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Resposta Imune Contra Antígenos Próprios

Imunologia

1. Introdução
Durante toda a disciplina, aprendemos quais são as moléculas, células e processos que fazem parte
do sistema imune. Depois, começamos a ver como todas estas “peças” se encaixavam, para que a
resposta imune pudesse ocorrer contra antígenos não-próprios. Entre estes antígenos, encontramos
aqueles que fazem parte dos agentes infecciosos e dos transplantes de tecidos/órgãos. Agora, falta
entender como o sistema imune pode atuar contra o próprio organismo, causando diversas doenças
que são conhecidas como “doenças autoimunes”. Também deixamos para este tópico o estudo sobre
os grupos sanguíneos e a resposta imune que pode ocorrer nestes casos, porque a transfusão de
sangue entre indivíduos compatíveis é praticamente idêntica a um transplante autólogo de tecido,
que não deveria gerar problemas ao indivíduo pela ausência de antígenos estranhos.

2. Conceitos Gerais Sobre a Autoimunidade


A autoimunidade ocorre quando linfócitos do próprio indivíduo reconhecem e ativam
mecanismos efetores da resposta imune para destruir tecidos do corpo. Portanto, as doenças
autoimunes ocorrem após a falha dos mecanismos que, normalmente, mantêm a tolerância ao
próprio nas células T e/ou B. As células T são muito importantes neste processo, pois são
reguladores chave nas respostas contra antígenos proteicos e porque várias doenças autoimunes
estão ligadas ao MHC.

As doenças autoimunes podem ser sistêmicas (como no lúpus, pela formação e deposição de
imunocomplexos em vários locais do corpo) ou órgão-específicas (como na esclerose múltipla,
pela destruição da bainha de mielina, após ativação de células T CD4).

A resposta autoimune iniciada contra um antígeno próprio leva ao início da destruição do tecido
alvo; esta destruição se torna a fonte de novos antígenos próprios e isto pode levar à ativação de
outros clones de células T autorreativos. Este processo de geração de novos clones autorreativos é
chamado “epitope spreading”.

Há fatores genéticos e ambientais (entre eles, infecções) que contribuem para o desenvolvimento da
autoimunidade, os quais citamos abaixo:
Fatores genéticos: estudos de doenças autoimunes mostram que estas doenças têm um grande
componente genético. Por exemplo: diabetes tipo 1 tem uma concordância de 35 a 55% em gêmeos
monozigóticos e 5 a 6% em gêmeos dizigóticos; há também as diferenças de incidência de doenças
autoimunes entre gêneros distintos, como verificamos na esclerose múltipla, que tem incidência 3x
maior em mulheres do que em homens. Muitas doenças autoimunes são poligênicas, assim, os
indivíduos afetados herdam vários genes polimórficos que estão localizados em determinados loci e
que contribuem para a susceptibilidade à doença. Alguns loci estão associados a vários tipos de
doenças autoimunes, sugerindo que estes estão envolvidos em mecanismos genéricos de controle
da tolerância. Outros loci estão associados a doenças autoimunes específicas, indicando que estes
estão envolvidos na lesão tecidual final. Contudo, os loci podem ter dezenas a centenas de genes,
dificultando suas associações com as doenças autoimunes. Entre os genes que estão nestes loci,
encontramos genes associados ao MHC. Caracterizações de HLA de pacientes com doenças
autoimunes mostraram que existem certos tipos de HLA que ocorrem em maior frequência. Destes
estudos, calcularam-se os riscos relativos de indivíduos portadores destes tipos de HLA. A
associação mais forte é vista na espondilite anquilosante (doença autoimune que leva à inflamação
das juntas vertebrais), em que pacientes com expressão de HLA-B27 (MHC classe I) têm 90 a 100x
mais chance de desenvolver a doença. Contudo, a expressão de determinados tipos de moléculas do
MHC não é por si só, a causa da doença autoimune. Não sabemos quais os fatores que levam à
associação de determinados tipos de MHC com o desenvolvimento de doenças autoimunes, mas
pode-se inferir que a apresentação de um determinado epítopo leva à ativação das células T
autorreativas ou à falha na eliminação destes clones durante a seleção negativa. Outras anomalias
gênicas não-relacionadas com os genes do MHC podem influenciar no aparecimento de doenças
autoimunes. Por exemplo: o polimorfismo de CTLA-4 está associado com tireoidite autoimune e
diabetes tipo 1; mutações no gene AIRE causam poliendocrinopatia autoimune tipo 1 (ou síndrome
poliglandular autoimune tipo 1); mutações no gene Foxp3 causam deficiência na geração de Tregs e
desenvolvimento de autoimunidade sistêmica; deficiência genética de proteínas do complemento
(C1q, C2, C4) estão associadas ao lúpus (por deficiência na eliminação de imunocomplexos); e
mutações em Fas ou FasL levam ao desenvolvimento de doença autoimune sistêmica.

