJ vem entendendo que se a coisa for divisível, não se admite ação de alienação (REsp
791.147/SP).

571
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na alienação judicial, os condôminos têm preferência sobre terceiros, desde que a oferta tenha o
mesmo valor. É algo justo. Se mais de um condômino quiser exercer a preferência, serão utilizadas as
regras de preferência vistas acima.

4.2.2. Condomínio edilício (Art. 1.331 a 1.358, CC)

4.2.2.1. Conceito

O condomínio edilício é uma modalidade especial de condomínio em edificações, postas em posi-


ção horizontal, uma sobre as outras. É identificada por áreas de propriedade comum e áreas de proprie-
dade exclusiva (individuais).
A doutrina ainda apresenta outras denominações: condomínio horizontal, condomínio edilício
(Direito Italiano – Miguel Reale), condomínio moderníssimo, condomínio especial ou condomínio
relativo.

Trata-se de uma simbiose orgânica entre propriedade coletiva e propriedade individual (um mix
entre essas figuras). Essa “mistura” forma o condomínio edilício, que é um tipo especial de condomínio.
Aplicam-se as regras do condomínio edilício não somente ao condomínio residencial por andares,
mas sempre que houver uma unidade formada entre partes comuns e partes autônomas. Ex.: edifícios
comerciais, vilas de casas (STJ REsp 1.902/RJ) etc.

4.2.2.2. Elementos componentes


O condomínio edilício é formado pela mistura de dois elementos: unidades autônomas e áreas co-
muns. No que diz respeito às unidades autônomas, aplicam-se as regras da propriedade privada. Por is-
so, quando um condômino quer alienar a sua unidade autônoma, ele não precisa dar preferência aos de-
mais, a teor do Art. 1.331, CC:

CC, art. 1.331: “Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que
são propriedade comum dos condôminos. § 1o As partes suscetíveis de utilização independente,
tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais
no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas
e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão
ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na
convenção de condomínio. § 2o O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribui-
ção de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes
comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos,
não podendo ser alienados separadamente, ou divididos. § 3o A cada unidade imobiliária caberá,
como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será
identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio. § 4o
Nenhuma unidade imobiliária pode ser privada do acesso ao logradouro público. § 5o O terraço
de cobertura é parte comum, salvo disposição contrária da escritura de constituição do condo-

572
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mínio”

Outro dado relevante é que área comum de condomínio edilício não pode ser usucapida (art. 3º da
Lei 4.591/1964). Até porque, se isso fosse possível, as crianças do prédio poderiam usucapir a piscina:

Art. 3º O terreno em que se levantam a edificação ou o conjunto de edificações e suas instala-


ções, bem como as fundações, paredes externas, o teto, as áreas internas de ventilação, e tudo o
mais que sirva a qualquer dependência de uso comum dos proprietários ou titulares de direito à
aquisição de unidades ou ocupantes, constituirão condomínio de todos, e serão insuscetíveis de
divisão, ou de alienação destacada da respectiva unidade. Serão, também, insuscetíveis de utili-
zação exclusiva por qualquer condômino (VETADO).

Todavia, para o STJ nada impede a ocorrência de supressio e surrectio (REsp 356.821/RJ, REsp
214.680/SP e Enunciado 247 da Jornada):

Enunciado 247 - Art. 1.331: No condomínio edilício é possível a utilização exclusiva de área “co-
mum” que, pelas próprias características da edificação, não se preste ao “uso comum” dos de-
mais condôminos.

Ex.: o condomínio cede uma área comum (ex.: garagem) para exploração do condômino.
A jurisprudência vem permitindo regulamentação de horário para a utilização de áreas comuns. Is-
so tem importância ainda maior quando se pensa em condomínios edilícios em bens de natureza comer-
cial.
Cobertura e garagem são sem dúvida os dois pontos mais sensíveis do assunto.
Cobertura ou terraço é área comum ou unidade autônoma? De regra, trata-se de área comum, salvo
disposição contrária no ato de criação do condomínio, que pode dedicá-la a um dos condôminos, nor-
malmente o proprietário da parte mais alta. Se não há disposição nesse sentido, presume-se que seja área
comum.
Se, no ato de constituição, ela for tratada como área comum, para que ela seja alienada reclama-se
o consentimento de todos os condôminos. Admite-se suprimento judicial, se houver recusa imotivada.
Outra questão importante é o regime jurídico das garagens. O direito brasileiro admite três diferen-
tes regimes jurídicos de garagem:
i) garagem como um bem acessório:
Nesse regime, a garagem está submetida, como acessório, ao principal, que é a unidade autônoma.
Isso ocorre quando é adquirido um imóvel com “X” vagas de garagem.
ii) garagem como um bem autônomo:
Esse segundo regime ocorre quando o titular adquire a unidade e, separadamente, a garagem. Ex.:
o apartamento é vendido com duas vagas de garagem, com a possibilidade de aquisição de mais uma.
Essa nova garagem terá um regime jurídico próprio, diferenciado (terá outra matrícula). Ela não
está submetida à unidade autônoma. Neste regime, a garagem pode perfeitamente ser alienada separa-

573
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

damente. Admite-se não só a venda como a penhora da garagem. Inclusive ela não se enquadrará como
bem de família, pois não é acessório do principal.
iii) garagem como área comum:
Se a garagem integrar a área comum do condomínio, é a convenção condominial que regulamenta
o seu uso (ex.: sorteio, delimitação etc.) Nessa hipótese, ela não admite usucapião, sendo possível, entre-
tanto, a suprressio. Para a alienação, sendo área comum, exige-se o consentimento de todos.
Convém lembrar que o art. 1.338 do CC permite a locação de vaga de garagem, salvo disposição
contrária (ou seja, se a convenção proibir):

Art. 1.338. Resolvendo o condômino alugar área no abrigo para veículos, preferir-se-á, em con-
dições iguais, qualquer dos condôminos a estranhos, e, entre todos, os possuidores.

Se for omissa, será possível a locação. O condômino sempre terá preferência no aluguel (tanto por
tanto, nas mesmas condições) em relação ao terceiro.

4.2.2.3. Natureza jurídica

Analisando a matéria sob o aspecto subjetivo, pode-se dizer que a natureza jurídica do condomínio
é de ente despersonalizado. Com efeito, o condomínio edilício não tem personalidade jurídica.
Sendo ente despersonalizado, ele não tem direitos da personalidade, não podendo sofrer dano mo-
ral. Não se deve esquecer, todavia, que os entes despersonalizados possuem capacidade e, em razão dis-
so, podem titularizar relações jurídicas, desde que de ordem patrimonial.
Fica uma crítica à falta de personalidade do condomínio: ele tem CNPJ (Cadastro Nacional da Pes-
soa Jurídica). O Brasil é um dos poucos países que ainda não reconheceram a personalidade jurídica do
condomínio. No Enunciado 246 da Jornada, reside a crítica que faz a doutrina ao direito positivo, em
virtude da ausência de personalidade jurídica do condomínio:

Enunciado 246 - Art. 1.331: Fica alterado o Enunciado n. 90, com supressão da parte final: “nas
relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse”. Prevalece o texto: “Deve ser
reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício”.

O condomínio, enquanto ente despersonalizado, é representado pelo síndico.


Analisando a natureza jurídica do condomínio edilício sob o aspecto objetivo, não é possível dizer
que ele tenha natureza jurídica acessória em relação ao solo. Ele escapa à regra da gravitação jurídica (o
acessório segue o principal). A Súmula 308 do STJ confirma esse entendimento:

Súmula 308 - A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior
à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imó-
vel.

Antes de construir o condomínio, a construtora, que precisa de dinheiro imediato, toma empresta-
do com o banco, oferecendo o terreno em hipoteca, como garantia. Se o banco executa a hipoteca, ele

574
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

adquire a propriedade do terreno, mas isso não implica a aquisição do prédio. A Súmula serve justamen-
te para obstar que um eventual direito real sobre o terreno implique em aquisição do prédio, em detri-
mento daqueles que adquiriram o apartamento.
Em uma visão contemporânea, Flávio Tartuce entende que o condomínio é pessoa jurídica de direi-
to privado, seguindo o entendimento de Tepedino, Viegas e do Enunciado n. 90 – I Jornada de Direito
Civil428.Essa visão traz a possibilidade de adjudicação de unidade pelo condomínio, sendo nas palavras de
Flávio Tartuce a grande discussão jurídica que está por trás do debate a respeito da natureza jurídica do
condomínio edilício, havendo julgados que afastam essa possibilidade justamente pela falta de persona-
lidade jurídica (por todos: TJSP, Apelação Cível 100.185-0/2-00. Decisão do Conselho Superior da Ma-
gistratura, julgado em 04.09.2003).
Ademais, o referido Autor pontua que a possibilidade de adjudicação pelo condomínio edilício pas-
sou a ser expressamente admitida pela Lei 13.777/2018 quanto às unidades que estão em multiproprie-
dade, em havendo débitos condominiais, nos termos do que consta do novo art. 1.358-S429 do Código
Civil, o que reforça a tese do reconhecimento da personalidade jurídica do condomínio edilício pelo me-
nos para este fim:

CC, art. 1.358-S: “Na hipótese de inadimplemento, por parte do multiproprietário, da obrigação
de custeio das despesas ordinárias ou extraordinárias, é cabível, na forma da lei processual civil,
a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo correspondente. Parágrafo único. Na
hipótese de o imóvel objeto da multipropriedade ser parte integrante de empreendimento em
que haja sistema de locação das frações de tempo no qual os titulares possam ou sejam obriga-
dos a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repar-
tindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade
autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência: I -
o inadimplente fique proibido de utilizar o imóvel até a integral quitação da dívida; II - a fração
de tempo do inadimplente passe a integrar o pool da administradora; III - a administradora do
sistema de locação fique automaticamente munida de poderes e obrigada a, por conta e ordem
do inadimplente, utilizar a integralidade dos valores líquidos a que o inadimplente tiver direito
para amortizar suas dívidas condominiais, seja do condomínio edilício, seja do condomínio em
multipropriedade, até sua integral quitação, devendo eventual saldo ser imediatamente repassa-
do ao multiproprietário.”

4.2.2.4. Elementos constitutivos do condomínio


A formação do condomínio edilício reclama a presença de três elementos constitutivos: ato de insti-
tuição, convenção e regimento interno.

428 Enunciado n. 90, I JDC: “Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício nas relações

jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse”.


429

575
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4.2.2.4.1. Ato de instituição (art. 1.332 do CC)

Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no
Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:

I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma


das outras e das partes comuns;

II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes


comuns;

III - o fim a que as unidades se destinam.

O ato de instituição é o ato de criação, de formação do condomínio. Ele pode ser realizado por es-
critura pública (ato inter vivos) ou por testamento (mortis causa), que não precisa ser público, necessa-
riamente.
Trata-se da verdadeira Constituição do condomínio (é o que o funda).
O ato mais comum de criação do condomínio é a incorporação imobiliária (a empresa que se dispõe
a comprar o terreno, contratar a construção, venda etc.)
O ato de instituição precisa conter três matérias obrigatórias:
i) finalidade condominial:
Ex.: finalidade residencial, comercial, mista etc. Como visto, cada condômino pode usar o todo,
desde que não modifique a finalidade.
ii) descrição das áreas comuns e das unidades autônomas:
É nesse momento que o ato definirá, por exemplo, se a cobertura é unidade autônoma.
iii) individualização das frações ideais:
É no momento da individualização que o condomínio dirá a fração ideal de cada condômino.
Essas três matérias obrigatórias são vinculantes, somente podendo ser modificadas pela unanimi-
dade dos condôminos.

4.2.2.4.2. Convenção do condomínio (arts. 1.333 e 1.334 do CC)

A convenção do condomínio é a disciplina dos direitos e deveres recíprocos entre os condôminos.


Ela precisa ser aprovada por pelo menos dois terços das frações ideais. Exige-se o mesmo quó-
rum para eventuais modificações de seu conteúdo.

Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de,
no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de
direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção.

Parágrafo único. Para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser re-
gistrada no Cartório de Registro de Imóveis.

576
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há um debate acerca da natureza da convenção (contratual ou estatutária), tendo prevalecido que


se trata de natureza estatutária. Isso porque ela vincula mesmo quem não a subscreveu (ex.: o condômi-
no que adquiriu a propriedade posteriormente).
A Súmula 260 do STJ afirma que a convenção regularmente aprovada produz efeitos entre os con-
dôminos mesmo sem o registro:

Súmula 260 – A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regu-
lar as relações entre os condôminos.

A leitura dessa súmula revela que, em verdade, o registro da convenção é condição eficaci-
al para a produção de efeitos em relação a terceiros, não em relação às partes.
A convenção de condomínio também possui matérias obrigatórias (art. 1334):

Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por
bem estipular, a convenção determinará:

I - a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender
às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;

II - sua forma de administração;

III - a competência das assembléias, forma de sua convocação e quorum exigido para as delibe-
rações;

IV - as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;

V - o regimento interno.

i) taxa para a manutenção do condomínio (taxa condominial): como visto, ela será proporcional à
fração ideal de cada um;
ii) forma de administração (ex.: se haverá síndico, uma empresa etc.);
iii) competência das assembleias (o que se discutirá nas assembleias ordinárias, extraordinárias
etc.);
iv) sanções aplicáveis aos condôminos antissociais: essa sanção está prevista na convenção. Toda-
via, mesmo que esteja, o § 2º do art. 1.336 e o art. 1.337 do CC dizem que a multa será devida mesmo no
silêncio da convenção, não podendo ser superior a cinco vezes o valor da taxa condominial:

Art. 1.336 (...) § 2º O condômino, que não cumprir qualquer dos deveres estabelecidos nos inci-
sos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser
superior a cinco vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e
danos que se apurarem; não havendo disposição expressa, caberá à assembléia geral, por dois
terços no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa.

Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres pe-

577
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

rante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser cons-
trangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para
as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente
das perdas e danos que se apurem.

Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social,
gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser
constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as
despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia.

O CC não disse (porque não precisava dizer) que a aplicação de sanção ao condômino precisa de
devido processo legal (RE 201.809/RJ). É uma garantia fundamental aplicável às relações privadas.
Se, aplicada a multa, o condômino continuar violando os direitos coletivos, a multa pode ser do-
brada. Se, mesmo assim, ele continuar com as violações, Chaves entende que se tratará de abuso do direi-
to de propriedade, podendo ele se excluído por via judicial.
v) disposição sobre a edição do regimento interno.

4.2.2.4.3. Regimento interno

Regimento interno é o “manual de instruções” do condomínio. Ele traz, por exemplo, o horário de
utilização da piscina, o modo de utilização do salão de festas etc. Por isso até que, normalmente, os regi-
mentos internos ficam afixados em local visível.
Mudança na convenção de condomínio reclama a aprovação de maioria de dois ter-
ços das frações ideais. Já o regimento interno é aprovado e modificado por maioria sim-
ples.

4.2.2.5. Direitos e deveres dos condôminos e sanções no condomínio edilício (arts.


1.335 a 1.337, CC)

4.2.2.5.1. Direitos dos condôminos

Os dirietos dos condôminos encontram-se especificados no Art. 1.335, CC:

Art. 1.335. São direitos do condômino:

I - usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;

II - usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização
dos demais compossuidores;

III - votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite.

Inicialmente o condômino pode usar, fruir e livremente dispor das suas unidades, faculdades qu
decorrem automaticamente do famigerado exercício da propriedade (GRUD). Podendo assim vendê-la,

578
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

alugá-la, cedê-la, emprestá-la, ocupá-la ou deixar de fazê-lo, sem necessidade da anuência dos
demais condôminos e sem a obrigação de lhes dar preferência.
No uso das partes comuns não pode o condômino excluir, perturbar ou embaraçar a utilização dos
demais condôminos, uma vez que todos têm o mesmo direito de usar as partes comuns, devendo o síndi-
co zelar pela observância desse direito.
Flávio Tartuce adverte que havendo exclusão do direito de outrem, caberá ao condomínio ou ao
próprio condômino prejudicado ingressar com a ação cabível, que pode ser a ação de reintegração de
posse ou de obrigação de fazer.
Finalmente, o direito de votar e participar das deliberações nas assembleias é assegurado por lei,
desde que o condômino esteja quite com o pagamento da cota condominial.
O proprietário pode fazer-se representar nas assembleias por procurador com poderes específicos
para delas participar e votar nas deliberações.
Flávio Tartuce frisa que a convenção pode estabelecer o contrário, ou seja, pode estabelecer que o
condômino, mesmo inadimplente pode votar e comparecer à assembleia.

4.2.2.5.2. Deveres dos condôminos

Os deveres dos condôminos encontram-se estabelecidos no art. 1.336, CC:

Art. 1.336. São deveres do condômino:

I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo dispo-
sição em contrário na convenção;

II - não realizar obras que comprometam a segurança da edificação;

III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas;

IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira
prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

Inicialmente rememora-se que as obrigações condominiais constituem obrigação “propter rem” ou


ambulatória (CC, art. 1.345).
Seguindo a lição de Carlos Roberto Gonçalves, o incio II estabelece a proibição de o condômino
realizar obras que possam comprometer a segurança da edificação.
Trata-se de obrigação negativa imposta aos condôminos, vedando a prática de qualquer ato que
possa ameaçar a segurança do edifício, ou prejudicar-lhe a higiene e limpeza.
Assim, ao condômino é vedado introduzir quaisquer inovações nas partes comuns, porque, em re-
lação a elas, ele não é proprietário. Não lhe é lícito, por exemplo, fechar parte do corredor para utilização
pessoal ou apossar-se do terraço comum, privando os demais condôminos de igual direito.
Em seguida, a teor do incio III nnenhum condômino pode alterar a fachada do edifício, pintar suas
paredes esquadrias externas em cor diversa da nele empregada ou realizar qualquer modificação arquite-

579
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tônica. Qualquer alteração depende da aquiescência da unanimidade dos condôminos, visando manter a
harmonia arquitetônica do edifício.
Finalmente, a teor do inciso IV, os condôminos têm o dever de dar às unidades a mesma destina-
ção da edificação; dever de não as utilizar de maneira prejudicial à regra dos “3s” (sossego, saúde e segu-
rança); ou de maneira prejudicial aos bons costumes.
Flávio Tartuce leciona que no que concerne à utilização da área conforme a destinação do condo-
mínio, não se pode abster totalmente o condômino de trabalhar no imóvel, desde que isso não perturbe o
sossego dos demais condôminos.
De outro lado, problema relativo aos bons costumes surge quando o condômino desenvolve ativi-
dade que por si só causa constrangimento aos demais moradores, caso da prostituição, sendo que até é
possível fazer cessar a atividade, desde que isso seja devidamente comprovado por quem a alega, con-
forme jpa decidido pelo TJSP430.

4.2.2.5.3. Sanções no condomínio edilício

Como primeira sanção possível aos condôminos, enuncia o § 1.º do art. 1.336 do CC que o inadim-
plente ficará sujeito aos juros moratórios convencionados (até 2% ao mês) ou, não sendo previstos, os de
um por cento ao mês (1% a.m.) e multa de até dois por cento sobre o débito (embora a multa coincida
com a da “relação de consumo” esta não existe entre condômino e condomínio, o valor decorre de ex-
pressa previsão legal).
A teor do Enunciado n. 505 do CJF/STJ “é nula a estipulação que, dissimulando ou embutindo
multa acima de 2%, confere suposto desconto de pontualidade no pagamento da taxa condominial, pois
configura fraude à lei (Código Civil, art. 1336, § 1.º) e não redução por merecimento”, entretanto o STJ
admite a possibilidade do desconto-pontualidade, que não é multa disfarçada, mas premiação431.
O STJ432 consolidou a posição de que a multa de 2% tem aplicação imediata, mesmo aos condomí-
nios anteriores e havendo previsão em contrário na convenção desde que o inadimplemento ocorrido
após 11.01.2003(CC 2002 entrou em vigor).
Em seguida, leciona Flávio Tartuce que o § 2.º do art. 1.336 da codificação material preconiza que
2/3 dos condôminos restantes podem deliberar a imposição de multa no montante de até cinco ve-
zes o valor da quota condominial para o condômino que: a) realizar obras que comprometam a seguran-
ça da edificação; b) alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas; c) der destinação

430 (TJSP, Apelação Cível 436.450.4/2, Acórdão 3174270, São Paulo, 4.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des.
Francisco Eduardo Loureiro, j. 07.08.2008, DJESP 01.09.2008).
431 (AgRg no REsp 1217181/DF, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em

04/10/2011, DJe 13/10/2011).


432 (REsp 689.150/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2006, DJ

13/03/2006, p. 328).

580
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

diferente à sua parte àquela prevista para a edificação; d) utilizar a sua parte de forma a prejudicar o sos-
sego, a salubridade e a segurança dos demais possuidores ou em contrariedade aos bons costumes.
Dispõe ainda o art. 1.337, caput, do CC que o condômino que não cumprir reiteradamente com os
seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de 3/4 dos condôminos restantes, ser
constrangido a pagar multa de até o quíntuplo (cinco vezes) do valor atribuído à quota condominial, con-
forme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos.
Segundo o STJ, é possível aplicar essa previsão ao condômino devedor contumaz 433, inclusive pois,
multa prevista no § 1º do art. 1.336 do CC/2002 detém natureza jurídica moratória, enquanto a penali-
dade pecuniária regulada pelo art. 1.337 tem caráter sancionatório, uma vez que, se for o caso, o condo-
mínio pode exigir inclusive a apuração das perdas e danos.
Em complemento, o parágrafo único do Art. 1.337 é possível a aplicação de multa de até 10 vezes o
valor da contribuição ao condômino cujo reiterado comportamento antissocial for reconhecido por 3/4
dos condôminos restantes, sem prejuízo de perdas e danos.
É importante lembrar que segundo Enunciado n. 92 – I Jornada de Direito Civil as sanções do arti-
go 1.337 do Código Civil não podem ser aplicadas sem que se garanta o direito de defesa ao condômino
nocivo, entendimento partilhado pelo Tribunal Cidadão, em atenção à ideia de constitucionalização do
Direito Civil e a aplicação imediata das normas fundamentais nas relações privadas (eficácia horizon-
tal)434.
Em relação à possibilidade de expulsão do condômino nocivo ou antissocial a doutrina diverge,
sendo que que para Dabus Maluf e José Fernando Simão não é possível a aplicação dessa sanção. Entre-
tanto, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald entendem ser possível.
Flávio Tartuce é partidário da primeira corrente, mas admite ser minoritária em vista do Enuncia-
do n. 508 – V Jornada de Direito Civil435.
Finalmente sobre a Cláusula de restrição pessoal, o STJ entendeu não ser cabível restrição de di-
reito de uso das áreas comuns por inadimplência, uma vez que o rol das penalidades ao condômino é
taxativo436.

433 (REsp 1247020/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/10/2015,
DJe 11/11/2015).
434 (REsp 1365279/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/08/2015,

DJe 29/09/2015).
435 Enunciado n. 508, V JDC: “Verificando-se que a sanção pecuniária se mostrou ineficaz, a garantia funda-

mental da função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, da CRFB e 1.228, § 1º, do CC) e a vedação ao abuso do di-
reito (arts. 187 e 1.228, § 2º, do CC) justificam a exclusão do condômino antissocial, desde que a ulterior assembleia
prevista na parte final do parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil delibere a propositura de ação judicial com
esse fim, asseguradas todas as garantias inerentes ao devido processo legal”.
436 “A vedação de acesso e de utilização de qualquer área comum pelo condômino e de seus familiares, inde-

pendentemente de sua destinação (se de uso essencial, recreativo, social, lazer, etc), com o único e ilegítimo propó-
sito de expor ostensivamente a condição de inadimplência perante o meio social em que residem, desborda dos

581
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4.2.2.6. Questões controvertidas acerca da convenção condominial


Importante destacar algumas questões controvertidas acerca da convenção de condomínio:
i) animais:
Imagine uma convenção que proíba terminantemente a entrada de todo e qualquer animal. Até um
peixe no aquário estaria proibido. O STJ decidiu que essas proibições peremptórias se dirigem aos ani-
mais perigosos ao convívio social. Mandou aplicar a razoabilidade.
Assim, segundo o STJ, todas as permissões excessivas e as proibições peremptórias na Convenção
são nulas de pleno direito.
A presença de animais é permitida desde que respeite o direito de vizinhança presente no art. 1.277
do CC (segurança, sossego e saúde). Assim, um cachorrinho que passe a noite inteira latindo ou uivando
não poderá permanecer no condomínio:

Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interfe-
rências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utili-
zação de propriedade vizinha.

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a locali-


zação do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordi-
nários de tolerância dos moradores da vizinhança.

ii) cultos religiosos:


A manifestação religiosa é possível no condomínio, desde que, mais uma vez, respeite a segurança,
o sossego e a saúde.
iii) responsabilidade civil no condomínio por roubo ou furto em área comum:
A solução dada pela jurisprudência é que o condomínio responde por roubo ou furto em área co-
mum somente se houver estipulação expressa na convenção do condomínio, ou se havia verba específica
destinada a empresa de segurança (isso porque, neste caso, o condomínio responde e terá direito de re-
gresso contra a empresa).
iv) taxa condominial:
A taxa condominial é uma obrigação propter rem (adere à coisa). Adquirido um apartamento com
parcelas condominiais em atraso, quem paga é o atual proprietário (adquirente), com direito regressivo
contra o alienante.
A cobrança de taxa condominial permite a penhora de bem de família.
O CC/2002 limitou os juros e a multa na taxa condominial (juros: 1% ao mês; multa: 2% ao mês).
Mais do que isso será nulo, no que exceder. O que ocorre com os condomínios que já estavam instituídos

ditames do princípio da dignidade humana”. (REsp 1564030/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE,
TERCEIRA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 19/08/2016).

582
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

antes do CC/02 (veja que a redução foi drástica: a multa caiu de 20% para 2%)? O STJ, no REsp
722.904/RS, determinou a aplicação do novo limite de multa mesmo aos condomínios anteriormente
constituídos.
O eventual inadimplemento da taxa de condomínio, cumpre lembrar, não pode implicar cobrança
vexatória (ex.: síndico que coloca lista no elevador com todos os condôminos inadimplentes) nem sus-
pensão dos serviços essenciais (ex.: uso do elevador, água, gás). A cobrança vexatória pode ensejar dano
moral ao condômino. O STJ decidiu que os serviços não essenciais podem ser suspensos (ex.: em julgado,
permitiu a proibição do uso do campo de golfe do condômino inadimplente há um ano e meio).

5. Estudos breves sobre a multipropriedade imobiliária437


Vale aqui tecer algumas considerações acerca do time sharing, definido por Gustavo Tepedino co-
mo a “relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unida-
des fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa
com exclusividade e de maneira perpétua”.
Em tradução literal, significa “tempo compartilhado”, em tradução jurídica, o time sharing mere-
ceu ser chamado de “multipropriedade imobiliária”.
As pessoas estão acostumadas a enxergar o condomínio edilício como uma unidade espacial. O ti-
me sharig é a possibilidade de formação de um condomínio no tempo, não no espaço. É uma revolução
no conceito de propriedade (uma propriedade diferida no tempo). No time sharing, cada coproprietário
adquire o direito de usar a coisa durante um determinado número de dias no ano. Esse coproprietário
terá escritura, como qualquer outro, mas a utilização do bem será diferente.
Assim, o time sharing viabiliza muitas vezes o sonho de uma casa de praia, de férias etc. Os mais
importantes efeitos do time sharing localizam-se no direito tributário (o IPTU ou o ITR será cobrado
pelo número de dias em que a pessoa utilizará a propriedade) e no direito civil (que disciplina como será
a escritura do bem).
Perceba que se o condomínio já é fonte de desavenças, o time sharing é uma fonte maior ainda. A
administração dele poderá ser realizada por uma empresa, que determinará os dias de utilização da coisa
por cada condômino. A relação entre o condômino e a administradora será de consumo, o que não ocorre
no condomínio edilício, de ordinário. Trata-se de aplicação excepcional das regras do CDC.
Se um condômino do time sharing contrair uma dívida durante o período de utilização, ele respon-
derá sozinho por ela, pois durante a utilização cada condômino exerce a plenitude de seus direitos sozi-
nho.

437 Adapatado do artigo disponível em


http://professorflaviotartuce.blogspot.com/2019/01/multipropriedade-imobiliaria-e-lei.html

583
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O time sharing foi positivado em 2018 com a edição da Lei 13.777, que tratou de aspectos relativos
à categoria: a) disposições gerais; b) regras quanto à sua instituição; c) direitos e obrigações do multipro-
prietário; d) transferência da multipropriedade; e) previsões de preceitos a respeito da sua administra-
ção; e f) disposições específicas relativas às unidades autônomas de condomínios edilícios (arts. 1.358-B
a 1.358-U).
Flávio Tartuce assevera que a multipropriedade tratada atualmente no Código Civil apenas diz res-
peito a imóveis, não alcançando bens móveis como veículos automotores, aeronaves e embarcações em
geral.
Trata-se, em verdade, de uma forma de condomínio aplicável apenas aos imóveis em que há uma
divisão temporal no aproveitamento exclusivo da titularidade do bem.
Inicialmente importa notar que cada fração de tempo de utilização do imóvel deve ser
indivisível e de, no mínimo, 7 (sete) dias “seguidos ou intercalados”, conforme prevê o art. 1.358-
E).
“A fração de tempo poderá ser: (a) fixa e determinada, correspondente ao mesmo período de cada
ano (ex. primeira semana de fevereiro, dias 10 a 16 de abril etc.); (b) flutuante, isto é, variável de tempos
em tempos, respeitada a objetividade e a transparência do procedimento de escolha e o tratamento
isonômico entre os diversos multiproprietários; ou (c) mista, isto é, combinando características do siste-
ma fixo e do sistema flutuante.”.
A instituição da multiporpriedade pode se dar por ato inter vivos ou por testamento, devendo ser
registrado na matrícula do imóvel o período correspondente à fração de tempo de cada um.
Flávio Tartuce leciona pela não necessidade de autorização dos demais multiproprietários para ali-
enar e onerar sua fração de tempo. Nesse sentido cada multi proprietário pode faze-lo de forma livre,
devendo, contudo, informar tal fato ao administrador do condomínio em multipropriedade.
A alienação da fração de tempo, não depende da anuência dos demais co-proprietários; não garan-
tindo aos demais condôminos o direito de preferência, afastando o quanto previsto no Art. 504, CC, po-
dendo a convenção estabelecer o contrário, a ateor do art. 1.358-L.
Segundo o art. 1.358-R, em caso de condomínio edilício em que se tenha instituído o regime de
multipropriedade, haverá, necessariamente, um administrador profissional, esse Art. na opinião de Flá-
vio Tartuce é inconstitucional, em face da patente “reserva de mercado”.

6. Direitos reais na coisa alheia


6.1. Teoria geral dos direitos reais na coisa alheia

6.1.1. Feixe de poderes que compõem a propriedade

584
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como visto anteriormente, a propriedade confere ao seu titular uma multiplicidade de poderes. Se-
gundo o art. 1.228 do CC, ela é um feixe, composto dos seguintes poderes: uso, gozo (ou fruição), disposi-
ção e reivindicação:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Assim, os direitos reais na coisa alheia (ius in re aliena), não se confundem com o direito
real sobre coisa própria (ius in re propria). Os Direitos Reais de gozo ou fruição estão previstos
no art. 1.225 do Código Civil, incisos II, III, IV, V, VI, XI, XII e XIII:

“Art. 1.225. São direitos reais:

[...]

II - a superfície;

III - as servidões;

IV - o usufruto;

V - o uso;

VI - a habitação; [...]

XI - a concessão de uso especial para fins de moradia;

XII - a concessão de direito real de uso; e

XIII - a laje.”

6.1.2. Conceito de direito real da coisa alheia


Os poderes do domínio admitem fracionamento (desmembramento), sem que isso afete o caráter
indivisível e exclusivo da propriedade. Ex.: o titular pode entregar o uso e a fruição de determinado bem
a terceiro.
Esse desmembramento dos poderes que compõem do domínio permite a constituição de direito re-
al na coisa alheia, sem que o direito de propriedade seja afetado.
Assim, direito real na coisa alheia é o resultado do desmembramento dos poderes do domínio sem
afetar a titularidade. Em outras palavras, o titular (o proprietário) permanece com o título e o terceiro
recebe parcela dos poderes do domínio.
Perceba que a criação de um direito real na coisa alheia não reduz em nenhum momento a dimen-
são da propriedade (o direito de propriedade não resta comprometido), mas atinge severamente o domí-
nio. O direito real na coisa alheia não afeta em nada o direito de propriedade justamente porque o pro-
prietário permanece com o título.
Veja que todos os poderes do domínio podem ser conferidos a um terceiro. Com efeito, na enfiteu-
se, o enfiteuta recebe todos os quatro, permanecendo o titular apenas com o título. Por isso que ele é
585
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

chamado de senhorio (ele é simplesmente o senhor da coisa). O enfiteuta tem o domínio pleno, mas,
mesmo assim, o direito de propriedade não está sendo reduzido.
A possibilidade de criação de direito real na coisa alheia confirma a plenitude e a exclusividade da
propriedade, mas reconhece a possibilidade de desmembramento dos poderes do domínio. Afora a hipó-
tese de condomínio, não é possível a existência de mais de uma pessoa exercendo o mesmo direito de
propriedade, mas é possível que se exerçam diferentes direitos sobre a mesma coisa.

6.1.3. Função social dos direitos reais na coisa alheia


A função social dos direitos reais na coisa alheia é tese nova, ainda não exigida em concurso.
Como visto, os direitos reais na coisa alheia nascem do fracionamento dos poderes do domínio.
Consequentemente, se o proprietário tem de cumprir a função social da propriedade, o terceiro que rece-
be a parcela dos poderes do domínio também tem. A isso se dá o nome de função social dos direitos reais
na coisa alheia.
Até porque o exercício de um direito real deve se dar perante pessoas, e não sobre coisas. Quando o
titular exerce um direito real, ele deve se preocupar com o impacto desse exercício sobre a coletividade. É
um “ser”, sobrepujando o “ter”.
Exemplo de aplicação dessa tese está na Súmula 308 do STJ:

Súmula 308 - A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior
à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imó-
vel.

Hipoteca é direito real na coisa alheia de garantia. A construtora toma o empréstimo no banco e dá
como garantia o próprio terreno que será edificado. Tal hipoteca não tem eficácia perante os adquirentes.
Ou seja, o exercício de um direito real de hipoteca não pode prejudicar terceiros. Se o titular de um direi-
to real na coisa alheia não pode prejudicar os terceiros, isso significa que o direito real tem de respeitar
pessoas (função social na coisa alheia).

6.2. Classificação dos direitos reais na coisa alheia

A criação de um direito real na coisa alheia (o desmembramento dos poderes do domínio pela lei
ou pelo próprio titular) pode obedecer a diferentes finalidades: permitir a um terceiro o gozo e a fruição
da coisa, assegurar o cumprimento de uma obrigação ou permitir a aquisição do título pelo terceiro.
Conforme se verificará, a cada uma dessas finalidades corresponderá uma espécie de direito real na
coisa alheia.
i) direitos reais na coisa alheia de gozo ou fruição:
Os direitos reais na coisa alheia de gozo ou fruição são constituídos para permitir que um terceiro
retire as utilidades da coisa.

586
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Toda vez que se quer criar um direito real na coisa alheia para que o terceiro a tenha a coisa consi-
go, retirando as utilidades, tal direito será de gozo ou fruição. Para que se permita ao terceiro gozar e
fruir a coisa, será necessário que ele a tenha consigo.
São seis os direitos reais não coisa alheia de gozo ou fruição: enfiteuse (ela não acabou, apenas não
pode mais ser constituída), superfície, usufruto, uso, habitação e servidões.
ii) direitos reais na coisa alheia de garantia:
A constituição de um direito real na coisa alheia pode ocorrer simplesmente para assegurar ao ter-
ceiro o cumprimento de uma obrigação.
Nesta segunda perspectiva, o terceiro não pode retirar frutos ou utilidades da coisa. Ele apenas re-
cebe a parcela dos poderes do domínio para ter assegurado que, se a obrigação não for cumprida, o bem
será executado.
São quatro os direitos reais de garantia: hipoteca, penhor, anticrese e alienação fiduciária.
iii) direito real na coisa alheia de aquisição:
O direito real da coisa alheia de aquisição tem a finalidade de permitir a aquisição do título pelo
terceiro, ou seja, serve para que o terceiro viabilize a aquisição da propriedade.
O titular de um direito real na coisa alheia tem os poderes do domínio, mas não o título. O direito
real na coisa alheia de aquisição confere a ele a possibilidade de, tendo os poderes, adquirir o que lhe
falta para a plenitude: o título.
Na boa gramática, o correto seria “direito real na coisa alheia à aquisição”. Isso porque, tendo os
poderes do domínio, o detentor desse direito passa a ter o direito de adquirir o título, independentemen-
te da vontade do proprietário.
No Brasil, há um só direito real na coisa alheia à aquisição: promessa irretratável de compra e ven-
da.
O art. 1.225 do CC, consagrando o princípio da tipicidade dos direitos reais, elenca todos os direitos
reais:

Art. 1.225. São direitos reais:

I - a propriedade;

II - a superfície;

III - as servidões;

IV - o usufruto;

V - o uso;

VI - a habitação;

VII - o direito do promitente comprador do imóvel;

VIII - o penhor;

587
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

IX - a hipoteca;

X - a anticrese.

XI - a concessão de uso especial para fins de moradia;

XII - a concessão de direito real de uso.

A propriedade é o direito real mãe. É o único direito real na coisa própria. Não pode haver outro,
na medida em que ela é indivisível e exclusiva. É ampla (um feixe de poderes).
Ao lado da propriedade, há outros, que nascem justamente dos poderes do domínio.
Em amarelo, estão os direitos reais na coisa alheia de gozo e de fruição (incisos II a VI). Note que
falta a enfiteuse: ela não está aí porque o CC/02 impossibilitou a constituição de novas enfiteuses, mas as
que já existem permanecem.
Em verde, está o único direito real na coisa alheia à aquisição: promessa irretratável de compra e
venda.
Em azul estão os direitos reais na coisa alheia de garantia, previstos nos incisos VIII a X. Falta a
alienação fiduciária em garantia, cuja disciplina não está nesse rol, mas no art. 1.361 do CC:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o deve-
dor, com escopo de garantia, transfere ao credor. (...)

Veio então a Lei 11.481/2007 e acrescentou mais dois direitos reais na coisa alheia, em vermelho: a
concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso. Eles têm finalidade
específica. Querem atender apenas a situações específicas, não tendo a mesma amplitude dos demais.
Na verdade, pode-se até dizer que, fundamentalmente, esses dois direitos reais novos são dirigidos
ao Poder Público, para resolver questões fundiárias e habitacionais (de moradia). Lembre-se que a CR
estabelece o direito real de moradia como direito fundamental, e o país tem sérios problemas fundiários e
de moradia. Esses dois direitos foram, então, criados para dar uma maior dinâmica ao Poder Público.
Para que o Poder Público conceda a propriedade a terceiros, ele ordinariamente terá de realizar
processo licitatório, terá de cumprir regras. Esses novos direitos reais de garantia são uma forma de que
dispõe o Poder Público de assegurar a moradia e resolver problemas fundiários sem que com isso ele dis-
ponha da propriedade pública, que continua com ele.
Assim, no direito brasileiro há 14 direitos reais. A isso, se dá o nome de tipicidade dos direitos re-
ais, a qual dá toda essa dinâmica e mobilidade aos direitos reais na coisa alheia (isso porque na coisa
própria nunca poderá haver outro).
A propriedade é um direito real pleno e indivisível. Todos os demais direitos reais são limitados. Só
a propriedade é ilimitada: nenhum direito real na coisa alheia terá tudo o que ela tem.

588
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A despeito da tipicidade dos direitos reais, alguns autores, como Gustavo Tepedino (RJ) e Fernan-
do Noronha (SC) começam a sustentar a existência de outros direitos reais na coisa alheia438.
Para eles, o que caracteriza um direito real, seja na coisa própria, seja na alheia, é a oponibilidade
erga omnes (ou seja, uma eficácia que perpassa o titular e atinge a coletividade). Tal eficácia também
pode ser encontrada em outros institutos, que cumprem função idêntica à de um direito real (fazem o
mesmo papel), embora não estejam previstos em lei como tais. São exemplos:
i) art. 505 do CC (retrovenda):

Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo
de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do com-
prador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escri-
ta, ou para a realização de benfeitorias necessárias.

A retrovenda é uma cláusula especial (acessória) num contrato de compra e venda, que concede ao
vendedor o direito potestativo de adquirir a coisa de volta, no prazo máximo de três anos, depositando o
preço. Ex.: “A” vende um imóvel para “B”, gravando a compra e venda com cláusula de retrovenda, com
prazo de três anos.
Note que se trata de um exemplo claro de propriedade resolúvel. Nesse prazo de três anos, “B” re-
vende o imóvel a “C”, com o qual “A” não tem nenhuma relação jurídica. “A” pode exercer sua retrovenda
com relação a “C”, que não participou da relação jurídica entre “A” e “B”. Por conta dessa eficácia erga
omnes da retrovenda, os autores dizem que se trataria de um novo direito real à aquisição.
Chaves considera que não dá para dizer que seria um novo direito real à aquisição, pelo princípio
da tipicidade. Seria o mesmo que querer acrescentar crime sem previsão legal.
ii) cláusula de preferência legal:
Há duas relações jurídicas que têm cláusula de preferência legal: condomínio comum (art. 504 do
CC) e locação de imóveis urbanos (art. 27 da Lei 8.245/1991):

Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro
consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda,
poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo
de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.

Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor
e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendi-
da os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.

438 O assunto é novidade, nunca tendo sido cobrado em concurso. Por isso, se a prova for objetiva, deve-se fi-
car com o Código. Se a prova for subjetiva, deve-se demonstrar o conhecimento da tese.

589
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou da-
ção em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de
condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notifica-
ção judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca.

Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e, em especial, o


preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como o local e horário em que po-
de ser examinada a documentação pertinente.

A Lei de Locações diz que se o locador quiser vender o imóvel durante a vigência da locação, ele
precisa dar ao locatário direito de preferência, que funciona da seguinte forma: se alienar o imóvel a um
terceiro, sem notificar o locatário, este terá direito de ajuizar ação de adjudicação compulsória. Isso é
eficácia erga omnes.
O locatário somente terá esse direito mediante o registro do contrato no Cartório de Registro de
Imóveis. Se não estiver registrado (e quase nunca está), o direito do locatário não terá eficácia erga om-
nes, resolvendo-se em perdas e danos.
Mais uma vez, Chaves entende que não se trata de direito real por ausência de previsão legal.
iii) reserva de domínio.
Note que os exemplos acima estão previstos na lei como relações jurídicas obrigacionais, mas que,
por produzirem a mesma eficácia erga omnes de um direito real, ganham dessa parcela da doutrina a
designação de um direito real.
Tecnicamente, são relações jurídicas de natureza obrigacional, mas com uma eficácia distinta (efi-
cácia de direito real). Isso não é problema, para Chaves. Direito não é matemática, não é uma ciência
jurídica exata. É possível a convivência com categorias jurídicas híbridas. O sistema não será fraturado
por isso.

6.3. Direito real na coisa alheia de aquisição: promessa irretratável


de compra e venda

6.3.1. Evolução histórica da promessa de compra e venda


Historicamente, a promessa de compra e venda não mereceu atenção do legislador (ela nunca foi
prestigiada pelo sistema). O art. 1.088 do CC/16 tratava dela como uma relação jurídica puramente obri-
gacional:

Art. 1.088. Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das par-
tes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do
arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097.

Ora, vista pelo ângulo de uma relação jurídica puramente obrigacional, a promessa de compra e
venda somente produziria efeitos intra partes. Aí, a partir das décadas de 1930 e 1940, quando o país

590
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

acelerou seu movimento imobiliário e a expansão urbana, começaram a surgir problemas muito sérios de
aquisição de imóveis.
A grande maioria das pessoas não adquire o imóvel à vista, mas de modo parcelado (em 10, 15
anos). O problema é que, como a promessa de compra e venda apenas produzia efeitos intra partes, o
promitente comprador celebrava o contrato e dizia que pagaria em dez anos. Quando pagava a última
parcela, o promitente vendedor recusava-se a passar a escritura. E o fazia porque a área estava imensa-
mente mais valorizava. Ele devolvia o valor pago em dobro, e permanecia com a propriedade do imóvel,
mais valorizado.
Percebeu-se que o caráter obrigacional da promessa gerava uma instabilidade nas relações jurídi-
cas. Foi assim que o DL 58/1937 conferiu eficácia real à promessa de compra e venda, revogando o art.
1.088 do CC/16.
Assim, malgrado a promessa de compra e venda tenha toda a estrutura de um direito obrigacional,
foi inserida no rol dos direitos reais (ela “migrou” do direito obrigacional para o direito real). Sob o ponto
de vista ôntico (do ser, da essência), a promessa de compra e venda é direito obrigacional. Sob o ponto de
vista topológico (posição legal), ela é direito real. Apesar de ter uma essência obrigacional, foi dada a ela
eficácia de direito real, com o objetivo de conferir maior segurança às relações.
Depois do DL 58/1937, veio a Lei 6.766/1979 (disciplina dos loteamentos), que manteve a natureza
real da promessa. Por fim, o art. 1.417 do CC/2002 sepultou as dúvidas, confirmando tal natureza. Toda-
via, para o CC/02, a promessa de compra e venda é direito real com uma condição: não haver cláusula de
retratação:

Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, ce-
lebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis,
adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

6.3.2. Cláusula de arrependimento na promessa de compra e venda


Havendo cláusula de arrependimento, a compra e venda será uma relação jurídica puramente obri-
gacional, não possuindo, por essa razão, eficácia erga omnes.
Algumas figuras contratuais, entretanto, não admitem cláusula de arrependimento, de modo que a
eventual existência de retrato será nula. Esses contratos que não podem conter cláusula de arrependi-
mento serão, portanto, sempre enquadrados como direitos reais. São eles: i) contrato de consumo; ii)
contratos que tenham por objetos imóveis loteados, rurais ou urbanos (Súmula 166 do STF439); iii) con-
trato de adesão (o fundamento é a boa-fé objetiva, da qual decorrem deveres anexos de lealdade, respei-
to). Nos demais contratos, a cláusula de arrependimento é válida.

439 Súmula 166 - É INADMISSÍVEL O ARREPENDIMENTO NO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA


SUJEITO AO REGIME DO DECRETO-LEI 58, DE 10/12/1937.

591
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não há decadência para o arrependimento, podendo o promitente vendedor se arrepender a qual-


quer tempo. Imagine um contrato de 100 parcelas, em que o promitente haja pagado 98. Na 99ª, o pro-
mitente vendedor poderia se arrepender, pelo menos em tese. Todavia, não se pode esquecer que, no
Brasil, nenhum direito pode ser exercido abusivamente, sob pena de ato ilícito objetivo, chamado abuso
do direito (art. 187 do CC).
Aqui, duas figuras podem ser utilizadas, para justificar a impossibilidade de arrependimento: su-
pressio e substantial performance (teoria do adimplemento substancial), as quais já foram estudadas
anteriormente. Todas elas têm base na boa-fé objetiva. Hipoteticamente, a boa-fé objetiva pode ser um
amortecedor para o exercício do direito de retrato (veja que se trata de uma limitação, e não de supres-
são, pois não se trata de decadência).

6.3.3. Registro em cartório de imóveis da promessa de compra e venda


Há uma discussão maravilhosa, oxigenada pelo STJ, relativa à necessidade ou não do registro em
cartório de imóveis da promessa de compra e venda. O art. 1.417 do CC diz o seguinte:

Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, ce-
lebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis,
adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

O dispositivo estabelece a necessidade de registro no cartório de registro de imóveis para que a


promessa de compra e venda adquira eficácia de direito real (erga omnes). Isso é o que está no Código.
Todavia, o STJ, arrefecendo (mitigando/suavizando) o artigo, editou a Súmula 239:

Súmula 239 - O direito [do promitente comprador] à adjudicação compulsória não se con-
diciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

Ou seja, o direito do promitente comprador à adjudicação compulsória existe tenha ele ou não re-
gistrado a promessa de compra e venda. Ele tem o direito à aquisição forçada, desde que haja cumprido
sua obrigação, mesmo sem registro em cartório. O fundamento desta súmula, a toda evidência, é a fun-
ção social da posse.
Além disso, na Súmula 84, o STJ diz que o promitente comprador, mesmo que não tenha registra-
do a promessa, tem direito aos embargos de terceiros:

Súmula 84 - É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse


advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.

Se o promitente comprador não registrou a promessa, no cartório consta a propriedade plena do


devedor. Havendo penhora sobre o imóvel, pode o promitente comprador defender a sua posse via em-
bargos de terceiros.

592
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, as Súmulas 239 e 84 mitigam a necessidade de registro, pois o promitente comprador tem
adjudicação compulsória e embargos de terceiros mesmo que a promessa não esteja registrada. No mes-
mo sentido, o Enunciado 95 da Jornada de Direito Civil:

Enunciado 95 - Art. 1.418: O direito à adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo Código Civil),
quando exercido em face do promitente vendedor, não se condiciona ao registro da promessa de
compra e venda no cartório de registro imobiliário (Súmula n. 239 do STJ).

6.3.4. 4.3.4 – efeitos jurídicos da promessa de compra e venda


São efeitos jurídicos da promessa de compra e venda:
i) conferir posse ao promitente adquirente:
A posse conferida ao promitente adquirente é a posse direta. Assim, enquanto perdurar o contrato
ele ainda não tem animus domini. Todavia, após a quitação, a promessa de compra e venda constituirá
justo título para fins de usucapião ordinária (com prazo reduzido, de dez anos; se o justo título estiver
registrado e o bem estiver cumprindo sua função social, o prazo será de cinco anos).
Até o momento da quitação, o promitente vendedor fica com a posse indireta do bem. Após a quita-
ção, ele passa a ser ex-proprietário, não tendo posse direta nem indireta.
ii) garantir o direito de aquisição forçada do objeto do contrato:
O direito à aquisição forçada do objeto do contrato surge após a quitação. Processualmente falan-
do, o instrumento idôneo para a aquisição forçada pode se apresentar por duas diferentes formas: ação
de adjudicação compulsória e ação de outorga de escritura.
A ação de adjudicação compulsória é disciplinada pelo art. 15 do DL 58/1937. A ação de outorga de
escritura, pelo art. 466-B do CPC:

Art. 15. Os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o pagamento integral
do preço, e estando quites com os impostos e taxas, exigir a outorga da escritura de compra e
venda.

Art. 466-B. Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a
outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que pro-
duza o mesmo efeito do contrato a ser firmado. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

A diferença entre as figuras é que a ação de adjudicação compulsória tem procedimento especial,
mais célere. Já a ação de outorga de escritura segue o procedimento comum.
Olhando assim, pareceria meio “insana” a escolha pela ação de outorga de escritura. Todavia, so-
mente pode se valer da ação de adjudicação compulsória o promitente comprador que tenha registrado a
promessa. Caso não haja registro, a ação cabível será a de outorga de escritura. Daí a importância do re-
gistro: a materialização da aquisição forçada.

593
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tanto a ação de adjudicação compulsória quanto a de outorga de escritura somente podem ser pro-
postas depois da constituição em mora do promitente vendedor (portanto, depois de provado que o pro-
mitente vendedor se recusou, espontaneamente, a comparecer ao cartório e celebrar a escritura pública
definitiva).
Segundo essas premissas, portanto, a Súmula 239 tem um erro. Ela diz o seguinte:

Súmula 239 - O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromis-


so de compra e venda no cartório de imóveis.

Na verdade, ela usou expressão atécnica. Em vez de “adjudicação compulsória”, deveria ter dito
“aquisição forçada”. Adjudicação compulsória é um dos procedimentos que viabilizam a aquisição força-
da. A expressão foi utilizada em sentido amplo (no sentido de aquisição forçada), e não no sentido estrito
(de procedimento).

6.3.5. 4.3.5 – aspectos controvertidos da promessa de compra e venda

6.3.5.1. 4.3.5.1 – necessidade de outorga do cônjuge do promitente vendedor

O cônjuge do promitente vendedor tem de consentir com a promessa de venda, se for casado, sob
pena de anulabilidade.
Cumpre lembrar que a lei dispensa a necessidade de outorga se o casamento tiver sido celebrado no
regime de separação. Tal dispensa pode também constar do pacto antenupcial, se o regime de bens do
casamento for o da participação final nos aquestos.

6.3.5.2. 4.3.5.2 – possibilidade de ajuizamento de ação pelo promitente comprador

O promitente comprador pode ajuizar as seguintes ações para a defesa da coisa:


i) ações possessórias (porque tem posse direta);
ii) ação publiciana (ele tem o domínio);
iii) ação reivindicatória (REsp 5.941/DF):
O STJ, no julgado acima, reconheceu a possibilidade de ajuizamento de ação reivindicatória pelo
promitente comprador. O fundamento desse entendimento é que, a cada dia, ele está aos poucos adqui-
rindo a propriedade, e, como a cada dia se torna um pouco mais proprietário, pode defendê-la.

6.3.5.3. 4.3.5.3 – possibilidade de ajuizamento de ações pelo promitente vendedor


O promitente vendedor pode se valer, basicamente, de três ações contra o promitente comprador:
i) ação de reintegração de posse;
ii) ação reivindicatória;
iii) ação de rescisão contratual.
O STJ, no REsp 166.459/SP, estabeleceu que a propositura de ação possessória, reivindicatória ou
de rescisão contratual do promitente vendedor contra o promitente comprador depende de prévia consti-

594
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tuição em mora. Ou seja, de notificação, judicial ou extrajudicial, com prazo mínimo de 30 dias, se o
imóvel for loteado, e de 15 dias se não for. Essa mora, portanto, é ex persona.

6.3.5.4. 4.3.5.4 – nulidade da cláusula de decaimento (ou de perdimento)


Constituído em mora o promitente comprador que não pagou as parcelas avençadas, admite-se a
rescisão contratual e a reintegração de posse. O comprador terá de sair. Todavia, tem direito de receber
de volta tudo o que pagou, segundo determina a jurisprudência do STJ.
A cláusula de decaimento (também chamada de cláusula de perdimento), segundo entende o STJ, é
nula, uma vez que abusiva (“leonina até a alma”). Sendo nula, segundo o STJ, o promitente comprador
que inadimpliu e foi constituído em mora terá de desocupar o imóvel, mas terá o direito de receber as
parcelas pagas.
Todavia, desse recebimento, devem ser abatidos: multa, juros, correção e taxa de ocupação (uma
espécie de aluguel que o juiz fixará, caso o contrato não o estipule). Resultado é que o promitente com-
prador inadimplente tem direito de receber as parcelas pagas, desde que abatidas as verbas acima cita-
das.
E o promitente vendedor recuperará a plenitude dos poderes do domínio.

6.4. Direito real na coisa alheia de garantia

6.4.1. Noções gerais e características

6.4.1.1. Humanização do débito e o reconhecimento das garantias reais

Até o advento da Lex Poetelia Papiria, no direito romano, o devedor vinculava-se pessoalmente ao
cumprimento das obrigações. Era a Lei do Talião: olho por olho, dente por dente. Com a Lex Poetelia,
houve uma humanização do débito. Ela consagrou a regra da responsabilidade patrimonial, e este legado
permanece nos Estados Democráticos de Direito.
No Brasil, essa regra é, a um só tempo, de direito material e processual (arts. 391 do CC e 789 do
CPC):

Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros, para o cumprimento
de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.

Por força disso, no sistema pátrio, o devedor responde por suas dívidas com seu patrimônio. O úni-
co caso de responsabilidade pessoal por dívida é o do devedor de alimentos. O sistema não mais tolera a
prisão civil do depositário infiel (Súmula Vinculante nº 25):

Súmula Vinculante 25 - É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modali-
dade do depósito.

595
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em decorrência da humanização do débito, avultou a importância das garantias. Surgiu a necessi-


dade do reconhecimento, portanto, de garantias reais: já que o devedor não mais responde com sua per-
sonalidade, é preciso que ele dê garantias sobre seu patrimônio.

6.4.1.2. Categorias de garantias patrimoniais


Existem duas categorias de garantias patrimoniais: i) fidejussórias; e ii) reais.
Serão fidejussórias as garantias prestadas por terceiros, que não sejam o devedor, de modo que
vinculam todo o patrimônio do garantidor. São a fiança e o aval.
Já as garantias reais são as consubstanciadas na entrega de uma coisa (reais vem de res, coisa). As-
sim, as garantias reais são aquelas em que a coisa garantida é que está vinculada à dívida para garantir o
cumprimento de uma obrigação. Elas nada mais são que a entrega de parcela dos poderes do domínio
sobre uma coisa, para assegurar o cumprimento de uma obrigação.
Nesses casos, o patrimônio pessoal somente é atingido caso a coisa não seja suficiente para satisfa-
zer o débito.
Ademais, Flávio Tartuce assevera que os Direitos Reais de garantia se dividem:
i. Sobre coisa alheia
a) Penhor
b) Hipoteca
c) Anticrese
ii. Sobre coisa própria440: Alienação fiduciária em garantia (Decreto-lei 911/1969 – bens mó-
veis; e na Lei 9.514/1997 – bens imóveis).

6.4.1.3. Conceito e natureza acessória dos direitos reais de garantia

Garantia real, ou direito real de garantia, é a vinculação do poder do credor sobre um bem perten-
cente a um devedor, para assegurar o cumprimento da obrigação.
Observe que o direito real de garantia tem natureza acessória: ele é acessório de uma obrigação
principal. Com isso, já se pode concluir, com facilidade, que todo direito real de garantia segue a obriga-
ção, de modo que se ela for extinta (ex.: quitada), extingue-se o direito de garantia.

6.4.1.4. Figuras assemelhadas


Direito real de garantia não se confunde com duas figuras que, de algum modo, lhe são próximas:

440 Flávio Tartuce assevera que, em que pese mais afeto ao Direito Empresarial, a alienação fiduciá-
ria em garantia não constitui um contrato, no sentido categórico e jurídico do termo, eis que o instituto
se situa dentro do Direito das Coisas. É verdade que, no geral, a alienação fiduciária é instituída por con-
trato, no sentido de negócio ou instrumento negocial.

596
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) direito real de gozo ou fruição:


Direito real de garantia serve para garantir o cumprimento de uma obrigação. Direito real de gozo
ou fruição serve para retirar utilidades da coisa.
O titular de um direito real de garantia pretende apenas assegurar o cumprimento da obrigação.
Nada mais. Ele não pode retirar as utilidades da coisa. Não pode ficar com a coisa para si. Se a obrigação
for descumprida, o titular de um direito real de garantia tem de executar o bem. O art. 1.428 do CC proí-
be a cláusula comissória nos direitos reais de garantia:

Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar
com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.

Isso tem todo sentido, na medida em que a dívida pode ser menor que o valor do bem, ou ter sido
paga parcialmente. O fundamento da proibição é a vedação do enriquecimento sem causa e a garantia do
devido processo legal.
Aliás, é exatamente pela proibição da cláusula comissória e com base nos fundamentos de tal proi-
bição que a Chaves parece que o DL 70/1966 não foi, neste ponto, recepcionado pela CR. Tal decreto au-
toriza a execução extrajudicial de hipoteca do Sistema Financeiro de Habitação em favor da Caixa Eco-
nômica Federal (celebrada hipoteca com a Caixa e inadimplido o financiamento, o Decreto-lei permite
que ela promova a execução extrajudicialmente).
Isso porque tal Decreto-lei viola o devido processo legal e, de certo modo, a proibição de cláusula
comissória. O STJ, até o início de 2011, dizia em sua jurisprudência que o DL 70/1966 seria compatível
com a CR.
O sistema brasileiro proíbe cláusula comissória (o contrato não pode autorizar o credor a ficar com
o bem para si, na hipótese de inadimplemento, devendo leva-lo à praça ou ao leilão). Todavia, nada im-
pede a dação em pagamento, na medida em que ela parte da vontade do devedor (art. 1.428, parágrafo
único, do CC). O que não se tolera é a previsão antecipada de que o credor poderá ficar com o bem para
si, ao invés de promover a execução.
ii) direito de preferência creditícia:
O art. 83 da Lei 11.101/2005 (Lei de Falências) estabeleceu uma nova ordem de preferência credití-
cia na falência: i) credor alimentício; ii) credor real; e iii) Fazenda Pública. Evidentemente, isso significa
uma valorização dos direitos reais de garantia.
Todavia, preferência creditícia não se confunde com o direito real de garantia. O direito real de ga-
rantia é sobre uma coisa específica. Já o privilégio creditício é sobre o patrimônio inteiro.

6.4.1.5. Requisitos para a constituição dos direitos reais de garantia


São requisitos para a constituição dos direitos reais de garantia:
i) requisitos subjetivos: capacidade do devedor e a outorga do cônjuge (art. 1.420 do CC):

597
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os
bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca. (...)

Inicialmente consigna-se que somente quem é proprietário pode dar o bem em garantia, sob pena
de ineficácia (alienação a non domino). Se a propriedade for superveniente, o ato será eficaz (pós-
eficacização).
Ademais, somente podem prestar garantia real as pessoas capazes. Se casadas, precisam da outorga
do cônjuge (exceto se o casamento for no regime de separação ou, se no regime da participação final nos
aquestos, o pacto dispensar o requisito), sob pena de anulabilidade (Art. 1.647, I e 1.649, CC).
Se o devedor for incapaz, a constituição do direito real de garantia dependerá de autorização judi-
cial, ouvido o MP. Esse é um caso típico de legitimação (requisito específico para a prática de ato especí-
fico).
ii) requisito objetivo: podem ser dadas em garantia as coisas que podem ser alienadas (vendidas,
penhoradas etc 441)
O bem deve ser alienável ou consumível juridicamente, sob pena de nulidade (art. 166, II ou VI,
CC).São, portanto, exemplos de bens insuscetíveis de servirem como garantia real: bens gravados com
cláusula restritiva (art. 1.911 do CC: a cláusula de inalienabilidade presume as de incomunicabilidade e de
impenhorabilidade442) e bens públicos.
Bem de família pode ser dado em garantia? Depende do tipo. Lembre-se que há dois tipos de bem
de família, o legal e o convencional. A diferença entre um e outro é que o legal gera apenas impenhorabi-
lidade, enquanto que o convencional gera impenhorabilidade e inalienabilidade. Portanto, o convencio-
nal não pode ser dado em garantia, mas o legal sim (pois gera apenas impenhorabilidade). Até porque, se
assim não fosse, haveria um venire contra factum proprio: o titular, espontaneamente dá em garantia o
bem de família legal, para depois alegar a sua impenhorabilidade.
iii) requisito formal: o registro ou a tradição.
Além do registro ou tradição, sob pena de ineficácia, o CC exige outra formalidade, chamada
“especialização da garantia real” (art. 1.424): trata-se da indicação do vencimento, do valor da dívida, do
prazo e dos juros.

Art. 1.424. Os contratos de penhor, anticrese ou hipoteca declararão, sob pena de não terem efi-
cácia:

I - o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo;

441 Os antigos diziam que as coisas que podem ser alienadas eram as “coisas do comércio”.
442 Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabi-
lidade e incomunicabilidade.

598
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

II - o prazo fixado para pagamento;

III - a taxa dos juros, se houver;

IV - o bem dado em garantia com as suas especificações.

6.4.1.6. Efeitos dos direitos reais de garantia


Constituído um direito real de garantia, ele traz consigo cinco efeitos:
i. Preferência:
As dívidas garantidas por garantias reais têm preferência em relação aos créditos comuns ou quiro-
grafários, a teor do art. 1.422, CC:

CC, art. 1.422. “O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada
ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a
prioridade no registro. Parágrafo único. Excetuam-se da regra estabelecida neste artigo as dívi-
das que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros crédi-
tos.”.

Ex.: o crédito com garantia real tem preferência em relação ao crédito quirografário, mas
fica atrás de créditos trabalhistas (art. 83 da Lei 11.101/2005) e do crédito com dívidas condo-
miniais, conforme a Súmula 478 do STJ:

Súmula 478 do STJ: “Na execução de crédito relativo a cotas condominiais, este tem preferência
sobre o hipotecário.”

ii. Indivisibilidade:
Segunto Flávio Tartuce pela indivisibilidade, o pagamento de uma ou mais prestações da dívida
não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo dis-
posição expressa no título ou na quitação (art. 1.421 do CC).
Sendo assim, mesmo sendo paga parcialmente a dívida, o direito real permanece incólume, em re-
gra, salvo previsão em contrário na sua instituição ou quando do pagamento. Ex.: o sujeito dá em hipote-
ca, para garantir uma dívida de 100, um imóvel que vale 150. Já pagou metade da divida, devendo, por-
tanto apenas 50. O devedor não pode pedir para liberar dois terços do imóvel. Enquanto não quitada
integralmente a obrigação, mantém-se a garantia real.
A remissão parcial (perdão) e a remição parcial (pagamento) não liberam proporcionalmente a ga-
rantia real.
iii. Sequela:
Se a dívida não for paga, o credor pode buscar a garantia, onde e com quem quer que se encontre,
para ser executada (só não pode ficar com ela para si), assim, se um bem garantido é vendido, o direito
real de garantia permanece, servindo.

599
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Conforme exemplifica Flávio Tartuce, a sequela é representada pela seguinte máxima: para onde o
bem vai, o direito real de garantia o acompanha;
iv. Excussão:
Flávio Tartuce leciona que o credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa
hipotecada ou empenhada (art. 1.422 do CC). Desse modo, pode o referido credor ingressar com a ação
de execução pignoratícia ou hipotecária para promover a alienação judicial da coisa garantida, visando a
receber o seu crédito que tem garantia.
Observa-se que o credor anticrético não tem esse direito, uma vez que a garantia são os frutos deo
bem, não o bem em si, de modo que o credor pode apenas rete-lo (art. 1.423, CC) [Prazo máximo da anti-
crese: 15 anos - perempção da anticrese].
Em complemento à excussão, o art. 1.428, CC443, prevê a nulidade absoluta do Pacto Comissário
Real, o qual é a previsão no instrumento que autoriza o credor a ficar automaticamente com o bem, sem
levá-lo à execução.
O Pacto Comissório Real é nulo ante à sua imoralidade, por violação de norma de ordem pública,
além de colocar o devedor em patente situação de vulnerabilidade, assim, aplica-se ao penhor, à hipoteca
e à anticrese.
Flávio Tartuce alerta para que não se confunda o Pacto Comissório Real (art. 1.428, CC) com o Pac-
to Comissório Contratual, cláusula resolutiva expressa (art. 474 do CC) que prevê a extinção automática
do contrato em caso de inadimplemento bilateral, conforme tem sido decidido no STJ444.
Obs.: O pacto marciano: originado em Roma pelo jurisconsulto Marciano e desenvolvido no Brasil
por Moreira Alves. Neste pacto, o bem entregue em garantia é transferido ao credor, que dele se apropria
e restitui o excesso relativo ao valor da dívida. Na opinião de Moreira Alves, o pacto não é ilegal, por não
causar prejuízo ao devedor. Segundo a doutrina (Enunciado 626 JDC) o pacto marciano é admitido nas
relações civis paritárias (relações em que as partes estão em “pé de igualdade” não havendo consumido-
res ou contratos de adesão, p.ex.)445.
v. Sub-rogação no crédito:
A sub-rogação no crédito é mais um efeito da constituição de garantia real acrescentado pelo
CC/2002. Os direitos reais de garantia possuirão efeito sub-rogatório de crédito quando o bem perecer
com seguro. Imagine um penhor sobre um automóvel, que resta furtado ou tem perda total. Quem rece-
berá o prêmio, nesses casos, será o credor, não o devedor.

443 CC, art. 1.428. “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com

o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.


444 (REsp: 784.273/GO, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Data de Julgamento:

12/12/2006, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 26/02/2007 p. 586)”


445 Enunciado 626, VIII JDC: “ Não afronta o art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, o pacto mar-

ciano, cláusula contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante afe-
rição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede o da dívida).”

600
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: O art. 1.430, CC, prevê a responsabilidade pessoal do devedor, de forma subsidiária, se a ga-
rantia real for insuficiente para satisfazer a dívida. A garantia real é convertida em garantia pessoal - O
credor hipotecário ou pignoratício passa a ser credor quirografário ou comum.

6.4.2. Penhor (Arts. 1.431 a 1.472,CC)

6.4.2.1. Noções gerais e conceito

Penhor vem da expressão latina pugnus (que significa “punho”). A essência do penhor, portanto, é
a tradição (diferentemente da hipoteca).
Penhor é direito real de garantia sobre bens móveis (com exceção de dois, aeronave e navio, que se-
rão hipotecados, por seu valor), em que ocorre, em regra, a transferência da posse do bem do devedor ao
credor, ou seja, o penhor exige a tradição, a teor do Art. 1.431, CC:

Art. 1.431,CC. “Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do dé-
bito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel,
suscetível de alienação.

Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas con-
tinuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.”

Perceba que o penhor se diferencia da hipoteca por duas razões: o objeto dele é bem móvel e deve
haver a tradição. A hipoteca incide sobre bens imóveis e dispensa a tradição. Ex.: penhor feito na Caixa
Econômica Federal.
Assim como a hipoteca, o penhor tem natureza acessória. Paga a dívida, extingue-se a garantia. Ex-
tinta a garantia, o credor pignoratício tem de restituir a coisa.
Flávio Tartuce assevera que penhor não se confunde ainda com penhora. O penhor é direito real de
garantia sobre coisa alheia (instituto de Direito Civil). Penhora é uma constrição judicial feita para garan-
tir uma execução ou processo (instituto de Direito Processual Civil).
Se a coisa for roubada ou furtada (ex.: furto de um relógio empenhado, que estava na agência da
CEF), o que ocorre com ela e com o crédito? O STJ se manifestou sobre o tema, no REsp 730.925/RJ.
Havendo roubo ou furto, a dívida permanece, mas o credor pignoratício deverá indenizar o devedor, no
valor da coisa. Como a dívida continua, o credor pignoratício terá o direito de exigir nova garantia, sob
pena de vencimento antecipado da dívida.
O penhor gera um desdobramento de posse. Com a tradição, o credor pignoratício passa a ter a
posse direta e o devedor pignoratício a indireta. Por ambos serem possuidores, ambos podem defender a
coisa. Mas, como o devedor não tem a posse direta, dificilmente terá conhecimento do que ocorrer com
ela. No entanto, como decorrência da boa-fé objetiva e do dever jurídico de informação, se ocorrer amea-

601
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ça, turbação ou esbulho, é dever anexo do credor pignoratício de dar conhecimento ao devedor, permi-
tindo a ele a adoção da providência cabível à defesa da coisa.
São partes do penhor:
i. Devedor pignoratício: dá a coisa em garantia, tendo a dívida em seu desfavor (pode ser o
próprio devedor ou terceiro);
ii. Credor pignoratício: detém o crédito e a garantia real sobre a coisa alheia (bem empenha-
do).

6.4.2.2. Características do penhor


São características do penhor:
i) exigência de solenidade na sua constituição:
O penhor deve ser constituído na forma solene, por escrito (instrumento público ou particular),
não se admitindo o penhor verbal, sob pena de nulidade.
ii) exigência de registro no cartório de títulos e documentos para ter oponibilidade a terceiros:
Perceba que se o penhor não for registrado, ele somente terá eficácia intra partes.
iii) admite-se o sub-penhor, salvo disposição contratual em contrário:
Salvo se as partes dispuserem em sentido diverso, é possível o sub-penhor. Até porque, como visto
quando do estudo da hipoteca, o primeiro credor pignoratício não será afetado pelo subsequente.
iv) admite direito de retenção pelo credor:
Esta situação é peculiar do penhor. O credor pode reter o bem para se ressarcir de eventuais despe-
sas que teve com ele. Porém, se porventura vier a colher frutos com bem, deve haver compensação do
valor correspondente. Os frutos, de algum modo, geram vantagens, que devem gerar compensação.
v) impossibilidade de cláusula comissória:
O credor pignoratício nunca pode ficar com o bem para si, devendo levá-lo à excussão.
vi) direito de exigir substituição ou caução, na hipótese de perecimento ou deterioração da coisa:
Se o bem dado em garantia perece ou se deteriora, o credor pode exigir caução ou substituição, sob
pena de vencimento antecipado da dívida.

6.4.2.3. Modalidades de penhor


O Código Civil admite três categorias de penhor: convencional, especial e legal, as quais serão estu-
dadas a seguir.

6.4.2.3.1. Penhor convencional

Será convencional o penhor quando decorrer de ato de vontade da parte. Em outras palavras,
quando o devedor der o bem voluntariamente em garantia. As características vistas no tópico “4.4.4.2”
acima são as do penhor convencional. Sua essência é exatamente a tradição (a efetiva e voluntária entre-
ga da coisa).

602
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.4.2.3.2. Penhor especial

O penhor especial é assim considerado porque sai da regra geral (deixa de ser comum), ou seja,
nessa modalidade existe a quebra das duas regras gerais, de modo que podem estar relacionados a bens
imóveis ou móveis sem ocorrer a transmissão da posse.
No estudo dos penhores especiais, deve-se partir da premissa de que eles, por algum motivo, modi-
ficam a tradição, em alguns aspectos, pois determinados devedores não podem entregar o bem ao credor,
sob pena de comprometimento do próprio pagamento da dívida.
Ex.: o agricultor ou pecuarista que empenhar o gado não poderá pagar a dívida. Perdido o gado, ele
não tem como circular riqueza, gerar dinheiro.
Em alguns penhores, portanto, a tradição pode servir como empecilho ao pagamento da dívida. Por
isso o tratamento diferenciado a alguns deles (essa é a justificativa ideológica para a diferenciação): não
tirar do devedor a possibilidade de pagar a dívida, que é justamente o objetivo dos direitos reais de ga-
rantia.
Há quatro espécies de penhor especial:
i. Penhor rural (agrícola ou pecuário):
O penhor rural abrange tanto o penhor agrícola quanto o pecuário. Seu objeto são os bens móveis e
os seus acessórios ou pertenças, típicos da atividade pecuária ou agrícola. Ex.: animais e safra. Relativa-
mente a esta, deve-se atentar para o fato de que o penhor sobre a safra abrange a safra seguinte.
A fórmula do art. 1.438 do CC pode induzir o intérprete em erro, por fazer imaginar que o penhor
rural dispensaria a tradição:

Art. 1.438. Constitui-se o penhor rural mediante instrumento público ou particular, registrado
no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empe-
nhadas.

Parágrafo único. Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor rural, o de-
vedor poderá emitir, em favor do credor, cédula rural pignoratícia, na forma determinada em lei
especial.

Isso é uma pegadinha. O penhor rural não dispensa a tradição, apenas modifica sua natureza. Com
efeito, deixa de haver a tradição real (entrega efetiva) da coisa e passa a haver tradição ficta (chamada de
constituto possessorio). Trata-se da aquisição de posse por meio de contrato, também chamada de clau-
sula constituti.
Isso significa que o credor pignoratício rural, se precisar, pode se valer da ação possessória, pois ele
tem posse (adquirida, vale ressaltar, por meio do constituto possessorio). Se tem posse, houve a tradição
(só não houve a tradição real, mas ficta).
O penhor rural exige registro no Cartório de Imóveis (estranho, mas é aí mesmo), para que tenha
oponibilidade erga omnes. Sem registro, há eficácia entre as partes.

603
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como tem a posse indireta, o credor não tem a coisa consigo. Quem detém fisicamente o bem é o
próprio devedor. Por não ter posse direta, o CC concede ao credor o direito de vistoria (uma espécie de
direito de inspeção, fiscalização). Evidente que tal direito não pode ser exercido abusivamente, caso con-
trário, haverá ato ilícito objetivo, que pode ser praticado independentemente de culpa.
O art. 1.439, CC446, estipula que eles não podem ser convencionados por prazos superiores às obri-
gações principais, conforme alterações realizadas pela Lei 12.873/2013.
ii. Penhor industrial ou mercantil (art. 1.448 do CC):

Art. 1.448. Constitui-se o penhor industrial, ou o mercantil, mediante instrumento público ou


particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição onde estiverem situa-
das as coisas empenhadas.

Parágrafo único. Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor industrial ou
mercantil, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula do respectivo crédito, na forma e
para os fins que a lei especial determinar.

O penhor industrial ou mercantil incide sobre máquinas, equipamentos, produtos ou matérias-


primas da indústria ou do comércio. Ex.: o estoque do empresário, as máquinas de uma indústria.
Como se percebe, mais uma vez, o seu objeto são bens imóveis por acessão intelectual, ou seja,
bens móveis incorporados a imóveis. Além disso, os bens permanecem com o devedor, não havendo a
transmissão da sua posse ao credor.
Assim como o penhor rural, o industrial exige registro no Cartório de Imóveis (de ordinário, o pe-
nhor é registrado no cartório de títulos e documentos). Todo aquele raciocínio feito acerca do penhor
rural vale para o industrial. Dispensa-se também, pelos mesmos motivos, a tradição real. Haverá tradição
ficta, pelo constituto possessorio, e o credor terá direito de inspeção, na medida em que ele não tem a
coisa consigo.
Tanto aqui quanto no penhor rural, é evidente que o devedor perde o direito de alienar a coisa. Ca-
so contrário, estaria frustrando a garantia. Em ambas as espécies de penhor especial, caso haja alienação,
ocorrerá o vencimento antecipado de dívida.
iii. Penhor de direitos (ou sobre título de crédito):
O penhor de direitos é uma curiosa figura em que uma relação jurídica pode ter por objeto um di-
reito, ao invés de uma coisa. Trata-se de um direito sobre um direito, não de um direito sobre uma coisa
em si.
Ele nada mais é que caução de título de crédito. Isso porque o credor de um título de crédito pode
dá-lo em garantia a um terceiro (o credor pignoratício), ou seja, pode fazê-lo circular. Ex: “A” é credor de

446 CC, art. 1.439, caput: “O penhor agrícola e o penhor pecuário não podem ser convencionados por prazos

superiores aos das obrigações garantidas. (Redação dada pela Lei nº 12.873, de 2013)”

604
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

“B” e “B” é credor de “C”. A dívida que “C” tem com “B” está materializada num título de crédito qual-
quer. “B” dá em garantia a “A” a cártula.
O credor pignoratício (“A”) deverá notificar o devedor do seu devedor (“C”), que foi quem emitiu o
título, precavendo seus direitos. Isso para que o devedor do devedor (“C”), no vencimento da dívida, ao
invés de pagar a um (“B”), pague ao outro (“A”).
Uma vez notificado, o devedor do devedor não pode alegar boa-fé. Se pagar mal, pagará duas vezes.
O melhor caminho para ele, no caso de dúvida, passa a ser a consignação em pagamento.
O registro do penhor de direitos deve ser realizado no cartório de títulos e documentos (é um título
de crédito).
Admite-se pluralidade de credores, ou seja, abre-se a possibilidade de concurso de credores.
iv. Penhor de veículos:
Exemplo de penhor de veículos ocorre no caso do taxista que toma empréstimo no banco e empe-
nha o veículo.
Trata-se de novidade no CC/2002. O penhor de veículos exige registro no órgão de trânsito, sob
pena de ineficácia em relação a terceiros (REsp 200.663/SP). Além de registro, exige seguro do automó-
vel, exatamente para que com isso se garantam os interesses do credor. Em caso de sinistro, como há
houve o registro, ocorrerá subrogação de direitos (quem recebe a eventual indenização da seguradora é o
credor, que não é o proprietário).
O prazo máximo do penhor de veículos é de dois anos, prorrogável por igual período.
O art. 1.431, parágrafo único, do CC diz que os penhores especiais geram depósito:

Art. 1.431 (...) Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas
empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.

Esses devedores pignoratícios seriam, portanto, uma espécie de depositários. O objetivo da norma
era vinculá-los à possibilidade de prisão civil. Ocorre que a Súmula Vinculante 25 do STF proibiu a prisão
civil do depositário, de modo que a discussão se esvaziou.

6.4.2.3.3. Penhor legal

Como visto será estudado abaixo, a hipoteca legal é a constituição de uma garantia em favor de de-
terminados credores. Com o mesmo fundamento, o CC também dedica penhor legal em favor de deter-
minados credores: independentemente da vontade do devedor, eles merecem a garantia legal, por conta
de peculiaridade da natureza do crédito.
São credores pignoratícios legais:
i. O dono do prédio, sobre bens móveis do locatário ou rendeiro (art. 1.467, II, do CC):

Art. 1.467. São credores pignoratícios, independentemente de convenção: (...)

II - o dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver
guarnecendo o mesmo prédio, pelos aluguéis ou rendas.

605
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O locador possui penhor legal sobre os bens móveis do locatário. O dispositivo abrange também
aquele que entregou o imóvel nas rendas.
Segundo Flávio Tartuce o penhor legal a favor do locador representa lesão à Lei 8.009/1990, que
considera como impenhoráveis os bens móveis essenciais que guarnecem a residência da família.
ii. Dos hospedeiros ou fornecedores de pousada ou alimentos, em relação às bagagens, móveis,
joias ou dinheiro dos seus consumidores ou fregueses o hospedeiro, sobre os bens móveis
do hóspede (art. 1.467, I, do CC)

Art. 1.467. São credores pignoratícios, independentemente de convenção:

I - os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens, móveis, jóias ou


dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo nas respectivas casas ou esta-
belecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem feito; (...)

Esta hipótese abrange não só o dono do hotel, como o da pousada, do motel, do albergue etc.
O sistema jurídico é um sistema que busca o equilíbrio (noção aristotélica de justiça de equidade).
O direito conferido pelo art. 1.467 do CC é a contrapartida (a compensação) do dever que esses credores
possuem de responder por danos causados por seus hóspedes a outros hóspedes e a terceiros (ex.: o hos-
pedeiro responde se o hóspede bate no carro de outro ou se o rapaz que arruma a TV a cabo bate no carro
de terceiro), previsto no art. 932, IV, do CC:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: (...)

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro,


mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

Por conta dessa responsabilidade, surge a dúvida: o hospedeiro pode escolher seus hóspedes? Não,
pois se trata de relação de consumo e haveria discriminação de um ou outro.
O CDC, todavia, admite segmentação de categorias de hóspedes. Ex.: hotéis exclusivos para idosos;
hotéis que não admitem nenhuma criança (não só determinada criança, mas nenhuma criança).
Novamente, Flávio Tartuce entende que essa modalidade de penhor legal parece violar o Código de
Defesa do Consumidor, por exigir do hóspede uma vantagem excessivamente onerosa, inclusive de lesão
aos seus bens íntimos, constituindo uma cobrança vexatória, nos termos do art. 42 da Lei 8.078/1990.
iii. Artistas e auxiliares cênicos sobre o material da peça teatral (Lei 6.533/1978);
iv. o locador industrial, sobre máquinas e aparelhos da indústria (DL 4.191/1942);
O penhor legal, como se percebe, é um caso especial de autotutela. Ele se aperfeiçoa em dois mo-
mentos:
i) tomada de posse (apreensão da coisa) pelo credor;
ii) homologação judicial: o CPC, em seus arts. 703 e seguintes, estabelece um procedimento especi-
al para a homologação do penhor legal:

606
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Primeiro o credor toma posse, depois ajuíza a ação. Não há prazo para o ajuizamento da homologa-
ção. O CPC determina que seja feita incontinenti. Sem a homologação, não se aperfeiçoa a garantia.
O penhor legal é uma ideia muito boa e bem intencionada. Mas não adianta boa intenção sem con-
cretização. O hospedeiro não pode entrar no quarto do hospede para pegar suas bagagens, na medida em
que a privacidade do quarto está constitucionalmente assegurada. Por outro lado, ele também não pode
tomar a bagagem do hóspede à força, na medida em que incidiria em cobrança vexatória, proibida pelo
CDC. As mesmas dificuldades ocorrem quanto ao locador, que não pode invadir a casa do locatário.
Assim, sob o ponto de vista prático, o penhor legal é de difícil efetivação.

