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Misabel de Abreu Machado Derzi
Onofre Alves Batista Júnior
Heleno Taveira Torres
REFORMAS OU DEFORMAS
TRIBUTÁRIAS E FINANCEIRAS
por que, para que, para quem e como?
Copyright © 2020 by Editora Letramento
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-86025-20-0
CDD 341.39
2020-934 CDU 34:336.2
ȗȌ PREFÁCIO
Gilmar Ferreira Mendes
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TRIBUTÁRIA BRASILEIRA E SUAS DEFORMAÇÕES
Os Organizadores
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E A CAPACIDADE DE ATINGIR OBJETIVOS PRETENDIDOS
Amanda Flávio de Oliveira
Alexandre Antônio Nogueira de Souza
Ȍ ɈɁɱ OS DEMAIS ASSUNTOS DA REFORMA
André Horta Melo
ȗǴ ɈȌȌ PLANO “MAIS BRASIL”: AJUSTE FISCAL POR MEIO DA CONVALIDAÇÃO
DE RETROCESSOS FEDERATIVOS EM SAÚDE E EDUCAÇÃO
Élida Graziane Pinto
ȗ INTRODUÇÃO
O aspecto jurídico da reforma da chamada tributação indireta sobre
o consumo passa necessariamente pela alteração das regras de com-
petência tributária. A doutrina aponta, com certa uniformidade, que
a opção da Constituição de 1988 foi a de repartir essa modalidade de
tributação entre a União e os Estados e o Distrito Federal, com a res-
pectiva competência para instituir o IPI e o ICMS.
O caráter indireto dessa tributação é construído por uma compreen-
são teleológica2 da não-cumulatividade e pela diferença de regime
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jurídico entre as partes da operação. Esses impostos incidem sobre
operações com bens e mercadorias e sobre prestações de serviços, apre-
sentando vocação e propósito para que o ônus do imposto seja repercu-
tido ao longo de uma cadeia concatenada dessas operações e prestações.
Aos contribuintes desses impostos, que se encontram inseridos nessa
cadeia, garante-se o direito de crédito do imposto incidente na etapa
anterior, eliminando-se assim a possibilidade3 de que o ônus do im-
posto eventualmente repercutido no valor da operação ou no preço do
serviço, venha a integrar a base de cálculo da incidência na etapa pos-
terior desse ciclo. O adquirente ou tomador que não realiza posterior
operação ou prestação, não se enquadrando na definição de contribuin-
te, não tem créditos a compensar, apresentando-se assim como a pes-
soa que possivelmente assumirá o ônus tributário4. Daí a diferença de
regime jurídico entre as partes da operação ou prestação: o adquirente
ou prestador inserido na cadeia tem o direito ao crédito das operações
e prestações anteriores, enquanto o adquirente ou tomador situado no
final da cadeia é excluído de qualquer relação jurídica tributária.
A jurisprudência do STJ ainda considera como indireto o imposto
municipal sobre serviços de qualquer natureza quando tenha como
elementos quantitativos da obrigação tributária uma alíquota ad valo-
Added Tax and direct taxation: similarities and diferences. LANG, Michael; MELZ,
Peter e KRISTOFFEERSSON, Eleonor (Editores). IBFD: Amsterdã, 2009, p. 2)
3 A adoção de termos probabilísticos na exposição aqui empreendida se dá por-
que, como bem apontado por SCHOUERI (SCHOUERI, Luís Eduardo. A restitui-
ção de impostos indiretos no sistema jurídico-tributário brasileiro. RAE-Revista de
Administração de Empresas. [S.l.], v. 27, n. 1, p. 39-48, jan. 1987), a efetiva reper-
cussão do ônus do tributo no preço de bens e serviços é matéria que depende de
fatores de mercado, e não de prescrição jurídica. É ver inclusive que, no caso do
ICMS, a LC nº 87/96 é expressa em atribuir ao imposto destacado no documento
fiscal o caráter de mecanismo de controle da cadeia de débitos e créditos (art. 13,
§1º, I), não constituindo assim um mandamento e nem uma permissão para que o
fornecedor ou prestador inclua o imposto no preço praticado.
4 Nesse sentido: “se o consumidor é o único que não tem direito de crédito, cor-
respondente ao imposto suportado em suas aquisições, então a ordem jurídica su-
põe que sofra a repercussão (jurídica) do tributo” (DERZI, Misabel Abreu Machado.