Fatores ambientais (infecções): infecções virais e bacterianas podem contribuir para o


desenvolvimento e exacerbação das doenças autoimunes, pois são frequentes os casos de pacientes
com doenças autoimunes que passaram por estas infecções pouco antes do aparecimento da
autoimunidade. Contudo, na maior parte das vezes, os agentes infecciosos não estão presentes nas
lesões, ou mesmo no indivíduo, quando a doença autoimune começa. Portanto, pode ter sido a
resposta gerada pela infecção que desencadeou a ativação dos clones autorreativos, ou desregulou a
tolerância imunológica. As infecções podem ativar as células apresentadoras de antígenos (APCs),
que agora passam a apresentar autoantígenos em um contexto inflamatório, ou podem gerar
peptídeos que ativam de forma cruzada os clones autorreativos (por exemplo, na infecção com
Streptococcus pyogenes e febre reumática, em que anticorpos contra a proteína-M da bactéria
acabam por reagir contra o miocárdio destes pacientes), levando ao aparecimento de
autoimunidade. Apesar do descrito acima, algumas infecções podem proteger contra o
desenvolvimento de autoimunidades, por geração de mecanismos de regulação imune. Podemos
verificar esta interferência quando as infecções suprimem o padrão de resposta que é responsável
pela doença autoimune; por exemplo, em infecções por helmintos que suprimem a ativação do
padrão Th1 de resposta, por desencadearem o padrão Th2. As infecções podem também induzir a
morte indiscriminada de células do sistema imune, pela produção exacerbada de radicais livres;
verificamos isso em algumas infecções por protozoários intracelulares, que levam à morte de
células T autorreativas.

Além dos fatores genéticos e ambientais, há outros fatores que podem ter influência nas doenças
autoimunes. É possível que traumas e isquemias dos tecidos possam levar a exposição ao sistema
imune de antígenos que, em situações fisiológicas, não aconteceriam. Esta exposição ativaria as
células autorreativas e desencadearia a resposta autoimune.

Possível papel das infecções no desencadeamento da autoimunidade.


Possível papel supressor das infecções na autoimunidade.

3. Características Gerais de Algumas


Doenças Autoimunes
Há vários tipos de doenças autoimunes, algumas mais fáceis de serem observadas na população,
enquanto outras são mais difíceis, até mesmo raras. Portanto, neste tópico, vamos abordar 4
doenças autoimunes que são mais “comumente” observadas na população, que são o Lúpus
Eritematoso Sistêmico (LES), o Diabetes tipo 1, a Esclerose Múltipla e a Artrite Reumatoide.

O Lúpus Eritematoso Sistêmico é uma doença multissistêmica crônica, com períodos de