6.4.3. Hipoteca (Art. 1.473 a 1.501, CC)

6.4.3.1. Conceito e generalidades

A hipoteca é um direito real na coisa alheia constituído, em regra, sobre bens imóveis, não havendo
a transmissão da posse entre as partes Trata-se de um instituto relativamente recente.
A hipoteca é um direito real de garantia sobre bem imóvel cuja principal característica é a
dispensa da tradição. Tal dispensa se deve ao fato de que, como se trata de um direito real sobre
imóvel, a garantia pode ser conferida ao credor através do registro no cartório de imóveis.
Na escada Pontiana (existência, validade e eficácia), o registro em cartório é condição de eficácia
perante terceiros. Perceba, a hipoteca não registrada em cartório é existente, válida e eficaz entre as par-
tes. Apenas não será oponível em relação a terceiros. Todavia, sem tal oponibilidade, a hipoteca perde
grande parte de sua utilidade prática (a sua essência), que é a garantia dos interesses do credor.
Se a hipoteca está registrada em cartório, os interesses do credor estão precavidos. Por isso a dis-
pensa da tradição. Nessa linha de pensamento, o registro em cartório é suficiente para deixar resguarda-
dos os interesses do credor.
Ademais, deve-se obedecer ao princípio da anterioridade para se determinar a ordem de preferên-
cia na execução (art. 1.493 do CC). Não é possível registrar, no mesmo dia, duas hipotecas ou uma hipo-
teca e outro direito real, salvo se as escrituras registrarem a hora de registro (art. 1.494 do CC).
A hipoteca é também indivisível. Isso significa que somente a quitação da obrigação gera a extinção
da hipoteca. Sem a quitação, a hipoteca se mantém. Como visto acima, a remissão e a remição447 (respec-
tivamente, o perdão e o pagamento) parcialmente feitas não implicam na extinção da hipoteca. Ex.: uma
hipoteca garante uma dívida de 100 e incide sobre um imóvel de 200. Supondo que o devedor já tenha
pagado 50, não poderá haver a liberação de 50% da garantia. Somente haverá a liberação do bem hipote-
cado com a quitação da dívida.

447 Remissão = perdão da dívida. Remissão = perdão da dívida. Remição da hipoteca é a liberação ou resgate
do imóvel hipotecado mediante o pagamento, ao credor, da dívida que visa a garantir.

607
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A remissão ou a remição parcial não permitem a divisibilidade da hipoteca justamente porque ela é
indivisível. Na verdade, a mensagem inicial deste tópico é a ideia fundamental de que a hipoteca não afe-
ta nem o exercício da propriedade, nem o exercício da posse do devedor hipotecário. Dispensando a tra-
dição, a hipoteca parte da premissa de que o devedor hipotecário não perde nem a propriedade, nem a
posse. Ele exerce regularmente os seus direitos de posse e de propriedade.
Pois bem, falando do exercício do direito de posse e propriedade sobre a coisa, cumpre propor uma
reflexão. Os poderes do domínio, que juntos formam o direito de propriedade (art. 1.228 do Código Ci-
vil), são o uso, o gozo ou fruição, a livre disposição e a reivindicação. Como visto, a hipoteca não afeta o
exercício do direito de propriedade e de posse (uso, gozo e fruição) pelo devedor hipotecário, que conti-
nua exercendo tais direitos. Mas há um poder que chama a atenção: a livre disposição. Se o devedor hipo-
tecário exerce os direitos de propriedade, há de se pensar se ele pode exercer o direito de livre dispor
(possibilidade de prática de atos de alienação). Ou seja, pode o devedor hipotecário alienar o bem (ven-
der, doar ou constituir uma nova garantia sobre o bem já hipotecado – exemplos desta última hipótese
seriam a anticrese ou nova hipoteca)? Ele perde a livre disposição do bem ou, como não perdeu os pode-
res inerentes à propriedade, continuaria tendo-a?
O CC responde esta pergunta, no art. 1.475: é nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar o
imóvel:

Art. 1.475. É nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado.

Parágrafo único. Pode convencionar-se que vencerá o crédito hipotecário, se o imóvel for aliena-
do.

Portanto, com a hipoteca, o devedor não perde a livre disposição do bem. Ele pode vender, doar e
constituir nova garantia (constituindo, por exemplo uma anticrese), pois ele não perde os direitos ineren-
tes à propriedade.
O que ocorre, entretanto, com o credor hipotecário? Ele não será afetado em nada, por um motivo
simples: a hipoteca é direito real e, como tal, tem oponibilidade erga omnes, gerada pelo registro. Sendo
assim, o credor hipotecário não será prejudicado porque continua tendo direito sobre a coisa (direito de
sequela, direito de preferência), pouco importando para ele se o bem estará com o credor ou com o ter-
ceiro.
O problema não é o devedor hipotecário, mas o terceiro (“não é quem vai vender, mas quem vai
querer comprar”). Porque adquirirá um imóvel gravado com ônus real (sabendo dessa condição do bem).
E esse ônus real (essa gravação) tem oponibilidade erga omnes. Exemplificando: se o sujeito dá seu imó-
vel em garantia ao banco (hipoteca), e vem depois a aliená-lo a um terceiro, o terceiro que o adquire terá
de garantir a hipoteca.
Aqui, abre-se espaço à aplicação de um importante instituto de direito obrigacional, cuja utilidade
acaba não sendo muito reconhecida no dia a dia: o da remição (pagamento). O adquirente pode quitar a

608
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dívida. Esse pagamento é pagamento feito por terceiro interessado (art. 304 do CC), motivo pelo qual
gera sub-rogação:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opu-
ser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do
devedor, salvo oposição deste.

Ora, se o adquirente é um terceiro interessado (seus interesses jurídicos podem ser comprometidos
pelo inadimplemento), ele pode pagar e se sub-rogar no crédito, e o credor não pode se opor à alienação.
Isso é muito comum, na prática.
Por idênticas razões (mantendo-se o mesmo raciocínio), é de se concluir que a hipoteca não obsta o
real e integral aproveitamento do bem pelo devedor hipotecário (art. 1.488 do Código Civil):

Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir
condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o
requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada
um deles e o crédito. (...)

O devedor pode constituir condomínio, desmembrar, fragmentar, lotear etc. Mais uma vez: o deve-
dor hipotecário não perde os poderes do domínio, que se mantêm integralmente com ele. O que o credor
terá é a possibilidade de reivindicação do crédito.
Como ressaltado, o credor não tem o direito de ficar com a coisa, mas de excuti-la (excussão é um
instituto de direito material, enquanto que execução é um instituto de direito processual). Excutir é levar
a coisa à execução. O motivo para essa regra é a proibição de pacto comissório. O devedor hipotecário
não perde a possibilidade de ajuizar ação reivindicatória contra o credor.
Tudo isso deixa claro que a hipoteca é uma garantia real sui generis. Quando se dá algo em garan-
tia, o senso geral é de que se deve entregar a coisa, o que não ocorre com a hipoteca, em que o bem per-
manece integralmente com o devedor. Está aqui a grande utilidade prática do instituto.

6.4.3.2. Objeto da hipoteca

6.4.3.2.1. Bens que podem ser objeto de hipoteca

O art. 1.473 do CC prevê os bens que podem ser objeto de hipoteca:

Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:

I - os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles;

II - o domínio direto;

III - o domínio útil;

IV - as estradas de ferro;

609
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

V - os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham;

VI - os navios;

VII - as aeronaves.

VIII - o direito de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

IX - o direito real de uso; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

X - a propriedade superficiária. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

Genericamente falando, o objeto da hipoteca é todo e qualquer bem imóvel, no todo ou em parte (a
hipoteca pode incidir sobre todo o imóvel ou parte dele), direitos reais na coisa alheia sobre bens imóveis
(enfiteuse, superfície, uso, uso especial etc.) e navios e aeronaves.
Navios e aeronaves não são bens imóveis. O art. 80 do CC diz quais são os bens imóveis por força
de lei, dentre os quais não estão navios e aeronaves:

Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

II - o direito à sucessão aberta.

A natureza jurídica deles é, portanto, de bem móvel, por essência e por natureza. São considerados
bens imóveis exclusivamente para fins de hipoteca. Navio e aeronave podem ser objetos de hipoteca por
seu valor econômico. Haverá lei especial disciplinando a hipoteca.
O domínio direto decorre do desmembramento dos poderes. Veja que não só quem tem o registro
pode dar o bem em hipoteca.
Ademais, Imóvel hipotecado pode ser vendido, sendo nula a cláusula de inalienabilidade do bem
hipotecado (art. 1.475, CC) – função social da hipoteca.
É possível dar em garantia também os recursos naturais sobre o solo.
Propriedade superficiária é o direito de superfície. Superficiário não tem título, mas pode dar o
bem em garantia. O proprietário, nessa hipótese, tem o título, mas não a superfície. Mesmo assim pode
dar em hipoteca. Veja que a hipoteca tem um amplo espectro de objetos (são muitos os bens que podem
ser objeto de hipoteca).
Não se deve esquecer do princípio da gravitação. Dado um bem principal em hipoteca, o acessório
fica também abrangido (frutos, acessões, construções, benfeitorias). A hipoteca, portanto, abrange a coi-
sa e os seus acessórios.
Essa regra aplica-se também às pertenças? Pertenças, como visto, são bens que possuem uma fun-
ção própria e que se acoplam a outro, onde mantém a sua função, como o ar condicionado na casa e o
trator na fazenda. Pode-se tranquilamente dizer que a teoria da gravitação não se aplica às pertenças.
Elas têm função própria, não se podendo dizer que elas são acessórias. Assim, vendida a fazenda, presu-

610
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

me-se que o trator não vai junto, salvo disposição contrária (autonomia da vontade). Assim, a hipoteca
não alcança as pertenças, por não serem elas consideradas acessórias.
Finalmente, segundo Flávio Tartuce em que pese a laje não esteja listada nas hipóteses, há discus-
são sobre sua natureza e sobre a possibilidade de hipotecá-la.

6.4.3.2.2. Bens que não podem ser objeto de hipoteca

Não podem ser objeto de hipoteca:


i) herança:
Cumpre lembrar que, ainda que composta somente de bens móveis, a herança é considerada bem
imóvel (art. 80).
ii) bens gravados com cláusula restritiva (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilida-
de):
Neste aspecto, deve-se lembrar do art. 1.911 do CC, segundo o qual a inalienabilidade faz presumir
as demais, mas a recíproca não é verdadeira (as outras não presumem a inalienabilidade).

6.4.3.2.3. Questões polêmicas (problematizando o objeto da hipoteca)

i) o bem condominial pode ser dado em hipoteca?


Depende de que tipo de condomínio se esteja falando. No condomínio comum, a fração ideal pode
ser dada em hipoteca, independentemente da anuência dos demais condôminos. Ela somente depende
da vontade do condômino titular da fração a ser hipotecada. Todavia, o bem condominial como um todo
somente pode ser dado em hipoteca com o consentimento de todos.
No condomínio edilício, as partes comuns não podem ser hipotecadas (piscina, rol etc.) As unida-
des autônomas, por sua vez, podem ser hipotecadas livremente.
ii) O bem pertencente ao incapaz pode ser dado em hipoteca?
O bem pertencente ao incapaz somente pode se dado em hipoteca com autorização judicial, ouvido
o MP. Trata-se de uma verdadeira condição de validade da hipoteca.
iii) bem de família pode ser dado em hipoteca?
O regime jurídico do bem de família, como visto, é dúplice: legal (Lei 8.009/1990) e convencional
(arts. 1.711 a 1.722 do CC). Ambos podem conviver, um não excluindo o outro. O convencional depende
de um ato, o registro, enquanto que o legal dispensa a prática de qualquer ato, pois decorre da lei. Outra
diferença diz respeito à eficácia. O regime legal gera apenas a impenhorabilidade. Já o convencional gera
impenhorabilidade e inalienabilidade. A eficácia de um não se confunde com a do outro. O bem de famí-
lia legal fica a salvo de dívidas. O convencional, além da impenhorabilidade, não pode ser vendido.
Assim, a resposta à questão depende: se o bem de família for convencional (gerando inalienabili-
dade) será impedida a circulação e, consequentemente, a garantia. Já o bem de família legal pode ser
dado em hipoteca, pois não perde a circulação (ele fica disponível ao seu titular). Aqui, o STJ vem im-
pondo uma restrição: exige, para que o bem de família legal possa ser hipotecado, que a dívida garantida

611
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

reverta em benefício do núcleo familiar. Esse entendimento restringe um pouco a possibilidade de hipo-
teca sobre bem de família.

6.4.3.3. Espécies de hipoteca


O CC/2002 trabalha com as seguintes espécies de hipoteca:
i) hipoteca convencional:
Hipoteca convencional é a que decorre da vontade das partes. Credor e devedor ajustam a garantia.
As características até agora estudadas (indivisibilidade etc.) são da convencional.
ii) hipoteca judicial:
É a que decorre de decisão judicial condenatória. Sendo condenatória a decisão, o juiz pode, em
qualquer processo, para assegurar o cumprimento da sentença, constituir a hipoteca sobre bem do con-
denado. A hipoteca judicial não dispensa o registro (com efeito, a sentença judicial transitada em julgado
pode ser registrada). É um mecanismo de garantia do cumprimento da sentença.
iii) hipoteca legal:
A ideia pode se mostrar estranha, mas a hipoteca legal independe da vontade das partes (credor e
devedor). Decorre da constituição de uma garantia em favor de determinados credores, pois o ordena-
mento jurídico entende que eles, naturalmente, precisam de garantia adicional.
A lei constitui a hipoteca em favor do credor especial, que especializa a hipoteca, sobre um bem do
patrimônio do devedor. O credor somente tem de provar a dívida e a idoneidade do bem.
Merecem essa proteção especial os entes previstos no art. 1.489 do CC:

Art. 1.489. A lei confere hipoteca:

I - às pessoas de direito público interno (art. 41) sobre os imóveis pertencentes aos encarregados
da cobrança, guarda ou administração dos respectivos fundos e rendas;

A lei confere hipoteca ao Poder Público sobre os imóveis pertencentes aos servidores do Fisco, pois
a potencialidade de prejuízo que eles podem causar o justifica.

II - aos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de fazer o
inventário do casal anterior;

O art. 1.489 também confere hipoteca aos filhos, sobre os imóveis dos pais viúvos, enquanto eles
não fizerem a partilha dos bens do cônjuge falecido. A ideia é evitar o prejuízo que os filhos possam so-
frer, pois o pai vivo poderia se casar de novo e confundir seu patrimônio.

III - ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinqüente, para satisfação do da-
no causado pelo delito e pagamento das despesas judiciais;

IV - ao co-herdeiro, para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre o imóvel adjudica-
do ao herdeiro reponente;

612
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No inciso IV do art. 1.489, deve-se imaginar uma herança a ser dividida em cinco pessoas. Um dos
herdeiros quer adjudicar o bem. A hipótese serve para evitar o calote de um dos coerdeiros sobre os ou-
tros.

V - ao credor sobre o imóvel arrematado, para garantia do pagamento do restante do preço da


arrematação.

iv) hipoteca cedular:


Além das três espécies vistas acima, o DL 70/1966 instituiu a hipoteca cedular. Trata-se da possibi-
lidade de toda e qualquer hipoteca ser expressa em um título de crédito. O fundamento é permitir a cir-
culação da garantia. Isso se mostrava particularmente importante para o credor hipotecário do bem ad-
quirido através do Sistema Financeiro da Habitação, pois essa hipoteca cedular admite endosso (poden-
do circular).
O CC/02, hoje, permite que qualquer hipoteca pode vir a ser cedular, não somente aquela do SFH.

6.4.3.4. Graus de hipoteca

A hipoteca admite diferentes graus. Admite-se a sub-hipoteca. Um único bem pode garantir dife-
rentes dívidas. E para todos os graus, a hipoteca será sempre indivisível.
Para constituir uma hipoteca de segundo ou terceiro graus, o credor hipotecário de grau anteceden-
te não precisa anuir com a nova hipoteca. A sub-hipoteca em nada afeta o credor de grau antecedente,
pois o de grau subsequente somente poderá executar a coisa depois do credor hipotecário de grau ante-
cedente.
Ocorre que a dívida do credor hipotecário de grau subsequente pode vencer antes da dívida do cre-
dor de primeiro grau. O CPC diz que se o credor de grau subsequente executar a coisa, deve ser citado o
credor hipotecário de grau antecedente. Isso porque, como também haverá vencimento antecipado da
dívida garantida com grau antecedente, esse credor antecedente executa e garante os seus direitos. Não
necessariamente será ruim que haja uma sub-hipoteca, a depender dos valores das dívidas e do bem.

6.4.3.5. Prazo de perempção da hipoteca


A hipoteca tem prazo de perempção de 30 anos (art. 1.485 do CC):

Art. 1.485. Mediante simples averbação, requerida por ambas as partes, poderá prorrogar-se a
hipoteca, até 30 (trinta) anos da data do contrato. Desde que perfaça esse prazo, só poderá sub-
sistir o contrato de hipoteca reconstituindo-se por novo título e novo registro; e, nesse caso, lhe
será mantida a precedência, que então lhe competir. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)

Trata-se de prazo da convencional (que pode ser menor, a depender da autonomia da vontade). A
dívida não desaparece. Ela continua. O que se extingue, na verdade, é a garantia. E o credor passa a ser
quirografário.

613
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce adverte que o art. 1.485, aparentemente colide com o determinado no. 1.498 do CC,
entretanto, a posição majoritária na doutrina diz que o art. 1.498, CC, aplica-se aos casos de hipoteca
legal, conforme art. 1.489, CC; enquanto o art. 1.485 do CC trataria da hipoteca convencional, em virtude
de acordo das partes.

6.4.1. Anticrese
A anticrese é o “primo pobre” dos direitos reais. O instituto não consegue servir para o objetivo a
que se destina. Vários ordenamentos sequer o mencionam mais.
Anticrese é direito real de garantia sobre bens frugíferos (que são aqueles que produzem frutos)
consistente em permitir que um credor receba a posse da coisa (veja a incoerência: é um direito de garan-
tia que entrega a posse), para que retire os frutos e abata da dívida.
Resumindo: a anticrese não consegue quitar a dívida, que somente será abatida. Tal abatimento se
dará primeiro nos juros, depois no principal.
Sob o ponto de vista prático, a anticrese nada mais é que a imputação no pagamento (primeiro dos
juros, depois do principal). Caio Mário, seguido por vários autores, entende que ela é desprezível e des-
necessária justamente por isso: o que se pretende com ela se alcança com a imputação no pagamento,
que é mais eficaz e dinâmica, já que não precisa de registro. Por isso é que nunca haverá anticrese.
Os nomes do credor e do devedor na anticrese são credor anticrético e devedor anticrético.
Em prova, o que pode ser exigido é o seguinte:
i) a anticrese, como é sempre parcial, não conseguindo nunca quitar a dívida, tem o prazo máximo
de 15 anos (podem as partes estabelecer um prazo menor, nunca maior). Findo o prazo, não sendo quita-
da a dívida, o credor torna-se quirografário;
ii) (PGE/SC) é possível, ao mesmo tempo, hipoteca e anticrese sobre o mesmo bem? Ex.: uma fa-
zenda, em hipoteca, para um credor, e o mesmo bem, em anticrese, para outro. Sim, na medida em que
os institutos perseguem finalidades distintas. Pela anticrese, o credor tira os frutos; pela hipoteca, ele
executa o bem na hipótese de inadimplemento. Um não obsta o outro.

6.4.2. Alienação fiduciária em garantia

6.4.2.1. Noções gerais

A alienação fiduciária é o mais antigo de todos os direitos reais de garantia (foi o primeiro). Origi-
nariamente, chamava-se fiducia cum creditore. Fidúcia é confiança. Assim também a alienação fiduciária
em garantia.
Nas palavras de André Santa Cruz, a alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental
em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a propriedade de um determinado bem, ficando esta
parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado quan-
do verificada a ocorrência de determinado fato.

614
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A alienação fiduciária é uma das espécies de gênero “negócio fiduciário”, o negócio jurídico basea-
do na confiança. Existem vários outros, como o fideicomisso (a previsão de substituição do beneficiário
de um testamento) que, nos termos do art. 1.952 do CC, somente é possível quando tal beneficiário é a
prole eventual (o filho que alguém vai ter):

Art. 1.952. A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao
tempo da morte do testador.

Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adqui-
rirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduci-
ário.

Aquele que deixa um testamento ao filho que alguém terá deixa o testamento a uma prole eventual
(veja, a pessoa não pode estar grávida, pois nesse caso não há prole eventual, mas nascituro). Há o prazo
de dois anos, contados da abertura da sucessão, para a concepção da prole eventual. A mulher pode ainda
não estar grávida, na ocasião do testamento. Fideicomisso é a previsão de substituição para prole eventu-
al. Veja que o substituto tem propriedade resolúvel. Nascido com vida o filho, resolve-se a propriedade.
Trata-se, assim, de negócio fiduciário.
A alienação fiduciária, como dito, não é o único, mas é também um negócio fiduciário. Ela tem co-
mo finalidade circular a riqueza e facilitar o acesso a bens e produtos de consumo. Com o CC, ela pode
ser celebrada não apenas por instituições financeiras e consórcios, mas também por pessoas físicas e ju-
rídicas que não sejam instituições financeiras ou consórcios. Ou seja, qualquer interessado pode celebrar
alienação fiduciária.
Os objetos da alienação fiduciária podem ser bens móveis ou imóveis, inclusive bens que já perten-
ciam ao devedor, conforme indicação da Súmula 28 do STJ:

Súmula 28 - O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já inte-
grava o patrimônio do devedor.

Na alienação fiduciária, o devedor quer adquirir um bem de consumo (um carro, uma lancha), mas
não tem como pagá-lo à vista. Para tomar um empréstimo, dará ao credor uma garantia: a propriedade
do bem.
Com efeito, na alienação fiduciária, concede-se em garantia a propriedade/titularidade da coisa. Is-
so significa que o devedor terá a posse direta e o credor a posse indireta e a propriedade fiduciária da
coisa. Por isso que se trata de um negócio fiduciário.
Trata-se de um exemplo de propriedade resolúvel, pois o credor somente terá a propriedade do
bem enquanto a dívida não for quitada. O adimplemento da dívida extingue a propriedade.

6.4.2.2. Características da alienação fiduciária


São características da alienação fiduciária:

615
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) admite cessão da posição contratual:


Tanto o credor quanto o devedor podem ceder suas posições. Se o credor quiser fazê-lo, não precisa
do consentimento do devedor. Mas a recíproca não é verdadeira: se o devedor fiduciante quiser ceder sua
posição, precisará do consentimento do credor fiduciário.
ii) admite o pagamento por um terceiro, interessado ou não:
A regra geral do CC (art. 304) é de que o pagamento feito pelo terceiro interessado gera sub-
rogação, enquanto que o feito pelo não interessado gera apenas direito de reembolso (sem sub-rogação):

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opu-
ser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do
devedor, salvo oposição deste.

Na alienação fiduciária em garantia, a regra é diferente: o pagamento feito por um terceiro gera
sempre sub-rogação, seja por interessado, seja por não interessado. O objetivo da regra é facilitar a circu-
lação do crédito. O banco “X” empresta dinheiro para aquele que está na iminência de perder o carro
para o banco “Y”. O banco “X” sub-roga-se no crédito, tornando-se credor.
iii) gera patrimônio de afetação:
A Lei do Pacote Imobiliário (Lei 10.931/2004) determina que o bem fiduciário gera patrimônio de
afetação. Isso significa que ele fica livre de penhoras, seja por dívidas do credor, seja por dívidas do deve-
dor.
O credor fiduciário é o proprietário resolúvel. O devedor fiduciante, logo após o pagamento, se tor-
nará proprietário pleno do bem. Nem o credor do credor, nem o credor do devedor pode penhorá-lo (o
bem se torna isento de penhoras). Ele não entra no concurso de credores, pois se busca garantir a circu-
lação do crédito. A ideia é fortalecer a alienação fiduciária. Não é possível a penhora do bem, mas pode-
se penhorar o crédito (as parcelas mensais que cabem ao credor).
iv) impossibilidade de prisão civil do depositário infiel:
A Súmula Vinculante nº 25, secundada pela Súmula 419 do STJ, impede a prisão civil do infiel de-
positário, com base no Pacto de San Jose da Costa Rica:

Súmula Vinculante 25 - É ILÍCITA A PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO INFIEL, QUALQUER


QUE SEJA A MODALIDADE DO DEPÓSITO.

Súmula 419 - Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel.

Com isso, há um importante efeito para a alienação fiduciária. O art. 4º do DL 911/1969 estabelecia
que a alienação fiduciária equipararia o devedor fiduciante ao depositário:

Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do deve-

616
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos,
em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de
Processo Civil. (Redação dada pela Lei nº 6.071, de 1974)

Veja, equiparado ao depositário o devedor continua, mas não pode mais ser preso. Ou seja, essa
previsão não gera mais efeito prático algum.
v) o devedor fiduciante tem direito à purgação da mora (emenda da mora, atualização da dívida),
independentemente do número de parcelas pagas, desde que quite integralmente o contrato. Está supe-
rada a Súmula 284 do STJ.
Além disso, o art. 3º, § 2º do DL 911/69 prevê que o bem somente poderá ser restituído ao devedor
se ele pagar, no prazo de 5 dias, a integralidade da dívida pendente.
Dessa forma, a lei foi muito clara ao exigir a quitação integral do débito como condição imprescin-
dível para que o bem alienado fiduciariamente seja remancipado. Ou seja, nos termos da lei, para que o
bem possa ser restituído ao devedor livre de ônus, é necessário que ele quite integralmente a dívida pen-
dente.
Dessa forma, não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduci-
ária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69448.
vi) possibilidade de propositura de ação de busca e apreensão, se o bem for móvel, ou de reintegra-
ção de posse, se o bem for imóvel, quando houver esbulho:
Veja que, na alienação fiduciária em garantia, o esbulho é contratual (é o inadimplemento contra-
tual que o caracterizará). O STJ vem entendendo (REsp 577.693/MG) que esta ação de busca e apreensão
dispensa o ajuizamento de ação principal, apesar de se tratar de uma medida cautelar.
Detalhe: não pode o credor ficar com o bem para si. Ele busca, apreende e leva à excussão.
vii) para a propositura da reintegração de posse, deve ser o devedor constituído em mora:
A mora do devedor fiduciente é ex re, a toda evidência, na medida em que ele tem data para pagar.
Apesar disso, a jurisprudência exige que ele seja previamente notificado, como condição de constituição
em mora (Súmula 72 do STJ):

Súmula 72 - A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fi-


duciariamente.

Mais uma vez: a mora não é ex persona, mas o devedor tem de ser notificado, até porque ele tem o
direito de purgar a mora.
A Súmula 245 do STJ dispensa a indicação do valor da dívida na notificação:

Súmula 245 - A notificação destinada a comprovar a mora nas dívidas garantidas por alienação

448 STJ. 2ª Seção. REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze,

julgado em 22/2/2017 (Info 599).

617
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

fiduciária dispensa a indicação do valor do débito.

Ora, a notificação não é para que o devedor possa emendar a mora? Como emendar a mora se ele
não sabe o valor da dívida? Chaves acha que a Súmula está em rota de colisão com o princípio da boa-fé
objetiva. É o DL 911/1969 que admite a possibilidade de purgação da mora, independentemente do valor
até então pago.

6.5. Direitos reais na coisa alheia de gozo ou fruição

6.5.1. Enfiteuse

6.5.1.1. Noções gerais

A enfiteuse é o mais amplo e ilimitado de todos os direitos reais na coisa alheia. Curiosamente, na
enfiteuse há transmissão da integralidade dos poderes do domínio (uso, gozo ou fruição, livre disposição
e reivindicação).
Como visto, direito real na coisa alheia é a transferência a um terceiro de parcela desses poderes.
Na enfiteuse, o terceiro recebe todos os poderes do domínio. Assim sendo, o terceiro (enfiteuta ou forei-
ro) terá uso, gozo, disposição e reivindicação.
O proprietário fica somente com o título. Por essa razão, ele é chamado de “senhorio” (porque é
somente o senhor da coisa). No final das contas, a enfiteuse não é boa para ninguém: um fica com o títu-
lo, sem o poder, e o outro com o poder, sem o título. Ao longo dos tempos, a enfiteuse foi se tornando um
direito real questionável, na medida em que, de algum modo, entrou em rota de colisão com a função
social da propriedade (o proprietário, esvaziado de poderes, acaba por não cumprir a sua função social).
Em razão dessas críticas, o CC/02 impediu a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, per-
manecendo as que já existiam, disciplinadas pelo CC/16. Veja que o CC/02 não extinguiu a enfiteuse,
apenas impediu a criação de novas. É um caso raro de ultratividade da norma civil (fenômeno mais co-
mum em normas penais). Assim, malgrado o CC/16 já tenha sido revogado, ele continua sendo aplicável
no que diz respeito às regras da enfiteuse. É o que determina o art. 2.038 do CC/02:

Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as exis-


tentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de
1916, e leis posteriores.

6.5.1.2. Contraprestação do foreiro e o comisso

Na enfiteuse, o foreiro recebe todos os poderes do domínio, mas, em contrapartida, se obriga a uma
contraprestação: o pagamento de uma pensão anual, certa e invariável, chamada “cânon”, “pensão” ou
“foro”. Veja que, a depender da data da enfiteuse, hoje essa contraprestação imposta ao enfiteuta corres-
ponde a centavos (é uma contrapartida muito pequena ao recebimento de todos os poderes do domínio).

618
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O Brasil adota, no art. 315 do CC, o princípio no nominalismo, de acordo com o qual toda e qual-
quer dívida em dinheiro deve ser paga em seu valor nominal (o qual, segundo o STJ, é aquele atualizado
de acordo com a correção monetária):

Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo va-
lor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.

Como a correção monetária está embutida no valor nominal, conclui-se que no foro incide sim cor-
reção monetária.
O CC/16 determina que o enfiteuta não pode ficar três anos consecutivos sem pagar a pensão, sob
pena de caracterização do “comisso”, que gera a extinção da enfiteuse. Entretanto, o STF editou a Súmula
122, dizendo que é possível evitar a caracterização do comisso, através da purgação da mora (emenda da
mora, pagamento), que pode ocorrer até a prolação da sentença:

Súmula 122 - O ENFITEUTA PODE PURGAR A MORA ENQUANTO NÃO DECRETADO O


COMISSO POR SENTENÇA.

6.5.1.3. Disciplina da enfiteuse fora do CC/16

A regra segundo a qual as enfiteuses submetem-se ao CC/16 possui duas exceções:


i) descoberta de tesouro (art. 1.266 do CC/02):

Art. 1.266. Achando-se em terreno aforado, o tesouro será dividido por igual entre o descobridor
e o enfiteuta, ou será deste por inteiro quando ele mesmo seja o descobridor.

Se o tesouro for descoberto num terreno enfitêutico (também chamado de terreno aforado), ele se-
rá dividido entre o descobridor e o enfiteuta. Nesse caso, a enfiteuse está regida pelo CC/02, derrogando
a disciplina do CC/16.
ii) a enfiteuse de terrenos de marinha e de terras públicas é regida pelo direito administrativo, não
se tratando de matéria de direito civil:
Tratam da matéria os seguintes diplomas legais: Lei 9.626/1998, DL 2.398/1987 e DL 9.760/1946.
Essas modalidades de enfiteuse têm duas particularidades: admitem reajuste da pensão anual e não po-
dem ser resgatadas pelo enfiteuta (pois os bens públicos são inalienáveis).

6.5.1.4. Características da enfiteuse


São características da enfiteuse:
i) impõe ao enfiteuta o pagamento dos tributos sobre o imóvel:
O enfiteuta recebe todos os poderes do domínio. É mais justo que pague quem tem os poderes, e
não quem tem apenas o título. Por isso, o STJ, no REsp 267.099/BA, firmou seu entendimento no senti-
do de que quem pagará os tributos e as taxas sobre o imóvel é o próprio enfiteuta, e não o senhorio, ape-
sar de ele continuar sendo o proprietário.
A Cristiano, parece justa a solução do STJ.

619
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) o objeto da enfiteuse são terras incultivas e terrenos para edificação:


Esta regra, vale ressaltar, não se aplica à enfiteuse de terras públicas, que pode ter outros objetos.
iii) admissibilidade de usucapião de enfiteuse de terras públicas:
Esse é o posicionamento do STJ, no REsp 154.123/PE. Veja que não é possível adquirir a proprie-
dade do poder público, mas é possível a prescrição aquisitiva do direito real na coisa alheia (do poder
público).
Na medida em que o sujeito adquire por usucapião a enfiteuse sobre terra pública, ele reforça a ca-
racterística de que a propriedade pública é insuscetível de usucapião, pois o que é usucapido é o direito
real na coisa alheia, e não a coisa pública em si.
iv) admissibilidade de exercício da enfiteuse por mais de uma pessoa:
O exercício da enfiteuse por mais de uma pessoa chama-se coenfiteuse. Trata-se de uma “espécie”
de condomínio. Os coenfiteutas têm prazo de seis meses para indicar um síndico, que atende pelo nome
de “cabecel”. Caso não haja tal eleição, o cabecel será indicado pelo senhorio.
v) perpetuidade:
A enfiteuse é perpétua. Perpetuidade não se confunde com vitaliciedade. Perpétuo é aquilo que se
mantém mesmo depois da morte do titular. Vitalício extingue-se com a morte do titular (os direitos da
personalidade são vitalícios). Não fosse perpétua, a enfiteuse seria uma relação meramente obrigacional.
Confira-se, a respeito, o art. 679 do CC/16:

Art. 679. O contrato de enfiteuse é perpétuo. A enfiteuse por tempo limitado considera-se ar-
rendamento, e com tal se rege.

Sendo perpétua a enfiteuse, ela se transmite aos herdeiros, por ato causa mortis. Trata-se de con-
sequência natural da perpetuidade.
Se aplicadas as regras sucessórias do CC, morto o enfiteuta sem deixar nenhum herdeiro, quem ar-
recadaria a enfiteuse seria o Poder Público municipal. A inalienabilidade dos bens públicos impediria que
o senhorio arrecadasse o bem de volta. Por conta disso, inteligentemente, o CC/16, em seu art. 692, III,
determina que, falecendo o enfiteuta sem deixar herdeiros, ela extingue-se:

Art. 692. A enfiteuse extingue-se: (...)

III - Falecendo o enfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores.

O fundamento dessa regra é impedir que o Poder Público adquira a enfiteuse, o que atentaria con-
tra o direito de propriedade.
vi) admite ato de alienação em vida:
Tanto o enfiteuta quanto o senhorio podem alienar os seus direitos. O problema é saber quem vai
querer comprar. O enfiteuta, alienando, vende os poderes do domínio, sem o título; o senhorio, alienan-
do, vende o título, sem os poderes.

620
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Se a alienação for onerosa, incidirá o direito de preferência, reciprocamente entre senhorio e enfi-
teuta. A finalidade dessa regra é facilitar a extinção da enfiteuse, consolidando a propriedade nas mãos
de uma só pessoa. Não há preferência quando a alienação for gratuita, que é liberalidade.
Caso o enfiteuta realize alienação onerosa ou dação em pagamento, ele é obrigado a recolher uma
taxa para o senhorio, chamada “laudêmio”. Veja que tal pagamento ocorrerá quando o senhorio não
exercer sua preferência. O laudêmio corresponde a 2,5% sobre o valor do negócio, salvo disposição con-
trária (que apenas pode ser maior, jamais menor).
Assim, se o enfiteuta quer vender e o senhorio não exerce sua preferência, ele recolhe o laudêmio.
Todavia, o CC/02, em seu art. 2.038, § 1º, I, estabelece uma restrição ao alcance do laudêmio (novidade):

Art. 2.038. (...) § 1º Nos aforamentos a que se refere este artigo é defeso:

I - cobrar laudêmio ou prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das
construções ou plantações; (...)

Fica proibida, nas enfiteuses do CC/16, a cobrança de laudêmio sobre o valor das construções e
plantações, podendo ser ele cobrado somente sobre o valor do terreno. Perceba que o valor do laudêmio
diminuirá e, a depender do caso, ficará completamente esvaziado.
Para Chaves, a ideia do dispositivo é forçar o enfiteuta a exercer seu direito de preferência, na me-
dida em que ele fica em posição desconfortável.
vii) direito ao resgate:
Trata-se do direito do enfiteuta de adquirir o título que lhe falta. Para tanto, exige-se a conjugação
de três elementos: lapso temporal mínimo de dez anos, estar o enfiteuta em dia com as pensões anuais
(adimplemento das pensões) e pagamento do laudêmio (calculado somente sobre o valor do terreno).
O enfiteuta tem o direito de exercer o resgate independentemente da vontade do senhorio. Exerci-
do o direito, extingue-se a enfiteuse. Esta hipótese não se aplica às enfiteuses sobre terras públicas, pois
os bens são indisponíveis.
A enfiteuse mostrou-se incompatível com o mundo moderno. Até por isso sua criação foi vedada.
Ela prestou, no passado, relevantes serviços, quando o Brasil era inóspito e precisava povoar suas regi-
ões.
viii) admite a incidência de outros direitos reais, inclusive de garantia:
O bem enfitêutico pode, por exemplo, ser hipotecado ou dado em anticrese. Nada impede a conces-
são desses direitos sobre a enfiteuse, pois a finalidade deles é distinta. Até porque o enfiteuta tem todos
os direitos do domínio, um dos quais é livre dispor. Quem pode o mais (vender) pode o menos (gravar,
dar em garantia).
ix) a enfiteuse pode ser constituída por lei, por decisão judicial ou por negócio jurídico entre as par-
tes:

621
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Exemplo de decisão judicial que constitui enfiteuse é a proferida em ação de usucapião de enfiteu-
se. Veja que o CC/02 proíbe a constituição de novas enfiteuses. Portanto, a única hipótese de criação de
uma enfiteuse que ocorre a Chaves é a da sentença, na ação de usucapião de enfiteuse, quando o período
aquisitivo se aperfeiçoou antes do CC/02 (lembre-se que a sentença da usucapião é declaratória).

6.5.2. Servidões (Art. 1.378 a 1.389, CC)

6.5.2.1. Noções gerais

As servidões emanam de uma expressão de origem latina: servitus, que significa “serviço”, “utilida-
de”. A origem etimológica explica bem o conceito: a servidão é o direito real na coisa alheia através do
qual um prédio obtém uma vantagem que não teria, originariamente, de outro prédio (prédio, aqui, não
em sentido de edifício, mas de imóvel, como uma fazenda, uma casa).
Essa vantagem obtida de outro prédio não precisa necessariamente ser econômica, podendo ser de
qualquer ordem (embelezamento, conforto no uso da coisa etc.)
Assim, leciona Flávio Tartuce que pela servidão, um prédio proporciona a outro uma utilidade,
gravando o primeiro, que é do domínio de outra pessoa (“tapete de concessão”, visível ou não).
Se a servidão dá essa ideia de utilidade, no Estado de Direito toda servidão é predial. Não pode ha-
ver servidão pessoal, sob pena de aviltamento da dignidade da pessoa humana.
A utilidade da servidão adere à coisa (agrega nela). Num pensamento açodado, perfunctório, po-
der-se-ia imaginar que a vantagem se agregaria ao proprietário, o que não é verdade. Por essa razão, a
servidão nunca pode ser alienada pelo proprietário autonomamente (a vantagem não pertence a ele). Ex.:
uma fazenda não tem água, mas a vizinha tem. Os proprietários ajustam uma servidão de retirada de
água. Não pode o proprietário da fazenda que retira água vender o direito de retirar a água. Todavia, se
ele vender a fazenda, o bem vai juntamente com o direito de retirada, porque ela adere à coisa e não per-
tence ao proprietário. Há outros comuníssimos exemplos de servidão, como a de passagem e a de vista.
Mais uma vez: trata-se de uma utilidade entre prédios, nunca entre titulares.
Não se deve confundir servidão com direito de vizinhança. O motivo é simples: tecnicamente fa-
lando, servidão é direito real na coisa alheia. Como todo direito real na coisa alheia, constitui-se através
de lei, decisão judicial ou negócio jurídico. Direito de vizinhança não é direito real, mas obrigação prop-
ter rem. É uma obrigação imposta ao titular, por força de lei, independentemente de sua vontade.
As figuras se confundem muito, pois há um direito de vizinhança que se assemelha demais com a
servidão: o direito de passagem forçada.
Todavia, a passagem forçada serve somente para o caso de encravamento absoluto de um imóvel.
Imóvel encravado é aquele sem acesso à via pública. Ele pode ser posterior à aquisição da propriedade ou
gerado por fenômenos naturais (catástrofe, aluvião etc.) ou humanos (alienação parcial do bem etc.) O
CC/02 estabelece que, havendo encravamento absoluto, o prédio encravado terá direito à passagem for-

622
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

çada, pelo vizinho, do modo menos gravoso. O vizinho não pode se objetar, por se tratar de obrigação
propter rem.
Como contrapartida dessa imposição legal, o exercício do direito de vizinhança gera responsabili-
dade objetiva: o vizinho que exerce a passagem forçada responde independentemente da existência de
culpa pelos danos eventualmente causados.
Desse modo, se uma fazenda não tem acesso nenhum à via pública, será caso de direito de vizi-
nhança. Contudo, se a fazenda não é encravada, mas o acesso não permite o escoamento da produção ou
a saída de modo adequado, o fazendeiro terá de celebrar com o vizinho uma servidão.
A servidão, portanto, nunca se confundirá com o direito de vizinhança, especialmente em se tra-
tando da passagem forçada.
Em resumo:
Servidão de Passagem Passagem Forçada (arts. 1.285 e 1.286, CC)

Direito Real de Gozo ou Fruição. Direito de Vizinhança.


Facultativa. Obrigatória.
Somente há indenização se as partes acordarem. Há obrigatoriamente uma indenização ao
proprietário do imóvel serviente.
O imóvel já possui saída. O imóvel está sem saída.
Ação confessória. Ação de Passagem Forçada.
Obs.: com o Código Civil de 2002, a passagem de cabos e tubulações deixou de ser hipótese de ser-
vidão não obrigatória, e passou a ser regida pelo sistema de passagem forçada (art. 1.286, CC).

6.5.2.2. Constituição das servidões


Na lição de Flávio Tartuce as servidões podem ser constituídas de quatro formas:
i. Negócio jurídico inter vivos ou mortis causa – institui- se o direito real por contrato ou tes-
tamento, conforme já exposto, devidamente registrado no CRI.
ii. Usucapião – prevê o caput do art. 1.379 do CC que o exercício incontestado e contínuo de
uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a re-
gistrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que jul-
gar consumado a usucapião (usucapião ordinária de servidão).
Porém, nos termos do seu parágrafo único, se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião se-
rá de 20 anos (usucapião extraordinária de servidão). Como se pode notar, o CC/2002 consagra um
prazo de 20 anos para a usucapião extraordinária de servidão, maior do que o prazo para usucapião ex-
traordinária da propriedade (15 anos).

623
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Diante desse contrassenso legal, parte da doutrina entende pela aplicação do prazo máximo de 15
anos. Nesse sentido, contando com o apoio deste autor, o Enunciado n. 251 do CJF/STJ, da III Jornada
de Direito Civil449.
Flávio Tartuce entende que além da servidão, outros direitos reais de gozo ou fruição podem ser
adquiridos por meio da usucapião administrativa, incluída pelo Novo CPC.
iii. Destinação do proprietário – “o proprietário, em caráter permanente (perpetui usus causa),
reserva determinada serventia, de prédio seu, em favor de outro. Se, futuramente, os dois
imóveis passam a pertencer a proprietários diversos, a serventia vem a constituir servidão”.
iv. Sentença judicial – não havendo acordo entre os proprietários, entendendo o juiz que o di-
reito real deve persistir em ação confessória.
Em todos os casos, o art. 1.385 do CC aplica o princípio da menor onerosidade ao prédio serviente
(que concede).

6.5.2.3. Características da servidão


São características da servidão:
i) perpetuidade:
Toda servidão é perpétua. Assim, alienado o imóvel, o bem a acompanha. A servidão é perpétua até
que seja extinta (a extinção pode ocorrer, por exemplo, através de um fenômeno da natureza).
ii) a servidão tem de pertencer a proprietários distintos:
Não pode a servidão pertencer a um mesmo proprietário. Se ambos os prédios (dominante e domi-
nado) pertencerem a um mesmo proprietário, não será um direito real na coisa alheia, mas uma relação
puramente obrigacional chamada “serventia”.
iii) a servidão não se presume:
A servidão depende da lei, da decisão judicial ou da vontade das partes.
iv) o não uso da vantagem estabelecida, por dez anos consecutivos, gera a extinção da servidão:
Sendo a servidão uma vantagem, se ela não é mais útil, justifica-se a extinção.

6.5.2.4. Tutela processual das servidões

O meio processual mais comum de defesa das servidões é a ação possessória. Além dela, pode ha-
ver ação de usucapião da servidão. Ex.: servidão de passagem mais vantajosa utilizada por determinado
tempo suficiente à usucapião. É algo muito comum.
Existem, todavia, duas ações que são exclusivas para a defesa das servidões:
i) ação confessória: serve para declarar que a servidão existe;

449 Enunciado n. 251 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil (2004): “o prazo máximo para o usucapião

extraordinário de servidões deve ser de 15 anos, em conformidade com o sistema geral de usucapião previsto no
Código Civil”.

624
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) ação negatória: serve para declarar que não existe a servidão.

6.5.2.5. Classificação das servidões


i) servidões aparentes ou não aparentes:
A diferença entre a servidão aparente e a não aparente está na visibilidade externa da servidão.
Aqueduto subterrâneo é uma servidão não aparente; servidão de trânsito (passagem de veículo) é um
bom exemplo de servidão aparente (ainda que eventualmente não haja marcações no chão, os pneus do
carro marcam a servidão).
O critério é importante, pois se as servidões não são aparentes, elas não induzem posse e, via de
consequência, não admitem defesa por ações possessórias e usucapião, a teor do Art. 1.213, CC (ex.: Sú-
mula 415 do STF):

Súmula 415 - Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natu-
reza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória.

Para deixar a súmula mais completa, dever-se-ia acrescentar, ao final: “bem como usucapião”.
ii) servidões contínuas e descontínuas:
Contínuas são as servidões que não exigem atuação humana para seu exercício; as descontínuas
exigem a atuação do homem para o seu exercício. Ex.: a servidão de tirada de água é descontínua; as ser-
vidões de vista, de iluminação solar e de passagem de água são contínuas.
Obs.: Conciliando as duas últimas classificações:
a) Servidão aparente contínua: passagem de som;
b) Servidão aparente descontínua: trânsito de pessoas;
c) Servidão não aparente contínua: energia solar;
d) Servidão não aparente descontínua: não construir.

6.5.3. Direito real de superfície (Art. 1.369 a 1.377, CC)


A superfície é instituto de origem romana, já estando previsto no Brasil no Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001), sendo prevista no Código Civil de 2002 para substituir a enfiteuse, com a vantagem da não
perpetuidade.
Obs.: O direito real de superfície foi constituído em Portugal, um país bastante menor que o Brasil,
com subjacente objetivo de aproveitamento do solo, ou seja, de dar efetividade à função social da propri-
edade.

6.5.3.1. Conceito
Direito real de superfície é a concessão a um terceiro do direito de exploração do solo de um imó-
vel, com a finalidade de garantir o cumprimento da função social.

625
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na lição de Flávio Tartuce Trata-se de um direito real de gozo ou fruição, pelo qual o proprietário
(ou fundieiro) cede ao superficiário o domínio útil (uso e gozo) de determinado imóvel para que este rea-
lize nele construções ou plantações, por tempo determinado ou indeterminado. Exemplos: cessão de ter-
ras para plantação de eucaliptos; cessão de imóveis para construção de “shoppings” e para a instalação de
antenas.
O direito é muito importante porque permite ao proprietário que, por algum motivo, não pode
cumprir tal função, que viabilize tal cumprimento.
O Estatuto da Cidade estabelece a obrigação do proprietário urbano de cumprir a função social. Se
não a cumprir, o Prefeito Municipal fiscalizará e aplicará as seguintes sanções, sob pena de cometimento
de ato de improbidade administrativa: i) IPTU progressivo; ii) edificação compulsória; iii) parcelamento
compulsório; e iv) desapropriação.
O proprietário urbano que não tem condições econômicas para cumprir a função social (ex.: quer
guardar o terreno para vendê-lo), pode estabelecer a um terceiro o direito de usar a superfície, permitin-
do que ele construa ou plante sobre o bem. É um esforço para viabilizar o cumprimento da função social,
pelo proprietário que momentaneamente não pode fazê-lo.

6.5.3.2. Direito real de superfície no CC/2002 e no Estatuto da Cidade


Há um conflito normativo em se tratando de direito de superfície, entre os arts. 21 do Estatuto da
Cidade e 1.369 do Código Civil. Ambos disciplinam o direito de superfície:

Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu
terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no
Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente
ao objeto da concessão.

Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno,
por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de
registro de imóveis.

§ 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo rela-
tivo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.

§ 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.

§ 3º O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a


propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva,
com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo dispo-
sição em contrário do contrato respectivo.

626
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 4º O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato


respectivo.

§ 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.

Surge a pergunta: o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) foi revogado pelo Código Civil (que é de
2002)? Hoje, o entendimento é absolutamente tranquilo que ambos os diplomas são compatíveis (Enun-
ciado 93 da Jornada). O art. 21 do EC continua vigorando, em face do princípio da especialidade:

Enunciado nº 93 - Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície
não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei n.
10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano.

Há três peculiaridades na harmonização entre o art. 21 do Estatuto da Cidade e o art. 1.369 do CC:
i) objeto:
As normas do Estatuto da Cidade somente se aplicam ao direito de superfície quando a proprieda-
de estiver inserida em área urbana. Se a propriedade estiver em zona rural, incide somente o Código Ci-
vil.
ii) abrangência:
O Estatuto da Cidade estabelece que o direito de superfície abrange também o subsolo e o espaço
aéreo (art. 21, § 1º). No Código Civil, não: abrange somente o solo (art. 1.369, parágrafo único).
Conforme a posição majoritária, o direito de superfície abrangeria o direito de sobrelevação, que é
a possibilidade de o instrumento autorizar a realização de construção além da superfície do bem. Nesse
ponto se inseriria o direito ao subsolo e à laje (Enunciado 568 da VI JDC450).
iii) prazo:
O direito de superfície, no CC, sempre deve ter prazo determinado. No Estatuto da Cidade, o direito
de superfície pode ser por tempo determinado ou não. Isso é importante para fins de constituição em
mora do devedor.
Se o direito de superfície foi constituído com prazo determinado, a mora será sempre ex re (auto-
mática). Se constituído sem prazo indeterminado, a mora será ex persona, exigindo prévia notificação.
Assim, no CC a mora do superficiário será sempre ex re (porque nele o direito é sempre constituído
com prazo determinado). No Estatuto da Cidade, a mora será ex re ou ex persona. E se não tiver prazo
determinado, exige-se prévia notificação para a constituição em mora.
Segundo Flávio Tartuce caso haja dúvida sobre a aplicabilidade de uma legislação ou outra, deve-se
utilizar a lei mais específica (Estatuto da Cidade) e, naquilo em que não há incompatibilidade, para even-

450 Enunciado 568, VI JDC: “O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço

aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a
legislação urbanística.”.

627
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tual complementação, o disposto no Código Civil sobre o tema, conforme estatui o art. 1.377 do Código
Civil.

Flávio Tartuce resume:


Direito de Superfície do CC/2002 Direito de Superfície no Estatuto da Cidade

Imóvel Rural/Urbano Imóvel Urbano

Exploração mais restrita Exploração mais ampla (política urbana)


(construções/plantações)
Em regra, não autoriza a utilização do subsolo e É possível a utilização do subsolo ou espaço aéreo.
do espaço aéreo.

Prazo determinado. Prazo determinado ou indeterminado.

6.5.3.3. Características da superfície

São características da superfície:


i) exige registro para sua constituição:
Surge aqui um detalhe interessante: o CC permite que o ato anterior ao registro seja tanto inter vi-
vos quanto causa mortis (ex.: negócio jurídico ou testamento). Um e outro podem ser praticados para
que se gere o registro.
Todavia, o Enunciado 250 da Jornada foi além, admitindo a constituição do direito de superfície
até mesmo através da cisão do imóvel:

Enunciado 250 - Art. 1.369: Admite-se a constituição do direito de superfície por cisão.

Nada impede a constituição de direito de superfície, também, por meio de usucapião.


ii) pode ser gratuito ou oneroso:
O proprietário, que será chamado de concedente, pode ceder a superfície, para que o superficiário
construa ou plante de modo gratuito. No silêncio das partes, a superfície será gratuita. A onero-
sidade deve ser expressa. Havendo onerosidade, a contraprestação a ser paga pelo superficiário chama-se
“cânon” ou “solarium” ou ainda foro superficiário, pago de uma só vez ou de forma parcelada, a teor do
Art. 1.370, CC:

CC, art. 1.370: “A concessão da superfície será gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as
partes se o pagamento será feito de uma só vez, ou parceladamente.”

A temporariedade do cânon ou solarium (mensal, semestral, anual etc.) será indicada pelas partes.
Seja gratuita, seja onerosa, a superfície impõe o pagamento de tributos ou taxas pelo bem ao
superficiário (tal como ocorre na enfiteuse), salvo disposição contrária. Nesse sentido, ver o Enuncia-

628
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

do 94 da Jornada, segundo o qual as partes podem dispor em sentido contrário, mas no silêncio os en-
cargos são suportados pelo beneficiário:

Enunciado 94 - Art. 1.371: As partes têm plena liberdade para deliberar, no contrato respectivo,
sobre o rateio dos encargos e tributos que incidirão sobre a área objeto da concessão do direito
de superfície.

iii) o direito de superfície é autônomo e independente em relação ao direito de propriedade das


partes:
Flávio Tartuce assevera que o direito de superfície é o mais amplo de todos os direitos reais de gozo
ou fruição, aplicando-se o ditado: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. São coisas diferen-
tes. O proprietário tem o título; o superficiário tem poderes do domínio, ou seja, há a divisão de dois pa-
trimônios distintos (segregação dominial).
O direito de superfície pode ser dado em garantia autonomamente. Ex.: ele pode ser objeto de hi-
poteca, alienação fiduciária ou de anticrese, independentemente do direito de propriedade. Veja a rique-
za do direito real na coisa alheia: um banco pode aceitar como garantia a propriedade do proprietário e a
superfície, do superficiário, para a concessão de empréstimo para um ou outro, de acordo com o prazo da
superfície.
Simbolicamente representando, o direito de superfície forma dois “patrimônios” distintos, cada
qual com seus direitos sobre a mesma coisa, nesse sentido o Enunciado 321 da IV JDC451.
Obs.: A superfície pode ser hipotecada (art. 1.473, X, CC e Enunciado 249 da III JDC) e apesar da
falta de previsão legal, a superfície também pode ser usucapida (no entendimento doutrinário, apoiado
por Rodrigo Mazzei, Maria Heleza Diniz, Mario Delgado, Jones Alves, Carlos Roberto Gonçalves, Flávio
Tartuce).
iv) o direito de superfície gera direito de preferência na hipótese de alienação onerosa:
Tanto o proprietário quanto o superficiário podem dispor de seu direito. O problema, no caso do
proprietário, é descobrir quem queira comprar, pois somente haverá a aquisição do título, tendo de se
respeitar o direito do superficiário. O respeito do direito de preferência é recíproco, tanto do superficiário
quanto do proprietário.
Entretanto, se a parte for preterida na preferência (preempção ou prelação legal) a doutrina diverge
sobre as consequências:
i. 1ª corrente: a parte preterida pode pleitear perdas e danos (Pablo Stolze e Silvio Venosa),
aplicando-se, por analogia, os arts. 513 a 520, CC (preempção convencional).

451 Enunciado 321, IV JDC: “Os direitos e obrigações vinculados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados

à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um de seus titulares
exclusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imóvel.”

629
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. 2ª corrente: a parte preterida pode pleitear a adjudicação da coisa ou perdas e danos (Maria
Heleza Diniz e Marco Aurélio Bezerra de Melo), com aplicação da lei de locação por analo-
gia (art. 33 da Lei 8.245/1991);
iii. 3ª corrente: a parte preterida pode pleitear a adjudicação da coisa (Rodrigo Mazzei, Gusta-
vo Tepedino, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald), por analogia à regra do con-
domínio (art. 504, CC). Assim, havendo venda sem a observância do direito de preferência,
ela será ineficaz em relação a prejudicado, que dispõe do prazo decadencial de 180 dias para
o ajuizamento da ação de adjudicação compulsória. É a posição majoritária.452
v) extinto o direito de superfície, o proprietário adquire todas as construções ou plantações, inde-
pendentemente do pagamento de indenização, salvo disposição em contrário das partes:
Enquanto a enfiteuse é obsoleta, a superfície é altamente contemporânea. Ela é vantajosa para as
duas partes e permite o cumprimento da função social da propriedade.
vi) o direito de superfície pode ser instituído por pessoa jurídica de direito público, permanecendo
sob as regras do Código Civil.

6.5.4. Direito real de laje (Art. 1.510-A a 1.510-E, CC)


A Lei 13.465/2017 introduziu um tratamento relativo à laje, além de sua previsão no rol dos direi-
tos reais, previsto no art. 1.225 do Código Civil (inc. XIII).
Trata-se de modalidade especial de superfície, conforme posição exarada por Rodrigo Mazzei, José
Fernando Simão, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona e Flávio Tartuce.
Há doutrinadores que entendem ser direito real sobre coisa própria, e não alheia, uma vez que a la-
je possui certa autonomia e matrícula própria. Todavia, como defendem Pablo Stolze e Rodolfo Pamplo-
na, a matrícula tem natureza acessória, que não modifica a essência do direito principal. O STJ em julga-
do isolado entendeu pela natureza de direito real sobre coisa alheia453.
“O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas
de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a
superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente cons-
truída sobre o solo, a teor do art. 1.510-A do Código Civil.”454
Assim, pelo direito real de laje, o proprietário de uma construção-base (cedente ou lajeiro) pode
ceder a superfície superior ou inferior de sua construção para que o titular da laje (cessionário ou lajeá-

452 Nesse sentido: Enunciado 510 da V JDC: “Ao superficiário que não foi previamente notificado pelo propri-
etário para exercer o direito de preferência previsto no art. 1.373 do CC é assegurado o direito de, no prazo de seis
meses, contado do registro da alienação, adjudicar para si o bem mediante depósito do preço.”.
453 (STJ, REsp. 1.478.254/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em

08/08/2017, DJe 04/09/2017).


454 Retirado de Cadernos Sistematizado – Civil - Contratos e Reais – 2018.01

630
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

rio) mantenha unidade distinta daquela originalmente construída (construção-base). Será uma unidade
autônoma, com possibilidade de abertura de matrícula própria.
Obs.: Direito de Preferência Bilateral ou Duplo quanto à alienação do direito de laje, em relação ao
lajeiro e a lajeário. Caberá adjudicação da coisa se alguém for preferido, com prazo de 30 dias para mani-
festação da parte quanto à preferência. A adjudicação está sujeita a prazo decadencial de 180 dias, conta-
dos da alienação, a teor do Art. 1.510-D, CC.
Segundo a melhor doutrina, a laje pode ser adquirida por usucapião. Nesse sentido: Enunciado
627, VIII Jornada de Direito Civil.

6.5.5. Usufruto (Art. 1.390 a 1.411, CC)

6.5.5.1. Conceito e noções gerais

Usufruto é o direito real na coisa alheia que permite a um terceiro retirar todas as utilidades produ-
zidas pela coisa (o terceiro recebe o uso e a fruição). Com efeito, o uso mais a fruição sem limites equiva-
lem ao usufruto.
Nesse sentido, o usufruto é chamado de “direito de gozo ou fruição por excelência”, por conta da
divisão igualitária dos atributos da propriedade. São partes do usufruto: usufrutuário (com o domínio
útil - atributos de gozar e usar) e o nu-proprietário ("despido do domínio útil" - atributos de reaver e dis-
por).
A destinação do usufruto é dada de acordo com a conveniência do titular (a finalidade é ditada por
ele). Em outras palavras, o titular pode retirar da coisa todas as utilidades e dar à coisa o destino que bem
entender.
A mensagem é: o usufrutuário tem ampla liberdade para a retirada das utilidades da coisa. E mais:
o usufruto pode incidir sobre bens móveis ou imóveis, sobre o patrimônio ou parte dele (art. 1.390 do
CC). Todo e qualquer bem frugífero (aquele que produz frutos) pode ser objeto de usufruto:

Art. 1.390. O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio
inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades.

6.5.5.2. Características do usufruto


Evidentemente, se o usufrutuário pode retirar todas as utilidades, ele será temporário, sob pena
de esvaziar a propriedade. A temporariedade, portanto, é da essência do usufruto. E o prazo é o estabele-
cido pelas partes, que irão ditá-lo. No silêncio, presume-se que o usufruto é vitalício (extingue-se com a
morte do titular). Em se tratando de usufruto constituído em favor de pessoa jurídica, que não morre, o
CC estabelece o limite de 30 anos para a hipótese de ausência de disposição contrária.
Em sendo vitalício, o usufruto será personalíssimo e, portanto, intuitu personae (em razão da
pessoa). O usufruto é constituído para atender às peculiaridades de certas pessoas. Sendo intuitu perso-
nae, todo usufruto é inalienável. Portanto, é um direito personalíssimo e intransferível.

631
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O STJ, reconhecendo a inalienabilidade do usufruto, no Ag Rg em Ag 851.994/PR, estabeleceu que,


além de inalienável, o usufruto é também impenhorável.
Como visto, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Serve de novo a advertência. Não é
possível penhorar o usufruto. Todavia, o proprietário fica com a nua propriedade (na medida em que as
utilidades ficam com o usufrutuário), a qual pode ser penhorada, até porque não é personalíssima. A nua
propriedade admite ato de alienação e penhora. Personalíssimo é o usufruto.
Entretanto, discute-se na doutrina se a inalienabilidade do usufruto é absoluta, ou seja, não se pode
vender nem ao nu-proprietário, sobre o tema existem duas correntes:
i. 1ª corrente (REsp 1.098.620/SP): Não. É possível a alienação ao nu-proprietário (consoli-
dação). Entendimento de Dabus Maluf, José Fernando Simão e Carlos Gonçalves. É a cor-
rente majoritária na jurisprudência.
ii. 2ª corrente (majoritária na doutrina): Sim, atinge também o nu-proprietário. Entendimen-
to de Flávio Tartuce, Caio Mário da Silva Pereira, Maria Helena Diniz, Pablo Stolze e Marco
Aurélio Bezerra de Melo. Esta posição prevalece na doutrina.
Outra confusão comum é a seguinte: o usufruto é personalíssimo, mas não obrigatório. Ele admite
renúncia, portanto. Ninguém é obrigado a exercer o usufruto.
Perceba que o exercício de direitos, no usufruto, é simultâneo: o usufrutuário e o nu proprietário
exercem seus direitos concomitantemente. O usufrutuário retira as utilidades. O nu proprietário tem o
título e exerce os demais poderes do domínio. O direito brasileiro, considerando o caráter personalíssimo
do usufruto, proíbe o usufruto sucessivo, também chamado de usufruto de segundo grau.
Trata-se, por exemplo, da hipótese seguinte: “A” faz uma doação de imóvel a “B”, gravando-o com
usufruto em favor de “C”, com cláusula de que, quando “C” morrer, o usufruto passará para “D”. A insti-
tuição de usufrutuários de segundo, terceiro, quarto graus etc. é nula de pleno direito. Quando o usufru-
tuário cessar o exercício de seus direitos, extingue-se o usufruto, não sendo válidas as nomeações subse-
quentes.
O fundamento é que, no direito brasileiro, não se admite o fideicomisso (a substituição do benefici-
ário de um ato gratuito) por ato inter vivos. Seria a criação de um fideicomisso, por ato inter vivos, por
via transversa. São atos gratuitos a doação e o testamento. Como estudado, o fideicomisso somente será
valido se realizado no testamento (ato causa mortis) e quando o beneficiário porventura substituído for a
prole eventual (o filho que alguém terá, que não se confunde com nascituro).

6.5.5.3. Classificação do usufruto

632
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Seguindo a precisa lição de Flávio Tartuce455, o usufruto segundo a melhor doutrina classifica-se da
seguinte forma:

6.5.5.3.1. Quanto ao modo de instituição ou quanto à origem:

i. Usufruto legal – que decorre da lei e não da vontade das partes, sendo desnecessário o seu re-
gistro no Registro de Imóveis. Exemplos: usufruto dos pais sobre os bens dos filhos menores
(art. 1.689, inc. I, do CC), usufruto a favor do cônjuge, que estiver na posse dos bens particula-
res do outro (art. 1.652, inc. I, do CC).
ii. Usufruto voluntário ou convencional – decorre do exercício da autonomia privada, podendo
ter origem em testamento ou em contrato (exemplo: doação).
O usufruto voluntário decorrente de contrato admite a seguinte subclassificação, apontada por Flá-
vio Augusto Monteiro de Barros:
a) Usufruto por alienação – o proprietário concede o usufruto a terceiro e conserva a nua pro-
priedade.
b) Usufruto por retenção ou deducto – o proprietário reserva para si o usufruto e transfere a
nua propriedade a um terceiro.
c) Usufruto misto – é o que decorre da usucapião. Se houver justo-título e boa-fé, o prazo será
de 10 anos (usucapião ordinária) e sem justo título ou boa-fé, o prazo é de 15 anos (usucapi-
ão extraordinária).180 Aplicam-se as mesmas regras da usucapião de propriedade.

6.5.5.3.2. Quanto ao objeto em que recai:

i. Usufruto próprio – recai sobre bens infungíveis e inconsumíveis. Ao final, o usufrutuário


deve restituir os bens que recebeu.
ii. Usufruto impróprio ou quase usufruto – recai sobre bens fungíveis e consumíveis. O usu-
frutuário se torna proprietário da coisa, podendo aliená-la a terceiros ou consumi-la.
Por razões óbvias, ao final do usufruto, deverá ser restituído o equivalente à coisa, aplicando-se as
mesmas regras do mútuo (art. 1.392, § 1.º, do CC). Desse modo, não sendo possível devolver coisa do
mesmo gênero, caberá a restituição em dinheiro.

6.5.5.3.3. Quanto à extensão:

i. Usufruto total ou pleno – abrange todos os acessórios da coisa, o que constitui regra, salvo
previsão em contrário (art. 1.392, caput, do CC).
ii. Usufruto parcial ou restrito – tem seu conteúdo delimitado na instituição, podendo não
abranger todos os acessórios da coisa objeto do instituto.

455 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; Sã Paulo: MÉTODO, 2019. P.

633
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

6.5.5.3.4. Quanto à duração:

i. Usufruto temporário ou a termo – quando da instituição já se estabelece seu prazo de dura-


ção (art. 1.410, inc. II, do CC). Se for usufrutuária a pessoa jurídica, seu termo máximo de
duração será de 30 anos (art. 1.410, inc. III, do CC).
ii. Usufruto vitalício – caso seja estipulado a favor de pessoa natural, sem previsão de prazo ou
termo final, o usufruto é considerado vitalício e se extingue com a morte do usufrutuário
(art. 1.411 do CC).
Importante observar que a morte do nu-proprietário não é causa de extinção do usufruto,
transmitindo-se tal qualidade aos seus herdeiros, ou seja, haverá sucessão do direito real.

6.5.5.4. Formas de instituição e extinção do usufruto

O usufruto pode ser instituído por lei, decisão judicial ou negócio jurídico.
A instituição legal ocorre quando a lei quer que uma pessoa retire frutos dos bens de outro. Ex.:
pai, no exercício do poder familiar, tem usufruto legal dos bens pertencentes aos seus filhos menores.
Isso tem lógica, na medida em que são eles que administram tais bens. Importante destacar que este di-
reito não se aplica ao tutor.
Usufruto constituído por decisão judicial é o exemplo do cumprimento de sentença: o juiz pode de-
terminar a constituição de um usufruto, para que o credor retire os frutos e se pague.
O usufruto convencional pode ser enxergado por dois prismas:
i) usufruto convencional por alienação: ocorre quando o bem é doado por “A” a “B”, constituindo-
se usufruto em favor de “C”;
ii) usufruto convencional por retenção: ocorre quando alguém exerce o ato de alienação e guarda o
usufruto para si. Ex.: “A” faz uma doação para os filhos, mas guarda o usufruto para si.
A encerrar o estudo do usufruto, é preciso visualizar as hipóteses de sua extinção, tratadas pelo art.
1.410 do CC. Em todas as situações a seguir listadas, há necessidade de cancelamento do registro no Car-
tório de Registro Imobiliário (CRI), quando se tratar de bem imóvel

Art. 1.410, CC. “O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de


Imóveis:

I - pela renúncia ou morte do usufrutuário;

II- pelo termo de sua duração;

III- pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído, ou, se ela per-
durar, pelo decurso de trinta anos da data em que se começou a exercer;

IV- pela cessação do motivo de que se origina;

V- pela destruição da coisa, guardadas as disposições dos arts. 1.407, 1.408, 2ª parte, e 1.409;

VI - pela consolidação;

634
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

VII- por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes
acudindo com os reparos de conservação, ou quando, no usufruto de títulos de crédito, não dá às
importâncias recebidas a aplicação prevista no parágrafo único do art. 1.395;

VIII- Pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai (arts. 1.390 e 1.399).”

6.5.6. Uso e habitação


O uso e a habitação são chamados pela doutrina de “usufruto anão”. Eles nada mais são que um
subtipo (uma subcategoria) de usufruto. Exatamente por isso, neles são aplicadas todas as regras do usu-
fruto (formas de constituição; intuitu personae; inalienabilidade etc.)
No usufruto, o uso e a fruição são conferidos a um terceiro de forma ilimitada. No uso e na habita-
ção, há um usufruto com finalidade específica. Se tal finalidade for outra que não a moradia, trata-se de
uso. Ex.: o titular permite a um terceiro retirar as utilidades do bem para fins de agricultura. Se o uso e a
fruição são concedidos a um terceiro com a finalidade de moradia, trata-se de habitação.
No uso e na habitação, não pode o beneficiário alugar a coisa. Eles são vinculados à finalidade para
qual foram concedidos, não possuindo a mesma elasticidade do usufruto. O usufruto é intuitu personae.
O uso e a habitação têm uma peculiaridade: eles também são intuitu personae, mas esse intuitu abrange
os familiares como um todo, assim como os trabalhadores domésticos.
O uso e a habitação podem ser constituídos por lei, decisão judicial ou negócio jurídico. O caso
mais comum de habitação no Brasil é o criado por lei, decorrente do casamento e da união estável: mor-
rendo um dos dois, ao outro permanece o direito de ficar morando no imóvel, caso o bem não lhe perten-
ça.
No casamento, o direito de habitação está previsto no art. 1.831 do CC; na união estável, no art. 7º,
parágrafo único, da Lei 9.278/1996:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem
prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Art. 7º. (...) Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o so-
brevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casa-
mento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.

A diferença entre os dispositivos é que, no casamento, o direito de habitação é incondicionado; na


união estável ele é condicionado. A viúva fica morando na casa e, ainda que venha a se casar novamente,
poderá levar seu novo cônjuge para lá residir. Em se tratando de união estável, a constituição de uma
nova família pelo titular do direito extingue o direito de habitação.
Isso pode levar a situações extremamente injustas: imagine um homem que morre e deixa cinco fi-
lhos, para os quais pagava pensão, e uma viúva do casamento, sem filho nenhum. Ela fica com a casa e os

635
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

filhos ficam sem pensão, debaixo da ponte, sem direito a aluguel, moradia etc. Chaves recomenda utilizar
as normas relativas à proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CR e ECA) e, mediante a
teoria da aplicação direta dos princípios, buscar afastar o direito real de habitação, quando ele se mostrar
injusto no caso concreto.
O STJ, no REsp 1.184.492/SE, tratou da questão da inoponibilidade do direito real de habitação no
caso de copropriedade anterior à abertura da sucessão. Decidiu-se que a viúva não pode opor direito real
de habitação aos irmãos de seu falcido cônjuge na hipótese em que eles forem, desde antes da abertura
da sucessão, coproprietários do imóvel em que ela residia com o marido. O direito real de habitação tem
como essência a proteção do direito de moradia do cônjuge supérstite, dando aplicação ao princípio da
solidariedade famíliar. Contudo, havendo condimínio do imóvel estabelecido entre o falecido marido e
seus irmãos, não haverá meação nem transmissão do direito de herança. Nesse caso, não será possível
constituir direito real de habitação sobre imóvel condominial de terceiros, pois seria diminuir a copropri-
edade dos irmãos do falecido cônjuge.
No REsp 1.249.227/SC, o STJ se manifestou sobre o direito real de habitação na união estável. O
STJ invocou o art. 226, §3º, da CR para estabelecer que, se porventura, o direito real de habitação incide
sobre o casamento, também deverá incidir na união estável. A não incidência contraria o espírito da CR
que é norma de inclusão. Assim, o direito real de habitação deve ser aplicado o companheiro sobreviven-
te. O STJ ainda entende que, se a companheira adquiriu novo imóvel com o dinheiro recebido a titulo de
indenização de seguro, tal circunstância não afeta o seu direito real de habitação sobre o imóvel em que o
casal residia.
Assim decidindo, o STJ termina por aplicar o srt. 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/96. A dúvida
que fica é a seguinte: o STJ afirmou que o companheiro terá direito real de habitação para não sofrer
efeitos discriminatórios em relação ao cônjuge. Contudo, a Lei 9.278/96 estabelece o direito real de habi-
tação para o companheiro sobrevivente de forma vitalícia e condicionada. Estaria o STJ dizendo que o
direito real de habitação do companheiro também seria vitalício e incondicionado, assim como o direito
real de habitação do cônjuge? A Cristiano Chaves parece que sim, pois o STJ asseverou que o companhei-
ro não pode sofrer efeitos discriminatórios em relação ao cônjuge.

636
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DIREITO DE FAMÍLIA

1. Noções gerais
1.1. Conceitos iniciais

1.1.1. Direito de família (Arts. 1.511 a 1.783, CC)


Segundo Flávio Tartuce o Direito de Família pode ser conceituado como sendo o ramo do Direito
Civil que tem como conteúdo o estudo dos seguintes institutos: a) casamento; b) união estável; c) rela-
ções de parentesco; d) filiação; e) alimentos; f) bem de família; g) tutela, curatela e guarda e h) novas
famílias.
O Direito de Família pode ser dividido em Direito Existencial (centrado na pessoa humana, com
natureza de ordem pública e, portanto, de normas cogentes – não podendo ser afastadas pelas partes); e
Direito Patrimonial (centrado no patrimônio, com normas de ordem privada, portanto dispositivas –
podendo ser afastadas pelas partes).
Flávio Tartuce ilustra dizendo que é nulo o contrato de namoro nos casos em que existe entre as
partes envolvidas uma união estável (Art. 166, VI, CC), eis que a parte renuncia por meio desse contrato
e de forma indireta a alguns direitos essencialmente pessoais, como é o caso do direito a alimentos. Por
outra via, é válido o contrato de convivência, aquele que consagra outro regime para a união estável que
não seja o da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC).

1.1.2. A família
A família é fenômeno cultural, e não jurídico. Dizer isso é realçar que a concepção de família não
pode ser estritamente biológica. O conceito de família é construído a partir de valores sociais, não neces-
sariamente jurídicos.
Muito mais do que uma concepção jurídica, família é possibilidade de convivência. E o direito ha-
verá de regulamentar a família a partir das diferentes possibilidades de convivência.
Atualmente duas leis federais apresenta conceitos legais de família:
a) Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha, em seu art. 5º, inciso II): “(...) compreendida como a co-
munidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços na-
turais, por afinidade ou por vontade expressa”.

637
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

b) Lei 12.010/2009 (Lei da Adoção): traz a figura da família extensa ou ampliada, que vai além da
unidade de pais e filhos, formada por parentes próximos com os quais a criança ou o adolescen-
te convivem e mantém vínculos de afinidade e afetividade (art. 25, ECA456).

1.1.2.1. Tratamento constitucional do conceito de família


A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, consagra um sistema jurídico de Direito de Famí-
lia aberto, inclusivo e não discriminatório:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mu-
lher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes.

§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo ho-
mem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitu-
cional nº 66, de 2010)

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o


planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educa-
cionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, cri-
ando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

O direito de família brasileiro, tradicionalmente, apenas reconhecia como família legítima aquela
constituída pelo sacramento do matrimônio. Também na Europa, o Direito de Família antigo era muito
influenciado pela Igreja e, durante muitos anos, coube à Igreja consagrar a família.
Hoje, o sistema constitucional pátrio, além do casamento, reconhece também como entidades fa-
miliares a união estável e o núcleo monoparental (formado por qualquer dos pais e sua prole). Desde
1988, portanto, a CR deu um passo magnífico ao reconhecer família não apenas decorrente do matrimô-
nio, trazendo um conceito aberto.

456Lei 8.069/90, art. 25: Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles
e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além
da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adoles-
cente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.”.

638
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Os conceitos de família não se esgotam apenas nesses núcleos expressamente reconhecidos como
formas de família (casamento, união estável ou núcleo monoparental). A doutrina mais abalizada (Paulo
Lôbo, Luis Edson Fachin, Maria Berenice Dias) reconhece que outros arranjos familiares, ainda que não
explicitamente previstos, merecem a devida tutela jurídica e constitucional.
Até porque seria impossível ao constituinte ou ao legislador ordinário esgotar as formas de família.
Lei nenhuma no Brasil ou no mundo poderia encerrar o conceito de família, dada sua complexidade. Ex.:
madrinha que cria o afilhado por toda vida, como se fosse seu filho. Esta não seria uma família? Ou, ain-
da, o irmão mais velho que cria o irmão menor, depois que ambos perdem os pais. Trata-se de outras
formas de arranjos familiares cunhados em torno da afetividade.
Recentemente, o próprio Supremo entendeu que, embora a família homoafetiva não seja expres-
samente reconhecida pelo constituinte, o conceito aberto adotado pelo ordenamento permite o reconhe-
cimento desse núcleo familiar.
Pelo exposto, é possível concluir, sem pretender esgotar a definição, que a família, base da socieda-
de (art. 226, da CR), é um ente despersonificado, moldado pelo vínculo da socioafetividade, dotado de
estabilidade e merecedor da tutela jurídica.
Veja que a família tem uma vocação à estabilidade. É mais densa e estruturada que um simples
namoro. Mas deve-se ter em mente que nenhum conceito encerra essa ideia por completo.
Já houve autores defendendo a tese de que a família seria uma pessoa jurídica (Savatier e Carbon-
nier), mas a doutrina costuma reconhecer superada essa tese. Por isso, diz-se que a família é um ente
despersonificado.

1.1.2.2. Principais características do moderno conceito de família

A doutrina moderna costuma reconhecer na entidade familiar três características. De acordo com
esse entendimento, a família é:
i) socioafetiva:
Isso significa que o conceito de família não é moldado pela técnica legal, mas pela afetividade.
Exemplo disso foi o reconhecimento da união estável homoafetiva, à unanimidade, pelo STF, ao julgar a
ADI 4277 e a ADPF 132.
Esta é a característica mais importante do conceito de família. Fala-se, inclusive, em princípio da
socioafetividade. Segundo ela, a técnica não pode fornecer o conceito de família, que só pode ser aferido
pela afetividade. Ou seja, o conceito de família não é aquilo que o Direito quer que seja, mas o que o afeto
determina. Assim, o afeto, enquanto valor jurídico, deve ser reconhecido pelo direito brasileiro.
ii) eudemonista:
À luz do princípio da função social, toda família deve servir de ambiência para que os seus mem-
bros realizem os seus projetos pessoais de vida e felicidade. Isso é manifestação da dignidade da pessoa
humana.

639
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O eudemonismo é uma corrente filosófica que defende que as pessoas deveriam buscar na Terra
sua felicidade. Assim, ao dizer que a família é eudemonista, significa afirmar que a entidade familiar não
pode sufocar os membros que a integram. Muitos autores falam em função social da família.
No Brasil, até 1962, a mulher era tratada como relativamente incapaz. Até 1949, os filhos havidos
fora do casamento não tinham reconhecidos quaisquer direitos em seu favor. Naquele tempo, ninguém
se preocupava com o caráter eudomonista da família, com a felicidade de cada um. O varão, homem ca-
sado, podia tudo dentro da família.
iii) anaparental:
A entidade familiar pode inclusive ser formada por pessoas que não guardem entre si estrito víncu-
lo de consanguinidade. Ex.: “parente” bem distante que cria o primo como filho seu (parente colateral
depois do 4º grau não é, para fins de direito, parente). Há, aqui, uma família.
O artigo 5º da Lei Maria da Penha consagra essas características modernas do conceito de família,
especialmente a anaparentalidade. Menciona como unidade doméstica, para efeito de proteção da lei, a
família formada fora do vínculo de consanguinidade, integrando ao conceito de unidade familiar aquelas
pessoas “agregadas”:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qual-
quer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de


pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou
se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

1.2. Paradigmas do direito de família

A partir da concepção de família exposta no item “1.1” acima, é possível construir os paradigmas do
direito de família.

1.2.1. Paradigmas da família no Código Civil de 1916


A família era matrimonializada (sempre oriunda do casamento), patriarcal (o pai era o chefe da
família), hierarquizada (todos deviam obediência ao homem, daí o nome: “pátrio poder”), heteroparental
(se oriunda do casamento, pressupunha diversidade de sexos) e trazia consigo uma concepção somente
biológica (somente os filhos biológicos tinham proteção, a qual não era a mesma conferida aos adotivos,

640
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ou seja, havia uma categorização dos filhos em legítimos, ilegítimos e adotivos). Havia a noção de indis-
solubilidade familiar.
Esses paradigmas revelavam que, no CC/16, havia uma concepção institucional do direito de famí-
lia: ela era uma instituição jurídica e social. Essa instituição revelava a própria indissolubilidade: dissol-
vê-la era dissolver a própria sociedade.
Não havia preocupação com a dignidade da pessoa humana. A proteção era com a família, a qual
era protegida em si mesma.

1.2.2. Paradigmas da família no Código Civil de 2002


O Código de 2002, seguindo as pegadas dos arts. 226 e 227 da CR, admite novos paradigmas de
família.
A família deixa de ser única e passa a ser múltipla, plural (além do casamento, há a união estável, a
família monoparental etc.) Torna-se igualitária, democrática e hetero ou homoparental. A homoparenta-
lidade decorre da monoparentalidade. Não há a necessidade de se discutir, ao menos agora, a questão da
união homoafetiva, bastando reparar que existe a família monoparental.
A família passa a ser biológica ou socioafetiva. Como decorrência disso, cessa a categorização e pas-
sa a haver a paridade dos filhos. A família deixa de ser indissolúvel e passa a existir a dissolubilidade dos
vínculos.
O direito de família deixa de se preocupar com a família e passa a se preocupar com as pessoas que
a integram. A família deixa de ser uma instituição e passa a ser um instrumento. Descobriu-se que o di-
reito de família existe para a proteção das pessoas que as compõem, e não à proteção das famílias em si.
Ninguém tem direito por ter família. A família é quem protege as pessoas.
Como visto acima, essa concepção instrumental da família é chamada de família eudemonista: a
família serve para a busca da felicidade e para a realização pessoal do ser humano. Ou seja, a família não
é um fim em si mesmo, na medida em que ninguém precisa tem uma família para ser protegido. Quem
busca ter família está buscando sua própria realização (a felicidade). A pedra de toque do direito de famí-
lia deixa de ser a proteção da família e passa a ser a proteção das pessoas que a compõem.
Essa ideia de família instrumento estabelece que os valores que presidem o direito de família são
afeto, ética, dignidade e solidariedade. São eles que permeiam a noção eudemonista de família.
Exemplo dessa concepção encontra-se na Súmula 364 do STJ, que prevê a impenhorabilidade do
imóvel da pessoa sozinha (chamada pelo STJ de “single”):

Súmula 364 - O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel


pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

A pessoa sozinha é uma família? Ela constitui uma família de si mesma? A família envolve plurali-
dade de sujeitos (duas ou mais pessoas). A pessoa sozinha não é família de si mesma. Alguns autores ten-
taram forçar a interpretação de que haveria a família unipessoal (família de uma pessoa só). Essa con-

641
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cepção não vingou. Todavia, ainda assim, o bem daquela pessoa sozinha está protegido pelo bem de fa-
mília. É possível elastecer a proteção do direito de família às pessoas humanas.
Note que a Súmula 364 do STJ diz que a pessoa sozinha merece a mesma proteção, apesar de não
ser propriamente família. A Sumula está alicerçada, a toda evidência, na nova concepção instrumental da
família e do direito de família.

1.3. Caráter instrumental e direito de família mínimo

A partir desse caráter instrumental da família, a doutrina criou uma tese nova: o direito de família
mínimo (ou princípio da intervenção mínima do Direito de Família). Este princípio, desenvolvido por
autores como Rodrigo da Cunha Pereira, sustenta não poder o Estado invadir a esfera íntima da família,
sufocando-a ou oprimindo-a.
O Estado não pode, portanto, decidir pela família, invadindo seu espaço pessoal.
Se a família é instrumento de proteção da pessoa humana (meio, e não fim), deve-se valorizar a au-
tonomia privada. Essa valorização da vontade da pessoa humana traz a reboque a intervenção mínima do
Estado. É algo bastante parecido com a intervenção mínima do Direito Penal.
A intervenção mínima do Estado nas relações de família é apelidada de “direito de família míni-
mo”. Na medida em que a família é um instrumento de realização da pessoa humana, nada mais justo
que respeitar a autonomia privada.
Exemplos da aplicação da tese do direito de família mínimo:
i) art. 1.639, § 2º, do CC (permite a mudança do regime de bens no casamento):

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus
bens, o que lhes aprouver. (…)

§ 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motiva-


do de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos
de terceiros.