Distorções do Princípio da Não-Cumulatividade no ICMS – Comparação com o IVA
Europeu. In: COELHO, Sacha Calmon Navarro; et. al. (coords.). Temas de Direito
Tributário: I Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário, Belo
Horizonte: Livraria Del Rey, 1998. p. 116).
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rem e por base de cálculo o preço do serviço5. Dispensou-se a não-cu-
mulatividade como elemento essencial à caracterização da tributação
indireta, contentando-se com incidência do imposto sobre um negócio
jurídico oneroso firmado entre partes identificáveis, de onde se pode
presumir a repercussão de seu ônus.
Deve ser considerado, contudo, que não há mecanismo jurídico que
elimine a possibilidade de que o prestador suporte eventual ônus do
imposto incidente em etapa anterior. Nessa perspectiva, prestador e
tomador não se diferenciam juridicamente, pois nenhum deles tem
direito ao crédito do imposto incidente em etapas anteriores6. A reper-
cussão do ônus do imposto e, consequentemente, seu caráter indireto,
é determinada apenas por fatores de mercado, e não pelo direito.
Mas se analisada a questão sob a ótica reformista esses dados pu-
ramente jurídicos não são determinantes. Uma visão econômica da
potencialidade que esses impostos apresentam para serem repercutidos
sobre o consumidor final pode ser um efeito econômico suficiente para
englobá-los, conjuntamente, em uma proposta de reforma tributária.
Nesse contexto é que os tributos sobre receita bruta ou faturamento
também são considerados como alvos de alteração nas propostas de re-
forma tributária, notadamente o PIS e a COFINS. Não há dado jurídico
que permita enquadrá-los como tributos indiretos. Em primeiro lugar
porque não incidem sobre negócios jurídicos, mas sobre a receita ou
faturamento. Além disso, mesmo quando não-cumulativos o caráter
indireto não se apresenta, pois nesse caso nem todos os contribuintes
situados no interior de um ciclo de operações ou prestações dispõem
de um mecanismo para eliminar o possível ônus da etapa anterior7.
5 STJ, REsp 1.131.476/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em
09/12/2009, DJe 01/02/2010.
6 A afirmação de que o ISS não é plurifásico é contingencial, e não característica
perene do imposto, pois isso demandaria que a lei limitasse sua incidência quando
da prestação ao consumidor final, o que não ocorre. Como exemplo, tenha-se em
conta uma situação em que um prestador de serviço de transporte, contratado para
realizar transporte dentro do município, subcontrate o serviço. Tanto o contratante
quanto o subcontratante serão submetidos ao ISS, sem que nenhum deles tenha
direito ao crédito ou outro mecanismo de eliminação do possível ônus do imposto
repercutido no preço, no que não se diferenciam em nada do consumidor final
tomador do serviço.
7 No PIS e na COFINS não há vinculação entre o crédito da etapa posterior e o tri-
buto da etapa anterior, pois o crédito é calculado pela aplicação das alíquotas a que
submetido o contribuinte. Assim um contribuinte sujeito ao regime não-cumulativo
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Partindo da leitura econômica desses tributos, tem-se que, em maior
ou menor extensão, tanto a PEC nº 45/2009 quanto a PEC nº 110/2019,
pretendem introduzir uma nova regra de competência tributária para a
instituição do IBS, acompanhada da revogação das regras de competên-
cia tributária pertinente a outros tributos, dentre eles aqueles que, na
visão dos seus proponentes, oneram indiretamente o consumo. A PEC
nº 45/2009 propõe a revogação das regras de competência tributária
para instituir o IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins, enquanto a revogação pro-
posta pela PEC nº 110/2019 alcança as regras pertinentes ao IPI, IOF,
PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS. E
ambas também consagram a não-cumulatividade para o novo imposto.
O presente artigo não abordará a motivação dessa alteração, que pas-
sa pelos argumentos de simplificação, racionalidade, transparência, e
nem as razões dos seus opositores, a exemplo da quebra do pacto fe-
derativo e do anunciado aumento da carga tributária sobre o consumo.