recaída e remissão, que afeta predominantemente mulheres, com incidência de 1:700 em mulheres
de 20 a 60 anos (1:250 entre mulheres negras) e chegando a afetar mais mulheres do que homens, a
uma proporção de 10:1. Entre as manifestações clínicas da doença, temos as inflamações cutâneas
na face, as vasculites, a artrite e a glomerulonefrite, causadas pela deposição de imunocomplexos
antígeno: anticorpos, sendo estes últimos, na sua maioria, anticorpos anti-DNA dupla-fita, mas
também antiproteínas nucleares. A anemia hemolítica e trompocitopenia podem ser observadas
nesta doença devido aos anticorpos anti-hemácias e plaquetas. Os autoanticorpos que estes
pacientes produzem são de alta afinidade e a sua produção é dependente das interações células B
com células T autorreativas. Contudo, não se sabe se o problema ocorre por falha na tolerância
central e/ou periférica destas células. Pensa-se que anticorpos antiantígenos nucleares são gerados
por defeitos na eliminação de células em apoptose e por falha na tolerância. Em relação aos
componentes genéticos desta doença, observou-se que o risco relativo (quantas vezes a mais um
indivíduo tem chance de desenvolver a doença) de indivíduos que expressam alguns tipos de MHC
de classe II (HLA-DR2 ou HLA-DR3) é de 2 ou 3, ou ainda 5, se ambos estiverem presentes no
mesmo paciente. Deficiências nos genes de C1q, C2 e C4 estão presentes em 10% dos pacientes;
estas deficiências de proteínas do sistema complemento contribuem para a o acúmulo de
imunocomplexos e células apoptóticas. Entre os modelos de animais que desenvolvem uma doença
semelhante ao LES, encontramos: camundongos das linhagens NZB e (NZBxNZW)F1, em que
lesões de rins e anemia hemolítica são observados, assim como anticorpos anti-DNA; temos
também os animais que são deficientes na expressão de Fas ou FasL, que produzem anticorpos
anti-DNA e desenvolvem nefrite por acumulação de imunocomplexos nos rins; já em camundongos
machos BXSB, verificou-se a produção de anticorpos antiantígenos nucleares, vasculite e nefrite
severa; e, em camundongos “knock-out” (KO, que são camundongos com disrupção gênica) para o
receptor de IgG FcγRIIB (envolvido na supressão de ativação de células B), verificou-se que estes
animais desenvolvem uma doença similar ao LES. A característica em comum entre todos estes
modelos é a ativação de células T e B autorreativas.

Um fator que prejudica a saúde destes pacientes é a exposição à luz UV, uma vez que aumenta a
morte e substituição de células da pele, gerando um aumento de antígenos nucleares.

No Diabetes Tipo 1, doença previamente conhecida como Diabetes Melitus Insulinodependente,