O STJ vem entendendo que é possível a mudança do regime de bens do casamento mesmo para as
pessoas que se casaram antes do advento do CC/02 (REsp 730.546/MG).
ii) EC 66/2010 (abolição dos prazos para o divórcio):
As pessoas ficam casadas ou não em razão da sua vontade, e não em razão da imposição de prazos
pelo Estado.
iii) Lei 12.344/2010 (alterou a idade para o regime de separação obrigatória, de 60 para 70 anos):
Ainda que tenha havido uma evolução, perceba que ainda se trata da intromissão do Estado da au-
tonomia privada, uma violação da tese do direito de família mínimo.
iv) concordância do adolescente com a colocação em família substituta:

642
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A tese do direito de família mínimo evoluiu tanto que está presente inclusive no ECA (ganhou al-
cance infanto-juvenil). Assim, deve-se respeitar a autonomia privada até mesmo nas relações que envol-
vem criança e adolescente. Ou seja, houve maior valorização da vontade da criança e do adolescente.
Exemplo disso é a nova redação do art. 28 do ECA, que exige o consentimento do maior de doze
anos de idade para sua colocação em família substituta:

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, indepen-
dentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.

§ 1º Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe inter-
profissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as impli-
cações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada. (Redação dada pela Lei nº
12.010, de 2009)

§ 2º Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhi-
do em audiência. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)

v) art. 226, § 7º, da CR:

Art. 226 (...) § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coerci-
tiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

O planejamento familiar, por dicção constitucional, não pode ser imposto.


vi) flexibilização do dever de fidelidade, por decisão do casal:
Embora o Estado coloque a fidelidade como um dever, ele não pode impor que o casal não possa
abrir mão dela. Assim, se houver um acordo de ambos nesse sentido, o Estado nada pode fazer para im-
pedir.

1.4. Direitos e garantias fundamentais aplicáveis às relações de fa-


mília

Ao tratarem dos princípios constitucionais do direito de família, vários autores citam diversos prin-
cípios que, na verdade, são universais, fundamentais a todas as relações jurídicas (ex.: dignidade e soli-
dariedade).
No RE 201.819/RJ, o STF consagrou a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Trata-
va-se de uma associação (privada) cujo estatuto previa procedimento de expulsão de associado. Na forma
do estatuto (ou seja, da relação privada), o associado foi expulso. Judicialmente, ele alegou que não teria
havido o respeito a garantias constitucionais. O STF concluiu que deve haver a aplicação direta de direi-
tos fundamentais às relações privadas.

643
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, se o direito de família disciplina uma relação privada, via de consequência incidem os direi-
tos e garantias fundamentais (dignidade humana, solidariedade social). Todavia, nem por isso se pode
dizer que sejam princípios específicos do direito de família, mas princípios genéricos, que incidem em
toda e qualquer relação jurídica.
A partir disso, conclui-se que se os direitos e as garantias fundamentais incidem nas relações de
família (que são privadas), consequentemente, é possível afirmar que boa-fé objetiva e função social (que
têm pano de fundo nas garantias fundamentais) também se aplicam no direito de família.
O art. 1.642, V, do Código Civil, por exemplo, prevê a cessação do regime de comunhão de bens pe-
la separação de fato do casal há mais de cinco anos:

Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livre-
mente: (…)

V - reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge
ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes,
se o casal estiver separado de fato por mais de cinco anos;

A previsão da comunhão no caso de separação de fato ofende claramente a boa-fé objetiva. Aquele
que, separado de fato, adquire imóvel sem o esforço comum do outro não pode ter o bem partilhado com
o ex-cônjuge, sob pena de ofensa à boa-fé.
A questão se agrava no caso da união estável, que é admitida após dois anos de separação de fato.
Pela letra da lei, o sujeito estaria em união estável e, se amealhasse patrimônio junto com a companheira,
teria de dividi-lo com ela e a ex. Um absurdo.
Em razão disso, o STJ, no REsp 555.771/SP, mandou aplicar a boa-fé objetiva nas relações de famí-
lia, para dizer que a simples separação de fato cessa o regime de bens, por não haver mais colaboração
recíproca.
Hoje, já se fala abertamente na tese da função social da família, a qual restou consagrada no Código
Civil, em seu art. 1.513:

Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de
vida instituída pela família.

A norma é dirigida fundamentalmente ao Estado. A família serve para proteger as pessoas, preser-
vando sua autonomia. O dispositivo é a cláusula geral da intervenção mínima do Estado (o direito de
família mínimo).
Alguns autores começaram a sustentar que o art. 1.513 do CC poderia ser aplicado para fundamen-
tar o suposto direito de indenização devido pelo amante ao cônjuge traído. O TJRS rechaçou a tese, en-
tendendo que o dispositivo não pode ser aplicável nesse caso, pois o dever jurídico de fidelidade é exigí-
vel dos cônjuges, não de terceiro. O amante não pode ser obrigado a indenizar a quebra do dever de fide-
lidade do outro, por ser um dever que não lhe compete.

644
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.5. Princípios constitucionais do direito de família

Não se deve olvidar a importância do estudo dos princípios. Segundo Canotilho, a norma jurídica é
igual a norma-regra mais norma-princípio. O pano de fundo (a mensagem) dessa fórmula é de que todo
princípio tem força normativa. Se é assim, todo princípio vincula, obriga.
Até bem pouco tempo atrás, o art. 4º da LINDB deixava subentendido que os princípios não ti-
nham força normativa, mas natureza de meras recomendações (seriam meros conselhos):

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito.

Por conta da colaboração que o direito constitucional deu à teoria geral do direito, passou-se a en-
tender que os princípios têm força normativa e, em razão disso, deveriam ser estudados. E mais, que o
eventual conflito entre norma-princípio e norma-regra deveria ser resolvido em favor daquela.
Os arts. 226 e 227 da CR estabelecem os princípios que serão estudados a seguir. Não constam des-
ses dispositivos dois, listados por Maria Berenice Dias: monogamia e afeto. Seriam eles princípios consti-
tucionais do direito de família? Monogamia não é princípio constitucional (“para ser sincero, nem é prin-
cípio”).
Regra é norma de conteúdo fechado. Princípio é norma de conteúdo aberto. Logo, na regra a solu-
ção jurídica é apriorística. No princípio, casuística. Diante dessa diferenciação, percebe-se que monoga-
mia é regra, não princípio (não dá para ser “meio” monogâmico). De antemão (aprioristicamente) já se
sabe que não é possível casar-se duas vezes ao mesmo tempo. Assim, a monogamia é regra (implícita) do
Código Civil (e não da CR).
Não se está a dizer que direito de família brasileiro não seja monogâmico. Somente que a monoga-
mia é regra, não princípio.
No que concerne ao afeto, segundo Chaves, ele também não seria princípio constitucional. Caso
contrário, considerando que os princípios têm força normativa, as pessoas poderiam se ver obrigadas a
dar afeto às outras (afeto exigível juridicamente), o que para o autor é um absurdo.
A jurisprudência vinha entendendo que o afeto seria um valor jurídico não exigível (não teria natu-
reza principiológica, ainda que esteja presente nas relações de família). No RE 567.164/MG e no REsp
514.350/SP, STF e STJ consagraram que a negativa de afeto não ensejaria indenização por dano moral. A
posição do STJ mudou, conforme se verificará.
Para Chaves, afeto/amor/carinho dá quem tem. Não parece que seja possível obrigar juridicamente
um pai a gostar do filho. As pessoas são diferentes, uns mais afetuosos, outros menos. A indenização não
fará com que o pai passe a gostar do filho. Teria de ser criado um “afetômetro”, ou seja, a estipulação de
um grau médio de afeto na sociedade. Criar-se-iam “standards” afetivos, e a questão poderia chegar ao
absurdo de uma denunciação da lide ao avô, que não ensinou o pai a ser afetuoso com o filho.

645
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como se verificará adiante (tópico “1.6”), a questão não e pacífica na doutrina. Há autores que sus-
tentam entendimento contrário, como Pablo Stolze e Giselda Hironaka, fundamentados na tese segundo
a qual o afeto teria natureza de princípio.

1.5.1. Princípio da proteção da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF)
Inicialmente assevera Flávio Tartuce tratar-se do que se denomina princípio máximo, ou super-
princípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de prote-
ção da pessoa humana é que está em voga, atualmente, falar em personalização, repersonalização e des-
patrimonialização do Direito Privado.
Nesse sentido, nas palavras de Kant, a dignidade da pessoa humana é aquilo que a pessoa é como
ser racional, considerando- se um fim em si mesmo. A pessoa humana será sempre fim, e nunca
meio, de modo que não se admite sua instrumentalização sob pena de lesão ao princípio.
São Exemplos de aplicação do princípio no Direito de Família:
a) Súmula 364, STJ: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o
imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”.
O fim social da Lei 8.009/1990 é a proteção moradia e da dignidade humana (art. 6º, CF3). A nor-
ma não protege um grupo de pessoas, mas A PESSOA.
b) Tese do Abandono Afetivo: É possível condenar pais a indenizarem filhos pela falta de convi-
vência? A princípio, não (REsp 757.411/MG, de 2005); mas, em entendimento recente, já se
manifestou que sim (REsp 1.159.242/SP, de 2012, com base no art. 229 da CF/1988, argumen-
tando-se que “amar é faculdade, mas cuidar é dever”).
c) Direito à busca pela felicidade, citado como paradigma contemporâneo na impactante decisão
do Supremo Tribunal Federal457 que reconheceu a igualdade entre a paternidade socioafetiva e
a biológica, bem como possibilidade de multiparentalidade, com vínculo concomitante.

1.5.2. Princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I, CF4)


A expressão “ser solidário” significa responder pelo outro, pensar no outro, cuidar do outro. A soli-
dariedade, conforme Rolf Madaleno, abrange os aspectos patrimonial, social, afetivo, moral, espiritual e
social. O princípio da solidariedade, segundo o autor, engloba “corpos, mentes e espíritos”.
Exemplo: O art. 1.694, § 2º do CC cumulado com art. 1.704, parágrafo único, CC, estabelecem que o
cônjuge culpado pode pleitear alimentos necessários (indispensáveis) do cônjuge inocente, desde que não
tenha parentes em condição de prestá-los e não tenha condições para trabalho. Há entendimento doutri-
nário no sentido de revogação desses artigos pela Emenda Constitucional n. 66.

457 (STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n.
840).

646
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.5.3. Princípio da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6.º, da CF/1988 e art. 1.596 do
CC)
Segundo Flávio Tartuce Todos os filhos, havidos ou não durante o casamento, são iguais perante a
lei, sendo vedada qualquer forma de distinção ou discriminação.
Essa igualdade engloba os filhos havidos em união estável ou em relação extraconjugal. Também
engloba os filhos adotivos, os filhos havidos de técnica de reprodução assistida heteróloga e os filhos so-
cioafetivos.
São vedadas expressões discriminatórias, como filhos “adulterinos”, “incestuosos”, “ilegítimos”,
“espúrios” ou “bastardos”. Filho é filho e ponto final.
O tema retornará em estudo mais aprofundado por ocasião do estudo da filiação e do reconheci-
mento dos filhos.

1.5.4 Princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros (art. 226, CF e art.


1.511, CC)
A igualdade entre homem e mulher foi consagrada pela CR dentro do núcleo familiar. A melhor
obra acerca do tema é a de Celso Antonio Bandeira de Melo, “O conteúdo jurídico do princípio da igual-
dade”. O autor explica que o conceito jurídico da igualdade é substancial: tratar desigualmente quem está
em posição desigual.
Ele traz a ideia de discrimen (a situação fática subjacente que justifica a desigualdade no caso con-
creto). Ou seja, existindo uma situação fática subjacente de desigualdade, há discrimen, devendo o tra-
tamento jurídico ser desigual.
Portanto, de acordo com o princípio constitucional da igualdade, nas relações de família, homem e
mulher podem ter tratamento desigual, quando houver razão para tanto. Não havendo discrímen, o tra-
tamento deve ser igual. Ex.: a Lei Maria da Penha estabelece proteção especial à mulher que sofre violên-
cia doméstica. O homem que apanha de mulher não pode invocar a proteção da lei, pois a violência fami-
liar contra o homem é pontual. Não há um histórico de homens vitimados sistematicamente no âmbito
da família.
Rogério Sanches entende que a Lei Maria da Penha é também aplicável aos transexuais e aos tra-
vestis.
Assim como há a igualdade entre filhos, como outra forma de especialização da isonomia constitu-
cional a lei reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à sociedade conjugal ou con-
vivencial formada pelo casamento ou pela união estável
Segundo Flávio Tartuce trata-se de uma especialização da igualdade entre homens e mulheres (art.
5º, inciso I, CF).
Há igualdade na chefia familiar, que antes era exercida pelo homem (o pátrio poder transformou-
se em poder familiar). Antes havia uma hierarquia, hoje uma “diarquia” ou “família democrática”.

647
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, há os artigos 1.565, CC, e 1.631, CC.


Obs.: O CPC/1973, no art. 100, previa o foro privilegiado da mulher para as ações de família. O art.
53 do CPC/2015, por sua vez, não prevê foro privilegiado da mulher e consagra o foro do guardião do
incapaz como o competente para as ações de família.

1.5.5. Princípio da não intervenção ou da Liberdade (art. 1.513, CC, e art. 1.565, §2º,
CC)
Dispõe o art. 1.513 do Código Civil Brasileiro que “é defeso a qualquer pessoa de direito público ou
direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Trata-se de consagração do prin-
cípio da liberdade ou da não intervenção na ótica do Direito de Família.
Segundo Flávio Tartuce quando se escolhe, na escalada do afeto (conceito de Euclides de Oliveira),
com quem ficar, com quem namorar, com quem noivar, com quem ter uma união estável ou com quem
casar, está-se falando em autonomia privada.
Quanto ao ato de ficar, este é o primeiro degrau da escalada do afeto, sendo certo que o STJ já en-
tendeu que tal conduta pode influenciar na presunção de paternidade, principalmente se somada à recu-
sa ao exame de DNA458.

1.5.6.Principio do Maior Interesse da Criança e do Adolescente (art. 227, caput, CF, art.
3º, ECA; arts. 1.583 e 1.584, CC).
Conforme lição de Flávio Tartuce o princípio do maior interesse da criança e do adolescente é uma
exceção ao princípio acima estudado.
No Código Civil de 2002, o princípio do maior interesse da criança e adolescente é tutelado pelos
dispositivos que tratam da guarda no poder familiar (arts. 1.583 e 1.584, CC). Como será visto, a regra é a
guarda compartilhada, nos termos das alterações promovidas pelas Leis 11.698/2008 e 13.058/2014.
Encontra previsão na Convenção de Haia, que consagra a expressão “best interest of
child/children”.

1.5.7. Princípio da Boa-Fé Objetiva (arts. 113, 187 e 422, CC)


A boa-fé objetiva é a exigência de um comportamento de lealdade dos participantes negociais em
todas as suas fases. Ela se aplica às relações de família (na relação entre cônjuges, companheiros ou entre
pais e filhos).
É reconhecida como princípio da Direito de Família por parte da doutrina: Cristiano Chaves, Nel-
son Rosenvald, Jones Figueiredo Alves, Anderson Schreiber e Fernanda Gurgel.
Nesse sentido, Flávio Tartuce aponta que o princípio tem encontrado aplicação ao direito de família
também na jurisprudência, conforme exemplos:

458 (STJ, REsp 557.365/RO, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.04.2005, DJ 03.10.2005, p. 242).

648
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Julgados estaduais nacionais têm incidido a supressio e a surrectio aos alimentos pleiteados
entre cônjuges e companheiros, concluindo por sua renúncia tácita em decorrência do seu não
exercício pelo credor em momento oportuno, entretanto a tese não vingou no Tribunal
Cidadão459.
b) Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas fun-
ções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proi-
bição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que
buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família.460
c) Finalmente, o STJ rejeitou a possibilidade da aplicação da Teoria do adimplemento substancial
para os alimentos461.

1.5.8. Princípio da pluralidade das entidades familiares

1.5.8.1. Noções gerais

O princípio da pluralidade das entidades familiares foi consagrado no caput do art. 226 da CR:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

Assim dizendo, a CR determina que qualquer família tem especial proteção do Estado, e não so-
mente a oriunda do casamento. O princípio da pluralidade é norma jurídica de inclusão, não de exclusão.
Com isso, ele estabelece proteção a diferentes tipos de família.
O princípio da pluralidade também foi consagrado pelo ECA, no art. 28, ao fazer referência a três
diferentes tipos de família: natural, estendida (ampliada) e substituta. Natural é a que se forma entre
duas pessoas (por casamento ou não) e a sua prole. Família não pressupõe a existência de filho, mas
menciona-se prole, aqui, pois se trata do conceito do ECA (que envolve a existência de uma criança ou
adolescente). Ampliada é a composta por duas pessoas, mais os parentes de cada uma dessas pessoas
(avó, tio etc.). Substituta é a formada por guarda, tutela ou adoção.
O art. 226 da CR também faz menção a três diferentes tipos de família:
i) família casamentária (matrimonializada): §§ 1º e 2º;
ii) família convivencial (união estável): § 3º;
iii) família monoparental (comunidade de ascendentes e descendentes): § 4º
Surge a dúvida: o rol do art. 226 é taxativo? Como ressaltado, doutrina e jurisprudência são unâ-
nimes em reconhecer que o rol é meramente exemplificativo. Até porque os parágrafos devem ser inter-
pretados de acordo com o caput, que se refere a toda e qualquer família, e não a uma específica.

(AgInt nos EDcl no REsp 1.590.554/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA
459

TURMA, julgado em 04/08/2016, DJe 09/08/2016).


460 (STJ, REsp 1.087.163/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.08.2011, DJe 31.08.2011).
461 (STJ, HC 439.973/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel para Acórdão Ministro ANTONIO

CARLOS FERREIRA, Quarta Turma, julgado em 16/08/2018, DJe 04/09/2018).

649
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em outras palavras, existem novas entidades familiares além do rol constitucional, chamadas de
“Novas Famílias” por Maria Berenice Dias, que merecem especial proteção do Estado (avô e neto, tio e
sobrinho, irmão e irmã etc.). A família formada por dois irmãos é chamada de “anaparental”.
Se o conceito de família é aberto, há outros tipos de família, os quais vêm sendo designados de fa-
mílias sociológicas ou entidades parafamiliares. Também devem ser protegidas pelo Estado.
Nesse sentido é reconhecida a Família Pluriparental ou “Mosaico”, como aquela que tem várias ori-
gens, decorrendo de famílias reconstituídas. Exemplo: homem solteiro, que vive com as três filhas de três
relacionamentos distintos, passa a viver em união estável com mulher que tem três filhas também de re-
lacionamentos distintos, vivendo todos juntos com os filhos em comum do casal. “Os meus, os teus, os
nossos filhos” (Rolf Madaleno).

1.5.8.2. Aspectos controvertidos acerca do princípio da pluralidade das entidades fa-


miliares

1.5.8.2.1. Pluralidade de entidades familiares e união homoafetiva

União homoafetiva é família? Duas pessoas do mesmo sexo constituem unidade familiar? Carlos
Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz, historicamente, sustentavam que não, que se tratava de mera
sociedade de fato, e, portanto, disciplinadas pelo direito obrigacional.
Essa posição há muito já não era majoritária na doutrina (Maria Berenice Dias, Gustavo Tepedino,
Paulo Lobo), que passou a sustentar o caráter familiar da união homoafetiva (que será encontrada tam-
bém como união homoerótica). Nesse sentido: STJ REsp 820.475/RJ (reconhece, em 2008, a possibili-
dade jurídica do pedido em ação declaratória de entidade familiar homoafetiva); TSE REsp Eleitoral
24.564/PA (união homoafetiva como entidade familiar para fins de inelegibilidade eleitoral do art. 14 da
CR); e STF ADI 4277 (com efeitos erga omnes, reconhece a natureza de entidade familiar das uniões
homoafetivas, Rel. Carlos Ayres Britto).
O STF não disse, em momento algum, que união homoafetiva é união estável ou casamento. Disse
que se trata de entidade familiar protegida pelo direito de família. Todavia, teve de disciplinar tais uni-
ões. Com base no art. 4º da LINDB (quando a lei for omissa o juiz decide por analogia), entendeu que,
sendo entidade familiar, seria caso de analogia com a entidade mais parecida com ela, disciplinada em
lei: a da união estável. Assim, se o STF mandou aplicar as regras da união estável por analogia, ele disse
que não é união estável. Caso contrário, não seria necessária a aplicação analógica das regras.
Sendo aplicada toda a disciplina da união estável, a união homoafetiva gerará todos os efeitos pes-
soais e patrimoniais daquela (alimentos, herança, nome etc.)
Veja que uma daquelas regras é justamente a possibilidade de conversão da união em casamento,
através de pedido dirigido ao juiz (art. 1.726 do CC):

Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companhei-

650
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ros ao juiz e assento no Registro Civil.

Assim, o atual panorama sobre o tema é que com a decisão do STF na citada ADPF, passou a ser pos-
sível o casamento homoafetivo.
A ideia é que decisão do STJ de 2011, REsp 1.183.378/RS, entendeu que, se é possível converter a
união estável homoafetiva em casamento, também é possível efetuar o casamento direto no cartório.
A partir de 2012, Normas de Corregedorias dos Tribunais de Justiça passaram a regulamentá-lo.
Em 2013, surgiu a Resolução 175 do CNJ, de 2013, prevê: "Art. 1º É vedada às autoridades compe-
tentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casa-
mento entre pessoas de mesmo sexo. Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comuni-
cação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis".

1.5.8.2.2. Pluralidade de entidades familiares e concubinato

É possível haver pluralidade concomitante de famílias? Concubinato é qualificado como família?


O art. 1.727 do Código Civil responde que não:

Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato.

Para o Código, o concubinato não é família, mas mera sociedade de fato, gerando efeitos tão so-
mente obrigacionais, a serem reclamados pelo concubino (amante) em vara cível, sem a intervenção do
MP. Concubino não tem direito de família.
Todavia, o art. 1.727 não estaria em rota de colisão com o princípio constitucional da pluralidade de
famílias? O STF, no RE 397.762-8/BA, e o STJ, no Ag em AI 1 130.816/MG, estabeleceram que o concu-
binato não é família, mas sociedade de fato, por não merecer o tratamento de união estável.
O MP/GO exigiu isso em prova. Para Chaves, há uma hipótese em que o concubinato assumiria ca-
ráter familiar: no caso de boa-fé. Nesse caso, caracterizar-se-ia uma união estável putativa (ou de boa-fé),
que ocorre quando a terceira pessoa ignora a existência da família anterior. Essa hipótese é possível no
caso, por exemplo, de motoristas, caminhoneiros. Esta tese conta com o apoio do TJ/RS, que construiu a
expressão “triação”, ao invés de “meação” (já que haverá a divisão do patrimônio em três).
A boa-fé de que se trata é a subjetiva. Mas poderia ser muito bem a objetiva, no caso em que todos
sabem e aceitam a situação. Em ambos os casos haveria a união estável putativa.

1.5.8.2.3. Pluralidade de famílias e famílias reconstituídas ou recompostas

As famílias reconstituídas ou recompostas são também chamadas de “ensambladas” (expressão es-


panhola de matriz francesa) ou “mosaico”.
Nelas, uma pessoa, que já tem filhos, se une a outra, que também já tem filhos, e têm novos filhos.
Haveria família na relação jurídica de cada um dos cônjuges/companheiros e os parentes do outro? O

651
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Código Civil tratou timidamente das famílias recompostas. Para ele, as famílias recompostas somente
produzem efeitos em relação a três questões:
i) caracterização de parentesco por afinidade (art. 1.595):

Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinida-
de.

§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do
cônjuge ou companheiro.

§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união está-
vel.

O parentesco por afinidade ocorre tanto nos casamentos quanto nas uniões estáveis, hetero ou ho-
mossexuais.
ii) impedimento matrimonial (art. 1.521, II, do CC):

Art. 1.521. Não podem casar: (...)

II - os afins em linha reta;

Na linha reta, o impedimento matrimonial não se dissolve nunca, nem pela morte, nem pelo divór-
cio.
iii) exclusividade no exercício do poder familiar (art. 1.636 do CC):

Art 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde,
quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem
qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.

Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe solteiros
que casarem ou estabelecerem união estável.

O Código Civil não previu alimentos ou herança nas famílias recompostas. Assim, aquele que preci-
sar de alimentos não pode exigi-los do parente por afinidade. Também não tem direito de herança o pa-
rente por afinidade se o falecido não deixar herdeiros. Ignora-se que o fundamento do direito de família é
o princípio da solidariedade.
A despeito da ausência de previsão do Código, há três outros efeitos jurídicos decorrentes do paren-
tesco por afinidade:
i) benefício previdenciário (art. 217, II, “a”, da Lei 8.112/1990):

Art. 217. São beneficiários das pensões: (...)

II - temporária:

a) os filhos, ou enteados, até 21 (vinte e um) anos de idade, ou, se inválidos, enquanto durar a
invalidez; (...)

652
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O Estatuto dos Servidores Públicos da União estabelece a possibilidade de concessão de benefício


previdenciário para o enteado.
ii) retomada do imóvel pelo locador para uso da família reconstituída:
No julgamento do REsp 36.365/MG, o STJ mandou aplicar a regra da possibilidade de retomada
do imóvel alugado para pessoa de família reconstituída. Ex.: o sujeito pode retomar o imóvel alugado
para seu enteado ou sua sogra morar.
iii) Lei 11.924/2009 (Lei Clodovil):
A norma prevê a possibilidade de acréscimo do sobrenome do padrasto ou da madrasta, desde que
haja expresso consentimento dele (ou dela). Detalhe: exige-se decisão judicial (competência da Vara de
Registros Públicos), ouvido o MP.
Veja que não é necessário o consentimento do dos pais, por ser o nome um direito da personalida-
de. Contudo, em se tratando de criança ou adolescente, os pais devem ser citados, pois o art. 1.105 do
CPC estabelece que, nos procedimento de jurisdição voluntária, devem ser citados todos os interessados,
e o pai (ou a mãe) tem interesse jurídico em saber que seu filho mudará de nome:

Art. 1.105. Serão citados, sob pena de nulidade, todos os interessados, bem como o Ministério
Público.

Se, citado, o pai ou a mãe se recusar à inserção do nome do padrasto ou madrasta, tal recusa não
vinculará o juiz, que poderá acatá-la, se motivada.

1.5.9. Princípio da facilitação da dissolução do casamento e da união estável


O princípio da facilitação da dissolução do casamento e da união estável está consubstanciado no
art. 226, § 6º, da CR:

Art. 226 (...) § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela
Emenda Constitucional nº 66, de 2010)

Casar e não permanecer casado revelam o verso e o reverso da mesma moeda, ou seja, aspectos de
um mesmo direito, que é a liberdade afetiva. Assim, à liberdade de casar corresponde seu espelho inver-
tido, que é a liberdade de não ficar casado.
Ao prever essa liberdade de não ficar casado, a EC 66/2011 produziu três efeitos:
i) abolição dos prazos para o divórcio (acabando com a diferença entre divórcio direto e divórcio-
conversão);
ii) impossibilidade de discussão de culpa pelo fim do casamento (não há interesse público na causa
da ruptura do casamento):
Observe que continua possível discutir culpa para fins de modificação da natureza dos alimentos e
para fundamentar eventual pedido de indenização, mas não para a discussão acerca da causa da ruptura.
iii) extinção do instituto da separação:

653
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Doutrina e jurisprudência hoje caminham no sentido da extinção da separação. Até porque, se a


separação (que possui prazo) tivesse permanecido, haveria a estranha situação em que não seria necessá-
rio prazo para o divórcio (o mais), mas haveria para a separação (o menos).

1.5.10. Princípio da responsabilidade familiar


A responsabilidade familiar é disciplinada pela Lei 9.263/1996, que regulamenta o planejamento
familiar.
A lei prevê a possibilidade de intervenção cirúrgica para fins de planejamento familiar. A pessoa
precisa possuir mais de 25 anos ou ter mais de dois filhos, sendo capaz. Sendo incapaz, somente poderá
fazer a cirurgia com autorização judicial.
O princípio vem gerando a polêmica acerca da existência do direito ao parto anônimo: o direito que
se reconhece à gestante de entregar o filho à Vara da Infância e da Juventude e garantir o seu anonimato.
Os arts. 8º e 13 do ECA, implicitamente, admitem o parto anônimo, ao permitirem que a mulher
entregue o recém nascido e tenha direito a tratamento médico e psicológico, pelo SUS:

Art. 8º É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perina-
tal. (...)

§ 4º Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no perí-


odo pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado
puerperal. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

§ 5º A assistência referida no § 4º deste artigo deverá ser também prestada a gestantes ou mães
que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009)

Art. 13. (...) Parágrafo único. As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus
filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

1.6. Afeto como valor jurídico

Primeiramente, é importante desfazer o mito de que afeto é sinônimo de amor. Afeto é conceito
psicanalítico. Vem do verbo “afetar”, “interferir”. Logo, afeto é conviver. Oposto ao afeto é a indiferença,
a ausência de convívio.
Segundo a doutrina majoritária, o afeto é um princípio jurídico (Maria Berenice Dias, Maria Helena
Diniz, Paulo Lôbo, Luiz Edson Fachin, Giselda Hironaka e Ricardo Calderon). A jurisprudência superior
tem acompanhado essa ideia. Nesse sentido, o STJ se posicionou no REsp 1.026.981/RJ e o STF, no RE
898.060/SC (repercussão sobre a parentalidade socioafetiva):

654
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nesse sentido, trabalha-se com o afeto como valor jurídico de duas frentes: abandono afetivo e afe-
to como formador de vínculos jurídicos.

1.6.1. Abandono afetivo (abandono paterno-filial ou teoria do desamor)


O STJ enfrentou a questão acerca do cabimento de indenização por danos morais em razão do
abandono paterno-filial em dois momentos: em 2005, no REsp 757.415/MG; em 2012, no REsp
1.159.242/SP. As decisões são absolutamente diversas.
Em 2005, o STJ tratou do caso de Alexandre Fortes, que acabou ficando famoso. Um menino cujos
pais que se divorciaram, tendo o pai constituído nova família. Pagava pensão religiosamente, mas se ne-
gava a conviver com o filho. Era um ótimo provedor e um péssimo pai. Discutiu-se o cabimento de inde-
nização e o STJ concluiu que não caberia indenização pelo abandono, por inexistência de ato ilícito. Afi-
nal, conclui o Min. Fernando Gonçalves que ninguém seria obrigado a amar. Veja a confusão de amor
com afeto.
Em 2012, o mesmo tribunal, com nova formação, decidiu no caso da Luciane que não se discute
amor, mas convivência, e direito de convívio é na verdade direito/dever. Logo, o pai tem o dever de con-
vivência e não pode a ele se furtar. A quebra do dever de convivência, portanto, gera direito a indenização
por danos morais. O TJSP havia dado R$ 400 mil; o STJ reduziu para R$ 200 mil a indenização (Nancy
Andrighi).
O caso da Luciane ainda era diferente, pois era uma filha havida fora do casamento. Não reconhe-
cida, procurou o pai, fez DNA e ele, na sentença, continuou negando a paternidade (mesmo depois do
reconhecimento). Nesse julgado, o Min. Benetti, trouxe outro fato para condenar o pai: tratamento desi-
gual entre os filhos, de acordo com sua origem. O caso é emblemático, por representar a mudança de
visão do STJ sobre o tema.
O TJSP, antes mesmo da decisão, já havia condenado um pai por abandono paterno-filial: uma
menina, de origem judaica, tem um pai que se divorcia da mãe, se casa novamente, frequenta a mesma
sinagoga da filha e passa a rechaçá-la e a constrangê-la na frente de todos do convívio social-religioso,
causando nela diversos problemas, inclusive de ordem psiquiátrica.

1.6.2. Afeto como formação de parentalidade


Trata-se do chamado “parentesco socioafetivo”. A tese surge a partir do texto “Desbiologização da
paternidade”, de João Batista Vilela, em que o autor prega que ser pai não é contribuir com material ge-
nético, mas criar como pai. Ou seja, estabelecer o vínculo paterno.
A ideia de Vilela se traduz na fórmula: ser pai é uma função. Não depende da biologia (Congresso
do IBDFAM).

655
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce observa que o Enunciado 256 da II Jornada de Direito Civil462 reconhece, doutrina-
riamente, a parentalidade socioafetiva como modalidade de parentesco civil.
Ademais, a Parentalidade Socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, com base em três cri-
térios:
i. Tratamento (tractatio ou tractatus): relativo ao fato de que, entre si e perante a sociedade,
as partes se relacionam como se fossem unidas pelo vínculo de filiação, ou seja, como pais e
filhos.
ii. Reputação (reputatio): constitui uma repercussão desse tratamento, constituindo o reco-
nhecimento geral da situação que se concretiza socialmente.
iii. Nome (nominatio ou nomen): presente quando a situação fática revela que o declarado fi-
lho utiliza o sobrenome do seu suposto pai. Alerte-se que é levado em conta não somente o
nome registral civil, mas também o nome social
Há duas principais questões enfrentadas pelo STJ sobre o afeto como formador de vínculos jurídi-
cos:
i) o sujeito sabe que não é pai biológico, mas opta por ser pai de filho biológico alheio (tecnicamen-
te é crime: adoção à brasileira). Num dia, ele briga com a mãe e ajuíza ação negatória. Nessa hipótese, o
STJ é pacífico no sentido de inadmitir a negatória. Primeiro em razão da inexistência de arrependimento
(paternidade não admite devolução); segundo porque a verdade biológica é menos importante que a so-
cioafetiva (REsp 1.244.957/SC).
ii) o homem é enganado, acreditando ser pai quando não é463. Este ganha. O STJ entende que para
o enganado a paternidade nasceu com erro, pois se ele soubesse não teria registrado a criança. Nessa
hipótese, o STJ dá procedência ao pedido e faz prevalecer a verdade biológica (REsp 878.954/RS).
A parentalidade socioafetiva e sua extensão como formadora de vínculo está para ser analisada pelo
STF. Um advogado (Rodrigo Toscano) levou o tema por conta de uma decisão contrária do STJ, e atual-
mente, no plenário virtual, há aceitação pela maioria da repercussão geral (Fux e a maioria): Repercus-
são Geral no RE com Ag. 692.186/PB.

1.7. Família homoafetiva

1.7.1. União estável homoafetiva

462 Enunciado 256, II JDC: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de

parentesco civil.”.
463 Vale observar que o STJ tem confirmado as indenizações concedidas pelos TJ´s aos homens que cobram
da mãe danos morais em decorrência de haverem os enganado e criado filho alheio. Mas veja que a indenização é
contra a ex-mulher. Nada tem contra o filho.

656
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A união homoafetiva foi decidida na ADPF 132/RJ, movida pelo Governador do Rio de Janeiro,
Sérgio Cabral. Discutia-se o seguinte: por Decreto Estadual, o Governador concedeu aos casais homoafe-
tivos benefícios previdenciários equivalentes aos dos casais heterossexuais. Quando isso ocorreu, o MP
começou a ingressar com ações contra tais benefícios, dizendo que o Estado estava perdendo dinheiro
(desviando verbas) para quem não era família. Pretendia a cessação dos benefícios previdenciários esta-
duais aos casais homoafetivos.
O TJRJ, por maioria de Câmaras, começou a cassar os benefícios. O Governador então remeteu a
questão ao STF. Foi uma briga de poder entre o Executivo e o TJ do Rio de Janeiro. O STF, à unanimida-
de de votos, entendeu possível a constituição de família homoafetiva por união estável. Nada foi dito
acerca do casamento.
Veja que o art. 226, § 6º, da CR diz “união entre homem e mulher”. Como o STF chegou a essa ori-
entação? Resumidamente, o STF se baseou em três ideias básicas para sua decisão:
i) o modelo de família adotado pela CR não é numerus clausus:
A CR exemplifica famílias, mas não diz o que seja apenas família. Caso contrário, família seriam
apenas as decorrentes de casamento, união estável e as monoparentais. Aliás, se o STF dissesse que a CR
limita o número de famílias, isso significaria um retrocesso às Ordenações Filipinas (400 anos atrás).
ii) a interpretação literal das expressões “homem” e “mulher” não admitiria o reconhecimento de
homem/homem e mulher/mulher, mas, como se interpretam as expressões dentro de um sistema aberto,
exemplificativo, homem e mulher se encaixam numa interpretação extensiva do texto, que não diz “ape-
nas” ou “somente” homem e mulher. Ele apenas exemplificou, não limitou;
iii) se a CR admite e respeita liberdade de raças, credo e de orientação sexual, ninguém é menos
pessoa humana por ser homossexual:
Portanto, a liberdade de orientação sexual tem de ser respeitada. Se o STF tivesse dito que a união
homoafetiva não era família, estaria dizendo que quem tem orientação homossexual seria menos pessoa
humana do que quem não tem. Ou seja, seria condená-los a nunca terem família, por não serem iguais à
maioria heterossexual. A preservação do direito à diferença é um dos fatores que conduziram à decisão.
Detalhe: a decisão é vinculante, obrigando de baixo a cima.
Veja que até aqui não se falou do casamento.

1.7.2. Casamento homoafetivo


Pessoas do mesmo sexo podem se casar? Esse assunto não foi tema da ADPF.
Historicamente, sempre se entendeu que não existe nulidade sem prévia cominação legal. Com ba-
se nesse ensinamento, questionou-se, à luz do CC francês, se seria nulo o casamento homoafetivo, por
inexistência de regra expressa cominando nulidade. O autor alemão Zachariae Von Linghental (1850),
criador dessa teoria da nulidade, respondeu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria inexis-

657
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

tente. Ele e todos os franceses do século XIX seguiram esse posicionamento. E o que existe não é válido
nem inválido. Está fora do ordenamento jurídico.
Toda a doutrina brasileira clássica (Orlando Gomes, Silvio Rodrigues, Maria Helena) repetiu essa
certeza inconteste.
Problema prático: duas mulheres, no RS, pretenderam se casar. Não conseguiram decisões favorá-
veis em primeira e segunda instâncias. No REsp 1.183.378/RS (leitura recomendada), o STJ faz uma lon-
ga preleção sobre duas questões: i) não há expressa proibição no sistema de casamento homoafetivo; ii)
(parte criticada) um país democrático é aquele que protege suas minorias. Aquele que não o faz, segundo
o Ministro Salomão, só é democrático “no nome”, pois democracia significa proteger diferenças. Esperar
que o Congresso Nacional, que somente cuida de interesses majoritários (porque eleito pela maioria)
proteja a minoria é simplesmente exigir algo que nunca ocorrerá. Logo, conclui o Ministro, cabe aos três
Poderes a proteção das minorias. Não há monopólio de nenhum, podendo a proteção ser feita por deci-
são judicial. Portanto possível o casamento entre as duas mulheres (seria dar direitos a uma minoria ig-
norada). Alguns chamaram a decisão de ativismo judiciário. Simão chama de proteção das minorias.
Mas era um precedente sem força vinculante. O problema do precedente é que causa fissura na re-
presa. A partir dele, vários estados da Federação passaram a mudar suas normas das Corregedorias, e
passaram a admitir, por norma dessa natureza, casamento homoafetivo, obrigando os registros civis a
celebrarem tais casamentos: BA, PI, AL, SE, PB, SP, PR, MS e ES. Nos demais, alguns toleravam (PE) e
outros vetavam (RJ).
O problema era a diferença de competência territorial. As pessoas passaram a falsificar documen-
tos para poderem casar. Até que veio, em maio de 2013, a pá de cal temporária da questão: a Resolução
175 do CNJ, obrigando todos os registros civis do Brasil a celebrarem casamentos homoafetivos, sob
pena de punição perante a Corregedoria.

2. Casamento
2.1. Conceito

Nos termos do art. 1.511 do CC, lembrando a doutrina de Van Wetter, pode-se definir o casamento
como uma instituição oficial, solene/formal que firma uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, na
perspectiva do princípio constitucional da igualdade:

Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e
deveres dos cônjuges.

Segundo Flávio Tartuce, o casamento é a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo
Estado, formada com o objetivo de constituição de uma família e baseado em um vínculo de afeto.
A própria lei, ao definir casamento, faz referência ao princípio da isonomia. Isto porque, historica-
mente, tanto no direito brasileiro quanto estrangeiro, a mulher sofreu com o tratamento dado a ela pelo

658
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Direito de Família. Clóvis Bevilaqua, há 100 anos, já dizia que o casamento não poderia significar a de-
gradação jurídica da mulher, tamanho o sofrimento que a ela era imposto.
O CC/2002, afinado à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tratou de consagrar o
princípio da igualdade no conceito de casamento, para acabar de vez com essa degradação sofrida pela
mulher.

2.2. Natureza Jurídica do casamento

2.2.1. Pablo Stolze


A doutrina se digladia muito sobre a natureza jurídica do casamento. Pablo considera que Orlando
Gomes é o autor que mais detalha o tema.
Há duas correntes básicas que tratam da natureza jurídica do casamento: i) a publicista; e ii) a pri-
vatista.

2.2.1.1. Corrente publicista

A corrente publicista sustentava que o casamento seria um instituto de direito público, em outras
palavras, um ato administrativo (porque praticado com a presença da autoridade celebrante). Esta, no
entanto, é uma corrente superada. Embora as normas que disciplinam o casamento sejam cogentes/de
ordem pública, isso não significa que o casamento em si seja um instituto de direito administrativo (ora,
o CC/2002 está recheado de normas de ordem pública).

2.2.1.2. Corrente privatista

Para a corrente privatista, o casamento é um instituto de direito privado (ainda que regulado por
normas que não podem ser afastadas ao alvedrio das partes). Essa corrente subdivide-se entre os auto-
res: i) não contratualistas; e ii) os contratualistas.

2.2.1.2.1. Autores não contratualistas

Os autores não contratualistas entendem que o casamento, embora instituto de direito privado, não
é um contrato. Reunidas sob o denominador comum não contratualista, há variadas opiniões acerca da
natureza jurídica do casamento, podendo-se destacar as seguintes:
i) o casamento é um negócio complexo;
ii) o casamento é um acordo;
iii) o casamento é um ato-condição (Leon Duguit):
Ato-condição é aquele que, quando praticado, coloca a parte em uma situação impessoal. Ou seja, a
parte, ao casar, se coloca em uma situação cujas regras não pode alterar. A maioria da doutrina dá o ca-
samento como exemplo de ato-condição, embora essa seja uma ideia não aceitável.
iv) o casamento é uma instituição (Maria Helena Diniz).

2.2.1.2.2. Autores contratualistas

659
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Respeitável parcela da doutrina, desde Clóvis Beviláqua, chegando a Orlando Gomes, afirma, por
sua vez, que o casamento é um contrato especial de Direito de Família.
Claro que o casamento não pode ser comparado a um contrato qualquer, como um contrato de ali-
enação fiduciária, por exemplo. No entanto, diz-se que o casamento é um contrato, pois o núcleo dele
corresponde ao núcleo de um contrato: o consentimento das partes.
Com algumas condições específicas, o casamento pode ser anulado, tal como o contrato. Ex.: o ca-
samento pode ser anulado por erro, o que explicita sua natureza contratual.

2.2.2. Flávio Tartuce


A visão acima foi trazida pelo professor Pablo Stolze. Já para Flávio Tartuce são três as teorias que
justificam a natureza jurídica do casamento: i) institucionalista; ii) contratualista; iii) mista ou eclética.

2.2.2.1. Institucionalista
A teoria institucionalista defende que o casamento é uma instituição jurídica e social. Para esta cor-
rente, o casamento merece proteção por si só, autonomamente.
A tese é sustentada, entre outros, por Maria Helena Diniz e Rubens Limongi França, Havendo nes-
sa corrente uma forte carga moral e religiosa.

2.2.2.2. Contratualista

A teoria contratualista defende que o casamento não merece proteção por si só, mas pelas pessoas
que compõem o casamento. Para esta segunda corrente, encabeçada por Silvio Rodrigues, o casamento é
um contrato, um negócio entre as partes.
Sendo negócio entre as partes, precisa atender à vontade das partes, ao interesse recíproco. O ca-
samento é fundado na manifestação de vontade.

2.2.2.3. Mista ou eclética

A corrente mista ou eclética diz que o casamento é, a um só tempo, contrato e instituição.


Nesse sentido, é uma instituição quanto ao conteúdo e um contrato especial quanto à
formação.
Na visão de Chaves, o direito brasileiro vai adotando correntes diferentes a depender de seu estágio
evolutivo. Não se pode dizer que o direito brasileiro adota a corrente contratualista, mas que ele está con-
tratualista, neste momento.
Todavia, isso já foi diferente. No CC/16, o casamento era indissolúvel, se formava pela vontade das
partes, mas não admitia dissolução. Uma vez celebrado, o casamento, que era instituição, não mais pode-
ria ser dissolvido.
Com a EC 9/1977 permitiu-se o divórcio, mas em caráter francamente excepcional. O casamento
passou a ter natureza jurídica mista, pois era, a um só tempo, contrato e instituição jurídica e social. En-
tão, abandonou-se a ideia institucionalista e adotou-se uma concepção mista.
660
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entretanto, a Lei 11.441/07 permitiu o divórcio consensual realizado em cartório. E seguindo as pe-
gadas dessa lei, editou-se e EC 66/2010, que eliminou os prazos para o divórcio.
Nessa levada, pode-se concluir que hoje o casamento é contrato, pois é instituto que se forma e se
dissolve pela vontade das partes. Esta é a maior prova de que o casamento é atualmente contrato. É pos-
sível, inclusive, extinguir o casamento sequer com a chancela estatal. Isso prova de maneira irrefutável a
natureza jurídica de contrato do casamento.
O direito de família preocupa-se, atualmente, com a tutela das pessoas que compõem o casamento,
e não com o casamento em si. É uma tutela jurídica instrumental, na medida em que é um instrumento
de proteção das pessoas. Antes, o casamento era institucional; hoje, pode-se dizer que é instrumental. É a
chamada intervenção mínima do estado (direito de família mínimo).
Assim, no direito de família mínimo, o estado só deve intervir no casamento quando for necessário
garantir a proteção das pessoas nele envolvidas. Prova disso é a possibilidade de divórcio independente-
mente de prazo.

2.2.2.3.1. Princípios do casmento

Segundo a lição de Flávio Tartuce é mais pertinente afirmar que o casamento constitui um
negócio jurídico especial, com regras próprias de constituição e princípios específicos que, a priori,
não existem no campo contratual464:
i. Princípio da monogamia – pode ser retirado do art. 1.521, inc. VI, do CC, uma vez que não
podem casar as pessoas casadas; o que constitui um impedimento matrimonial a gerar a
nulidade absoluta do casamento (art. 1.548, inc. II, do CC). Na opinião deste autor, tal prin-
cípio continua tendo aplicação para o âmbito do casamento.
ii. Princípio da liberdade de escolha, como exercício da autonomia privada – salvo os impedi-
mentos matrimoniais, há livre escolha da pessoa do outro cônjuge como manifestação da li-
berdade individual, princípio esse retirado do art. 1.513 do CC.
iii. Princípio da comunhão plena de vida, regido pela igualdade entre os cônjuges – Retirado do
art. 1.511 do CC/2002, segundo o qual “o casamento estabelece comunhão plena de vida,
com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Tal regramento pode ainda ser
retirado do art. 1.565 do CC, ao enunciar que “pelo casamento, homem e mulher assumem
mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da famí-
lia”.

2.3. Pressupostos existenciais do casamento

464 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

661
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não obstante a utilização da teoria geral do negócio jurídico como fundamento para a análise dos
pressupostos existenciais do casamento, há peculiaridades próprias no direito de família que têm de ser
observadas.
São pressupostos (ou requisitos) existenciais do casamento: consentimento, celebração por autori-
dade materialmente competente e, ainda para alguns, diversidade de sexos.

2.3.1. Consentimento (art. 1.538, I, do CC)

Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos contraentes:

I - recusar a solene afirmação da sua vontade;

Para existir um casamento, deve haver manifestação expressa de consentimento. As partes não po-
dem ficar em silêncio ou fazer brincadeiras, sob pena de a celebração restar suspensa pela autoridade
celebrante (que é obrigada a fazê-lo). Aqui, não se aplica a máxima “quem cala consente”.

2.3.2. Celebração por autoridade materialmente competente


Alguns autores referem-se a este requisito somente como “celebração por autoridade competente”.
Pablo faz questão de acrescentar o “materialmente” competente, pois o casamento celebrado por outras
autoridades sem competência legal (material) para o ato (ex.: delegado, coronel, sargento da Polícia Mili-
tar, bombeiro, estelionatário que se passa por padre ou juiz de paz) é considerado inexistente.
A celebração de casamento por autoridade materialmente incompetente não se confunde com
aquela do casamento celebrado por juiz de paz que até então era competente materialmente, mas que se
torna incompetente territorialmente, por ato do Tribunal de Justiça, do qual ele não tinha conhecimento
(nesse caso, como será analisado, o casamento é anulável, na medida em que o vício é bem menos grave).
Logicamente, faltando à autoridade celebrante competência legal ou material para o ato, o casa-
mento será inexistente, ressalvada a hipótese prevista no art. 1.554 do CC, que consagra a boa-fé dos con-
traentes (proteção conferida pela lei aos sujeitos de boa-fé, com base na teoria da aparência):

Art. 1.554. Subsiste o casamento celebrado por aquele que, sem possuir a competência exigida
na lei, exercer publicamente as funções de juiz de casamentos e, nessa qualidade, tiver registra-
do o ato no Registro Civil.

2.3.3. Diversidade de sexos


A teoria da inexistência do negócio jurídico nasceu justamente do estudo da diversidade de sexos
no casamento, a qual sempre foi colocada pela doutrina como requisito existencial do casamento.
Todavia, o direito civil vivenciou o contexto do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo
sexo pelo STF e está presenciando a alteração de paradigma também com relação ao casamento.
Para Pablo, a decisão do STF não significou a admissibilidade do casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Não foi esse o objeto de julgamento da ADI. O STF reconheceu que a união entre pessoas do

662
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mesmo sexo é uma forma de família, merecedora da mesma proteção conferida às demais, formadas por
pessoas de diferentes sexos.
Em São Paulo, um juiz converteu em casamento a união estável entre pessoas do mesmo sexo, em
atenção à determinação constitucional no sentido de que a lei deve facilitar a conversão de uniões está-
veis em casamento. Já há diversas outras decisões, no mesmo sentido.
Como visto o CNJ editou a Resolução nº 175, determinando às serventias do país a celebração de
casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Tal Resolução está sendo questionada, via ADI, no STF.
Diante dessas questões, este terceiro requisito, que sempre foi um pressuposto existencial do ca-
samento, passa a ter de ser reanalisado.
Tradicionalmente, a diversidade de sexos é pressuposto existencial do casamento, por princípio
amplamente consagrado (Caio Mário). Inclusive, em reforço a este raciocínio, vale lembrar que, diferen-
temente da união estável, o casamento é instituto formal e que gera estado civil, recomendando, por se-
gurança jurídica, a edição de lei que passasse a admitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo,
como se deu por meio da lei espanhola de 1º de julho de 2005.
Todavia, a despeito da ausência de lei específica, como a pioneira decisão da 2a Vara de Família de
Jacareí, em São Paulo, admitiu a conversão da união estável em casamento civil, a evolução jurispruden-
cial vem superando este terceiro requisito.
Pablo não é contra a decisão do juiz de São Paulo. A conclusão é lógica. Todavia, ela não necessari-
amente significa que a jurisprudência caminhará no sentido de inadmitir este terceiro requisito, na me-
dida em que a diversidade de sexos sempre foi um pressuposto importantíssimo levantado pela doutrina
brasileira, e não é possível entender que o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo seja algo já acei-
to.
Isso porque o casamento é um procedimento formal, com habilitação, registro no Cartório de Re-
gistro Civil, Registro de imóveis, proclamas etc., e muda o estado civil das pessoas. A união estável, por
sua vez, sempre teve o traço da informalidade.
De qualquer maneira, na opinião do professor Cristiano Chaves, após o julgamento da ADI 4277, é
preciso registrar o entendimento posterior do STJ de que é possível converter união homoafetiva em ca-
samento. Assim, para ele, o elemento diversidade de sexos não mais é elemento existencial do casamen-
to. Essa decisão altera a histórica fórmula dos elementos de existência do casamento.

2.4. Capacidade para o casamento

Inicialmente, Flávio Tartuce leciona que conforme a corrente mista ou eclética, o casamento é um
negócio jurídico especial, solene e formal, pois segue regras específicas de constituição e formalidades.
Essas regras prevalecem sobre as regras da Parte Geral.
Ademais, a capacidade para o casamento não se confunde com os impedimentos matrimoniais. A
capacidade é genérica ou geral, ou seja, quem é incapaz não pode se casar com quem quer que seja; en-

663
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

quanto os impedimentos são específicos, envolvendo legitimação para o casamento e, por isso, atingem
determinadas pessoas em casos determinados.
A capacidade para o casamento é também chamada de capacidade núbil. Nos termos do art. 1.517
do Código Civil, homem e mulher podem se casar a partir dos dezesseis anos completos:

Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de
ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.

Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no parágrafo único do
art. 1.631.

Acabou a distinção de idades para o casamento entre homem e mulher, que havia no CC/16 (ho-
mem podia casar com mais de dezoito e mulher com mais de dezesseis).
A partir dos dezesseis anos completos até os dezoito incompletos, para o casamento é necessária
autorização do representante legal (pai, mãe ou tutor) ou do juiz, a depender da circunstância do caso
concreto, caso haja falta de um dos pais ou divergência.
Os arts. 1.518 e 1.519 do CC determinam que, até a data da celebração do casamento, o pai, tutor ou
curador pode revogar a autorização. E a revogação injusta poderá ser suprida pelo juiz, autorizando a
realização do casamento:

Art. 1.518. Até à celebração do casamento podem os pais, tutores ou curadores revogar a autori-
zação.

Art. 1.519. A denegação do consentimento, quando injusta, pode ser suprida pelo juiz.

Os menores de 16 anos são absolutamente incapazes para o casamento ante à alteração


trazida pela Lei 13.811/2019, que alterou a redação do art. 1.520 do Código Civil:

Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento do menor de 16 anos, ob-
servado o disposto no Art. 1.517 deste Código.

A alteração legislativa deu causou divergência na doutrina especialmente quanto à sanção caso
houvesse casamento do menor de 16 anos, sendo que:
i. Para a 1ª corrente o casamento passou a ser nulo. Posição de Cristiano Chaves Rolf Mada-
leno – art. 166, VII, 2ª parte.
ii. Para a 2ª corrente, o casamento é anulável. Posição defendida por José F. Simão, Luciano
Figueiredo, Roberto Figueiredo, Pamplona, Maria Berenice Dias, entre outros – art. 1.550,
I, CC.
Finalmente, Flávio Tartuce ressalta que há equivalência entre o art. 1.517 e o art. 3º do Código Civil,
alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Portanto, a pessoa incapaz para a prática dos atos da
vida civil em geral também será incapaz para o casamento.

664
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A pessoa com deficiência pode se casar livremente, conforme art. 6º, I, da Lei 13.146/2015 465
(EPD), não mais havendo previsão da nulidade do casamento do enfermo mental.

2.5. Tipos básicos de casamento

Existem dois tipos básicos de casamento: i) o casamento civil; e ii) o casamento religioso com efei-
tos civis (admitido pela Constituição de 1934).
Até 1890, os casamentos no Brasil eram realizados somente pela igreja. O Decreto 181/1890 de-
terminou que todo casamento passasse a ser exclusivamente civil. A Constituição de 1934, no entanto,
flexibilizou a regra, admitindo o casamento religioso com efeitos civis. Hoje, os nubentes submetem-se a
um procedimento de habilitação e o casamento assumirá uma das modalidades acima. O casamento reli-
gioso com efeitos civis tem como diferencial básico o fato de ser celebrado por autoridade religiosa (pa-
dre, pastor, líder espiritual da umbanda etc.)
O Tribunal de Justiça da Bahia, em decisão pioneira (MS 34.739-8/2005), admitiu o casamento
espírita com efeitos civis. O casamento espírita (Kardecista) até então não havia sido admitido no país.
Há quem diga que o espiritismo não seria religião. Todavia, segundo Dalmo Dallari, não há na lei requisi-
tos que determinem o que seja religião. Também não há requisitos para a caracterização de autoridade
religiosa. O espiritismo não nasceu como religião, mas desenvolveu-se no Brasil como tal (IBGE).

2.6. Formas especiais de casamento

São formas especiais de casamento: i) o casamento por procuração (art. 1.542 do CC); ii) o casa-
mento nuncupativo (in articulo mortis ou in extremis), previsto no art. 1.540 do CC; e iii) o casamento
em caso de moléstia grave (art. 1.539 do CC).
A procuração para o casamento não pode ultrapassar noventa dias (esse é o prazo de validade jurí-
dica dela). É possível de haver dois procuradores casando seus representados.
Casamento nuncupativo é aquele realizado pela pessoa que está no leito de morte, para morrer.
Não há tempo para a realização das formalidades do casamento (formalização da habilitação), nem para
chamar o juiz.
No casamento por doença grave, o nubente não tem condições de se deslocar ao local da celebra-
ção. O estado do nubente é menos grave. Dá tempo de chamar a autoridade celebrante.

2.7. Promessa de casamento, noivado ou esponsais

No passado, o noivado era considerado uma oportunidade para as partes se conhecerem melhor
(aquilatação de afinidades). Com a evolução da sociedade, vive-se numa era em que até a “ficada” restou
conceituada em ementa de julgado (REsp 557.365/RO).

465 Lei 13.146/2015, art. 6º, I: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I -

casar-se e constituir união estável”

665
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Hoje, é possível considerar noivado como a promessa de casamento que, quando injustificadamen-
te descumprida, poderá, por quebra de boa-fé objetiva, resultar em responsabilidade civil por dano mate-
rial e moral. A doutrina não diverge muito a esse respeito. Veja que não é sempre que isso ocorrerá.
Também não se trata de fim de namoro, que não possui roupagem jurídica.
Na Espanha, há um caso clássico de responsabilidade por ruptura de noivado, em que o rapaz, ao
ser perguntado se tinha vontade de casar, disse: “para ser sincero, não”. E saiu do local.
O noivo não é obrigado a se casar. Caso contrário, não haveria sentido na pergunta feita no casa-
mento. Há o direito de não se casar. Mas o exercício desse direito não pode ser abusivo. Alimentada a
firme intenção de se casar após meses e meses de preparativos, o noivo que, no dia da festa, deixa a noiva
no altar, ou diga não, injustificadamente, poderá ser responsabilizado civilmente pela expectativa que
gerou no outro (a), com quebra da boa-fé objetiva.
A jurisprudência brasileira tem mais de uma decisão admitindo a responsabilidade civil por ruptu-
ra de noivado, como se vê na Apelação Cível 0282469-5, do TJPR, bem como no próprio STJ, no REsp
251.689/RJ.

2.8. Plano de validade do casamento: impedimentos matrimoniais

2.8.1. Noções gerais


No plano da validade, ter-se-á a invalidade absoluta ou a invalidade relativa. A invalidade absoluta
são as hipóteses de nulidade, e a relativa as de anulabilidade.
Os impedimentos matrimoniais traduzem os requisitos necessários à validade jurídica do casamen-
to.
Não se pode confundir impedimento matrimonial que é proibição, com a incapacidade. Uma pes-
soa de 14 anos de idade não sofre nenhum impedimento para casar com seu namorado, mas é incapaz
para tal ato. Por outro lado, uma pessoa maior e capaz não pode casar com seu irmão.
Se o impedimento é de ordem pública, a celebração da cerimônia de casamento com impedimento
material implica em nulidade. Como qualquer nulidade, pode ser conhecida a qualquer tempo através de
ação declaratória, pois o casamento já é nulo e não produz efeitos (o casamento é nulo por força de lei).
Essa ação declaratória é imprescritível.
O fundamento dos impedimentos matrimoniais vem da mitologia grega, da história de Édipo, o
Rei. Um oráculo apareceu para o rei espartano, que a cada dia ampliava o seu império e amealhava mais
poder, e disse que o filho que Jocasta, sua mulher, estava esperando, seria mais forte, mais desbravador e
iria tomar o seu império e sua mulher. O rei, desesperado com a informação, resolveu matar o próprio
filho. Quando Édipo nasceu, o rei ordenou que um servo o matasse afogado. O servo, apenado da criança,
sentimentalmente envolvido, disse ao rei que o havia matado, mas o colocou em uma cesta e deu a outra
pessoa, para que o levasse para longe do reino.

666
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Édipo cresceu, conquistou territórios e tornou-se rei. Resolveu, então, conquistar Esparta. Na luta
pela conquista, Édipo mata o pai, toma o seu reino e se apaixona pela mulher do rei, sua mãe. Tomados
por uma súbita paixão, eles começam a se relacionar e ocorre uma situação curiosa: nada mais dá certo
naquele lugar - as águas secam, os peixes morrem, a agricultura não prospera. Édipo não consegue en-
tender por que não consegue mais vitórias e perde suas conquistas. Jocasta, então, aconselha Édipo a
consultar um oráculo, que revela que ele estava mantendo relações sexuais com sua própria mãe e que,
em consequência disso, ela se mataria. Édipo, então, tomado de emoção e ainda apaixonado pela própria
mãe, voltou a casa e encontrou a mãe com os olhos arrancados, pois o oráculo tinha também aparecido
para ela no espelho.
Assim, os impedimentos matrimoniais visam a prevenir os efeitos deletérios que o casamento pode
implicar para a coletividade. As proibições para o casamento têm natureza biológica, psicológica e social,
exatamente porque não se deve permitir o casamento de determinadas pessoas, pela potencialidade de
efeitos danosos.
É digno de nota que a Lei 12.133/2009 estabeleceu que a habilitação para o casamento tramitará
perante o Oficial de Registro Civil, com intervenção do Ministério Público, só indo ao juiz em caso de
impugnação ou havendo necessidade de suprimento.
A lei diz que o MP tem de intervir no procedimento de habilitação. Na Bahia, todavia, há uma ori-
entação no sentido de que o MP somente deve intervir se houver interesse de criança ou de adolescente.
Deve-se checar se há regra análoga em cada estado.
Os impedimentos matrimoniais são analisados nessa fase da habilitação para o casamento.
No CC/16, eles eram tratados no art. 183. A doutrina, ao interpretar o dispositivo, reconhecia três
categorias de impedimentos matrimoniais: i) impedimentos absolutamente dirimentes; ii) impedimentos
relativamente dirimentes (ou impedimentos privados); e iii) impedimentos proibitivos ou impedientes.

2.8.2. Impedimentos
Os impedimentos matrimoniais são analisados na fase da habilitação para o casamento.
No CC/16, eles eram tratados no art. 183. A doutrina, ao interpretar o dispositivo, reconhecia três
categorias de impedimentos matrimoniais: i) impedimentos absolutamente dirimentes; ii) impedimentos
relativamente dirimentes (ou impedimentos privados); e iii) impedimentos proibitivos ou impedientes.

2.8.2.1. Impedimentos absolutamente dirimentes

Os impedimentos absolutamente dirimentes (ou de ordem pública) eram os mais graves, previstos
nos incisos I a VIII, em rol taxativo.
A violação deles tinha como consequência a nulidade do casamento. Esses impedimentos, no
CC/02, são tratados simplesmente como “impedimentos”, nos termos do art. 1.521, com alguma mudan-
ça de conteúdo (não houve cópia absoluta). A consequência da violação desses impedimentos é exata-
mente a mesma: a nulidade do casamento que impedem a sua celebração no Cartório de Registro Civil.

667
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.521. Não podem casar:

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural [consanguíneo] ou civil


[por adoção];

Os ascendentes e descendentes até o infinito (impedimento decorrente de parentesco consanguí-


neo). Flávio Tartuce leciona que duas razões justificam este impedimento: moral, para evitar-se o inces-
to; e biológica, para evitar problemas genéticos à prole.

II - os afins em linha reta;

Nos termos do art. 1.595 do CC, há parentesco por afinidade entre um cônjuge (ou companhei-
ro466) e os parentes do outro consorte (ou convivente).
É importante frisar que esse vínculo é perpétuo, não se extinguindo com o divórcio: “Sogra é
para a vida toda!”.
Obs.: os cunhados podem se casar livremente, pois são parentes afins colaterais.

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

Esta regra existe porque é como se a esposa do adotado fosse nora do adotante, nesse caso, Vale a
máxima pela qual a adoção imita a família consanguínea.
Sendo assim, até por ausência de previsão legal, o adotado pode se casar com a irmã do adotante,
pois esta seria como se sua tia fosse.

IV - os irmãos, unilaterais [só de pai ou só de mãe] ou bilaterais [germanos], e demais co-


laterais, até o terceiro grau inclusive;

Além da ética familiar, não podem se casar os irmãos para evitar doenças recessivas graves.
Também não podem casar tio e sobrinha. Vale observar, entretanto, que a despeito da proibição
constante na parte final do inciso IV do art. 1.521, a doutrina brasileira (Enunciado 98 da I Jornada 467),
amparada no DL 3.200/1941, sustenta a excepcional possibilidade de casamento entre colaterais de ter-
ceiro grau, se houver parecer médico favorável, o chamado casamento avuncular.
É permitindo o casamento entre primos, pois são colaterais de 4º grau.

V - o adotado com o filho do adotante;

Eles são irmãos.

VI - as pessoas casadas;

466 O CC/2002 inovou ao reconhecer a afinidade em decorrência da união estável.


467 Enunciado nº 98 - Art. 1.521, IV, do novo Código Civil: O inc. IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve
ser interpretado à luz do Decreto-lei n. 3.200/41, no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de
3º grau. Obs.: O Enunciado não criou essa regra, mas corporifica o entendimento que há muito existe na doutrina.

668
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce, o atual Código continua consagrando o princípio da monogamia para
o casamento. Mesmo sendo tratada como impedimento matrimonial – e assim deve ser visualizada como
categoria jurídica criada pela lei –, a hipótese parece ser de incapacidade matrimonial. Isso porque a pes-
soa casada não pode contrair matrimônio com qualquer um que seja.

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o
seu consorte.

Para a incidência desta hipótese, a lei não fala em trânsito em julgado da sentença penal condena-
tória, mas Flávio Tartuce aponta que a posição majoritária é de que o crime deve ser doloso, com trânsito
em julgado da sentença condenatória. A sentença penal superveniente não nulifica o casamento já efetu-
ado.
Não consta mais no rol de impedimentos aquele referente à impossibilidade de o casal condenado
por adultério contrair núpcias. Isso não significa que o adultério tenha deixado de ser ilícito. Há inúme-
ras decisões no Brasil reconhecendo que se trata de ato desvalioso, passível de responsabilização civil
(indenização por danos morais).
O casamento nulo encontra referência nos arts. 1.548 e 1.549 do CC:

Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:

I – Revogado pela Lei 13.146/2015;

II - por infringência de impedimento.

Art. 1.549. A decretação de nulidade de casamento, pelos motivos previstos no artigo anteceden-
te, pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer interessado, ou pelo Ministério Pú-
blico.

Arremata Flávio Tartuce no sentido de que “Em relação aos efeitos, os impedimentos matrimoniais
impossibilitam a celebração do casamento mediante procedimento administrativo que corre perante o
Cartório de Registro das Pessoas Naturais (arts. 1.529 e 1.530 do CC). A sua oposição poderá ocorrer até
o momento da celebração, por qualquer pessoa capaz (art. 1.522 do CC). Caso o oficial do registro ou
qualquer juiz tenha conhecimento do impedimento, deverá reconhecê-lo de ofício (ex officio). Caso o
casamento seja celebrado, será ele nulo de pleno direito, havendo nulidade absoluta (art. 1.548, inc. II,
do CC).”.

2.8.2.2. Impedimentos proibitivos ou impedientes


Os impedimentos proibitivos ou impedientes, que estavam previstos nos incisos XIII a XVI do art.
183 do CC/1916, eram diferentes. Sua violação não invalidava o casamento, mas o casal sofria a sanção
patrimonial da submissão ao regime da separação obrigatória de bens.

669
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O CC/2002 trata deles (com alguma modificação de conteúdo) no art. 1.523, denominando-os
“causas suspensivas do casamento”.
Assim, Flávio Tartuce leciona que as causas suspensivas do casamento são situações de menor gra-
vidade, relacionadas a questões patrimoniais e de ordem privada. Não geram a nulidade absoluta ou rela-
tiva do casamento, mas apenas impõem sanções patrimoniais aos cônjuges.
Nesse sentido, quem se casa violando causa suspensiva tem seu casamento válido, mas se sub-
mete ao regime de separação obrigatória de bens. Há algo como a suspensão do direito de escolha
do regime de bens:

Art. 1.523. Não devem casar: [observe que a lei fala em “não devem”, em contraposição ao dispo-
sitivo anterior, que fala em “não podem” casar]

I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens
do casal e der partilha aos herdeiros;

A razão deste inciso é evitar confusão de patrimônio do marido que morreu com o do marido novo.
Ademais, além do regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641, CC), impõe-se como sanção
a hipoteca legal a favor dos filhos sobre os imóveis dos pais (art. 1.489, II, CC).
Obs.: Se a prole for de apenas um dos cônjuges, não se impõe a causa suspensiva ao sobrevivente,
pois se trata de limitação da autonomia privada que somente pode decorrer de lei, não admitindo inter-
pretação extensiva ou analogia.

II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez me-
ses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

A razão deste impedimento é evitar a confusão acerca da paternidade de eventual filho (turbatio ou
confusio sanguinis): se ela tiver um filho, ele poderá ser do primeiro marido.
Flávio Tartuce observa que com os avanços da medicina, esta causa suspensiva tende a desapare-
cer, pois se busca cientificamente a realização de um exame que demonstre a parentalidade da criança
via exame de DNA, sem que isso ofereça riscos à prole e à sua mãe.

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do ca-
sal;

A razão deste dispositivo é a mesma do primeiro: evitar a confusão patrimonial (que ocorreria, por
exemplo, se o novo casamento fosse realizado sob o regime da comunhão total de bens) , uma vez que o
divórcio pode ser concedido sem a prévia partilha de bens (art. 1.581 do CC).
Anote-se que a lei exige apenas a homologação ou decisão da partilha e não a sua efetivação em si.

IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos,


com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem
saldadas as respectivas contas. (...)

670
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A razão é moral, pois, supostamente, o tutor ou o curador poderia induzir o tutelado ou o curatela-
do a erro, diante de uma relação de confiança, o que geraria repercussões patrimoniais.
Em todas as hipóteses, enuncia o parágrafo único do art. 1.523 do Código Civil que desaparece a
causa suspensiva se for provada a ausência de prejuízo aos envolvidos.
Ademais, conforme visto acima, as causas suspensivas não impedem a celebração do casamento.
Não é possível o conhecimento de ofício de tais causas, sendo que somente podendo ser arguidas
pelos interessados descritos no art. 1.524 do Código Civil:

CC, art. 1.524: “As causas suspensivas da celebração do casamento podem ser argüidas pelos pa-
rentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consangüíneos ou afins, e pelos colaterais em
segundo grau, sejam também consangüíneos ou afins.”.

2.8.2.3. Impedimentos relativamente dirimentes (ou privados)


Os impedimentos relativamente dirimentes (ou impedimentos privados) estavam previstos nos in-
cisos IX a XII do art. 183 do CC/16. Eles eram menos graves, na medida em que sua inobservância tinha
como consequência a anulabilidade do casamento.
Atualmente, o tratamento dessa modalidade de impedimento encontra-se no Art. 1.550, CC, que
será estudado em minúcias nos itens abaixo.

2.8.3 Invalidade do casamento


Inicialmente, observa-se que legislador civil fez a opção de não tratar da inexistência dos atos, mas
apenas da nulidade absoluta e da nulidade relativa, o que também ocorre com o casamento, pois a lei
apenas enuncia hipóteses do casamento nulo (art. 1.548 do CC) e do casamento anulável (art. 1.550 do
CC).
Entretanto, a inexistência do Casamento: é admitida por alguns doutrinadores, como Silvio Venosa
e Carlos Roberto Gonçalves.
Ressalta-se que a teoria da inexistência do negócio jurídico foi criada na Alemanha em 1808, por
Zacarias, para explicar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, entretanto, atualmente o casamento
homoafetivo é existente, válido e eficaz, de modo que a doutrina aponta somente dois exemplos
i. Quando totalmente ausente a vontade (vontade zero), sob coação física (vis absoluta). Ex.:
Pessoa sedada, hipnotizada.
ii. Incompetência absoluta da autoridade celebrante (ratione materiae).
Exemplos: Inexistente seria o casamento celebrado por delegado de polícia, promotor ou autorida-
de local.
Como a lei não previu a teoria da inexistência, não há regras que estipulam os efeitos e procedimen-
tos decorrentes do reconhecimento da inexistência do casamento. A doutrina que defende a sua aplica-
ção, sustenta que dever-se-ia utilizar, por analogia, as regras concernentes aos casamentos nulos.

671
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.8.2.4. O casamento nulo


Conforme vistco acima, atualmente somente há uma hipótese: infringência a impedimento matri-
monial, previsto no art. 1.521 do CC, uma vez que o Estatuto da Pessoa com Deficiência revogou a previsão
sobre o enfermo mental sem discernimento (antes previsto no art. 3º, inciso II, do Código Civil.).

2.8.2.4.1. Efeitos e Procedimentos do Casamento Nulo:

i. Ação Declaratória de Nulidade de casamento (procedimento comum):


a) Imprescritível por se tratar de ação sobre estado de pessoa (art. 169 do CC).
b) Possui natureza de ordem pública, podendo ser proposta por qualquer interessado ou pelo Minis-
tério Público (art. 1.549 do CC).
A posição majoritária vai no sentido de ser incabível o conhecimento de ofício da nulidade do ca-
samento, mas apenas aos casos de impedimento matrimonial (por força do art. 1.522, CC), em aplicação
ao princípio da não intervenção;
c) A ação de nulidade (assim como a de anulabilidade) pode ser precedida de uma medida de se-
paração de corpos (art. 1.562 do CC), que atualmente é medida de tutela provisória (arts. 300 a
311, NCPC);
d) A sentença que decreta a nulidade do casamento retroage à data de sua celebração, ou seja, tem
efeitos ex tunc, não podendo prejudicar, entretanto, a coisa julgada e os direitos adquiridos por
terceiro de boa-fé. “A boa-fé vence o casamento nulo!” (art. 1.563 do CC)468.
e) Se a ação for contenciosa, aplicam-se os procedimentos dos arts. 693 a 699 do CPC/2015 - Pro-
cedimento especial para ações de família.
O casamento nulo pode gerar efeitos como casamento putativo (art. 1.561 do CC). O tema será estu-
dado posteriormente.

2.8.2.5. O casamento anulável


O CC/2002, com alguma mudança de conteúdo, os trata como “causas de anulação do casamento”,
no art. 1.550. Quem se casa violando o dispositivo tem como consequência também a anulabilidade. Por-
tanto, mutatis mutandis (houve aperfeiçoamentos), os impedimentos relativamente dirimentes são tra-
tados como causa de anulação (e não nulidade) do casamento:

Art. 1.550. É anulável o casamento:

I - de quem não completou a idade mínima para casar;

468 Flávio Tartuce ilustra com o exemplo de A e B, marido e mulher, vendem um imóvel a C, que o adquire de
boa-fé. O casamento dos primeiros é declarado nulo por sentença judicial, pois A já era casado. Mesmo havendo
essa nulidade, o que geraria eventual partilha do bem, a venda é válida, pois celebrada com boa-fé por C, que funci-
ona como um escudo contra a nulidade.

672
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como visto, o menor que tiver menos idade do que o limite mínimo para casar está agora totalmen-
te impedido de contrair matrimônio, diante da nova redação do art. 1.520 do Código Civil, modificado em
2019, pela Lei 13.811.

II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;

O adolescente entre dezesseis e dezoito anos que não tenha a devida autorização celebra casamento
anulável.
Segundo Flávio Tartuce como hipótese de convalidação, não se anulará esse casamento quando à
sua celebração tiverem assistido – no sentido de presenciado –, os representantes legais do menor, ou se
esses representantes tiverem manifestado a sua aprovação (art. 1.555, § 2.º, do CC).

III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;

Tratam-se das hipóteses de casamento celebrado sob coação moral (vis compulsiva), bem como ca-
samento celebrado havendo erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge (error in persona).
Nesse sentido, merecem especial atenção as hipóteses de anulação do casamento por vício da von-
tade, previstas nos arts. 1.556 a 1.558 do CC:

Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos
nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.

As hipóteses de erro no casamento partem da seguinte premissa: as circunstâncias que justificam a


anulação já existiam antes do casamento, mas o cônjuge enganado somente soube delas depois.

Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu co-
nhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;

Exemplos: o sujeito casa e, depois, descobre que a esposa é uma viciada inveterada em jogo; o su-
jeito casa e, depois, descobre que o marido ou a mulher tem ou teve vida sexual pretérita. Exemplo de
erro quanto à identidade: um transexual pode se casar com um homem, na medida em que tem sua iden-
tidade alterada (há uma mudança oficial do status do transexual). Aquele que se casa com o transexual
tem o direito de saber dessa condição pretérita. Caso não saiba, pode anular o casamento por erro.

II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vi-
da conjugal;

Exemplo: o sujeito se casa com uma mulher e descobre que ela responde a diversos processos por
crimes graves praticados antes do casamento.
Flávio Tartuce alerta que não há necessidade do trânsito em julgado da sentença, bastando a reper-
cussão social do crime e a insuportabilidade da vida em comum

III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize defi-

673
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ciência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco
a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;

Exemplo: a esposa casa e descobre que o marido portava moléstia grave, transmissível por contato
sexual, da qual ele era portador, sabia e não disse. Vale observar que se o portador da doença não sabia
da enfermidade, não há que se falar em anulação, cabendo somente o divórcio (que hoje não tem condi-
cionantes).
Exemplo comum dado pela doutrina de defeito físico irremediável que pode gerar a anulação do
casamento é a impotência coeundi (impossibilidade de ter ereção) descoberta depois do casamento. A
noiva, nesse caso, terá de provar que não tinha intimidade com o marido. A impotência coeundi não se
confunde com a generandi (incapacidade de ter filhos), que não anula o casamento. O casal que, depois
do casamento, descobre que sofre de infertilidade, não pode, por essa razão, anular o casamento.
O caso de impotência generandi ou concipiendi (que impede ter filhos) não anula o casamento, en-
tretanto, caso um cônjuge engane o outro, dizendo que poderia ter filhos, a anulação é possível com fun-
damento no inciso I: a má conduta, o engodo, o engano (desvio de caráter, de conduta moral).
O casamento tem finalidade reprodutiva para algumas religiões, mas não para o direito469.
Finalmente, observa-se que o inciso IV do art. 1.557 foi revogado pelo Estatuto da Pessoa com Defi-
ciência (Lei 13.146/2015), pois mencionava a descoberta de doença mental grave para fins de anulação.
Segundo o art. 1.558, define-se a coação moral quando há temor de mal considerável e iminente pa-
ra a vida, a saúde e a honra do nubente ou de seus familiares.

Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de


ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminen-
te para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares.

Flávio Tartuce aponta duas diferenças em relação à coação moral prevista para a teoria geral do ne-
gócio jurídico, uma vez que a última pode estar relacionada a bens e a pessoas que não sejam da família
do coagido (art. 151 do CC).

IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;

Trata das hipóteses do Art. 4º, II e III, CC, ou seja, os viciados em álcool e tóxicos e as pessoas que,
por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir sua vontade (um cidadão em coma p. ex.).
O pródigo pode casar livremente, sua interdição não alcançará o casamento (art. 1.782 do CC), po-
ois somente diz respeito a atos de alienação direta de bens, como emprestar, transigir, dar quitação, alienar,
hipotecar, demandar ou ser demandado.

V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do

469 Acerca desse tema, ver os pitorescos Embargos Infringentes nº 71036425/TJRS.

674
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;

Se o mandante revoga o mandato e não avisa o mandatário, o casamento celebrado é anulável. Para
Pablo, deveria ser inexistente, pois, revogado o mandato, a vontade desaparece. Mas não é essa a deter-
minação legal.
Ademais, se o mandato for reconhecido como inválido/nulo, o casamento continua anulável (art.
1.550, § 1º, CC).
O dispositivo excepciona a hipótese em que o mandante coabita com o outro cônjuge. Neste caso,
considera-se que houve convalidação do vício e confirmação do casamento.

VI - por incompetência da autoridade celebrante.

Flávio Tartuce leciona que a hipótese trata da incompetência relativa em relação ao local
(ratione loci)
Em se tratando de incompetência material, o caso será de inexistência conforme visto acima.

Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente decretada.

2.8.2.5.1. Efeitos e procedimentos do casamento anulável

Caso se verifique algum dos vícios acima é possível manejar a “ação anulatória” que é constitutiva
negativa, o que justifica todos os prazos decadenciais previstos em lei, consoante tabela a seguir:
a) Coação – 4 anos;
b) Erro – 3 anos;
c) Incompetência relativa – 2 anos;
d) Demais situações – 180 dias.
Em regra, a contagem se faz a partir da celebração do casamento.
A despeito da polêmica, é razoável a tese segundo a qual a eficácia da sentença anulatória de casa-
mento é retroativa (Zeno Veloso, Tartuce, Simão). Há doutrina em sentido diverso (Orlando Gomes, Ma-
ria Helena Diniz), de modo que a sentença que anula o casamento retroage para atingir o Registro Civil
em sua origem (cancela-se o registro e o sujeito volta a ser solteiro). O divórcio não tem essa consequên-
cia, pois o ex-cônjuge não volta a ser solteiro, mas se torna divorciado.

2.8.4 Casamento putativo


Segundo a lição de Flávio Tartuce, putativo deriva do latim, putare significa crer, imaginar. Sendo
assim, o casamento putativo é o casamento da imaginação, remetendo à ideia coloquial do “parece, mas
não é”.
Trata-se do casamento que embora nulo ou anulável – nunca inexistente –, gera efeitos em relação
ao cônjuge que esteja de boa-fé subjetiva (ignorando o motivo de nulidade ou anulação).
O casamento putativo, nos termos do art. 1.561 do CC, nada mais é que o matrimônio inválido (nu-
lo ou anulável), cujos efeitos são preservados em favor do cônjuge de boa-fé:

675
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o ca-
samento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anula-
tória.

§ 1º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e
aos filhos aproveitarão.

§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos
filhos aproveitarão.

Na perspectiva do princípio da boa-fé objetiva, é a própria teoria da aparência que justifica o insti-
tuto.
Será que haveria um casamento “inexistente putativo”? Na letra da lei, o casamento putativo é o ca-
samento nulo ou anulável contraído de boa-fé. Ou seja, é aquele pautado em um casamento inválido, mas
contraído de boa-fé.
Todavia, em figura análoga àquela do casamento putativo, há no ordenamento pátrio hipótese de
casamento inexistente que gere efeitos, eis que contraído de boa-fé. Nesses termos, art. 1.554 do CC traz
uma especial hipótese de casamento inexistente por ausência de competência legal da autoridade cele-
brante e que, ainda assim, tem seus efeitos jurídicos preservados em favor do cônjuge de boa-fé:

Art. 1.554. Subsiste o casamento celebrado por aquele que, sem possuir a competência exigida
na lei, exercer publicamente as funções de juiz de casamentos e, nessa qualidade, tiver registra-
do o ato no Registro Civil.

Pablo prefere não falar em casamento inexistente putativo, mas em uma “situação excepcional de
casamento inexistente que tem seus efeitos jurídicos preservados”.
Exemplo: irmãos casam-se sem saber que eram irmãos. O juiz trata do casamento putativo como se
fosse um divórcio. Ele desfaz o casamento, mas separa os bens, garante o direito aos alimentos etc.
Se apenas um dos cônjuges estiver de boa-fé o casamento é nulo, mas preservam-se os efeitos jurí-
dicos com relação ao de boa-fé. Ex.: sujeito casado se casa em outro estado com outra mulher (já que não
há sistema informatizado nacional de registro civil). A segunda mulher terá direito de levar de volta o que
trouxe ao casamento, partilhar o que foi adquirido na constância do casamento, direito de alimentos etc.
A despeito da polêmica, é razoável a tese segundo a qual o juiz, por decorrência da norma superior
da boa-fé objetiva poderá, de ofício, reconhecer a putatividade. Isso decorre não só da boa-fé objetiva
como da função social da família. Trata-se, contudo, de controversa discussão acadêmica.
Na lição de Flávio Tartuce três regras devem ser observadas:
1ª hipótese: Boa-fé de ambos os cônjuges.
O casamento gera efeitos para ambos e para os filhos até o trânsito em julgado da sentença anula-
tória/declaratória de nulidade.
2ª hipótese: Má-fé de ambos os cônjuges.