O objeto do artigo é analisar a competência tributária e a não-cu-
mulatividade do IBS tais como redigidas nas duas propostas. A análise
é relevante porque, apesar do propósito de se instituir um imposto
plurifásico e não-cumulativo de base e creditamento amplos, sabe-se
que a intenção do legislador tem papel controverso na tarefa de inter-
pretação jurídica. Uma compilação de razões contra seu uso pode ser
encontrada resumidamente na obra de ALEXY8 ao discutir o argumento
genético de interpretação e, detalhadamente, em DWORKIN9, ao dis-
correr sobre a intenção legislativa, embora este último autor as utilize
como trampolim para reafirmar sua teoria interpretativa do direito e o
papel da intenção na interpretação das leis.
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ALEXY10 afirma que objetivos expostos no processo legislativo, quer
de maneira formal no seu trâmite ou mediante opiniões seriamente
manifestadas em público, podem ser utilizados pelo intérprete sem ca-
ráter determinante, mas apenas como um dos argumentos para supor-
tar a interpretação. Contudo, o argumento literal e textual terá sempre
prevalência na interpretação, não podendo ser superado ou corrigido
pelo intérprete com base em na intenção, propósito ou finalidade que
não sejam mediadas pelo texto legal. O intérprete está sempre vincu-
lado ao texto normativo11, que é o instrumento utilizado pelo Direito
para impor expectativas normativas e parâmetros de soluções de con-
flito12, sob pena de corrupção do sistema jurídico13.
O presente artigo, portanto, aborda a redação das regras propostas
pela PEC nº 45/2019 e pela PEC nº 110/2019 e explora, a partir da
atual jurisprudência sobre esses temas, os impactos que a formulação
do texto proposto pode ter na compreensão das características do IBS.
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O CASO DO IPI NA IMPORTAÇÃO PARA CONSUMO FINAL
O sistema constitucional tributário brasileiro é caracterizado por
uma rígida repartição de competências tributárias na qual, em razão
do regime federativo adotado, cada ente tributante teve a faculdade de
instituir tributos determinada por regras que veiculam conceitos de fa-
tos jurídicos passíveis de tributação, cuja instituição pode ser exercida
10 Nesse sentido Alexy afirma que: “[…] a intenção do legislador é apenas uma
razão para a interpretação. Isso possibilita a apresentação de razões contrárias.”
(ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild
Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 230) o que significa que as afirmações dela extraí-
das devem passar pela “exigência de saturação” e serem justificadas pela argumen-
tação racional.
11 ÁVILA , Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 183.
12 O que não significa a adoção de um literalismo nominalista, da tese da única
resposta correta, da desnecessidade de interpretação diante de uma redação clara e
outras ideias correlatas.
13 NEVES, Marcel. Concretização constitucional e controle dos atos municipais. In:
GRAU, Eros Roberto Grau e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coord.). Estudos de Direito
Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 572-3.
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exclusivamente14 pelo Poder Legislativo (CF; art. 150, I) de cada uma
das pessoas políticas. Noticia-se, embora em caráter não determinante
para o presente texto, que duas correntes disputam a compreensão
desses conceitos, uma afirmando que se tratam de conceitos classifica-
tórias e outra de conceitos de tipo.
Para a primeira vertente, os fatos tributáveis previstos nas regras
de competência tiveram suas características rigidamente fixadas pela
Constituição, que não podem ser flexibilizadas ou renunciadas pela
lei15. A lei deve, portanto, especificar fatos geradores que se guardem
exata correspondência com o conceito constitucional.
Já a segunda corrente preconiza que a Constituição descreveu fatos
tributáveis que guardam uma essência típica, mas cujas características
não foram rigidamente fixadas, fixação que caberia à lei complementar
de normas gerais ao definir o fato gerador dos impostos discriminados
na Constituição (art. 146, III, ‘a’ da Constituição). Portanto, apenas
seria possível saber o conceito rígido do fato gerador do imposto após
sua definição por meio da lei complementar de normas gerais16, que
poderia adaptar os tipos tributários previstos nas regras de competên-
cia à evolução das relações sociais e econômicas, incorporando novas
características a serem ordenadas sob as regras de competência tribu-
tária, respeitando-se, contudo, o limite do atípico.
De qualquer forma, para ambas as correntes, a materialidade descrita
nas regras de competência tributária expressam fatos tributáveis17, ou
14 Há exceções constitucionais para a definição de alíquotas de alguns impostos,
de caráter preponderantemente extrafiscais, que podem ser feitas por ato do Poder
Executivo nos limites e condições postos em lei. Cite-se, a título exemplificativo, o
art. 150, §1º da Constituição.
