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09/08/2020 ConJur - Opinião: Seabra Fagundes, Caio Tácito e o controle da administração

OPINIÃO

Seabra Fagundes, Caio Tácito e as bases do


controle da administração pública
25 de março de 2018, 11h24

Por Gustavo Leonardo Maia Pereira

É tal a complexidade das atividades administrativas do Estado, aliás dia a dia crescente,
que o problema jurídico-político do controle do seu exercício se apresenta como um dos
mais graves, tanto na estruturação, como na fisiologia do Estado[1]. A atualidade da
afirmação do potiguar Seabra Fagundes, da década de 1950, dá a dimensão da relevância
do tema do “controle da administração pública”, enquanto variável crítica da atuação do
Estado.

Seabra Fagundes, homem de Estado, que transitou entre a magistratura e a administração


pública, valendo-se da suspensão da regra que impedia os juízes de assumirem funções no
Poder Executivo, produziu reflexões sobre o controle jurisdicional da administração
pública que são consideradas, até hoje, um ponto de virada no estudo do tema.

Mais ligado à política do que à academia, foi desembargador do Tribunal de Justiça do seu
estado aos 25 anos, ingresso por meio da recém-criada regra do quinto constitucional, mas
logo se afastou da magistratura para ser interventor do Rio Grande do Norte. Chegou a
ocupar também a função de consultor-geral da República, no governo Dutra, mas por
pouco tempo, ante o restabelecimento da vedação à ocupação de cargos administrativos por
magistrados.

De volta ao Tribunal de Justiça, foi relator de acórdão célebre[2], em 1948, considerado o


leading case da teoria do desvio de poder no Brasil, no qual foi concedido mandado de
segurança a empresa de ônibus que se insurgiu contra ato da inspetoria de trânsito que
proibira o tráfego de veículos da empresa em determinados horários. No caso, o TJ-RN
entendeu que, embora fosse da competência do órgão estadual a regulação dos horários e
condições de trânsito, a vedação imposta à impetrante servia tão somente ao interesse
particular de empresa concorrente, e não ao interesse público.

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O ato que, encobrindo fins de interesse público, deixe à mostra finalidades pessoais poderá
cair na apreciação do Poder Judiciário, não obstante originário do exercício de
competência livre, trecho que constou da ementa do julgado, revela a ideia nuclear da
teoria: a discricionariedade é limitada pela finalidade pública.

De acordo com suas formulações acerca da Teoria do Estado, atribui ao Poder Judiciário, a
partir da concepção de separação de Poderes, função especial na contenção do arbítrio
estatal, em um viés marcadamente liberal, revelando, assim, preocupação especial com a
proteção do indivíduo em face do Estado[3].

A doutrina de Seabra é considerada um marco no estudo do controle da administração


pública, já que enfrenta a concepção tradicional na época, segundo a qual o poder
discricionário do Estado seria incontrastável, vez que a oportunidade e conveniência dos
atos administrativos estariam fora do alcance do Poder Judiciário.

Essa visão era amparada por uma ideia de que o Judiciário não poderia examinar os fatos
que permeavam a ação administrativa. Estando o agente público investido de competência
e possuindo margem legal de liberdade para agir, o ato praticado não poderia ser anulado
ou revisto por um juiz. Ou seja, apenas a “matéria de Direito” estaria abrangida pela
legalidade, apta a justificar o crivo judicial, portanto.

Sem retirar a âncora do conceito de legalidade, Seabra inaugura uma nova visão sobre a
extensão da sindicabilidade dos atos administrativos, defendendo que não haveria margem
de liberdade para o administrador no que tange à finalidade do ato. À base de todo ato
estatal deveria estar, invariavelmente, o interesse público, cabendo ao Judiciário, a partir da
verificação da existência dos motivos e de sua correlação com a lei, controlar a finalidade
do ato administrativo, mesmo quando praticado no exercício de competência livre
(discricionária).

Daí a formulação segundo a qual, no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o


ato discricionário está tão sujeito aos textos legais quanto qualquer outro. A visão do
jurista potiguar, portanto, traz subjacente noção fundamental para o desenvolvimento do
Direito Administrativo a partir de então: a de que não existe ato discricionário, e sim poder
discricionário, consistente na margem de liberdade conferida pela lei ao administrador em
relação a alguns aspectos (elementos, conforme construções teóricas posteriores) do ato
administrativo.

As ideias de Seabra Fagundes encontraram forte oposição de Themístocles Cavalcanti,


autor influente e prócer do pensamento estatista, também ex-consultor-geral da República
(do governo Vargas) e que viria a ser ministro do STF, que entendia que o controle por
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desvio de finalidade era típico da jurisdição contenciosa-administrativa, conforme doutrina


do detournment de pouvoir, e incompatível com o sistema de jurisdição una.