676
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O casamento somente gera efeitos para os filhos e não para os cônjuges de má-fé. A eventual parti-
lha de bens será feita de acordo com as regras obrigacionais e não pelas regras do Direito de Família.
Aplicam-se as regras da vedação do enriquecimento sem causa (art. 884, CC).
3ª hipótese: Boa-fé de um dos cônjuges e má-fé do outro
O casamento gera efeitos para os filhos e para o cônjuge de boa-fé. Neste caso, o art. 1.564 do CC
considera o cônjuge de má-fé como culpado, atribuindo-lhe duas sanções: a primeira delas é perda de
todas as vantagens patrimoniais havidas do cônjuge inocente. A segunda sanção é a necessidade de cum-
primento das promessas feitas no pacto antenupcial, como, por exemplo, a promessa de doação.
Todavia Flávio Tartuce alerta que, com a entrada em vigor da Emenda do Divórcio (EC 66/2010),
há quem entenda que a culpa foi banida do sistema de casamento, o que inclui a anulação do casamento,
perdendo aplicação o dispositivo em comento

2.9. Plano de eficácia do casamento

2.9.1 Noções gerais


O assunto “regime de bens”, que será tratado adiante, está também inserido no tópico do plano de
eficácia do casamento.
As questões relativas à eficácia do casamento estão previstas nos arts. 1.565 e seguintes, do CC:

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes,
companheiros e responsáveis pelos encargos da família.

§ 1º Qualquer dos nubentes [nubente não é o casado, mas o noivo], querendo, poderá
acrescer ao seu o sobrenome do outro.

§ 2º O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recur-


sos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção
por parte de instituições privadas ou públicas.

A CR/88 firmou o paradigma da isonomia entre homem e mulher, na perspectiva da eficácia hori-
zontal dos direitos humanos.
De acordo com essa premissa, o art. 1.565, § 1º, permite que seja acrescido o nome (ou patroními-
co) de um ao do outro cônjuge. Todavia, cumpre indagar: pode-se aproveitar a oportunidade para modi-
ficar o nome? Ex.: Maria da Silva Ferreira de Souza pode suprimir um nome no momento do acréscimo
do nome do nubente ao outro? Pela letra da lei não, pois a norma fala apenas em “acrescer”. Todavia, o
STJ, a despeito da redação do dispositivo, já admitiu a supressão de um nome de família, quando do ca-
samento, com base no direito da personalidade (REsp 662.799/MG).
Pode ocorrer, inclusive, de ser acrescido o nome de casado do outro. Há um julgado do Tribunal
Alemão nesse sentido, que gerou alteração do BGB. Ex.: o Suplicy é de Eduardo. Marta, após o divórcio,
decidiu manter o nome. Se quisesse, o cônjuge dela poderia acrescer o nome de Suplicy.

677
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 1.565, § 2º, tem como fundamento o princípio da intervenção mínima do direito de família. É
reprodução do preceito constitucional segundo o qual o planejamento familiar compete ao casal, não
podendo o Estado interferir nas decisões acerca dele.

2.9.2 2.9.2 – deveres matrimoniais (art. 1.566 do CC)

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I - fidelidade recíproca;

II - vida em comum, no domicílio conjugal;

III - mútua assistência;

IV - sustento, guarda e educação dos filhos;

V - respeito e consideração mútuos.

2.9.1.1. 2.9.2.1 – sustento, guarda e educação dos filhos


O dever de sustento, guarda e educação dos filhos, previsto no inciso IV, deriva da condição de pai
e mãe (poder familiar). Não é propriamente decorrente do casamento.

2.9.1.2. 2.9.2.2 – mútua assistência

O dever de mútua assistência não é somente de assistência material (alimentos). Envolve também a
prestação de assistência moral (psicológica, espiritual).
O dever de alimentos se projeta inclusive para depois do casamento, podendo o sujeito ser compe-
lido a pagá-los mesmo depois do divórcio.

2.9.1.3. 2.9.2.3 – dever de coabitação

O dever de coabitação pode ser mitigado por razões profissionais, ou mesmo por decisão conjunta
dos consortes. Ainda que, sem justificativa, o abandono do lar possa significar a frustração desse dever,
com a emenda do divorcio tal abandono perdeu a importância de outrora.
Observa Orlando Gomes que a coabitação representa mais do que a simples convivência sob o
mesmo teto, mas também união carnal (debitum conjugale). Segundo os autores clássicos, não havendo
razões de saúde ou decisão conjunta de abstenção, o dever de coabitação envolveria o dever sexual (numa
relação sexual normal).
Os autores mais modernos costumam criticar a expressão debitum conjugale, tratando como dever
o ato sublime do sexo, à luz do princípio da personalidade. Contudo, para Pablo, os autores que realizam
essa justa crítica não se preocupam em dizer o que seria o debitum conjugale (eles dizem o que não é).
Não se pode deixar de reconhecer que o ato sexual é um efeito jurídico do casamento, uma conse-
quência. Tanto que, se descumprida, poderá gerar repercussões. Há um julgado do TJRS em que a espo-

678
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

sa recusou-se à relação sexual de forma peremptória e teve o casamento anulado. A fundamentação foi
que o sexo é uma consequência natural e esperada do casamento (Apelação Cível 70016807315).

2.9.1.4. 2.9.2.4 – dever de fidelidade recíproca


Também é dever de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca. Na união estável, quando o legisla-
dor cuida dos deveres, ele fala em “lealdade”.
A rigor, a lealdade é mais que a fidelidade (aquela seria um gênero, do qual esta seria a espécie). A
fidelidade é entendida como restrita ao âmbito afetivo e sexual. O sujeito que desrespeita a fidelidade
pode ser considerado leal, apesar de infiel. Evidentemente, todavia, deve-se interpretar que ambos os
deveres envolvem a lealdade e a fidelidade.
A quebra do dever de fidelidade pode se dar de diversas maneiras, mediante a prática de condutas
desonrosas, mas a ruptura mais brusca desse dever opera-se por meio do adultério, o qual pressupõe
espúria conjunção carnal com terceiro. Uma esposa que beija um rapaz ou é surpreendida sentada no
colo dele é infiel, mas não adúltera. O adultério pressupõe conjunção carnal (introductio penis intra
vaz). Nele existe necessariamente o congresso sexual.
São figuras especiais de infidelidade:
i) quase-adultério:
Trata-se da situação em que existem atos preparatórios à relação sexual espúria. Ex.: o sujeito en-
contra a esposa beijando o pescoço do outro. Aquilo é um gesto de infidelidade que a doutrina costuma
chamar de quase-adultério.
ii) adultério inocente, casto ou de seringa:
Tecnicamente, não se trata de adultério, pela ausência de relação sexual. Traduz a situação de infi-
delidade praticada por meio de método científico de reprodução humana assistida não autorizada pelo
cônjuge traído. É algo muito difícil de ocorrer, na medida em que os laboratórios hoje seguem protocolos
rígidos.
Há dois tipos de reprodução assistida: homóloga (o material fecundante é do próprio casal) e hete-
róloga (o material fecundante é de terceiro). Caso a esposa realize inseminação heteróloga sem a autori-
zação do marido, ele se considerará traído e a se configurará a hipótese de adultério inocente, casto ou de
seringa.
iii) adultério precoce:
O adultério precoce ocorre quanto o cônjuge abandona o outro imediatamente após a celebração do
casamento.
iv) adultério “virtual”:
Esta hipótese, que melhor seria se denominada “infidelidade virtual” (por não haver contato físico
entre os parceiros) opera-se por meio da tecnologia digital, mediante troca de e-mails, chats de bate-
papo e redes sociais e de relacionamento. A 2ª Vara Cível de Brasília, segundo o site Consultor Jurídico,

679
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

reconheceu a infidelidade virtual de um homem e o condenou a pagar R$ 20.000,00 à esposa pelos “des-
vios amorosos” cometidos via Internet.
Relativamente ao adultério virtual, pergunta-se acerca da eventual ilicitude da prova colhida, em
cotejo com o direito de intimidade. No caso acima, a juíza entendeu que o computador era de ambos os
consortes. Todavia, Pablo entende que, à luz da proporcionalidade, a fonte de prova poderia ser aceita,
com base no cotejo entre o direito à intimidade e o direito moral da esposa traída.
O adultério virtual é tema a ser abordado em concurso, em virtude do avanço da tecnologia e do
surgimento de diversos meios de comunicação e interação social (ex.: os “avatares” criados no Second
Life). Um “adultério” no Second Life pode gerar quebra do dever de fidelidade?
Com o crescente avanço tecnológico, anota-se tendência do direito brasileiro e internacional no
sentido de buscar mecanismos de responsabilidade civil que visem a coibir abusos e preservar os direitos
da personalidade.

2.9.3 2.9.3 – Efeitos sociais do casamento


Os efeitos sociais do casamento são: i) emancipação; ii) presunção de paternidade dos filhos havi-
dos na sua constância; iii) alteração do estado civil; iv) estabelecimento do parentesco por afinidade.
Somente o estabelecimento do parentesco por afinidade é que se aplica à união estável.

2.10. Regime de bens (Arts. 1.639 a 1.688, CC)

2.10.1. Noções gerais


Regime de bens é o estatuto patrimonial do casamento, ou seja, o conjunto de normas que discipli-
nam os efeitos patrimoniais derivados do casamento.
Evidentemente, tudo o quanto dito aqui pode ser aplicado, mutatis mutandis, à união estável, por-
que ela também observa um regime de bens. Todavia, o estudo do regime de bens corresponde à análise
da eficácia patrimonial do casamento.
Regime de bens é o conjunto de regras patrimoniais relacionadas ao casamento ou à união estável.
Constitui matéria de natureza contratual e, em regra, formada por normas de ordem privada.
O CC/02 inicia a disciplina do regime de bens no art. 1639:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus
bens, o que lhes aprouver.

§ 1º O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento. (...)

Ainda que com outras palavras, está dito aqui que durante o procedimento de habilitação para o
casamento, que corre no Cartório de Registro Civil, os noivos podem fazer uma opção por um regime de
bens.
A escolha do regime de bens opera-se por meio de um contrato especial e solene, denominado pac-
to antenupcial (arts. 1.653 e seguintes do CC). Esse contrato deve ser lavrado por escritura pública e le-
680
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

vado a registro no Cartório de Registro Civil e no Cartório de Registro de Imóveis. Evidentemente, o pac-
to antenupcial é um contrato condicionado ao casamento, sob pena de ineficácia:

Art. 1.653. É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe
seguir o casamento.

No Brasil, existem os seguintes regimes de bens: i) comunhão universal de bens; ii) comunhão par-
cial de bens; iii) separação de bens; e iv) participação final dos aquestos. A escolha por um deles, como
visto, faz-se através do pacto antenupcial.
Embora não seja comum, a doutrina considera juridicamente possível que, no pacto antenupcial,
possam ser mescladas regras de regimes diversos (Enunciado 331 da IV Jornada de Direito Civil):

Enunciado nº 331 - Art. 1.639: O estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de
regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art.
1.640), e, para efeito de fiel observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certi-
ficação a respeito, nos autos do processo de habilitação matrimonial.

É como se se estivesse no campo da autonomia privada. Isso não é comum. Geralmente, os noivos
optam por um dos regimes puramente (“o pacote pronto”), mas nada impede que eles mesclem regras de
regimes diversos. Essa possibilidade já foi exigida em concurso.
Na ocasião da habilitação para o casamento, o Oficial de Registro é obrigado a discutir acerca do
regime de bens com os nubentes. No direito brasileiro, em geral os noivos não fazem pacto antenupcial.
Há as características da variabilidade dos regimes e da liberdade de escolha, como regra, mas o brasileiro
não costuma celebrar o pacto antenupcial (até porque, no Brasil, em geral, o casal amealha patrimônio
depois do casamento).
O que ocorre quando não resta celebrado o pacto? Desde a Lei 6.515/1977, adota-se como regime
legal supletivo o da comunhão parcial de bens. O CC/02 manteve a regra, no art. 1.640:

Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens en-
tre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.

Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regi-
mes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parci-
al, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.

Assim, desde 1977, se os noivos não escolherem o regime de bens através de pacto antenupcial, fi-
carão submetidos ao da comunhão parcial de bens. Antes de 1977, o regime legal supletivo era o da co-
munhão universal de bens.
Pablo considera bom que o regime da comunhão parcial seja o regime legal supletivo, por ser, de
todos, talvez o mais justo: separam-se os bens anteriores ao casamento e são divididos os bens adquiri-
dos onerosamente pelo casal no curso do casamento.

681
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.10.1.1. Princípios relativos ao regime de bens


Segundo Flávio Tartuce, o regime de bens é regido pelos seguintes princípios fundamentais:
i. Princípio da autonomia privada: há liberdade na escolha das regras quanto ao regime
de bens, nos termos do art. 1.639 do CC.
Esse princípio encontra limitações nas normas de ordem pública. Exemplo: O art. 1.641 do CC, que
impõe o regime da separação obrigatória de bens (separação legal).
Flávio Tartuce observa que o exercício da autonomia privada se dá pelo pacto antenupcial, em re-
gra, que não pode contrariar os preceitos de ordem pública. Sendo assim, podem os cônjuges escolher
outro regime que não seja o regime legal (comunhão parcial de bens); fazendo opção pela comunhão uni-
versal, pela participação final nos aquestos ou pela separação de bens.
É possível, ainda, a criação de um regime misto, combinando as regras dos regimes previstos em
lei, de modo que o rol de regime de bens acima é exemplificativo (numerus apertus).
Os nubentes podem estipular regimes diversos por meio do pacto antenupcial ou do contrato de
convivência (exercício da autonomia da privada), conforme Enunciado 331 da IV Jornada de Direito Ci-
vil470.
ii. Princípio da variedade do regime de bens: é complementar ao princípio acima, de
modo que o Código Civil traz quatro regimes de bens, mas é possível estipular regime atípi-
co, similar aos contratos atípicos (art. 450 do CC), como um regime misto.
iii. Princípio da indivisibilidade do regime de bens. Apesar de ser possível juridicamen-
te a criação de outros regimes que não estejam previstos em lei, não é lícito fracionar os re-
gimes em relação aos cônjuges, sob pena de nulidade, face a ilicitude do objeto (Art. 166, II,
CC).
Em outras palavras, o regime é único para ambos os consortes, diante da isonomia constitucional
entre marido e mulher.
Face à sua relevância, o ultimo princípio será objeto de analise em apartado.

2.10.1.1.1. Princípio da mutabilidade justificada ou motivada: Alteração do regime


de bens no curso do casamento

Trata-se de inovação do Código Civil de 2002, trazida pelo Art. 1.639, § 2º, do CC, que prevê a pos-
sibilidade aos cônjuges da propositura de uma ação judicial para modificar o regime, desde que de forma
consensual, na linha do defendido por autores como Orlando Gomes (que já levantava essa bandeira an-
tes da entrada em vigor do novo Código):

Enunciado 331, IV JDC: “O estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de regime de bens
470

distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel obser-
vância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do processo de habilita-
ção matrimonial.”

682
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.639 (...) § 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em
pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalva-
dos os direitos de terceiros.

Hoje, portanto, é possível que os nubentes alterem o regime de bens no curso do casamento. Na
prática, essa mudança opera-se mediante autorização judicial, em pedido motivado de ambos os cônju-
ges.
Essa ação deverá estar fundada em justo motivo e devem ser ressalvados os direitos de terceiros -
art. 734 do CPC471, de modo que não pode ser realizada administrativamente
Ex.: a mudança no regime de bens não pode prejudicar credores do marido, empresário individual.
Como se sabe, o empresário individual registra-se na Junta Comercial e, quando o faz, aponta seu regime
de bens. Não pode o empresário individual, endividado, alterar o regime para fazer escapar do seu patri-
mônio bens e, com isso frustrar credores.
Por conta disso, o juiz, no procedimento de alteração de regime, deve publicar editais, para dar ci-
ência a terceiros, ainda que haja a possibilidade de impugnação posterior.
Feita a alteração, o juiz deve expedir mandado ao Cartório de Registro Civil em que está registrado
o casamento, ao Cartório de Registro de Imóveis (caso eles possuam algum imóvel) e, se qualquer dos
nubentes for empresário, à Junta Comercial.
Na opinião de Pablo, o pedido é formulado na Vara de Família, por conta da alteração do estado ci-
vil (de casado).
Conforme já decidiu o STJ472 e entende a doutrina majoritária, a sentença que altera o regime de
bens tem eficácia ex nunc, sendo Flávio Tartuce entende que visando a proteger interesses de terceiros.
Logicamente, se os efeitos são ex nunc, os interesses de terceiros estão protegidos, o que torna inócua a
parte final do § 2º do art. 1.639 do CC, do art. 734 do CPC e do Enunciado 113473, quanto ao justo motivo
e à necessidade de ampla publicidade
Quando o CC/02 entrou em vigor, parte da doutrina passou a defender que a regra nova somente
seria aplicável aos casamentos ocorridos a partir da nova lei. No entanto, o STJ já pacificou o entendi-
mento de que pessoas casadas antes do CC/02 também podem alterar o seu regime de bens474.

471 6CPC, art. 734: “A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser
requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justi-
ficam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros. [...]”
472 (STJ. REsp n. 1.300.036/MT, Relator o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe de

20/5/2014);”
473 Enunciado 113, I JDC: “É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pe-

dido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva
dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natu-
reza, exigida ampla publicidade.”.
474 (STJ. REsp 730.546 - MG. 2005/0036263-0. Rel. Min. Jorge Scartezzini. Julg. 23/08/2005. Dj.

03/10/2005).

683
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há um julgado do STJ, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, admitindo a mudança de regime de


bens para quem foi casado sob o regime da separação obrigatória de bens (REsp 821.807/PR).

2.10.2. Regimes de bens em espécie

2.10.2.1. Regime de separação legal ou obrigatória de bens


Cuidado ao falar em “regime de separação de bens”, pois há duas espécies de separação de bens: i)
convencional (escolhida mediante pacto antenupcial pelos nubentes); e ii) a legal (imposta pela lei, nas
hipóteses do art. 1.641 do CC):

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do ca-
samento; [como visto, as causas suspensivas estão no art. 1.523 do Código Civil]

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010) [antes
da mudança, o regime de separação obrigatória era aplicável àqueles que se casas-
sem com mais de sessenta anos]

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

A doutrina (Enunciado 125 da I JDC) sustenta a inconstitucionalidade do inciso II do art. 1.641475,


por criar uma limitação de idade desarrazoada, uma interdição velada (Flávio Tartuce, Pamplona, Ro-
senvald e Chaves, dentre outros autores).
Para Flávio Tartuce assevera que a limitação de idade afronta o princípio da isonomia, sob o pre-
texto de buscar evitar “golpe do baú”, de modo que tal previsão não protege o idoso, mas seus herdeiros,
tendo feição estritamente patrimonialista, na contramão da tendência do Direito Privado contemporâ-
neo, de proteger a pessoa humana (personalização do Direito Civil).
Sempre que o juiz tiver de autorizar o casamento (ex.: no caso de discordância dos pais com o ca-
samento dos filhos entre dezesseis e dezoito anos), o regime será o da separação obrigatória de bens.
Atualmente, o STJ tem aplicado ao regime da separação obrigatória a Súmula 377 do STF:

Súmula 377 - No regime de separação legal de bens, comunicam-se os bens adquiridos na cons-
tância do casamento. (pelo esforço patrimonial comum – Pacificação do STJ em 2018476)

475 Enunciado 125 da I JDC: “A norma que torna obrigatório o regime de separação absoluta de bens em ra-

zão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem
alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente
pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade
para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses.”
476 (EREsp 1.623.858/MG, Rel. Desembargador Lázaro Guimarães, Segunda Seção, julgado em 23.05.2018,

DJe 30.05.2018).

684
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Note que a Súmula permite que sejam partilhados bens adquiridos com esforço comum do casal,
mas não transforma o regime de separação legal em comunhão parcial de bens. A partilha de bens co-
muns não é a única característica da comunhão parcial, a qual possui regras específicas.
Ademais, a Súmula não se aplica à separação convencional, que é absoluta, por haverem as partes
escolhido o regime.
O Código Civil, quando disciplina os regimes de bens, é bastante detalhado no que concerne aos
bens que entram ou não na meação.

2.10.2.2. Regime da comunhão parcial de bens (Art. 1.658 a 1.666, CC)


O regime da comunhão parcial de bens é o predominante no Brasil e, como visto, de aplicação su-
pletiva, quando não haja sido feita a escolha de regime no pacto antenupcial.
Chamdo de Regime legal ou supletório, é a regra no sistema desde 26/12/1977 (com a Lei do Divór-
cio- Lei 6.515/77), previsto nos arts. 1.640 e 1.725 do CC para o casamento e a união estável.
Regulada a partir do art. 1.658 do CC, a comunhão parcial de bens opera a comunicabilidade dos
bens adquiridos a título oneroso, na constância do matrimônio, por um ou ambos os cônjuges, preser-
vando-se, assim, o patrimônio exclusivo de cada um, bem como os bens adquiridos gratuitamente ou por
causa anterior.
A regra geral da comunhão parcial de bens traduz-se na seguinte ideia: uma separação do passado
e uma comunhão do futuro, sendo que essa comunhão se refere aos bens adquiridos, no curso do casa-
mento, a título oneroso, por um ou ambos os cônjuges. Dentre outros, os bens adquiridos antes do casa-
mento e os sub-rogados em seu lugar não entram no patrimônio comum477.
Nesse sentido, ensina Flávio Tartuce que se comunicam os bens havidos durante o casamento
(posteriores ou comuns), excluindo-se dos bens incomunicáveis, tidos como bens particulares, caso dos
bens anteriores à união.
Ex.: um carro que o sujeito tinha antes do casamento pertence ao patrimônio exclusivo dele. Se ele
vender esse veículo e, com o dinheiro, adquirir outro carro no curso do casamento, o carro mantém-se do
sujeito, não entrando na meação. Todavia, se o sujeito adquire um veículo em valor superior (ex.: vende o
carro por R$ 25.000,00 e adquire outro, no casamento, por R$ 100.000,00), a diferença entrará na
comunhão.

Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na
constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

477 Para uma visão completa dos patrimônios pessoais e comum, deve-se ler o art. 1.658 a 1.660 do Código Ci-
vil.

685
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casa-
mento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; [bens adquiridos a título
gratuito não entram na comunhão]

II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-


rogação dos bens particulares;

III - as obrigações anteriores ao casamento;

IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;

V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; [esta hipótese pode conduzir a
uma conclusão injusta, no caso, por exemplo, da esposa que ajuda o dentista a montar seu con-
sultório]

VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.

Pela letra da lei, o direito ao crédito salarial (provento do trabalho pessoal de cada cônjuge) não en-
traria na meação (ainda que haja a comunicabilidade dos bens adquiridos com o salário). Ocorre que o
STJ, em mais de uma oportunidade, já decidiu contra legem: buscando evitar situações em que a esposa
saísse do casamento sem qualquer bem, o Tribunal mandou dividir o crédito trabalhista referente ao pe-
ríodo em que o casal esteve junto (REsp 421.801/RS e REsp 646.529/SP). Admitindo a divisão do FGTS,
em união estável, ver o REsp 758.548/MG.
Ademais, é de se observar que no caso dos incisos VI e VII do art. 1.659, CC, deve-se fazer uma in-
terpretação restritiva para não ferir o “espírito do regime”. Assim, se o valor for patrimonializado, haverá
a comunicação.

Art. 1.660. Entram na comunhão:

I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de
um dos cônjuges; [o sujeito que adquire um carro ou um escritório, ainda que só com o salário
dele, terá de dividir o valor com a esposa, em caso de divórcio, Para a comunicação não há ne-
cessidade de prova de esforço comum, havendo presunção de ingresso nos aquestos]

II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anteri-
or; [se o sujeito ganhar na Mega Sena, metade do prêmio será da esposa]

III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;

IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;

V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância
do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. [aluguéis de imóvel e verbas
trabalhistas recebidas ou pendentes durante a união. REsp. 646.529/SP e REsp.
1.399.199/RS.]

686
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Outra regra importante na comunhão parcial é a prevista no art. 1.661 do Código Civil:

Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao ca-
samento.

Trata-se do exemplo dado anteriormente, do sujeito que possuía um carro antes do casamento e,
com o dinheiro da venda, adquire outro, no curso do casamento. O carro adquirido não entrará na co-
munhão, uma vez que a aquisição teve por título uma causa anterior ao casamento. Da mesma forma, se
o sujeito tinha uma poupança, o que ele tinha até o casamento não se divide.
Questão interessante: o sujeito, solteiro, celebra um compromisso de compra e venda, financiando
a aquisição de um apartamento, e quita todas as prestações antes do casamento. Como se sabe, quando o
promitente comprador quita todas as prestações, é então lavrada a escritura definitiva de compra e ven-
da. Celebrada a promessa, o sujeito não é efetivamente dono da coisa. Somente com a quitação de todas
as parcelas é lavrada a escritura definitiva de compra e venda, ocasião em que o sujeito passa a ser consi-
derado dono. Pois bem, o sujeito casa-se e a escritura de compra e venda é lavrada somente após o casa-
mento. Formalmente, o sujeito torna-se dono da coisa com a lavratura da escritura definitiva. No entan-
to, como determina o art. 1.661 do CC/2002, tal bem é incomunicável, na medida em que a aquisição teve
por título uma causa anterior ao casamento. Orlando Gomes chega a dizer que a escritura definitiva, nes-
se caso, é um ato devido, consequencial, decorrente da necessidade de formalização.
Caso o cidadão, no exemplo dado, tivesse pagado metade das prestações enquanto casado, a esposa
teria direito proporcional de meação no que se refere ao valor das prestações pagas ao longo do casamen-
to. Trata-se de presunção de esforço comum, pouco importando se as parcelas foram pagas com o salário
exclusivo do cônjuge.

2.10.2.3. Regime da comunhão universal de bens (Art. 1.667 a 1.671, CC)


A comunhão universal era o regime de bens preferido do direito antigo, tanto que até 1977 era o
supletivo, como visto. Era preponderante em Portugal (por isso influenciou a legislação brasileira) e elo-
giado por autores clássicos, com Lafayete Rodrigues Pereira. Hoje, ele está em desuso, na medida em que
as pessoas tendem a não optar por regime (caindo na comunhão parcial) e, quando o fazem, não optam
por ele, pelas razões que serão vistas a seguir.
O regime de comunhão universal de bens tende à unidade patrimonial. Vale dizer, nele se opera
uma comunicabilidade de bens anteriores e posteriores ao casamento, adquiridos a título gratuito ou
oneroso, ressalvadas algumas exceções (art. 1.667 e seguintes do CC).
Na comunhão universal, segundo Arnaldo Rizzardo, ocorre uma comunicabilidade quase que total
do patrimônio do casal. Dividem-se os bens adquiridos antes do casamento e os bens adquiridos a título
gratuito. Até determinadas dívidas anteriores se comunicam, se contraídas em razão do casamento (pro-

687
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

venientes de despesas com os aprestos ou revertidas em proveito comum, nos termos do art. 1.668, III).
Por isso que as pessoas tendem a não optar por esse regime:

Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes
e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.

Art. 1.668. São excluídos da comunhão:

I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu


lugar;

II - os bens gravados de fideicomisso 478 e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realiza-


da a condição suspensiva; [Quando o bem estiver com o fiduciário (1.º herdeiro) haverá inco-
municabilidade, pois a sua propriedade é resolúvel, protegendo-se o direito do fideicomissário
(2.º herdeiro)].

III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos
[presentes de casamento, dívidas com o enxoval etc.], ou reverterem em proveito co-
mum;

IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomuni-
cabilidade;

V - Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.

Quanto aos frutos, são eles comunicáveis, mesmo que sejam retirados de bens incomunicáveis,
mas desde que vençam ou sejam percebidos na constância do casamento (art. 1.669 do CC). Para ilus-
trar, os aluguéis retirados por um dos cônjuges em relação a um imóvel recebido com cláusula de inco-
municabilidade são comunicáveis.

Art. 1.669. A incomunicabilidade dos bens enumerados no artigo antecedente não se estende aos
frutos, quando se percebam ou vençam durante o casamento.

2.10.2.4. Regime da participação final nos aquestos (Art. 1.672 a 1.686, CC)
O regime da participação final nos aquestos nasceu fadado ao desuso (Silvio Venosa, Débora Bran-
dão). Ele nasce na Europa, e surge no CC/02, em substituição ao regime dotal, hipótese em que o pai da
noiva dava um dote ao marido, para que ele administrasse os bens dela. A ela era reservada a possibili-
dade de administrar poucos bens, chamados de “parafernais”. A esposa, no regime dotal, era considerada
quase como incapaz.

478O fideicomisso, ensina Flávio Tartuce, é uma forma de substituição testamentária em que um primeiro
herdeiro (fiduciário) pode ser substituído por outro (fideicomissário). Quando o bem estiver com o fiduciário (1.º
herdeiro) haverá incomunicabilidade, pois a sua propriedade é resolúvel, protegendo-se o direito do fideicomissário
(2.º herdeiro).

688
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Os autores brasileiros, quase que unanimemente, dizem que se trata de um regime horroroso,
complexo, confuso, de normas problemáticas e de difícil execução. Segundo Maria Berenice Dias, seria
necessário haver uma contabilidade ao longo do casamento, para evitar fraudes.
Segundo Flávio Tartuce durante o casamento, há uma separação convencional de bens. No caso de
dissolução, há algo próximo de uma comunhão parcial. Cada cônjuge terá direito a uma participação
quanto aos bens que colaborar para a aquisição, devendo comprovar o esforço patrimonial comum.
No regime da separação convencional de bens (a mais profunda, por ser escolhida pelas partes), há
nítida diferença entre os patrimônios. O bem adquirido no nome de um dos cônjuges somente a ele per-
tence, cabendo ao outro, eventualmente, demandar o ex em eventual ação de enriquecimento ilícito. Na
comunhão parcial, opera-se uma separação do passado e uma comunicabilidade dos bens adquiridos
durante o casamento, a título oneroso.
A ideia da participação final nos aquestos, em si, é boa. O problema é executá-la: é a criação de um
regime autônomo, com características híbridas. Ao longo do casamento, ele funciona como um regime de
separação de bens (cada um administra seus próprios bens). Todavia, tudo o quanto adquirido com o
esforço comum do casal (e não só de um dos cônjuges), entrará na meação. A diferença para o regime
da comunhão parcial é que, nesta, entram na meação não somente os bens adquiridos pelo casal, a título
oneroso, mas também é dividido aquilo que for adquirido por um só dos cônjuges. O problema da parti-
cipação final nos aquestos é a dificuldade que há na investigação, ao longo do casamento, dos bens por-
ventura adquiridos pelo casal, a título oneroso.
Ou seja, terão de ser investigadas cinco massas patrimoniais: i) o que o marido tinha antes do ca-
samento; ii) o que o marido tinha depois do casamento; iii) o que a esposa tinha antes do casamento; iv)
o que a esposa tinha depois do casamento; e v) o que foi adquirido pelo casal a título oneroso. Na comu-
nhão parcial de bens, investiga-se somente o que foi adquirido a título oneroso, por um ou por ambos. Na
participação final nos aquestos, deve-se analisar o que o casal adquiriu. As regras de cálculo na participa-
ção final nos aquestos são específicas (arts. 1.673 e 1.674), para evitar enriquecimento sem causa ou frau-
des.
A disciplina do regime de participação final nos aquestos é feita a partir do art. 1.672 do Código Ci-
vil:

Art. 1.672. No regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio pró-
prio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade con-
jugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casa-
mento.

A característica do regime da participação final nos aquestos, como visto, é a seguinte: funciona ao
longo do casamento como se fosse de separação de bens, mas admite, ao tempo do divórcio, a meação
acerca dos bens adquiridos onerosamente pelo casal, meação essa que será calculada especialmente nos
termos dos arts. 1.673 e 1.674:

689
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.673. Integram o patrimônio próprio os bens que cada cônjuge possuía ao casar e os por ele
adquiridos, a qualquer título, na constância do casamento.

Parágrafo único. A administração desses bens é exclusiva de cada cônjuge, que os poderá livre-
mente alienar, se forem móveis.

Art. 1.674. Sobrevindo a dissolução da sociedade conjugal, apurar-se-á o montante dos aqüestos,
excluindo-se da soma dos patrimônios próprios:

I - os bens anteriores ao casamento e os que em seu lugar se sub-rogaram;

II - os que sobrevieram a cada cônjuge por sucessão ou liberalidade;

III - as dívidas relativas a esses bens.

Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos durante o casamento os


bens móveis.

O regime de participação final nos aquestos dificilmente será aplicado no Brasil, por isso, Flávio
Tartuce considera pouco provável que ele caia em questão prática, para evitar questionamentos e críticas,
em virtude da dificuldade de intelecção de suas normas.
Ademais, deve ficar claro que os bens de participação não se confundem com a meação, pois a úl-
tima independe da prova de esforço comum para a comunicação.

2.10.2.5. Regime da separação convencional de bens (art. 1.687 e 1.688 do CC)


O regime da separação convencional não se confunde com o da separação legal de bens. É mais for-
te. Na separação convencional, em virtude de as partes terem tido a oportunidade de escolha do regime, à
luz do princípio da autonomia privada, não há meação:

Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de
cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.

O grande problema deste regime de bens decorre das modificações operadas pelo CC/02 no direito
das sucessões, as quais serão estudadas adiante. Paradoxalmente, o cônjuge casado sob o regime da se-
paração total de bens concorre na herança com os descendentes do morto, mesmo que não sejam filhos
comuns do casal. Trata-se de uma contradição, na medida em que a separação foi criada justamente com
o propósito de separar patrimônios: ocorre como que uma separação em vida e uma união na morte.
O STJ tem um interessante julgado, com intenção boa, mas fundamentação discutível, para tentar
contornar essa injustiça: um casal se separou de fato, não partilhou bens, mas continuava casado no pa-
pel. O ex-cônjuge passou a viver com outra pessoa e adquiriu patrimônio com ela. A ex-esposa pleiteou
direito sobre os bens adquiridos na vigência daquela união estável. O STJ reconheceu que a primeira
mulher tem direito somente à partilha dos bens adquiridos até a separação de fato, na medida em que
não tem sentido falar-se em partilha de bens (condomínio), se não há mais afeto (REsp 555.771/SP).

690
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalmente, é de se notar que a Súmula n. 377 do STF não se aplica à separação convencional
de bens, somente à separação legal conforme já visto acima e decidido pelo STJ479.

2.11. Outorga uxória

Quem é casado não tem mais a liberdade para a prática de determinados atos, como se solteiro fos-
se, de modo que tais atos somente poderão ser praticados com a anuência do outro, a chamada “vênia
conjugal”ou outorga conjugal, que a depender de quem pratica o negócio pode ser:
i. Uxória = esposa;
ii. Marital = marido.
Geralmente, a vênia conjugal é chamada de outorga uxória, mas os mais puristas preferem desig-
nar como outorga uxória somente a autorização da pela esposa ao marido, enquanto que a dada pelo ma-
rido à esposa seria a autorização marital. Pablo considera essa diferença terminológica um preciosismo,
mas ela pode ser exigida em prova.
A autorização ou vênia conjugal é uma expressão que serve para ambos os casos e designa a autori-
zação dada pelo cônjuge para a prática de determinados atos. Está prevista no art. 1.647 do Código Civil
(o dispositivo deve ser memorizado):

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do
outro, exceto no regime da separação absoluta [Pablo, na linha de Nelson Nery, interpre-
ta essa expressão “separação absoluta” como designando a convencional, na me-
dida em que a legal ou obrigatória admite patrimônio comum]:

I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;

II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;

III - prestar fiança ou aval;

IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura
meação.

Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelece-
rem economia separada.

Nenhum dos cônjuges pode, exceto no regime de separação absoluta convencional, alienar ou gra-
var de ônus reais os bens imóveis sem autorização do outro, ainda que o bem a ser alienado pertença ao
patrimônio exclusivo dele. Veja que o cônjuge pode adquirir bens sem autorização.
O que a lei toma por referência para a dispensa da outorga não é a origem do bem, mas o tipo de
regime de bens. A única ressalva feita pela lei é a hipótese do sujeito casado no regime de separação abso-
luta.

479 (REsp 1.481.888, Rel Min. Marco Buzzi. Quarta Turma. Julgado em 10/04/2018, DJe 17/04/018).

691
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Note que mesmo quem é casado sob o regime da participação final nos aquestos deverá obter a ou-
torga uxória para a prática dos atos acima, na medida em que a lei não ressalva esse regime. Todavia no
caso da participação final, há uma norma possibilitando às partes que afastem, no pacto antenupcial, a
necessidade de outorga uxória para a disposição dos bens imóveis particulares (art. 1.656). Para todos os
demais incisos, deverá buscar a outorga uxória:

Art. 1.656. No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos aqüestos, poder-
se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares.

O inciso II do art. 1.647 é estudado em processo civil, em tema de litisconsórcio.


O inciso III veda que o cônjuge, sem a autorização do outro, preste fiança ou aval 480, exceto no re-
gime de separação convencional.
Quanto à fiança, o STJ editou a Súmula 332, segundo a qual a prestada sem a outorga é completa-
mente ineficaz (não podendo ser aproveitada sequer a metade dela):

Súmula 332 - A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da
garantia.

A Súmula não menciona o aval, mas Pablo entende que o raciocínio tem de ser o mesmo, entretan-
to, o Enunciado 114 da III JDC481 estabelece que o aval não pode ser anulado por falta de outorga pois
ofenderia o princípio da circulação dos títulos de credido, de modo que o caso seria de ineficácia, oq eu
segundo Flávio Tartuce é contra legem.
A respeito da controvérsia, o STJ482 decidiu que os arts. 1.647 e 1.649 somente se aplicam para os
títulos de crédito atípicos (art. 903, CC). Para os títulos de créditos típicos, a falta de outorga gera ineficá-
cia do aval.
O STJ manifestou-se no REsp 1.299.866/DF, sobre a aplicação da Súmula 332 à união estável e de-
cidiu que, ainda que união estável esteja formalizada por meio de escritura pública, é válida a fiança pres-
tada por um dos conviventes sem a autorização do outro. Isso porque o entendimento de que a “fiança
prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia”, conquanto seja apli-
cável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. Isso porque a união estável so-
mente produz efeitos intra partes, mesmo que esteja registrada formalizada em cartório. Dessa forma,
terceiros não podem ser afetados pela união estável. O companheiro que prestou fiança sem a autoriza-
ção da companheira, responderá civilmente em face da companheira pelos danos causados, mas o credor
terá o direito de execução de seu crédito.

480 Segundo Fábio Ulhoa “aval é o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete a pagar títu-
lo de crédito, nas mesmas condições que um devedor desse título (avalizado)”.
481 Enunciado 114 da I JDC: “O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inc. III

do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu.” (contra legem).
482 (REsp 1.633.399/SP, 4ª turma, de 2016; REsp 1.526.560/MG, 3ª turma, de 2017).

692
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O STJ não quer dizer a união estável seria uma entidade de segunda classe, mas apenas que são en-
tidades distintas que produzem efeitos distintos. O casamento é formal e solene e produz efeitos erga
omnes. A união estável é informal e não solene e somente produz efeitos intra partes.
A Doação remuneratória é aquela realizada em atenção a serviços prestados (ex.: doação ao médico
da família, que nunca cobrou nada). Em regra, não poderá o cônjuge, sem a anuência do outro, fazer do-
ação (salvo remuneratória) de bens comuns ou que possam integrar futura meação. Até porque se trata
de ato de alienação. Caso se trate de imóvel, incidirá a regra do inciso I. Caso se trate de móvel, caberá a
do inciso IV.
As doações nupciais são válidas, independentemente da anuência do outro, porque feitas aos filhos.

Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos côn-
juges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.

Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará
anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois
de terminada a sociedade conjugal.

Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou
particular, autenticado.

Aqueles atos que somente podem ser prestados com a anuência do outro, se praticados, são anulá-
veis, no prazo de dois anos, contados do fim do casamento, a teor do Art. 1.649, acima visto.
Finalmente, Flávio Tartuce assevera que o art. 1.650 do CC estipula serem legitimados para a pro-
positura da ação anulatória (interessados) o cônjuge a quem cabia conceder a outorga ou seus herdeiros.
Nesse sentido, o próprio cônjuge que praticou o ato não tem legitimidade para pleitear a anulação
(venire contra factum proprium non potest).

2.12. Pacto Antenupicial

Na lição de Flávio Tartuce o pacto antenupcial constitui um contrato formal e solene pelo
qual as partes regulamentam as questões patrimoniais relativas ao casamento (arts. 1.653 a 1.657 do CC).
Assim, deve celebrado por escritura pública, no Tabelionato de Notas, sob pena de nulidade
do pacto e não do casamento, sendo ineficaz o pacto se não for seguido pela solenidade.
Interessante questão aborada do Flávio Tartuce diz respeito à possibilidade de se aproveitar o pacto
como contrato de convivência, com base no princípio da conservação do negócio jurídico (posicionamen-
to de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald já utilizado pelo STJ483).
O art. 1.655 do CC dispõe que é nula a convenção ou cláusula que constar no pacto que conflite com
disposição absoluta de lei, ou seja, que colida com normas de ordem pública. P. ex. Cláusula que afasta o

483 (REsp n. 1.483.863/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. Julg. 10/05/2016. Dje. 22/06/2016)

693
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

art. 1.641 do CC (causas de separação obrigatória) ou Cláusula que afaste a concorrência sucessória – art.
426, CC.
O art. 1.656 do CC permite que o pacto antenupcial afaste a aplicação do art. 1.647, I, do CC, no re-
gime da participação final dos aquestos. Aplica-se aos bens imóveis particulares.
O art. 1.657 do CC estabelece que o pacto deve ser levado a registro no Cartório de Registro de Imó-
veis do domicílio dos cônjuges para que tenha efeitos erga omnes, ou seja, contra terceiros.

2.13. Prova do casamento

É importante provar o casamento, primeiramente, porque o casamento é um negócio jurídico sole-


ne. Aliás, é o mais solene de todos os negócios jurídicos (o segundo mais solene é o testamento). Em se-
gundo lulgar, porque o casamento produz efeitos em relação a terceiros. Exemplos: presunção de pater-
nidade dos filhos, emancipação, mudança do estado civil. A propósito, esses três efeitos que se projetam
em relação a terceiros não se aplicam em relação à união estável.
É indiscutível, portanto, a necessidade de provar o casamento. O CC/02 dedicou um capítulo espe-
cífico para a prova do casamento, explicitando-a e organizando-a em duas vertentes:
i) forma direta:
A prova direta do casamento é o registro em cartório. Mas, prejudicada a prova direta, admite-se
uma prova indireta. Note que aqui não se fala em certidão de casamento, mas no registro de casamento,
hipótese em que é impossível requerer a 2ª via do registro de casamento. Ex.: perda do sistema de infor-
mática, incêndio, curto-circuito.
ii) forma indireta, também chamada de supletória:
A prova indireta ou supletória será produzida na ação de justificação de casamento. Nesta ação, o
interessado produzirá qualquer tipo de prova para demonstrar a existência do casamento. Ex.: prova
fotográfica, testemunhal.
Esta ação está submetida ao princípio do in dubio pro casamento. Há um detalhe fundamental: a
sentença proferida nesta ação produzirá efeitos retroativos, efeitos retro-operantes.
Um dos meios de prova permitidos na ação de justificação de casamento como prova supletória é a
chamada posse do estado de casado, que nada mais é que a incidência da teoria da aparência. A teoria da
aparência significa tornar jurídica uma situação fática. Portanto, se as pessoas se apresentam faticamente
como casadas, essa posse do estado de casado serve de prova indireta na ação de justificação de casamen-
to.
Lembre que a prova indireta só poderá ser usada na ausência de prova direta (registro do casamen-
to).
Pergunta-se: admite-se a posse do estado de casado como prova para a conversão da união estável
em casamento? Não, pois a posse do estado de casado é uma forma de prova do casamento e não da

694
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

união estável. Só se fala em posse do estado de casado quando as partes efetivamente eram casadas, o
que se mostra incompatível com a união estável.
O CC/02 não diz que a eficácia retroativa depende fundamentalmente da prova da existência do ca-
samento. E não diz, pois não é preciso fazê-lo (está implícito). Caso a existência do casamento não seja
provada, obviamente, não há que se falar em eficácia retroativa.

2.14. Modalidades de casamento

2.14.1. Noções gerais


As modalidades de casamento são:
i) casamento civil e religioso com o mesmo efeito (ex.: EUA);
ii) casamento somente civil (ex.: Argentina, Chile, Uruguai);
iii) casamento somente religioso (ex.: Líbano); e
iv) casamento religioso basicamente, mas civil para as religiões não oficiais (ex.: Espanha).
O direito brasileiro adota o sistema do casamento somente civil (art. 226, §§ 1º e 2º, da CR):

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

Todo casamento é civil e civis são seus efeitos. Portanto, no Brasil, o casamento religioso ou ecle-
siástico será no máximo união estável. Não se pode confundir o casamento civil com cerimônia religiosa,
que é o mais comum no Brasil.
O sistema brasileiro diz que o casamento é civil, mas a cerimônia pode ser civil, presidida pelo juiz,
ou eclesiástica (religiosa), celebrada pela autoridade religiosa. De qualquer forma, deve ter havido habili-
tação para o casamento e certidão do cartório para casar. Faltando um desses requisitos não se tratará de
casamento.
A cerimônia do casamento civil pode ser religiosa. Porém, pode ser de qualquer religião? Em razão
da garantia constitucional da liberdade de crença, qualquer religião pode celebrar a cerimônia de casa-
mento civil. Já há precedentes na jurisprudência de casamentos realizados na religião de umbanda e no
centro espírita. Lembre que os requisitos civis devem ser observados na cerimônia de casamento realiza-
da por qualquer religião.
O art. 1.512 do CC confirma que o casamento é civil e que civis são os seus efeitos. Atenção, pois o
Código diz, ainda, que o casamento é civil e a sua celebração é gratuita. Essa celebração gratuita é a ceri-
mônia civil. Assim, a pessoa que queira se casar com cerimônia religiosa terá de se submeter às taxas
que cada religião eventualmente cobrar:

Art. 1.512. O casamento é civil e gratuita a sua celebração.

695
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Parágrafo único. A habilitação para o casamento, o registro e a primeira certidão serão isentos
de selos, emolumentos e custas, para as pessoas cuja pobreza for declarada, sob as penas da lei.

Além de a cerimônia civil ser sempre gratuita, a habilitação, o registro e a primeira certidão serão
gratuitos para as pessoas reconhecidamente pobres, na forma da lei. Pobre na forma da lei é quem assim
se declara, dizendo que não pode pagar as custas sem sacrifício de sua subsistência e de sua família (art.
1.512, parágrafo único do CC).

2.14.2. Posterior eficácia civil do casamento religioso


Não se pode ignorar a influência religiosa no casamento. Para muitos, se não houver casamento na
igreja, não houve casamento. O gesto de casar perante a religião é mais importante que o casamento ce-
lebrado perante a autoridade judiciária. O CC/02 não ignorou esses costumes do povo brasileiro.
Assim, nos arts. 1.515 e 1.516, o CC/02 permitiu a eficácia civil posterior para o casamento religioso.
Celebrado um casamento religioso (somente na igreja) é possível requerer ao juiz eficácia civil posterior,
dentro da própria habilitação para casamento. Não é necessária sequer a propositura de uma ação. O
casal prova que se casou na cerimônia religiosa, juntando a certidão da igreja e o juiz dispensa a celebra-
ção de um novo casamento e expede a certidão de casamento, com eficácia retroativa.

Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento
civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da
data de sua celebração.

Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o
casamento civil.

Não há prazo para requerer essa eficácia civil posterior.


Pergunta-se: esta possibilidade transmudaria o sistema brasileiro para o sistema que admite o ca-
samento civil e religioso com a mesma eficácia? Não, pois nesse caso o casamento está ganhando eficácia
civil. Enquanto ele for somente religioso, não produzirá efeitos civis.
Atente para a regra que segundo a qual, quando o casamento é realizado com cerimônia religiosa, o
casal dispõe do prazo decadencial de 90 dias para registrar a ata do casamento em cartório. Se não o fi-
zer, dentro do prazo de 90 dias, opera-se a decadência.
Um exemplo é a pessoa que viaja de lua-de-mel e se esquece de levar a ata do casamento religioso
para registrar em cartório. Decorrido o prazo de 90 dias, a pessoa terá de se casar de novo. Para que o
tempo desde a celebração religiosa seja aproveitado, uma solução é pedir ao juiz que confira efeito civil
posterior ao casamento religioso, dispensada uma nova cerimônia, conferindo-se efeito retroativo ao
casamento.

696
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O CC/02 não diz que a eficácia retroativa depende da ausência de impedimento matrimonial. Esse
é mais um caso de regra implícita. Suponha que o casamento religioso de João e Maria se deu em
01/10/1990. Porém, o casamento não deu certo e, no dia 01/101993, eles se separaram de fato. Veja que,
se o casamento foi somente no religioso, trata-se de uma separação de fato, pois eles continuavam soltei-
ros. Lembre que no Brasil casamento somente religioso não produz efeitos civis. No dia 01/10/1995 João
resolve se casar no civil com Tereza. Na sequência, o casamento não dá certo com Tereza, divorciando-se
o casal em 01/10/1999. João volta a conviver com Maria e os dois reestabelecem a relação em
01/10/2001. João e Maria, reestabelecido um casamento religioso que nunca fora dissolvido, resolvem
buscar os efeitos retroativos do casamento. Nesse caso, não é possível haver a eficácia retroativa, pois
havia impedimento matrimonial. No período compreendido entre 1995 e 1999, João esteve casado com
Tereza.
Assim, a existência de impedimento matrimonial obsta a retroatividade. Essa ideia emana de uma
interpretação sistêmica do CC/02.

2.15. Habilitação para o casamento

A habilitação para o casamento é procedimento administrativo, com a intervenção do MP, que


tramita perante o cartório de registro civil, com a finalidade de demonstrar a inexistência de impedimen-
to matrimonial.
Detalhe importante é que esse procedimento sempre tramita em cartório, nunca em juízo, mesmo
que exista interesse de estrangeiros. Será sempre no cartório do registro civil do domicílio dos cônjuges.
Se os cônjuges tiverem domicílios diversos (ex.: um em São Paulo e outro em Aracajú), a habilita-
ção poderá tramitar no domicílio de cada um deles, mas os proclamas serão publicados, obrigatoriamen-
te, no domicílio de ambos.
O procedimento de habilitação para o casamento possui quatro diferentes fases:
i) requerimento e documentação:
Esta fase se inicia com o requerimento dos cônjuges, pessoalmente ou por procurador. O prazo de
validade dessa procuração prevista no caput é de 90 dias, e ela tem de ser realizada por escritura pública,
com poderes específicos.
Jutamente com o requerimento de habilitação, os cônjuges precisam apresentar os seguintes do-
cumentos (art. 1.525 do CC): certidão de nascimento ou documento equivalente que prove a idade núbil
(ex.: certidão de outro casamento com o divórcio averbado); autorização dos pais ou das pessoas sob cuja
dependência legal estiver (ex.: tutor); declaração de duas testemunhas que afirmem não existir impedi-
mento; declaração dos noivos de estado civil e domicílio; certidão de óbito ou de divórcio averbado, para
os que forem viúvos ou divorciados:

Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nuben-
tes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes

697
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

documentos:

I - certidão de nascimento ou documento equivalente;

II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que
a supra;

III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afir-
mem não existir impedimento que os iniba de casar;

IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais,
se forem conhecidos;

V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de


casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.

Como visto, a idade núbil no Brasil é 16 anos. O art. 1.520 do CC autoriza o casamento do menor de
16 anos, quando houver suprimento judicial da idade. São as hipóteses de gravidez ou para impedir a
aplicação de sanção penal (essa segunda parte restou prejudicada, pois o casamento não mais é causa de
extinção da punibilidade). Nesse caso, o regime do casamento obrigatoriamente será o de separação de
bens:

Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade
núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravi-
dez.

Evidentemente, a autorização prevista no inciso II só será necessária para as pessoas que tenham
entre 16 e 18 anos de idade. Havendo recusa de um ou de ambos os pais, admite-se suprimento judicial
do consentimento (os pais devem ser citados).
O art. 71 do CPC diz que o incapaz somente pode litigar no processo se estiver devidamente repre-
sentado ou assistido:

Art. 71. O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na
forma da lei

No caso de suprimento judicial, os pais iriam se recusar a assistir esse menor no processo. A solu-
ção está no art. 72 do CPC, que diz que havendo conflito entre os interesses do incapaz e o do seu repre-
sentante ou assistente, o juiz nomeará curador especial para regularizar a representação processual:
As testemunhas do casamento e da habilitação podem ser parentas dos noivos. Normalmente são,
inclusive. Só existe um caso em que a testemunha não pode ser parenta: é o casamento nuncupativo.
ii) publicação dos editais de proclamas:
Apresentados os documentos, serão publicados os editais de proclamas, com prazo de 15 dias para
impugnação. Os editais serão publicados no cartório e na imprensa oficial, onde houver. Findo o prazo,
com ou sem impugnações, a habilitação será remetida para o MP.

698
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A homologação judicial, nesse caso, é dispensada. O juiz somente intervirá se houver impugnação
ou contrariedade do MP.
iii) expedição da certidão de habilitação para o casamento:
Essa certidão será entregue aos nubentes, para que possam casar.
iv) registro da certidão:
Os nubentes devem registrar a certidão, para que possa fluir o prazo de 90 dias para que o casa-
mento seja celebrado. O casamento tem de ser celebrado dentro desse prazo de 90 dias, sob pena de de-
cadência.

2.16. Celebração do casamento

2.16.1. Formalidades
Sendo o casamento formal e solene, é natural que existam algumas formalidades na sua celebração.
É importante perceber que a celebração do casamento exige um número mínimo de pessoas. Para
que se inicie a cerimônia de casamento, exige-se a presença: dos dois nubentes, pessoalmente ou por
procurador; da autoridade celebrante (autoridade judiciária, se o casamento for civil ou autoridade ecle-
siástica, se o casamento for religioso); duas testemunhas (as testemunhas podem ser parentas dos noi-
vos); se a cerimônia for civil, deve estar presente o oficial do cartório.
O número de pessoas que devem estar presentes na cerimônia de casamento está previsto no art.
1.535:

Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as
testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que
pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:
"De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por
marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."

O número mínimo é de seis pessoas, mas se a cerimônia for religiosa dispensa-se a presença do
Oficial de Cartório, pois nesse caso os noivos disporão do prazo de 90 dias para registrar a ata do casa-
mento posteriormente.
Nesse prazo de 90 dias para o registro, se os noivos não registrarem a ata do casamento opera-se a
decadência. O casamento será inexistente e os noivos terão que casar de novo, tendo de se submeter a
uma nova habilitação.
Os noivos podem fazer-se representar por procurador. Essa procuração deve ser por escritura pú-
blica, com poderes especiais para o ato e tem prazo de validade de 90 dias. O casamento é um ato perso-
nalíssimo, mas pode ser celebrado por meio de procurador.

2.16.2. Declaração de vontade

699
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Presentes as seis pessoas necessárias, inicia-se a cerimônia com a declaração de vontade dos nu-
bentes. É o tradicional “sim”. Todavia, ao invés de dizer “sim”, os noivos podem se valer de qualquer ex-
pressão afirmativa. Se assim não fosse, a pessoa muda não poderia se casar. Por isso, não é preciso que
seja uma afirmação verbal, mas é preciso que a pessoa demonstre com clareza a sua vontade de contrair
matrimônio.
Havendo gracejos, expressões dúbias ou hesitação que causem dúvida quanto à vontade dos nu-
bentes, a autoridade celebrante poderá suspender a cerimônia, que só poderá ser retomada 24h depois.
Com a presença do número mínimo de pessoas e a declaração de vontade, a cerimônia de casamen-
to chega a seu momento final: o da chancela estatal. Esse momento chama-se “leitura da fórmula sacra-
mental”, a qual será realizada pela autoridade celebrante (art. 1.535, parte final, do CC).
Surge então a pergunta: qual o momento existencial do casamento? A declaração de vontade ou a
leitura da fórmula sacramental? Como o casamento depende da declaração de vontade, havia certa incli-
nação em dizer que o momento existencial seria a declaração de vontade. Contudo, esclarecendo a dúvi-
da, o art. 1.514 do Código Civil afirma que o momento existencial do casamento (o momento em que ele
passa a existir) é o da leitura da fórmula sacramental:

Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, peran-
te o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

2.16.3. Leitura da fórmula sacramental


Leitura da fórmula sacramental é mais que solenidade, sendo condição de existência do casamento.
O CC/02 exige que o local do casamento esteja de portas abertas: o casamento pode se realizar no prédio
do fórum (local público) ou em prédio particular, hipótese na qual o casamento deve se realizar de portas
abertas.
Outro detalhe importante é que se a cerimônia se realizar em prédio particular ou se um dos noivos
for analfabeto, dobra-se o número de testemunhas, ou seja, será necessário que quatro testemunhas pre-
senciem a cerimônia.
O CC dispõe prevê dois casos em que a cerimônia de celebração do casamento será flexibilizada (te-
rá regras menos rígidas):
i) casamento com moléstia grave (art. 1.539):

Art. 1.539. No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá celebrá-lo on-
de se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas testemunhas que
saibam ler e escrever.

§ 1º A falta ou impedimento da autoridade competente para presidir o casamento suprir-se-á


por qualquer dos seus substitutos legais, e a do oficial do Registro Civil por outro ad hoc, nome-
ado pelo presidente do ato.

§ 2º O termo avulso, lavrado pelo oficial ad hoc, será registrado no respectivo registro dentro em

700
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cinco dias, perante duas testemunhas, ficando arquivado.

Se um ou ambos os nubentes padecem de moléstia grave e já houve habilitação (estão aptos para
casar, por já possuírem autorização do cartório), a autoridade celebrante (o juiz) poderá antecipar a ce-
rimônia, dirigindo-se ao local em que estiverem os nubentes e, na presença do oficial do cartório, cele-
brar a cerimônia de casamento. Nesse caso, os nubentes não podem esperar até a data do casamento, em
razão de moléstia grave.
Note que há uma flexibilização mínima, pois os nubentes já estavam habilitados. A autoridade dis-
pensa apenas a espera pela data, hora e local previamente determinados.
ii) casamento nuncupativo (art. 1.540 e seguintes)

Art. 1.540. Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a pre-
sença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento
ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em
linha reta, ou, na colateral, até segundo grau.

Casamento nuncupativo é aquele em iminente risco de morte (in extremis vitae). Nesta hipótese,
não houve habilitação prévia e os nubentes estão passando por caso de iminente risco de morte. Os nu-
bentes devem declarar a vontade na presença de seis testemunhas, que não podem ser parentes. Exige-se
o perigo de morte (não há tempo para cumprimento das formalidades ou para que seja possível a presen-
ça do juiz) e seis testemunhas, que não podem ser parentes.
Superada a situação de risco, as seis testemunhas dispõem do prazo de 10 dias para requererem em
juízo a homologação desse casamento. Esse prazo é impróprio (prazo de preclusão fraca), isto é, depois
desses 10 dias, não só as testemunhas, mas qualquer interessado poderá requerer a homologação do ca-
samento nuncupativo. Ex.: se os próprios noivos sobreviveram, eles poderão requerer a homologação,
seus parentes, caso tenha havido morte etc.
O juiz manda processar a habilitação para o casamento para que se verifique se não há impedimen-
tos matrimoniais e, após isso, determina a instrução. Na instrução devem ser provados: a presença das
seis testemunhas, a declaração de vontade e o risco de morte. O MP deve ser ouvido antes da decisão do
juiz.
Na prática, se as seis testemunhas morreram será de difícil a comprovação o casamento nuncupati-
vo.
Se, porventura, não houver prova, o juiz indeferirá a homologação e o ato é considerado inexisten-
te. Caso venha a homologar o casamento, o fará no regime de separação obrigatória de bens. Os efeitos
da homologação são retroativos à data da celebração do casamento.
Casamento consular é o casamento de conacionais (pessoas da mesma nacionalidade) que estejam
no estrangeiro, celebrado perante a sua autoridade consular. Ex.: dois brasileiros que estão em Portugal e

701
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

se casam perante o cônsul brasileiro; ou dois Argentinos que estão no Brasil e se casam perante o cônsul
argentino.
O consulado é uma extensão do país. Por isso, o casamento consular se submete às regras do país
de origem dos noivos. Pegadinha de concurso: não se deve confundir casamento consular com registro de
casamento celebrado no estrangeiro. Ex.: brasileira que se casa com um alemão, na Alemanha, submete-
se às regras alemãs. Contudo, ela deseja que eventualmente, retornando ao país, mantenha o seu estado
de casada, e para isso ela deve registrar o casamento no Brasil. É hipótese de casamento realizado no
estrangeiro que deve ser registrado no Brasil.
O CC/02 estabelece que, dentro de 180 dias, contados da data em que voltar a ter domicílio no Bra-
sil, o interessado deve registrar o casamento no Cartório de Registro Civil do 1º Ofício de seu domicílio.
Registrado o casamento, garante-se o estado civil de casado, também no Brasil.
Caso deseje, o interessado pode registrar o casamento antes mesmo de voltar a ter domicílio no
Brasil. Porém, se não registrado dentro do prazo, a pessoa permanece solteira no Brasil, ainda que pos-
sua o status de casada em outro país.
O casamento termina apenas de duas formas: com a morte ou com o divórcio. Assim, a pessoa que
não declare que é casada em outro país só poderá casar-se novamente no Brasil após divorciar-se ou pro-
ceder ao inventário no outro país.
A vantagem do registro no Brasil é que o divórcio ou inventário (dissolução do casamento) poderá
ser feito no Brasil.

2.16.4. Autoridade competente


Alguns autores referem-se a este requisito somente como autoridade competente. O professor faz
questão de colocar o “materialmente competente”, pois o casamento celebrado por outras autoridades
sem competência legal (material) para o ato (ex.: Delegado, Coronel, Sargento da Polícia Militar, Bom-
beiro, estelionatário que se passa por padre ou juiz de paz) é considerado inexistente.
A Lei de Organização Judiciária da Bahia estabelece que o juiz de direito que celebra casamentos é
o juiz da Vara de Família. Isso depende da lei de organização judiciária. Em outros estados, é o juiz da
vara de registros públicos o competente para a celebração de casamentos.
Se, por exemplo, um juiz criminal da Bahia celebra um casamento, esse casamento será inexisten-
te? Nesse caso não há inexistência. Isso porque, quando se exige a presença da autoridade competente,
exige-se a presença da própria autoridade. Ou seja, presença de autoridade. Agora, se esta autoridade
não possui competência de acordo com a lei de organização judiciária local, será caso de anulabilidade e
não de inexistência (como ocorre com o casamento celebrado pelo Promotor ou Defensor Público).
Esta hipótese não se confunde com o casamento celebrado por juiz de paz que até então era compe-
tente materialmente, mas se torna incompetente territorialmente, por ato do Tribunal de Justiça, do qual

702
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ele não tinha conhecimento (nesse caso, como se verificará, o casamento é anulável, na medida em que o
vício é bem menos grave).
Portanto, faltando à autoridade celebrante competência legal ou material para o ato, o casamento
será inexistente, ressalvada a hipótese prevista no art. 1554, que consagra a boa-fé dos contraentes (pro-
teção conferida pela lei aos sujeitos de boa-fé, com base na teoria da aparência):

Art. 1.554. Subsiste o casamento celebrado por aquele que, sem possuir a competência exigida
na lei, exercer publicamente as funções de juiz de casamentos e, nessa qualidade, tiver registra-
do o ato no Registro Civil.

2.17. Dissolução do casamento e da sociedade conjugal

2.17.1. Introdução
No direito brasileiro, o casamento pode ser dissolvido de três diferentes formas:
i) pela morte de um dos consortes (forma mais comum, habitual);
ii) pela declaração de ausência de um dos consortes;
iii) pelo divórcio.
Convém chamar a atenção para o fato de que não está prevista acima, dentre os mecanismos disso-
lutivos do casamento, a separação. Doutrina e jurisprudência vêm entendendo, prevalecentemente, que
com a EC 66/2010 a separação foi extirpada do sistema. Mesmo assim, ela será objeto de estudo em tópi-
co abaixo, em decorrência da existência de posição minoritária em sentido oposto.
A nulidade ou anulação não é uma forma dissolutiva, mas desconstitutiva do casamento. É como se
o casamento nunca houvesse existido. Por isso, ela não foi englobada também dentre as formas de disso-
lução do casamento.

2.17.2. Morte
A morte de um dos cônjuges dissolve o casamento. A morte da qual trata este tópico é a real (a de-
clarada por laudo médico), prevista no art. 1571 do CC:

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

I - pela morte de um dos cônjuges; (...)

2.17.3. Declaração de ausência


Além da morte real, dissolve também o casamento a declaração de ausência. Trata-se de uma belís-
sima novidade trazida pelo CC/2002 (art. 1.571, § 1º):

Art. 1.571 (...) § 1o O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo di-
vórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.

A única dúvida que fica é a seguinte: o art. 1571, § 1º não previu em qual das fases o casamento será
dissolvido. O procedimento de ausência organiza-se de modo trifásico. A primeira fase é a da curadoria
703
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dos bens do ausente. Posteriormente, vem a sucessão provisória. Por fim, a terceira fase é a da sucessão
definitiva.
A esmagadora maioria da doutrina entende que a dissolução do casamento ocorre na ocasião da
abertura da sucessão definitiva (3ª fase). Isso a partir de uma interpretação o art. 6º do Código, que se
refere à sucessão definitiva como o momento da morte do ausente:

Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausen-
tes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.

Para Chaves, não parece a melhor solução, pois para que se chegue à sucessão definitiva, exige-se o
transcurso de 11 anos, no mínimo. É muito tempo, de modo que o correto deveria ser o momento da
abertura de sucessão provisória. Chaves entende que o art. 6º refere-se às relações patrimoniais, não às
existenciais. Essa posição, contudo, é minoritária. Prevalece e deve ser seguida em prova a posição ante-
rior.
Se o ausente eventualmente retornar, depois de declarada a sucessão definitiva, o casamento não se
reestabelece (o retorno é irrelevante, o casamento se mantém dissolvido). Se o ausente quiser o casamen-
to, precisa casar de novo.
Há, nesse ponto, um detalhe curioso: não há enquadramento para o estado civil do ausente, depois
do retorno. O cônjuge do ausente, depois de estabelecida a sucessão definitiva, torna-se viúvo por pre-
sunção. Retornando o ausente qual o seu estado civil? Ele não é mais casado, pois o casamento está dis-
solvido. Divorciado também não, pois não houve divórcio.

2.17.4. Divórcio

2.17.4.1. Divórcio e a dignidade da pessoa humana


O divórcio tem a ver com a dignidade da pessoa humana, pois é necessário viabilizar meios para
evitar que as famílias se destruam ao longo do tempo. O Estado brasileiro sempre teve uma postura anti-
divorcista. Todavia, facilitar o divórcio (como fez a emenda do divórcio) não é o mesmo que incentivá-lo.
A promoção da dignidade da pessoa humana, na perspectiva do princípio da afetividade, torna ne-
cessária a implantação de meios, não de incentivo, mas de facilitação democrática de acesso ao divórcio.
A matemática das pesquisas em torno do tema não engana: somente em 2006, contabilizaram-se cerca
de 162.000 divórcios, segundo dados do IBGE.
Entre 2005 e 2006, o número de divórcios aumentou 7%, até por conta da volatilidade das relações
sociais contemporâneas. Assim, se por um lado não cabe ao Estado incentivar descasamento, por outro
cabe sim a facilitação do acesso democrático àqueles que pretendem se divorciar. Não se trata de banali-
zar o casamento. Banalização de casamento é incentivar a manutenção de casamentos falidos. O que ba-
naliza o casamento é o desrespeito. A facilitação democrática do divórcio permite a constituição de novos
núcleos familiares, promovendo a dignidade da pessoa humana, sem desrespeitar uma ou outra concep-
ção religiosa (até porque o Estado brasileiro é laico).
704
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Tendo em vista a discussão sobre a manutenção ou não da separação judicial no ordenamento jurí-
dico frente à EC 66/2010, que instituiu o divórcio direto, o instituto será estudado.
Outrora denominada de desquite, a separação judicial pretende, tão somente, a dissolução da soci-
edade conjugal, não afetando, todavia, o vínculo matrimonial. Vale dizer, a separação judicial (assim co-
mo a administrativa) apenas dissolve determinados deveres do matrimônio (art. 1.576), mas ainda não
permite um novo casamento.

Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao
regime de bens.

2.17.4.2. Evolução histórica

O Brasil talvez haja sido um dos únicos Estados no mundo em que as próprias Constituições trazi-
am em seu bojo a regra da indissolubilidade do matrimônio.
Isso se deveu muito em função da Igreja Católica. O Estado brasileiro sempre teve uma tradição ca-
tólica, o que acabou por influenciar o ordenamento jurídico. Na época do CC/16, era uma heresia falar
em divórcio. As constituições republicanas traziam o princípio da indissolubildade do matrimônio. Não
bastava uma lei, para a implantação do divórcio no Brasil. Seria necessária uma emenda constitucional.
Com isso, foi necessária a edição da conhecida Emenda nº 9, de 1977, que, modificando a Consti-
tuição Federal então vigente, permitiu, no final desse mesmo ano, a edição da Lei 6.515/1977.
A Lei o Divórcio entrou em vigor em 26/12/1977 e introduziu, no sistema legal brasileiro, um mo-
delo dual de dissolução, fundado em duas categorias:
i. Separação judicial: gera o fim da sociedade conjugal, mas não do casamento; mantido o
vínculo matrimonial.
ii. Divórcio: gera o fim do casamento e do vínculo matrimonial, além do fim da sociedade con-
jugal.
Aprovado o divórcio, ele não foi facilitado. Era uma medida posterior à separação. Para se divorci-
ar, era necessário primeiro se separar, para depois se divorciar. Os requisitos do divórcio direto extraor-
dinário, da Lei 6.515/1977, eram dificílimos.
De acordo com essa lei, o divórcio em geral, para a esmagadora maioria dos casos, exigia que pri-
meiramente o casal se separasse e, somente após o prazo de mais de três anos, poderia pretender a con-
versão em divórcio (art. 175 da própria Constituição Federal de 1967).

Art. 175 (…) § 1º - O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde
que haja prévia separação judicial por mais de três anos; (Redação dada pela Emenda Constitu-
cional nº 9. de 1977)

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, aperfeiçoou o divórcio, para permitir que o divórcio
indireto (ou por conversão) fosse obtido respeitado o prazo de um ano. Além disso, facilitou o divórcio
direto, exigindo, todavia, um prazo de separação de fato por mais de dois anos. Assim, em seu antigo art.

705
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

226, § 6º, a CR reconheceu dois tipos de divórcio: o direto e o indireto, regulados pelo art. 1.580 do
CC/2002:

Redação antiga:

Art. 226 (...) § 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação
judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por
mais de dois anos.

O divórcio indireto era aquele que partia da conversão da separação em divórcio. O casal já estava
separado judicialmente e, após o prazo de um ano, pediria a conversão:

Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a sepa-
ração judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer
das partes poderá requerer sua conversão em divórcio.

O problema dessa modalidade de divórcio indireto era que, primeiramente, deveria o casal se sub-
meter a uma separação, esperar o prazo de um ano e, após, convertê-lo. Na prática: 5, 8, 10 anos para a
concessão do divórcio.
Ao lado do divórcio indireto, a CR/88 consagrou o que na Lei 6.515/1944 era muito tímido. Houve
a facilitação do divórcio direto, que era aquele que dispensava a prévia separação judicial, exigindo, ape-
nas, nos termos da redação original do § 6º do art. 226 da CR, comprovada separação de fato por mais de
dois anos.
Esse aprimoramento do divórcio direto foi, na verdade, uma manifestação tímida (pouco corajosa,
por assim dizer), do constituinte.
Na prática, as pessoas preferiam aguardar o prazo de separação de fato por mais de dois anos para
pleitear o divórcio direto. O Congresso Nacional percebeu isso. Na PEC do divórcio (apelidada de “PEC
do amor”), pretendeu-se revolucionar o instituto do divórcio.
Antes dela, outro marco importante na história do divórcio no Brasil foi a aprovação da Lei
11.441/2007, que, respeitados os termos da CR, passou a admitir o divórcio e a separação administrati-
vos, desde que consensuais e, ainda, dada a ausência de filhos incapazes (art. 1.124-A, do CPC/1973):
Assim, a doutrina passou utilizar o termo “separação de direito” ou “jurídica”, que engloba a sepa-
ração judicial e a separação extrajudicial, sendo ambas separações formalizadas. O termo foi criado para
diferenciar-se da “separação de fato”, que é informal.
Foi um grande avanço, no sentido da desjudicialização do divórcio, desde que ocorrido consensu-
almente. O casal passou a poder se divorciar administrativamente. Não poderia haver filhos menores ou
incapazes, hipótese em que o divórcio deveria ser judicial.
A lei não desafogou completamente o Judiciário, na medida em que, além de não permitir o divór-
cio em tabelionato quando houver crianças, muitas pessoas preferem o divórcio judicial, e não há obriga-

706
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

toriedade do divórcio administrativo. O CNJ disciplinou administrativamente a Lei 11.441/2007 por


meio da Resolução nº 35.
Em 2010, foi aprovada a “PEC do Divórcio” - Emenda Constitucional 66/2010 - por proposta do
IBDFAM, que alterou a redação do art. 226, § 6º da Constituição Federal. Entretanto, não houve modifi-
cação ou revogação expressa de qualquer norma infraconstitucional.
Redação originária (art. 226, § 6º, CC) Redação atual (art. 226, § 6º, CC)
“§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo
divórcio, após prévia separação judicial por mais de divórcio.”
um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada
separação de fato Obs.: não há menção a prazos nem à separação
judicial.
por mais de dois anos”
Finalmente, o CPC de 2015 reafirmou expressamente a “separação de direito”, ao prevê-la nos se-
guintes dispositivos, sem prejuízo de outros:
Art. 53 (definiu a competência para as ações de família).

CPC, art. 53: “É competente o foro: I - para a ação de divórcio, separação, anulação de casamen-
to e reconhecimento ou dissolução de união estável: a) de domicílio do guardião de filho inca-
paz; b) do último domicílio do casal, caso não haja filho incapaz; c) de domicílio do réu, se ne-
nhuma das partes residir no antigo domicílio do casal"

Art. 693 (procedimento especial para as ações de família - litigiosa).

CPC, art. 693: “As normas deste Capítulo aplicam-se aos processos contenciosos de divórcio, se-
paração, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação. Parágrafo úni-
co. A ação de alimentos e a que versar sobre interesse de criança ou de adolescente observarão o
procedimento previsto em legislação específica, aplicando-se, no que couber, as disposições des-
te Capítulo.”

Art. 731 (ação de separação consensual).

CPC, art. 731: “A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisi-


tos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: I
- as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; II - as disposições relativas à
pensão alimentícia entre os cônjuges; III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao
regime de visitas; e IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos. Parágrafo único. Se
os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o di-
vórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658.”

Art. 733 (separação extrajudicial consensual).


7
CPC, art. 733: “O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união
estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser
realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. § 1o A

707
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de re-
gistro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2 o
O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou
por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”.

O cenário atual é inflamado por um grande debate acerca do Fim da separação de direito no orde-
namento jurídico.

2.17.4.1. A PEC do Amor

2.17.4.1.1. Noções gerais

Como dito, o divorcio direto na CR/88 exigia um prazo de separação de fato por mais de dois anos.
O Congresso Nacional, sensível aos reclamos da sociedade brasileira, acolheu a Proposta de Emenda
Constitucional denominada de “PEC do Amor”, que resultaria na EC 66/2010. Por iniciativa do IBDFAM,
foi originariamente apresentada pelo Deputado Antonio Carlos Biscaia, e posteriormente pelo Deputado
Sergio Barradas Carneiro.
Em sua redação original, a PEC dizia: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, consen-
sual ou litigioso, na forma da lei”. Note que a redação não fazia mais menção à separação judicial nem
aos prazos para o divórcio.
Paulo Lobo, um dos mentores da Emenda, disse que a parte final do dispositivo, ao se referir a “na
forma da lei”, era perigosa, na medida em que abria espaço argumentativo àqueles que entendiam que a
separação judicial poderia ser mantida pelo legislador ordinário. A PEC foi, a pedido dele, alterada, para
não abrir espaço para que o legislador ordinário pudesse avançar naquilo que o constituinte pretendera.
Assim, para evitar indevido espaço de atuação do legislador ordinário, a Emenda aprovada, respei-
tando o princípio da intervenção estatal mínima no direito de família, intencionalmente suprimiu a refe-
rência à separação judicial, banindo o instituto (posição de autores como Paulo Lobo, Rodrigo da Cunha
Pereira, Maria Berenice Dias, Flávio Tartuce etc.), bem como suprimiria os prazos para a obtenção do
divórcio.
É um argumento histórico: no trâmite da Emenda, a supressão da expressão “na forma da lei” visou
justamente a acabar com a separação, não dando espaço ao legislador ordinário para a manutenção de
um instituto que o constituinte não mais desejava. Argumenta-se que a CR não proibiu a separação. To-
davia, nenhum constituinte colocaria a expressão: “vedada a separação”. Seria uma atecnia absurda.
Uma interpretação social e histórica da norma recomenda o fim da separação, considerando a evolução
do instituto e os objetivos do constituinte. Faz-se uma interpretação autêntica: o próprio Deputado que
propôs a PEC possuía diversos artigos nesse sentido.
Hoje, a redação do art. 226, § 6º ficou da seguinte forma:

Art. 226 (...) § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela
Emenda Constitucional nº 66, de 2010)

708
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não há mais menção à separação ou a prazos para o divórcio. A separação judicial não pode ser
mantida como opção para os interessados. Ela traz consigo a discussão da culpa. Foi uma grande revolu-
ção a proscrição do sistema da discussão da culpa pelo descasamento.
Canotilho defendeu, em sua obra, o princípio da vedação ao retrocesso. Aplicando-se tal princípio
ao direito de família, defender a manutenção da separação é ofender, sem dúvida nenhuma, o retrocesso
em matéria do direito de família. A separação está caindo em desuso, e com o tempo se verificará que ela
acabou (à unanimidade, os juízes de Salvador entenderam, em encontro recente, que o instituto está en-
terrado).
Portanto, a corrente abolicionista, a despeito de respeitáveis autores em contrário (Mário Delgado,
Luis Felipe Brasil), afirma que a nova norma constitucional deve ser interpretada não apenas da sua lite-
ralidade, mas em uma perspectiva histórica e, sobretudo, social, que tem no banimento da separação e da
discussão da culpa um marco de evolução que respeita o princípio da vedação ao retrocesso desenvolvido
por Canotilho.
Da norma constitucional, deve ser extraída uma interpretação conforme. A manutenção da culpa é
um marco que deve ser superado. A sociedade já absorveu isso. A conclusão é de que as normas da sepa-
ração já estariam implicitamente revogadas. Mesmo que o STF venha a entender pela mantença da sepa-
ração, trata-se de um instituto fadado ao ostracismo social. Defender o fim da separação é facilitar a obje-
tivação do direito de família, evitando a intromissão do Estado nas relações familiares.
Os alemães tratam do “princípio da desativação do afeto”, para dizerem que o divórcio é um fato
objetivo: o que deve orientar a doutrina é a objetivação das relações familiares.
A jurisprudência encontra-se dividida, com decisões favoráveis à supressão da separação judicial
(TJMG 0315694-50.2010.8.13.0000, Boletim 179 do IBDFAM e Enunciado aprovado na I Jornada dos
Juízes de Família de Salvador), havendo também pronunciamentos contrários (TJRS Apelação Cível
70040844375). Não há, ainda, posição definitiva do STF.
Para acabar com a discussão, o PL 7.661/2010 expressamente prevê o fim da separação judicial.
Observe que isso não significa que a separação não haja acabado. Ele simplesmente coloca uma pedra na
discussão.
A EC 66/2010 também acabou com os prazos para o divórcio. A esse respeito, não há quase diver-
gência. Com isso, ele se tornou um direito potestativo não condicionado e sem causa específica.
Se a pessoa se arrepender do divórcio, casa-se novamente. “É altamente romântico” (Pablo).

2.17.4.1.2. Efeitos jurídicos da nova emenda do divórcio

A EC 66/2010 trouxe novas luzes ao divórcio, pois incorporou ao ordenamento o princípio da faci-
litação da dissolução do casamento (art. 226, § 6º, da CR). Com isso, alguns efeitos jurídicos passaram a
ser produzidos:
i) abolição dos prazos para o divórcio:

709
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Não há mais prazo para o divórcio. Aquele que se casa num dia pode se divorciar no dia seguinte.
Consequentemente, não há mais distinção entre divórcio direto e divórcio por conversão. O que existe,
em razão da ausência de prazos, é somente o divórcio. Não há mais limites para o divórcio. Pode-se di-
vorciar e casar, livremente.
Venosa critica a abolição do prazo para o divórcio, entendendo que isso banalizaria o instituto do
casamento. Chaves discorda, entendendo que se não há prazo para casar, com muito menos razão deve
haver para divorciar. Até porque o estabelecimento de um prazo para o divórcio, sem que haja um para o
casamento, significaria, por vias transversas, que o divórcio seria mais importante que o próprio casa-
mento, o que soa completamente absurdo.
Nesse ponto, a EC 66/2010 representa um louvável avanço do direito brasileiro.
ii) impossibilidade de discussão acerca da causa da dissolução do casamento:
Não se discute mais a causa da dissolução do casamento. Consequentemente, não mais se discute a
culpa. Não se discute mais a causa porque ela é estranha aos limites cognitivos da ação de divórcio.
Assim, se o divorcio não tem mais prazo e não discute a causa, ele é um direito potestativo extintivo
da parte. Isso significa que, para o divórcio, é bastante a manifestação de vontade do cônjuge. Não existe
o “dar o divórcio”, dependendo o ficar junto apenas do titular. Manifestada a vontade, extingue-se o ca-
samento.
Apesar de não mais se discutir a causa (e, consequentemente, a culpa) no divórcio, é preciso obser-
var que, no direito de família, a discussão acerca da culpa se mantém em duas hipóteses remanescentes:
indenização por ato ilícito e mutação da natureza dos alimentos devidos ao cônjuge.
O conceito de ato ilícito do art. 186 do CC envolve a culpa:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Consequentemente, para fins de indenização por ilicitude, a discussão da culpa é necessária. Ex.:
lesões corporais, ofensas físicas, transmissão de doenças venéreas, injúria grave etc.
Curiosidade: a competência para processar e julgar esse pedido indenizatório é da vara de família,
como se vem assentando a jurisprudência.
Além disso, o art. 1.694, § 2º, do Código Civil estabelece que o juiz fixará alimentos meramente pa-
ra a sobrevivência (subsistência) quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia:

Art. 1.694 (...) § 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situa-
ção de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.

O dispositivo expressamente permite que a culpa se discuta para diminuir o valor da pensão ali-
mentícia. Esta hipótese não está restrita ao casamento. A discussão sobre a culpa, baseada no art. 1.694,
§ 2º, é possível em qualquer relação familiar. Ex.: uma filha tenta matar os pais e, não obtendo êxito,
acaba presa, processada e cumpre pena. Caso, anos depois, ela seja colocada em liberdade, sem emprego

710
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

e não tenha como subsistir, não terá outro caminho que não pleitear alimentos aos pais (os quais tentou
matar). Nesse caso, os alimentos decorrerão de culpa de quem os pleiteia e o juiz fixará os alimentos com
base apenas na subsistência, e não nas regras comuns.
Observe, mais uma vez, que a discussão da culpa para fins de mutação da natureza dos alimentos é
aplicável em todas as relações familiares, e não somente na hipótese da dissolução do casamento. Aquele
que está se divorciando pode pretender discutir a culpa para modificar o valor da pensão que pagará.
Provando a culpa da esposa, prestará a ela, na hipótese de ela precisar de alimentos, pensão num valor
reduzido, em relação à prestação normal de alimentos.
De um modo ou de outro, em nenhuma das duas hipóteses essa discussão sobre a culpa será trava-
da na ação de divórcio, mas na ação indenizatória ou de alimentos.
iii) extinção do instituto da separação, em juízo ou em cartório:
É importante assinalar, uma vez mais, que a opinião prevalecente na doutrina e na jurisprudência é
pela extinção do instituto da separação. Defendem essa corrente muitos autores, como Pablo Stolze, Tar-
tuce, Chaves, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Vicente Greco Filho e outros. A maioria da
jurisprudência também caminha nesse sentido.
Uma das razões desse entendimento é que a separação se mostra inútil, na medida em que não há
mais prazo para o divórcio. Manter a separação seria afirmar, ilogicamente, que quem pode o mais (o
divórcio) não pode o menos (a separação). O cônjuge poderia o mais (se divorciar), mas não poderia o
menos (se separar), pois a separação exige um ano de casado, e o divórcio não mais exige prazo algum.
Além disso, outro argumento em favor da separação soa absurdo. Alguns autores dizem que a sepa-
ração subsistiria porque a CR não teria revogado o Código Civil. Para Chaves, esse argumento chega a ser
risível, pois nenhum texto constitucional precisa revogar legislação infraconstitucional nenhuma. Isso
vem da força normativa constitucional.
Também não procede o argumento segundo o qual a separação serviria para as pessoas que quises-
sem “dar um tempo” na relação, sem se divorciar. O caminho para elas foi dado pelo STJ, que resolveu o
problema com facilidade, no REsp 1.065.209/SP: a separação de fato e a separação de corpos produzem
todos os efeitos jurídicos de uma separação judicial (término do regime de bens, cessação dos deveres
conjugais etc.) Assim, o que o STJ está dizendo é que a separação tornou-se inútil. Não há necessidade da
separação para que os efeitos dela se produzam.
Bem por isso, andou muito bem a EC 66/2010 ao colocar fim ao instituto da separação.
Em cartório, o Oficial deve simplesmente se negar a lavrar a escritura pública, pois a providência
jurídica pretendida não mais existe. Em juízo, trata-se de hipótese de extinção do processo, sem resolu-
ção do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido.
Nas separações que já tramitavam antes da vigência da EC 66/2010, deve o magistrado intimar os
autores para adequarem o pedido, já que a providência anteriormente pretendida não mais existe no di-
reito brasileiro. Não adequado o pedido, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito.