15 Essa a posição, por exemplo, de Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Competências
tributárias. São Paulo: Malheiros, 2018). O tema relativo aos tipos e conceitos e a
posição pela prevalência dos conceitos no direito tributário foram pioneiramen-
te explorados por Derzi (DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, direito
penal e tipo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988), que também justifica
o método conceitual classificatório para a abordagem das regras de competência
tributária.
16 SCHOUERI, Luís Eduardo. Discriminação de competências e competência residual.
In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (coordenadores). Direito
tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998.
17 Como a Constituição não institui o tributo, não é adequado mencionar hipótese
de incidência, fato gerador, fato imponível ou outras expressões construídas no
plano legal da incidência tributária. Adotam a terminologia aqui utilizada: AMARO,
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seja, fatos aos quais pode o legislador ligar a consequência jurídica
consistente no dever de pagar tributos. A Constituição, portanto, não
institui o tributo, mas apenas regula os limites dentro dos quais este
pode ser introduzido no ordenamento jurídico por meio de lei18.
A Constituição, contudo, não previu uniformemente os mesmos as-
pectos do fato tributável para todos os tributos, e nem mesmo o as-
pecto material foi estabelecido com os mesmos aspectos em todas as
regras de competência tributária. No que interessa ao presente artigo,
para alguns tributos foram ressaltados o verbo e seu complemento que
compõem o aspecto material do fato tributável19, enquanto para outros
o verbo não foi explicitado20.
Como exemplos de tributos nos quais o verbo foi explicitado cite-se
os impostos sobre importação de produtos de estrangeiros; exportação
de produtos nacionais; prestação de serviços de comunicação; presta-
ção de serviços de transporte interestadual e intermunicipal (arts. 153,
I e II e art. 155, II). Pelo contrário, prevê a Constituição a competência
federal para instituir imposto sobre produtos industrializados e muni-
cipal sobre serviços de qualquer natureza (art. 153, IV e art. 156, III).
Nesses dois últimos casos, não há indicação de qual verbo compõe o
aspecto material do fato tributável, mas apenas do seu objeto (produ-
tos industrializados e serviços de qualquer natureza).
Luciano. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 260 e BARRETO,
Aires F. ISS na Constituição e na lei. 2ª. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 33.
18 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 478-481. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tribu-
tária. 6ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 66.
19 Sobre a construção do aspecto material da regra-matriz de incidência tributária
ou da hipótese de incidência tributária vide, respectivamente, CARVALHO, Paulo de
Barros. Direito tributário linguagem e método. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 389
e ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 82.
20 Essa constatação não implica a escolha por tipos ou conceitos, pois a divergên-
cia entre as respectivas correntes se dá quanto à subsunção ou ordenação de fatos
às regras de competência, mas nenhuma delas permite que o legislador estabeleça
tributos contrariando os aspectos do fato tributável expressamente indicados nas
regras de competência. Mesmo a doutrina dos tipos exige esse respeito à regra cons-
titucional, admitindo apenas uma variabilidade e uma interseção entre as regras de
competência à qual sejam ordenadas as hipóteses de incidência, e não uma sepa-
ração rígida e fixa entre elas que imponha uma correspondência por subsunção.
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Essa opção constitucional tem implicações diretas sobre a liberdade
do legislador para estabelecer a hipótese de incidência do imposto.
Como a regra de competência tributária aponta as possíveis hipóteses
de incidência dos tributos discriminados21, quanto a menor a quanti-
dade de características do fato tributável indicada pela regra de compe-
tência, maior a gama de situações que podem ser por ela abrangidas22.
Para demonstrar essa situação, veja-se o caso do IPI. Na ausência do
verbo, o CTN (arts. 46 e 51) estabeleceu a incidência do imposto sobre
múltiplas condutas realizadas com produtos industrializados. Dentre
elas utilizaremos como exemplo para analisar as propostas de reforma
tributária a incidência do IPI na importação de produto industrializado
por consumidor final.
No caso da importação de produtos industrializados para consumo
final, dois dos argumentos para afastar a incidência do IPI podem ser
assim resumidos: a) o imposto incidiria sobre operações, o que de-
mandaria a natureza mercantil da importação, inexistente no caso da
importação por consumidor final e; b) o pagamento do imposto não
geraria nenhum crédito a ser compensado, o que implicaria ofensa à
não-cumulatividade. Os argumentos chegaram a ser acatados, respec-
tivamente, pelo STJ23 e pelo STF24.