Interessante notar que a origem francesa foi perspicazmente captada por Seabra, que, em
seu voto no citado acórdão, refere ao caso que dera origem à teoria na França, que guardava
impressionante semelhança com a situação sob julgamento do TJ-RN. Dizia respeito ao
caso, julgado pelo Conselho de Estado, de um prefeito que, no exercício da competência
para regular a circulação e permanência de veículos de passageiros e cargos na proximidade
das estações ferroviárias, usou de tal poder para conferir monopólio a certa empresa.

As elaborações acerca do controle por desvio de finalidade, contudo, encontraram


consistente apoio e desenvolvimento doutrinários em autores como Victor Nunes Leal e
Caio Tácito.

Victor Nunes Leal, em comentário sobre o acórdão referido, que também se notabilizou,
exaltou a coragem da inovação jurisprudencial promovida pelo TJ-RN, já que os tribunais
sempre declararam os atos discricionários insuscetíveis de apreciação jurisdicional, sem
aprofundar a questão da possível arbitrariedade do poder discricionário.

Outro homem de Estado, também consultor-geral da República (governo JK) e


desembargador (do TJ-RJ), o carioca Caio Tácito[4] colocou importantes tijolos no edifício
alicerçado por Seabra Fagundes, contribuindo muito para a tonificação das ideias acerca do
controle por desvio de poder a partir de uma reflexão teórica mais sofisticada e inovadora
acerca dos elementos do ato administrativo.

Rejeitando, com fundamento em Hauriou, a antinomia entre vinculação e


discricionariedade, Caio Tácito propõe o desdobramento da formação do ato
administrativo, a fim de que se identifique as partes sobre as quais pode incidir o poder
discricionário.

A partir de uma norma de competência, que há de ser específica e objetivamente fixada em


lei, constituindo, assim, elemento vinculado do ato, o agente deve perquirir a existência dos
motivos que ensejem a ação administrativa e, num passo seguinte, apreciar e ponderar o
valor desses motivos, a fim de que possa decidir acerca da necessidade de agir e sobre os
meios adequados à obtenção do resultado.

Apreendidos e analisados os motivos, o agente se manifesta por meio de um resultado


comissivo ou omissivo. Não existindo na lei a obrigação de um determinado resultado,
poderá a administração decidir sobre a oportunidade ou a conveniência do ato
administrativo. O resultado (objeto) seria, assim, o núcleo do poder discricionário.

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Aproximando-se, então, de Seabra Fagundes, defende que a administração serve a


interesses públicos caracterizados, não sendo lícito ao agente servir-se de suas atribuições
para satisfazer interesses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro
interesse público que não se filie ao seu âmbito de competência.

Ainda lado a lado com Seabra Fagundes, Caio Tácito admite que a finalidade pública pode
estar contida até de forma implícita na lei, sendo sempre elemento vinculado; e que a
vinculação se daria em relação a um fim específico, não sendo dado ao administrador
perseguir interesse público não abrangido pela regra que lhe atribui competência. Daí sua
contundência em afirmar que a regra de competência não é um cheque em branco e que a
finalidade legal é o teto do poder discricionário.

No que diz respeito à teoria do desvio de poder, a ideia de finalidade específica, com apoio
em Duguit, é especialmente desenvolvida por Caio Tácito, no que sua doutrina se distancia
do pensamento de Victor Nunes Leal, para quem só haveria desvio de poder caso o
interesse público fosse substituído por um interesse privado.

Chama atenção na obra do jurista carioca o panorama traçado em relação ao tema do desvio
de poder, em que evidencia o silêncio da doutrina e da jurisprudência e exalta a importância
das ideias de Seabra Fagundes e Victor Nunes Leal na mudança de tratamento da questão,
inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.

Importante destacar, ainda, que, enquanto Themístocles Cavalcanti entendia que a teoria do
desvio de poder não haveria de ser aplicada no Brasil por ser típica do sistema de jurisdição
administrativa, Seabra Fagundes e Caio Tácito não aceitavam a existência de distinção
entre os sistemas de jurisdição para fins de extensão do controle.

Toda a mudança de perspectiva parece estar essencialmente centrada na possibilidade de


“avanço” da análise judicial sobre os motivos da ação administrativa, a fim de que se
identifique o atingimento, ou não, da finalidade pública. Se, até então, a matéria fática
estava fora do raio de ação do Judiciário, com o giro provocado pelos autores aqui
referidos, passou-se a entender não bastar que, em tese, a lei admita um certo resultado,
fazendo-se necessário o nexo de causalidade entre o objeto e os motivos.

O próprio Caio Tácito, em obra que compila escritos de cerca de 25 anos de atividade
acadêmica, noticia a virada jurisprudencial no que pertine ao controle do desvio de poder,
sendo o acórdão do TJ-RN da relatoria de Seabra Fagundes apontado como um marco
dessa mudança, que alcançou tribunais do país inteiro, inclusive o STF.