711
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como fica a questão intertemporal relacionada às pessoas que já eram separadas, à luz da EC
66/2010? Trata-se de uma questão de estado da pessoa, de modo que quem era separado permanece
separado. É um curioso caso de ultratividade da norma civil.
Separação é um instituto-meio, nunca um instituto-fim. Ela não dissolve o casamento. Portanto,
para quem era separado encerrar o casamento, deve dissolvê-lo pela morte, pela declaração de ausência
ou pelo divórcio. A qualquer tempo, portanto, os separados podem requerer a conversão do divórcio.
Caso não o façam, morrerão ou se tornarão viúvas (os).
Observe que uma pessoa que já é viúva ou divorciada (portanto, que teve seu casamento dissolvido)
pode ter interesse de agir na promoção da ação de nulidade do casamento. Isso porque, como visto, a
nulidade ou a anulação do casamento não dissolve, mas desconstitui o casamento (as finalidades são dis-
tintas). Ex.: o divorciado pode querer a declaração da nulidade de seu casamento para voltar a ser soltei-
ro.
A partir da EC 66/2010, é correto dizer que a medida cautelar de separação de corpos, que tem o
condão de especialmente suspender o dever de coabitação, continua em vigor. Assim, logicamente, como
as medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Quanto a este efeito, não há muita controvérsia.
Tecnicamente, a medida cautelar de separação de corpos tanto pode servir para forçar um dos côn-
juges a sair do lar quanto a autorizá-lo a tanto. Para Pablo, se a pessoa “abandona o lar”, esse abandono
pode ser usado em desfavor dela. Ex.: alegações desvaliosas buscando a obtenção da guarda dos filhos.
A Lei Maria da Penha é uma lei especialíssima. O Delegado, ao lavrar o BO, pode representar ao ju-
iz para a aplicação das medidas lá previstas. Pablo utiliza as medidas acautelatórias preventivas, basea-
das na Lei Maria da Penha, e entende que elas continuam perfeitamente vigentes com a Emenda do di-
vórcio.

2.17.4.1.3. A emenda do divórcio e a guarda de filhos

No passado, no Brasil, o que definia a guarda era a culpa. Era um raciocínio desastroso. A culpa
não interfere no divórcio, ainda que possa ensejar responsabilidade civil (há decisões nesse sentido).
Uma infidelidade pode ser a causa de divórcio, mas não significa que o cônjuge infiel não resguarde da
melhor maneira possível o interesse da criança.
Nesse sentido, a Lei 6.515/1977, previa a influência da culpa na guarda de filhos. O culpado pelo di-
vórcio perdia direito à guarda dos filhos, concedida unilateralmente ao inocente. Dessa circunstância,
dado o costumeiro reconhecimento da inocência da mulher, surgiu a máxima da guarda unilateral ma-
terna, geralmente, com o direito de visitas do pai.
A emenda do divórcio não altera a sistemática constitucional que consagrou o interesse existencial
dos filhos (Pietro Perlingieri, na obra “Perfis de direito civil constitucional”), em lugar da criticada e su-
perada utilização do critério da culpa.

712
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na mesma linha, os arts. 1.583 e seguintes do Código Civil, a serem vistos adiante, não cuidam de
utilizar a culpa como vetor de definição da guarda, mas o melhor interesse da criança e do adolescente.
Como dito, com a nova sistemática constitucional, não é a culpa que determinará a guarda, mas o
“interesse existencial dos filhos” (Perlingieri). Analisar-se-á o comportamento do pai ou da mãe no inte-
resse dos filhos. Evidentemente, se a culpa interferir na educação deles, ela prejudicará a concessão da
guarda, mas não necessariamente a culpa implicará na perda da guarda do culpado.
Em regra, prevaleceria o acordo entre os genitores. Não havendo acordo, a guarda unilateral deve-
ria ser atribuída a quem oferecesse as melhores condições para exercê-la, resguardando o regime de visi-
tas ao outro genitor.
Fundamentalmente, há quatro modalidades básicas de guarda:
i. Guarda unilateral (ou exclusiva): Uma pessoa exerce a guarda de forma exclusiva e a outra
possui a seu favor a regulamentação de visitas ocasionais.
ii. Guarda conjunta (ou compartilhada): Ambos os genitores exercem a guarda conjunta, divi-
dindo as atribuições relativas ao filho, que terá um lar único.
Em 2008, com o advento da Lei 11.698/2008, foi introduzida no sistema a Guarda Compartilhada,
que passou a ser a regra, altamente recomendada, há necessidade de uma convivência pacífica entre os
genitores.
iii. Guarda alternada: O filho convive com ambos os genitores de forma fracionada/dividida e
em lares distintos.
Chamada de “guarda da mochila”. Não é recomendável, por trazer prejuízos à formação da criança.
A Lei 13.058/2014 tornou a “guarda compartilhada” obrigatória, confundindo-a com a “guarda al-
ternada”, ao alterar os arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil.
Nesse sentido, na literalidade da lei, há o reconhecimento da guarda alternada. Alguns enunciados
(603, 604, 605, 606 e 607 da VII Jornada de Direito Civil) visam a solucionar as divergências a respeito
do tema, não admitindo a guarda alternada484.

484 Enunciado 603 da VII JDC: “A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve aten-

der precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma equilibrada, a que alude o § 2 do
art. 1.583 do Código Civil, representar convivência livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente
igualitária entre os pais.”. 16 Enunciado 604 da VII JDC: “A divisão, de forma equilibrada, do tempo de conví-
vio dos filhos com a mãe e com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo § 2° do art. 1.583 do Código Civil, não
deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica
apenas a divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo
genitor que se encontra na companhia do filho.”Enunciado 605 da VII JDC: “A guarda compartilhada não ex-
clui a fixação do regime de convivência.”Enunciado 606 da VII JDC: “O tempo de convívio com os filhos ‘de
forma equilibrada com a mãe e com o pai’ deve ser entendido como divisão proporcional de tempo, da forma que
cada genitor possa se ocupar dos cuidados pertinentes ao filho, em razão das peculiaridades da vida privada de cada
um.”Enunciado 607 da VII JDC: “A guarda compartilhada não implica ausência de pagamento de pensão ali-
mentícia.”

713
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iv. Aninhamento (ou nidação): Nesses casos, o juiz estabelece que a criança permanecerá na
mesma casa em que o casal vivia, e os pais se revezam no local. O diferencial da nidação,
portanto, é o domicílio.
As duas primeiras modalidades estão expressamente previstas no Código Civil (arts. 1.583 e 1.584),
o que não significa que as demais não possam ser aplicadas. Todas elas assentam-se no princípio consti-
tucional da isonomia entre pai e mãe no cuidado dos filhos. Trata-se de uma projeção da eficácia hori-
zontal dos direitos fundamentais.
A modalidade a ser aplicada será decidida pelo juiz no melhor interesse existencial da criança e do
adolescente. A modalidade de guarda mais aplicada no Brasil (que não é a melhor) é a unilateral ou ex-
clusiva. Neste tipo de guarda, um dos pais detém exclusivamente poderes de guardião, cabendo ao outro
direito de visitas. Na prática, as crianças acabam sempre ficando com as mães, mas não porque elas se-
jam juridicamente melhores. Trata-se de um fenômeno que pode ser mais bem explicado pela psicologia
social.
O guardião é quem direcionará a vida da criança. Tanto que, no caso da guarda unilateral, a guarda
fica com um dos pais, cabendo ao outro direito de visitas em finais de semana alternados, ficando o que
visita impedido de pegar o filho em outro momento. Causa-se um trauma na criança a ausência do outro,
ausência essa que muitas vezes decorre de sentimentos de ódio.
Já a guarda compartilhada, incentivada pela própria ordem jurídica, melhor atende à construção
da maturidade psicológica do filho, na medida em que estabelece um exercício bilateral ou conjunto da
guarda, num parâmetro civilizado de corresponsabilização, evitando, inclusive, com isso, os efeitos noci-
vos da alienação parental. A lei estabelece que o juiz, na audiência, explique as vantagens da guarda
compartilhada, podendo ele, inclusive, impor a guarda compartilhada à criança (ainda que na prática
isso seja impossível, pois a guarda compartilhada demanda entendimento e o mínimo de diálogo entre os
pais). Na guarda compartilhada, há dois definidores do futuro da criança. É a modalidade que melhor
evita a alienação parental (uma síndrome detectada em 1985).
Além da guarda compartilhada, há a chamada guarda alternada, que com aquela não se confunde.
Guarda alternada é aquela em que o pai e a mãe revezam períodos exclusivos de guarda, cabendo ao ou-
tro direito de visitas. O juiz, na guarda alternada, define que a guarda fica em determinado período com
um dos pais, cabendo ao outro o direito de visitas (alternância de períodos exclusivos de guarda). O in-
conveniente é que, neste caso, os pais em geral não se dão bem (caso contrário a guarda seria comparti-
lhada), e essa alternância acaba por prejudicar a criança (muitas escolas não aceitam essa situação).
Por fim, há uma quarta espécie de guarda: a nidação ou aninhamento. Espécie pouco comum na ju-
risprudência brasileira, é mais ocorrente em países europeus. Para permitir que a criança não sofra dano
na disputa de custódia, abandonando o meio em que vive, ela permanece no mesmo domicílio em que
vinha sendo criada, revezando-se os pais em sua companhia.

714
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Esta modalidade parte dos mesmos princípios de corresponsabilização da guarda compartilhada,


mas difere dela pela seguinte razão: na guarda compartilhada, na prática, não há domicílio único da cri-
ança, que tanto pode ficar no domicílio do pai quanto no da mãe (os pais se entendem, consensualmen-
te).
Segundo Flávio Tartuce não é possível a guarda compartilhada com genitores residindo em cidades
distintas diante das peculiaridades do caso concreto, conforme já entendido pelo STJ485.
Finalmente, diante da nova Lei (13.058/2014), a doutrina e a jurisprudência divergem em relação à
possibilidade de imposição da guarda compartilhada, mesmo que não haja uma convivência pacífica mí-
nima entre os genitores, havendo decisão em sentido positivo (Maria Berenice e REsp 1.629.994/RJ, 3ª
Turma do STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi) e em sentido negativo (Rolf e Flávio Tartuce REsp
1.417.868/MG, 3ª Turma do STJ. Rel. Min. Noronha).
Obs.: O art. 1.585, CC, trata da possibilidade de cautelar e liminar para a fixação da guarda de fi-
lhos, atualmente o enquadramento processual do tema se dá em sede de tutela provisória (arts. 294 e
seguintes, do CPC), a decisão sobre a guarda dos filhos observará, preferencialmente, a oitiva prévia das
partes.
Como já visto, a emenda do divórcio não alterou o sistema apresentado, permanecendo ainda em
vigor o art. 1.579 do Código Civil:

Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.

Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar res-
trições aos direitos e deveres previstos neste artigo.

2.17.4.1.4. A emenda do divórcio e o uso do nome

O CC/2002 diminuiu o impacto da culpa quanto ao uso do nome – art. 1.578, CC

Art. 1.578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o
sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração
não acarretar:

I - evidente prejuízo para a sua identificação;

II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida;

III - dano grave reconhecido na decisão judicial.

§ 1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento,


ao direito de usar o sobrenome do outro.

§ 2º Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado.

485 (REsp 1.605.477/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em

21/06/2016, DJe 27/06/2016.)

715
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Leciona Flávio Tartuce baseando-se no entendimento do STJ de que a separação judicial está man-
tida no sistema, o cônjuge inocente poderá manter ou renunciar ao nome adotado.
Enquanto o cônjuge culpado na separação perde o direito de usar o nome do outro, em regra, a não
ser que tenha algum problema de identificação social, inclusive quanto aos filhos.
Entretanto, apesar da literalidade da norma, Flávio Tartuce entende, citando o Enunciado n. 124 do
CJF/STJ, que os dois parágrafos do artigo deveriam ser tidos como não recepcionados pela EC 66, pois
desnecessários diante do exercício da autonomia privada do interessado e do reconhecimento de que o
nome constitui um direito da personalidade daquele cônjuge que o incorporou, nesse sentido também é a
posição da jurisprudência (REsp 1.482.843/RJ e REsp 241.200/RJ).

2.17.4.1.5. Alimentos e a nova emenda do divórcio

Nesta análise, evidentemente, se partirá da premissa da possibilidade de cumulação de pedidos de


alimentos e divórcio.
O problema começa com a dúvida acerca da manutenção ou não da separação. A depender da res-
posta, por várias direções é possível seguir. Um dos grandes inconvenientes na mantença do instituto da
separação é precisamente a discussão da culpa em sede de alimentos, conforme se pode ver nos arts.
1.702 e 1.704 do CC:

Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de re-
cursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos os critérios esta-
belecidos no art. 1.694.

Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o
outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declara-
do culpado na ação de separação judicial.

Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver pa-
rentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a
assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.

Veja que a culpa era o vetor determinante dos alimentos. Na prática da jurisprudência, é inegável
que, mesmo antes da emenda do divórcio, essa discussão da culpa já havia sido flexibilizada, preocupan-
do-se muito mais o juiz, à luz do princípio da proporcionalidade, com o binômio necessida-
de/capacidade, do que propriamente com a busca de um culpado.
Assim, muito embora o Código Civil exija a discussão da culpa (regras que serviam tanto para a se-
paração quanto para o divórcio), a fixação de alimentos já vinha sendo objetivada pelos aplicadores.
A partir da emenda do divórcio, que para grande parte da doutrina não recepcionou as normas de
separação, o que dizer acerca da discussão da culpa no que se refere ao pedido de alimentos? Como se
delineia o panorama doutrinário em torno dos alimentos?

716
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A doutrina brasileira não é pacífica, após a EC 66/2010, quanto à discussão da culpa em sede de
alimentos.
Uma primeira corrente (a de Pablo Stolze), na linha de Paulo Lobo e Leonardo Moreira Alves, sus-
tenta que, com a supressão da separação, a partir da nova emenda, não se deve mais discutir culpa, de-
vendo o juiz se ater ao binômio capacidade/necessidade. As questões envolvendo dano, culpa e respon-
sabilidade civil devem ser discutidas no âmbito próprio (área cível). Os alimentos são fixados com base
no princípio da solidariedade familiar486.
Outros autores, como José Fernando Simão, admitem a discussão da culpa restrita à ação autôno-
ma de alimentos.
Uma terceira corrente, defendida, dentre outros, por Flavio Tartuce continua admitindo a discus-
são da culpa para a fixação dos alimentos em sede do próprio divórcio. Tartuce entende que é possível
pedir, cumulativamente, divórcio, alimentos e discutir culpa no procedimento de divórcio para a fixação
dos alimentos. Para Pablo, isso é difícil de sustentar, na medida em que, como defende o próprio Tartuce,
a separação (que era a sede de discussão da culpa) foi banida.

2.17.4.1.6. A emenda do divórcio e o regime de bens

A nova emenda do divórcio não alterou a sistemática dos regimes de bens, lembrando que, à luz do
art. 1.581 do CC, a partilha pode ser deixada para depois do próprio divórcio:

Art. 1.581. O divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens.

Acrescente-se, ainda, que será de separação obrigatória o regime de bens do divorciado que se casa
sem prévia partilha.
A Lei 6.515/1977 (Lei do Divórcio), em seu art. 43, dizia que para a pessoa se divorciar, tinha de re-
solver o regime de bens, partilhando-os:

Art 43 - Se, na sentença do desquite, não tiver sido homologada ou decidida a partilha dos bens,
ou quando esta não tenha sido feita posteriormente, a decisão de conversão disporá sobre ela.

Na prática, muitos casais que tinham patrimônio preferiam mentir, dizendo não possuir bens, para
evitar o recolhimento de tributos etc. O art. 1.581 revogou o dispositivo da Lei do Divórcio, para dar ao
casal que tenha patrimônio a opção de se divorciar e deixar a partilha para depois. A emenda constituci-
onal do divórcio não mexeu com isso. Assim, como dito, a pessoa divorciada que não partilhou os bens
do primeiro casamento não poderá escolher seu regime de bens: terá de casar em separação obrigatória.

2.17.4.1.7. Possibilidade de discussão da culpa nas ações de dissolução do casamento

486 Como visto, essa não é a posição de Chaves.

717
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo Flávio Tartuce um dos maiores problemas surgidos com a promulgação da Emenda Cons-
titucional 66/2010 refere-se à viabilidade jurídica de discussão da culpa para dissolver o casamento, em
sede de ação de divórcio, nesse sentido, a doutrina aponta para três posicionamentos:
i. 1ª corrente: não há separação de direito no sistema, não sendo possível a discussão sobre
a culpa no divórcio.
Para essa corrente, há um direito potestativo ao divórcio. É a posição dominante no IBDFAM, se-
guida por Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno, Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo Stolze, Rodolfo Pam-
plona e Paulo Lôbo.
ii. 2ª corrente: não há separação judicial no sistema, mas a culpa pode ser debatida em ação
de divórcio para fins de alimentos e responsabilidade civil. Corrente seguida por Zeno Velo-
so, José Fernando Simão, Alvaro Villaça, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald.
iii. 3ª corrente: a separação de direito e a culpa permanecem no sistema, podendo ser ela de-
batida também em divórcio. Corrente adotada por Mário Delgado, Maria Helena Diniz e
Gustavo Tepedino

2.17.5. Separação

2.17.5.1. Introdução – Debate sobre a manutenção ou não da sepração de direito no


sistema

Inicialmente, pontue-se que há duas correntes doutrinárias, uma defendendo a manutenção da se-
paração (minoria), outra defendendo o fim da separação (posição de Pablo, Neto Lobo e outros)
i. 1ª corrente - Prevalece na doutrina - A separação de direito não persiste no sistema, haja
vista o fim social da Emenda 66/2010.
Argumentos: força normativa da Constituição; interpretação conforme à Constituição; e a máxima
efetividade do Texto Constitucional. Entendimento de Flávio Tartuce, Maria Berenice Dias, Paulo Lôbo,
Rolf Madaleno, Zeno Veloso, Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona, Cris-
tiano Chaves e Nelson Rosenvald.
Portanto, segundo essa corrente, há inconstitucionalidade das normas do CC/2002 e do CPC/2015
que tratam do tema.
ii. 2ª corrente - minoritária na doutrina, mas prevalecente na atual composição do STJ487.
A separação de direito continua no sistema, pois não a houve revogação dos dispositivos que tratam
do tema. Ademais, o instituto foi confirmado pelo Novo CPC. Posição de Mario Delgado, Gustavo Tepedi-
no e Maria Helena Diniz.
Ironicamente, há vários enunciados da JDC que se filiam à essa corrente488.

487 (REsp 1.247.098/MS. 4ª Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. Julg. 14/03/2017).

718
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.17.5.2. Conceito
A separação judicial, outrora denominada de “desquite”, é medida que fora prevista a partir do art.
1.571 do Código Civil e que visava a dissolver a sociedade conjugal (art. 1.576), mantendo-se o vínculo
matrimonial.
A dissolução da sociedade conjugal significa que as pessoas, mesmo que separadas, não podem re-
construir suas vidas, na medida em que o vínculo matrimonial a ser rompido continua existente. Ou seja,
na prática, a separação apenas dissolve alguns deveres do casamento, mas os cônjuges continuam proi-
bidos de casar com terceiro, até que haja o divórcio ou um deles morra.
Quando a pessoa está separada judicialmente, a vida dela não está resolvida. A razão da defesa da
antiga designação “desquite” era a seguinte: o estado civil da pessoa era “desquitado” (sabia-se que a pes-
soa estava separada judicialmente). Dizer “separado” deixava dúvidas sobre se havia a separação judicial
ou de fato. A separação judicial não faz aquilo que o casal mais almeja: a ruptura do vínculo conjugal, nos
termos do art. 1.576:

Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao
regime de bens.

Quanto ao regime de bens, cumpre ressaltar, sequer se trata de efeito necessário, pois o casal tinha
a faculdade de deixar a partilha dos bens para depois. Então, na prática, a separação judicial já estava
esvaziada.
A tradição do direito brasileiro, todavia, resistiu muito ao divórcio. Durante muitos anos, a separa-
ção judicial era a primeira e, na prática, a única via de dissolver uma sociedade conjugal falida.

2.17.5.3. Espécies de separação

Basicamente, havia dois tipos de separação judicial: i) a consensual (ou amigável), prevista no art.
1.574 do CC; e ii) a litigiosa, prevista no art. 1.572 do CC.

2.17.5.3.1. Separação de fato

A sepração de fato também está mantida no sistema, sem controvérsias quanto a isso e é caracteri-
zada quando existe um distanciamento físico e/ou afetivo dos cônjuges.
A separação de fato constitui os seguintes efeitos jurídicos:
i. O separado de fato pode constituir união estável com terceiro (ar. 1.723, § 1º);

488 Enunciado 514, CJF: “A Emenda Constitucional n. 66/2010 não extinguiu o instituto da separação ju-

dicial e extrajudicial.” Enunciado 515, CJF: “Pela interpretação teleológica da Emenda Constitucional n.
66/2010, não há prazo mínimo de casamento para a separação consensual.” Enunciado 516, CJF: “Na separação
judicial por mútuo consentimento, o juiz só poderá intervir no limite da preservação do interesse dos incapazes ou
de um dos cônjuges, permitida a cindibilidade dos pedidos com a concordância das partes, aplicando-se esse enten-
dimento também ao divórcio.” Enunciado 517, CJF: “A Emenda Constitucional n. 66/2010 extinguiu os prazos
previstos no art. 1.580 do Código Civil, mantido o divórcio por conversão.”

719
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. O STJ tem entendido que a separação de fato põe fim à sociedade conjugal (REsp
555.771/SP), mas não ao casamento.
Assim, a separação de fato teria efeito jurídico similar à separação de direito.
Ademais, a teor do art. 356 do CPC, que trata do julgamento parcial do mérito, é possível que a ação
de separação (caso se entenda ainda vigente) e a ação de divórcio sejam cumuladas com outros pedidos
(fim da sociedade conjugal, partilha dos bens, alimentos, guarda dos filhos etc.).
Assim, o juiz decreta o divórcio/separação do casal e segue na discussão dos outros temas.

2.17.5.3.2. Separação consensual

Art. 1.574. Dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges se forem casa-
dos por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele devidamente homologa-
da a convenção.

Parágrafo único. O juiz pode recusar a homologação e não decretar a separação judicial se apu-
rar que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônju-
ges.

Para que houvesse o acolhimento do pedido de separação consensual (Jurisdição Voluntária) exi-
gia-se o casamento do casal há mais de um ano. O casal precisava instruir o pedido de separação com a
certidão de casamento para a prova dessa circunstância. A doutrina chamava esse tempo de “prazo de
reflexão”. Era algo bastante criticado. Conceder mais de um ano de “reflexão” a pessoas que não queriam
mais conviver? Ora, um ano é pouco a quem está de fora. Isso era um convite à violência doméstica.
Imagine um casal que namorou por 10 anos. Dois meses depois de casados, não mais se suporta-
vam como marido e mulher, mas eram amigos. O juiz, verificando que estavam casados há menos de um
ano, não decretava a separação consensual, que tinha de ser litigiosa. E pior: mesmo que separados, não
poderiam casar de novo.
Pablo não é contra a reflexão dos casais antes do fim do casamento. Nem contra a reconciliação. O
problema é que o prazo de mais de um ano para que as pessoas que não se gostam mais obtenham um
simples decreto de separação é uma afronta ao princípio da reconstrução do vínculo afetivo. O dispositi-
vo está revogado, para Pablo. Mas ainda há que se aguardar a decisão do STF.

2.17.5.3.3. Separação litigiosa

Diversamente da anterior, o procedimento da separação litigiosa era contencioso. Havia uma lide, e
não pedido conjunto. A outra parte poderia até não resistir ao pedido, mas existia demanda (um pedido
em face da outra).
A doutrina em geral costumava subdividir a separação litigiosa em:
i) separação-falência (art. 1.572, § 1º);
ii) separação-remédio (art. 1.572, § 2º).

720
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Nessas duas espécies de separação não se discutia a culpa, muito embora houvesse demanda. Por
isso, alguns autores diziam que elas ocorriam por causa objetiva (Pedro Sampaio, Youssef Said Cahali).
Na prática, elas eram raríssimas.
Na separação-falência, bastava ao autor provar a falência da sociedade conjugal. A ruptura da vida
em comum podia ser traduzida pelo abandono do lar, mas podia também se caracterizar ainda que não
houvesse a saída de uma ou de ambas as partes do lar conjugal.

Art. 1572 (…) § 1o A separação judicial pode também ser pedida se um dos cônjuges provar rup-
tura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua reconstituição.

As pessoas não manejavam a separação-falência, porque preferiam aguardar mais um ano de sepa-
ração de fato para pleitear o divórcio, o qual resolveria em definitivo seus problemas.
A separação-remédio podia ser requerida nas hipóteses do art. 1.572, § 2º:

Art. 1.572 (...) § 2º O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver aco-
metido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continu-
ação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido
reconhecida de cura improvável.

Trata-se de uma enfermidade de cura improvável, superveniente ao casamento. Se não fosse de-
pois, seria caso de anulação do casamento.
O Código Civil brasileiro, segundo parcela da doutrina, teria banido, por falta de previsão legal, a
“cláusula de dureza”, oriunda do direito francês e prevista no art. 6º da Lei 6.515/1977, a qual impedia o
juiz de decretar a separação falência ou remédio, se resultasse em prejuízo do outro cônjuge ou da prole:

Art. 6º - Nos casos dos §§ 1º e 2º do artigo anterior, a separação judicial poderá ser negada, se
constituir respectivamente, causa de agravamento das condições pessoais ou da doença do outro
cônjuge, ou determinar, em qualquer caso, conseqüências morais de excepcional gravidade para
os filhos menores.

O juiz, nesses casos, poderia se recusar a decretar a separação, se verificasse que poderia haver ex-
cessivo sofrimento do cônjuge doente ou dos filhos.
Para Pablo, a recusa do juiz à homologação de acordo de separação consensual não representa
cláusula de dureza. A possibilidade de recusa de homologação por violação da ordem pública ou outros
motivos trata-se de algo que decorre do sistema.
Essas discussões esvaziam-se em vista do fim da separação. Mas o tema tem de ser estudado, como
dito, pois não há, ainda, pronunciamento definitivo do STF.
iii) separação-sanção:
Além das duas acima, havia uma terceira espécie de separação litigiosa, a chamada “separação-
sanção”, a qual tinha seu fundamento no caput do art. 1.572 do CC, complementado pelas hipóteses do
art. 1.573.

721
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Era a forma mais comum de separação. Por ser forma de separação litigiosa, nela havia uma de-
manda e se discutia culpa (ainda que essas tipologias variassem de autor para autor). Ou seja, era sepa-
ração que ocorria por causa subjetiva.
Não havia prazo para decretação. A esposa agredida na lua de mel já poderia, desde logo, pedir se-
paração. Havia uma incongruência: para a decretação da separação consensual havia um prazo de um
ano, enquanto que, se houvesse briga, era possível a separação.
Neste tipo de separação, segundo as normas do Código Civil, não bastava o desafeto. Necessário se-
ria, para o decreto de separação, que restasse provada a culpa do réu, por violação de dever conjugal ou
pela prática de conduta desonrosa.
Vale acrescentar que, pelo direito anterior, o culpado na separação também sofreria efeitos colate-
rais condenatórios, como a obrigação do pagamento de pensão, a perda do uso do nome e, até mesmo, da
guarda dos filhos (quanto à guarda, isso vigorou até a vigência do CC/02, ainda que a CR houvesse trazi-
do uma nova perspectiva a esse pensamento).
Eram petições terríveis, horrendas. Ex.: mulher que queria a todo custo a separação com culpa,
descobriu que o réu foi acometido de câncer e passou a pedir sucessivos adiamentos da audiência, para
que ele morresse e ela pudesse pleitear a herança.
Assim, para a separação de forma litigiosa, segundo a lei, não bastava a impossibilidade da vida em
comum. Era necessária a imposição (e prova) de culpa, nas hipóteses previstas no art. 1.573 do CC:

Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao ou-
tro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vi-
da em comum.

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum


dos seguintes motivos:

I - adultério;

II - tentativa de morte;

III - sevícia ou injúria grave;

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;

V - condenação por crime infamante;

VI - conduta desonrosa.

Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da
vida em comum.

Não bastava dizer “não gosto mais dela”, para que houvesse a separação. Se “A” desejasse se sepa-
rar (e não fosse caso de separação falência ou remédio) e o outro cônjuge não, “A” teria supostamente

722
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

que praticar uma conduta desonrosa para poder se separar. Essa era a maior das incongruências da sepa-
ração judicial.
Ruy Rosado de Aguiar tem acórdão paradigmático, enquanto esteve no STJ, que convidava a uma
reflexão acerca daquele paradoxo: a incongruência da exigência legal da culpa na separação, para possi-
bilitar a dissolução do casamento. Tratava-se de caso em que João imputava a Maria uma conduta de-
sonrosa, para justificar a separação. Maria reconveio, imputando a João também conduta desonrosa. O
Ministro não verificou culpa de nenhum dos dois lados, e decretou a separação (contra o direito vigente)
com base no simples desafeto.
Portanto, o maior inconveniente da separação judicial litigiosa (caput do art. 1.572) era, sem dúvi-
da, é a exigência da discussão da culpa no bojo da demanda, quando, em verdade, o moderno Direito de
Família apontava no sentido de ser suficiente o desafeto, a falência da afetividade, para a dissolução do
casamento, e da própria sociedade conjugal, como inclusive decidiu o STJ no emblemático REsp
467.184/SP. Com isso, já se percebe que a supressão do sistema de separação, a par da sua inutilidade,
marca um passo de evolução pelo banimento da culpa no juízo de família.
A culpa deve ser discutida no cível, em ação de responsabilidade civil. Ela nunca é de um só. O ba-
nimento da discussão da culpa respeita a impossibilidade de se investigar um elemento que não deve ser
investigado numa Vara de Família.
A separação não resolvia a vida do casal, pois dissolvia sociedade conjugal sem colocar por terra o
vínculo matrimonial. O art. 1.573, parágrafo único, do CC poderia até abrir a possibilidade de separação
pelo desafeto:

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum


dos seguintes motivos: (...)

Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da
vida em comum.

Todavia, existe aquela regra de hermenêutica segundo a qual o parágrafo deve ser lido de acordo
com o caput, e a jurisprudência era conservadoríssima.
O fim da separação tem como grande passo o deslocamento da discussão da culpa para a via ordi-
nária, em outro juízo, que não o do divórcio. Para Pablo, o grande avanço da EC 66/2010 foi a objetiviza-
ção do divórcio.

3. União estável
3.1. Histórico

A União Estável equivale a uma união livre/informal, sempre reconhecida como um fato social,
ainda que antes da sua institucionalização

723
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Em um primeiro momento, a união estável não mereceu o reconhecimento do direito brasileiro.


Considerava-se que apenas o casamento legitimava a família.
Com efeito, no final do século XIX (início da República), a união estável não era reconhecida no
Brasil. O direito civil sempre foi patrimonialista e despreocupado com a dignidade da pessoa humana. A
expressão que se utilizava para caracterizá-la era o “concubinato”, que tem raiz latina e designa (“dormir
com alguém”). Era expressão com pesada carga pejorativa, preconceituosa.
Coube ao direito previdenciário dar os primeiros passos no sentido do reconhecimento de direitos
da companheira. Esse ramo do direito sempre foi moderno, no sentido de vanguardista em determinadas
questões polêmicas, como ocorreu no reconhecimento da união estável homoafetiva. O direito civil so-
mente olhava para o casamento. Por isso que a união não matrimonializada não legitimava a família.
O direito civil, em um primeiro momento, reconheceria à companheira mera indenização por servi-
ços domésticos prestados, evoluindo para, em um segundo momento, mas ainda no campo do direito
obrigacional, reconhecer-lhe direito à partilha do patrimônio comum (Súmula 380 do STF):

Súmula 380 - Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua
dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.

Entre as décadas de 1940 e 1960, segundo Cláudia Pessoa, a situação começa a evoluir. A indeniza-
ção por serviços domésticos era uma piada, quando se pensava numa mulher que, por muitos anos, vive-
ra com um homem e constituíra família.
A Súmula 380 do STF, posto não reconhecesse a relação de companheirismo como forma de famí-
lia, conferiu à companheira o direito de pleitear uma parcela do patrimônio comum, como se fosse inte-
grante de uma sociedade de fato. A companheira precisava demonstrar haver colaborado com a consti-
tuição do patrimônio comum, para que tivesse direito à partilha.
Essa Súmula marcou época. Durante décadas, no Brasil, ela determinou que a mulher companheira
não constituía família, sendo considerada sócia daquele que amou e com quem teve filhos e viveu por
anos.
Com a Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), houve o reconhecimento da possibilidade de a
companheira utilizar o sobrenome do companheiro, desde que houvesse autorização dele e um justo mo-
tivo. Esse dispositivo não foi revogado expressamente (art. 57, § 2º2), mas o entendimento prevalecente
é de que ele não é mais aplicado. Deve ser aplicada a regra do art. 1.565, §1º, CC, por analogia (REsp
1.206.656/GO).
Somente com a CR/88 (art. 226, § 3º), a união estável passou a ser considerada uma entidade fa-
miliar, o que, por via de consequência, fez com que passasse a ter a tutela jurídica do direito de família.
Isso mostra a evolução por que passou o Direito Civil:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mu-

724
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

lher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Do texto constitucional verifica-se que não há mais hierarquia entre o casamento e a união estável.
Orlando Gomes, em obra comemorativa dos seus 50 anos de cátedra, demonstrou que uma marca
do direito civil do final do século XX foi justamente a migração de determinados assuntos para o âmbito
de proteção constitucional.
Após a CR, duas leis foram aprovadas disciplinando aspectos da união estável: Lei 8.971/1994 e Lei
9.278/1996. Interessante notar que a primeira lei previa prazo mínimo de 5 anos para a União Estável, a
segunda afastou esse prazo.
Hoje, a lei mais nova, que serve de regulamentação da união estável e derrogou (revogação parcial)
dispositivos dessas leis anteriores, é o CC/02, que disciplina a matéria a partir do seu art. 1.723.
Entretanto, em dois aspectos das duas leis (Lei 8.971/94 e Lei 9.278/96) não foram tratados pelo
Código Civil de 2002, mantendo- se em vigor: Competência da Vara da Família e o direito Real de Habi-
tação do(a) companheiro(a).
Em 2011 no julgamento da ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF houve o reconhecimento da união ho-
moafetiva como entidade familiar, com aplicação analógica das mesmas regras da união heteroafetiva.

3.2. Noções gerais – Conceito e elementos essenciais

União estável é a entidade familiar não matrimonializada, marcada pela convivência pública, con-
tínua e duradoura, com objetivo de constituição de família489 (art. 1.723 do CC):

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família. (...)

Observe-se que a convivência pública importa na convivência notória ou conhecida, sem necessi-
dade de um ato público (escritura) e a convivência contínua e duradoura: sem interrupções, sem que seja
“dado um tempo”, mas por um prazo necessário para a configuração de uma família (não há prazo míni-
mo).
Ademais, não há exigência de prole comum nem coabitação ou convivência sob mesmo teto (súmu-
la 382, STF490 e Tese 2 da Edição 50 do Jurisprudência em Teses, do STJ), bem como não há qualquer
requisito formal ou necessidade de ação judicial para o seu reconhecimento.

489 Trata-se de conceito do Prof. Álvaro Villaça Azevedo, responsável por introduzir o tratamento da união es-
tável no Código Civil de 2002.
490 Súmula 382 do STF: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracteri-

zação do concubinato”.

725
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A lei, ao conceituar união estável, fala em homem e mulher. Todavia, atualizando a norma (uma
forma de mutação normativa), a jurisprudência do STF evoluiu para reconhecer a união estável homoafe-
tiva entre pessoas do mesmo sexo491.
Observe que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos matrimonais previs-
tos no art. 1.521 do CC:

Art. 1.723 (...) § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de
fato ou judicialmente. (...)

Art. 1.521. Não podem casar:

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II - os afins em linha reta;

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V - o adotado com o filho do adotante;

VI - as pessoas casadas;

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o
seu consorte.

Todavia, há uma exceção. Caso um ou ambos os companheiros sejam casados, para a constituição
da união estável eles têm de estar separados judicialmente ou de fato.
Assim, os impedimentos do art. 1.521 aplicam-se à união estável, com exceção do inciso VI, na me-
dida em que a pessoa casada pode constituir união estável, se estiver separada judicialmente ou de fato
do seu cônjuge.
As causas suspensivas do art. 1.523 do CC, por sua vez, não impedem a caracterização da união es-
tável:

Art. 1.723 (...) § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união
estável.

Art. 1.523. Não devem casar:

491 Diversamente de Pablo, Chaves entende que a jurisprudência do STF reconhece a união homoafetiva como
uma entidade familiar diversa da união estável, muito embora àquela sejam aplicadas as regras desta, por analogia.

726
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens
do casal e der partilha aos herdeiros;

II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez me-
ses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do ca-
sal;

IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos,


com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem
saldadas as respectivas contas. (...)

O STJ tem aplicado o disposto no art. 1.641 do CC e a Súmula 377 do STF à união estável, com a ne-
cessidade de prova do esforço comum (Tese nº 6, Ed. 50 do Jurisprudência em Teses 12 e EREsp
1.171.820/PR),
Ademais, diante do quanto dispõe o art. 1.723 do CC, indaga-se: quanto tempo é necessário à carac-
terização da união estável? É necessária a coabitação ou a prole comum? Alguns parlamentares chega-
ram a instituir um tempo mínimo. Todavia, não existe tempo mínimo para a configuração da união está-
vel, assim como não se exige coabitação (Súmula 382 do STF) nem prole comum.

Súmula 382 - A VIDA EM COMUM SOB O MESMO TETO, "MORE UXORIO", NÃO É INDIS-
PENSÁVEL À CARACTERIZAÇÃO DO CONCUBINATO.

Segundo Flávio Tartuce os elementos caracterizadores da união estável são subjetivos, havendo
uma verdadeira “cláusula geral” na sua configuração, provocando incerteza e dúvidas em sua aplicação,
assim, é possível afirmar que olegislador brasileiro optou por um sistema aberto de caracterização da
união estável.
Não optou por critérios objetivos, como o cronológico, a coabitação ou a existência de prole co-
mum, ainda que esses elementos, reunidos, reforcem a tese. Todavia, nenhum deles, de per si, é indis-
pensável. Há na jurisprudência casos de casal, junto por quatro meses, que vivia em união estável, e de 16
anos de namoro que não configuraram união estável.
A união estável, diversamente do casamento, não gera estado civil, não precisa ser registrada e não
depende de habilitação (uma sindicância prévia). É algo informal.
Obviamente que tais elementos, especialmente quando conjugados, reforçam a tese, mas o critério
hermenêutico mais relevante é o teleológico (ou finalístico): o objetivo de constituição de um núcleo fa-
miliar (visível, aparente, público, notório).
Asism, conforme afirmam José Fernando Simão e Zeno Veloso, no namoro/noivado, a família é fu-
tura, com intenção/objetivo projetado no futuro. Na união estável, a família é presente - já existe. A dife-
rença está no animus familiae.

727
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ex.: o sujeito que apresenta a namorada como tal, demonstra a informalidade excessiva do namo-
ro. Quem apresenta alguém como companheira dá uma carga muito mais pesada ao relacionamento. Há
quem fale em esposa. Conta corrente conjunta, dependência em cartão de crédito, compra conjunta de
apartamento etc. são critérios que demonstram o eventual intuito de constituição de família.
Segundo leciona Flávio Tartuce esse ânimo familiar é analisado sob duas perspectivas:
i. Reputação (reputatio) e
ii. Tratamento (tractatio ou tractatus).
Evidentemente, a linha entre o namoro e a união estável é muito tênue. Por conta disso, o brasileiro
criou o chamado “contrato de namoro” (Revista nº 23 do IBDFAM). Trata-se de uma declaração formali-
zada pelo casal, especialmente em tabelionato de notas, por meio da qual afirma manter uma simples
relação de namoro, com o propósito de afastar o regramento da união estável. A ideia é até interessante.
A informalidade da união estável faz com que, por exemplo, não seja possível precisar o início e o fim
dela, cabendo ao juiz, muitas vezes, decifrar esses marcos dos elementos do processo.
Silvio Venosa entende que a união estável é um fato da vida. Por essa razão, não poderia um con-
trato de namoro afastar um regramento que é de ordem pública. Caso o juiz reconheça a existência de
união estável, a despeito do contrato firmado, ele dará ao relacionamento a disciplina dela. Isso não sig-
nifica que o contrato não servirá como prova da não configuração.
Portanto, caso o juiz se convença ter se configurado a união estável, não poderá o contrato de na-
moro afastar esse regramento de direito de família, que é de ordem pública.
O contrato de namoro não se confunde com o “contrato de convivência”, este sim reconhecido pelo
ordenamento jurídico e objeto de estudo de Francisco Cahali, em obra com o mesmo título. Trata-se da
declaração negocial em que, nos termos do art. 1.725 do CC, os companheiros reconhecem a união estável
e disciplinam efeitos patrimoniais dela decorrentes:

Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

Esse contrato é muito comum de ser encontrado. Muitas vezes ele somente declara a união estável,
simplesmente com fins previdenciários.
Quem está em união estável submete-se ao regramento da comunhão parcial de bens, a não ser
que, por meio de contrato, discipline diversamente as relações patrimoniais (art. 1.725).
No Editorial nº 5, no site de Pablo, há precedente do STJ (Noticiário de 23 de junho de 2010) apli-
cando a separação legal de bens na união estável, quanto houver pessoa com idade superior a 60 anos
(no atual sistema, o entendimento seria aplicável ao maior de 70).
Os companheiros submetem-se aos direitos e deveres equiparáveis aos do casamento (art. 1.724):
lealdade (que, como visto, envolve a fidelidade), respeito, assistência (que envolve alimentos), guarda,
sustento e educação dos filhos:

728
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, res-
peito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.

A união estável, nos termos do art. 1.726 do CC, poderá converter-se em casamento, mediante pe-
dido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil. Essa conversibilidade é disciplinada por pro-
vimento dos Tribunais de Justiça:

Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companhei-
ros ao juiz e assento no Registro Civil.

O casamento putativo é aquele aparente e inválido, mas cujos efeitos são mantidos, em razão da
boa-fé do cônjuge que desconhecia a invalidade, para preservar direitos dele (ex.: alimentos, partilha de
bens etc.)
Pablo entende que o mesmo raciocínio da teoria da putatividade tem de ser aplicado à união estável
(ex.: sujeito que constitui uniões estáveis com duas mulheres, que não sabiam uma da outra). Até porque
há a máxima do direito segundo a qual “onde há a mesma razão, haverá o mesmo direito”.
É digno de nota, entretanto, que o REsp 789.293/RJ não aceitou a teoria da união estável putativa
para proteger uma segunda companheira de boa-fé. Nesse caso, pouco importava, para o julgado, se a
primeira relação era de união estável ou de casamento. Para Pablo, a decisão está equivocada, na medida
em que discrimina, de forma violadora da isonomia, a companheira da esposa.
Na visão acadêmica de Pablo, se o sujeito é casado e constitui uma segunda união estável concomi-
tante, sendo que esta segunda esteja de boa-fé, poderá haver o reconhecimento da união estável putativa.

3.3. Efeitos jurídicos reconhecidos pela jurisprudência ao concubi-


nato

Como visto, acima, o direito civil, em um primeiro momento, reconheceria à companheira mera in-
denização por serviços domésticos prestados, evoluindo para, em um segundo momento, mas ainda no
campo do direito obrigacional, reconhecer-lhe direito à partilha do patrimônio comum (Súmula 380 do
STF). A mulher não poderia pleitear alimentos, pois o concubinato não era tido como família:

Súmula 380 - COMPROVADA A EXISTÊNCIA DE SOCIEDADE DE FATO ENTRE OS CONCU-


BINOS, É CABÍVEL A SUA DISSOLUÇÃO JUDICIAL, COM A PARTILHA DO PATRIMÔNIO
ADQUIRIDO PELO ESFORÇO COMUM.

Essa indenização era fixada em prestações mensais. Assim, ainda que com outro nome, o juiz con-
cedia alimentos à mulher. A competência para fixar essa indenização era do juiz da Vara Cível, pois não
era uma relação de família. A jurisprudência, então, deu um jeito de dar alimentos à companheira, tra-
vestidos por outro nome.

729
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Entre as décadas de 1940 e 1960, segundo Cláudia Pessoa, a situação começa a evoluir. A indeniza-
ção por serviços domésticos era uma piada. Depois de muitos anos vivendo e tendo constituído família, a
mulher teria direito a uma indenização por serviços prestados.
Vale ressaltar, ainda, que a Lei 6.015/73 permitiu que a concubina pudesse acrescer ao seu sobre-
nome o de seu concubino. Além disso, na década de 1970, lei previdenciária permitiu que a concubina
recebesse benefício previdenciário de seu concubino.
A Súmula 380 do STF, posto não reconhecesse a relação de companheirismo como forma de famí-
lia, conferiu à companheira o direito de pleitear uma parcela do patrimônio comum, como se fosse inte-
grante de uma sociedade de fato. A companheira precisava demonstrar haver colaborado com a consti-
tuição do patrimônio comum, para que tivesse direito à partilha.
Esta Súmula marcou época. Durante décadas, no Brasil, ela determinou que a mulher companheira
não constituía família, sendo considerada sócia daquele que amou e com quem teve filhos e viveu por
anos.
Somente com a CR/88 (art. 226, § 3º), a união estável passou a ser considerada uma entidade fa-
miliar, o que, via de consequência, fez com que passasse a ter a tutela jurídica do direito de família. Isso
mostra a evolução por que passou o Direito Civil. Assim, a CR elevou o concubinato ao status de entidade
familiar.
O concubinato então mudou de nome, visto que esta expressão estava carregada de estigma, pre-
conceito. “Concubina” era uma expressão pejorativa. O constituinte, por influência da Igreja Católica,
buscou no antigo testamento o antigo nome do casamento: união estável. Ocorre a mudança de nome, na
busca de uma nova terminologia para o concubinato.
Porém, nem todo concubinato foi elevado ao status de família: o concubinato puro ganhou o nome
de união estável e passou a ser tratado como entidade familiar (art. 226, § 3º, da CR); o concubinato im-
puro passou a ser chamado somente de “concubinato” e continua a ser tratado como sociedade de fato
(art. 1.727 do CC: não há intervenção do MP e eventual ação deve ser ajuizada na Vara Cível):

Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato.

A Súmula 382 do STF, já analisada anteriormente, reconheceu a possibilidade de união estável


mesmo que os companheiros residam em casas separadas. Essa súmula era basicamente direcionada ao
concubinato impuro.
Após o reconhecimento da união estável pela CR/88, alteram-se os efeitos jurídicos conferidos ao
concubinato.
O STJ, no REsp 988.090/MS, estabeleceu que o concubinato não produz mais como efeito a inde-
nização por serviços prestados. Quem vive numa relação concubinária não mais tem direito à indeniza-

730
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ção. Esse concubinato de que trata o julgado é o impuro, pois o puro agora é tratado como união estável e
a companheira tem direito a alimentos.
A concubina permanece tendo direito ao reconhecimento da relação concubinária, mesmo moran-
do em casas separadas, assim como remanesce o direito à partilha dos bens adquiridos pelo esforço co-
mum, desde que haja prova nesse sentido.

3.4. Noções fundamentais e diferenciação entre união estável, con-


cubinato e união livre

Diante desse histórico e da divergência constitucional entre os institutos, união livre pode ser con-
ceituada como a união entre duas pessoas humanas sem intenção de constituir uma família. Não há af-
fectio familiaris. Não se verifica a intenção futura de formar uma entidade familiar, mas a intenção pre-
sente de estar vivendo uma família. Ex.: namoro, noivado e até mesmo “ficar”. No noivado, a affectio
familiaris é futura e não presente.
Para o sistema jurídico, as uniões livres não são entidades familiares. São meras entidades obriga-
cionais e podem, quando muito, produzir efeitos no direito das obrigações. Nunca produzirão efeitos no
direito de família. Houve o caso de um cantor que deu um carro de presente à namorada e, pouco depois,
a namorada o traiu. O cantor queria tomar o carro de volta, em razão da infidelidade. Contudo, o presen-
te dado pelo namorado à namorada tem natureza de doação, e, assim sendo, é irrevogável e irretratável.
Nesta linha de raciocínio, namorados e noivos não se submetem ao dever jurídico de fidelidade, ao
parentesco por afinidade etc., pois não há nenhum efeito familiar.
O concubinato, por outro lado, é a união entre pessoas humanas impedidas de casar. São as pesso-
as que sofrem impedimento matrimonial do art. 1.521 do CC. O art. 1.727 estabelece que no Brasil o con-
cubinato é mera sociedade de fato.
Por fim, união estável (art. 226, § 6º, da CR) é a união entre duas pessoas, sem formalidades e com
intenção de viverem como se casadas fossem.
Lembre que as pessoas que vivem em união estável devem ser desimpedidas para casar, pois ha-
vendo impedimento descaracteriza-se a união estável e caracteriza-se o concubinato. Assim, os impedi-
mentos matrimoniais se aplicam à união estável. Isso se dá por um motivo simples: quem vive em união
estável deve estar livre para casar. É uma entidade familiar.
Obs.: Havia uma classificação do Prof. Álvaro Villaça, já superada pelo CC/2002, que dividia os
institutos da seguinte forma: Concubinato lato sensu:
i. Concubinato puro (união estável)!
ii. Concubinato impuro (propriamente dito - art. 1.727 do CC), subdividido em:
a) Adulterino (com pessoa casada).
b) Incestuoso (pessoa da mesma família).
c) Desleal (mais de uma união estável).

731
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalizando a questão, Flávio Tartuce apresenta uma tabela diferenciando os institutos:


União Estável Concubinato

Entidade Familiar. Não é família, mas sociedade de fato.

Companheiros ou conviventes. Concubinos ou amantes.

Pessoas solteiras, viúvas, divorciadas ou separadas Pessoas casadas não separadas; havendo
(de fato, judicialmente ou extrajudicialmente). impedimento decorrente de parentesco ou crime
(art. 1.521 do CC).
Há meação, sucessão e direito a alimentos. Não há meação, sucessão ou direito a alimentos.
Aplica-se a já vista súmula 380 do STF.

Vara da Família – Ação de reconhecimento e Vara Cível - Ação de reconhecimento e dissolução


dissolução de união estável (CPC/2015). de sociedade de fato.

Obs.: Não é possível o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas” (casamento ou outra união
estável).
União estável plúrima, presente quando alguém vive vários relacionamentos que podem ser tidos
como uniões estáveis ao mesmo tempo, há três correntes:
i. 1ª corrente: nenhum relacionamento é união estável. Posição de Maria Helena Diniz e Ál-
varo Villaça, por considerarem uniões desleais. Tese prevalecente no STJ;
ii. 2ª corrente: todos os relacionamentos são uniões estáveis. Posição de Maria Berenice Di-
as;
iii. 3ª corrente: união estável putativa (art. 1.561, CC). Corrente adotada por Flávio Tartuce,
Euclides de Oliveira e Rolf Madaleno.
Não se confunda com aUnião poliafetiva, em que existe um vínculo entre mais de duas pessoas.
Foram lavradas algumas escrituras públicas de uniões poliafetivas em São Paulo e no Rio de Janei-
ro, porém, o CNJ, em junho/2018, proibiu tais escrituras – consideradas nulas e ilícitas (art. 166, CC).

3.5. Requisitos caracterizadores da união estável

São requisitos caracterizadores da união estável:


i) diversidade de sexos:
A CR fala em homem e mulher. Surge a indagação: e a união homoafetiva, não seria também união
estável? No sistema jurídico brasileiro, a união homoafetiva não é tratada como união estável porque o
constituinte estabeleceu que a união estável se dá entre homem e mulher. A união homoafetiva, por força
do julgamento da ADI 4277/DF, pelo STF, foi reconhecida como entidade familiar autônoma e indepen-
dente, mas não como união estável. O STF está dizendo que a união homoafetiva é uma família, mas não
se confunde com o casamento ou com a união estável.

732
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Aqui, surge um problema: não há lei para disciplinar a união homoafetiva. O STF entendeu que se
aplicam, por analogia (art. 4º da LINDB), as normas que regulamentam a união estável. Se a mesma coi-
sa fossem, não seria necessária a aplicação da analogia.
É possível o casamento homoafetivo exatamente porque uma das regras da união estável é a sua
conversão em casamento. Se a união estável pode ser convertida em casamento, a união homoafetiva
também pode, por analogia.
ii) estabilidade da relação:
Estabilidade, aqui, é tratada no sentido de durabilidade. Não pode ser uma relação passageira, deve
ser uma relação duradoura. Quanto tempo se exige? Para a caracterização da união estável não é exigido
lapso temporal mínimo, tampouco prole.
Até 1994, era exigido o lapso temporal mínimo de cinco anos para que a união estável estivesse ca-
racterizada. Após 1994, o prazo foi corretamente abolido, pois não é o prazo que estabelece a união está-
vel.
iii) continuidade da relação:
É preciso que a relação seja contínua. A ideia é que não pode haver paralelismo, ou seja, a relação
deve ser exclusiva. Até porque a hipótese de simultaneidade de relações caracteriza o concubinato. Não
pode haver concomitância de relações.
iv) publicidade:
Na união estável, a relação precisa ser notória. Todavia, a publicidade não significa registro em car-
tório, nem o ajuizamento de ação para que o reconhecimento da união estável. A publicidade, aqui, signi-
fica que deve ser uma relação ostensiva, não clandestina.
v) ausência de impedimentos matrimoniais do art. 1.521:
Para a caracterização da união estável, não pode haver impedimento matrimonial. Diante desse fa-
to, somente pode se caracterizar como união estável aquilo que pode ser casamento. Ou seja, só haverá
união estável quando for possível a sua conversão em casamento.
Como visto, aplicam-se na união estável os impedimentos matrimoniais, com exceção do inciso que
veda o casamento à pessoa que ainda é casada, mas já está separada de fato. Ex.: homem que ainda não
se divorciou, mas que não mais convive com a sua esposa. Isso significa que ele já está separado de fato,
mas já vive em união estável. O fundamento dessa exceção é que com a cessação do afeto no casamento,
já se caracteriza a união estável. Excepcionalmente, nessa hipótese, a união estável ainda não pode ser
convertida em casamento.
Neste ponto, há no Código Civil duas incoerências relevantes para fins de concursos públicos:
i) o art. 1.642, V, parte final estabelece que somente cessa o regime de bens do casamento se o casal
estiver separado de fato há mais de 5 anos:

Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livre-
mente:

733
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

V - reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge
ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes,
se o casal estiver separado de fato por mais de cinco anos;

ii) o art. 1.830 estabelece que o direito à herança no casamento somente cessa depois de 2 anos da
separação de fato:

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da
morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois
anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobre-
vivente.

O problema é que o separado de fato, independentemente de qualquer prazo, já pode estar em uni-
ão estável. Veja a incoerência: se a pessoa ainda é casada, mas está separada de fato há um ano, já pode
estar em união estável, mas, se adquirir um terreno, metade dele, por força de lei, ainda é da esposa, as-
sim como eventual herança.
O STJ, no REsp 555.771/SP, abriu a sua orientação no sentido de que a simples separação de fato,
independentemente de qualquer prazo, cessa os efeitos do casamento, inclusive quanto a regime de bens
e herança. Percebe-se, portanto, que, de acordo com o STJ, após a separação de fato, quem terá direito é
a companheira e não a ex-esposa ou o ex-esposo.
O problema é o seguinte: se o examinador perguntar se a pessoa casada, porém separada de fato,
continua tendo direitos até o transcurso de cinco anos, essa afirmação pode ser considerada verdadeira,
pois está no CC/02. Todavia, se o examinador fizer a mesma pergunta de acordo com o entendimento do
STJ, a resposta deve ser de que a mera separação de fato cessa os efeitos do casamento.
Portanto, o art. 1.723, § 1º entrou em rota de colisão com o art. 1.642, V e o art. 1.830, ambos do
CC. O STJ dirimiu esse conflito a favor do art. 1.723, § 1º, dizendo que a simples separação de fato cessa
os efeitos do casamento.
Veja que o CC mandou aplicar à união estável os impedimentos matrimoniais, mas não as causas
suspensivas do art. 1.523 (“não devem se casar”). Estas causas suspensivas impõem o regime de separa-
ção obrigatória de bens, mas elas não se aplicam na união estável. A conclusão a que se chega é a seguin-
te: quem vive em união estável não se submete ao regime de separação obrigatória.
Entretanto, o STJ já decidiu que o regime da separação obrigatória se aplica na união estável para o
maior de 70 anos. Na letra do CC/02, não há obrigatoriedade do regime de separação obrigatória para a
união estável.
Os requisitos apresentados são objetivos e, portanto, um namoro muito longo (de 10 anos, por
exemplo) poderia se caracterizar em união estável. Todavia, o último requisito não deixa que isso ocorra:
intuitu familiae. É a intenção de viver como se casados fossem (convivência more uxorio). Este é o requi-
sito subjetivo e é isso que distingue a união estável de um namoro prolongado.

734
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É importante perceber que a questão aqui é probatória, processual. Sob o ponto de vista do direito
material, exige-se o ânimo de viver, atualmente, como se casados fossem, sem a necessidade de morar
sob o mesmo teto. Não basta a intenção futura de viver como se casados fossem, tem de haver a vontade
atual (art. 1.723, caput, do CC).

3.6. Efeitos pessoais da união estável

O art. 1.724 do CC estabelece os efeitos pessoais da união estável:

Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, res-
peito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.

Conforme já salientado, os efeitos são válidos para as uniões heteroafetivas e homoafetivas, ambas
de competência da Vara da Família

3.6.1. Lealdade e respeito


Na união estável, como visto, não incide o dever jurídico de fidelidade, que só existe no casamento.
Aqui, há a lealdade. Todavia, não há dúvida que a fidelidade é um dos aspectos da lealdade. A lealdade é
mais ampla.
Os deveres de lealdade e respeito permitem a ocorrência do “adultério virtual”, aquele ocorrido na
internet. O conceito de fidelidade, por outro lado, não permite a caracterização do adultério virtual, pois
violação à fidelidade exige a relação carnal, sexual. Um adultério virtual pode violar a lealdade, mas não a
fidelidade.

3.6.2. Guarda, sustento e educação dos filhos


Outro efeito pessoal da união estável é a guarda, sustento e educação dos filhos. Frise-se que esse
também é um efeito pessoal do casamento. Ao professor parece que esse efeito não deveria ser da união
estável ou do casamento, mas da filiação. Este efeito pessoal não cessa pelo término da relação, pela rup-
tura da convivência. O divórcio ou a dissolução da união estável não afetam o exercício do poder familiar.
Assim, a guarda compartilhada não compartilha o poder familiar, que já é compartilhado por força de lei.
Na guarda compartilhada, compartilha-se a convivência.
Suponha uma guarda unilateral em favor da mãe, com visitas ao pai. Se houver alguma controvér-
sia entre eles, quem decide é o juiz, pois o poder familiar é compartilhado por ambos os cônjuges, ainda
que sobrevenha divórcio.

3.6.3. Assistência recíproca


A assistência recíproca é o terceiro efeito pessoal da união estável.
Sobre ela, há um raciocínio necessário: durante o casamento, a assistência recíproca se dá pelo de-
ver recíproco de manutenção do lar. Este dever de manutenção do lar independe do regime de bens, pois
ambos os cônjuges ou companheiros durante a relação têm esse dever.

735
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Na união estável, o dever de manutenção do lar não é igualitário, mas proporcional: quem ganha
mais colabora mais e quem ganha menos colabora menos. Mas ambos têm o dever de manutenção do lar.
Cessada a relação, a assistência recíproca (que durante a convivência se caracteriza pela manuten-
ção do lar) se converte em obrigação alimentícia. Aqui, para que haja a obrigação alimentícia, deve ser
provada a necessidade de quem recebe e a capacidade contributiva de quem presta.

3.6.4. Parentesco por afinidade


O quarto efeito pessoal da união estável é o estabelecimento do parentesco por afinidade (art.
1.595).

Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinida-
de.

§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do
cônjuge ou companheiro.

§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união está-
vel.

Lembre que, na linha reta, o parentesco por afinidade não se dissolve nunca; na linha colateral se
dissolve. Com isso, será impossível casar ou manter união estável com a ex-sogra ou ex-enteada, mas é
possível casar com a ex-cunhada.

3.6.5. Acréscimo do sobrenome


O quinto efeito pessoal da união estável é o direito de acréscimo do sobrenome do companheiro e
da companheira (art. 57, § 2º, da Lei 6.015/1973):

Art. 57 (...) § 2º A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquita-
do ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz compe-
tente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem
prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento legal para o casamento,
decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas. (Incluído pela Lei nº 6.216, de
1975).

Nome é direito da personalidade. Por isso, quem modificou o sobrenome pelo casamento ou união
estável somente voltará a ter o nome anterior quando da dissolução, se assim desejar.

3.6.6. Adoção
O sexto efeito é a possibilidade de adoção pelo casal em união estável (art. 42, § 2º, do ECA):

Art. 42 (...) § 2º Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmen-
te ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. (Redação dada pela Lei
nº 12.010, de 2009)

736
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Quem vive em união estável pode adotar pelo par, ou seja, não é adoção unilateral, mas adoção do
casal. É possível que o casal adote mesmo depois da dissolução da união estável, se a convivência com o
adotante se iniciara anteriormente à dissolução. Ex.: se durante a convivência o casal obteve a guarda do
menor, nada impede que mesmo depois da dissolução da união estável eles venham a adotá-lo.

3.6.7. Direito à inventariança


Sétimo efeito pessoal é o direito à inventariança (art. 990 do CPC). É um direito preferencial:

Art. 990. O juiz nomeará inventariante: (Vide Lei nº 12.195, de 2010)

I - o cônjuge ou companheiro sobrevivente, desde que estivesse convivendo com o outro ao tem-
po da morte deste; (Redação dada pela Lei nº 12.195, de 2010)

3.6.8. Direito à curadoria


O oitavo efeito pessoal da união estável é o direito à curadoria, no caso de interdição ou ausência.

3.6.9. Subrogação e retomada na locação de imóveis urbanos


O nono efeito pessoal da união estável é o direito à subrogação e retomada na locação de imóveis
urbanos (art. 12 da Lei 8.245/91):

Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da união está-
vel, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que
permanecer no imóvel. (Redação dada pela Lei nº 12.112, de 2009) (...)

O companheiro tem o direito de continuar na locação, ainda que o locador não tenha celebrado o
contrato com ele. Nesse caso, o locador é obrigado a suportar o companheiro em sub-rogação (não pode
despejá-lo), mas pode exigir garantia do companheiro que se sub-rogou:

Art. 12 (...) § 1º Nas hipóteses previstas neste artigo e no art. 11, a sub-rogação será comunicada
por escrito ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia locatícia. (Incluído pela
Lei nº 12.112, de 2009)

§ 2º O fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta) dias conta-
do do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado, ficando responsável pelos efeitos
da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador. (Incluído pela Lei nº
12.112, de 2009)

3.6.10. Observações gerais quanto aos efeitos pessoais da união estável


Os efeitos pessoais da união estável também se aplicam à união homoafetiva (na ADI 4277, o STF
mandou aplicar as regras da união estável à relação homoafetiva, por analogia).
Como visto, esses efeitos são da união estável e não do concubinato. No concubinato, não incidem
estes efeitos, pois o concubinato é tido como mera sociedade de fato.

737
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Lembre-se da discussão doutrinária, que não consta do CC, acerca da possibilidade ou não da união
estável putativa. União estável putativa seria o concubinato de boa-fé. Basta imaginar uma pessoa que se
relaciona com outra casada, sem saber que ela é casada. Ex.: motorista de ônibus que vive viajando e
constitui duas famílias em cidades diferentes (dois núcleos familiares distintos). Cada uma delas não
sabe da existência da outra. A situação só vem à tona com a morte dele.
Para a doutrina, por analogia com o art. 1.561 do CC, que trata do casamento putativo, seria o caso
de união estável putativa, em razão da boa-fé:

Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o ca-
samento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anula-
tória.

Nesse caso, todo o patrimônio seria dividido por três. O TJSP chama esse fenômeno de “triação”.
Maria Berenice Dias adverte para um detalhe: a boa-fé nesse caso não é apenas a subjetiva (de conheci-
mento), mas pode ser também a boa-fé objetiva (de comportamento). Seria o caso existente em Sergipe,
de um homem que mantém relação estável com três mulheres, sendo que as três sabem da existência
uma da outra e aceitam esse comportamento. A boa-fé aqui seria objetiva, mas todas as três seriam rela-
ções de união estável putativa.
Esse argumento é apenas doutrinário, pois na jurisprudência prevalece o entendimento de que o
concubinato é sempre e somente sociedade de fato e nunca união estável. A jurisprudência não aceita o
concubinato como entidade familiar, nem mesmo com boa-fé. Não existe a tese da união estável putativa
na jurisprudência.
O professor pondera que se as pessoas confiam naquela situação, ainda que putativa, merecem pro-
teção.
Não são efeitos pessoais da união estável:
i) coabitação (Súmula 382 do STF);
ii) fidelidade: na união estável há lealdade (que é mais amplo que a fidelidade) e respeito;
iii) emancipação;
iv) mudança do estado civil: quem vive em união estável não altera seu estado civil;
v) estabelecimento de presunção de paternidade do art. 1.597: esse é um efeito exclusivo do casa-
mento, não aplicável à união estável;
vi) caracterização como herdeiro necessário (art. 1.845): o cônjuge é herdeiro necessário, mas o
companheiro não:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Em vista de todos esses efeitos, pode-se afirmar que a união estável não se confunde com o casa-
mento, embora também seja uma entidade familiar. Ambos são entidades familiares, mas o casamento é
formal e solene, ao passo que a união estável é informal e não solene.

738
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A diferença entre casamento e união estável repousa em uma lógica: se o casamento é público e
formal, ele produz efeitos entre as partes e em relação a terceiros; já a união estável é informal e não so-
lene, produzindo efeitos apenas intra partes. Não existem efeitos da união estável em relação a terceiros,
com a exceção do parentesco por afinidade (art. 1.595), previsto em lei.
Exemplos: o art. 496 do CC prevê que na compra e venda de ascendente para descendente é neces-
sário o consentimento dos demais filhos e do cônjuge. O dispositivo não se aplica à união estável, por
envolver terceiros. O art. 499 prevê que a compra e venda entre cônjuges é lícita, com relação aos bens
excluídos da comunhão. O dispositivo se aplica à união estável, por produzir efeitos apenas entre as par-
tes.

3.7. Efeitos patrimoniais da união estável

Os efeitos patrimoniais da união estável estão previstos no art. 1.725 do CC

Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às re-
lações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

Aplicam-se na união estável as regras do regime de comunhão parcial de bens. Esse regime gera
presunção absoluta de colaboração entre os cônjuges, não admitindo prova em contrário. Se um casal
vive em união estável e compra um terreno, a lei presume de forma absoluta essa colaboração, que não é
apenas financeira ou econômica, podendo ser subjetiva, moral ou espiritual.
Uma exceção à presunção absoluta é o contrato de convivência, termo cunhado por Francisco
José Cahali, não obrigatório, que pode ser feito por escritura pública ou instrumento particular.
Nele, pode-se escolher regime patrimonial diverso da comunhão parcial e, ainda, declarara existên-
cia da própria união estável.
Esse contrato se assemelha, de certo modo, ao pacto antenupcial, mas com ele não se confunde. O
pacto antenupcial deve ser feito por escritura pública, sob pena de nulidade, e registrado no Cartório de
Imóveis, sob pena de ineficácia em relação a terceiros. Já o contrato de convivência pode ser feito por
escritura pública ou particular e não poderá ser registrado no Cartório de Imóveis, mas apenas no de
notas.
Outra peculiaridade é que o pacto antenupcial é sempre celebrado antes do casamento, ao passo
que o contrato de convivência pode ser celebrado a qualquer tempo. Em regra, o contrato de convivência
não produz efeitos retroativos. Portanto, até a sua celebração, aplicam-se as regras da comunhão parcial
de bens; após, as regras do regime escolhido.
Como a união estável produz efeitos apenas entre as partes, o contrato de convivência é inoponível
perante terceiros. Isso gera um efeito: se uma pessoa que vive em união estável quiser alienar ou onerar
bens imóveis que estejam apenas registrados em seu nome (adquiridos na constância da união estável),
não será necessário obter o consentimento da companheira. É lógico que se o bem imóvel estiver em no-
me de ambos será necessário o consentimento do outro.

739
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo o STJ, é nula a cláusula que atribui eficácia retroativa ao regime de bens pactuado em es-
critura de união estável492, de sorte que prevalece o regime legal (comunhão parcial) no período anterior
à lavratura da escritura.
Discute-se ainda a aplicação do art. 1.647 do CC16 (outorga conjugal), por analogia, à união estável
(outorga convivencial), sobre o tema, três correntes:
i. 1ª corrente: sim, pois a união estável equipara-se ao casamento. 493
Segundo Flávio Tartuce não se pode negar que esta corrente é fortalecida pelo art. 73, §3º, CPC,
pois este dispositivo exige outorga convivencial para as ações reais imobiliárias (art. 1.647, II, CC).
ii. 2ª corrente: não, pois a união estável não é totalmente igual ao casamento. Outrossim, o
art. 1.647 não admite analogia por ser norma restritiva de direitos, nesse sentido o Enunci-
ado 641 da JDC494.
iii. 3ª corrente: Aplica-se o art. 1.647 no caso da união estável feita por escritura pública e re-
gistrada no Cartório de Registro de Imóveis495.
Finalmente, não se deve confundir contrato de convivência com contrato de namoro. O contrato de
convivência, sobre o qual alude o art. 1.725, é a disciplina dos efeitos patrimoniais da união estável. Já o
contrato de namoro é o negócio jurídico pelo qual as partes declaram que estão namorando, e não viven-
do em união estável.
O contrato de namoro torna-se um instrumento inócuo, pois quer estabelecer que as partes estejam
apenas namorando e não vivendo em união estável, mas não é instrumento idôneo para obstar a união
estável quando presentes os seus requisitos caracterizadores. Assim, ainda que haja um contrato de na-
moro celebrado, se o juiz entender que estão presentes os requisitos caracterizadores da união estável,
ela será reconhecida (norma de ordem pública).
São outros efeitos patrimoniais da união estável:
i) direito a alimentos, nas mesmas condições do casamento:
Os alimentos devem observar os requisitos da necessidade de quem recebe e da capacidade contri-
butiva de quem presta, depois da dissolução.
ii) direito à herança (art. 1.790):

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens

492 (STJ. REsp 1.597.675/SP. 3ª Turma. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Julg. 25/10/2016)
493 (REsp 755.830/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/11/2006, DJ
01/12/2006, p. 291)
494 Enunciado n. 641, com a seguinte dicção: “a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a incons-

titucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável.
Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade
familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico
que funda o casamento, ausente na união estável”. (REsp 1.299.866/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).
495 (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014)

740
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: (...)

No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre


cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo
1.829 do Código Civil.
Assim, resta o art. 1.790 inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais da igualdade,
da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente
e da vedação ao retrocesso496.
iii) direito ao benefício previdenciário com a mesma presunção de necessidade das pessoas casa-
das.

3.8. Conversão da união estável em casamento

Obedecendo ao art. 226, § 3º, da CR, foi editado o art. 1.726 do CC:

Art. 226 (...) § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o ho-
mem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companhei-
ros ao juiz e assento no Registro Civil.

Existem dois requisitos para a conversão da união estável em casamento: i) pedido dirigido ao juiz;
ii) registro no Cartório de Registro Civil.
Pergunta-se: se para casar não é preciso pedido dirigido ao juiz, por que ele seria necessário na
união estável, em vista do comando constitucional que diz que a lei facilitará a conversão?
À primeira vista poderia ser uma dificuldade, mas como a conversão da união estável depende de
pedido ao juiz, admite-se a eficácia retroativa a ele atribuída. Permite, portanto, que a conversão em ca-
samento opere efeitos retroativos.
Na prática, em muitas unidades da Federação, a conversão é feita unicamente no Cartório de Regis-
tro Civil, como no estado de São Paulo, mediante norma da Corregedoria do Tribunal de Justiça.

4. Parentesco e reconhecimento de filhos (Art. 1.591 a 1.617,


CC)
4.1. Parentesco no direito civil

4.1.1. Conceito de parentesco e modalidades

496 STF. Plenário. RE 646721/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso e RE

878694/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 10/5/2017 (repercussão geral) (Info 864).

741
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

“Parente”: do latim Parens-tis, passado do verbo Pario-ere, que significa parir, gerar, dar à luz. A
expressão pode ser associada aos parênteses gráficos ( ), como ideia de mesmo grupo.
Assim, conforme ensina Flávio Tartuce o parentesco pode ser conceituado como sendo o vínculo
jurídico estabelecido entre pessoas que têm mesma origem biológica (mesmo tronco comum); entre um
cônjuge ou companheiro e os parentes do outro; e entre as pessoas que têm entre si um vínculo civil (ex.
adotante e adotado).

4.1.2. Modalidades de parentesco


i. Parentesco consanguíneo ou natural – aquele existente entre pessoas que mantêm entre si
um vínculo biológico ou de sangue, por terem origem no mesmo tronco comum, de forma:
a) Direta = na linha reta com ascendentes ou descendentes;
b) Indireta = na linha colateral ou transversal.
ii. Parentesco por afinidade – existente entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do
outro cônjuge ou companheiro.
Importante notar que cônjuges ou companheiros não são parentes entre si, havendo outro vínculo
entre eles o de conjugalidade ou convivencialidade. “Marido e mulher não são parentes”.
Nesses casos, o parentesco por afinidade pode ser:
a) Na linha reta: sogra, sogro e seus ascendentes; enteado, enteada e seus descendentes. Há víncu-
lo perpétuo, com impedimento matrimonial.
b) Na linha colateral: entre cunhados. O vínculo não é perpétuo e não há impedimento matrimo-
nial.
iii. Parentesco civil – aquele decorrente de outra origem, que não seja a consanguinidade ou a
afinidade, conforme consta do art. 1.593 do CC.
Segundo Flávio Tartuce, tem origem na adoção, entretanto, a doutrina497 e a jurisprudência admi-
tem duas outras formas de parentesco civil, como ocorre a decorrente da técnica de reprodução heterólo-
ga, aquela efetivada com material genético de terceiro, caso em que o vínculo será estabelecido com
aquele que planejou e não com o doador do material genético.
Ou ainda com fundamento na parentalidade socioafetiva, na posse de estado de filhos e no vínculo
social de afeto.

4.1.3. Regras quanto à contagem de de parentesco consanguíneo

497 Enunciado 103, I JDC: “O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além

daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental
proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu
com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.” Enunciado
256, III JDC: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” -
Informativo 840 do STF: Repercussão geral da parentalidade socioafetiva. “Vínculo de filiação e reconhecimento de
paternidade biológica”.

742
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Flávio Tartuce salienta a importância do estudo relativo às regras de contagem de graus de paren-
tesco consanguíneo ou natural, fundamental tanto para o Direito de Família quanto para o Direito das
Sucessões, objeto das próximas aulas.
Rememora-se que o parentesco consanguíneo pode ser na linha reta ou na linha colateral (ou
transversal).

Na linha reta, São parentes as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascenden-
tes e descendentes, contando-se os graus são contados pelo número de gerações na medida em que
se sobe ou se desce na “escada parental”, a teor do quanto previsto no Art. 1.594:

CC, art. 1.594: “Contam-se, na linha reta, os graus de parentesco pelo número de gerações, e, na
colateral, também pelo número delas, subindo de um dos parentes até ao ascendente comum, e
descendo até encontrar o outro parente.”.

Na linha colateral ou transversal, são parentes as pessoas provenientes de um só tronco, sem des-
cenderem uma da outra, até o 4º grau (art. 1.592, CC).
Conforme Art. 1.594, visto acima, para a contagem, deve-se subir ao máximo na busca do ancestral
comum e descer até se encontrar o outro parente. Existe apenas até o 4º grau!
Flávio Tartuce apresenta o esquema abaixo:

4.1.4. Classificação dos irmãos


i. Irmãos bilaterais ou germanos: mesmo pai E mesma mãe;
ii. Irmãos unilaterais: mesmo pai OU mesma mãe. 

743
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

a) Se mesmo pai: consanguíneos;


b) Se mesma mãe: uterinos.

4.2. Reconhecimento de filhos e filiação

4.2.1. Noções gerais


Historicamente, o tratamento jurídico dado aos filhos pelo direito brasileiro foi desigual, talvez por
conta da influência que exerceu o Código Civil francês no CC/16. Napoleão chegou a dizer que não inte-
ressava à sociedade o reconhecimento de filhos bastardos. Com essa visão, o CC francês, que tanto influ-
enciou a legislação brasileira, instituiu o tratamento desigual/hierarquizado entre os filhos.
Louvando-se dessa influencia francesa, o CC/16, por exemplo, estabeleceu que filho adotivo não ti-
nha direito à herança. A morte dos adotantes extinguia a adoção, exatamente para impedir que o filho
adotivo herdasse. Além disso, no diploma anterior, os filhos adulterino e incestuoso não podiam ser
reconhecidos pelo seu pai. Somente em 1949, com o advento da Lei 883, é que se permitiu que o filho
adulterino fosse reconhecido. Ainda assim, era exigido o consentimento da esposa. Uma vez reconhecido,
o filho que possuía tal condição tinha direito a somente metade dos direitos daquele que fosse legítimo.
O CC/16, portanto, partia da premissa segundo a qual a filiação era desigual e hierarquizada. Com a
CR/88 esse panorama mudou, como será analisado adiante.
Filiação é a relação jurídica de parentesco entre ascendentes e descendentes no primeiro grau. Note
que o conceito de filiação não é apenas biológico, mas plural, na medida em que ele não se restringe à
biologia. Assim, reconhece-se a pluralidade de vínculos (origens) filiatórios, como o oriundo da adoção.
Cumpre lembrar que a biotecnologia enriqueceu o conceito de filiação, na medida em que estabeleceu
novas formas de filiação.

4.2.2. Princípio constitucional da igualdade entre os filhos


A CR, em seus arts. 226 e 227, assegurou a igualdade entre os filhos:

Art. 227 (...) § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à fi-
liação.

O princípio é amplo/complexo, referindo-se a três diferentes aspectos:


i) patrimonial:
A igualdade entre os filhos é patrimonial na medida em que nenhum filho pode ser discriminado
na herança. O filho adotivo tem os mesmos direitos patrimoniais dos demais.
ii) existencial:
A igualdade existencial entre os filhos é uma igualdade de origem. Assim, independentemente de
sua origem, todo filho merece a mesma proteção. Caminhando nesse sentido, confira-se o art. 1.593 do

744
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Código Civil, que expressamente estabelece que o parentesco pode ser biológico, civil ou ter qualquer
outra origem:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra ori-
gem.

Esta parte final (“ou outra origem”) deixa claro que a filiação respeita a igualdade existencial: seja
qual for a origem, todo filho merece igual tratamento. A partir desse princípio é que se reconhece, por
exemplo, a paternidade socioafetiva (ex.: adoção à brasileira, filho de criação etc.)
iii) designativo:
Por fim, a igualdade entre os filhos é designativa. Não mais se admite designação, qualificação de
filhos. Como consequência, não mais se pode falar em filho legítimo, ilegítimo, incestuoso, bastardo etc.
Todo filho merece o mesmo tratamento.
No estudo do principio constitucional da igualdade, deve-se lembrar da lição de Celso Antonio
Bandeira de Melo (em “O conteúdo jurídico do princípio da igualdade”): deve-se sempre considerar a
ideia de discrimen (o princípio da igualdade nada mais é que aquinhoar de modo igual quem estiver em
situação fática igual, e de modo diferente quem estiver em situação fática diferente). Discrimen, portan-
to, é a existência de uma situação fática subjacente de desigualdade.
Diante dessa ideia fundamental, o principio constitucional da igualdade entre os filhos permite tra-
tamento desigual entre eles, desde que haja discrímen. No campo sucessório, ele jamais haverá, de modo
que todo filho terá sempre o mesmo direito.
Um caso em que poderá haver discrimen, por exemplo, é o da prestação de alimentos. O sujeito
com suficiente capacidade contributiva tem dois filhos, da mesma idade, com duas mulheres diferentes.
Um deles mora na capital e outro mora em cidade pequena do interior. São crianças diferentes, com ne-
cessidades diferentes (o custo de vida na capital é bastante maior), de modo que a pensão entre eles será
diferente (o filho que mora na capital terá pensão maior). Caso o outro venha a morar da capital, a pen-
são poderá ser revisada para se tornar igual, ou até maior, dependendo da situação fática subjacente (a
esse respeito, ver o art. 1.694 do CC, segundo o qual a fixação dos alimentos se dará com base na necessi-
dade, possibilidade e na capacidade). No exemplo dado, tratá-los igualmente ferirá a igualdade. Pensão
não é salário, de modo que deve servir para cobrir as despesas, não para sobrar.

4.2.3. Critérios determinativos da filiação


O CC/2002 estabelece três critérios determinantes da filiação:
i) presunção legal (art. 1.597):
Trata-se da presunção pater is est quaem justae nupcias demonstrant (“o pai é aquele indicado pe-
las núpcias”), também chamada de presunção pater is est. Ou seja, o filho da mãe casada é presumida-
mente do marido dela. Essa presunção é bem antiga, vem desde o Código de Hamurabi.

745
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segunto Flávio Tartuce, essa máxima encontra-se bastante enfraquecida ante ao advento do exame
de DNA e do reconhecimento da paternidade socioafetiva.
ii) critério biológico:
O critério biológico determina a filiação por meio do DNA.
iii) critério socioafetivo:
O critério socioafetivo determina a filiação pelos laços de convivência.
Os três critérios não trazem hierarquia entre si, até mesmo em respeito ao princípio constitucional
da igualdade. Somente se descobrirá qual deles deverá ser aplicado com base no caso concreto.
Os critérios são excludentes? Ou seja, determinando a filiação com base num deles, os outros esta-
riam excluídos? Uma pessoa pode ter dois pais ou duas mães? Veja que não se trata de indagação acerca
de paternidade homoafetiva. A jurisprudência e a doutrina majoritárias entendem que os critérios são
excludentes e preferenciais. Ou seja, aquele que tem pai biológico não terá pai afetivo.
Alguns autores, entretanto, começaram a defender a tese da pluripaternidade (ou multipaternida-
de), a qual também é chamada de “teoria tridimensional do direito de família” (que não tem nada a ver
com a teoria tridimensional de Miguel Reale). Defendem esta tese Valcir Rodrigues Junior (Minas Ge-
rais) e Belmiro Pedro Welter (Rio Grande do Sul). Segundo esses autores, o princípio constitucional da
igualdade entre os filhos é um princípio de inclusão, não de exclusão, e, por isso, um critério não deve
excluir o outro, de modo que cada pessoa pode ter mais de um vínculo filiatório, a partir do princípio da
igualdade.
Esses autores chegam a dizer que cada pessoa pode ter até três vínculos filiatórios. Um biológico (a
ancestralidade), um afetivo (a convivência) e um ontológico (aquela pessoa que serve de modelo, exem-
plo). Nesta multiplicidade filiatória, haveria três pais, três mães, 24 avós etc. Chaves respeita a tese, mas
não concorda com ela, na medida em que traz a reboque a da plurihereditariedade. Aquele que tem mais
de um pai e de uma mãe herda de todos eles. A tese traz como inconveniente visível uma patrimonializa-
ção do conceito filiatório. Certos pais serão escolhidos com interesses econômicos.
Segundo José Fernando Simão, há que se conhecer, acerca deste tema, dois precedentes que admi-
tem a multiparentalidade: um do TJSP e outro do TJRS. Os casos eram semelhantes: o sujeito tem filhos,
fica viúvo cedo e se casa novamente. A madrasta passa a criar os filhos do marido como se dela fossem,
numa relação que ultrapassa a de madrasta-enteada, tornando-se materno-filial.
Problema: as duas não pedem ao Judiciário a adoção das crianças, para evitar o rompimento do
vínculo biológico com a família da mãe falecida. Elas queriam somar, e não excluir. Em am-bos os casos,
os Tribunais entenderam possível a soma de vínculos. Mas veja que a mãe biológica falecera. Na prática,
era uma mãe, mas na certidão eram duas.
Interessante que em SP, em primeira instância, o juiz tentou convencê-la adotar, tendo a madrasta
alegado no recurso que não achava justo que os “filhos” perdessem o vínculo afetivo com a família da
mãe falecida.