Em ambos os casos parece ser necessário invocar o dispositivo cons-
titucional que estabelece a não-cumulatividade do imposto (art. 153,
§3º, II) como suporte da conclusão. Nele são referidas as sucessivas
operações tributadas que, encadeadas, devem ensejar a cadeia de crédi-
to e débito que instrumentaliza a não-cumulatividade. Isso demanda-
ria que o fato tributável do IPI sempre fosse caracterizado no contexto
da realização de operações.
21 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 482.
22 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 3ª ed. revi-
sada, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 49.
23 STJ, REsp 1.396.488/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julga-
do em 25/02/2015, DJe 17/03/2015
24 STF, RE 550.170-AgR, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma,
julgado em 07/06/2011, publicado no DJe de 04/08/2011 e RE 501.773-AgR,
Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 24/06/2008, publicado no
DJe de 15/08/2008.
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Ocorre que o entendimento ao final consolidado pelo STF, em reper-
cussão geral, foi o de que é constitucional a determinação de incidên-
cia do IPI na importação por consumidor final25. Logo, se a regra de
competência não traz como elemento do fato tributável a realização de
operações, é possível a instituição de um imposto monofásico sobre
o objeto nela indicado (produtos industrializados), como ocorre no
caso da importação de produtos industrializados por consumidor final,
onde não haverá inserção do produto industrializado importado em
uma cadeia de atos empresariais, incidindo o imposto uma única vez
e sem direito a crédito.
É possível concluir, portanto, que a visão do STF é a de que o dis-
positivo que estabelece não-cumulatividade para o IPI não determina
necessariamente a incidência plurifásica, e nem exige do legislador que
tribute apenas operações inseridas em uma cadeia mercantil. Logo, se
a regra de competência se refere a um objeto sem indicar a atividade
sobre ele ou com ele exercida, é dado ao legislador escolher com maior
margem de liberdade o verbo que indica essa atividade, não ficando
ainda obrigado a disciplinar o creditamento do imposto pago se não
houver a realização de uma operação posterior tributada.
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E O PROBLEMA DA AUSÊNCIA DE UNIFORMIDADE
COM A REGRA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
Ao disciplinar a competência tributária para instituição do ICMS, o
art. 155, II da Constituição se refere à realização de “operações” e à
“prestação” de serviços. Contudo, ao disciplinar a não-cumulatividade
o imposto, a Constituição não adotou linguagem consistente com a
regra de competência tributária.
No art. 155, §2º, I da Constituição, a não-cumulatividade do imposto
é prevista de forma a abranger tanto as operações quanto as prestações.
Sendo assim, uma prestação anterior tributada vinculada a uma ope-
ração posterior tributada26 gera créditos do imposto para a viabilizar a
compensação decorrente da não-cumulatividade.
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Contudo, ao estabelecer restrições ao direito de crédito, a Cons-
tituição não abrange uniformemente as operações e prestações e as-
sim dispõe:
Art. 155, §2º (…) II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em
contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas
operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
Quando a isenção ou não-incidência se verificam na etapa anterior,
o art. 155, §2º, II, ‘a’ não garante o respectivo crédito para a compen-
sação com o imposto devido nas operações ou prestações posterio-
res. Mas quando a isenção ou não-incidência são previstas na etapa
posterior, o art, 155, §2º, I, ‘b’ afasta o direito de crédito apenas para
as operações anteriores, não se referindo expressamente às prestações
anteriores. A LC 87/96, por sua vez, afasta o direito ao crédito também
quanto às prestações anteriores (art. 21, I). Essa inconsistência
normativa foi noticiada por MOREIRA27 que, apesar de entender pelo
direito de crédito quanto às prestações anteriores tributadas, dada a
ausência de restrição expressa no art. 155, §2º, II, ‘b’, identifica deci-
sões do STF sobre casos análogos que podem tanto legitimar quanto
afastar o direito ao crédito.
É possível concluir, no mínimo, que a ausência de parametrização
entre os dispositivos que regulam a competência tributária e os que re-
gulam a não-cumulatividade do imposto podem ensejar controvérsia.