também ocorre uma doença metabólica multissistêmica em decorrência da ausência de produção de
insulina, que torna os pacientes hiperglicêmicos e com cetoacidose diabética. Complicações
crônicas incluem aterosclerose, que pode levar à necrose isquêmica dos membros e órgãos internos,
e obstruções vasculares, que podem levar à lesão da retina, dos glomérulos renais e de nervos
periféricos. O pico da doença ocorre entre os 11 e 12 anos, mas, mesmo antes do desenvolvimento
do diabetes, os pacientes têm o desenvolvimento de insulite. A deficiência de insulina se dá devido
à destruição de células β do pâncreas, presentes nas ilhotas de Langerhans, e esta deficiência deve
ser reposta artificialmente. Vários fatores levam à destruição destas células β, entre eles, a reação
de hipersensibilidade do tipo tardio (DTH), mediada por células T CD4 e células T citotóxicas
(CTLs), que produzem localmente as citocinas TNF-α e IL-1, ativando macrófagos que destroem as
células β; também é verificada a presença de autoanticorpos nos pacientes e, em crianças, esta
produção é utilizada para predizer o desenvolvimento do diabetes. Em relação aos componentes
genéticos ligados a esta doença, foi verificada a associação com HLA-DR3, DR4, DQ2 e DQ8, todas
moléculas pertencentes ao MHC classe II. Aqui, há um fato interessante sobre a influência
ambiental no desenvolvimento do diabetes tipo 1: os dados epidemiológicos sugerem que repetidas
infecções levam à proteção contra diabetes e estas infecções provavelmente atuam em desvios de
padrões de resposta de células T e/ou morte de células ativadas, incluindo as células autorreativas.
Sobre os modelos experimentais que estão disponíveis, os camundongos diabéticos e não-obesos,
ou camundongos NOD (de “Non-Obese Diabetic”), desenvolvem insulite T-dependente, diabetes e
muitas células reconhecem insulina e a descarboxilase do ácido glutâmico (enzima das células β)
como autoantígenos. Há também animais transgênicos que expressam proteínas sob controle do
promoter de insulina que são utilizados para melhor compreender a patogênese da doença. Estes
camundongos expressam ovalbumina nas células β e, se cruzados com camundongos que
expressam TCR transgênico nas células T CD4 para reconhecimento desta proteína, eles passam a
desenvolver diabetes.
A Esclerose Múltipla (MS) é a doença autoimune neurológica mais comum entre adultos jovens.
Ela é caracterizada por fraqueza dos membros inferiores, paralisia e problemas oculares, com
reincidências e remissões. Nos pacientes, observam-se focos inflamatórios na matéria branca do
sistema nervoso central (CNS), com desmielinização secundária. Como não há agente etiológico
identificado para dar início à doença, a suposta sequência de eventos na MS (baseada no que é
observado nos modelos animais) é a seguinte: células T CD4 encefalitogênicas naïve (células T CD4
virgens que são capazes de gerar dano no CNS) são ativadas (no linfonodo) pela presença dos
autoantígenos, num contexto inflamatório forte. Estas células, agora ativadas, migram para a
medula espinal, liberam citocinas que atraem macrófagos que, por sua vez, destroem os
oligodendrócitos. Neste ponto, outras proteínas da bainha de mielina são expostas e acontece o
“epitope spreading”. Portanto, em humanos, como os pacientes vão ao médico após os primeiros
sintomas, provavelmente, existem vários clones antimielina ativados pelo “epitope spreading”.
Entre as terapias utilizadas, além dos imunossupressores, também são utilizados o glatimer acetato
(copaxone®, um antagonista de peptídeos encefalitogênicos) e o IFN-β (um dos interferons do tipo
1). Para evitar a entrada das células T CD4 no CNS, tem se utilizado um tratamento endovenoso
com anticorpo anti-VLA4; esta molécula é responsável pela adesão das células T aos endotélios do
corpo, um dos primeiros eventos nas migrações celulares para os tecidos; este tratamento pode
inibir significativamente as reincidências da MS mas, em alguns pacientes, ele pode deixá-los
susceptíveis a infecções virais no CNS. Em relação aos modelos experimentais, ratos,
camundongos, cobaios e primatas não-humanos, eles podem desenvolver uma doença similar que é
chamada Encefalomielite Autoimune Experimental (EAE), quando imunizados com proteínas da
bainha de mielina (entre elas, MBP, PLP ou MOG), que são emulsificadas em adjuvante contendo
Mycobcaterium tuberculosis morto por calor. A EAE começa por volta de duas semanas após a
imunização, com infiltrados perivasculares de linfócitos e macrófagos na medula espinhal e
subsequente demielinização na medula espinhal. Nestes modelos, a doença pode ser transferida
pela injeção sistêmica de células T enfefalitogênicas previamente ativadas, sendo que estas células
T podem ser dos padrões Th1 ou Th17. Um fato interessante é que a EAE pode ser prevenida pela
injeção de anticorpos anti-VLA-4 nos camundongos.
Na Artrite Reumatóide, observamos a inflamação nas sinoviais das juntas, especificamente, dos
dedos, ombros, cotovelos, joelhos e tornozelos, com destruição da cartilagem e do osso.
Macrófagos, células T CD4 (dos padrões Th1 e Th17), plasmócitos e células B são encontrados
nestes locais e, em casos crônicos, ocorre até mesmo o desenvolvimento de folículos linfoides.
Citocinas como IL-1, IL-8, TNF-α e IFN-γ são encontradas no líquido sinovial. Entre estas, TNF-α
provavelmente é a que mais contribui para a lesão, ativando a produção de enzimas proteolíticas
pelos macrófagos, levando à destruição da cartilagem e dos ligamentos. O bloqueio de TNF-α tem
sido de grande auxílio no tratamento dos pacientes. A natureza do antígeno desencadeador e a
especificidade das células T autorreativas são desconhecidas. Entre as complicações sistêmicas que
encontramos nestes pacientes, temos a vasculite e a injúria pulmonar. Pacientes com a forma
adulta da artrite reumatoide possuem anticorpos das classes IgG e IgM que reagem contra a porção
constante (porção Fc) das próprias IgGs. A presença destes anticorpos no soro dos pacientes é
utilizada para diagnóstico da doença e estes anticorpos são chamados de fatores reumatoides. Em
relação à participação de componentes genéticos nesta doença, verificou-se que a susceptibilidade
está associada ao haplótipo HLA-DR4 (molécula do MHC classe II). Sobre os modelos
experimentais que são utilizados para estudo desta doença, verificamos que, em camundongos da
linhagem mutante MRL/lpr (sem expressão de Fas), ocorre desenvolvimento espontâneo de artrite
reumatoide, com presença de fator reumatoide no sangue. A doença também pode ser induzida em
algumas linhagens de camundongos pela imunização com colágeno tipo II. Na linhagem de
camundongo K/BxN, a artrite reumatoide é mediada por anticorpos anti-glicose-6-fosfato
isomerase, proteína que está presente nas articulações. Em relação ao tratamento mais específico
para a artrite reumatoide, a injeção de anticorpos anti-TNF-α, ou do receptor solúvel de TNF-α, é
usada no tratamento da doença.