746
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O caso mais complicado, para fins de concurso, é a dupla paternidade, pois não há decisões de tri-
bunal acerca do tema. Há apenas duas decisões, de primeira instância, mas nenhuma de SP498. A mulher
engravida, não conta ao namorado, muda de cidade, conhece outro, que diz que com ela se casará e será
pai da criança. Ele cria o vínculo afetivo e, muito tempo depois, o antigo namorado descobre que é pai e
pretende o reconhecimento de seu direito de ser pai, privado pela mãe. Dois querem ser pais. Esse é o
caso mais dramático. Há três decisões possíveis:
i) prevalece a socioafetividade: seria uma punição ao genitor, em favor do interesse da criança;
ii) prevalece o vínculo biológico;
iii) (decisões de primeira instância em Ariquemes, RO, e Cascavel, PR) as crianças ganharam dois
pais e uma mãe.
Esse tema é difícil, para fins de concurso, porque esbarra no tema: a decisão de ter dois pais atende
ao melhor interesse da criança, princípio norteador de todo o Direito de Família? Para alguns, melhor ter
três do que nenhum. Todavia, ter três pode ser ruim, por exemplo, na condução da educação, ou na hipó-
tese de, já adulta, a pessoa ter de vir a sustentá-los na velhice. Este tema é espinhoso.

4.2.3.1. Critério da presunção legal (pater is est)

4.2.3.1.1. Noções gerais

A presunção pater is est está prevista no art. 1.597 do CC:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, se-
paração judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial [reprodução assistida] homóloga [com material
genético dos cônjuges ou companheiros], mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de


concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial [reprodução assistida] heteróloga [com material


genético de terceiro], desde que tenha prévia autorização do marido.

Quis o CC que a presunção ficasse restrita ao casamento, entretanto o cenário atual conforme car-
reado acima, demanda que a presunção seja utilizada para outras formas de família, especialmente à
união estável (nesse sentido, Tartuce e Maria Berenice Dias).
Salienta-se que todas são presunções relativas ou iuris tantum

498 Tema ministrado no final de 2013.

747
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há um precedente nesse sentido (REsp 23/PR). Maria Berenice Dias vai adiante e entende aplicá-
vel a presunção na união homoafetiva.
Obs.: Sobre a Técnica de Reprodução Assistida, há regulamentação trazida pela Resolução
2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM), bem como o Provimento 63/2017 do CNJ..
Obs2.:Além das técnicas de reprodução assistida homóloga, há as seguintes:
i. Técnica GIFT: quando a fecundação ocorre no corpo da mulher (seringal);
ii. Técnica ZIFT: quando a fecundação ocorre fora do corpo da mulher (proveta).

4.2.3.1.2. Presunção de maternidade

A presunção pater is est é exclusivamente de paternidade, ou abrange também a maternidade? A


presunção foi criada pelo sistema, pois a maternidade é certa e a paternidade incerta. Por isso, no Enun-
ciado 129 da Jornada de Direito Civil, chegou-se ao entendimento segundo o qual a maternidade é pre-
sumida pela gestação, enquanto que a paternidade é presumida pelo casamento (mater is certus):

Enunciado nº 129 - Proposição para inclusão de um artigo no final do cap. II, subtítulo II, cap.
XI, título I, do livro IV, com a seguinte redação:

Art. 1.597-A. A maternidade será presumida pela gestação.

Parágrafo único: Nos casos de utilização das técnicas de reprodução assistida, a maternidade se-
rá estabelecida em favor daquela que forneceu o material genético, ou que, tendo planejado a
gestação, valeu-se da técnica de reprodução assistida heteróloga.

Tal presunção de maternidade pela gestação, todavia, é relativa. Como visto, o conceito de filiação
não é exclusivamente biológico, não podendo a presunção mater is certus ser considerada absoluta.

4.2.3.1.3. Concepções biológica e artificial da presunção de paternidade

Assim como a presunção de maternidade, a de paternidade também é ordinariamente relativa.


Atualmente, na Europa, os países têm excluído a presunção de paternidade, na medida em que, com o
advento da possibilidade de determinação científica da paternidade, ela vai se esvaziando.
O CC/02, todavia, na contramão da tendência, não somente manteve como ampliou os casos de
presunção de paternidade, a qual passa a alcançar duas concepções:
i) biológica (ou sexual);
ii) artificial (através de fertilização medicamente assistida):
A fertilização medicamente assistida (concepção artificial) se dá por fertilização in vitro ou por in-
seminação artificial. Fertilização in vitro ocorre quando o médico trabalha com sêmen e óvulo e promove
a concepção no próprio laboratório. Após, implanta o embrião já concebido na mulher. Na artificial, o
médico trabalha somente com o sêmen (faz seleção de sêmen) e o implanta no corpo da mulher. Note
que na inseminação artificial, a concepção é in vivo (e não in vitro).

748
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As duas formas de fertilização artificial podem ser homóloga (quando se trabalha com material ge-
nético do casal) ou heteróloga (quando envolver material genético de terceiro).
Os Enunciados 105 e 257 da Jornada de Direito Civil estabelecem que as regras do Código Civil
acerca da presunção de paternidade na fertilização assistida aplicam-se tanto na fertilização in vitro
quanto na artificial, mas devem ser interpretadas restritivamente, no que tange ao seu conteúdo:

Enunciado nº 105 – Art. 1.597: As expressões “fecundação artificial”, “concepção artificial” e “in-
seminação artificial” constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597 deverão ser
interpretadas como “técnica de reprodução assistida”.

Enunciado nº 257 – Art. 1.597: As expressões “fecundação artificial”, “concepção artificial” e


“inseminação artificial”, constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597 do Códi-
go Civil, devem ser interpretadas restritivamente, não abrangendo a utilização de óvulos doados
e a gestação de substituição.

Se o casal vai se submeter à fertilização assistida, ele pode acertar com o médico seleção genética?
A bioética proíbe, porque do contrário haveria o “super-homem genético”. Admitir a escolha de material
genético é tratar o ser humano como objeto, e não o sujeito da relação. Havendo erro na seleção, o filho
não poderá ser devolvido sob a alegação de vício redibitório.
Finalmente, é possível a “gestação de substituição” somente de forma gratuita e entre pessoas da
mesma família (até o 4º grau) – “Máxima do planejamento”
Flávio Tartuce adver para o não uso do termo “barriga de aluguel”.
Nesta forma de gestação, tem-se:
i. "Genetrix": fornece o material genético (o vínculo será com ela);
ii. "Gestatrix:" aquela que gesta.

4.2.3.1.4. Regras da presunção de paternidade

4.2.3.1.4.1. Concepção sexual

As regras da presunção de paternidade relativas à concepção sexual são as seguintes:


i) a presunção de paternidade começa 180 dias depois do casamento (e não no dia do casamento);
ii) ela perdura até 300 dias depois da dissolução do casamento (morte ou divórcio).
Uma viúva cujo filho nasça seis meses depois da viuvez o terá como presumido do falecido. Por is-
so, o art. 1.523 do CC estabelece como causa suspensiva que a mulher não deve casar nos 300 dias poste-
riores ao fim do casamento. Se casar, o regime será o da separação de bens, para obstar prejuízo patri-
monial ao filho.

4.2.3.1.4.2. Concepção artificial

749
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As regras da presunção de paternidade relativas à concepção artificial são as seguintes:


i) presume-se a paternidade dos filhos nascidos de fertilização homóloga (material genético do ca-
sal), mesmo que já falecido o marido:
É a possibilidade de um homem conceber um filho depois de sua morte, se deixou material genéti-
co congelado, decorrente da biotecnologia. Nesse caso, ele será presumido filho daquele que deixa o ma-
terial genético.
A Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), em seu art. 5º (julgado constitucional pela ADI
3510/DF), estabelece que o embrião ficará congelado pelo prazo máximo de três anos, findo o qual o ma-
terial será descartado, sendo encaminhado para pesquisas com células-tronco. Assim, não é possível pre-
parar embriões para pesquisas com células-tronco (somente usar os descartados):

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias


obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou
que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, conta-
dos a partir da data de congelamento. (...)

Esse embrião entra na sucessão legítima? O art. 1.798 do CC não é claro nesse sentido. Diz que são
legitimados a suceder (podem suceder) os nascidos e os já concebidos no momento da abertura da suces-
são, ou seja, quem já é nascido ou concebido quando da morte:

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertu-


ra da sucessão.

Autores como Caio Mário da Silva Pereira entendem que somente a concepção uterina gera direito
hereditário, de modo que o laboratorial não terá direito sucessório. Maria Berenice Dias e Giselda Hiro-
naka entendem que o embrião laboratorial terá direito à herança. A Chaves, parece que a segunda cor-
rente é a mais substanciosa, em virtude do princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
O tema é polêmico.
O direito civil clássico sempre tratou da questão de maneira muito simples: nascidos são os que já
se separaram da mãe; nascituros, historicamente, sempre foram considerados os em-briões implantados
no ventre materno. Portanto, herdeiros eram os já nascidos e os nascitu-ros.
Com as técnicas de reprodução humana assistida, que permitem a concepção extrauterina (fora do
útero da mulher), surge um problema prático: há embriões, que são seres concebidos (porque já houve o
encontro do gameta masculino e do feminino), mas eles têm uma vida extrauterina. A pergunta que o
direito se faz é: esses embriões são herdeiros, para fins de sucessão legítima?

750
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Veja que se o pai deixou apenas espermatozóides ou a mulher deixou óvulos congelados, não há
dúvida de que não há relação sucessória, pois eles sozinhos não compõem um ser humano. O problema
ocorre quando já houve esse encontro dos gametas masculino e feminino. Veja que embrião é um termo
da biologia com o qual o direito nunca se preocupou. Somente tratava dos nascituros e dos nascidos. O
CC não deu conta de explicar a situação do embrião expressamente, pois o tema é muito recente.
Morrendo o pai e havendo embrião crioconservado, há duas possíveis soluções, para aqueles que
entendem pela possibilidade de herança (posição moderna):
1ª corrente: para que o embrião seja herdeiro, ele deve ser gestado no prazo de dois anos,
contados da abertura da sucessão (da morte).
Esta corrente aplicava, por analogia, o art. 1.800, § 4º, do CC, que cuida da chamada prole eventual
(o testamento caduca se em dois anos não houver a gestação da prole eventual). Mas isso tem um pro-
blema prático seríssimo: se a criança nascer cinco ou seis anos após a morte, ela será menos filha do fale-
cido?
2ª corrente (Gustavo Tepedino, Silmara Chinellato e Zeno Veloso): o embrião, ao nascer é
herdeiro, independentemente de prazos.
O problema prático é o seguinte: no momento em que nasce, o embrião se torna herdeiro. Mas o
patrimônio do falecido já foi partilhado e os bens já estão nas mãos dos irmãos ou ou-tros herdeiros. Para
a doutrina, ele teria de manejar a ação de petição de herança, na qual ele pede a entrega daquilo que já é
dele (veja que ele não pede o reconhecimento do direito, mas a entrega do que é dele). Essa pretensão (de
dar) tem prazo prescricional.
Qual seria o prazo? A orientação da doutrina majoritária é de que o prazo é o geral (dez anos), na
ausência de prazo específico.
Esse prazo inicia-se quando? Para alguns, os dez anos se iniciam com a morte. O problema técnico
a enfrentar é de que, se a criança nascesse onze anos depois da morte, ela teria perdido o direito enquan-
to ainda era embrião (crioconservado e fora do útero materno, perderia um direito enquanto não poderia
exercê-lo). Seria exigir que o embrião ajuizasse uma ação para interromper a prescrição, para quando
fosse um dia nascer!
José Fernando Simão não defende essa corrente. Para ele, prescrição exige inércia do titular (é se-
gurança jurídica mais justiça). Não dá pra dizer que o embrião seria inerte. Para o autor, o prazo se inicia
com o nascimento com vida. Outro problema é: se o prazo se inicia com o nascimento com vida, ele tec-
nicamente não se iniciaria, pois não corre contra absolutamente incapaz. Portanto, esse prazo se iniciaria
aos dezesseis anos. Veja que haveria dez anos mais dezesseis (26 anos). Para Simão, o prazo é longo, mas
essa é a posição defendida por Gavião em concurso para titular na USP, e aquela a ser defendida em
eventual arguição.
Agora, imagine que o embrião demore tanto para nascer que os demais herdeiros já tenham parti-
lhado os bens e tenha corrido o prazo de usucapião. Aí, se o embrião vier ao mundo já esgotado o prazo

751
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

de usucapião (forma originária de aquisição da propriedade), ele não terá os bens, por ter a usucapião
“limpado” todos os vícios da propriedade.
Mas se o embrião vier à vida quando a usucapião ainda não tenha ocorrido, a mesma regra que im-
pede a prescrição impede a usucapião, por força de lei.
ii) presume-se a paterindade dos filhos nascidos por fertilização homóloga mesmo que se trate de
embrião excedentário:
Embrião excedentário é aquele que sobrou. O médico prepara e implanta muitos embriões. Os que
sobram são chamados de excedentários (e serão guardados por três anos). Se, no prazo de três anos, a
mulher voltar à clínica e quiser novamente implantar, haverá a presunção de paternidade.
Os maiores questionamentos ocorrem no caso de separação de fato. Chaves considera que, nesse
caso, deverá haver notificação do separado ao médico, para que descarte os embriões. O problema é que
a mulher deverá anuir com o descarte. Havendo divergência, o juiz decidirá. O Brasil não tem nenhum
precedente nesse sentido. Há na Inglaterra, tendo a questão sido decidida em favor da mulher. Chaves
coloca em dúvida se houve, nesse julgado inglês, respeito ao princípio constitucional do planejamento
familiar. Seria obrigar alguém a ser pai. A questão é polêmica.
iii) presume-se a paternidade dos filhos nascidos por fertilização heteróloga, quando houve prévia
autorização do marido:
Quando o marido autoriza sua esposa a uma fertilização heteróloga, tal autorização tem natureza
de reconhecimento prévio de filho. É o único caso no Brasil de presunção absoluta de paternidade. Não
fosse assim, implicaria em venire contra factum proprio (primeiro o sujeito autoriza, depois nega a pa-
ternidade).
Para Chaves, o filho que nasce de fertilização heteróloga é afetivo, e não biológico.
O filho nascido de fertilização heteróloga (que tem um pai, mas não o genitor, que é o doador de
sêmen) tem o direito de propor ação de investigação de origem genética e descobrir quem é seu genitor,
ainda que isso não gere direito de família?

4.2.3.2. Critério biológico


É possível a recusa à realização do teste de DNA, mas tal negativa gerará efeitos jurídicos. A Súmu-
la 301 do STJ motivou a elaboração da Lei 12.004/2009, a qual acrescentou o art. 2º-A, à Lei
8.560/1992:

Súmula 301 - Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA
induz presunção juris tantum de paternidade.

Art. 2º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moral-
mente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. (Incluído pela Lei nº 12.004, de
2009).

752
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a
presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório. (Incluído pe-
la Lei nº 12.004, de 2009).

Com base em tais dispositivos, conclui-se que é possível recusar-se ao exame de DNA. Todavia tal
recusa gera presunção relativa da prova que se pretendia produzir. Veja que, ao incorporar o entendi-
mento da Súmula 301, a presunção não se tornou absoluta. Ela somente deixou de ser jurisprudencial e
se tornou legal. Assim, por ser relativa, o juiz pode decidir com base em outras provas. O próprio concei-
to de filiação impõe que se trate de presunção relativa.
O STJ entende que a presunção aplica-se não só nos casos de recusa como aos de retardamento da
realização do exame.
No REsp 1.272.691/SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, julgado em 5 de novembro de 2013, o
STJ entendeu que a aplicação da Lei 12.004/09 e do entendimento da Súmula 301 depende sempre de
um juízo de ponderação. Se o investigado for falecido, a ação deve ser dirigida contra seus sucessores. Do
mesmo modo, se um filho menor do falecido se recusar a se submeter ao exame, poderá haver uma pon-
deração.
Em resumo, se o réu de uma ação de investigação de paternidade se recusar ao exame de DNA, pre-
sume-se a paternidade. Mas, em outras circunstâncias, como nas ações promovidas contra os sucessores
e em se tratando de herdeiros menores, ou mesmo em ações negatórias de paternidade, não se justifica a
aplicação da conclusão. Os interesses devem ser ponderados caso a caso.
Na ação negatória de paternidade, se o réu menor se recusar a produzir prova, o autor continua
obrigado a produzir prova, não se aplicando a presunção em sentido contrário.
Na ação negatória de paternidade, o pai e filho ajuizam a ação com a intenção de declarar a inexis-
tência da relação paterno-filial. O STJ deliberou que a em ação negatória de paternidade, não é possível
ao juiz declarar a nulidade do registro de nascimento com base, exclusivamente, na alegação de dúvida
acerca do vínculo biológico do pai com o registrado, sem provas robustas da ocorrência de erro escusável
quando do reconhecimento voluntário da paternidade. Ou seja, a simples existência de dúvida não é sufi-
ciente para desfazer o vínculo. Destaca-se o art. 1.604 do CC que dispõe não ser possível vindicar estado
contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. Cabe
ao interessado provar o erro ou a falsidade. Sobre o ponto de vista processual, a solução é simples, pois
cabe ao autor provar a inexistência da relação paterno-filial.
A Lei 1.060/1950 (gratuidade judiciária), em seu art. 3º, VI, estabelece que a gratuidade judiciária
alcança o exame de DNA:

Art. 3º. A assistência judiciária compreende as seguintes isenções: (...)

VI – das despesas com a realização do exame de código genético – DNA que for requisitado pela
autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade ou maternidade. (Incluído pela
Lei nº 10.317, de 2001)

753
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Alguns estados da Federação, no entanto, não vêm custeando o exame (ex.: BA). Nesses casos, se-
gundo o STJ, se as partes não puderem custeá-lo, o juiz decidirá com base na prova testemunhal. Isso é
bastante perigoso, pois a testemunha é indiciária da concepção (ela não prova a concepção, pois não a
presenciou). E mais: a testemunha serve a provar que determinados sujeitos “ficavam”. Se eles “ficavam”,
haverá indícios de paternidade (REsp 557.365/RO).
O exame de DNA pode ser determinado de ofício pelo juiz. Além disso, o STJ vem entendendo que,
mesmo em grau recursal, o julgamento do recurso deve ser convertido em diligência para que se tente
realizar o exame.
A prova oriunda do exame não é absoluta, pois não vincula o juiz (dessacralização do DNA). Mas é
importante. Por isso, o juiz deve determiná-lo de ofício, e até mesmo em grau recursal.

4.2.3.3. Critério socioafetivo

4.2.3.3.1. Noções gerais

O critério socioafetivo é “a filiação que se constrói”. Ou seja, é o estabelecimento da filiação pelos


laços de convivência (a famosa máxima: “pai é quem cria”). Pai é quem se estabelece pela convivência.
Essa convivência entre duas pessoas como se pai e filho fossem dá origem à chamada “posse do estado de
filho”. É o caso do personagem Josué, em Central do Brasil.
Nesse sentido, conforme já trado em tópicoas acima, a filiação ou parentalidade socioafetiva ga-
nhou um novo paradigma no país com o julgamento do RE 898.060/SC pelo STF.
No citado decisium o Pretório Exccelso estabeleceu que “a paternidade socioafetiva declarada ou
não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem
biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Nessa esteira, seguindo a lição de Flávio Tartuce a decião estabeleceu 3 efeitos principais:
i. O afeto é princípio do Direito de Família e tem valor jurídico;
ii. A filiação socioafetiva é forma de parentesco civil em posição de igualdade com a filiação
biológica.
iii. A multiparentalidade (mais de um vínculo de filiação) é possível, mesmo contra a vontade
dos envolvidos, e para todos os fins jurídicos (alimentos e sucessão).
Obs.: diante dessa decisão, o Provimento n. 63/2017 do CNJ passou a admitir o reconhecimento da
parentalidade socioafetiva no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais.
Flávio Tartuce questiona sobre a possibilidade em se reconhecer a multiparentalidade em cartório,
entendendo afirmativamente (Art. 14, Provimento 63/2017, CNJ499).

499 Provimento 63/2017, art. 14: “O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente

poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo
FILIAÇÃO no assento de nascimento.”

754
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Dito isso, nota-se que o vínculo socioafetivo somente pode servir para determinar a filiação. A soci-
oafetividade nunca será utilizada para negar a filiação. Até porque o critério é o afetivo, e não o “desafeti-
vo”. Caso contrário, o juiz julgaria uma investigação de paternidade improcedente sob o argumento de
que o réu odiava o filho.
A socioafetividade precisa ter sido a causa determinante da relação, mas não precisa estar presente
no momento da propositura da ação. Caso contrário, a paternidade tornar-se-ia um instituto disponível
(as partes poderiam escolher o momento da filiação).
Obs.: Paternidade alimentar é uma ideia nova, concebida por Rolf Madaleno (RS), caracterizada
pela possibilidade excepcional de condenação do genitor a pagar os alimentos que o pai não pode prestar.
Evidente que somente se falará em paternidade alimentar nos casos de filiação socioafetiva.
Ex.: caso que ocorreu em MG, de ação de investigação de paternidade de seis filhos, em que restou
provado que o pai socioafetivo era estéril, sendo que os filhos eram do dono da fazenda (um cantor). O
pai socioafetivo, citado, alegou tal condição para se manter como pai. O pedido de anulação de assento de
nascimento foi julgado improcedente, mantendo-se o pai lavrador. Segundo a tese, criada para esse caso,
se tais filhos eventualmente necessitarem, poderão ajuizar demanda contra o pai biológico, para susten-
tá-los.
Chaves acrescenta à tese que a impossibilidade não deve circunscrever-se ao pai, mas à família pa-
terna. E mais: pela reciprocidade alimentar, esse genitor, precisando, poderá cobrar alimentos de seus
filhos biológicos.
O mesmo fundamento que serve para justificar a paternidade alimentar serve para negar a paterni-
dade sucessória: é possível buscar o genitor para a obtenção de alimentos (decorrentes da necessida-
de/subsistência), mas não para a obtenção da herança (que é transmissão de patrimônio).

4.2.3.3.2. Hipóteses de filiação socioafetiva

Adiante, será apresentado rol de hipóteses de filiação socioafetiva (“posse do estado de filho”), o
qual é meramente exemplificativo:
i) adoção;
ii) fertilização heteróloga com prévia autorização do marido;
iii) adoção à brasileira (registrar como seu um filho que sabe não ser):
Conforme se verificará, tendo registrado com seu um filho que sabia não ser, não pode o pai, depois
de muito tempo, ajuizar negatória de paternidade. Isso comprova que a socioafetividade pode não ser
contemporânea ao ajuizamento, podendo ser anterior e haver, inclusive, se esgotado.
iv) filho de criação;
v) et cetera (o rol sempre será exemplificativo, nunca taxativo).

4.2.3.3.3. Ação de investigação de origem genética

755
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A filiação socioafetiva consagra a desbiologização da filiação (a filiação deixa de ser apenas biológi-
ca). Além disso, ela desvincula os conceitos de pai e genitor, que não necessariamente são a mesma pes-
soa (ainda que devessem ser), na medida em que pai pode se determinar pelo vínculo socioafetivo.
Estabelecida a filiação pelo critério socioafetivo, todos os vínculos familiares e sucessórios dele de-
correm (REsp 878.941/DF), como alimentos, herança etc., aniquilando o vínculo biológico. Assim, o filho
socioafetivo não trava relações jurídicas com o genitor, somente com o pai. Se assim, não fosse, haveria
um privilégio do critério biológico sobre o socioafetivo.
Todavia, mesmo assim, o filho socioafetivo não perde o direito de saber qual é a sua origem genéti-
ca (REsp 833.712/RS e art. 48 do ECA):

Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso ir-
restrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18
(dezoito) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)

Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor
de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

Toda pessoa maior e capaz cuja filiação se estabeleceu pelo critério socioafetivo tem o direito de sa-
ber a sua origem genética/ancestral (saber de onde veio). Este direito somente pode ser exercido por pes-
soas maiores e capazes (art. 48 do ECA). O MP não tem legitimidade para essa ação, que é personalíssi-
ma, ainda que ele funcione como fiscal da lei. Além de personalíssima, a ação é imprescritível e a proce-
dência do pedido somente serve para gerar impedimento matrimonial ou, por exemplo, para fins tera-
pêuticos (na medida em que os impedimentos matrimoniais são eugênicos). Fora estes, a investigação da
origem genética não gera nenhum efeito de direito de família ou sucessório. Trata-se de um direito da
personalidade, não de um direito de família.
O filho que nasceu de fertilização heteróloga não tem o direito de conhecer sua origem genética, pe-
lo princípio do anonimato do doador de sêmen. Todavia, excepcionalmente, em atenção à ponderação de
interesses, nada impede que o juiz autorize a investigação de origem genética, por exemplo, para fins
terapêuticos (ex.: criança que necessite de doação de medula).

4.2.3.3.4. Afeto como formação de parentalidade (José Fernando Simão)

Trata-se do chamado “parentesco socioafetivo”. A tese surge a partir do texto “Desbiologiza-ção da


paternidade”, de João Batista Vilela, em que o autor prega que ser pai não é contribuir com material ge-
nético, mas criar como pai. Ou seja, estabelecer o vínculo paterno.
A ideia de Vilela se traduz na fórmula: ser pai é uma função. Não depende da biologia (Con-gresso
do IBDFAM).
Há duas principais questões enfrentadas pelo STJ sobre o afeto como formador de vínculos jurídi-
cos:

756
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i) o sujeito sabe que não é pai biológico, mas opta por ser pai de filho biológico alheio (tecni-
camente é crime: adoção à brasileira). Num dia, ele briga com a mãe e ajuíza ação negatória:
Nessa hipótese, o STJ é pacífico no sentido de inadmitir a negatória. Primeiro em razão da inexis-
tência de arrependimento (paternidade não admite devolução). Segundo porque a verdade biológica é
menos importante que a socioafetiva (REsp 1.244.957/SC).
ii) o homem é enganado, acreditando ser pai quando não é:
Este ganha. O STJ entende que para o enganado a paternidade nasceu com erro, pois se ele soubes-
se não teria registrado a criança. Nessa hipótese, o STJ dá procedência ao pedido e faz prevalecer a ver-
dade biológica (REsp 878.954/RS).
A parentalidade socioafetiva e sua extensão como formadora de vínculo estão para ser analisadas
pelo STF. Um advogado (Rodrigo Toscano) levou o tema por conta de uma decisão contrária do STJ.
Atualmente, no plenário virtual, há aceitação pela maioria da repercussão geral (Fux e a maioria): Reper-
cussão Geral no RE com Ag. 692.186/PB.
Flávio Tartuce apresenta algumas ressalvas acerca do assunto:
O art. 1.601 do CC trata da Ação Negatória de Paternidade proposta pelo marido, que é imprescrití-
vel. Essa ação será julgada improcedente caso haja parentalidade socioafetiva ou TRA heteróloga500.
O art. 1.604 do CC trata da Ação Vindicatória de Filho, proposta por terceiro, que pede o vínculo
para si, alegando erro ou falsidade no registro. O STJ entende que essa ação não poder ser julgada proce-
dente em detrimento da estabilidade familiar ou do melhor interesse do filho (vínculo socioafetivo)501.

4.2.4. Reconhecimento de filhos (arts. 1.607 a 1.617 do CC)


O reconhecimento de filhos pode se dar de duas maneiras:

4.2.4.1. Reconhecimento voluntário de filhos ou perfilhação (Art. 1.609, CC)


O reconhecimento de filhos pode decorrer de ato espontâneo do pai ou da mãe, em conjunto ou se-
paradamente, quando não foi o caso de filiação presumida (em que não é necessário o reconhecimento,
pois a lei já o fez, através da incidência da presunção).
Pai e mãe, por ato conjunto ou separado, podem reconhecer espontaneamente a filiação. Esse re-
conhecimento é ato jurídico em sentido estrito (porque é confissão), e como tal é irretratável e irrevogá-
vel. Todavia, nada impede que seja anulável judicialmente, ou seja, que o pai ou a mãe obtenha judicial-
mente a declaração de nulidade.

500 Enunciado 339, IV Jornada de Direito Civil: “A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não
pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho. Enunciado 520, V Jornada de Direito Civil: “O co-
nhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade pre-
sumida.”
501 (STJ, REsp 709.608/MS, Quarta Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 05/11/2009,

DJE 23/11/2009).

757
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O art. 1.609 do CC estabelece que o reconhecimento espontâneo de filho pode ser dar nas seguintes
hipóteses:

Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:

I - no registro do nascimento;

II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;

III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;

IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido
o objeto único e principal do ato que o contém.

Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu
falecimento, se ele deixar descendentes.

O reconhecimento de filho é ato irrevogável, mesmo quando feito por testamento, conforme art.
1.610 do CC, ademais o ato pode ocorrer de múltiplas formas, não é um ato formal.
A Lei 8.560/1992 afirma que somente não é possível reconhecer um filho na ata do casamento. Ca-
so contrário, ele já nasceria ilegítimo:

Art. 3º É vedado legitimar e reconhecer filho na ata do casamento. (...)

Tal disposição não foi repetida pelo CC. A maioria da doutrina entende que a norma foi revogada
tacitamente. Chaves considera que sequer é caso de revogação, mas de inconstitucionalidade, por prever
tratamento discriminatório entre os filhos.
É possível reconhecer desde o nascituro (teoria concepcionista) até o filho morto. O reconhecimen-
to do filho morto é chamado de reconhecimento “póstumo” ou “nuncupativo”. Somente é possível se o
morto deixou descendentes. A lógica disso é evitar que o pai, que durante toda a vida não reconheceu o
filho, o faça para receber a herança. Em outras palavras, somente é possível o reconhecimento póstumo
se o reconhecente não for herdeiro.
Nesses casos, segundo o Art. 1.613, trata-se de ato formal e incondicional, uma vez que não sujeito
a condição ou a termo, que são considerados ineficazes. Exemplo: “Reconheço você como filho se eu ven-
der o meu carro” (é lido como apenas “reconheço você como filho”).
Flávio Tartuce ainda assevea que o reconhecimento de filhos constitui um ato jurídico stricto
sensu, ou em sentido estrito, justamente porque os seus efeitos são apenas aqueles decorrentes de lei
(art. 185 do CC). Não há uma composição de vontades, a fazer com que o ato seja tido como um negócio
jurídico.

Na forma do art. 1.614 do CC, o reconhecimento voluntário de filho será unilateral, se o filho for in-
capaz, ou bilateral, dependendo do consentimento do filho, se ele for capaz:

Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, [e o menor pode

758
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação].

Problema: o sujeito tem 15 anos de idade, nunca foi reconhecido pelo pai, e se torna portador de
vultosa herança. O pai, se reconhecê-lo, adquirirá o usufruto e a administração dos bens adquiridos. Para
tentar resolver esse problema, o art. 1.614 estabeleceu o prazo decadencial de quatro anos para que o
filho, reconhecido unilateralmente, promova ação de impugnação de paternidade.
Flávio Tartuce adverte que a segunda parte do art. 1.614 está desatualizada, pois prevê que o filho
menor poderá impugnar o reconhecimento no prazo decadencial de quatro anos que se seguirem à maio-
ridade ou à emancipação, uma vez que a ação negatória pelo filho é ação de estado, portanto, imprescrití-
vel, além das mitigações pertinentes à multiparentalidade e socioafetividade.
Cuidado para não confundir a ação negatória (art. 27 do ECA) com a ação impugnatória de pater-
nidade (1.614 do CC):

Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e impres-


critível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, obser-
vado o segredo de Justiça.

A negatória pode ser proposta tanto pelo pai como pelo filho e é imprescritível. Nela, exige-se a
prova da negativa. Serve para qualquer tipo de filiação. Já a impugnatória tem prazo decadencial de qua-
tro anos, contados da maioridade (dos 18 aos 22 anos), e independe de fundamento (é imotivada). A ine-
xigibilidade motivação decorre do fato de que essa ação somente pode ser realizada pelo filho reconheci-
do unilateralmente.
Somente podem se valer da impugnatória aqueles que não sejam “filhos da presunção” (ex.: pais
casados ao nascer). Todavia, os filhos da presunção podem se valer da negatória. Ou seja, aquele filho
que adquiriu tal condição em virtude de declaração de vontade em cartório pode ajuizar impugnatória.
A Lei 8.560/1992 estabelece “procedimento administrativo de averiguação oficiosa”, o qual é inici-
ado pelo Oficial do Cartório sempre que o filho é registrado somente em nome da mãe. O Oficial extrai
segunda via do registro, colhe os dados do suposto pai e os encaminha ao Juiz. O Juiz, recebendo o pro-
cedimento, designa audiência para tentar o reconhecimento espontâneo. Não haverá eventual revelia,
por se tratar de procedimento administrativo. Se o suposto pai não quiser realizar o reconhecimento es-
pontâneo, o juiz reduz a termo suas razões e remete o procedimento ao MP, para que o órgão analise o
cabimento da ação investigatória.
A nova redação do ECA, trazida pela Lei 12.010/2010, diz que o MP não promoverá a ação se a cri-
ança ou o adolescente já estiver inserido (a) no cadastro de adoção. A razão é simples: nesse caso, a de-
claração de paternidade atrapalhará o procedimento de adoção, na medida em que demandará a anuên-
cia do pai.

4.2.4.2. Reconhecimento forçado de filhos (ação investigatória)

759
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Reconhecimento foçado de filhos é o que decorre de decisão judicial proferida em ação investigató-
ria. Esta ação, chamada de ação de investigação de paternidade, é mais bem designada como “ação de
investigação de parentalidade”, pois não é somente a paternidade que pode ser investigada. É possível
investigar, por exemplo, outras relações de parentesco (ex.: investigação de maternidade, oriunda da
troca de bebês, barriga de aluguel etc.)
O STJ, acolhendo esta ideia, vem admitindo inclusive a investigação avoenga (do neto contra o
avô). Ex.: uma pessoa tem pai (está registrada em nome de seu pai), o qual não fora registrado. Indepen-
dentemente da conduta do pai, o neto tem interesse jurídico na investigação do seu avô, podendo ajuizar
demanda para tanto.
A paternidade a ser investigada não precisa ser necessariamente a biológica, podendo ser a socioa-
fetiva. A investigação de paternidade é imprescritível (Súmula 149 do STF) e pode estar cumulada com
outros pedidos (ex.: petição de herança, hipótese em que será post mortem, alimentos etc.):

Súmula 149 - É IMPRESCRITÍVEL A AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE, MAS


NÃO O É A DE PETIÇÃO DE HERANÇA.

Veja que os alimentos poderão (e não “deverão”) ser cumulados na investigação. O art. 7º da Lei
8.560/1992 estabelece que, julgada procedente a investigação de paternidade, o juiz fixará alimentos,
mesmo que não tenham sido requeridos pelo autor. Trata-se de uma exceção ao princípio da inércia (dis-
positivo). Cabem embargos declaratórios, se o juiz não apresentar tal manifestação, mesmo que não te-
nham sido requeridos:

Art. 7º Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os
alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.

Ademais, Flávio Tartuce ensina “o reconhecimento forçado ou coativo de filho se dá por meio da
ação investigatória de paternidade ou de maternidade, sendo a primeira mais comum na prática. Afirma-
va-se, no sistema processual anterior, que ambas as ações deveriam seguir o rito ordinário, que atual-
mente equivale ao procedimento comum (art. 318 do CPC/2015). Todavia, no sistema do CPC/2015, é
perfeitamente possível sustentar a aplicação do procedimento especial relativo às ações contenciosas de
família, constantes dos arts. 693 a 693 do Estatuto Processual em vigor. Isso porque o primeiro comando
cita expressamente as demandas fundadas na filiação.”.502

4.2.4.2.1. Princípais aspectos processuais

i. Prazo: Por sua natureza declaratória e por envolver estado de pessoas e dignidade humana,
a ação não está sujeita a qualquer prazo, sendo imprescritível.

502 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

760
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii. Foro competente: Como a ação investigatória é uma ação pessoal, em regra, será competen-
te o foro de domicílio do réu (art. 46 do CPC/2015)
Entretanto, se cumulada com alimentos, será do domicílio ou residência do alimentando (Súmula
1, STJ503).
Se cumulada com Petição de Herança, não encerrado o inventário, será competente o mesmo foro
desse, encerrado o inventário, será o foro de domicílio de qualquer herdeiro, a partir de interpretação do
art. 48 do CPC/2015504.
Finalmente, se cumulada com Alimentos e Petição de Herança, será do domicílio ou residência do
alimentando, em aplicação à Súmula nº 1 – STJ.
iii. Legitimidade Ativa: A ação investigatória é personalíssima do filho, em regra.
Sendo menor, este deverá ser representado (menor de 16 anos) ou assistido (menor entre 16 e 18
anos), geralmente pela mãe. A ação também cabe ao filho maior de 18 anos, sem a necessidade de repre-
sentação ou assistência.
O MP também pode agir como substituto processual, tendo legitimação extraordinária, conforme a
Lei 8.560/1992.
Flávio Tartuce observa que, mitigando o caráter personalíssim, o STJ tem admitido a investigatória
também do neto contra o avô, visando constituir o vínculo do último em relação ao pai do primeiro (ação
avoenga)505.

iv. Legitimidade Passiva: Em regra, a ação será proposta contra o suposto pai ou suposta mãe.
Falecido este ou esta, a ação será proposta contra os herdeiros da pessoa investigada e não
contra o espólio, diante de seu caráter pessoal e por não ter o espólio personalidade jurídica.

503 Súmula 1 do STJ: “O foro do domicílio ou da residência do alimentando é o competente para a ação de in-

vestigação de paternidade, quando cumulada com a de alimentos.”.


504 (STJ - CC: 28.535 PR 2000/0008904-4, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Da-

ta de Julgamento: 08/11/2000, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 18.12.2000 p. 152 JBCC vol. 187 p.
226 LEXSTJ vol. 141 p. 35).
505 (STJ - AgRg no Ag: 1.319.333 MG 2010/0106159-3, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DE-

SEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), julgado em 03/02/2011,TERCEIRA TURMA, DJe 14/02/2011).

761
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Eventualmente, poderá ser proposta contra o Município ou União ou DF (herança jacente vacante)
ou ainda contra os avós, nos casos de ação avoenga, vista acima.
v. Prova: Diante das avançadas técnicas de engenharia genética, a prova mais efetiva é a reali-
zação de exame de DNA dos envolvidos, o que traz certeza quase absoluta quanto ao vínculo
biológico.
Importante anotar que a realização do exame não é obrigatória, mas sua recusa gera a presunção
relativa de paternidade (CC, arts. 231 e 232; art. 2ª-A da Lei 8.560/1992; e Súmula 301, STJ506).
Obs.: A prova do “relacionamento plúrimo” da mãe (exceptio plurium concubentium), utilizada no
passado para afastar a atribuição de paternidade, não é mais admitida pela jurisprudência.
vi. Contestação: Dispõe o art. 1.615 do CC que qualquer pessoa que tenha justo interesse pode
contestar a ação investigatória, dispositivo que não sofreu qualquer impacto com o
CPC/2015, assim, pode contestar, v.g. cônjuge ou companheiro do suposto genitor e os seus
herdeiros.
Obs.: Atenção à Súmula 277 do STJ: ´

“Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da cita-


ção.”

O entendimento tem como fundamentos a igualdade entre filhos. Ademais, segundo o art.1.616, CC,
o reconhecimento judicial produz os mesmos efeitos do reconhecimento voluntário.
Obs2.: Flávio Tartuce assevera que diante da parentalidade socioafetiva, não seria possível des-
constituir o vínculo de filiação já estabelecido.
Ilustrando, imagine-se que um casal tem um filho, que é devidamente registrado pelo marido, que
pensa ser o seu filho. Trinta anos depois, após a morte do marido, a mulher conta ao seu filho que o seu
pai não é aquele que faleceu, mas outra pessoa, com quem ela teve um relacionamento rápido quando era
jovem. Ciente do fato, o filho resolve promover a ação contra o seu suposto pai verdadeiro. Realizado o
exame de DNA no curso da ação, constata-se que o pai biológico do autor é o réu e não aquele que o criou
durante trinta anos.

5. Dos alimentos
5.1. Noções gerais

O conceito jurídico de alimentos transcende a ideia de alimentação. Juridicamente, alimentos


abrange tudo aquilo que é necessário para a subsistência digna da pessoa (ou seja, para sobreviver com

506 Súmula 301, STJ: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz

presunção juris tantum de paternidade.”.

762
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dignidade). Estão inseridas no conceito, portanto, outras necessidades, como educação, moradia, saúde e
até lazer e cultura.
Segundo Flávio Tartuce, citando as lições de Orlando Gomes e Maria Helena Diniz define alimen-
tos familiares como as prestações devidas para a satisfação das necessidades pessoais daquele que não
pode provê-las pelo trabalho próprio ().
Os alimentos podem ser concedidos in natura (quando são entregues em bens da vida, como uma
cesta básica, plano de saúde, escola etc.) ou em pecúnia (pensão alimentícia). Pensão alimentícia, portan-
to, é a expressão com a qual se designam os alimentos em pecúnia.
Quando fixados em dinheiro (prestação), eles podem ser fixados em salário mínimo. Não incide a
proibição constitucional da utilização do salário mínimo com indexador. Mitiga-se, aqui, a Súmula Vin-
culante nº 4 do STF, aplicando-se a Súmula 490 do mesmo Tribunal:

Súmula Vinculante nº 4 – Salvo nos casos previstos na constituição, o salário mínimo não pode
ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado,
nem ser substituído por decisão judicial.

Súmula 490 – A pensão correspondente à indenização oriunda de responsabilidade civil deve


ser calculada com base no salário mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às varia-
ções ulteriores.

A finalidade dos alimentos é atender à subsistência, ou seja, garantir uma vida com dignidade. Mas
tal finalidade está baseada na solidariedade social e familiar. Ora, na medida em que os alimentos se ba-
seiam nessas “solidariedades”, pode-se perceber que eles são recíprocos. Por conta disso, quem hoje é
credor amanhã pode ser devedor, e vice-versa. Solidariedade é uma via de duas mãos.
A esse respeito, cumpre lembrar que não se deve confundir solidariedade (que tem mão e contra-
mão) com liberalidade (que é via de mão única). Doação envolve liberalidade (quem recebe doação não
necessariamente deve doar). Por outro lado, quem recebe alimentos amanhã pode ser compelido a pres-
tá-los.
Há um curioso registro do TJRS, de um pai que nunca conseguiu ser obrigado a prestar alimentos
aos filhos. Os filhos nunca conseguiram executá-lo, tendo a mãe criado os filhos sozinha, sem colabora-
ção. Adultos e com suas profissões definidas, aquele pai que se recusou peremptoriamente a prestá-los,
ajuizou ação de alimentos contra os filhos, quando velho. O TJRS, baseado na solidariedade, julgou a
demanda improcedente, entendendo que aquele que nunca prestou alimentos não pode exigir o recebi-
mento.
Em contrapartida, se fundados na solidariedade, pode-se encontrar nos alimentos um claro exem-
plo da função social da família.
Em síntese, leciona Flávio Tartuce que o pagamento desses alimentos visa à pacificação social, es-
tando amparado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, ambos de
índole constitucional
763
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

5.2. Pressupostos ou requisitos para a prestação (Art. 1.694 a 1.695,


CC)

Os pressupostos para o dever de prestar alimentos se encontram no arts. 1.694 e 1.695 do CC:
i. Vínculo de casamento, união estável ou parentesco;
Obs.:Enunciado 341 da IV JDC: “Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento
gerador de obrigação alimentar.”.
ii. Necessidade do alimentando ou credor;
Alerta Flávio Tartuce que primeiro deve ser analizada a necessidade para após verificar a possibili-
dade.
iii. Possibilidade do alimentante ou devedor;
Para a verificação dessa possibilidade, poderão ser analisados os sinais exteriores de riqueza do de-
vedor, conforme reconhece o Enunciado n. 573 do CJF/STJ.
A necessida/possibilidade formam o binômio alimentar, que, como visto, primeiro considera a ne-
cessidade do alimentando e, posteriormente, a possibilidade do alimentante.
Entretanto, adverte Flávio Tartuce que alguns autores consideram a existência de um trinômio
alimentar, formado por necessidade, possibilidade e um terceiro elemento a razoabilidade, para-
Paulo Lôbo ou proporcionalidade de Maria Berenice Dias.
Como exemplo de aplicação do trinômio, veja-se que segundo o STJ, os alimentos devidos entre ex-
cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto
quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de read-
quirir sua autonomia financeira, de modo a não gerar o “parasitismo social” nas palavras de Flávio Tar-
tuce.
De outro lado, ainda como exemplo de aplicação da proporcionalidade/razoabilidade, os alimentos
podem ser fixados de forma diferente em relação a filhos que tenham necessidades e condições sociais
distintas, conforme decidido pelo Tribunal Cidadão507.

5.3. Características dos alimentos

Flávio Tartuce ensina que a obrigação alimentar e o correspondente direito aos alimentos têm ca-
racterísticas únicas, que os distinguem de todos os outros direitos e obrigações (obrigação sui generis).
Tanto isso é verdade que o inadimplemento da obrigação de prestar alimentos fundados em víncu-
lo de Direito de Família (alimentos familiares) possibilita a prisão do devedor (art. 5.º, inc. LXVII, da
CF/1988).

507 (Resp 1.624.050, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/06/2018. DJe 22/06/18).

764
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ademais, para saldar as dividas alimentares existe a possibilidade de quebra da impenhorabilidade


do bem de família (art. 3º, III, da Lei 8.009/1990).
Possibilita ainda a penhora do FGTS (tese 12 da Edição 777 do “Jurisprudência em Teses” do STJ e
enunciado 572 da VI Jornada de Direito Civil508).

5.3.1. Personalíssimos
No que tange ao credor ou alimentando, leciona Flávio Tartuce que o direito aos alimentos é perso-
nalíssimo, uma vez que somente aquele que mantém relação de parentesco, casamento ou união estável
com o devedor ou alimentante pode pleiteá-los (caráter intuitu personae). Por isso, o direito a alimen-
tos não se transmite aos herdeiros do credor. Porém, transmite-se o dever quanto aos herdeiros
do devedor.

5.3.2. Transmissíveis
A transmissibilidade, logicamente falando, está em rota de colisão com a primeira característica
dos alimentos. Se eles são personalíssimos, deveriam ser intransmissíveis. Todavia, segundo o art. 1.700
do CC, os alimentos são transmissíveis para os herdeiros do devedor:

Art. 1.700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do
art. 1.694.

Flávio Tartuce assevera que, segundo o entendimento majoritário, a transmissão somente se dá nas
forças da herança, nos termos do art. 1.792 do CC (intra vires hereditatis)509.
Para que exista essa transmissão, há necessidade de condenação do devedor em vida para paga-
mento, nesse sentido, a Tese 7 da Edição 77 da JTSTJ510.
Há interessante indagação sobre qual obrigação seria transmitida, se a vencida ou a vincenda.
De um lado, o CC/2002 quis dizer, no art. 1.700, que se transmitem as dívidas vincendas depois da
morte do devedor.
Chaves considera essa situação complicada. Transmitir dívida vincenda é criar situação de desi-
gualdade. Por isso, a doutrina brasileira, em sintonia com a jurisprudência, estabeleceu limites à trans-
missibilidade dos alimentos:
i) transmissão de acordo com as forças da herança;

508 Enunciado 572 da VI JDC: “Mediante ordem judicial, é admissível, para a satisfação do crédito alimentar

atual, o levantamento do saldo de conta vinculada ao FGTS”


509 Enunciado 343 da IV JDC: “A transmissibilidade da obrigação alimentar é limitada às forças da herança.”
510 Tese 7, edição 77, JTSTJ: “A obrigação de prestar alimentos é personalíssima, intransmissível e extingue-

se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio saldar, tão somente, os débitos alimentares preestabelecidos
mediante acordo ou sentença não adimplidos pelo devedor em vida, ressalvados os casos em que o alimentado seja
herdeiro, hipóteses nas quais a prestação perdurará ao longo do inventário.”.

765
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ii) transmissão até a realização da partilha (ou seja, depois da partilha não se pagam alimentos, por
não haver mais espólio);
iii) transmissão somente se o espólio produzir frutos;
iv) transmissão apenas em favor de credores que não participam do espólio. Vale dizer, se o credor
for herdeiro ou legatário, não haverá transmissão.
Exemplo de modalidade de alimentos que pode ser transmitida é a fixada em favor do ex-cônjuge,
no divórcio.
Se algum herdeiro extrair algum valor do espólio, esse desembolso nunca terá natureza de alimen-
tos, mas sempre de antecipação de herança, e, sendo assim, será abatido do quinhão.
O STJ, no REsp 1.337.862/SP, julgado em 2014, entendeu que o espólio do genitor do autor de
ação de alimentos não possui legitimidade para figurar no polo passivo da ação na hipótese em que ine-
xista obrigação alimentar assumida pelo genitor por acordo ou decisão judicial antes da sua morte. De
fato, o art. 23 da Lei do Divórcio e o art. 1.700 do CC estabelecem que a obrigação de prestar alimentos
transmite-se aos herdeiros do devedor.
Ocorre quem, de acordo com a jurisprudencia do STJ e com a doutrina majoritária, esses dispositi-
vos só podem ser invocados se a obrigação alimentar já fora estabelecida anteriormente ao falecimento
do autor da herança por acordo ou sentença judicial. Isso porque esses dispositivos não se referem à
transmissibilidade em abstratos do dever jurídico de prestar alimentos, mas apenas à transmissão (para
os herdeiros do devedor) de obrigação alimentar já assumida pelo genitor por acordo ou decisão judicial
antes da sua morte.
A transmissibilidade ao espólio de obrigações alimentícias, portanto, somente pode ocorrer se a
obrigação alimentícia tiver sido fixada judicialmente anteriormente ao óbito e desde que o credor dos
alimentos não seja beneficiário do espólio. Um exemplo é o caso da ex-mulher, que pode continuar a re-
ceber a pensão alimentícia até a partilha. Caso se trate de filho, não haverá tal possibilidade, pois será
herdeiro. O recebimento de alimentos pelo filho implica tratamento desigual entre os herdeiros.
Portanto, se não havia obrigação alimentar fixada juidicialmente antes do óbito, o espólio será par-
te ilegítima.
Não esquecer que esta obrigação alimentícia só será imposta ao espólio se a pensão foi fixada antes
do óbito e desde que o espólio produza frutos. Se não produzir frutos, não haverá meios de pagamento.

5.3.3. Reciprocos
A obrigação de alimentos é recíproca entre cônjuges e companheiros (art. 1.694, CC), sendo ainda
recíproca entre os parentes, havendo uma ordem prevista nos arts. 1.696 e 1.697 do CC511.

511 CC, arts. 1.696 e 1.697: “Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e ex-

tensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. Art. 1.697.

766
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ordem de pleito dos alimentos entre parentes:


1º) Ascendentes: o grau mais próximo exclui o mais remoto;
2º) Descendentes: o grau mais próximo exclui o mais remoto;
3º) Irmãos: começando pelos bilaterais ou germanos, depois os unilaterais.
Segundo Flávio Tartuce prevalece o entendimento de que não é possível pleitear alimentos dos de-
mais colaterais e parentes por afinidade (tios, sobrinhos, cunhados).
Entretanto, baseado nas lições de Maria Berenice Dias, o Professor entende que se esses colaterais
são herdeiros, tendo direitos, também têm obrigações, caso de prestar alimentos. Em outras palavras, se
têm bônus, também têm ônus.
Quanto aos parentes por afinidade, havendo parentalidade socioafetiva em relação a pa-
drasto, madrasta e enteados, seria possível pleito alimentar.

5.3.4. Irrenunciáveis (Art.1.707, CC)


A irrenunciabilidade dos alimentos está prevista no art. 1.707 do Código Civil, cuja redação corres-
ponde à da Súmula 379 do STF. É possível dispensar a cobrança, mas nunca a eles renunciar:

Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo
o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora.

Súmula 379 - No acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser
pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais.

É muito comum nos acordos (especialmente de divórcio e dissolução de união estável consensuais)
a renúncia aos alimentos.
Nesse sentido, existe posição doutrinária e jurisprudencial no sentido de que os alimentos poderi-
am ser renunciados por cônjuges ou companheiros, aplicando-se o art. 1.707, CC, apenas às relações de
parentesco (Francisco Cahali e Rolf Madaleno e Enunciado 263 da III JDC512). É o que atualmente preva-
lece no STJ513.
Vale dizer, uma vez renunciados pelo cônjuge ou companheiro, eles não poderão ser novamente
cobrados, nesse sentido Pablo Stolze, Pamplona, Cristiano Chaves e Rosenvald utilizam o venire contra
factum proprium non potest como argumento. Flávio Tartuce entende que os alimentos são absoluta-
mente irrenunciáveis.

Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos
irmãos, assim germanos como unilaterais.
512 Enunciado 263 da III JDC: “O art. 1.707 do Código Civil não impede seja reconhecida válida e eficaz a re-

núncia manifestada por ocasião do divórcio (direto ou indireto) ou da dissolução da "união estável". A irrenunciabi-
lidade do direito a alimentos somente é admitida enquanto subsistir vínculo de Direito de Família.”
513 (STJ - EDcl no REsp: 832.902, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento:

06/10/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/10/2009)”

767
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Segundo a Súmula, portanto, os alimentos seriam irrenunciáveis somente no caso de alimentos


oriundos de parentesco.
A Súmula 336 do STJ não está em rota de colisão com esse entendimento, por um motivo simples:
ela não está dizendo que o ex-cônjuge cobrará do outro, mas que receberá pensão do INSS se provar a
necessidade superveniente. A Súmula é de direito público, não privado:

Súmula 336 - A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial tem direito à pensão
previdenciária por morte do ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente.

5.3.5. Obrigação divisível (regra) ou solidária (exceção)


Pelo que consta do art. 1.698 do CC, nota-se que a obrigação de prestar alimentos, em regra, é divi-
sível.
Nesse sentido, “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na
proporção dos respectivos recursos”.
Flávio Tartuce ilustra, se um pai não idoso necessita de alimentos e tem quatro filhos em condições
de prestá-los e quer receber a integralidade do valor alimentar, a ação deverá ser proposta em face de
todos (litisconsórcio passivo necessário).
Há uma exceção em relação à solidariedade em favor de pessoa idosa, os alimentos são solidários
(art. 12 do Estatuto do Idoso):

Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.

Alguns autores entenderam que, como a prioridade do idoso é a mesma da criança e do adolescen-
te, a solidariedade deveria a eles se estender. O STJ refutou a tese, entendendo que a interpretação do
dispositivo deve ser restritiva.
O art. 1.698 do CC diz que os alimentos não são solidários, mas subsidiários e proporcionais:

Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de su-
portar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as
pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos re-
cursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.

Os alimentos serão subsidiários quando houver um único devedor. Dizer que os alimentos são sub-
sidiários é dizer que somente se pode cobrar de outro devedor quando provada a incapacidade do primei-
ro. Havendo mais de um devedor no mesmo grau, cada um deles responde proporcionalmente à sua ca-
pacidade contributiva.
Assim, os alimentos não são solidários, como regra. São subsidiários e proporcionais, a depender
do número de devedores no mesmo grau. Ex.: na obrigação alimentícia avoenga, somente se pode cobrar
dos avós após se provar que o pai não tem capacidade contributiva. Pode haver, no entanto, até quatro
avós. Cada um dos quatro responderá na proporção de seus recursos.

768
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há, no entanto uma controvérsia. A parte final do art. 1.698 diz que os demais coobrigados poderão
ser chamados a integrar a lide.
Nesse sentido, a Súmula 596 – STJ, que consagra a responsabilidade subsidiária dos avós
Súmula 596, STJ: “A obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária,
somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos
pais.”.

Nesses casos, a ação é proposta em face do pai/ mãe que não tem condições de suportar totalmente
o encargo, devendo então serem chamados os avós.
No regramento anterior ao CPC/2015 haviam duas correntes:
1ª corrente: autores como Didier e Carlos Roberto Gonçalves sustentam que essa parte fi-
nal caracterizaria litisconsórcio facultativo passivo (e, como tal, dependente da vontade do autor).
2ª corrente: Maria Berenice Dias e Cássio Scarpinela Bueno sustentam que se trata de nova
modalidade de intervenção de terceiros (um novo modelo), que poderia ser provocada não só pelo
autor, mas igualmente pelo réu.
A par das celeumas anteriores ao CPC 2015 atualmente caminha-se por admitir a convocação dos
avós tanto pelo autor quanto pelo réu, conforme Enunciado nº523 da JDC 514, tese que foi utilizada pelo
STJ no julgamento do Resp. 1.715.438/RS, no final de 2018515. Segundo Flávio Tartuce o tema não é pací-
fico de maneira nenhuma.

5.3.6. Imprescritíveis
Seguindo a lição de Flávio Tartuce A pretensão aos alimentos é imprescritível, por envolver estado
de pessoas e a dignidade humana.
Não há prazo extintivo para requerer alimentos. Todavia, há uma pegadinha: o art. 206, § 2º, do
CC estabelece o prazo de prescrição de dois anos para a execução dos alimentos. Não há prescrição para
ajuizar ação de alimentos, mas há prescrição para executar alimentos fixados:

Art. 206. Prescreve: (...)

§ 2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se
vencerem.

Lembrar que a prescrição não corre contra o absolutamente incapaz, de modo que todos os alimen-
tos fixados em sentença e vencidos só terão a prescrição iniciada quando o menor completar 16 anos.

514 : “O chamamento dos codevedores para integrar a lide, na forma do art. 1.698 do Código Civil pode ser re-

querido por qualquer das partes, bem como pelo Ministério Público, quando legitimado” (Enunciado n. 523).
515 A natureza jurídica do mecanismo de integração posterior do polo passivo previsto no art. 1.698 do

CC/2002 é de litisconsórcio facultativo ulterior simples, com a particularidade, decorrente da realidade do direito
material, de que a formação dessa singular espécie de litisconsórcio não ocorre somente por iniciativa exclusiva do
autor, mas também por provocação do réu ou do Ministério Público, quando o credor dos alimentos for incapaz -
(REsp. 1.715.438, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma. Julgado em 13/11/2018. DJe 21/11/2018).

769
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Obs.: Caso Prático: uma sentença fixou alimentos ao filho que tinha 12 anos de idade. O pai nun-
ca pagou esses alimentos, que se acumularam. Quando ocorrerá a prescrição para a pretensão de cobran-
ça de tais valores?
Sobre o assunto, duas regras devem ser consideradas:
i. Art. 198, I, CC: Não corre a prescrição contra absolutamente incapazes (menores de 16
anos).
ii. Art. 197, II, CC: Não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder
familiar (18 anos).
Assim, prevalece a regra do art. 197, inciso II, do CC, ocorrendo a prescrição 2 anos após o término
do poder familiar (caso não ocorra destituição antes), ou seja, quando o filho completar 20 anos de idade
(em regra).

5.3.7. Obrigação incessível inalienável e incompensável (art. 1.707 CC)


O art. 1.707 do CC expressa que a obrigação de alimentos não pode ser objeto de cessão gratuita ou
onerosa, assim a verba alimentar é:
i. Incessível: não pode ser objeto de cessão de crédito.
ii. Inalienável: não pode sofrer cessão onerosa, sob pena de nulidade absoluta da cessão (art.
166, II ou VI, do CC).
Ilustrando, os alimentos não podem ser objeto de cessão de crédito. Os alimentos, do mesmo mo-
do, são inalienáveis, não podendo ser vendidos, doados, locados ou trocados.
O mesmo art. 1.707 do Código Civil veda que a obrigação alimentar seja objeto de compensação,
entretanto, apesar dessa afirmação, tem-se admitido a compensação para evitar o enriquecimento sem
causa. Por exemplo: alimentos pagos a mais em um mês, compensados no seguinte (“Jurisprudência em
Teses”, edição 77, tese 13516).

5.3.8. Irrepetíveis
Tudo aquilo que se pagou a título de alimentos não se recebe de volta, mesmo que se prove a ine-
xistência da causa geradora.
Assim, não cabe ação de repetição de indébito (actio in rem verso) para reaver o que se pagou, di-
ante de sua natureza satisfativa e presença de obrigação moral.
Se um sujeito ajuíza negatória de paternidade e prova que não era pai, ele não poderá exigir de vol-
ta as pensões pagas enquanto era considerado como tal, nem cobrá-las do verdadeiro pai (que somente

516 Tese 13, edição 77, JTSTJ: “Os valores pagos a título de alimentos são insuscetíveis de compensação, salvo

quando configurado o enriquecimento sem causa do alimentando.”.

770
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

será obrigado à pensão a partir da citação), cabendo, entreanto, indenização por dano moral em caso de
má-fé, segundo entendimento do STJ517.
Rolf Madaleno defende a tese (com a qual Chaves concorda) de que excepcionalmente os alimentos
devem admitir repetição, quando são recebidos em razão da prática de ato ilícito. São recebidos ilicita-
mente os alimentos, por exemplo, quando o ex-cônjuge se casa escondido e não avisa, quando o filho
maior de idade arruma emprego e não avisa o pai etc. Houve um caso em que um Promotor de Justiça,
na Bahia, continuou recebendo pensão após o ingresso na carreira.

5.3.9. Impenhoráveis
Não se admite penhora da prestação alimentícia. Isso significa que o que se recebe a título de ali-
mentos não pode sofrer constrição. Isso tem sentido, considerando-se que os alimentos servem para a
subsistência.
Há, no entanto, um caso excepcional, em que os alimentos podem ser penhorados: para o cumpri-
mento de outra obrigação de mesma natureza. Ex.: se uma pessoa recebe alimentos ressarcitórios e o juiz
a obriga a pagar alimentos ao filho, os alimentos do filho podem ser descontados dos ressarcitórios.

5.4. Espécies

5.4.1. Quanto à natureza jurídica


O conceito de natureza jurídica é simples: é a posição topológica de um instituto na ciência. É o en-
quadramento de um instituto, a definição da posição dele. Ex.: nascituro é pessoa?
Quanto à natureza jurídica, os alimentos podem ser civis ou necessários.
Segundo o CC/02, os alimentos civis são a regra geral do sistema, ou seja, a natureza dos alimentos
é civil. Também chamados de “côngruos”, por alguns autores, expressão construída a partir do art. 323
do Código Civil do Chile, são aqueles que servem à manutenção de uma vida digna (alimentação, lazer,
cultura, saúde, educação):

Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para
atender às necessidades de sua educação. (...)

Todavia, a própria lei prevê uma exceção, os alimentos necessários (art. 1.694, § 2º, e art. 1.704, pa-
rágrafo único, do CC):

Art. 1.694 (...) § 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situa-
ção de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.

517 (STJ - REsp: 412.684 SP, Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento:

20/08/2002, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 25.11.2002 p. 240).

771
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.704 (...) Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e
não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge se-
rá obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.

Segundo esses dispositivos, excepcionalmente os alimentos podem ser os necessários. Alimentos


necessários são aqueles fixados meramente para a subsistência/sobrevivência do credor. Aqui, eles se
confundem com alimentação. Portanto, os alimentos necessários serão fixados em percentual inferior. E
mais: eles podem ser vistos como “cesta básica”.
Os alimentos serão necessários quando decorrerem de culpa de quem os pleiteia. Aqui, há uma das
pouquíssimas hipóteses que restaram de discussão de culpa no direito de família. Como dito, a EC
66/2010 vedou a discussão de culpa no casamento. Contudo, fica a possibilidade de discussão de culpa
para fins de fixação dos alimentos. O culpado não perde o direito aos alimentos, mas sofre uma mutação
da sua natureza (ele deixa de ter direito aos alimentos civis e passa a fazer jus aos necessários, ou seja,
aos alimentos para a subsistência).
O cônjuge ou companheiro culpado é um exemplo (ex.: adultério). Mas esse não é o único. A culpa
pode se dar na relação de parentesco. É o que se chama de “indignidade”. Ex.: determinada pessoa tenta
matar os pais, mas não consegue. Saindo da prisão, ela pode pedir alimentos aos pais que tentou matar,
mas receberá alimentos meramente necessários, para subsistência (art. 1.694, § 2º, do CC).

5.4.2. Quanto à causa


Este critério é importantíssimo. Quanto à causa (origem), os alimentos variam em três categorias:
legítimos, ressarcitórios e voluntários (ou convencionais).

5.4.2.1. Legítimos
Os alimentos são legítimos quando decorrem de uma relação de família (ex.: parentesco, casamen-
to, união estável). Alguns autores preferem chamá-los de “legais”. Chaves não gosta desta expressão, pois
dá a entender que os demais seriam ilegais.

5.4.2.2. Ressarcitórios
Ressarcitórios ou reparatórios são os alimentos decorrentes de indenização, ou seja, fixados a título
indenizatório. Eles se caracterizam sempre que o juiz fixa indenização (responsabilidade civil) em presta-
ções periódicas. Ex.: o art. 948, II, do CC diz que a indenização por homicídio de pessoa da família
abrange a prestação de alimentos a quem o morto os devia. Neste caso, o juiz fixará uma parte da indeni-
zação em prestações periódicas:

Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: (...)

II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a dura-


ção provável da vida da vítima.

772
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

É importante saber que os alimentos reparatórios sempre serão fixados por sentença, que será pro-
latada por juiz cível, não de família.
A execução dos alimentos reparatórios se dá de acordo com o disposto no art. 475-Q do CPC, inclu-
ído pela Lei 11.232/2005:

Art. 475-Q. Quando a indenização por ato ilícito incluir prestação de alimentos, o juiz, quanto a
esta parte, poderá ordenar ao devedor constituição de capital, cuja renda assegure o pagamento
do valor mensal da pensão.

§ 1o Este capital, representado por imóveis, títulos da dívida pública ou aplicações financeiras
em banco oficial, será inalienável e impenhorável enquanto durar a obrigação do devedor.

§ 2o O juiz poderá substituir a constituição do capital pela inclusão do beneficiário da prestação


em folha de pagamento de entidade de direito público ou de empresa de direito privado de notó-
ria capacidade econômica, ou, a requerimento do devedor, por fiança bancária ou garantia real,
em valor a ser arbitrado de imediato pelo juiz.

§ 3o Se sobrevier modificação nas condições econômicas, poderá a parte requerer, conforme as


circunstâncias, redução ou aumento da prestação.

§ 4o Os alimentos podem ser fixados tomando por base o salário-mínimo.

Em se tratando de prestações mensais, o juiz deve se preocupar com a idoneidade financeira do


condenado, razão pela qual deve ordenar ao devedor constituição de capital. Ou seja, ao condenar al-
guém em alimentos reparatórios, o juiz determina que o devedor realize um depósito (alto) cuja renda
mensal servirá para o pagamento dos alimentos. Com o aumento da expectativa de vida, a cada dia as
pessoas vivem mais. O valor do capital tem de ser altíssimo. Em se tratando de empresa, isso poderá re-
sultar numa imobilização do capital da empresa.
Por isso, o art. 475-Q, § 2º, permite ao juiz que substitua a constituição de capital por: i) prestação
de uma garantia (ex.: real ou fiança bancária); ii) por inclusão do credor na folha de pagamentos do de-
vedor, seja pessoa jurídica de direito público ou de direito privado. O fundamento dessa disposição legal
é a função social da empresa (assim, permite-se uma maior mobilidade à empresa).

5.4.2.3. Voluntários (ou convencionais)


Alimentos voluntários são os que decorrem da livre manifestação de vontade do devedor. São pres-
tações pecuniárias livremente concedidas por ele. Ocorrem quando uma pessoa, por liberalidade, resolve
prestar alimentos a alguém. Estes alimentos voluntários podem decorrer de ato inter vivos ou causa
mortis.
Concedidos por ato inter vivos, esses alimentos chamam-se “doação por subvenção periódica”.
Concedidos por ato causa mortis, chamam-se “legado de alimentos”.
O legado de alimentos sempre será fixado por testamento. A doação em subvenção periódica obe-
dece à regra do art. 545 do CC/02, que é cheia de detalhes:
773
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 545. A doação em forma de subvenção periódica ao beneficiado extingue-se morrendo o do-
ador, salvo se este outra coisa dispuser, mas não poderá ultrapassar a vida do donatário.

Como determina o dispositivo, a doação em subvenção periódica terá o prazo determinado pelo
doador. No silêncio, perdura pela vida do doador. Vale dizer: quando o doador morrer, extingue-se. O
problema é que este doador, querendo, pode vincular seu espólio, obrigando-o a continuar pagando. Nes-
te caso, o limite temporal da doação será a vida do donatário.
Importante tecer alguns comentários sobre aspectos controvertidos desta classificação:
i) as três categorias podem ser fixadas em salário mínimo, não somente os legítimos (Súmula 490
do STF);
ii) os alimentos legítimos e os ressarcitórios admitem revisão judicial. Os convencionais não, por
decorrerem da autonomia privada;
iii) somente se autoriza o uso da prisão civil como meio executivo do cumprimento dos alimentos
legítimos (REsp 93.948/SP). Os alimentos ressarcitórios e os voluntários, portanto, não admitem prisão
civil.
Ocorre que a jurisprudência entende que a prisão civil, como mecanismo abrupto (meio executivo
excepcional), precisa de determinados limites:
i) prazo máximo de 60 dias:
Malgrado o CPC diga que o prazo máximo é de três meses, a jurisprudência usa o prazo previsto no
art. 19 da Lei 5.478/1969 (Lei de Alimentos):

Art. 19. O juiz, para instrução da causa ou na execução da sentença ou do acordo, poderá tomar
todas as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou
do acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor até 60 (sessenta) dias.

ii) uma pessoa não pode ser presa duas vezes pelo mesmo período de dívida:
Ela pode ser presa mais de uma vez por períodos diversos. Isso porque a prisão é meio coercitivo.
Se não logrou êxito, compelindo ao pagamento, não adiantou. Aliás, na medida em que tem tal natureza,
o pagamento da dívida implica em imediata soltura.
iii) a Súmula 309 do STJ estabeleceu que a prisão civil somente pode ser utilizada para a execução
dos chamados alimentos “atuais”, os quais se contrapõem com os “pretéritos”:

Súmula 309 - O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende
as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do pro-
cesso.

Essa diferença terminológica é criada pela jurisprudência do STJ, não está na lei. Atuais são os ali-
mentos devidos três meses antes da propositura da ação, mais os vincendos. Alimentos pretéritos são
aqueles vencidos antes dos três meses.

774
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

De acordo com a Súmula 309, somente se permite o uso da prisão civil para a execução dos alimen-
tos atuais. Os alimentos pretéritos não são perdoados, mas somente podem ser executados pela via pa-
trimonial (penhora).
O fundamento da Súmula é a ponderação de interesses: de um lado, a necessidade do credor; do
outro, a excepcionalidade da prisão. Ora, se são para subsistência e já estão vencidos há mais de três me-
ses, eles não seriam tão necessários assim.
O STJ, recentemente, alterou sua jurisprudência para permitir o uso da prisão civil para os alimen-
tos fixados extrajudicialmente (o art. 585 do CPC permite que o MP, a Defensoria Pública ou os advoga-
dos das partes chancelem acordos de alimentos):

Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
(...)

II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o documento parti-
cular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; o instrumento de transação referendado
pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores; (Redação
dada pela Lei nº 8.953, de 13.12.1994) (...)

Segundo o STJ, esses acordos, chancelados na forma da lei, apesar de títulos executivos extrajudi-
ciais, autorizam o uso da prisão civil.

5.4.3. Quanto à finalidade


Quanto à finalidade, os alimentos podem ser provisórios, provisionais e definitivos.

5.4.3.1. Provisórios
Os alimentos provisórios estão previstos no art. 4º da Lei dos Alimentos (Lei 5.478/1968):

Art. 4º Ao despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo
devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita. (...)

São alimentos antecipatórios, fixados initio litis, desde que haja prova pré-constituída da obrigação
alimentícia. Os provisórios são fixados antes da citação do réu (no início da lide). Eles são nada mais que
uma antecipação de tutela. Não a do art. 273 do CPC, que demanda muitos requisitos (prova inequívoca,
verossimilhança, inexistência de perigo de irreversibilidade), mas uma tutela antecipada específica, que
exige um só requisito: a prova pré-constituída.
A Lei de Alimentos diz que o juiz concederá os provisórios de ofício. E mais, ele somente deixará de
concedê-los se a parte autora expressamente disser que deles não necessita.

5.4.3.2. Provisionais

775
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Seguindo a lição de Flávio Tartuce518 tratam-se de alimentos “estipulados em outras ações que não
seguem o rito especial mencionado, visando manter a parte que os pleiteia no curso da lide (ad litem)”.
“São fixados por meio de antecipação de tutela ou em liminar concedida em medida cautelar de se-
paração de corpos em ações em que não há a mencionada prova pré-constituída, caso da ação de investi-
gação de paternidade ou da ação de reconhecimento e dissolução da união estável. Dispõe o art. 1.706 do
atual CC que “os alimentos provisionais serão fixados pelo juiz, nos termos da lei processual”. Também
têm natureza satisfativa, antecipando os efeitos da sentença definitiva”.

5.4.3.3. Definitivos
Definitivos são os alimentos fixados por sentença, em ação de alimentos ou em outra que traga pe-
dido de alimentos cumulado (como são os casos do divórcio, investigação de paternidade).
Os alimentos definitivos estão submetidos à cláusula rebus sic stantibus, de acordo com a qual as
coisas devem ficar como estão e, havendo alteração na situação fática subjacente, permite-se o ajuiza-
mento de ação de revisão de alimentos. O fundamento da revisional é justamente aquela cláusula.
Aspectos controvertidos quanto a esta classificação:
i) as três categorias permitem o uso da prisão civil como meio coercitivo de pagamento;
ii) as três categorias geram irrepetibilidade dos alimentos:
Ser “irrepetível” significa que aquilo que foi recebido a título de alimentos não será devolvido. As-
sim, se os alimentos são irrepetíveis, a execução de alimentos será sempre definitiva.
iii) regra geral, os alimentos são sempre devidos desde a data da citação (art. 13, § 2º, da Lei de
Alimentos):

Art. 13 (...) § 2º. Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação.

Esta regra é tão importante que é aplicável mesmo que os alimentos tenham sido fixados por sen-
tença em ação de investigação de paternidade (Súmula 277 do STJ):

Súmula 277 - Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a par-
tir da citação.

Há somente dois casos excepcionais, em que os alimentos não serão devidos desde a data da cita-
ção: de acordo com o art. 852, II, do CPC, os alimentos provisionais são devidos desde a data do despa-
cho da inicial; os alimentos gravídicos (Lei 11.204/2008) são devidos desde a data da concepção (ou seja,
garante-se o pagamento dos alimentos, neste caso, durante toda a gestação).
iv) uma vez que submetidos os alimentos definitivos à cláusula rebus sic stantibus, a ex-
companheira ou ex-esposa jovem (que não trabalhou, cuidava dos filhos etc.) tem direito a alimentos?

518 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

776
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Perceba que se ela nunca procurar emprego, a situação fática nunca mudará. Outro exemplo: merece
pensão o filho estudante que, já formado, com 24 ou 25 anos e formação profissional, resolve fazer outro
curso? Se ele não parar de estudar nunca, o que ocorrerá?
Situações como essas foram submetidas à jurisprudência. Percebendo que, em alguns casos, a cláu-
sula rebus sic stantibus poderia levar ao ócio, a jurisprudência criou uma quarta categoria, que não está
no Código: os “alimentos transitórios”. São alimentos fixados por tempo determinado (Chaves os
chama de “resolúveis”, pois já nascem para se extinguir dentro de um tempo). São fixados para atender a
situações peculiares. Ou seja, são sob termo ou condição. No caso da ex-mulher jovem, concedem-se ali-
mentos por uns dois anos. No caso do filho, até a conclusão do curso.
A extinção dos alimentos transitórios é automática, ocorrendo com o advento do termo ou da con-
dição. Se a necessidade persistir, a pessoa deve ajuizar nova ação e provar a necessidade superveniente (a
pretérita já foi julgada).
Os alimentos transitórios podem se apresentar sob as vestes de provisórios, provisionais ou defini-
tivos. E o juiz pode fixá-los de ofício. Até porque, ordinariamente, autor e réu não formulam transitórios
como pedido único. Quando muito, são fixados alternativamente (pedem-se primeiro os definitivos, de-
pois os transitórios). O mesmo quanto ao réu, que primeiro alega que não pagará nunca e, subsidiaria-
mente, alega que pagará os transitórios. Por essa razão é que o juiz pode fixá-los de ofício (eles dificil-
mente são pedidos).
Os transitórios geram prisão civil (Informativo 536, REsp 1.362.113) e são devidos desde a citação
(exceto os provisionais, que são devidos desde a data do despacho da inicial).
Acerca dos alimentos transitórios entre ex-cônjuges, recomenda-se a leitura dos seguintes julgados:
REsp 1.205.408, REsp 1.388.955 e REsp 1.025.769.

5.4.4. Alimentos Compensatórios


Trata-se de uma categoria alimentar do Direito Espanhol, difundida no Brasil por Rolf Madaleno.
Contemplam valores fixados entre cônjuges ou companheiros para afastar o desequilíbrio econô-
mico-financeiro decorrente do fim da união.
Flávio Tartuce ilustra com o exemplo de casamento ou união estável em que se adotou a separação
convencional de bens. Com o divórcio, a mulher fica sem bens e desamparada. É possível a fixação de
verba extra alimentar para afastar o desequilíbrio – Princípios contratuais: boa-fé objetiva e função soci-
al do contrato.
Nesse sentio, os chamados alimentos compensatórios, ou prestação compensatória, não têm por fi-
nalidade suprir as necessidades de subsistência do credor, tal como ocorre com a pensão alimentícia re-
gulada pelo art. 1.694 do CC/2002, senão corrigir ou atenuar grave desequilíbrio econômico-financeiro
ou abrupta alteração do padrão de vida do cônjuge desprovido de bens e de meação.

777
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Portanto, segundo a doutrina, essa categoria não têm a natureza de alimentos familiares
puros e, portanto, não há a possibilidade de prisão civil do devedor.

5.5. Sujeitos da obrigação alimentícia

Os sujeitos da obrigação alimentícia estão previstos no art. 1.694 do Código Civil, que estabelece
que a obrigação alimentícia será fixada em razão do casamento, da união estável e do parentesco:

Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para
atender às necessidades de sua educação. (...)

Cônjuges, companheiros e parentes, portanto, são os três sujeitos da obrigação alimentícia.


O rol é taxativo? Considerando o princípio da pluralidade das entidades familiares, a resposta há de
ser não. Podem existir outras famílias. Como visto, o caput do art. 226 da CR diz que a família tem espe-
cial proteção do Estado. Assim, há a possibilidade de fixação de alimentos em outras hipóteses de famí-
lia. Exemplos: união homoafetiva (à qual se aplicam as regras da união estável), criança ou adolescente
sob guarda ou tutela do ECA (guarda e tutela geram obrigação de sustento).

5.5.1. Características dos alimentos em favor de cônjuges ou companheiros


Entre cônjuges ou companheiros, os alimentos somente serão fixados depois da dissolução da enti-
dade familiar. Durante o casamento ou a união estável, não há dever de alimentos, mas de assistência
recíproca (que nada tem a ver com regime de bens, existindo mesmo no caso de separação total), o qual é
fixado proporcionalmente (quem tem mais colabora mais; quem tem menos, colabora menos).
Não se deve esquecer de que, quando os alimentos entre cônjuges ou companheiros decorrerem de
culpa, serão meramente necessários.
A superveniência da constituição de uma nova família poderá produzir efeitos sobre os alimentos.
Se quem constituiu uma nova família for o credor, extingue-se a obrigação. Se foi o devedor, permite-se a
revisão (quem constitui nova família assume novas obrigações). A constituição de uma nova família pelo
devedor não gera exoneração, pois, caso contrário, o devedor de alimentos poderia se casar novamente
com o único objetivo de se exonerar do encargo.

5.5.2. Características da obrigação alimentícia entre parentes


Entre parentes, os alimentos não são ilimitados. O art. 1.697 do Código Civil estabelece que os ali-
mentos entre parentes somente obrigam: i) ascendentes; ii) descendentes; e iii) irmãos. Parente colate-
ral, de terceiro ou quarto grau, e parentes por afinidade, não estão alcançados pelos alimentos:

Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de
sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.

778
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Como visto, o fundamento jurídico dos alimentos é o princípio da solidariedade. Para Chaves e Ma-
ria Berenice Dias, essa limitação de parentes viola o princípio da solidariedade. Ex.: sujeito que não tem
parentes não pode cobrar alimentos do tio. Todavia, esse mesmo sujeito, se morrer de fome, transmitirá
o patrimônio àquele tio, do qual não poderia cobrar. Assim, essa restrição à prestação de alimentos pelos
parentes de terceiro e quarto graus viola a reciprocidade.
Os Códigos Civis da Argentina e de Portugal permitem a prestação de alimentos por colaterais de
terceiro e quarto graus e por parentes por afinidade.
Em se tratando de filho menor, haverá presunção de necessidade. Assim, um filho menor que plei-
teia alimentos de seu pai não precisará provar a necessidade. Em se tratando de maior de dezoito anos, a
necessidade deverá ser provada. A maioridade não cessa a obrigação, apenas a presunção.
Em razão disso, foi editada a Súmula 358 do STJ: o cancelamento de pensão alimentícia em razão
da maioridade do filho depende de contraditório, exatamente para permitir que ele prove a persistência
da necessidade:

Súmula 358 - O cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está su-
jeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos.

A Súmula é um desestímulo para a concessão de tutelas antecipadas nas ações exoneratórias. Ela
está dizendo ao juiz que não exonere antes da formação do contraditório.
Os alimentos podem ser concedidos em favor do nascituro, segundo determina a Lei 11.804/2008,
que regulamenta os alimentos gravídicos. Esta lei tem algumas características:
i) os alimentos gravídicos são devidos desde a concepção, para evitar que o réu fuja do Oficial de
Justiça por alguns meses;
ii) a concessão dos alimentos gravídicos é baseada em meros indícios (não se exige prova da pater-
nidade, que virá depois do nascimento):
Se a concessão dos gravídicos se baseia em meros indícios, é irrelevante a negativa de paternidade
na contestação, pois o objeto cognitivo dos gravídicos são os indícios (ex.: bilhete no Facebook, MSN, e-
mail, SMS etc.).
iii) os alimentos gravídicos são irrepetíveis:
Nascida a criança, mesmo que não se trate do pai, já houve o pagamento e os valores não serão de-
volvidos.
iv) sobrevindo o nascimento com vida e não havendo impugnação, os gravídicos se convertem au-
tomaticamente em pensão alimentícia.
Os gravídicos são concedidos em ação própria e permitem prisão civil.
Hoje, há controvérsia acerca da legitimidade para pleitear os gravídicos. O art. 1º da lei estabelece
que o sujeito ativo seria a gestante:

Art. 1º Esta Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exerci-

779
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

do.

Todavia, o art. 6º, parágrafo único, prevê a conversibilidade deles em favor do menor:

Art. 6º (...) Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam conver-
tidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.

Se fossem fixados para a mãe, não poderiam ser convertidos para o filho, na medida em que faltaria
o sujeito da relação jurídica. Em prova, deve-se marcar que o sujeito ativo é a gestante. Na opinião de
Chaves, entretanto, a legitimidade é do nascituro. Porque o juiz deve se satisfazer com indícios, eles são
para o nascituro. Se fossem para a mãe, exigir-se-ia mais que indícios.