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Interessante notar, ainda, que Seabra Fagundes não estava especialmente preocupado em
explicar e justificar o poder discricionário do Estado, que era a tônica da doutrina na época,
sendo relativamente singela sua formulação sobre o ponto: o poder discricionário tem a
finalidade de possibilitar que a administração adapte a sua atividade às exigências das
circunstâncias do caso concreto, de forma que seja a mais eficaz e útil ao interesse público.

Já Caio Tácito parecia bem mais empenhado em vincar a expansão do intervencionismo


estatal, explicitando ser a tônica dos regimes políticos da época o deslocamento da
abstenção para a intervenção, reconhecendo, assim, um progressivo declínio dos
parlamentos em favor do fortalecimento do Poder Executivo, desde o fim da 1ª Guerra
Mundial.

Ou seja, ao mesmo tempo que defende a controlabilidade judicial da finalidade, demarca o


campo de atuação livre da administração —discricionariedade. Posiciona, então, o controle
de legalidade como a contraface da ampliação da discricionariedade, falando, assim em um
regime de liberdade vigiada, ideia bem sintetizada na seguinte passagem:

Vimos, inicialmente, que a crise da Administração Pública moderna reside no


equilíbrio entre a dilatação da atividade discricionária e o reforço do controle de
legalidade. Na fase atual de intervencionismo administrativo, é necessário propiciar
meios de ação eficiente aos entes públicos, mas impedir que eles se coloquem à
margem da lei[5].

É marcante também, na obra do professor carioca, a preocupação com o risco de


substituição do administrador pelo juiz, enfatizando não caber ao juiz, mesmo perante
erros e desacertos, substituir a ação executiva pelo arbítrio da toga. A ditadura judiciária
será tão nociva quanto o descritério da administração. Nessa toada, cita famosa passagem
de Victor Nunes Leal, segundo a qual, no estudo do controle do poder discricionário, a
doutrina tem de utilizar instrumentos de precisão, para não vestir um santo com a roupa do
outro, substituindo o arbítrio administrativo pelo arbítrio judiciário.

Nessa trilha, um dos pontos altos do pensamento de Caio Tácito, a meu ver, capaz de
inspirar reflexões sobre problemas bem contemporâneos, é a consciência da dificuldade,
em uma sociedade moderna, marcada pela diversidade e antagonismo de grupos de
interesse, em determinar o que representa, no terreno prático, no caso concreto, a
consecução da finalidade pública.

Há, assim, um reconhecimento de que o conflito contamina o agir administrativo, dada a


complexidade da sociedade e consequente imprecisão da ideia de interesse público, de

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forma que o fenômeno social, conforme palavras do autor, não se escraviza a coletes de
força nem a esquemas teóricos.

Parece bem marcante a influência dessas reflexões em relação aos caminhos percorridos
pelas discussões em torno dos limites da ação administrativa. Seja, em um primeiro
momento, com a dimensão que ganhou a necessidade de motivação dos atos
administrativos[6], seja com a aposta de que a processualização do agir estatal seria
fundamental à limitação do arbítrio, seja por meio dos esforços em torno da construção de
entidades e métodos capazes de assimilar, processar e resolver os conflitos que pressionam
a administração pública.

Se, de um lado, o eixo deslocou-se da tensão entre autoridade e liberdade, mediada pela
legalidade, para o dilema entre eficiência e legitimidade, sob o pálio da juridicidade; de
outro, a realidade do controle evoluiu de uma tradição imperial que praticamente barrava
qualquer tipo de interferência na atividade administrativa, para uma multiplicidade de
instituições e ferramentas destinadas a exercer algum tipo de crivo sobre as escolhas
administrativas.

Os debates atuais em torno do próprio desenho do arranjo institucional do controle, seus


limites, métodos, extensão e eficácia, vis a vis os deveres e possibilidades de atuação da
administração pública, não se distanciam do âmago das preocupações de Seabra Fagundes
e Caio Tácito, concernentes ao estabelecimento de um equilíbrio entre a necessária e
inevitável flexibilidade da ação administrativa e o funcionamento de mecanismos de
contenção de abusos e apropriação privada dos poderes estatais.

[1] SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder
Judiciário. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, p. 123.
[2] bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/10789/9778
[3] SEABRA FAGUNDES, Miguel. Da Proteção do Indivíduo Contra o Ato
Administrativo Ilegal ou Injusto. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
Ano V, nº 19, Rio de Janeiro, Setembro de 1946.
[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/caio-tacito-sa-viana-
pereira-de-vasconcelos
[5] TÁCITO, Caio. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 1975, p. 6.
[6] Caio Tácito, com apoio em Jèze, já defendia que, embora não houvesse dever de
motivação dos atos discricionários, uma vez que fossem externados os motivos, haveria
vinculação aos mesmos. A teoria dos motivos determinantes, que viria a se consolidar
posteriormente, talvez tenha sido o segundo grande ponto de virada no tema do controle do
poder discricionário.
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Gustavo Leonardo Maia Pereira é procurador federal e mestrando em Direito e


Desenvolvimento pela FGV Direito SP.

Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2018, 11h24

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