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OPINIÃO
É tal a complexidade das atividades administrativas do Estado, aliás dia a dia crescente,
que o problema jurídico-político do controle do seu exercício se apresenta como um dos
mais graves, tanto na estruturação, como na fisiologia do Estado[1]. A atualidade da
afirmação do potiguar Seabra Fagundes, da década de 1950, dá a dimensão da relevância
do tema do “controle da administração pública”, enquanto variável crítica da atuação do
Estado.
Mais ligado à política do que à academia, foi desembargador do Tribunal de Justiça do seu
estado aos 25 anos, ingresso por meio da recém-criada regra do quinto constitucional, mas
logo se afastou da magistratura para ser interventor do Rio Grande do Norte. Chegou a
ocupar também a função de consultor-geral da República, no governo Dutra, mas por
pouco tempo, ante o restabelecimento da vedação à ocupação de cargos administrativos por
magistrados.
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O ato que, encobrindo fins de interesse público, deixe à mostra finalidades pessoais poderá
cair na apreciação do Poder Judiciário, não obstante originário do exercício de
competência livre, trecho que constou da ementa do julgado, revela a ideia nuclear da
teoria: a discricionariedade é limitada pela finalidade pública.
De acordo com suas formulações acerca da Teoria do Estado, atribui ao Poder Judiciário, a
partir da concepção de separação de Poderes, função especial na contenção do arbítrio
estatal, em um viés marcadamente liberal, revelando, assim, preocupação especial com a
proteção do indivíduo em face do Estado[3].
Essa visão era amparada por uma ideia de que o Judiciário não poderia examinar os fatos
que permeavam a ação administrativa. Estando o agente público investido de competência
e possuindo margem legal de liberdade para agir, o ato praticado não poderia ser anulado
ou revisto por um juiz. Ou seja, apenas a “matéria de Direito” estaria abrangida pela
legalidade, apta a justificar o crivo judicial, portanto.
Sem retirar a âncora do conceito de legalidade, Seabra inaugura uma nova visão sobre a
extensão da sindicabilidade dos atos administrativos, defendendo que não haveria margem
de liberdade para o administrador no que tange à finalidade do ato. À base de todo ato
estatal deveria estar, invariavelmente, o interesse público, cabendo ao Judiciário, a partir da
verificação da existência dos motivos e de sua correlação com a lei, controlar a finalidade
do ato administrativo, mesmo quando praticado no exercício de competência livre
(discricionária).
Interessante notar que a origem francesa foi perspicazmente captada por Seabra, que, em
seu voto no citado acórdão, refere ao caso que dera origem à teoria na França, que guardava
impressionante semelhança com a situação sob julgamento do TJ-RN. Dizia respeito ao
caso, julgado pelo Conselho de Estado, de um prefeito que, no exercício da competência
para regular a circulação e permanência de veículos de passageiros e cargos na proximidade
das estações ferroviárias, usou de tal poder para conferir monopólio a certa empresa.
Victor Nunes Leal, em comentário sobre o acórdão referido, que também se notabilizou,
exaltou a coragem da inovação jurisprudencial promovida pelo TJ-RN, já que os tribunais
sempre declararam os atos discricionários insuscetíveis de apreciação jurisdicional, sem
aprofundar a questão da possível arbitrariedade do poder discricionário.
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Ainda lado a lado com Seabra Fagundes, Caio Tácito admite que a finalidade pública pode
estar contida até de forma implícita na lei, sendo sempre elemento vinculado; e que a
vinculação se daria em relação a um fim específico, não sendo dado ao administrador
perseguir interesse público não abrangido pela regra que lhe atribui competência. Daí sua
contundência em afirmar que a regra de competência não é um cheque em branco e que a
finalidade legal é o teto do poder discricionário.