5.6. Extinção da obrigação alimentar

Segundo Flávio Tartuce são causas de extinção da obrigação alimentar:


i. Morte do credor. Isso porque a obrigação é personalíssima em relação ao credor (intuitu
personae).
ii. Alteração substancial no binômio ou trinômio alimentar, ou desaparecimento de um dos
seus requisitos (art. 1.699 do CC).
Demonstrado o desaparecimento de um dos pressupostos do art. 1695 do Código Civil, isto é, ou o
alimentando, não necessita mais dos alimentos, visto possuir condição econômica para manter a própria
subsistência, ou o alimentante, não possui mais possibilidade econômica de prestar alimentos, já que tal
obrigação causa-lhe desfalque do necessário ao seu próprio sustento e de sua família, é de ser extinta a
obrigação, nos termos do Art. 1.699, CC:

CC, art. 1.699: “Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os
supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstân-
cias, exoneração, redução ou majoração do encargo.”

iii. No caso de menores, a obrigação alimentar é extinta quando atingem a maioridade, em re-
gra.
Flávio Tartuce advere que nesses casos a extinção não se dá de maneira automática, a teor da Sú-
mula 358 – STJ:

Súmula 358, STJ: “O cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está
sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos.”.

780
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Ademais, o STJ tem entendimento consolidado de que a obrigação do genitor pode continuar tra-
tando-se de filho universitário, até que este encerre os seus estudos relativos à graduação, eventuais pós
graduação a regra permanece com a extinção519.
Finalmente, se o filho for diagnosticado com problemas mentais incapacitantes, a obrigação persis-
te.
Nesses casos, o advento da maioridade não extingue, de forma automática, o direito à percepção de
alimentos, mas esses deixam de ser devidos em face do Poder Familiar e passam a ter fundamento nas
relações de parentesco, em que se exige a prova da necessidade do alimentado. No entanto, quando se
trata de filho com doença mental incapacitante, a necessidade do alimentado se presume, e deve ser su-
prida nos mesmos moldes dos alimentos prestados em razão do Poder Familiar.520

iv. Dissolução do casamento ou união estável


Ressalta-se que o novo casamento do devedor, por si só, não extingue a obrigação constante da sen-
tença de divórcio (art 1.709, CC).
Porém, o novo casamento, união estável ou concubinato do credor gera a extinção da obrigação
(art. 1.708, caput, CC).
No caso de concubinato, haverá necessidade de demonstração, pelo devedor, da assistência materi-
al prestada pelo concubino a quem o credor de alimentos se uniu, como prevê o Enunciado 265 da III
JDC.
v. Comportamento indigno do credor em relação ao devedor (art. 1.708, parágrafo único, CC)
Trata-se de uma cláusula geral trazida pelo CC/02, de modo que o “comportamento indigno” deve
ser preenchid pelo aplicador do direito caso a caso.
Nesse sentido, na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o
direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incs. I e II do art. 1.814 do Código Civil
(atentado contra a vida e crime contra a honra), como previsto no Enunciado 264 da III JDC.
Trata-se de rol exemplificativo segundo Pablo Stolze e Pamplona.
Maria Berenice Dias defende que o conceito de indignidade deve ser buscado nas causas que dão
ensejo à revogação da doação (art. 557 do CC).
Finalmente, Flávio Tartuce assevera que é possível que a indignidade gere a redução dos alimentos,
principalmente nos casos de patente necessidade do devedor.521

519 Tese 4, edição 65, JTSTJ: “É devido alimentos ao filho maior quando comprovada a frequência em curso

universitário ou técnico, por força da obrigação parental de promover adequada formação profissional.”.
520 (REsp: 1.642.323/MG, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 -

TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2017)


521 Enunciado 345 da IV JDC: “O ‘procedimento indigno’ do credor em relação ao devedor, previsto no pará-

grafo único do art. 1.708 do Código Civil, pode ensejar a exoneração ou apenas a redução do valor da pensão ali-
mentícia para quantia indispensável à sobrevivência do credor.

781
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

DIREITO DAS SUCESSÕES

1. Introdução ao direito das sucessões


1.1. A sucessão e o direito das sucessões

O fenômeno sucessório tem origem na expressão latina sub cedere, que dá a ideia de uns depois
dos outros, ou seja, de substituição. A sucessão diz respeito, portanto, a toda e qualquer substituição.
Os elementos componentes da relação jurídica são sujeito, objeto e vínculo. Desses três, um nunca
pode ser alterado: o vínculo. A substituição do vínculo significaria alterar a própria natureza da relação
jurídica de direito material (ex.: transformar a união estável em casamento).
É possível, entretanto, alterar o sujeito e o objeto. É exatamente esse o fenômeno sucessório: a
substituição ora do objeto, ora do sujeito da relação jurídica.
Quando se tratar da substituição do objeto de uma relação jurídica, o fenômeno ganha o nome de
“sub-rogação real”. Ex.: o bem de família convencional (arts. 1.711 a 1.722 do CC) é aquele que gera im-
penhorabilidade e inalienabilidade. Constituído um bem de família convencional, ele começa a se deteri-
orar, exigindo reparos. Os arts. 1.717 e 1.719 do CC dizem que se a família comprovar a impossibilidade
de manutenção do bem de família nas condições em que instituído, ele pode ser alienado e substituído
por outro objeto, mediante autorização judicial, ouvido o MP. Essa é uma hipótese de sub-rogação real:

Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter
destino diverso do previsto no art. 1.712 [servir de domicílio familiar] ou serem alienados
sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.

Art. 1.719. Comprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em


que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo ou autorizar a sub-
rogação dos bens que o constituem em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público.

Outra situação de sub-rogação real encontra-se no art. 1.848, § 2º, do CC. Trata-se de sub-rogação
real dos bens clausulados em testamento, ou seja, gravados com cláusula restritiva (inalienabilidade,
impenhorabilidade, incomunicabilidade522):

Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabele-
cer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da
legítima. (...)

522 Observação: o art. 1.911 do CC estabelece que a cláusula de inalienabilidade faz presumir as demais: “Art.
1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e inco-
municabilidade. (...)”

782
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

§ 2º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados,
convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.

Doado o imóvel a alguém, com cláusula restritiva de inalienabilidade, o donatário fica com o bem
imobilizado. O bem então começa a se depreciar, o bairro a se desvalorizar e o donatário pretende vendê-
lo. O juiz pode autorizar a sub-rogação do objeto da relação jurídica, nesse caso.
Além do objeto, é também possível a substituição do sujeito da relação jurídica, a qual pode ser
realizada por ato inter vivos ou causa mortis.
Operada por ato inter vivos, a modificação será chamada de “sub-rogação pessoal”. Ex.: nos termos
do art. 304 do CC, quando o terceiro interessado (sublocatário, fiador, avalista etc.) paga o débito, ele se
sub-roga nos direitos do credor originário:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opu-
ser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do
devedor, salvo oposição deste.

Direito das sucessões é o ramo do direito (conjunto de regras e princípios) que cuida da substitui-
ção do sujeito da relação jurídica em razão da morte do titular (sub-rogação pessoal causa mortis). Per-
ceba que nem todo fenômeno sucessório interessa ao direito das sucessões. Na verdade, esse ramo do
direito diz respeito apenas a uma espécie de sucessão.
Finalmente, Flávio Tartuce informa os Fundamentos da Sucessão:
i. Para José de Oliveira Ascensão, o fundamento principal da sucessão é a continuidade da
pessoa (patrimonial ou existencial).
ii. Para Giselda Hironaka, o fundamento é sincronizar o direito de propriedade ao Direito de
Família.
Entre os dois conceitos acima, o principal fundamento é o direito de propriedade e a sua função so-
cial (art. 5º, XXII e XXIII da CF). Salienta-se que o direito à herança é um direito fundamental (art. 5º,
XXX, da CF).

1.2. Objeto do direito das sucessões

1.2.1. Patrimonialidade do objeto da relação jurídica disciplinada pelo direito das su-
cessões
Como ressaltado no tópico anterior, o direito das sucessões regulamenta a substituição do sujeito
da relação jurídica em razão da morte do titular.
Entretanto, nem toda a relação jurídica admite tal substituição. Na verdade, o objeto do direito das
sucessões diz respeito exclusivamente às relações patrimoniais do autor da herança. Somente elas serão
estudadas por esse ramo do direito, pois as relações existenciais extinguem-se com a morte do titular

783
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

(elas são vitalícias, portanto)523. Até porque, sob o ponto de vista ôntico (da essência/do ser), a transmis-
sibilidade é incompatível com as relações existenciais.

1.2.2. Relações jurídicas patrimoniais cuja disciplina sucessória está fora do Código Ci-
vil
Há, todavia, quatro exceções. São situações em que, a despeito de patrimoniais, a disciplina da
transmissibilidade da relação jurídica não será realizada conforme as regras do Código Civil. Ou seja, são
relações patrimoniais em que a legislação retira a disciplina sucessória da “vala comum” do CC e lhes
confere regramento próprio:

1.2.2.1. Direito autoral (art. 41 da Lei 9.610/1998)

Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1º de janeiro
do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste ar-
tigo.

O dispositivo estabelece que falecendo o autor, o seu direito autoral se transmite aos herdeiros pelo
prazo de setenta anos, contados de 1º de janeiro do ano seguinte ao da morte do autor (e não do dia da
morte). Findo esse prazo, a obra cairá em domínio público, podendo qualquer pessoa explorá-la. A maio-
ria esmagadora das músicas clássicas já se encontra em domínio público. Por isso que na fila do cinema
sempre toca música clássica.
No caso de coautoria, o prazo de setenta anos somente começará a fluir de 1º de janeiro do ano
subsequente ao da morte do último autor.

1.2.2.2. Usufruto, uso e habitação

O usufruto, o uso e a habitação (direitos reais na coisa alheia e, como tais, com conteúdo visivel-
mente patrimonial) são vitalícios e, portanto, extinguem-se com a morte do titular. Trata-se de uma ex-
ceção aos direitos dessa natureza, estabelecida porque eles são intituitu personae.
Ex.: uma viúva jovem e “piriguete”, pela condição de viúva, tem direito real de habitação, ou seja,
de continuar morando na casa onde residia o casal até seu falecimento. Ela pode se casar de novo, com
Ricardo, e levá-lo para a casa dela. Mas Ricardo não herda o direito real de habitação: o direito se extin-
gue justamente para evitar que ocorra essa situação estapafúrdia.
Observação: a viúva somente terá o direito real de habitação se não houver bens de outra natureza,
como a meação.

523 Segundo Chaves, o direito das sucessões é “aristocrático”, somente se interessando por relações econômi-
cas/patrimoniais.

784
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.2.2.3. Enfiteuse
Falecido o enfiteuta sem deixar sucessores, extingue-se a enfiteuse (art. 692, III, do CC/16):

Art. 692. A enfiteuse extingue-se: (...)

III - Falecendo o emfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores.

Note que se trata de curioso caso de ultratividade da norma fora do direito penal. O objetivo é jus-
to. Quem arrecadaria seria o poder público, e o senhorio não recuperaria nunca mais o bem, em razão da
inalienabilidade inerente aos bens públicos.

1.2.2.4. Alvará judicial

Tratam do alvará judicial a Lei 6.858/1980, o Decreto 85.845/1981 e o art. 1.037 do CPC:

Art. 1.037. Independerá de inventário ou arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei
nº 6.858, de 24 de novembro de 1980. (Redação dada pela Lei nº 7.019, de 31.8.1982)

Trata-se de um procedimento de jurisdição voluntária (o qual, portanto, admite deliberação por


equidade), isento de tributação, que disciplina pequenas sucessões. O conceito de “pequenas sucessões” é
objetivo, em nome da segurança jurídica. A lei estabelece dois elementos para alcançá-lo:
i) existência de resíduos pecuniários do falecido no limite de 500 OTN’s:

Art. 2º - O disposto nesta Lei se aplica às restituições relativas ao Imposto de Renda e outros
tributos, recolhidos por pessoa física, e, não existindo outros bens sujeitos a inventário, aos sal-
dos bancários e de contas de cadernetas de poupança e fundos de investimento de valor até 500
(quinhentas) Obrigações do Tesouro Nacional.

O OTN é uma unidade fiscal que não existe mais. Hoje, esse valor corresponde a algo próximo de
R$ 20.000,00, segundo cálculos do TJSP. Resíduos pecuniários são qualquer dinheiro deixado pelo fale-
cido (conta bancária, FGTS, PIS/PASEP, restituição do IR, rescisão trabalhista etc.)524
ii) inexistência de outros bens a partilhar:
Se o falecido não deixou bens a partilhar, mas somente dinheiro em pequeno valor, a sucessão
ocorrerá por meio de alvará judicial.

524 Observação: apesar do que diz Chaves (e do que se verifica na prática), a Lei 6.858/1980 (art. 2º) e o De-
creto 85.845/1981 (art. 1º, parágrafo único, V) impõem o limite máximo de 500 OTN’s e a inexistência de outros
bens a inventariar como requisitos exclusivos do levantamento dos resíduos relativos aos saldos bancários e às con-
tas de cadernetas de poupança e fundos de investimento. Ela não prevê que esses seriam requisitos para levantar: i)
valores devidos pelos empregadores aos empregados; ii) montantes das contas individuais do FGTS e do Fundo de
Participação PIS-PASEP; e iii) restituições relativas ao IR e outros tributos, recolhidos por pessoa física. Importante
checar essa informação.

785
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Caso o autor da herança tenha deixado, por exemplo, um Chevette velho, saldo de salário e uma
conta bancária de R$ 3.000,00, os quais, somados, não chegam ao valor de R$ 20.000,00, na letra fria
da lei não seria possível realizar o levantamento por meio de alvará. Chaves, todavia, considera que, com
base no art. 5º da LINDB, seria possível o alvará, apesar de a lei dizer que “se não houver outros bens a
partilhar”. Isso porque a sociedade evoluiu, e hoje é muito mais fácil adquirir um carro do que era em
1980. Essa posição, todavia, não deve ser defendida em prova:

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum.

Alvará judicial não se confunde com alvará incidental, que é antecipação da tutela em ação de in-
ventário. O alvará incidental é bastante comum (ex.: criança precisa de dinheiro para pagar a matrícula
da escola), podendo configurar, na medida em que antecipação de tutela, despesa comum do espólio
(porque o bem pertence a todos) ou antecipação da herança (exemplo da criança).

1.3. Terminologias essenciais do direito das sucessões

Washington de Barros Monteiro dizia que a chave do segredo do estudo do direito das sucessões
são as suas terminologias, de tão específicas que são.

1.3.1. “Droit de Saisine” (“le mort saisit le vif” = o morto é substituído pelo vivo):
Trata-se de verdadeiro princípio do Direito das Sucessões, como afirma o Prof. Zeno Veloso. Está
previsto no art. 1.784 do CC:

CC, art. 1.784: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários.”

A transmissão se dá independentemente de qualquer ato (inclusive aceitação) ou de regis-


tro. Isso só ocorre na sucessão e na usucapião (quando preenchidos os requisitos)

1.3.2. Autor da herança


Autor da herança é o “extinto”, o de cujus (de cujus sucessionis agitur: “aquele de quem a sucessão
se trata”). Trata-se da pessoa que faleceu e deixou patrimônio (acima de 500 OTN’s). Se a pessoa
morreu e não deixou patrimônio, ela não interessa ao direito das sucessões. Mais uma vez: o direito das
sucessões é aristocrático. A ele os pobres não interessam.
O autor da herança é alguém que morreu. Mas nem todo aquele que morreu é autor da herança.

1.3.3. Sucessor, herdeiro e legatário


Sucessor é aquele que será convocado a dar continuidade à relação patrimonial titularizada pelo fa-
lecido. No direito brasileiro, os sucessores podem ser herdeiros ou legatários.

786
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Herdeiros são os que sucedem a título universal. Legatários são os que sucedem a título singular. A
diferença é simples: quem deixa um bem certo e determinado a uma pessoa certa e determinada deixa
um legado. Por outro lado, na medida em que o herdeiro sucede a título universal, ele não recebe um
bem específico, mas uma quota, um quinhão, uma parte.
Todo legatário, sem exceção, é testamentário (todo legado depende de testamento). Ora, para dei-
xar um bem específico, é evidentemente necessário declarar a vontade. O herdeiro, por sua vez, pode ser
legítimo ou testamentário. Herdeiro legítimo é o que sucede por força de lei; testamentário é o que suce-
de por disposição do autor da herança.
Não se pode confundir legatário (que recebe a título singular) com herdeiro testamentário (que re-
cebe a título universal). Se o falecido deixa 30% dos seus bens a alguém, esse alguém será herdeiro tes-
tamentário. Se deixa uma casa, um carro ou um apartamento, por exemplo, deixa um legado.
Herdeiros legítimos (que recebem por força de lei) são os descendentes, ascendentes, cônjuge su-
pérstite, companheiro sobrevivente e colaterais até o quarto grau.
Dentre os herdeiros legítimos, há uma subcategorização: alguns são necessários e outros são facul-
tativos. Os herdeiros legítimos necessários são aqueles que herdarão obrigatoriamente, independente-
mente da vontade do autor da herança. Eles participam da herança sempre, pois fazem jus à legítima,
que corresponde a 50% do patrimônio líquido disponível.
A existência de herdeiro necessário, portanto, diminui a liberdade de testar (que somente poderá ir
até 50%, nessa hipótese). O art. 1.845 do CC estabelece a diferença entre os herdeiros necessários e os
facultativos, dizendo que os necessários são três: os descendentes, ascendentes e o cônjuge:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Promovendo uma interpretação do dispositivo conforme o art. 226, § 3º, da CR (recomendada pe-
los constitucionalistas), conclui-se que, se o cônjuge é herdeiro necessário, o companheiro também deve
ser:

Art. 226 (...) § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o ho-
mem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Conforme visto em itens acima, diante da decisão do STF de inconstitucionalidade do art. 1.790 do
CC (Informativo 864), entende-se que o companheiro deve ser incluído no rol do art. 1.845, CC, em que
pese não haja previsão expressa quanto ao companheiro ou convivente.
Veja que, em prova de marcar, deve-se sustentar a letra do Código (companheiro somente será en-
quadrado como tal se a prova for subjetiva, e, ainda assim, com um esforço interpretativo).
Para o CC, o companheiro e os colaterais até o 4º grau são herdeiros facultativos e, como tais, po-
dem ser eliminados da sucessão pela vontade do autor da herança.
Observação: herdeiro universal é a expressão utilizada para designar o herdeiro único. Quando isso
ocorrer, não haverá partilha, mas mera adjudicação.

787
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.3.4. Herança e espólio


No direito brasileiro, a herança é um bem jurídico universal, imóvel e indivisível, mesmo que com-
posta somente de bens móveis e divisíveis (como o dinheiro).
Assim, se o herdeiro quiser ceder seus direitos, é necessário o consentimento do cônjuge (a herança
é um bem imóvel), a cessão tem de ser realizada por escritura pública e deve ser respeitado o direito de
preferência dos coerdeiros (porque se trata de um condomínio). Isso exatamente pela natureza da heran-
ça.
A morte forma automaticamente a herança, independentemente da vontade dos herdeiros, a qual
somente será extinta com a partilha. Note que a herança tem de ser representada judicial e extrajudici-
almente. O espólio é justamente um ente despersonalizado, que representa a herança, em juízo e fora
dele.
Curiosamente, o espólio será representado pelo inventariante.
Em decorrência dessa norma, há um equívoco bastante comum: parece que o espólio somente exis-
tiria com o ajuizamento do inventário. Na verdade, entretanto, assim como a herança, o espólio surge
automaticamente. Segundo o STJ, antes da nomeação do inventariante, quem o representa é o adminis-
trador provisório, que é aquele que estiver na posse, normalmente o cônjuge ou o companheiro (REsp
777.566/RS).
Note, o espólio representa a herança, que é composta somente de relações patrimoniais. Assim, fica
claro perceber que o espólio somente pode representar os interesses do falecido nas relações patrimoni-
ais. Uma ação monitória, de cobrança ou executória, que seria ajuizada contra o morto, será proposta
contra o espólio. Se a ação versar sobre interesses existenciais do autor da herança, o espólio será parte
ilegítima, pois a legitimidade passiva recairá sobre os herdeiros, e não sobre ele (exemplos: ação de in-
vestigação de paternidade post mortem, adoção póstuma etc.)
A nomeação do inventariante judicial ou dativo ocorre em razão da ausência ou da inidoneidade
das pessoas descritas no art. 617 do CPC525
Se o inventariante for judicial ou dativo, o CPC exige a citação de todos os herdeiros, para que pos-
sam defender os seus interesses no processo. Isso porque o inventariante judicial e o dativo não têm ne-
nhum interesse no espólio (para eles, quanto antes o processo acabar, melhor).

525 Art. 617. O juiz nomeará inventariante na seguinte ordem: I - o cônjuge ou companheiro sobrevivente,

desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte deste; II - o herdeiro que se achar na posse e na
administração do espólio, se não houver cônjuge ou companheiro sobrevivente ou se estes não puderem ser nome-
ados; III - qualquer herdeiro, quando nenhum deles estiver na posse e na administração do espólio; IV - o herdeiro
menor, por seu representante legal; V - o testamenteiro, se lhe tiver sido confiada a administração do espólio ou se
toda a herança estiver distribuída em legados; VI - o cessionário do herdeiro ou do legatário; VII - o inventariante
judicial, se houver; VIII - pessoa estranha idônea, quando não houver inventariante judicial.Parágrafo único. O
inventariante, intimado da nomeação, prestará, dentro de 5 (cinco) dias, o compromisso de bem e fielmente de-
sempenhar a função.

788
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1.3.5. Inventário e partilha


Inventário e partilha é o procedimento de jurisdição contenciosa, que determina a substituição do
sujeito de uma relação jurídica patrimonial que faleceu, para os seus sucessores.
Os principais procedimentos quanto ao inventário estão previstos no Diploma Processual Civil, en-
tre os arts. 610 a 646, e serão aboradoso na respectiva matéria.
É um procedimento bifásico de modo que na primeira fase são elencados e descritos os bens (fase
de inventariança) e na segunda fase há a divisão os haveres (fase de partilha).
Em atenção ao princípio da saisine, o inventário tem natureza meramente declaratória.
Não há mais menção à possibilidade de abertura do inventário de ofício pelo juiz como na sistemá-
tica antiga, uma vez que que o inventário envolve interesses substancialmente patrimoniais, de determi-
nados interessados, e não a ordem pública. Ademais, essa impossibilidade atual segue o princípio da
inércia da jurisdição
Curiosamente, apesar de um processo necessário (obrigatório), o inventário poderá ser feito em
cartório, quanto todos os herdeiros forem maiores, capazes e não houver conflito ou testamento.

1.4. Modalidades básicas de sucessão

Em termos gerais, duas são as modalidades básicas de sucessão mortis causa, o que pode ser reti-
rado do art. 1.786 do CC:
i. Sucessão legítima – aquela que decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária,
presumindo a vontade do autor da herança.
É também denominada sucessão ab intestato justamente por inexistir testamento.
ii. Sucessão testamentária - tem origem em ato de última vontade do morto, por exercício da
autonomia privada.
Possui primazia em relação à sucessão legítima, uma vez que preconiza o art. 1.788 do CC
que, morrendo a pessoa sem deixar testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos.
A sucessão testamentária pode ser:
a) a título universal: testamento; ou
b) a título singular: legado ou codicilo.
Obs.: No Brasil, a pessoa pode ser sucessora legítima e testamentária ao mesmo tempo. Exemplo:
um filho contemplado com um legado ou testamento também herdará como sucessor legítimo.

1.5. Herança e sua administração

Na lição de Flávio Tartuce a herança é o conjunto de bens formado com o falecimento do de cujus
(autor da herança).
Conforme o entendimento majoritário da doutrina, a herança forma o espólio, que constitui um en-
te despersonalizado ou despersonificado e não de uma pessoa jurídica, havendo uma universalidade ju-

789
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

rídica, criada por ficção legal. Entretanto, como será visto o espólio tem legitimidade ativa e passi-
va (art. 75, VII, do CPC).
Ademais, o direito à herança é um bem imóvel por determinação legal (art. 80, II, do CC). Além
disso, a herança é indivisível antes da partilha (art. 1.791 do CC), havendo a formação de condomínio pro
indiviso entre os herdeiros.
Em face desse condomínio, existem restrições ao direito do herdeiro em ceder o quinhão hereditá-
rio a outrem, a teor do Art. 1.793, CC:

CC, art. 1.793: “O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro,
pode ser objeto de cessão por escritura pública. § 1º Os direitos, conferidos ao herdeiro em con-
sequência de substituição ou de direito de acrescer, presumem-se não abrangidos pela cessão
feita anteriormente. § 2º É ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre
qualquer bem da herança considerado singularmente. § 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia
autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditá-
rio, pendente a indivisibilidade.”.

Nesse sentido, a cessão de direitos hereditários exige escritura pública, sob pena de nulidade abso-
luta (art. 166, IV e VI, CC).
Ademais, é ineficaz (alienação a non domino) a cessão pelo coerdeiro de seu direito hereditário so-
bre qualquer bem da herança considerado singularmente, padecendo de tal vício também a disposição de
bens sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro.
Importante observar que o Art. 1.794, CC consagra um direito de preempção, preferência ou prela-
ção legal a favor do herdeiro condômino, sendo que havendo perterimento, o coerdeiro poderá, deposi-
tado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, segundo Art. 1.795,CC.
A Ação de preferência tem prazo decadencial de 180 dias, a contar da transmissão.
O art. 1.792 do CC consagra a máxima sucessória intra vires hereditatis, prevendo que o herdeiro
não responde por encargos superiores às forças da herança. Ao herdeiro cabe o ônus de pro-
var o excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados.
Finalmente, frise-se que a administração da herança cabe ao inventariante, que atua com um man-
dato legal, desde o seu compromisso até o fim do inventário judicial, sendo possível ainda a nomeação de
um administrador ad hoc ou provisório para a herança (Art. 1.797, CC).

1.5.1. Da herança jacente e herança vacante


Conforme ensina Flávio Tartuce, “objetivo do Direito das Sucessões é destinar os bens do falecido
aos seus herdeiros. Entretanto, pode ocorrer que o de cujus não tenha deixado herdeiros, prevendo o art.
1.844 do CC que, não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo
eles renunciado à herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respec-
tivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.”.

790
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Importante notar que o Município, o Distrito Federal e a União não são herdeiros no Código Ci-
vil de 2002 (eram no CC/1916).
Assim, o Estado (fazenda) não é herdeiro, mas sucessor irregular, pois os bens são “devolvidos”
a ele, nos termos do Art. 1.844, CC:

CC, art. 1.844: “Não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou
tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se locali-
zada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.”.

É necessidade existente em propiciar um destino final tais bens vagos, devolvendo-os ao Estado
que surgem os institutos de herança jacente e vacante que, constituem conjuntos de bens a formar um
ente despersonalizado.
Nesse sentido, leciona Carlos Roberto Gonçalves que a herança jacente não tem personalidade ju-
rídica nem é patrimônio autônomo sem sujeito, dada a força retro-operante que se insere à eventual acei-
tação da herança. Consiste, em verdade, num acervo de bens, administrado por um curador, sob fiscali-
zação da autoridade judiciária, até que se habilitem os herdeiros, incertos ou desconhecidos, ou se decla-
re por sentença a respectiva vacância

1.5.1.1. A herança jacente


Como visto, na ausência de herdeiros legítimos e testamentários, o Estado qualifica-se como suces-
sor, dando origem ao instituto da herança jacente, uma vez que a herança “jaz enquanto não se apresen-
tam herdeiros do de cujus para reclamá-la, não se sabendo se tais herdeiros existem ou não.”.
Trata-se em verdade de um estado da herança que não se sabe se será adida ou repudiada, é em
suma uma sucessão sem dono atual, conforme preconiza o Art. 1.819, CC:

Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente co-
nhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um
curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância.

Assim, segundo Carlos Roberto Gonçalves não havendo herdeiro aparente, o juiz promove a arre-
cadação dos bens (CPC, art. 738), para preservar o acervo e entregá-lo aos herdeiros que se apresentem
ou ao Poder Público, caso a herança seja declarada vacante. Enquanto isso, permanecerá sob a guarda de
um curador, nomeado pelo juiz. Serão publicados editais para que venham a habilitar-se os sucessores
(CPC, arts. 739 a 743).

1.5.1.2. A herança vacante


Nas lições de Silvio Rodrigues, “herança vacante é a que não foi disputada, com êxito, por qualquer
herdeiro e que, judicialmente, foi proclamada de ninguém”.
Em suma a herança vacante é a declarada vaga por provimento judicial conforme prevê o art. 1.820
do Código Civil:

791
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Art. 1.820: “Praticadas as diligências de arrecadação e ultimado o inventário, serão expedi-


dos editais na forma da lei processual, e, decorrido um ano de sua primeira publicação, sem
que haja herdeiro habilitado, ou penda habilitação, será a herança declarada vacante”.

A sentença que declara vaga a herança põe fim à imprecisão que caracteriza a situação de jacência,
estabelecendo a certeza jurídica de que o patrimônio hereditário não tem titular até o momento da dela-
ção ao ente público. Concomitantemente, ao declarar vago o patrimônio hereditário, a sentença de va-
cância promove a transferência dos bens, ainda que de forma resolúvel, para o Poder Público
Segundo a doutrina sentença que declara a herança vaga é constitutiva e não declaratória, não ge-
rando efeitos ex tunc (não retroage à data da abertura da sucessão) e sim efeitos ex nunc, a partir da de-
claração.
A declaração de vacância não impede que herdeiro sucessível reivindique a herança, enquanto não
decorrido o prazo de cinco anos contado da abertura da sucessão, a menos que seja colateral e não se
tenha habilitado até a declaração de vacância
Sendo declarada a vacância definitiva, é assegurado aos credores o direito de pedir o pagamento
das dívidas reconhecidas, nos limites das forças da herança (art. 1.821 do CC).
Ademais, quando todos os chamados a suceder renunciarem à herança, será esta desde logo decla-
rada vacante (art. 1.823 do CC).
Conforme visto acima, a lei consagra uma série de procedimentos para que se destine o patrimônio,
resumidos na tabela abaixo por Flávio Tartuce526 :

FENÔMENO Dies a quo (termo inicial) Dies ad quem


(termo final)

Jacência Abertura da sucessão sem herdeiros Aparecimento de herdeiro,


conhecidos habilitação procedente de herdeiro
ou declaração de vacância

Prazo para Término da arrecadação e do inventário Não há


publicação do
primeiro edital

Prazo para Publicação do primeiro edital 30 dias


publicação do
segundo edital

526 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

792
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Prazo para Publicação do segundo edital 30 dias


publicação do
terceiro edital

Prazo para Publicação do terceiro edital 30 dias


publicação do
quarto edital

Prazo para Publicação do primeiro edital 6 meses


habilitação
Declaração 1 ano da publicação do 5 anos da abertura
de vacância primeiro edital da sucessão
Aquisição da Declaração de vacância 5 anos da abertura da sucessão
propriedade
resolúvel pelo
Estado
Aquisição da 5 anos da abertura da sucessão, desde Não há
propriedade que não estejam pendentes ações
definitiva pelo diretas de reconhecimento da condição
Estado de sucessor

2. Da sucessão em geral
2.1. Abertura da sucessão (droit de saisine ou princípio de saisine)

2.1.1. Noções gerais


O art. 1.784 do Código Civil prevê a regra da abertura da sucessão:

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e tes-
tamentários.

Aberta a sucessão (o que se dá com a morte), transmitem-se automaticamente a posse e a proprie-


dade de todos os bens que compõem o espólio. Não se confunde, portanto, a abertura da sucessão (a
morte) com a abertura do inventário. A isso se convencionou chamar de droit de saisine ou regra de sai-
sine.
O droit de saisine tem uma história curiosa. Foi construído pela jurisprudência da França. Os se-
nhores feudais começaram a alegar que toda vez que um servo deixasse bens sem testamento, tais bens
passariam a lhes pertencer (ou seja, o bem que ficasse sem dono seria do senhor feudal). As famílias dos
servos foram à Justiça e conseguiram o reconhecimento jurisprudencial no sentido de que, inexistindo

793
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

testamento, os bens não ficariam acéfalos, por conta da transmissão automática do patrimônio aos her-
deiros.
A saisine impede que haja uma quebra na solução de continuidade, na medida em que opera auto-
maticamente a transmissão. Ela evita a acefalia dos bens. É como se o autor da herança, no seu último
suspiro de vida, de mãos próprias entregasse seu patrimônio.
Se todo o patrimônio é transferido com a saisine, forma-se um condomínio e uma composse sobre
todos os bens, os quais somente cessarão quando da partilha. Veja que se trata de um ótimo exemplo de
desdobramento da posse, em direta e indireta, que ocorre dentro da herança. O administrador provisório
ou o inventariante terá a posse direta; os demais herdeiros a posse indireta.
No tópico acima, foram estudadas as diferenças entre herdeiro e legatário. A saisine transmite au-
tomaticamente todos os bens e forma um condomínio. Note que ela somente pode transmitir a título
universal. Portanto, somente os herdeiros serão beneficiados pela transmissão automática de saisine, e
não os legatários, que somente receberão posse e propriedade por ocasião da partilha.
Nada impedirá, é verdade, que o legatário reclame eventualmente uma medida cautelar, para a
proteção de seu legado. Todavia, não há dúvidas de que o legatário somente recebe quando da partilha,
pois seu direito é singular, enquanto que a saisine transmite direito universal.

2.1.2. Efeitos da saisine

2.1.2.1. Transmissão automática das relações patrimoniais do falecido

A transmissão automática das relações patrimoniais do falecido (créditos e débitos) é o principal


efeito da saisine. O débito, vale lembrar, será transmitido no limite das forças da herança.

2.1.2.2. Fixação da lei sucessória


Uma vez que a sucessão se situa no plano da eficácia, a lei que disciplina a sucessão é aquela
vigente na data da sua abertura, que coincide com a data da morte, a teor do Art. 1.787, CC:

CC, art. 1.787: “Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertu-

ra daquela.”.

Ex.: se uma pessoa morreu em dezembro de 2002, mas seu inventário somente foi aberto fevereiro
de 2003, essa sucessão será disciplinada pelas regras do CC/16. Trata-se de mais uma hipótese de ultra-
tividade da lei civil.
Nesse sentido, vale conferir a Súmula 112 do STF, que trata da alíquota do ITCMD. A mensagem
que ela passa é que modificações supervenientes na alíquota são irrelevantes, mesmo que antes do reco-
lhimento do imposto:

Súmula 112 - O IMPOSTO DE TRANSMISSÃO "CAUSA MORTIS" É DEVIDO PELA ALÍQUOTA


VIGENTE AO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO.

794
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.1.2.3. Verificação da capacidade sucessória


A capacidade sucessória, a aptidão para receber herança ou legado, será verificada por ocasião da
abertura da sucessão. Isso significa que modificações supervenientes que nela porventura ocorram são
irrelevantes.

2.1.2.4. Determinação do lugar da sucessão

A saisine determina o lugar da sucessão. O art. 1.785 do CC estabelece que o lugar da sucessão é o
último domicílio do falecido:

Art. 1.785. A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido.

Essa regra deve ser combinada com a do art. 48 do CPC, para fins de fixação da competência para o
inventário:

CPC, Art. 48: “O foro de domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o
inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade, a im-
pugnação ou anulação de partilha extrajudicial e para todas as ações em que o espólio for réu,
ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.

Parágrafo único. Se o autor da herança não possuía domicílio certo, é competente:

I - o foro de situação dos bens imóveis;

II - havendo bens imóveis em foros diferentes, qualquer destes;

III - não havendo bens imóveis, o foro do local de qualquer dos bens do espólio.”

Assim, a competência para processar e julgar o inventário é determinada segundo as seguintes re-
gras:
1ª regra: foro do último domicílio do falecido.
2ª regra: tendo o falecido mais de um domicílio (lembre que o art. 70 do CC permite a pluralidade
de domicílios, como é o caso do médico que presta serviços em muitos municípios), será competente o
foro de qualquer deles, por prevenção.
3ª regra: se o falecido não tinha domicílio certo, será competente:
a) O foro de situação dos imóveis;
b) Havendo imóveis em foros distintos, qualquer destes, por prevenção;
c) Não havendo imóveis, o foro de qualquer dos bens do espólio.
Veja que são todas regras de competência segundo critério territorial (ratione loci), aplicando-se a
Súmula 33 do STJ, segundo a qual o juiz não pode se declarar incompetente de ofício, por se tratar de
competência relativa:

Súmula 33 - A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício.

795
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A aplicação da Súmula 33 do STJ no inventário traz a seguinte mensagem: se nenhum interessado


opuser exceção de incompetência, essa competência estará automaticamente prorrogada. Ex.: no caso de
uma pessoa que era domiciliada em Salvador, morreu em Maceió e deixou seus bens em Aracajú, o in-
ventário poderá correr em Recife.

2.1.2.5. Cálculo da legítima


No direito civil, há três diferentes parâmetros utilizados para o cálculo da legítima:
i) para fins de testamento:
Como dito acima, é vedado ao testador dispor de mais de 50% do seu patrimônio líquido, se houver
herdeiros necessários. Para a aferição desse percentual, será considerado o valor da legítima por ocasião
da abertura da sucessão.
ii) para fins de doação:
O art. 549 do CC proíbe a doação inoficiosa (é nula a doação naquilo que exceder a legítima):

Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento
da liberalidade, poderia dispor em testamento.

Para a aferição da parte que o doador poderia dispor, será considerado o valor da legítima na data
da liberalidade.
iii) para fins de antecipação da herança:
O art. 544 do CC dispõe o seguinte:

Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adianta-


mento do que lhes cabe por herança.

Doado, por exemplo, um carro ao filho que passa no vestibular, ou um apartamento ao filho que se
casa, e falecido o doador, esse filho terá de colacionar, levando o valor do bem recebido ao inventário,
para não desigualar as legítimas.
Nesse caso, o art. 1.014 do CPC e o art. 2.004, do CC, dizem coisas em aparente conflito:

Art. 1.014. No prazo estabelecido no art. 1.000, o herdeiro obrigado à colação conferirá por ter-
mo nos autos os bens que recebeu ou, se já os não possuir, trar-lhes-á o valor.

Parágrafo único. Os bens que devem ser conferidos na partilha, assim como as acessões e benfei-
torias que o donatário fez, calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da suces-
são.

Art. 2.004. O valor de colação dos bens doados será aquele, certo ou estimativo, que lhes atribu-
ir o ato de liberalidade.

§ 1º Se do ato de doação não constar valor certo, nem houver estimação feita naquela época, os
bens serão conferidos na partilha pelo que então se calcular valessem ao tempo da liberalidade.

796
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

(...)

O CPC estabelece que o cálculo da legítima deve ser feito na data da abertura da sucessão. O CC,
por sua vez, determina que o cálculo deve ser realizado na data da liberalidade.
Imagine que o pai doa para o filho uma casa em 1974 (há quase 40 anos, portanto) e morre em
2012. Essa casa ainda existe, é de propriedade do filho e experimentou uma valorização imensa, em be-
nefício do donatário. O mais justo, aqui, é colacionar o bem pelo valor que tinha no tempo da liberalidade
(1974) ou da abertura da sucessão (2011)? Evidente que em 2011, pois calcular ao tempo da liberalidade
significa privar os demais herdeiros da valorização do imóvel (isso, é claro, sem prejuízo da indenização
das benfeitorias).
Por outro lado, no caso do pai que doa um carro, 40 anos depois o bem sequer existe. Perceba que,
neste caso, o mais justo será colacionar o valor antigo do carro.
Assim, com base na regra de proibição de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC), o Enunciado
119 da Jornada resolve a antinomia: se o bem antecipado ainda existe, será colacionado o valor da data
da abertura da sucessão (regra do CPC); não mais existindo, será colacionado na data da liberalidade,
atualizado monetariamente (regra do CC):

Enunciado 119 - Art. 2.004: Para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efetuada
com base no valor da época da doação, nos termos do caput do art. 2.004, exclusivamente na
hipótese em que o bem doado não mais pertença ao patrimônio do donatário. Se, ao contrário, o
bem ainda integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na época da
abertura da sucessão, nos termos do art. 1.014 do CPC, de modo a preservar a quantia que efeti-
vamente integrará a legítima quando esta se constituiu, ou seja, na data do óbito (resultado da
interpretação sistemática do art. 2.004 e seus parágrafos, juntamente com os arts. 1.832 e 884
do Código Civil).

2.2. Vocação hereditária e capacidade para suceder

Capacidade sucessória é a aptidão para ser herdeiro ou legatário, ou seja, o atributo que permite a
alguém figurar numa herança ou num legado. Ela não se confunde com a capacidade jurídica geral (a
capacidade sucessória, na verdade, independe da capacidade jurídica). Ex.: uma criança com cinco anos
de idade é incapaz, mas pode ser herdeira.
A capacidade sucessória será investigada no momento da abertura da sucessão, sendo irrelevante
qualquer modificação posterior.
O Código Civil estabeleceu três critérios para defini-la: i) capacidade para a sucessão legítima (art.
1.798); ii) capacidade para a sucessão testamentária (art. 1.799); iii) incapacidade para a sucessão testa-
mentária (art. 1.801).
Obs.: o ITCMD e as custas processuais não são, segundo a jurisprudência pacífica do STJ, calcula-
dos sobre a meação, que é excluída para fins da aferição valor devido.

797
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.2.1. Capacidade para a sucessão legítima


Segundo o art. 1.798 do CC, são duas as pessoas que podem participar da sucessão legítima: as pes-
soas nascidas (separadas pelo cordão umbilical) e as já concebidas:

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertu-


ra da sucessão.

Segundo o entendimento de Flávio Tartuce, seguindo os professores Silmara Chinellato, Franciso


Amaral e Diogo Leite de Campos, o nascituro possui direitos sucessórios, pois a lei os garante desde a
concepção.
Prevalece o entendimento de que o nascituro somente tem direitos sucessórios se nascer
com vida, trata-se de uma personalidade condicional quanto à herança. (Maria Helena Diniz, Pablo
Stolze e Rodolfo Pamplona, Francisco Cahali).
Maria Helena Diniz afirma que o nascituro tem personalidade jurídica formal (direitos de persona-
lidade), mas não tem a personalidade jurídica material (direitos patrimoniais).
Outro problema é saber a que tipo de concepção se refere a expressão “já concebida”: somente à
uterina ou abrange também a laboratorial? Perceba que o texto é genérico, lacônico.
Autores como Maria Helena Diniz e Flavio Tartuce entendem que a capacidade sucessória dos “já
concebidos” refere-se apenas àqueles que ainda estão no útero materno. Entendem, portanto, que a con-
cepção de que trata o art. 1.798 é a uterina, de modo que o embrião laboratorial não teria direito à heran-
ça. Para chegarem a essa conclusão, os autores combinam os arts. 1.798 e 2º do CC:

Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.

A segunda corrente, de Maria Berenice Dias e Giselda Hironaka, em posição diametralmente opos-
ta, entende que o embrião de laboratório tem capacidade sucessória. Essas autoras defendem a interpre-
tação do art. 1.798 de forma ampliativa. Isso porque o dispositivo é uma norma de inclusão, não de ex-
clusão. Prevalece esta corrente na doutrina, à qual Chaves adere, pelo princípio constitucional da igual-
dade entre os filhos.
A Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), em seu art. 5º (reconhecido constitucional na ADI
3510/DF), determina que o médico somente guardará o embrião laboratorial pelo prazo de 3 anos, findo
o qual será implantado ou descartado:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias


obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respecti-
vo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou

798
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, conta-
dos a partir da data de congelamento. (...)

Ou seja, segundo a corrente dominante, para que possa suceder, o filho deverá nascer no prazo má-
ximo de 3 anos e 9 meses. Vale destacar que o prazo de petição de herança é de 10 anos, mas, no caso do
absolutamente incapaz, não correrá o prazo prescricional. Não há empecilho em termos de prazo, por-
tanto.
A partilha, enquanto não houver a implantação, poderá ocorrer perfeitamente, sem a habilitação da
mãe (que somente poderá ocorrer em caso de concepção), e a questão se resolverá por meio de petição de
herança. Nada impede, portanto, a adoção da segunda corrente.
O mesmo não se aplica quanto ao sêmen que esteja congelado no momento da abertura da suces-
são, já que nesse caso não há concepção. Veja que o direito civil permite que alguém seja filho, sem ser
herdeiro (pois não concebido até o falecimento). É o direito civil contemporâneo. E, segundo Chaves, não
dá para invocar o princípio da igualdade entre os filhos, pois as situações são desiguais (não havia con-
cepção).

2.2.2. Capacidade para sucessão testamentária

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao
abrir-se a sucessão;

II - as pessoas jurídicas;

III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de funda-
ção.

Podem participar da sucessão testamentária:


i) as pessoas nascidas;
ii) as pessoas concebidas:
Note que, até aqui, a capacidade sucessória está igual à anterior.
iii) pessoas jurídicas:
As pessoas jurídicas somente podem herdar por sucessão testamentária, não sendo permiti-
da a sucessão legítima para tais entidades.Ex.: uma associação.
iv) pessoa jurídica a ser constituída com o patrimônio transmitido:
É o caso da fundação.
v) prole eventual ou concepturo:
Prole eventual é o filho que alguém vai ter. Não se deve confundi-la com o nascituro, que já está
concebido (e entra na sucessão legítima, não na testamentária). A prole eventual será concebida. Ex.: “A”
deixa um bem em testamento para o filho que “B” terá.

799
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As diposições quanto ao concepturo devem ser complementadas pelo Art. 1.800, CC527.
O Art. 1.800, § 4º, CC estabelece o prazo decadencial de de dois anos, para a concepção da prole
eventual (e não para o nascimento), contados da abertura da sucessão (da morte). Se a pessoa não for
concebida nesse prazo, ocorrerá a decadência do benefício.
Para Chaves, dentro desse prazo para conceber a prole eventual poderia ser perfeitamente incluída
a hipótese de adoção. Isso pela igualdade de origem quanto aos filhos.
Para participar da sucessão testamentária, a prole eventual nunca poderá ser a do próprio testador.
Seria uma tentação natural imaginar que o falecido deixaria a parte disponível de seus para o filho que
terá. Todavia, para que haja capacidade sucessória, os pais da prole eventual precisam estar vivos na
abertura da sucessão.

2.2.3. Incapacidade para a sucessão testamentária

Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:

I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus
ascendentes e irmãos;

II - as testemunhas do testamento;

III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do
cônjuge há mais de cinco anos;

IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como
o que fizer ou aprovar o testamento.

Não podem receber testamento, sob pena de nulidade:


i) a pessoa que o escreveu a rogo:
Lembre que, no testamento a rogo, o testador ou era cego ou analfabeto, assim a disposição visa
proteger a legitimidade do testamento como exercício da autonomia plena da liberdade individual.
ii) o tabelião ou Oficial do Cartório;
iii) as testemunhas do testamento;
iv) a concubina do testador casado:
Veja que esta hipótese não tem lógica. “Concubina”, aqui, está no sentido de amante, e não de com-
panheira. O CC comete uma impropriedade horrorosa: o art. 1.723, § 1º, diz que a simples separação de

527 CC, art. 1.800: “No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a li-

quidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz. § 1º Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela
caberá à pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às pessoas indicadas no art.
1.775. § 2º Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim nomeado, regem-se pelas disposições con-
cernentes à curatela dos incapazes, no que couber. § 3º Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida
a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. § 4º Se, decorridos dois
anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em
contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.”

800
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

fato, independentemente de qualquer prazo, transmuda o concubinato em união estável. Trata-se de um


conflito aparente de normas:

Art. 1.723 (...) § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de
fato ou judicialmente.

Insta observar os termos do Enunciado n. 269 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil: “a veda-
ção do art. 1.801, inc. III, do Código Civil não se aplica à união estável, independentemente do período de
separação de fato (art. 1.723, § 1.º)”.
Ademais o art. 1.803, CC consagra que o pai pode transmitir a herança ao seu filho com a “concu-
bina”:

Art. 1.803. É lícita a deixa ao filho do concubino, quando também o for do testador.

Segundo Flávio Tartuce, trata-se de aplicação inafastável do princípio da igualdade entre os filhos,
retirado do art. 227, § 6.º, da CF/1988 e do art. 1.596 do CC. Como é notório, todos os filhos são iguais,
havidos ou não da relação de casamento.
v) o cônjuge, companheiro ou parente das pessoas acima.
A regra busca evitar a simulação por terceiro interposto. No Brasil, isso é chamado de “laranja”, ou
“testa de ferro”.

2.3. Excluídos da sucessão: Indignidade e deserdação

Inicialmente Flávio Tartuce assevera que não se pode confundir a falta de legitimação para suceder
com a exclusão por indignidade e a deserdação. Isso porque no primeiro caso há um afastamento do di-
reito por razão de ordem objetiva. Por outra via, na indignidade e na deserdação há uma razão subjetiva
de afastamento, uma vez que o herdeiro é considerado como desprovido de moral para receber a heran-
ça, diante de uma infeliz atitude praticada
Indignidade e deserdação são institutos que se aproximam e se repelem, como será aprofundado
nos tópicos seguintes.

2.3.1. Pontos comuns entre indignidade e deserdação


A indignidade e a deserdação aproximam-se porque possuem idêntica natureza, de sanção civil.
São punições impostas a quem se comportou mal, de maneira ignóbil contra o autor da herança. O fun-
damento valorativo dos institutos, portanto, é o mesmo.
Partindo dessa premissa, é possível perceber que a indignidade e a deserdação exigem interpreta-
ção restritiva. Isso tem sentido: tudo o que é sancionatório deve ter tal exegese. E mais: exigem decisão
judicial, resguardando o devido processo legal (ninguém pode ser sancionado senão por decisão judicial,
segundo o devido processo legal).

801
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Mas o ponto de maior semelhança entre as figuras é o seguinte: em razão do princípio da intrans-
cendência da pena (a pena não pode passar da pessoa do apenado), elas produzem o mesmo efeito jurídi-
co: geram sucessão por representação (também chamada de sucessão por estirpe). Isto porque, co-
mo a pena não pode perpassar a pessoa do apenado (do herdeiro ou do legatário), os descendentes do
indigno ou do deserdado recebem no lugar dele, como se ele morto fosse. O indigno e o deserdado não
recebem, ficando incompatíveis com a herança.
Exemplo é o caso de Suzane (PUC), que matou os pais em São Paulo. Ela se tornou indigna e, por-
tanto, incompatível com a herança. Se ela tivesse um descendente quando da abertura da sucessão, ele
receberia em seu lugar a herança. A punição foi dela, não do descendente (intranscendência da pena).
Contudo, se esse filho, anos depois, viesse a falecer, sem deixar descendentes, quem receberia a he-
rança do filho? Perceba que, no final das contas, poderia haver uma burla à punição. Assim, é preciso
deixar claro que a indignidade e a deserdação tornam o indigno e o deserdado incompatíveis com a he-
rança. Eles não podem receber de volta o bem por sucessão do seu descendente (eles não recuperarão a
herança).
Evidentemente, o deserdado ou o indigno poderia receber outros bens de seu descendente, por he-
rança, desde que esse descendente os tivesse adquirido em vida. Somente não poderiam herdar aqueles
bens recebidos pelo falecido por força da indignidade ou da deserdação.
Não há impedimento a que o descendente do indigno, depois de receber os bens, faça doação para
o deserdado ou o indigno. Está-se no campo da liberalidade. São outros negócios jurídicos, não se trata
mais de sucessão. O patrimônio é daquele que recebeu e ele faz o que bem quiser.
Surge a dúvida: o filho do indigno, concebido após a deserdação, perde esse direito de herdar por
representação? O descendente do indigno ou deserdado somente terá direito de receber em seu lugar se
já estiver concebido na data da abertura da sucessão (e não na data da prática do ato, pois o ato pode não
ser o homicídio do autor da herança). Esse tema foi tratado anteriormente.
Como dito, a indignidade e a deserdação produzem o mesmo efeito jurídico: gerar a sucessão por
estirpe. É importante ter em mente que, no direito brasileiro, somente existem três casos de sucessão por
representação (por estirpe): indignidade, deserdação e pré-morte. Todos os demais são por direito pró-
prio. Ou seja, fora daquelas três hipóteses, haverá sucessão por cabeça.

2.3.2. Distinção entre indignidade e deserdação


Até aqui, foram analisados os aspectos comuns entre a indignidade e a deserdação. Adiante, serão
tratadas as distinções entre as figuras.
Inicialmente Flávio Tartuce apresente o seguinte resumo:
Indignidade (arts. 1.814 a 1.818 CC) Deserdação (arts. 1.961 a 1.965 CC)
Matéria de sucessão legítima e testamentária. Matéria de sucessão testamentária.
Alcança herdeiros necessários e facultativos. Só atinge herdeiros necessários.

802
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As hipóteses de indignidade também servem Existem hipóteses de deserdação que não


para a deserdação. alcançam a indignidade.
Decorre de decisão judicial. Decorre de testamento e posterior confirmação
judicial.
2.3.2.1. Peculiaridades da indignidade
A indignidade é dirigida a todo e qualquer sucessor, herdeiro ou legatário. Ou seja, qualquer suces-
sor pode ser indigno por ato praticado antes ou depois da abertura da sucessão.
Todavia, ela deve ser provocada por meio de uma ação (a chamada “ação de indignidade”), que tem
procedimento comum ordinário e prazo decadencial de quatro anos, contados da abertura da su-
cessão, se praticado o ato de indignidade antes, ou da descoberta do ato de indignidade, se praticado de-
pois do falecimento.
Pode promover essa ação qualquer interessado: os outros herdeiros, o credor, o herdeiro do herdei-
ro (como visto, ele vai receber por representação), a Fazenda Pública (que recebe por último e pode ter
interesse em que todos sejam considerados indignos).
O Enunciado 116 da Jornada reconhece a legitimidade do MP para a ação de indignidade (posição
majoritária). A Chaves, essa legitimidade não parece razoável:

Enunciado nº 116 - Art. 1.815: O Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo Código Civil,
desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declara-
ção da indignidade de herdeiro ou legatário.

Assim, na esteira do que já defendia a doutrina, a Lei 13.532/2017 incluiu o §2º no art. 1.815, CC: o
MP, na hipótese do inciso I do art. 1.814, CC, também tem legitimidade ao lado do herdeiro528.
A indignidade somente será discutida depois da abertura da sucessão. Assim, conclui-se que o au-
tor da herança não tem legitimidade para ajuizar a ação de indignidade, pois já está morto.

2.3.2.2. Hipóteses de indignidade


Os casos de indignidade estão previstos no art. 1.814 do Código Civil:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste,
contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descenden-
te;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime


contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

528 Flávio Tartuce assevera que há ainda alegações de suposta inconstitucionalidade do artigo, por afronta ao
art. 127 do Texto Maior. Isso porque a atuação do MP estaria adstrita a questões relativas a direitos indisponíveis, o
que não ocorre com a herança, que constitui um direito patrimonial disponível, nesse sentido Fernando Gajardoni
na doutrina processualista.

803
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dis-
por livremente de seus bens por ato de última vontade.

Segundo Flávio Tartuce o rol é taxativo uma vez que suprime o dirieto de herança, como visto, di-
reito fundamental.

2.3.2.2.1. Homicídio doloso, tentado ou consumado, contra o autor da herança, seu


cônjuge ou companheiro, ascendente ou descendente

Veja que o homicídio ou a tentativa que gera a indignidade não é somente aquele praticado contra
o autor da herança.
Acerca desta primeira causa de indignidade, há uma controvérsia importante: é necessária prévia
condenação criminal para o seu reconhecimento? Não. Isso porque, pelo art. 935 do CC (que consagra o
princípio da autonomia das instâncias), a instância civil e a penal são autônomas e independentes: o juiz
civil julgará os efeitos civis do ato; o juiz penal, os efeitos penais:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais
sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal.

Todavia, o próprio dispositivo excepciona uma hipótese: a existência de prévia manifestação do juiz
penal apreciando autoria e materialidade do delito. Assim, se o juiz penal julgou primeiro e analisou a
autoria e a materialidade, a questão está resolvida e a decisão produzirá efeitos na esfera civil. Se o juiz
penal ainda não julgou, o juiz civil poderá fazê-lo, se entender que tem elementos. Até porque a CR con-
sagra a razoável duração do processo.
O ideal é que não haja decisões conflitantes. Para tanto é permitido ao juiz civil suspender o anda-
mento processo por até um ano, para esperar a decisão penal, já que esta pode influenciar aquela:
Veja que se trata de uma faculdade do juiz civil, não de uma obrigação. Além disso, se passar o
prazo e não vier a sentença penal, o juiz civil terá de julgar.

2.3.2.2.2. Crime contra honra ou denunciação caluniosa contra o autor da herança,


seu cônjuge ou companheiro

Perceba que, nesta segunda hipótese, há uma diferença de extensão subjetiva para com a primeira.
Aqui, justifica a decretação da indignidade a conduta praticada apenas contra o autor da herança, seu
cônjuge ou companheiro; na primeira, também é punida a conduta praticada contra o ascendente ou
descendente.
É necessária, neste caso, prévia condenação penal. A grande “pegadinha” é que esta hipótese exige
que tenha havido “crime”. Não se deve confundir o crime com o fato jurídico. Matar alguém é um fato
que, para o direito penal, por força da tipicidade (art. 121 do CP), pode ser crime. Mas antes de ser crime,

804
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

o homicídio é um fato jurídico, que pode ser reconhecido por qualquer juiz. Mas, quando a lei usa a pala-
vra “crime”, somente pode reconhecê-lo o juiz penal.
Se, num dia, forem publicadas duas leis despenalizadoras, abolindo tanto o homicídio como o cri-
me contra a honra, no dia seguinte continuará sendo possível a decretação da indignidade pelo homicí-
dio, mas não pelo crime contra a honra.
Por essas mesmas razões, para a indignidade por denunciação caluniosa não se exige prévia conde-
nação penal.

2.3.2.2.3. Prática de ato que impeça a manifestação de vontade do autor da herança

Esta hipótese, na prática, é muito difícil de imaginar. Um exemplo é o caso do marido que, sabendo
que a mulher fez testamento e guardou no cofre, subtrai o cofre e joga no mar (caso verídico, ocorrido no
RJ).

2.3.2.2.4. Observações gerais quanto às hipóteses de indignidade

i) taxatividade do rol de hipóteses de indignidade:


Na medida em que punitivo, esse rol de hipóteses de indignidade somente pode ser taxativo. Na
verdade, toda norma que estabelece punição deve ter interpretação restritiva.
Por essa razão, aquele que auxilia, instiga ou induz o pai ao suicídio, em tese, não poderia ser in-
digno. Todavia, o STJ acolheu a tese do autor português José de Ascensão, denominada “tipicidade fina-
lística”, de acordo com a qual o rol é taxativo e não pode ser ampliado, mas o juiz pode considerar outros
fatos, desde que tenham a mesma finalidade. Ou seja, o juiz não pode ampliar o rol da lei, mas pode in-
terpretar a norma para abarcar outros fatos, desde que tenham a mesma finalidade daqueles previstos
expressamente. O induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, portanto, enquadra-se nas hipóteses
acima, mas o homicídio culposo não.
O STJ aplica esta tese da tipicidade finalística também nos casos de ingratidão do donatário (art.
557 do CC):

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra
ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

ii) reabilitação do indigno:


Reabilitação do indigno é o perdão do ofendido. O CC/2002 permite ao ofendido (autor da heran-
ça) desculpar o indigno, se o ato for praticado em vida e seja realizado de modo expresso. Evidentemente,

805
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

ele não poderá perdoar caso se trate de homicídio. Portanto, havendo perdão expresso do ofendido, obs-
ta-se a procedência da ação de indignidade.

2.3.2.3. Peculiaridades da deserdação


A deserdação é aplicável somente para os herdeiros necessários (art. 1.845 do CC): descendentes,
ascendentes e cônjuges (e o companheiro, a depender do entendimento).
O ato que enseja a deserdação deve ter sido praticado em vida (antes da abertura da sucessão, por-
tanto).
A deserdação é realizada por meio de testamento, o qual obrigatoriamente reclama homologação
judicial posterior, para que o juiz verifique se a causa deserdativa realmente ocorreu, garantida a ampla
defesa. Isso é necessário, pois, caso contrário, o pai poderia privar seu filho da herança.
Nesse sentido, veja-se que a ação de confirmação da deserdação tem como prazo decadencial
de 4 anos, contados da abertura do testamento (art. 1.965, CC).
Flávio Tartuce entende que os efeitos são pessoais assim, pelo princípio da intranscendencia os
herdeiros do deserdado podem herdar por representação, nesse sentido ainda Zeno Veloso, José Fernan-
do Simão.
Finalmente, é de se observar que, enquanto a indignidade fica a cargo de qualquer interessado, a
deserdação é ato privativo do autor da herança.

2.3.2.4. Hipóteses de deserdação (arts. 1.814 e 1.961 a 1.963 do CC)

São causas deserdativas:


i) as mesmas causas de indignidade (art. 1814):
Como se trata de ato privativo do autor da herança, o legislador entendeu que ele pode ter mais
motivos justos e lícitos que os outros interessados para a deserdação. Assim, além das causas de indigni-
dade, há quatro outras que justificam a deserdação.
ii) ofensas físicas;
iii) injúria grave;
iv) abandono material;
v) relações sexuais ilícitas.
Surge aqui um problema: o cônjuge somente pode ser deserdado nas causas de indignidade. Já os
descendentes e ascendentes podem ser deserdados nas causas de indignidade e nas quatro outras. Ex.:
um homem casa-se com uma mulher bem mais jovem e ela passa a ter relações sexuais com o filho dele
(relação sexual ilícita). Esse filho pode ser deserdado pelo pai. A mulher, todavia, não. Veja, se a relação é
ilícita, é ilícita para ambos. Não é unilateral. Independentemente de divórcio ou não, o CC terminou, sem
querer, restringindo a deserdação do cônjuge e gerando essa estranha situação.

2.4. Cessão de direitos hereditários

806
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.4.1. Noções gerais


A herança é um valor patrimonial. Como visto, trata-se de um bem imóvel, indivisível e universal.
Assim, toda a herança é patrimônio, e, como tal, admite circulação/celebração de negócio.
Cessão de direitos hereditários é o negócio jurídico pelo qual se pode fazer circular a herança. Ela
pode ser gratuita ou onerosa, no todo ou em parte.
É o caso de alguém que está recebendo a herança e quer vendê-la, enquanto não vem a partilha (até
porque depois da partilha não há herança). A venda será de uma parte ou do todo a que o cedente fará
jus.
Note que somente será especificado o quinhão de cada um com a partilha. Por essa razão, a cessão
é um negócio jurídico aleatório, não incidindo, por conseguinte, os vícios redibitórios e a evicção (álea é
sorte, incerteza). Vendido um quinhão por 100 e apurado no inventário que o falecido deixara dívidas,
que diminuíram o quinhão de cada um, não pode o cessionário reclamar a diferença.
Todavia, sobrevindo direitos patrimoniais desconhecidos do cedente quando da cessão, a ele per-
tencerão, e não ao cessionário. Isso pode parecer estranho, mas não é, pois ninguém pode transmitir
aquilo que não sabe ter.
O cessionário passa a ocupar a posição jurídica do cedente. Por essa razão, tem legitimidade inclu-
sive para requerer a abertura do inventário.

2.4.2. Requisitos da cessão de direitos hereditários


São requisitos para a cessão:
i) requisito formal:
Por conta da natureza imóvel da herança, a cessão de direitos hereditários tem de ser realizada por
escritura pública ou termo judicial.
ii) requisito subjetivo:
O cedente deve ser capaz. Afinal, está celebrando um negócio jurídico imobiliário. Se for incapaz,
exige-se autorização judicial, ouvido o MP. Se for casado, além da sua capacidade exige-se também o
consentimento (a autorização) do cônjuge, sob pena de anulabilidade, salvo se o casamento for no regime
de separação convencional de bens. Se o casamento for realizado no regime da participação final nos
aquestos, o pacto poderá dispensar a autorização.
iii) requisito temporal:
A cessão de direitos hereditários somente pode ser celebrada no lapso temporal compreendido en-
tre a abertura da sucessão e a partilha. Antes da abertura da sucessão, o negócio seria nulo, nos termos
do art. 426 do CC (proibição de contrato que tenha por objeto herança de pessoa viva):

Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

Depois da partilha, não há mais herança, mas direito próprio (compra e venda ou doação).

807
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iv) requisito objetivo:


O objeto da cessão é sempre uma universalidade. Pode-se ceder um percentual ou 100% da heran-
ça, mas não é possível ceder bens específicos. Não se trata de legado. Isso porque não se sabe se aquele
bem ficará para um ou outro herdeiro.
Somente é possível a cessão de bens específicos em dois casos: quanto todos os demais interessa-
dos consentirem (inclusive a Fazenda Pública, que tem interesses fiscais) ou quando se tratar de cessão
de legado (o legatário tem um bem específico, de modo que será cedido o próprio bem).

2.4.3. Direito de preferência na cessão de direitos hereditários


Dissipando a dúvida que havia à época do CC/16, o CC/02 reconheceu o direito de preferência na
cessão de direitos hereditários.
Considerando que a herança é universal, o CC acertadamente exigiu o respeito ao direito de prefe-
rência dos demais herdeiros quando a cessão for onerosa. Cessão gratuita é liberalidade, a qual é incom-
patível com o direito de preferência.
Como o CC não disse expressamente de que maneira esse direito se realiza, aplica-se, por analogia,
o art. 27 da Lei 8.245/1991 (Lei de Locações), segundo o qual o direito de preferência se materializa atra-
vés de notificação (judicial ou extrajudicial):

Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou da-
ção em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de
condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notifica-
ção judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca.

Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e, em especial, o


preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como o local e horário em que po-
de ser examinada a documentação pertinente.

Se o herdeiro ceder onerosamente a sua herança sem respeitar o direito de preferência, será caso de
ineficácia do negócio em relação aos demais coerdeiros prejudicados. Por isso, eles disporão do prazo
decadencial de 180 dias para ajuizar uma ação de adjudicação compulsória, o qual começa a fluir da data
do conhecimento da cessão onerosa. Nessa ação, haverá um litisconsórcio passivo, necessário e unitário
entre o herdeiro cedente e o terceiro cessionário.
Aplica-se à cessão de direitos hereditários, também por analogia, o art. 504 do CC:

Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro
consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda,
poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo
de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.

Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor
e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendi-

808
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

da os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.

Veja que a forma de materialização da preferência é disciplinada, por analogia, pela Lei de Loca-
ções; os efeitos da preferência, por analogia do art. 504.
O STJ, no julgamento do REsp 1.361.983/SC, tratou da legitimidade para pleitear a declaração de
nulidade de doação inoficiosa. O art. 549 do CC estabelece que é nula a doação que exceder a legítima
(metade indisponível do patrimônio líquido do doador). Nesse caso, surge a indagação: se o herdeiro (um
dos interessados na nulidade) cedeu seus hereditários, o fato de ter cedido retira dele a sua legitimidade
para propor a ação declaratória de nulidade de doação inoficiosa. O STJ entendeu que o herdeiro que
cede seus direitos hereditários possui legitimidade para pleitear a declaração de nulidade de doação ino-
ficiosa realizada pelo autor da herança em benefício de terceiros. Isso porque a cessão de direitos heredi-
tários é meramente patrimonial, é a transmissão do recebimento do patrimônio transmitido. O cedente
não perde a qualidade hereditária, ou seja, a qualidade de herdeiro. Tanto isso é verdade que sobrevindo
patrimônio desconhecido pelo cedente quando do ato de cessão, o direito remanesce com ele, pois o que
se transfere ao cessionário é a legitimidade para requerer a partilha patrimonial. Não se cede e não se
negocia a qualidade hereditária, que é direito fundamental.
A ação declaratória de nulidade de doação inoficiosa, assim como as outras ações declaratórias, é
imprescritível. Pode ser ajuizada enquanto o doador ainda está vivo ou mesmo depois de sua morte.

2.5. Aceitação da herança

2.5.1. Noções gerais


Conforme ensina Flávio Tartuce a aceitação ou adição da herança é o ato do herdeiro que confirma
a transmissão da herança (Art. 1.804,CC)
Observa-se que não se trata do ato que gera a transmissão da herança em si, pois, em razão da sai-
sine, a regra é a da transmissão automática por lei.
Nesse senido, pode parecer meio ilógica a regra da aceitação da herança. Na verdade, a aceitação
tem natureza de mera confirmação (confirma-se a transmissão automática). Assim, a aceitação opera
efeitos retroativos, na medida em que confirma o que a lei já transmitiu.
Assim, discute-se a necessária dessa figura, sendo que:
i. Maria Berenice Dias entende que não, pois o “droit de saisine” é suficiente.
ii. Zeno Veloso defende que sim, diante da máxima “ao constrangido ou a quem não quer,
não se dá o benefício”, uma vez que ninguém pode ser herdeiro contra a sua vontade.
A aceitação, de acordo com o art. 1.792 do CC, é sempre realizada com benefício de inventário, ou
seja, no limite das forças da herança:

Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe,
porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos
bens herdados.

809
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Isso porque o herdeiro não responderá por dívidas que extrapolem o patrimônio transmitido. Sob o
ponto de vista prático, o máximo de ruim que pode ocorrer ao herdeiro é ele não receber nada. É isso o
que se chama aceitação com benefício de inventário.
Na medida em que é um ato jurídico em sentido estrito, a aceitação é irrevogável e irretratável. Ato
jurídico em sentido estrito é aquele que, apesar de decorrer da prática de um ato humano (uma declara-
ção de vontade), seus efeitos estão na lei. Daí a razão da irrevogabilidade e irretratabilidade: os efeitos da
aceitação decorrem de lei.
Diante do quanto dito acima, ainda que o herdeiro, depois de ter aceitado, renuncie à herança, ha-
verá incidência tributária. Isso porque a aceitação é irrevogável, e a irrevogabilidade gera, portanto, a
incidência fiscal. Aceita a herança, há imposto, automaticamente.
Além disso, a aceitação é plena e integral. Isso significa que o interessado (herdeiro ou legatário)
nunca poderá aceitar herança fracionadamente. Até porque, se esse fracionamento da herança fosse pos-
sível, o herdeiro aceitaria o crédito e renunciaria ao débito.
No art. 1.808, § 2º, há um curioso caso que muitos autores definem como uma exceção à regra da
aceitação plena:

Art. 1.808 (...) § 2º O herdeiro, chamado, na mesma sucessão, a mais de um quinhão hereditá-
rio, sob títulos sucessórios diversos, pode livremente deliberar quanto aos quinhões que aceita e
aos que renuncia.

O art. 1.808, § 2º, do CC dispõe que aquele que sucede a mais de um título (ou seja, aquele que, ao
mesmo tempo, é herdeiro e legatário) pode aceitar um, alguns ou todos os quinhões hereditários. Seria
isso aceitação parcial? Para Chaves, nesse caso não há aceitação parcial, mas aceitação integral de cada
um dos títulos.

2.5.2. Espécies de aceitação


A teor dos Arts. 1.805 e 1.807, CC529 existem três espécies de aceitação:
i. Aceitação expressa:
A aceitação expressa tem de ser por escrito (mediante escritura pública, escrito particular ou mani-
festação no processo de inventário). Essa modalidade é raríssima. Ninguém faz isso.
ii. Aceitação tácita:
A mais comum de todas é a aceitação tácita que decorre de comportamento positivo da qualidade
de herdeiro.

529 CC, art. 1.805: “A aceitação da herança, quando expressa, faz-se por declaração escrita; quando tácita, há
de resultar tão-somente de atos próprios da qualidade de herdeiro. § 1o Não exprimem aceitação de herança os atos
ficiosos, como o funeral do finado, os meramente conservatórios, ou os de administração e guarda provisória. § 2o
Não importa igualmente aceitação a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais co-herdeiros.”.

810
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, é modalidade comportamental, decorrente da prática de um ato que indica a vontade de


aceitar. Ex.: outorga de procuração a um advogado para requerer a abertura do inventário, cessão de di-
reitos hereditários etc.
O CC adverte que não induz aceitação tácita a prática de atos meramente conservatórios ou oficio-
sos, como a remoção de bens ou o pagamento das despesas com funeral. Isso porque estes atos decorrem
muito mais de uma finalidade moral do que jurídica.
iii. Aceitação presumida:
Aceitação presumida é a que decorre do silêncio do réu na actio interrogatória, encontra previsão
no Art. 1.807,CC530.
Ação interrogatória é a ação promovida pela pessoa interessada em saber se o herdeiro ou legatário
aceitará o patrimônio transmitido. Uma pessoa pode ter interesse em saber se alguém aceitará ou não a
herança? O credor do herdeiro ou do legatário, por exemplo, pode ajuizar tal demanda, pois tem total
interesse em saber se haverá aceitação.
A ação interrogatória somente pode ser promovida 20 dias depois da abertura da sucessão. Trata-
se de um prazo concedido pela lei ao herdeiro para reflexão, tendo em vista a perda de um ente querido.
Ultrapassado o prazo de 20 dias sem que o herdeiro, espontaneamente, diga se aceitará ou não a he-
rança, o interessado propõe ação interrogatória. O juiz citará o herdeiro ou legatário para dizer, no pra-
zo não superior a 30 dias, se aceitará ou não a herança.
Citado, o herdeiro ou legatário pode dizer expressamente que aceita, dizer expressamente que re-
nuncia ou permanecer calado. Nesta última hipótese, presume-se que ele aceitou, em manifesta ex-
ceção ao Art. 111, CC.
Isso porque ninguém pode renunciar pelo silêncio. A aceitação presumida, portanto, é a que decor-
re do silêncio do réu na ação interrogatória. Isso é algo raríssimo.
O sistema jurídico brasileiro admite dois tipos de aceitação: direta e indireta (veja que é amplo o
direito de deliberar sobre a aceitação). Direta é a aceitação realizada pessoalmente pelo herdeiro ou lega-
tário, ou por procurador. É a aceitação realizada no próprio nome do herdeiro ou legatário. Indireta é a
aceitação realizada, em nome próprio, por um terceiro, não herdeiro: se o herdeiro renuncia à herança, o
credor dele pode, em nome próprio, aceitá-la, no limite do seu crédito (caso contrário, haveria enrique-
cimento sem causa). O remanescente (que não entrou no limite do crédito) será redistribuído ao espólio,
pois já foi dele renunciado.
Portanto, o interesse prático da ação interrogatória é forçar o herdeiro a dizer que renuncia à he-
rança, para que o credor possa aceitá-la.

530 CC, art. 1.807: “O interessado em que o herdeiro declare se aceita, ou não, a herança, poderá, vinte dias

após aberta a sucessão, requerer ao juiz prazo razoável, não maior de trinta dias, para, nele, se pronunciar o herdei-
ro, sob pena de se haver a herança por aceita.”.

811
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

2.6. Renúncia da herança

2.6.1. Conceito
Renúncia é o ato de despojamento da herança, pelo qual o herdeiro ou legatário repudia a trans-
missão automática. Toda renúncia é sempre expressa.
Conforme visto, não se admite renúncia tácita ou presumida. Ela é sempre irrevogável e irretratável
e produz efeitos retroativos. Renunciando o herdeiro, cessa a transmissão automática. Um ato com efei-
tos tão drásticos precisa estar acobertado por requisitos de validade, que carreiam à nulidade absoluta do
ato em caso de descumprimento.

2.6.2. Requisitos de validade


São requisitos para a validade da renúncia:
i) escritura pública ou termo judicial:
A herança, como ressaltado anteriormente, é um bem imóvel. Assim, a renúncia somente poderá
ser realizada por instrumento particular se o valor da herança não ultrapassar 30 salários mínimos (art.
108 do CC). Caso contrário, deverá ser feita por escritura pública ou termo judicial:

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios
jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais so-
bre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Por “termo judicial” entende-se que é necessária a efetiva homologação pelo juiz.
Ademais, renúncia pode ser feita por procuração, desde que a outorga dos poderes seja por escritu-
ra pública, conforme já decidiu o STJ531.
ii) impossibilidade de prejuízo de credores do renunciante, sob pena de aceitação indireta;
iii) capacidade do renunciante, sob pena de nulidade:
Renúncia à herança é renúncia de patrimônio. Por essa razão, depende de capacidade.
Em se tratando de um incapaz, a renúncia somente será válida se houver autorização judicial, ouvi-
do o MP. Veja que há hipóteses em que a renúncia se opera em favor do renunciante (ex.: numa herança
em que o passivo é maior que o ativo, o herdeiro que renuncia não tem despesas com custas, honorários
etc.) O credor que tiver interesse que arque com os gastos.
iv) (polêmico) outorga do cônjuge:
Discute-se na doutrina sobre a necessidade ou não de outorga do cônjuge do renunciante para a va-
lidade da renúncia à herança:

531 (REsp 1236671/SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TER-

CEIRA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 04/03/2013).

812
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

1ª corrente: adotada por autores como Venosa, Tartuce e Zeno Veloso, este corrente enten-
de que é exigível o consentimento do cônjuge do renunciante, salvo se casado no regime de separa-
ção convencional ou participação final nos aquestos, com pacto autorizando. Isso porque a herança
é um bem imóvel. Além disso, o cônjuge do renunciante também pode ser credor dele. É razoável
que ele possa tomar conhecimento da renúncia e exercer seus direitos. Esta é a corrente majoritá-
ria.
2ª corrente: adotada por Maria Helena Diniz, este corrente entende que se dispensa o con-
sentimento do cônjuge, pois a renúncia é um ato personalíssimo. Para a autora, trata-se de um ato
de renúncia à qualidade de herdeiro.
Chaves filia-se à primeira corrente, até por conta da necessidade de preservação familiar (a família
pode ter dívidas, por exemplo).

2.6.3. Espécies de renúncia


A doutrina enxerga dois tipos de renúncia:
i) renúncia abdicativa:
Abdicativa é a renúncia pura e simples. É o ato de despojamento. O herdeiro ou legatário diz: “eu
não quero”. Esta é a renúncia propriamente dita, a regra, de modo que bem é destinado ao acervo heredi-
tário.
Em casos tais, não há incidência de Imposto de Transmissão Inter Vivos contra o renunciante (STJ
REsp 36.076/MG).
ii) renúncia translativa (translatícia ou in favorem):
A renúncia translativa é a que favorece um terceiro, ocorre quando há indicação do beneficiário e
equivale a uma cessão gratuita ou doação.
O herdeiro renuncia, por exemplo, em favor da mãe ou do irmão. A renúncia translativa tem natu-
reza jurídica e se norteia pelas regras de cessão de direitos hereditários (é aceitação e cessão da herança).
Veja que não se trata de uma renúncia propriamente dita. Por isso, haverá incidência fiscal, de dois tribu-
tos (um causa mortis e um inter vivos).

2.6.4. Efeito da renúncia


Inicialmente, importante notar que tanto a aceitação quanto a renúncia à herança são irrevogáveis
(art. 1.812, CC).
Veja-se ainda que não se aceita ou se renuncia a herança em parte, sob condição ou a termo, con-
forme Art. 1.808, CC:

CC, art. 1.808: “Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo. §
1º O herdeiro, a quem se testarem legados, pode aceitá-los, renunciando a herança; ou, aceitan-
do-a, repudiá-los. § 2º O herdeiro, chamado, na mesma sucessão, a mais de um quinhão heredi-
tário, sob títulos sucessórios diversos, pode livremente deliberar quanto aos quinhões que aceita

813
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

e aos que renuncia.”.

Assim, conforme art. 1.810 do Código Civil, a parte do renunciante acresce à dos outros herdeiros
da mesma classe e, sendo ele o único desta, devolve aos da subsequente.
Segundo Flávio Tartuce, esclarecendo o teor do comando, na VI Jornada de Direito Civil (2013)
aprovou-se o Enunciado n. 575, in verbis: “concorrendo herdeiros de classes diversas, a renúncia de
qualquer deles devolve sua parte aos que integram a mesma ordem dos chamados a suceder”
Importante anotar ainda que a renúncia à herança afasta o direito de representação, nesse
sentido, lecinoa Zeno Veloso, “é como se o renunciante nunca tivesse existido.”. A parte que lhe caberia
será redividida pelos outros herdeiros.
Porém, se o renunciante for o único sucessor legítimo da sua classe (grau), ou se todos da mesma
classe renunciarem, poderão seus filhos vir à sucessão.

2.6.4.1. Diagramas exemplificativos532

Flávio Tartuce apresenta alguns exemplos práticos de aplicação das regras acima.

i. A, falecido, tem três filhos, B, C e D, que, em regra recebem 1/3 da herança cada um. Se B
renuncia à herança, a sua parte é acrescida aos herdeiros C e D, que são da mesma classe,
recebendo cada um deles metade da herança.

OBs.: aproveitando a mesma ilustração, se B, renunciante, tiver dois filhos, E e F, os últimos nada
receberão por direito de representação, tema de tópicos posteriores, isso porque a renúncia de seu pai
afastaqualquer direito à herança dos filhos.
ii. A falece deixando dois filhos (B e C) e um neto (E), filho de D. Caso E renuncie à herança, a
sua quota será destinada para B e C, que serão herdeiros de classe anterior.

532 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único / Flávio Tartuce. – 9. Ed. Ver, atual. E ampl. – Rio

de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. P.

814
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii. Se o falecido (A) tiver um único filho (B) renunciante, os seus três filhos (C, D e E) terão di-
reitos sucessórios por cabeça, conforme esquema a seguir, dividindo-se a herança em
três partes:

Nesse caso, verifica-se prática aplicação do Art. 1.811, onde se o renunciante for o único legítimo da
sua classe, ou se todos os outros da mesma classe renunciarem à herança, poderão os seus filhos vir à
sucessão, por direito próprio (por cabeça) e não por direito de representação.

2.7. Petição de herança

A petição de herança é uma ação proposta com a intenção de condenar aquele que recebeu uma he-
rança a entregar posse e propriedade a um herdeiro que foi preterido dela. Caso muito comum é o do
filho não reconhecido.
Trata-se de ação condenatória, com prazo prescricional de dez anos. Lembre-se que não corre pres-
crição contra o absolutamente incapaz. A legitimidade ativa é do herdeiro ou legatário preterido. Tam-
bém podem ajuizar a ação o cessionário, o credor, seu herdeiro e, nos casos de sucessão por representa-
ção, o herdeiro do herdeiro.
A legitimidade passiva é de quem recebeu a herança. Se mais de um herdeiro estiver na posse, ha-
verá litisconsórcio passivo necessário e unitário.

815
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A ação de petição de herança possui dois pedidos, que sempre devem estar presentes: i) reconhe-
cimento da qualidade sucessória do herdeiro preterido; e ii) condenação do réu a devolver ao autor a
posse e a propriedade, no todo ou em parte (porque o réu na ação também pode ser herdeiro, de modo
que terá de devolver a propriedade ou a posse em parte).
Procedente o pedido na ação de petição da herança, não é necessário o ajuizamento da partilha, re-
solvendo-se ela no próprio cumprimento de sentença (art. 475-I e seguintes do CPC).
O réu, na ação de petição de herança, pode ser um herdeiro aparente. Ex.: “A” faleceu, sem deixar
filhos. Quem arrecada a herança são os pais (ascendentes), que então vendem a “C”, terceiro de boa-fé.
Depois, é promovida ação de investigação de paternidade post mortem, cumulada com petição de heran-
ça, que resta julgada procedente, reconhecendo o estado de filiação e condenando os avós a devolverem a
herança ao neto. Mas a herança já está com terceiro de boa-fé. Assim, se o herdeiro aparente celebra ne-
gócio com terceiro de boa-fé, este terceiro estará protegido em relação aos efeitos da petição da herança
(ela não conseguirá alcançá-lo). O objetivo é conferir segurança jurídica. Nesse exemplo, o Código de-
termina a proteção do terceiro de boa-fé, devendo o legítimo herdeiro exercer o direito de regresso contra
o herdeiro aparente.
Por outro lado, se o herdeiro aparente estava de boa-fé e pagou legados ou dívidas do falecido, ele
não será obrigado a repetir o pagamento. A regra segundo a qual quem paga mal paga duas vezes não se
aplica ao herdeiro aparente de boa-fé. Mas se ele celebra negócio com terceiro, é preciso que tal negócio
tenha sido oneroso, pois se for gratuito presume-se fraude (art. 159 do CC):

Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a in-
solvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.

3. Da sucessão legítima
3.1. Introdução: Tabela comparativa dos sistemas sucessórios

COMO ERA: CC/16 e Leg. Especial: COMO FICOU: CC/2002

Não existia a concorrência sucessória do cônjuge e do No CC/2002, foi introduzida a concorrência sucessória
companheiro (em relação aos descendentes e do cônjuge (art. 1.829, CC) e do companheiro (art.
ascendentes). 1.790, CC- declarado inconstitucional pelo STF).

816
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A ordem de sucessão legítima estava prevista no art. Está agora no art. 1.829 do CC/2002:
1.603 do CC/1916 de um modo bem simples: I)Descendentes + cônjuge (depende do r. de bens);
I)Descendentes; II) Ascendentes + cônjuge;
II) Ascendentes; III) Cônjuge;
III) Cônjuge; IV) Colaterais (até 4º grau).
IV) Colaterais;
V) Município, DF e União.
Havia previsão de um usufruto vidual, em favor do O usufruto vidual foi substituído pela concorrência
cônjuge sobrevivente (art. 1.611 do CC/1916). sucessória.