Na maioria das terapias contra as doenças autoimunes, são utilizados imunossupressores


genéricos, como a ciclosporina, que se liga à ciclofilina, que está presente no citosol das células T.
Esta ligação vai inibir a ativação da calcineurina, que é importante para a síntese de IL-2; sem a
produção de IL-2, as células T CD4 (e as células T CD8, pela ausência de IL-2 vinda das células T
CD4), não são ativadas. O problema com as terapias com imunossupressores genéricos é o
comprometimento das respostas imunológicas como um todo, e não somente aos clones
autorreativos. Por este motivo, é investido muito na pesquisa sobre formas imunossupressoras
tecido/órgão específicas. Nestas linhas de pesquisa, estão inseridos os laboratórios que têm seus
estudos focados nas células T reguladoras.
Possível patogenia do Lúpus.
Ilhotas de Langerhans em pacientes normais ou com diabetes tipo 1.

Lesão da bainha de mielina na esclerose múltipla.


Inflamação nas juntas durante a artrite reumatoide.

4. A Imunologia Por Trás dos Tipos


Sanguíneos
A necessidade de transfusões de sangue é muito antiga, desde as primeiras observações médicas,
quando as doenças eram atribuídas a desequilíbrios dos fluidos corpóreos. Entretanto, o primeiro
experimento que descreveu os tipos sanguíneos A, B, 0/O e AB ocorreu em 1901, pelo imunologista
Karl Landsteiner. A partir desta descoberta, a transfusão de sangue foi possível e grandemente
utilizada na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Quando pensamos nas transfusões de sangue, e sabendo que o sangue é um tecido do corpo,
podemos assumir que estas transfusões são, na verdade, transplantes de tecido. De acordo com o
que já aprendemos sobre os transplantes, eles envolvem antígenos que não são próprios do
organismo receptor. Portanto, as transfusões de sangue poderiam ser incluídas dentro do estudo da
resposta imune contra antígenos não-próprios. Porém, voltando aos estudos de Landsteiner, eles
eram anteriores à descoberta das moléculas do MHC, que são as moléculas responsáveis pela
rejeição de tecidos. Deste modo, sendo o sangue um tecido transplantado, como ele não era
rejeitado pelo doador, importando apenas a compatibilidade de antígenos A e B? A resposta para
esta pergunta está numa constatação que foi feita muito depois dos estudos de Landsteiner: as
células anucleadas não expressam MHC classe I; ou seja, a rejeição da doação de sangue entre
pacientes não ocorre porque não há moléculas do MHC para serem reconhecidas, direta ou
indiretamente, conforme vimos no estudo da resposta imune nos transplantes. Com base nesta
constatação, decidiu-se incluir o estudo da resposta imune contra os antígenos das hemácias dentro
do estudo de respostas imune contra antígenos próprios.