No que diz respeito à teoria do desvio de poder, a ideia de finalidade específica, com apoio
em Duguit, é especialmente desenvolvida por Caio Tácito, no que sua doutrina se distancia
do pensamento de Victor Nunes Leal, para quem só haveria desvio de poder caso o
interesse público fosse substituído por um interesse privado.
Chama atenção na obra do jurista carioca o panorama traçado em relação ao tema do desvio
de poder, em que evidencia o silêncio da doutrina e da jurisprudência e exalta a importância
das ideias de Seabra Fagundes e Victor Nunes Leal na mudança de tratamento da questão,
inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.
Importante destacar, ainda, que, enquanto Themístocles Cavalcanti entendia que a teoria do
desvio de poder não haveria de ser aplicada no Brasil por ser típica do sistema de jurisdição
administrativa, Seabra Fagundes e Caio Tácito não aceitavam a existência de distinção
entre os sistemas de jurisdição para fins de extensão do controle.
O próprio Caio Tácito, em obra que compila escritos de cerca de 25 anos de atividade
acadêmica, noticia a virada jurisprudencial no que pertine ao controle do desvio de poder,
sendo o acórdão do TJ-RN da relatoria de Seabra Fagundes apontado como um marco
dessa mudança, que alcançou tribunais do país inteiro, inclusive o STF.
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Interessante notar, ainda, que Seabra Fagundes não estava especialmente preocupado em
explicar e justificar o poder discricionário do Estado, que era a tônica da doutrina na época,
sendo relativamente singela sua formulação sobre o ponto: o poder discricionário tem a
finalidade de possibilitar que a administração adapte a sua atividade às exigências das
circunstâncias do caso concreto, de forma que seja a mais eficaz e útil ao interesse público.
Nessa trilha, um dos pontos altos do pensamento de Caio Tácito, a meu ver, capaz de
inspirar reflexões sobre problemas bem contemporâneos, é a consciência da dificuldade,
em uma sociedade moderna, marcada pela diversidade e antagonismo de grupos de
interesse, em determinar o que representa, no terreno prático, no caso concreto, a
consecução da finalidade pública.
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forma que o fenômeno social, conforme palavras do autor, não se escraviza a coletes de
força nem a esquemas teóricos.
Parece bem marcante a influência dessas reflexões em relação aos caminhos percorridos
pelas discussões em torno dos limites da ação administrativa. Seja, em um primeiro
momento, com a dimensão que ganhou a necessidade de motivação dos atos
administrativos[6], seja com a aposta de que a processualização do agir estatal seria
fundamental à limitação do arbítrio, seja por meio dos esforços em torno da construção de
entidades e métodos capazes de assimilar, processar e resolver os conflitos que pressionam
a administração pública.
Se, de um lado, o eixo deslocou-se da tensão entre autoridade e liberdade, mediada pela
legalidade, para o dilema entre eficiência e legitimidade, sob o pálio da juridicidade; de
outro, a realidade do controle evoluiu de uma tradição imperial que praticamente barrava
qualquer tipo de interferência na atividade administrativa, para uma multiplicidade de
instituições e ferramentas destinadas a exercer algum tipo de crivo sobre as escolhas
administrativas.
[1] SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder
Judiciário. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, p. 123.
[2] bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/10789/9778
[3] SEABRA FAGUNDES, Miguel. Da Proteção do Indivíduo Contra o Ato
Administrativo Ilegal ou Injusto. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
Ano V, nº 19, Rio de Janeiro, Setembro de 1946.
[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/caio-tacito-sa-viana-
pereira-de-vasconcelos
[5] TÁCITO, Caio. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 1975, p. 6.
[6] Caio Tácito, com apoio em Jèze, já defendia que, embora não houvesse dever de
motivação dos atos discricionários, uma vez que fossem externados os motivos, haveria
vinculação aos mesmos. A teoria dos motivos determinantes, que viria a se consolidar
posteriormente, talvez tenha sido o segundo grande ponto de virada no tema do controle do
poder discricionário.
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