A sucessão do companheiro estava prevista nas leis: A sucessão do companheiro foi tratada pelo art. 1.790 do
- Lei 8.971/1994; e CC, posteriormente declarado inconstitucional pelo STF
- Lei 9.278/1996. (Informativo 864). O companheiro deve ser
“Equiparado ao cônjuge” incluído no art. 1.829, CC, ao lado do cônjuge
O CC/1916 reconhecia o direito real de habitação em O CC/2002 reconhece o direito real de habitação do
favor do cônjuge somente no regime da comunhão cônjuge em qualquer regime de bens (art. 1.831).
universal (art. 1.611).
O art. 7º, § único da Lei 9.278/1996 previa o direito No CC/2002, não há previsão expressa do direito real
real de habitação do companheiro. de habitação do companheiro. Mesmo assim, o
companheiro tem esse direito, seja por aplicação do art.
7º, parágrafo único da Lei 9.278/1996, que não foi
revogado, seja por aplicação analógica do art. 1.831
do CC/2002.
CC/1916 - Herdeiros necessários (art. 1.721): CC/2002 - Herdeiros necessários (art. 1.845):
- Descendentes; - Descendentes;
- Ascendentes. - Ascendentes;
- Cônjuge.
Nas palavras de Luiz Paulo Vieira de Carvalho, “o
cônjuge é a grande estrela sucessória no CC/2002”,
pois se tornou herdeiro necessário, concorre com
ascendentes e descendentes, possui a reserva da quarta
parte, além de ter o direito real de habitação em
qualquer regime de bens.
Com a decisão do STF, o companheiro passou a
dividir esse papel.

3.1.1. Sucessão do companheiro


O tratamento da sucessão do companheiro era tratado no Art. 1790, sendo que conforme já citado
acima, o STF entendeu que tal Art. é inconstitucional, devendo o companheiro ser incluído ao lado do

817
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

cônjuge no rol do art. 1.829 (incisos I, II e III), inclusive se houver uma relação homoafetiva, conforme
Informativo n. 864 do STF - RE 646.721 e RE 878.694.
Nesse sentido, atualmente ocorre um debate na doutrina sobre a equiparação total entre o casa-
mento e a união estável. Sobre a equiparação, há três correntes:
i. Total (Maria Berenice Dias e Zeno Veloso) – É herdeiro necessário;
ii. Para fins sucessórios (Giselda Hironaka e Flávio Tartuce – Enunciado 641, VIII da JDC533)
– É herdeiro necessário, essa tese encontra respaldo no STJ534;
iii. Para os fins do art. 1.829, CC (Mário Delgado) – O companheiro não é herdeiro necessário.

3.2. Ordem de vocação sucessória

A ordem de vocação sucessória é o rol dos sucessíveis, ou seja, das pessoas que participam da su-
cessão por força de lei, independentemente da vontade do autor da herança (a qual é irrelevante). Em
outras palavras, a ordem de vocação sucessória estabelece a sucessão legítima.
Importante observar, desde logo, que não apenas os herdeiros necessários sucedem por força de
lei, mas também os facultativos. São herdeiros necessários os descendentes, ascendentes e cônjuge:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Ao lado dos necessários, estão os facultativos, que são o companheiro e os colaterais, até o quarto
grau. A natureza de herdeiro necessário do companheiro é algo a ser levado em prova subjetiva. Em pro-
va objetiva, deve-se ficar com a letra da lei.
Os herdeiros facultativos podem ser afastados por simples disposição testamentária. Já os herdei-
ros necessários somente podem ser afastados por indignidade ou por deserdação. Evidentemente, os
facultativos podem também ser afastados por indignidade. Mas o simples testamento nunca poderá alijar
o herdeiro necessário, cuja existência limita a vontade do autor da herança.
A ordem de vocação sucessória no Código de 1916 era a seguinte:
i) descendente;
ii) ascendente;
iii) cônjuge sobrevivente (a Lei 9.278/1996 acrescentara o companheiro sobrevivente, colocando-os
no mesmo patamar);
iv) colaterais até o quarto grau;
v) Fazenda Pública.

533 Enunciado n. 641 da VIII Jornada de Direito Civil: “A decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou

a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união
estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a soli-
dariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do
ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável.”.
534 REsp 1.337.420/RS - REsp 1.139.054/PR; - REsp 1.357.117/MG; - REsp 1.332.773/MS; Agravo Interno no

REsp 1.318.249/GO, publicado em 04/06/2018.

818
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No CC/16, este rol era sucessivo, de modo que somente eram convocados os ascendentes na ausên-
cia de descendentes. Desse modo, o cônjuge e o companheiro somente seriam convocados na ausência de
descendentes e ascendentes. Veja que não se trata de algo muito comum. Justamente por herdarem so-
mente em situações excepcionais, o CC/16 resolveu realizar uma compensação ao cônjuge e ao compa-
nheiro, estabelecendo o chamado “direito de usufruto vidual”.
Usufruto vidual significa o usufruto decorrente da viuvez. Usufruir é retirar as utilidades de um
bem alheio. Como visto, o usufruto pode incidir sobre um patrimônio. Assim, o cônjuge e o companheiro
tinham o direito de administrar e retirar todas as utilidades do patrimônio alheio (na medida em que
transmitido para o descendente ou o ascendente).
O percentual era uma agressividade: a depender o regime de bens, ele chegava a ter direito de usu-
fruto vidual sobre ½ ou de ¼ da herança. Na redação originária do CC/16, isso não tinha relevância, pois
o casamento era indissolúvel, até 1949 era proibido reconhecer filho havido fora do casamento e, até
1948, filho adotivo não tinha direito de receber herança. Ou seja, não havia maiores problemas sucessó-
rios, pois o descendente que recebia a herança era filho do cônjuge ou do companheiro sobrevivente. O
direito real de usufruto vidual nunca havia causado problemas, até que em 1977, através de emenda cons-
titucional, passou-se a admitir o divórcio no Brasil.
A partir de então, o cônjuge ou o companheiro sobrevivente não seria mais, necessariamente, o as-
cendente do descendente que recolhe a herança. Eles passaram a ter o usufruto e a administração de
bens transmitidos a um descendente, que poderia não ser seu filho. E o pior: esse descendente poderia,
inclusive, ser completamente estranho ou não se dar com o sobrevivente (ex.: o pai larga a mãe para ficar
com a piriguete).
O usufruto vidual, portanto, virou fonte de conflitos.
Projetando isso ao âmbito de uma empresa (cuja administração é importante), havia a seguinte
consequência: falecido o empresário, os filhos passavam a ser donos da empresa, mas quem administra-
va e retirava os frutos da atividade era o cônjuge sobrevivente, que, além de poder não ser pai ou mãe dos
descendentes, podia com eles não se dar.
Percebendo que o usufruto vidual era fonte de conflitos e estava em rota de colisão com o direito de
propriedade, o CC/02 modificou a lógica do sistema, extinguindo aquela figura e criando uma nova or-
dem de vocação sucessória. Justamente porque, com o fim do usufruto vidual, o cônjuge ou herdeiro te-
ria remotas chances de herdar, o legislador de 2002 optou por compensá-lo, concedendo-lhe herança.
Assim, hoje, a nova ordem sucessória é a seguinte (art. 1.829 combinado com o art. 1.790 do Código
Civil):
i) descendente mais cônjuge ou companheiro;
ii) ascendente mais cônjuge ou companheiro;
iii) cônjuge sobrevivente;
iv) colaterais até o quarto grau mais companheiro;

819
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

v) companheiro sobrevivente (sozinho).


Dessa nova ordem de vocação hereditária, é possível extrair três conclusões: i) a Fazenda Pública,
em ótima hora, deixou de ser herdeira. O motivo é lógico: tecnicamente, ela não é herdeira, mas recebe
na ausência de herdeiros; ii) quebrou-se a paridade sucessória entre cônjuge e companheiro: agora, côn-
juge e companheiro não estão em situação de igualdade (se isso é constitucional ou não, é outra discus-
são, que será estudada a seguir); e iii) o cônjuge foi o maior privilegiado; depois, o companheiro.
Quem mais perdeu foi o ascendente. Atribuiu-se herança para o cônjuge e o companheiro retiran-
do-se do descendente e do ascendente. Note que o CC/2002 está retirando o patrimônio de um filho para
entregar a um cônjuge ou companheiro que não necessariamente será pai desse descendente.
Adiante, será estudada cada uma das regras da ordem vista acima.

3.3. Sucessão do descendente

A sucessão do descendente é ilimitada quanto aos graus. Ou seja, ela alcança filho, neto, bisneto
etc. Mas, se por um lado a sucessão do descendente não tem limite, por outro ela ganha regras norteado-
ras. São duas:
i. Aplicação do princípio constitucional da igualdade:
Os descendentes de mesma classe (grau) têm os mesmos direitos sucessórios, conforme determina
o Art. 1.834:

CC, art. 1.834: “Os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus as-
cendentes.”.

Foi essa regra que resolveu o problema do filho adotivo.


Com base neste princípio defende-se a posição segundo a qual o embrião de laboratório tem direito
sucessório, ainda que não esteja no útero no momento da abertura da sucessão (art. 1.798):

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertu-


ra da sucessão.

ii. O grau mais próximo afasta o descendente mais remoto:


Ou seja, se há filhos, não são chamados os netos; se há netos, não são chamados os bisnetos; e as-
sim sucessivamente, conforme prevê o Art. 1.833, CC:

CC, art. 1.833: “Entre os descendentes, os em grau mais próximo excluem os mais remotos, sal-
vo o direito de representação.”.

Há, todavia, uma exceção: nos casos de sucessão por representação, é possível haver re-
presentantes de duas classes diferentes.
Importante lembrar que o direito de representação apenas desce, não sobe (art. 1.852 do
CC), mas, eventualmente, admite-se na linha colateral/transversal.

820
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Lembre-se que os três casos de sucessão por representação são indignidade, deserdação e pré-
morte. Neles, excepcionalmente, filhos e netos podem suceder juntos.
A indignidade e a deserdação somente geram sucessão por representação para o descendente. Se a
Suzane Von R. tivesse um filho no momento da morte dos pais, ele herdaria. Todavia, ela não tinha fi-
lhos, mas avós, que não receberam no lugar dela. Se o indigno não possuir descendente, ele é eliminado.
O irmão de Suzane recolheu toda a herança sozinho, na qualidade de descendente dos pais.
A pré-morte, por outro lado, gera direito de representação para qualquer sucessor. Imagine que
Suzane não houvesse matado os pais. Se ela viesse a falecer antes dos pais, sem filhos, com a morte dos
pais os avós recolheriam a herança. Veja que, no caso de pré-morte, o direito de representação não é
apenas do descendente.

3.3.1. As avoengas
Conforme visto, em regra, os filhos sucedem por cabeça (per capita), e os netos, por estirpe (in stir-
pes).
Entreatno, se todos os filhos são pré-mortos que deixam filhos, ou seja, netos do finado, estes rece-
berão quotas iguais, por direito próprio, operando- se a sucessão por cabeça, pois encontram-se todos no
mesmo grau.
Essas quotas chamam-se avoengas, por serem transmitidas diretamente do avô para os netos. Os
netos estão excluídos se não há filho premorto, conforme esquema abaixo:

3.4. Sucessão do ascendente

A sucessão do ascendente, por sua vez, é norteada por três regras:


i. aplicação da igualdade entre os ascendentes (não a constitucional, mas do CC mesmo):
Essa igualdade vem por uma regra de simetria: se há igualdade entre os descendentes, deve haver
entre os ascendentes, já que a sucessão, neste caso, será simétrica. Pouco interessa, portanto, se o pai é
biológico ou adotivo. É pai e terá direito sucessório.

821
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, havendo igualdade de grau e diversidade de linhas, os ascendentes da linha paterna herdam
a metade, cabendo a outra metade aos da linha materna.
Segundo Flávio Tartuce nesse ponto surge a questão a ser resolvida quanto à multiparentalidade, o
tema é tratado por Anderson Schreiber.
Shreiber propõe a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entendimento
partilhado por Tartuce, de modo que a herança deve ser dividida de forma igualitária entre todos os as-
cendentes, sejam biológicos ou socioafetivos. Nesse sentido o Enunciado n. 642 da JDC535.
ii. O mais próximo afasta o mais remoto, sem distinção de linhas, de modo que, se o falecido
deixou pais, não são chamados os avós; havendo avós, não serão chamados os bisavós; e as-
sim por diante:

CC, art. 1.836: Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concor-
rência com o cônjuge sobrevivente. § 1º Na classe dos ascendentes, o grau mais próximo exclui
o mais remoto, sem distinção de linhas §2º Havendo igualdade em grau e diversidade em linha,
os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna.”.

Não há direito de sucessão por representação no caso do ascendente. Ou seja, a ausên-


cia de um não gera representação. Aberta uma sucessão, sem descendentes, recebem o pai e a mãe. Se o
pai for pré-morto, os pais do pai não recebem. A mãe recebe sozinha. O direito de representação é da
sucessão do descendente. Na sucessão do ascendente não há que se falar em direito de sucessão por es-
tirpe.
iii. Divide-se a sucessão do ascendente em linhas:
Trata-se da única sucessão dividida em linhas do sistema jurídico brasileiro. São linhas sucessórias
a paterna e a materna. Só interessa a divisão em linhas quando se fala na sucessão a partir dos avós. Ex.:
“A” falece sem deixar descendentes. Deixa, contudo, ascendentes e um patrimônio de 100. Se deixou pai
e mãe, vai 50 para cada um. Se apenas pai, vai 100 para o pai. Se deixou dois avós paternos, de um lado e
um só avô materno, do outro, 50 irá para o avô materno e 25 para cada um dos avós paternos.
Se não há representante numa linha, portanto, a outra acrescerá. No exemplo, se o sujeito deixa
dois avós paternos, nenhum materno e dois bisavós maternos, somente os avós paternos receberão. Não
há representação, de modo que os bisavos maternos nada receberão. Não havendo representante numa
linha, a outra linha acresce.
Nesse sentido Flávio Tartuce apresenta o seguinte diagrama:

Enunciado nº 642 – JDC: “nas hipóteses de multiparentalidade, havendo o falecimento do descendente


535

com o chamamento de seus ascendentes à sucessão legítima, se houver igualdade em grau e diversidade em linha
entre os ascendentes convocados a herdar, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genito-
res”.

822
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.5. Sucessão do cônjuge

3.5.1. Noções gerais


Para entender a sucessão do cônjuge, deve-se partir de uma premissa: o cônjuge, além de meeiro,
tornou-se também herdeiro. Meeiro a depender do regime de bens; e herdeiro, por força de lei (indepen-
dente da vontade, portanto), na qualidade de herdeiro necessário (porque não pode ser afastado por tes-
tamento) e permanente (porque herda junto com o ascendente e o descendente, ou sozinho, se não hou-
ver ascendente ou descendente). Assim, o cônjuge sempre herda.
O direito sucessório do cônjuge não permite renúncia antecipada à herança, por exemplo, no pacto
antenupcial. Se ocorrer, tal renúncia será nula. Somente é possível renunciar à herança depois de aberta
a sucessão (art. 426 do CC, que traz a regra da proibição do pacta corvina).

3.5.2. Três tipos de sucessão para o cônjuge


O cônjuge herda segundo três combinações: i) concorrendo com descendentes; ii) concorrendo
com ascendentes; e iii) sozinho.

3.5.2.1. Cônjuge concorrendo com os descendentes


Concorrendo com os descendentes, o direito do cônjuge à herança dependerá do regime de bens do
casamento. São três os regimes que obstam a concorrência do cônjuge com o descendente:
i) comunhão universal de bens: nela, o cônjuge já tem metade de tudo, de modo que ele não precisa
de herança;
ii) comunhão parcial sem bens particulares: nesta hipótese, na prática, haverá uma comunhão uni-
versal (se não há nenhum bem particular, é porque todos os bens são comuns);
iii) separação obrigatória de bens (ex.: maior de setenta anos; aquele que precisa de autorização pa-
ra casar etc.).

823
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O cônjuge não tem direito sucessório com o descendente nessas hipóteses, pois o CC estabeleceu,
no art. 1.829, I, que, concorrendo com o descendente, o cônjuge somente terá direito à herança sobre os
bens particulares. Isso é lógico, na medida em que sobre os bens comuns ele já tem meação:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge [OU COMPANHEIRO] sobrevivente, salvo


se casado este [OU SE VIVER EM UNIÃO ESTÁVEL] com o falecido no regime da comunhão
universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime
da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.”; (...)

Atenção! Na concorrência do cônjuge com o descendente, quando houver meação, não haverá he-
rança, e vice versa. Quem herda não meia; quem meia, não herda.
Assim, imperioso não confundir meação com herança. Meação é instituto de Direito de Família (vi-
da); herança é instituto do Direito das Sucessões (morte).
Mas essa regra somente serve para os bens comuns. Sobre os bens particulares, haverá herança do
cônjuge, concorrendo com os filhos; sobre os comuns, haverá meação. Ex.: um homem morre, deixando
filhos e esposa. Tinha um bem comum e um particular. A viúva terá meação sobre o bem comum e her-
dará, junto com os filhos, o bem particular.
O espírito do Código, portanto, é que quando há meação, não há concorrência, pois, o cônjuge já
está amparado. Logo, se nesses três regimes não há concorrência, em todos os demais há: i) separação
convencional (oriunda do pacto); ii) participação final nos aquestos; e iii) comunhão parcial com bens
particulares.
Ademais, Zeno Veloso afirma que é praticamente impossível que alguém casado pela comunhão
parcial morra sem deixar bens particulares (exemplos: celular, relógio, roupas).
Nesse sentido, no regime da comunhão parcial, havendo bens particulares, discute-se sobre quais
bens diz respeito concorrência. Na doutrina, formaram-se três correntes:
i. Bens particulares, conforme Enunciado n. 270 da III JDC536, em posição apoiada por
Zeno Veloso, Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Mário Delgado, Rolf Madaleno e
Flávio Tartuce. Atualmente, essa é a corrente majoritária seguida pelo STJ537.
ii. Todos os bens (bens particulares e bens comuns): posição adotada por Francisco
Cahali, Maria Helena Diniz e Guilherme Calmon Nogueira da Gama.

536 Enunciado n. 270 da III Jornada de Direito Civil: “O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente

o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação con-
vencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido
possuísse particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação)
ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.”.
537 (STJ - REsp: 1.368.123/SP, 2012/0103103-3, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Relator(a) p/ Acórdão

Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 22/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe
08/06/2015)

824
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

iii. Bens comuns: Maria Berenice Dias.


Seguindo, na separação convencional, os cônjuges querem que o patrimônio seja próprio, não se
misturando com o do novo cônjuge (ex.: o pai se separa e quer casar de novo, mas preservando o direito
dos filhos). Há blindagem (separação) do patrimônio. Entretanto, como nessa hipótese todos os bens do
falecido serão particulares, o cônjuge terá direito à herança sobre eles. Perceba que o que a autonomia
privada quis, a lei não permitiu.
Em razão disso, há discussão acerca de eventual violação à autonomia privada caso haja atribuição
de direito sucessório ao cônjuge casado no regime da separação convencional.
Em um primeiro momento, o STJ entendeu que não, entretanto, atualmente, a Corte entendeu que,
na separação convencional, há concorrência sucessória (meação é diferente de herança). A separação
convencional não se projeta post mortem538.
Finalmente, no caso da separação obrigatória, a ideia é proteger o cônjuge do “golpe do baú mortis
causa”, ou seja, evitar o casamento de cunho patrimonial e não afetivo, com vistas à obtenção do patri-
mônio dele após a morte, pelo cônjuge sobrevivente. Neste caso, tudo vai para os descendentes.
Flávio Tartuce alera para a “reserva da quarta parte da herança”, regra que informar que em con-
corrência com os descendentes, o cônjuge (ou companheiro) receberá a mesma quota desses, prevista no
Art. 1.832, CC:

Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge qui-
nhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta par-
te da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

Além disso, terá direito a 1/4 da herança se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer, en-
tretanto, se o cônjuge concorre com filhos só do autor da herança (filhos exclusivos), não terá a reserva
de 1/4.
Nesse sentido, o percentual sucessório do cônjuge concorrendo com o descendente é o mesmo atri-
buído ao descendente, assegurado o mínimo de um quarto (art. 1.832 do CC). Essa garantia de ¼, toda-
via, somente existe se o cônjuge for o pai ou a mãe dos descendentes com quem estiver concorrendo. Se
não for, não ela não existe.
Ex.: “A” morreu, deixando sete filhos e a viúva. Se os sete filhos são também da viúva, ela leva ¼ da
herança. Agora, se os sete filhos não são dela, ela fica com 1/8 do total.
No caso de “filiação híbrida, ou seja, a hipótese de haver filhos do de cujus com o cônjuge sobrevi-
vente e também filhos tidos por ele com outra pessoa.

538 (STJ - REsp: 1.382.170 SP 2013/0131197-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento:

22/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 26/05/2015)

825
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, nos casos em que há concorrência do cônjuge sobrevivo com descendentes comuns (ao côn-
juge falecido e ao cônjuge sobrevivente) e com descendentes exclusivos do autor da herança, a doutrina
diverge, uma vez que o Código não responde a questão de qualquer maneira, existindo duas correntes:
i. A primeira corrente defende a ideia de que, nesses casos de filiação híbrida, todos os
descendentes deveriam ser tratados como comuns, para fins de reserva da quarta
parte da herança para o cônjuge sobrevivo.
Entendimento seguido por Francisco José Cahali e Silvio Venosa.
ii. Uma segunda corrente propõe a divisão proporcional da herança, segundo a quantidade
de descendentes de cada grupo: resguardar-se-ia a quarta parte da herança ao cônjuge so-
mente com relação aos filhos comuns, e fazendo-se a partilha igualitária, sem aquele míni-
mo de um quarto, com relação aos herdeiros.
Perfila-se à esse entendimento Cristiano Chaves, sustentando ainda que a pedra de toque dessa
matéria é que o dispositivo viola a igualdade entre os filhos, pois trata de modo desigual os filhos comuns
e não comuns.
iii. Uma terceira e preponderante parcela da doutrina sustenta que não assiste ao
cônjuge o direito ao benefício se existirem, concomitantemente, descendentes comuns
e unilaterais, tendo em vista que o Código Civil assegura ao cônjuge o direito à quota míni-
ma somente quando for ascendente de todos os herdeiros descendentes do falecido.
Trata-se do entendimento adotado por Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Luiz Paulo Vieira
de Carvalho, Mario Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Zeno Veloso, Euclides de Oliveira, Sebastião
Amorim, Flávio Tartuce e previsto no Enunciado 527 da V Jornada de Direito Civil539.
Aplica-se a separação obrigatória à união estável? O STJ vem entendendo que o regime de separa-
ção obrigatória somente se aplica na união estável para o maior de 70 anos. E, ainda assim, há somente
um acórdão nesse sentido. As demais hipóteses não se aplicam (as causas suspensivas não são aplicáveis
à união estável e não se exige autorização do juiz para a existência da união estável).
Em resumo Flávio Tartuce apresenta a seguinte tabela:
Regimes em que o cônjuge (ou Regimes de bens em que o cônjuge (ou
companheiro) concorre com os companheiro) não concorre:
descendentes:

539 Enunciado 527 da V JDC: “Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada

a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida.”.

826
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

 Regime da participação final nos aquestos;  Regime da comunhão universal de bens;


 Regime da separação convencional (decorrente Regime da separação obrigatória (art. 1.641,
de pacto antenupcial); CC);
 Regime da comunhão parcial de bens,  Regime da comunhão parcial de bens, não
havendo bens particulares. havendo bens particulares.

3.5.2.2. Cônjuge concorrendo com os ascendentes


Na hipótese de cônjuge concorrendo com os ascendentes, o direito sucessório independe do
regime de bens.
Dessa forma, qualquer que seja o regime, o cônjuge concorre com o ascendente, sem limitação. O
cônjuge, neste segundo caso, terá meação (a depender do regime de bens) e herança, sendo que o direito
à herança incidirá sobre todo o patrimônio (bens comuns e particulares).
Ex.: “A”, antes de casar, tinha um terreno. Depois de se casar, compra um apartamento. Falece,
deixando a viúva e os pais. A viúva terá direito à metade do apartamento, a título de meação. O restante
dos bens deixados será somado (o terreno mais a metade do apartamento) e dividido entre a viúva e os
pais. A viúva terá duas incidências patrimoniais sobre o apartamento.
O percentual sucessório do cônjuge que concorrer com um ascendente será metade. Se houver pai e
mãe, esse percentual cai para um terço (art. 1.837 do CC):

Art. 1.837. Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da he-
rança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele
grau.

Nesse sentido, Flávio Tartuce apresenta os seguintes diagramas:

3.5.2.3. Cônjuge sozinho


Não havendo descendentes nem ascendentes, o cônjuge herda tudo sozinho, independentemente
do regime de bens.

827
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Observação: o direito sucessório do cônjuge cessará se houver divórcio, separação judicial ou sepa-
ração de fato há mais de dois anos (art. 1.830 do CC):

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da
morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois
anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobre-
vivente.

De acordo com o dispositivo, o separado de fato há mais de dois anos pode ter direito sucessório se
provar que a separação não foi por culpa sua, mas do outro.
A doutrina chama isso de “culpa mortuária” ou “culpa funerária”: é a possibilidade de o cônjuge
sobrevivente provar que o casamento se desfez sem culpa sua e por culpa do outro.
Perceba que o cônjuge sobrevivente terá de provar a culpa de uma pessoa que já morreu. Chaves
considera a regra contraditória e inconstitucional, por violar o devido processo legal, na medida em que
inviabiliza a defesa.
Cônjuge herda: Cônjuge não herda:
Casado, não separado; Divorciado;
Casado, mas separado de fato há até 2 anos; Separado judicialmente (ou extrajudicialmente);
Separado de fato há mais de 2 anos e não foi Separado de fato há mais de 2 anos e o sobrevivente
culpado pelo fim da união. foi culpado pelo fim da união.

O dispositivo, sem dúvida, está em rota de colisão com o art. 1.723, § 1º, do CC, que estabelece a
possibilidade de caracterização da união estável, independentemente de prazo, pela separação de fato:

Art. 1.723 (...) § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de
fato ou judicialmente.

Ora, se há união estável, não há mais que se falar em direito sucessório do outro.
Nesse sentido, parte considerável da doutrina propõe a leitura idealizada da norma (Rolf Ma-
daleno, Maria Berenice Dias, José Francisco Cahali, Zeno Veloso, Giselda Hironaka, José Fernando Si-
mão, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald, Pablo Stolze, Rodrigo Pamplona e Flávio Tartuce):

“ Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge OU AO COMPANHEIRO sobrevivente se,


ao tempo da morte do outro, não estavam separados.”

Com essa leitura idealizada, o artigo torna-se aplicável à união estável.


O STJ vem entendendo, de qualquer maneira, que a simples separação de fato cessa os efeitos do
casamento. A esse respeito, ver o REsp 555.771/SP. Chaves concorda com a posição do STJ. E acrescenta
outro argumento: o cônjuge participar da sucessão de alguém com quem já não convivia gera enriqueci-
mento sem causa.

828
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

3.6. Direito real de habitação do cônjuge e do companheiro

O CC/02 achou pouco conceder ao cônjuge e ao companheiro a meação e a herança. Além de tais
direitos, eles também têm direito real de habitação, que é autônomo. Trata-se do direito de continuar
morando no imóvel residencial único transmitido. Se houver mais de um imóvel, não incidirá o direito de
habitação, por haver direito de preferência.
Cônjuge e companheiro terão direito real de habitação mesmo que não tenham herança e
meação.
O direito de habitação tem oponibilidade erga omnes. Assim, é oponível até mesmo contra o pro-
prietário. Imagine a seguinte situação limítrofe: o sujeito morre, deixando cinco filhos, para os quais pa-
gava pensão. Os filhos não vão mais receber pensão. Ele somente deixou a casa onde morava, com a nova
esposa. Os filhos herdam, levando 5/6 (ela levará 1/6). No entanto, ela ficará morando no imóvel. Os
filhos não podem pedir um aluguel, e ainda que residam debaixo da ponte, morrerão sem ter o usufruto
do imóvel. A mulher somente não pode alugar, tendo de morar. Se cessar a moradia, extingue-se a habi-
tação.
Seria caso, aqui, de usar a tese da aplicação direta de princípios, valendo-se do princípio da priori-
dade e proteção integral da criança e adolescente, para afastar o direito real e dizer que ele restaria extin-
to, quando violasse direito infanto-juvenil.
Pior: o direito de habitação do cônjuge e o do companheiro decorrem de dispositivos legais diferen-
tes:
i) cônjuge: art. 1.831 do CC:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem
prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

ii) companheiro: art. 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996 (Enunciado 117 da I JDC540):

Art. 7º (...) Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o so-
brevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casa-
mento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.

O STJ541 também entendeu que Código Civil de 2002 não revogou as disposições constantes da Lei
n.º 9.278/96, subsistindo a norma que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente

540 Enunciado 117 da I JDC: “O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter
sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo
art. 6º, caput, da CF/88.”.
541 (STJ, Ag. Rg. no REsp 1436350/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TUR-

MA, julgado em 12/04/2016, DJe 19/04/2016)

829
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal matéria em relação aos conviventes em união está-
vel, consoante o princípio da especialidade.
Por conta disso: i) o direito de habitação do cônjuge é vitalício e incondicionado (ele tem o direito
de continuar ali, mesmo que constitua nova família); ii) o direito de habitação do companheiro é vitalício
e condicionado (se constituir uma nova família, cessa a habitação).
Entretanto, com a decisão do STF acerca da equiparação da união estável ao casamento, a tendên-
cia é colocar o direto real de habitação do companheiro no art. 1.831, CC, o que em tese geraria os exatos
efeitos daquele artigo, equiparando o dirieto ao do cônjuge.
Obs.: Enunciado 271 da III JDC: “O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação nos autos
do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.”.

4. Da sucessão dos colaterais


Os colaterais são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária.
Assim, conforme art. 1.829, IV, CC e art. 1.839, CC, se o falecido não deixou descendentes, ascen-
dentes e cônjuge (ou companheiro), serão chamados a suceder os colaterais até o 4º grau (irmãos, tios,
sobrinhos, primos, tios-avós e sobrinhos-netos).
Além desses parentes, não há direitos sucessórios, tampouco relação de parentesco (art. 1.592 do
CC).
Não há concorrência do cônjuge (ou do companheiro), pois ele exclui os colaterais.

4.1. Regras quanto à sucessão dos colaterais/transversais:

Segundo Flávio Tartuce a sucessão dos colaterais, também chamados de transversais é complexa,
de modo que apresenta-se algumas regras para facilitar o estudo:

4.1.1. Primeira regra


Na classe dos colaterais, os mais próximos excluem os mais remotos, salvo o direito de representa-
ção concedido aos filhos de irmãos (art. 1.840 do CC).
Assim sendo, os irmãos (colaterais de segundo grau) excluem os sobrinhos e tios (colaterais de ter-
ceiro grau). Ainda ilustrando, os sobrinhos e tios (colaterais de terceiro grau) excluem os primos, sobri-
nhos-netos e tios-avós (colaterais de quarto grau).
Porém, se o falecido deixou um irmão e um sobrinho, filho de outro irmão premorto, o último terá
direito sucessório junto ao irmão do falecido vivo, por força do direito de representação.
Esquematizando:

830
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

4.1.2. Segunda regra


Concorrendo irmãos bilaterais (mesmo pai e mesma mãe) com irmãos unilaterais (mesmo pai ou
mesma mãe), cada um destes herdará a metade atribuída àqueles. “Meio irmão herda a metade do irmão
inteiro” (art. 1.841, CC).
Flávio Tartuce observa que os irmãos bilaterais ou germanos são aqueles com mesmo pai e mesma
mãe, os irmãos unilaterais ou meio-irmãos são aqueles com mesmo pai ou mesma mãe.
Se a identidade for de pai, os irmãos são unilaterais consanguíneos; se de mãe, os irmãos são unila-
terais uterinos.
Na doutrina, questiona-se a constitucionalidade dessa previsão, sendo duas correntes:
Pela inconstitucionalidade, Maria Berenice Dias e Paulo Lôbo - Fundamento: art. 227, §6º, CF –
igualdade entre os filhos.
Pela constitucionalidade, Zeno Veloso, José Fernando Simão e Flávio Tartuce.
Veloso ainda ensina que “a solução deste artigo se justifica porque, como se diz, o irmão bilateral é
irmão duas vezes; o vínculo parental que une os irmãos germanos é duplicado. Por esse fato, o irmão
bilateral deve receber quota hereditária dobrada da que couber ao irmão unilateral.”.
Predomina no STJ que o artigo é constotucional visto que tem aplicado a regra naturalmen-
te.542

4.1.3. Terceira regra


Não concorrendo à herança irmão bilateral, herdarão, em partes iguais, os irmãos unilaterais (art.
1.842 do CC). “Irmãos de mesma monta, herdam igual”.
Exemplo: se o falecido deixar quatro irmãos, dois unilaterais uterinos e dois unilaterais consanguí-
neos, cada um destes receberá 25% da herança.

4.1.4. Quarta regra

542 (STJ. REsp 1.203.182/MG (2010/0128448-2), RELATOR: MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERI-

NO, Julg. 19/09/2013, DJe 24/09/2013).

831
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Conforme consta do art. 1.843, caput, do CC, na falta de irmãos, herdarão os filhos destes (sobri-
nhos). Na falta dos sobrinhos, herdarão os tios.
Flávio Tartuce observa que, os sobrinhos têm prioridade sobre os tios, por opção legislativa, apesar
de serem parentes de mesmo grau (terceiro).
Ademais, os §§ do Art. 1.843 preve algumas subregras:
i. Só herdando sobrinhos, a sucessão é por cabeça;
ii. Sobrinho unilateral recebe a metade do bilateral;
iii. Se todos forem bilaterais ou unilaterais, recebem igualmente.
Obs. 1: Havendo outros colaterais ((primos, sobrinhos-netos e tios-avós), a sucessão é proporcio-
nal entre eles, ou seja, receberão partes iguais (Zeno Veloso e Giselda Hironaka).
Há lacuna normativa quanto à matéria, devendo ser resolvida com base no princípio da proporcio-
nalidade (art. 4º, LINDB543).Exemplo: o falecido deixou 2 primos, 1 tio-avô e 2 sobrinhos-netos.

5. Da sucessão testamentária
5.1. O testamento

5.1.1. Introdução
É bem verdade que a sucessão testamentária não é tão comum. Isso por três motivos: i) por ques-
tões religiosas: o povo brasileiro, sob o ponto de vista religioso, não é dado a falar sobre morte (e aquele
que faz testamento terá de fazê-lo); ii) por questões econômicas (o povo brasileiro não tem muito patri-
mônio); e iii) (mais importante) a sucessão legítima já beneficia as pessoas que muito provavelmente o
autor da herança gostaria de contemplar.
Aquele que eventualmente tivesse de transmitir o patrimônio, o faria aos filhos, cônjuge ou compa-
nheiro. Por isso, a sucessão testamentária se torna rara, ficando disponível às pessoas que dispõem de
patrimônio e querem transmiti-lo para quem não foi beneficiado pela sucessão legítima.
Não se pode esquecer, entretanto, que em dois casos podem subsistir concomitantemente as suces-
sões legítima e testamentária: i) quando não há herdeiros necessários, mas o autor da herança não quis
dispor da integralidade de seu patrimônio em testamento; ii) quando houver herdeiro necessário e o titu-
lar quiser elaborar testamento.

5.1.2. Conceito
De inicio Flávio Tartuce assevera que o testamento é o ato sucessório de exercício da autonomia
privada por excelência.

543 LINDB, art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os

princípios gerais de direito.”

832
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Importante salientar que CC/1916 conceituou o testamento no art. 1.626, mas sempre foi criticado
por isso, pois restringia o testamento a um conteúdo patrimonial, entretanto, o CC/2002 não apresenta
um conceito lega.
Assim, papel da doutrina faze-lo, segundo Zeno Veloso o testamento é um negócio jurídico prin-
cipalmente patrimonial, um ato de última vontade em que o testador faz disposição de seus bens (corpó-
reos ou não) para após a sua morte, a título singular ou universal.
Todavia, o CC reserva um complemento importantíssimo: “além de poder formular outras declara-
ções de vontade”. Assim, o conceito de testamento reúne a possibilidade de disposições patrimoniais e
outras declarações de vontade (Art. 1.857, §2º, CC).
Assim, atualmente existem outras manifestações testamentárias com conteúdo extrapatrimonial:
i. Testamento ético: o testador faz recomendações de comportamento.
ii. Testamento digital: diz respeito ao destino ou curadoria dos dados da internet.
iii. Testamento genético: destino e utilização de material genético.
iv. Testamento criogênico: com diretrizes para congelamento e eventual ressuscitação no
futuro, em virtude da evolução e aprimoramento da medicina e de outras ciências, sem a
necessidade de observância de qualquer formalidade quanto ao ato de última vontade
(REsp 1693718/RJ)
É de se observar que todas as outras declarações de vontade (não patrimoniais) que podem estar
contidas em um testamento devem ser interpretadas autonomamente, de modo que a eventual revogação
(quando o testador se retrata) ou invalidade (quando há algum vício) do testamento não as atingirá. Ex.:
o reconhecimento de filho permanece incólume, mesmo que o testamento seja revogado ou anulado.
Todo testamento precisa ser homologado judicialmente. Mas os testamentos particulares e especi-
ais (que serão estudados adiante) não dependem apenas de homologação, mas de ratificação judicial
(que é mais do que isso).

5.1.3. Características
A partir desse conceito, extraem-se as características do testamento:
i) natureza negocial:
Testamento é negócio jurídico, como qualquer outro.
É um negócio jurídico gratuito e causa mortis. Gratuito porque não tem contrapartida (a gratuida-
de é da essência do instituto). Mesmo assim, o testamento permite a imposição de encargo.
ii) caráter personalíssimo:
O testamento tem caráter personalíssimo. Desse modo, toda e qualquer cláusula conjuntiva é nula
de pleno direito. A esse respeito, ver o art. 1.863 do CC:

Art. 1.863. É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo.

833
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Simultâneo é o testamento feito conjuntamente por duas pessoas (ex.: marido e mulher fazem jun-
tos o testamento); recíproco é o testamento em que um faz para o outro; correspectivo é o testamento em
que um faz para o outro condicionalmente (“A” faz para “B” se “B” fizer para “A”). Simultâneo, reciproco
e correspectivo, portanto, são espécies de testamento conjuntivo. E o testamento conjuntivo é sempre
nulo, por conta do caráter personalíssimo que possui o instituto.
iii) unilateralidade:
O testamento, como visto, é unilateral, dependendo da declaração de vontade somente do testador.
A eventual renúncia do beneficiário não acarretará a invalidade do testamento.
iv) solenidade:
O testamento é um negócio solene, formal. Aliás, depois do casamento, é o segundo negócio mais
solene do direito brasileiro (ex.: todo testamento deve ser realizado por escrito). Mas há uma curiosida-
de: apesar de exigir diversas formalidades, permite-se que o maior de dezesseis anos seja testador, inde-
pendentemente de assistência.
Aplicando-se a máxima segundo a qual quem pode o mais pode o menos, se o menor de dezesseis
anos pode ser testador, pode também ser testemunha testamentária, independentemente de assistência.
Há, todavia, um caso em que se admite o testamento sem formalidade nenhuma: o testamento mi-
litar nuncupativo. Trata-se do testamento realizado pelo militar, em combate e ferido. Ele pode ser inclu-
sive verbal.
v) revogabilidade:
Se o testamento é negócio jurídico, ele é por essência revogável. Trata-se de uma característica ine-
rente ao testamento, conforme Art. 1.858, CC)
Desse modo, as cláusulas derrogatórias (ou derrogativas) são nulas de pleno direito. São cláusulas
dessa natureza as que estabelecem a irrevogabilidade do testamento.
Observa Flávio Tartuce que o reconhecimento de filho não pode ser revogado, nem mesmo quando
feito em testamento (CC, art. 1.610).

5.2. Pressupostos do testamento

São pressupostos necessários para a sucessão testamentária: i) proibição de pacto sucessório; ii)
observância da legítima; iii) capacidade testamentária ativa; e iv) capacidade testamentária passiva.

5.2.1. Proibição de pacto sucessório (art. 426 do CC)


É nulo o contrato que tenha por objeto a herança de pessoa viva (o pacta corvina):

Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

Assim, o testamento somente produz efeitos depois da abertura da sucessão. Toda a eficácia do tes-
tamento é post mortem, pois não existe herança de pessoa viva.

5.2.2. Observância da legítima


834
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

No que concerne ao conteúdo patrimonial, assevera Flávio Tartuce que , pelo § 1.º do art. 1.857, os
bens da legítima (bens legitimários), que equivalem a cinquenta por cento do patrimônio do testador ou
autor da herança, não podem ser objeto de testamento.
A legítima deve ser observada se o testador tiver herdeiros necessários (art. 1.845 do CC). São her-
deiros necessários, na letra do CC, descendentes, ascendentes e cônjuge. Já foi tratado o tema relativo ao
companheiro enquanto herdeiro necessário.
Cumpre repetir que a legítima, ordinariamente, será calculada na abertura da sucessão. Mas há du-
as exceções, nas quais o cálculo da legítima tem regra própria:
i) para fins de caracterização de doação inoficiosa (art. 549 do CC):

Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento
da liberalidade, poderia dispor em testamento.

Doação inoficiosa é aquela que excede a legítima. O art. 549 estabelece expressamente que a doa-
ção é nula naquilo que exceder a legítima. Veja que ela não é nula como um todo. Trata-se do princípio
da redução parcial da invalidade, também chamada de isolamento da invalidade: toda vez que um negó-
cio jurídico é nulo numa parte, mas não no resto, a nulidade se restringe àquela parte (art. 184 do CC):

Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o
prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a
das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

A contrario sensu, o art. 549 determina que a doação inoficiosa é válida, naquilo que não exceder a
legítima. Para fins de caracterização de doação inoficiosa, a legítima será calculada no momento da libe-
ralidade.
Isso não prejudica os herdeiros? Ex.: no tempo da doação, o bem representava menos de 50% do
patrimônio do doador, mas, tempos depois, sofrendo variação patrimonial, quando da abertura da suces-
são aquela doação passa a representar 80% do patrimônio transmitido. Na verdade, os herdeiros neces-
sários não estariam prejudicados, pois não existe herança de pessoa viva. São feitos dois cálculos diferen-
tes: para fins de doação, a legítima é calculada no momento da liberalidade; para fins de sucessão, a legí-
tima é calculada na abertura da sucessão.
ii) para fins de colação (art. 544 do CC):

Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adianta-


mento do que lhes cabe por herança.

Colação é levar um bem antecipadamente recebido ao inventário. Toda doação feita de pai para fi-
lho é antecipação de legítima, de modo que esse bem doado terá de ser colacionado no inventário. O limi-
te para a colação serão as últimas declarações do inventário. Não existe a necessidade de colação se o
ascendente expressamente disser que o bem sai da parte disponível.

835
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O cálculo do bem colacionado realiza-se em que momento? Aqui, há um aparente conflito entre o
art. 1.014 do CPC e o art. 2.004, § 1º, do CC. E este aparente conflito é bem solucionado pelo Enunciado
119 da Jornada, que estabelece que, com base na proibição de enriquecimento sem causa (arts. 884 e 885
do CC), o cálculo do valor da colação submete-se à seguinte regra: se o bem ainda estiver no patrimônio
do donatário, o valor será calculado na abertura da sucessão; não mais estando, o valor será o do
tempo da liberalidade.
Mas uma coisa é certa: aqui, há regra específica, que difere daquela segundo a qual a legítima cal-
cula-se no momento da abertura da sucessão.

5.2.3. 4.2.3 – capacidade testamentária ativa


Capacidade testamentária ativa é a capacidade de elaborar um testamento. Logicamente, ela será
verificada no momento da elaboração do testamento, e não no da abertura da sucessão.
Para elaborar um testamento, são necessários dois elementos:
i) ter mais de dezesseis anos de idade (independentemente de assistência);
ii) sanidade mental.
A ausência de qualquer desses requisitos implicará em invalidade. Pode o Tabelião controlá-los de
ofício, na medida em que são de ordem pública.

5.2.4. 4.2.4 – capacidade testamentária passiva


A capacidade testamentária passiva é a aptidão para ser beneficiário de um testamento. Ou seja, é a
aptidão para ser herdeiro ou legatário.
Ela será verificada na abertura da sucessão, e não na elaboração do testamento. Isso é importante
para se perceber que são dois momentos diversos de verificação da capacidade testamentária (na ativa, a
elaboração; na passiva, a abertura da sucessão).
Há duas diferentes regras, no que se refere ao que é necessário para ter capacidade testamentária
passiva (a qual, repita-se, deve ser aferida no momento da abertura da sucessão):
i) podem ser beneficiárias de um testamento as pessoas que têm capacidade sucessória genérica
(art. 1.798 do CC)

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertu-


ra da sucessão.

Como visto, ter capacidade sucessória genérica é ser nascido ou concebido na abertura da sucessão.
Foi debatida, inclusive, a questão da capacidade sucessória do embrião laboratorial, que para a maioria
da doutrina tem tal capacidade.
ii) extensão da capacidade testamentária passiva (art. .1.799 do CC):

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao

836
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

abrir-se a sucessão;

II - as pessoas jurídicas;

III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de funda-
ção.

Podem ser beneficiários de um testamento: i) pessoa jurídica; ii) pessoa jurídica a ser constituída
com o patrimônio transmitido (ex.: fundações); e iii) prole eventual (“o filho que alguém vai ter”), tam-
bém chamada de “concepturo” (note que o nascituro é aquele que já foi concebido; concepturo é aquele
que será concebido).
Atenção! A prole eventual deverá ser concebida no prazo máximo de dois anos, contados da abertu-
ra da sucessão. Veja que não é um prazo para nascer. Se não houver a concepção nesse interregno, haverá
caducidade da cláusula.
Discute-se se, dentro desse prazo de dois anos, seria possível a adoção. Chaves entende que sim, em
razão do princípio constitucional da igualdade, salvo se houver restrição no próprio testamento.
O Código não se contentou em dizer quem são as pessoas que têm capacidade testamentária. Logo
depois de fazê-lo, passou a dizer as pessoas que não têm. A incapacidade testamentária está prevista nos
arts. 1.801 e 1.802:

Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:

I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus
ascendentes e irmãos;

II - as testemunhas do testamento;

III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do
cônjuge há mais de cinco anos;

IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como
o que fizer ou aprovar o testamento.

Art. 1.802. São nulas as disposições testamentárias em favor de pessoas não legitimadas a suce-
der, ainda quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta
pessoa.

Parágrafo único. Presumem-se pessoas interpostas os ascendentes, os descendentes, os irmãos e


o cônjuge ou companheiro do não legitimado a suceder.

A eventual estipulação em favor de qualquer dessas pessoas será nula. Trata-se de proibição (e re-
gra de proibição é de ordem pública). Não podem receber testamento:
i) o Tabelião que lavrou o testamento:

837
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Chaves prefere chamá-lo de autoridade, pois nem sempre o testamento será lavrado perante um
Tabelião. Mas essa é a letra do Código.
ii) as testemunhas testamentárias;
iii) a pessoa que escreveu o testamento a rogo do testador:
O testamento é escrito a rogo, por outra pessoa, por exemplo, nos casos do cego e do analfabeto.
iv) a concubina do testador casado, salvo se estiver separado de fato há mais de cinco anos:
O problema desta regra está na sistematização do Código. Ela está no art. 1.801, III, o qual se mos-
tra em rota de colisão com o art. 1.723, § 1º do CC. Aquela exige que o testador casado esteja separado de
fato há cinco anos, enquanto este determina que a simples separação de fato, independentemente de
qualquer prazo, já caracteriza união estável. Ou seja, se o testador casado já estiver separado de fato, ele
não tem mais concubina, mas união estável.
Numa visão lúdica desse fenômeno, Chaves diria que a separação de fato implica num upgrade afe-
tivo (a pessoa deixa de ser concubina e passa a ser companheira, independentemente de qualquer prazo).
Assim a simples separação de fato confere capacidade à concubina. Logicamente, essa questão será
dificílima para quem faz concurso. O próprio Código diz que não é necessário prazo para a união estável,
como indevidamente exigiu o art. 1.801, III.
v) os descendentes, ascendentes, irmãos e o cônjuge ou companheiro das pessoas acima:
O Código estabeleceu uma presunção de simulação. Assim como não é possível fazer um testamen-
to em favor, por exemplo, do Tabelião, também não é possível realizar um testamento em favor do des-
cendente, ascendente, irmão, cônjuge ou companheiro dele. O nome técnico dessa simulação é “terceiro
interposto” (chamado, na linguagem popular, de “testa-de-ferro” ou “laranja”).
O art. 1.803 traz regra das mais inúteis do Código:

Art. 1.803. É lícita a deixa ao filho do concubino, quando também o for do testador.

Depois de dizer quem são as pessoas incapazes de receber testamento (dentre eles o filho do con-
cubino), ele consegue a proeza de dizer que o pai pode fazer testamento ao seu filho. Note que, indepen-
dentemente de ser filho da concubina, de que se trata o art. 1.803 é do testador.
Apesar de sua redação preconceituosa (“pouco republicana, democrática, igualitária”), o dispositivo
deixa claro que é possível que o testador beneficie em seu testamento herdeiros necessários.
Assim, a capacidade testamentária abrange também os herdeiros necessários, de modo que nada
impede que um pai deixe testamento a um filho, respeitado o limite da legítima.

5.3. Impugnação da validade do testamento e modalidades

Inicialmente observa-se que art. 1.859 do CC prevê um prazo decadencial de 5 anos para impug-
nar a validade do testamento, a contar da data do seu registro.

838
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A posição doutrinária majoritária é no sentido de sua aplicabilidade nos casos de nulidade absoluta
ou relativa (quando não houver prazo específico para a nulidade relativa), em posição encabeçada pelos
Professores Zeno Veloso, Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona e Maria Helena Diniz.
Em posição minoritária, Flávio Tartuce e Nelson Rosenvald entendem que, nos casos de nulidade
absoluta, deve ser aplicado o art. 169 do CC, pelo qual a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo,
de modo que
Obs.: o art. 1.909, CC, prevê prazo decadencial de 4 anos para os casos de dolo, erro e coação
moral.

5.3.1. Modalidades ou formas testamentárias


O Código Civil prevê a existência de duas formas testamentárias: testamentos comuns e especiais.
Comuns são os testamentos realizados nas “condições normais de temperatura e pressão”, ou seja, em
circunstâncias ordinárias, normais, as especiais são os elaborados em circunstâncias extraordinárias que,
por algum motivo, poderiam comprometer a vontade do testador.
São formas testamentárias comuns o testamento público, o cerrado e o particular. São especiais os
testamentos marítimo/aeronáutico e o militar.
Todos eles, cumpre destacar, são formais: têm de observar a forma prevista em lei, sob pena de nu-
lidade. Além disso, esse rol é taxativo: não existem outros tipos de testamento.

5.3.1.1. Testamento público


É aquele lavrado perante o tabelião ou seu substituto legal, feito sob escritura pública, nos termos
do Art. 1.864, CC:

CC, art. 1.864: “São requisitos essenciais do testamento público: I - ser escrito por tabelião ou
por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, poden-
do este servir-se de minuta, notas ou apontamentos; II - lavrado o instrumento, ser lido em voz
alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser,
na presença destas e do oficial; III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testa-
dor, pelas testemunhas e pelo tabelião. Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito
manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade
em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se
mais de uma.”

É lido em voz alta pelo tabelião ao testador e às duas testemunhas em um só ato (princípio da uni-
cidade do ato). A lei possibilita que o testador faça a leitura.
Após a leitura, será assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião (do Tabelionato de
Notas).

839
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Assim, o testamento público tem como grande característica o fato de ser realizado de viva-voz, na
presença de autoridade com função notarial, como os tabeliães e os cônsules, declarando verbal e publi-
camente sua vontade.
Logicamente, esse testamento não pode ser feito por quem é mudo. Em contrapartida, podem rea-
lizar o testamento público o cego e o analfabeto.
Outro detalhe interessante é que, como se trata de registro público, em homenagem ao art. 13 da
CR, esse testamento tem de ser realizado no vernáculo (tem de ser redigido em língua portuguesa):

Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. (...)

O testamento público não pode ser elaborado na forma de perguntas e respostas, partindo do tabe-
lião. Isso comprometeria seu caráter personalíssimo.
Assim, a característica fundante/marcante/mais sensível do testamento público pode ser definida
pela expressão “viva-voz”.
Se o testamento público for elaborado pelo cego e pelo analfabeto, além das testemunhas, exige-se
a presença de uma terceira pessoa, que assinará a rogo dele. Não há dúvidas, portanto, que o testamento
público tem conteúdo público. Ele será declarado em público, na presença de várias pessoas e registrado
em livro público.
O seguinte comentário servirá para todos os testamentos do direito brasileiro: por ser formal e so-
lene, o testamento público exige a presença de duas testemunhas. A única exceção é a do testamento par-
ticular, que reclama a presença de três testemunhas.
Finalmente, Flávio Tartuce ressalta que o STJ tem mitigado as exigências formais legais do testa-
mento público, afastando a nulidade e preservando a autonomia privada.544

5.3.1.2. Testamento cerrado


O testamento cerrado, também chamado de secreto ou místico, é aquele de conteúdo restrito ao
testador (somente o testador conhece o seu conteúdo). Ele é elaborado de maneira personalíssima pelo
testador (sozinho) e apenas entregue ao tabelião na presença das testemunhas. Perceba que nem o tabe-
lião, nem as testemunhas, terão acesso ao seu conteúdo.
Recebido o testamento cerrado, o tabelião imediatamente irá lacrá-lo e registrá-lo, sem dele tomar
conhecimento. As testemunhas serão meramente instrumentárias, ou seja, apenas comporão o ato.
Com isso, pode-se dizer que enquanto a grande característica do testamento público é ser de viva-
voz, a do testamento cerrado é o segredo. Tanto isso é verdade que o CC diz que o testamento cerrado
somente será aberto pelo juiz da Vara das Sucessões.
O dilaceramento do testamento cerrado gera caducidade, a teor do Art. 1.972,CC:

544 (STJ - REsp: 1.677.931 MG 2017/0054235-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento:

15/08/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/08/2017)

840
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

CC, art. 1.972: “O testamento cerrado que o testador abrir ou dilacerar, ou for aberto ou dilace-
rado com seu consentimento, haver-se-á como revogado.”.

Assim, se alguém, indevidamente, abrir um testamento cerrado antes do juiz, haverá ineficácia,
pois o que o testador pretendia era o segredo (se alguém quebra o segredo, o testamento caduca, para
que o testador possa elaborar outro).
Flávio Tartuce assevera que não é necessária a intenção de dilacerar o testamento cerrado, tal fato
pode decorrer do decurso do tempo, de maneira objetiva.
Chaves adere ao entendimento de Caio Mário, para registrar que, se o dilaceramento ocorrer em
momento em que o testador não mais possa manifestar sua vontade e elaborar outro testamento, não
haverá caducidade, mas mera irregularidade. Ex.: o dilaceramento ocorre depois da abertura da suces-
são, por alguém que não o juiz.
O STJ tem mitigado as formalidades legais do testamento público, afastando a nulidade e preser-
vando a autonomia privada 545
Curiosamente, o testamento cerrado pode ser redigido em língua estrangeira. Nesse caso, quando o
juiz o abrir, submetê-lo-á ao tradutor juramentado.
Comentário: existe uma estranha hipótese, envolvendo o testamento cerrado, que não pode passar
despercebida. Trata-se de uma exceção ao segredo a ele inerente (ou seja, uma hipótese em que o conte-
údo do testamento cerrado pode ser conhecido por um terceiro): quando o testador (autor da herança)
sabe ler, mas, por algum motivo, não sabe ou não pode escrever. É algo difícil. A Chaves, ocorre a hipóte-
se da pessoa que não tem os braços ou é tetraplégica.
Neste caso, excepcionalmente, o testamento será escrito por um terceiro, indicado pelo autor da
herança. O procedimento será o seguinte: o terceiro elabora o testamento e o apresenta ao tabelião, na
frente das testemunhas. Mas, antes de entregá-lo, o tabelião determina que o testador leia o testamento e
aprove seu conteúdo. O tabelião então registra a aprovação do testador, lacra e faz as anotações regis-
trais. Nem mesmo nessa hipótese o tabelião terá conhecimento do conteúdo. Quando muito, quem terá
conhecimento é o terceiro. Mas tabelião e testemunhas não terão conhecimento do teor do testamento
cerrado.

5.3.1.3. Testamento particular


O testamento particular, também chamado de “hológrafo” (porque escrito pelo testador), é aquele
de forma livre, nos termos do Art. 1.876, CC:

CC, art. 1.876: “O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo
mecânico. § 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e

545 (STJ - REsp: 1.001.674 SC 2007/0250311-8, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data

de Julgamento: 05/10/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/10/2010)

841
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subs-
crever. § 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em bran-
co, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três tes-
temunhas, que o subscreverão.”.

Com efeito, ele pode ser elaborado de qualquer maneira, mas com um detalhe: tem de ser por es-
crito do autor da herança. Ou seja, é o próprio autor da herança quem deve redigi-lo, ainda que o faça por
meio mecânico (não é necessária a elaboração de próprio punho).
Após redigi-lo, o testador deve ler o conteúdo na presença de três testemunhas. Não é necessário
redigir o testamento na presença das testemunhas. Basta a leitura. A forma é livre: o testamento pode
inclusive ser redigido em língua estrangeira, desde que as testemunhas entendam o idioma.
Depois de lido na presença de três testemunhas, o testamento particular é livremente guardado pe-
lo testador. Surge o seguinte problema: se o testador pode guardá-lo onde quiser, o testamento particular
traz consigo altíssimo grau de insegurança. Por essa razão, exige-se posterior homologação judicial, de-
pois da abertura da sucessão, com a oitiva das testemunhas presenciais.
Por isso, é essencial que o testador escolha testemunhas saudáveis, pois se uma delas morrer antes
dele já não mais haverá homologação judicial, pois, o juiz não poderá fazê-lo sem ouvi-las. Veja, portan-
to, que o testamento particular é uma opção insegura.
Há uma exceção à regra do testamento particular. Trata-se de hipótese em que o Código autoriza a
elaboração de testamento particular sem a presença de nenhuma testemunha: quando o autor da heran-
ça expressamente indicar a impossibilidade de presença de outras pessoas, por circunstâncias excepcio-
nais. Nesse caso, confirmada a excepcionalidade da situação, o juiz pode homologar o testamento, mes-
mo sem testemunhas (art. 1.879 do CC)

Art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de


próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do
juiz.

5.3.1.4. Testamento marítimo e testamento aeronáutico


Marítimo e aeronáutico são os testamentos realizados, respectivamente, a bordo de embarcações
ou aeronaves em curso (em viagem). Importante destacar que, se a embarcação estiver atracada ou se a
aeronave já tiver pousado, desaparece a circunstância de excepcionalidade, de modo que o testamento
seguirá as regras do testamento ordinário.
A embarcação ou aeronave poderá ser mercantil, civil ou militar, indiferentemente.
O testamento marítimo ou aeronáutico será celebrado na presença do comandante (e de duas tes-
temunhas?) e registrado no livro de bordo. Ele pode ser elaborado de forma pública ou cerrada. Pública
quando o testador declarar sua vontade verbalmente; cerrada quando quiser entregá-lo por escrito.

842
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Se o testador quiser realizar o testamento de forma particular, ele não precisa das regras especiais
do testamento marítimo ou aeronáutico, podendo se valer das regras do testamento particular.

5.3.1.5. Testamento militar


O testamento militar é aquele realizado por militares ou civis que estejam à disposição das Forças
Armadas (ex.: médicos), em praça sitiada (lugar sem comunicações) ou tempo de guerra, na presença do
comandante da tropa e de duas testemunhas, de forma pública ou cerrada.
Portanto, mais uma vez, o testamento militar pode ter forma pública ou cerrada.
O testamento militar é o único no Brasil que pode ser nuncupativo. Testamento militar nuncupati-
vo é aquele feito por quem estiver em combate, ferido. Nesse caso, o Código permite que o testamento
seja puramente verbal, na presença de duas testemunhas. Trata-se de um absurdo: quem, ferido, ao invés
de se salvar, fará um testamento? Além disso, é algo antipatriótico: além de ferida, a pessoa ainda tira
dois soldados da guerra para prestarem atenção ao que ele tem para dizer, permitindo a aproximação do
inimigo.
O testamento militar nuncupativo traz consigo uma perda de eficácia instantânea se o testador não
morrer imediatamente, mantendo-se com consciência. Portanto, se o militar sobreviver e estiver lúcido,
o testamento nuncupativo militar perde a eficácia. Somente não haverá a perda da eficácia se ele sobrevi-
ver e permanecer em coma ou em outra situação que o impossibilite de manifestar sua vontade.
O direito brasileiro é o único do mundo que mantém essa figura. Curiosamente, justo num país que
não entra em guerra.

5.3.1.6. Testamento Vital ou Biológico ou “living will”


Conforme visto, o rol do Art. 1.862, CC é taxativo: não existem outros tipos de testa-
mento.
Por isso, o chamado “testamento vital” (living will) não é considerado testamento, por isso, a ex-
pressão é imprópria, melhor seria chamá-lo de “declaração vital”, nunca de testamento, pois, como dito,
o rol de testamento é taxativo.
Trata-se de diretiva antecipada de vontade sobre tratamento de saúde, hipótese de ortotaná-
sia, cuidando da declaração de uma pessoa (o titular) de que prefere a morte a viver dentro de determi-
nadas circunstâncias.
Note que não se trata da escolha entre vida e morte, concretizando uma eutanásia, mas da declara-
ção negativa de tratamentos médicos infrutíferos, ou seja, contra um prolongamento infrutífero da vida
uma vez que para o caso não há cura.

843
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

O direito brasileiro não autoriza o testamento vital, entretanto, a doutrina, em franca maioria, é fa-
vorável a essa figura, veja-se o Enunciado 528 da V JDC.546
Os autores que a defendem fundamentam-se no argumento segundo o qual o direito à morte digna
é consequência lógica do direito à vida digna.
O Novo Código de Ética Médica, uma Resolução Administrativa do CFM, termina por se inclinar
pelo testamento vital, dizendo que o médico deve respeitar as manifestações terminais dos pacientes.
Mas isso não tem valor de lei, é apenas uma norma administrativa.

5.3.1.7. Observações relativas aos testamentos especiais (marítimo, aeronáutico e mi-


litar)
Os testamentos especiais exigem homologação judicial, por procedimento próprio, depois da aber-
tura da sucessão.
Eles contam com uma cláusula de caducidade/decadência: se o testador não falecer durante as cir-
cunstâncias de excepcionalidade (a viagem ou a guerra), terá o prazo de 90 dias para ratificar a declara-
ção de vontade, sob pena de caducidade. Em linguagem clara: ou morre ou ratifica. Caso contrário, have-
rá caducidade (salvo o nuncupativo, que tem perda de eficácia imediata com a sobrevida com consciência
do testador).
Caso concreto: uma pessoa realizou testamento marítimo e desembarcou do navio em coma, per-
manecendo nessa situação por dez meses. Nessa hipótese, o testamento pode ser homologado, porque
quando se exige a ratificação em 90 dias, depois do desembarque, pressupõe-se que nesses noventa dias
o testador tenha a possibilidade de manifestar vontade.
Questão (MP/PB): Indique a espécie de testamento que não admite a escrita a rogo: a) público; b)
cerrado; c) particular; d) aeronáutico; e) militar.
O público admite a escrita a rogo, nas hipóteses do cego e do analfabeto; o cerrado pode ser escrito
a rogo, quando o testador sabe ler, mas não pode escrever; o aeronáutico e o militar podem ser público
ou cerrado. Sobra somente particular, pois ele é hológrafo (feito por escrito pelo testador).

5.3.2. Modalidades vedadas


As Modalidades vedadas encontram-se previstas no art. 1.863 do CC, que importam em nulidade
absoluta virtual (a lei prevê a nulidade do ato sem cominar sanção - art. 166, VII, segunda parte, CC)
Assim, em todas as hipóteses acima a lei proíbe o testamento comum ou conjuntivo, seja ele simul-
tâneo, recíproco ou correspectivo.

546 Enunciado 528 da V JDC: “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também

chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não
tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.”.

844
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

i. Testamento conjuntivo, comum mancomunado ou de mão comum: aquele celebrado por


duas ou mais pessoas, o que viola o seu caráter personalíssimo;
Testamento conjuntivo, de mão comum ou é aquele em que duas ou mais pessoas, mediante um só
instrumento (portanto, num mesmo ato), fazem disposições de última vontade acerca de seus bens.
Trata-se em verdade de gênero, do qual são espécies:
a) Testamento simultâneo: dois ou mais testadores, em um mesmo ato, beneficiam um tercei-
ro.
b) Testamento recíproco: os testadores beneficiam-se reciprocamente, no mesmo ato.
c) Testamento correspectivo: os testadores, no mesmo ato, fazem disposições recíprocas e na
mesma proporção.
Seguno Carlos Roberto Gonçalves, justifica-se a proibição do testamento conjuntivo, em todas as
suas formas, porque tais disposições constituem espécies de pacto sucessório e contrariam uma caracte-
rística essencial do testamento, que é a revogabilidade.
O que é vedado é somente a confecção conjunta pelos testadores, no mesmo instrumento.
De modo que nada impede que os testantes, desejando testar simultaneamente, compareça ao Car-
tório de Notas e ali cada qual faça o seu testamento, em cédulas testamentárias distintas,
posição adotada por Zeno Veloso, Gustavo Tepedino, Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona, Flávio Tartuce,
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald e pelo STJ547.

5.4. Codicilo

A expressão “codicilo” é de matriz latina, mas em tradução jurídica significa “pequeno testamento”.
Codicilo é o ato de disposição pelo qual o autor da herança deixa pequenos legados (ex.: um relógio,
uma joia, objetos de uso pessoal) e regras para o seu funeral. Há pessoas tão meticulosas que já deixam
tudo preparado para sua morte.
Note que aquilo que é pequeno legado para uma pessoa pode não ser para a outra, a depender dos
patrimônios das pessoas. O Código não determinou nada a respeito, cabendo à jurisprudência limitar o
codicilo em 10% do patrimônio líquido da herança.
Se o que o titular pretende é um ato de disposição patrimonial, a disposição não será codicilo, mas
testamento. Já que não se trata de ato de disposição patrimonial, o codicilo tem forma livre e dispensa a
presença de testemunhas.
Mas há um detalhe: ele exige capacidade sucessória. O beneficiário precisa preencher tais requisi-
tos, sob pena de burlar as previsões legais. A concubina, que não tem capacidade testamentária, também
não pode receber um codicilo. Isso para evitar fraudes.

547 (STJ - REsp: 88.388/SP - 1996/0009897-2, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de

Julgamento: 05/10/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 27.11.2000 p. 164 JBCC vol. 186 p. 415
RT vol. 787 p. 189)

845
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Havendo codicilo ou testamento, o inventário não pode ser em cartório. Terá de ser judicial e exigi-
rá a atuação do MP, como fiscal da lei.
Como visto, os objetos do codicilo e do testamento são distintos. Todavia, nada impede que um co-
dicilo revogue um testamento, e vice-versa. Apenas um detalhe: o codicilo somente pode revogar um tes-
tamento em parte. Mas um testamento pode revogar um codicilo, no todo ou em parte.

5.5. Cláusulas testamentárias

Como dito, cláusulas testamentárias são as disposições de conteúdo patrimonial. Isso é importante,
pois o testamento admite outras declarações de vontade, que devem ser interpretadas autonomamente e
não se sujeitam às regras relativas às cláusulas testamentárias.
Os mais antigos chamavam as cláusulas testamentárias de “deixas patrimoniais”. Elas estão sub-
metidas, no Código Civil, a três categorias regulatórias: i) regras proibitivas; ii) regras permissivas; e iii)
regras restritivas.

5.5.1. Regras proibitivas


Não podem constar no testamento, sob pena de nulidade, as seguintes cláusulas:
i) cláusula derrogatória:
Cláusula derrogatória é aquela que tira do testador o direito de revogar o testamento. É proibida,
como visto.
ii) cláusula conjuntiva:
Cláusula conjuntiva, proibida pelo art. 1.863 do CC, é aquela que estabelece um testamento recí-
proco, simultâneo ou correspectivo. Recíproco é aquele com concessões mútuas; simultâneo é o concomi-
tante; correspectivo é aquele em retribuição condicional.
iii) cláusula conferindo a um terceiro a indicação do benefício ou do beneficiário:
Esta cláusula é proibida por violar o caráter personalíssimo do testamento.
iv) cláusula captatória:
Trata-se daquela cláusula que tenta angariar um benefício.
v) cláusula beneficiando pessoa indeterminada e indeterminável:
Esta cláusula proibitiva deve ser lida a contrario sensu. Ou seja, a cláusula que beneficia pessoa in-
determinada, porém determinável, é válida. Exemplo é a prole eventual: embora indeterminada, é de-
terminável.
vi) cláusula beneficiando pessoas incapazes de suceder:
As pessoas incapazes de suceder foram estudadas anteriormente (testemunhas, concubina, tabe-
lião, aquele que escreveu a rogo etc.) Estão previstas nos arts. 1.801 e 1.802 do CC.
Qualquer dessas cláusulas proibitivas será nula, de pleno direito.

5.5.2. Regras permissivas

846
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

As regras permissivas, analisadas a seguir, são cláusulas que podem constar no testamento.

5.5.2.1. Indicação do beneficiário por motivo determinado


A indicação, no testamento, do beneficiário por motivo determinado tem uma vantagem, que é a
incidência do art. 140 do Código Civil, segundo o qual o falso motivo pode caracterizar erro e tornar o
negócio anulável, quando for razão determinante da declaração de vontade:

Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determi-
nante.

Essa é a razão pela qual se permite que o testador indique o motivo da escolha de determinado be-
neficiário: provando-se que o motivo era falso, poder a cláusula ser anulada, por erro, na forma do art.
140 do CC.

5.5.2.2. Cláusula sob condição

O Código Civil permite um testamento condicional. Condição é um evento futuro e incerto. Haven-
do condição, enquanto ela não for implementada, o beneficiário não adquire a herança ou legado.
Fica então a dúvida: se a saisine gera a transmissão automática, como fica a cláusula condicional?
O testador pode indicar um substituto, enquanto a condição não for implementada. Não indicado substi-
tuto pelo testador, os herdeiros legítimos recebem a herança. O problema é que eles recebem para, im-
plementada a condição, entregarem o bem ao beneficiário. Se não forem muito cuidadosos com o a coisa,
cabe o manejo de medidas cautelares, para a preservação da herança ou do legado.
Detalhe: se o beneficiário condicional não quiser medida cautelar, mas antecipatória (receber antes
mesmo do cumprimento da obrigação), o Código Civil determina que, para que o juiz antecipe a entrega
do benefício sem o cumprimento da condição, é preciso prestar garantia. Tal garantia é chamada de
“caução muciana”. É a garantia, real ou fidejussória, prestada por quem pretende uma antecipação da
herança ou legado.

5.5.2.3. Cláusula estabelecendo um encargo


A cláusula estabelecendo um encargo é também chamada de “cláusula modal”. Encargo é contra-
prestação. Assim, o beneficiário precisa cumprir uma conduta, a título de contraprestação. Ex.: deixo
uma herança ou legado para “A”, com o encargo de ele prestar determinados serviços num hospital.
O encargo pode ser em favor de uma pessoa certa e determinada ou da coletividade.
O que ocorre se o encargo for descumprido? Se a condição não for cumprida, não haverá a aquisi-
ção. Já o descumprimento do encargo gera a sua execução. Assim, descumprido o encargo, ele será exe-
cutado judicialmente, inclusive com a possibilidade de fixação de astreintes (ou seja, de tutela específi-
ca). Poderão promover essa execução: i) os herdeiros do testador; ii) o beneficiário do encargo; e iii) o
MP, quando o encargo for estabelecido em prol da coletividade.

847
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Atenção! Nunca se deve esquecer de que o descumprimento do encargo não afeta a aquisição da
herança ou do legado, ensejando apenas execução.
Curioso destacar que o testamento, regra geral, não permite cláusula a termo, salvo na hipótese de
legado. Já a herança nunca será submetida a termo. A lógica disso está no art. 1.898 do CC:

Art. 1.898. A designação do tempo em que deva começar ou cessar o direito do herdeiro, salvo
nas disposições fideicomissárias, ter-se-á por não escrita.

A saisine transmite a herança, formando-se um condomínio (que significa copropriedade). Haven-


do herança a termo, estar-se-á transmitindo propriedade por tempo determinado (propriedade resolú-
vel). Será formado um estranho condomínio, em que alguns dos proprietários terão propriedade eterna
e, outros, resolúvel. Para evitar esta esdrúxula situação, o Código simplesmente impede que a herança
seja transmitida a termo.

5.5.3. Cláusulas restritivas


Há basicamente três cláusulas restritivas que eventualmente podem figurar num testamento: inali-
enabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, conforme preconiza o Art. 1.848, CC:

CC, art. 1.848: “Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador esta-
belecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens
da legítima. § 1º Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em
outros de espécie diversa. § 2º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser
alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados
nos ônus dos primeiros.”.

i. Cláusula de inalienabilidade (o bem não pode ser transferido para terceiros).


ii. Cláusula de incomunicabilidade (o bem é incomunicável em qualquer regime, mesmo na
comunhão universal).
iii. Cláusula de impenhorabilidade (o bem não pode ser penhorado, em regra).
Observa-se ainda que o o entendimento da Súmula 49 do STF, foi confirmado pela redação do art.
1.911 do CC que estabelece que a cláusula de inalienabilidade faz presumir as demais, mas a recíproca
não é verdadeira, ou seja as demais (impenhorabilidade e incomunicamilidade) não presumem inaliena-
bilidade:

Súmula 49 - a cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens.

Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica im-
penhorabilidade e incomunicabilidade.

848
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Há julgado no STJ nesse sentido548.


Há duas grandes novidades no Código em relação às cláusulas restritivas:
i) elas terão a duração indicada pelo testador (ex.: dez, quinze anos etc.):
No silêncio do testador, a cláusula restritivaserá vitalícia (durará pela vida do beneficiário). Mas
com um detalhe: ela dura somente no prazo máximo de uma geração. Isso significa que quem recebeu
com cláusula restritiva transmitirá sem, conforme já decidiu o STJ549.
O art. 1.848, § 2º, permite ao juiz relativizar a cláusula restritiva:

Art. 1.848 (...) § 2º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os
bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos
primeiros.

O magistrado pode flexibilizar a regra autorizando, por exemplo, a retirada ou a sub-rogação da


cláusula. Ex.: autorização da venda do imóvel, pois o beneficiário está morrendo e precisa do dinheiro; o
imóvel está se depreciando e o beneficiário quer adquirir outro e transferi-lo. O juiz competente para
tanto é o da Vara de Registros Públicos, e não das sucessões. Até porque isso somente ocorrerá após a
partilha. Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária.
Deferindo-se o levantamento da clúsula, há necessidade de converter o produto da venda em ou-
tros bens que ficarão sub-rogados com os mesmos ônus dos primeiros (art. 1.911, §único, CC), entretanto,
novamente, o STJ tem flexibilizado a questão em atenção à função social da propriedade em face do de-
curso do tempo550.
ii) o legislador permitiu, no art. 1.848, caput, a gravação da legítima com cláusulas restritivas (a
“clausulação da legítima”):

Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabele-
cer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da
legítima. (...)

Quando isso ocorre, o herdeiro necessário, de proprietário, transforma-se em usufrutuário, na me-


dida em que poderá usar, fruir, mas não poderá dispor do bem. Por ser algo grave, o CC determina que a
clausulação da legítima somente poderá ocorrer havendo justa causa, indicada e provada.
Se não houver a justa causa é caso de ineficácia do testamento, conforme entende José Fernando
Simão e o STJ551

548 (REsp 1155547 / MG, Ministro MARCO BUZZI, Quarta Turma, julgado em 06/11/2018. DJe 09/11/2018).
549 (STJ - REsp 1552553 / RJ – 4ª Turma – Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA,
julgado em 24/11/2015, DJe 11/02/2016)
550 (REsp 1.631.278/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Terceira Turma, julgado em

19/03/2019. DJe 29/03/2019).


551 (REsp 1.207.103).

849
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

Finalmente, conforme dicção do art. 2.042 c/c o caput do art. 1.848 do CC/02, deve o testador de-
clarar no testamento a justa causa da cláusula restritiva aposta à legítima, no prazo de um ano após a
entrada em vigor do CC/02; na hipótese de o testamento ter sido feito sob a vigência do CC/16 e aberta a
sucessão no referido prazo, e não tendo até então o testador justificado, não subsistirá a restrição.
Obs.: Discussão interessante reside em saber se o art. 1.848 do CC, particularmente no tocante à
exigência da justa causa, também se aplica à doação com as referidas cláusulas.
Segundo Flávio Tartuce o art. 1.848 do CC é norma restritiva da autonomia privada e, como tal,
não admite interpretação extensiva ou analogia para outras hipóteses ou tipos. Em suma, o seu campo
de incidência é apenas o testamento e não a doação.

Entretanto, conforme entendimento do STJ a tendência é pela necessidade de se aten-


der ao requisito da justa causa nesses contratos552.

5.6. Redução de cláusulas testamentárias

É certo que o testador eventualmente pode estipular previsões que excedam o valor da legítima.
Quando ele incorrer em excesso, ultrapassando os limites da legítima, será caso de redução testamentá-
ria.
A redução testamentária pode se dar ex officio ou a requerimento do interessado. Mas o que chama
a atenção é o fato de que ela é de ordem pública (tanto que cognoscível de ofício).
O CC impôs duas diferentes regras para a redução de cláusulas testamentárias:
i) havendo somente herança ou somente legado, a redução será proporcional à parte de cada bene-
ficiário:
Assim, quem tem mais terá redução maior, proporcionalmente. Ex.: num testamento, “A” é benefi-
ciado com uma casa e “B” com um automóvel. Aberta a sucessão, apura-se que a casa vale 40% e o auto-
móvel 20% do patrimônio líquido. Veja que a legítima é excedida em 10%. Nesse caso, como há somente
legado, a redução será proporcional: cada um dos legatários devolverá, proporcionalmente, dinheiro ao
espólio, até que se respeite a legítima.
ii) havendo herança e legado, reduz-se primeiro da herança, e, só depois, se preciso, do legado:
Ex.: num testamento, “A” é beneficiado com uma casa, que corresponde a 40% do patrimônio lí-
quido do falecido, e 20% do patrimônio é deixado para “B”. Note que há um legado e uma herança. Nesse
caso, a redução se dará primeiro na herança: “B” receberá 10% e o legado ficará preservado.
No exemplo, caso se descubra que a casa vale 50% do patrimônio total, o herdeiro nada receberá. A
ideia desta segunda regra é preservar o legado. Isso porque preservar o legado é respeitar a própria von-
tade do testador. Detalhe importante é que, nesta regra, se está falando do herdeiro testamentário, e não

552 (Agravo de Instrumento 990100019244 -Órgão julgador: 5a Câmara de Direito Privado do TJSP - Data do

julgamento: 02/06/2010 - Data de registro: 14/06/2010 ).

850
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

dos legítimos. A regra resguarda a metade indisponível dos herdeiros legítimos. Sacrificam-se primeiro
os herdeiros testamentários, depois os legatários.
Há uma regra do CC acerca de redução que é matemática: é possível que o excesso testamentário
exceda 50% da cota disponível. Isso representará mais de 75% da herança (50% de 50%, que é a parte
disponível, são 25%; 25% mais 50% são 75%).
O Código tolera um excesso correspondente a 50% da parte disponível. Ou seja, tolera que o exces-
so testamentário vá até 75% do patrimônio líquido total. Nesta hipótese, o beneficiário do testamento
mantém seu direito, apenas procedendo à redução, de acordo com as regras vistas acima.
Ex.: se o patrimônio líquido do testador é 100, deste total ele pode dispor de 50. Os outros 50 cor-
respondem à legítima. Desses 50 disponíveis, ele pode realizar um excesso. Se exceder o que a lei lhe
permite, adentra na legítima, hipótese em que haverá a redução, segundo as regras acima. Todavia, o CC
admite a regra de redução se o testador exceder até o limite de 75 (deixando apenas 25 a título de legíti-
ma).
Porém, se o excesso for tanto que ultrapasse 75% do patrimônio disponível do testador (ele pode
fazê-lo sem querer, pois o momento em que se realiza o testamento não é o mesmo em que se calcula a
legítima553), a aplicação das regras de redução significará o esfacelamento do testamento, em prejuízo,
inclusive, dos herdeiros legítimos.
Basta imaginar a hipótese em que o testador tenha somente uma casa. Ele faz o testamento e deixa
o bem para um terceiro (100% do patrimônio indisponível), em prejuízo dos herdeiros. Aplicando-se a
regra de redução, concretamente o herdeiro testamentário terá de pagar a diferença aos herdeiros legíti-
mos, mas ficará com o bem. Ou seja, o herdeiro legítimo recebe o dinheiro, mas não a casa. O testador
privaria o herdeiro legítimo de receber bens.
Para evitar esse prejuízo aos herdeiros legítimos com previsões exorbitantes, se o excesso ultrapas-
sar 75% do patrimônio líquido disponível, afastam-se as regras de redução, os herdeiros legítimos adqui-
rem todos os bens e pagam os legatários e herdeiros testamentários em dinheiro. Pagarão no limite de
50%, mas adquirirão todo o patrimônio.

5.7. Direito de acrescer

Evidentemente, numa única cláusula testamentária o testador pode beneficiar duas ou mais pesso-
as. Ex.: marido e mulher, irmãos, companheiro e companheira etc. E mais: pode ocorrer de um dos bene-
ficiários não querer (renúncia) ou não poder (indignidade, deserdação ou pré-morte) receber a herança
ou o legado.

553 Há clara possibilidade de oscilação patrimonial.

851
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS
Cadernos MAGIS - Civil

A sucessão por representação ocorre nos casos de indignidade, deserdação e pré-morte. Ocorre
que, diferentemente da sucessão legítima, na testamentária não existe sucessão por representação. As-
sim, se ocorrer qualquer dos casos de sucessão por estirpe (indignidade, deserdação, pré-morte) ou re-
núncia, haverá caducidade da cláusula testamentária. Ex.: o testador deixa um legado para “A”, que,
todavia, renuncia. Ocorrerá a caducidade da cláusula.
Há, no entanto, uma exceção: se havia indicação de substituto, a caducidade não ocorrerá, ficando
para aquele substituto. Somente haverá caducidade se esse substituto também não quiser ou não puder
receber a estipulação testamentária.
Ocorrendo caducidade, surge o problema: havendo uma cláusula beneficiando duas ou mais pesso-
as, aquele que recebeu a herança pode ou não acrescer, para si, a parte do que não quis ou não pôde re-
ceber?
A existência do direito de acrescer depende da presença cumulativa de quatro requisitos:
i) cláusula beneficiando duas ou mais pessoas;
ii) um dos beneficiários não querer ou não poder receber o benefício;
iii) inexistência de substituto;
iv) a natureza da cláusula seja conjuntiva, não disjuntiva.
Uma coisa é dizer: deixo determinado bem para ambos, “A” e “B” (em conjunto: cláusula conjunti-
va). Outra é dizer: deixo 50% do bem para um e 50% do terreno para o outro. Nesta segunda hipótese, a
cláusula será disjuntiva, e não haverá acréscimo, pois os beneficiários foram tratados separadamente,
voltando aos herdeiros legítimos a parte daquele que não pôde ou não quis receber.

5.8. O testamenteiro

O testamento pode conter diversas declarações de vontade. Essa complexidade inerente às declara-
ções de vontade contidas no testamento pode ensejar certa dificuldade em fazer valer a vontade do testa-
dor.
Por isso, o CC permite ao testador indicar alguém a quem confie a missão de fazer valer sua decla-
ração de vontade, o chamado “testamenteiro”. Trata-se da pessoa a quem se impõe o encargo de fazer
cumprir as declarações de vontade do testador.
É certo que o testamenteiro assume encargos, obrigações. Ao fazê-lo, ele passa a ter responsabili-
dade civil e penal. E, exatamente por conta dessa assunção de responsabilidades, o CC determina que ele
tem legitimidade para requerer a abertura do inventário e tem direito de ser remunerado:
A remuneração do testamenteiro chama-se “prêmio” ou “vintena”.
Ordinariamente, cabe ao próprio testador dizer a remuneração do testamenteiro. Mas, se ele não o
fizer, o juiz das sucessões estipulará o valor, que variará entre 1 e 5% do patrimônio líquido transmitido,
de acordo com as regas de fixação de honorários advocatícios.

852
Espalhe a palavra, siga CadernosMAGIS

Você também pode gostar