Nas transfusões de sangue, os antígenos do sistema AB0/O são os mais importantes; ao contrário
do que muitos imaginam, não só os eritrócitos, mas todas as células do organismo, expressam
antígenos do sistema AB0/O. Além disso, já existem anticorpos da classe IgM previamente
formados nos indivíduos contra os antígenos que eles não expressam. Por exemplo: um indivíduo
com tipo sanguíneo A possui anticorpos da classe IgM na sua circulação contra o antígeno B. Estes
anticorpos que ocorrem sem a exposição prévia do sistema imune ao antígeno são chamados de
anticorpos naturais e a sua produção não envolve a cooperação entre linfócitos B e T.

Porém, não há apenas os antígenos A e B e H nas hemácias; há um outro antígeno, o antígeno D,


que pode estar ou não expresso nos eritrócitos. Portanto, os indivíduos, de acordo com a expressão
ou não de antígeno D, podem ser qualificados em Rh positivos ou negativos, respectivamente. Este
sistema é conhecido como grupo Rh e, neste caso, os indivíduos não possuem anticorpos
previamente formados contra o antígeno D, caso sejam Rh negativos.

Como não há anticorpos naturais contra o antígeno D, as respostas anti-Rh só ocorrem após
exposição prévia ao antígeno D. A exposição leva à produção de anticorpos da classe IgG contra o
antígeno D e é esta produção que é responsável pela doença hemolítica do recém-nascido, ou
eritroblastose fetal, observada nos bebês Rh-positivos nascidos no segundo parto de mães Rh-
negativas. Nestes casos, ocorreu a exposição da mãe Rh-negativa ao sangue Rh-positivo do feto, em
um primeiro parto, fazendo que a mãe fosse imunizada contra o antígeno D, produzindo IgG contra
este antígeno. Como IgG é transportada ativamente pela placenta, quando ocorre a gestação de um
segundo filho Rh-positivo, estes anticorpos chegam até o feto e começam a destruir as hemácias
dele, gerando a doença. A eritroblastose fetal pode ser evitada se a mãe for tratada 72 h antes do
parto do primeiro filho com anticorpos anti-Rh. O mecanismo pelo qual este tratamento funciona é
desconhecido, mas, aparentemente, funciona através de eliminação rápida dos eritrócitos fetais, ou
pela supressão da ativação de células B maternas via FcγRIIB.

As transfusões de sangue só ocorrem em pacientes que sejam compatíveis nos sistemas AB0/O e
Rh. Antes da descoberta destes grupos sanguíneos, quando ocorria a transfusão de sangue entre
indivíduos incompatíveis, observávamos uma rejeição hiperaguda do sangue recebido. Nesta
reação, era observada a hemólise (lise de hemácias), extensiva fagocitose de eritrócitos por
macrófagos do fígado e do baço, necrose de células do tubo renal (por acumulação de
hemoglobina), febre, choque e coagulação intravascular disseminada (por secreção massiva das
citocinas TNF-a, IL-1), e consumo de fatores de coagulação, levando à morte por hemorragia.
Na rejeição hiperaguda dos transplantes, ocorria a reação dos anticorpos naturais do receptor
contra os antígenos do sistema ABO do doador. Este tipo de rejeição, por incompatibilidade do
sistema ABO, já não ocorre mais, porque os transplantes, além da tipagem para haplótipos do MHC,
também são feitos entre pacientes de tipos sanguíneos compatíveis.

Grupos sanguíneos do sistema ABO.

5. Conclusão
Ao terminarmos este tópico, aprendemos como a resposta imune pode ser direcionada aos nossos
próprios antígenos, causando as enfermidades que conhecemos como doenças autoimunes.
Aprendemos também sobre quatro destas doenças (Lúpus, Diabetes tipo 1, Esclerose Múltipla e
Artrite Reumatóide), pois são as doenças mais comumente encontradas na população. Com a
conclusão deste tópico, o aluno deve estar apto a responder questões relativas ao papel do sistema
imune e quais são as moléculas e células que promovem o aparecimento das autoimunidades.
6. Referências
ABBAS, A. K.; LICHTMAN, A. H. H.; PILLAI, S. Imunologia Celular e Molecular. 8a Edição
ed. [s.l.] Elsevier Inc., 2015.

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