O objeto da divergência é a extensão ou restrição do direito ao crédito
quando as atividades referidas na regra de competência tributária não
são reproduzidas nos dispositivos que regulam a não-cumulatividade.
ǶɊǛ
§1º. O imposto sobre bens e serviços:
I – incidirá também sobre:
a) os intangíveis;
b) a cessão e o licenciamento de direitos;
c) a locação de bens;
d) as importações de bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos;
(…)
III – será não-cumulativo, compensando-se o imposto de- vido em cada
operação com aquele incidente nas etapas anteriores;
Do texto proposto, percebe-se que a atividade a ser realizada pelo
sujeito passivo somente é referida nas alíneas “b”, “c” e “d” do inciso I
do §1º do art. 152-A. Já a alínea “a” e o caput do dispositivo não con-
tam com menção a nenhuma atividade, sendo nelas referida apenas os
objetos: bens, serviços e intangíveis.
Essa redação pode ensejar divergências que parecem não se adequar
à pretensão de instituir o IBS como um imposto único de mercado,
plurifásico e não-cumulativo. Na ausência da especificação da ativida-
de (o verbo do aspecto material), a redação da emenda poderia justifi-
car uma tributação sobre o “desenvolvimento” de um ativo intangível,
a exemplo da criação de sistemas, licenças, propriedade intelectual,
conhecimento mercadológico, nome, reputação, imagem e marcas
registradas28. Como é ostensivo o caráter intelectual desse desenvol-
vimento, ele pode ser realizado diretamente pelos sócios, diretores e
empregados de uma pessoa jurídica com grande parte do investimento
se referindo a remunerações não tributadas pelo IBS e, portanto, sem
créditos do imposto. Um ativo intangível pode, portanto, ser criado
internamente e com pequena participação de investimentos tributa-
dos pelo IBS (o que significa pouco volume de créditos), para poste-
riormente ser empregado em uma outra atividade ou ser cedido ou
alienado a outra pessoa que dele fará uso. Isso ensejaria a tributação
de uma atividade na qual a pessoa jurídica não trava nenhuma relação
com terceiros e nada recebe, mas sim investe para aumentar seu ativo.
Contra essa possível tributação, algumas objeções poderiam ser le-
vantadas. A primeira delas é de que o inciso III, prevendo a não-cumu-
latividade entre operações tributadas, não autorizaria uma tributação
antes da realização de uma operação junto a outros agentes econô-
micos. Contudo, como visto, esse argumento não foi ao final vence-
ǶɊȎ
dor na análise da incidência do IPI na importação para consumo fi-
nal pelo STF.
Em segundo lugar, é inegável que essa tributação, na fase de desen-
volvimento de ativos intangíveis e antes de sua inserção no mercado
como objeto de transações significaria grande desincentivo à inova-
ção. Como o IBS é concebido à nos termos dos impostos plurifásicos e
não-cumulativos, ele deve ser neutro e se amoldar ao mercado29, e não
atuar como desestímulo ao desenvolvimento tecnológico.
Por último, poderia se argumentar pela ausência de capacidade eco-
nômica, dada a inexistência de valor reconhecido pelo mercado en-
quanto referido ativo não seja objeto de negociação (cessão ou alie-
nação) a terceiros. Mas essa compreensão da capacidade econômica
como indicadora de valor líquido reconhecido pelo mercado também é
controversa. Cite-se por exemplo a formulação de GALLO30, para quem
manifestações de vantagem social e econômica, desde que mensurá-
veis, indicam capacidade contributiva e a viabilidade de se impor a
repartição do encargo tributário ao sujeito que mobiliza fatores econô-
micos em seu interesse. Admite-se assim maior liberdade estatal para
escolher a riqueza a ser tributada, não ficando a lei restrita a executar
regras de mercado que reconhecem como riqueza disponível à tributa-
ção apenas aquela valorada com certo patamar de liquidez.
Aproveitando a análise da disposição relativa à não-cumulatividade,
pode-se verificar que a redação se mantém próxima à atual redação
prevista para o ICMS e para o IPI, referindo-se às operações anteriores
e posteriores. Ocorre que nem no caput e nem no §1º do art. 152-A é
mencionado o termo “operações”. Para evitar segregações do imposto,
bem como eventual prejuízo macroeconômico por quebras na não-cu-
mulatividade, é recomendável uma uniformização na linguagem do
texto constitucional. A mencionada inconsistência atual na restrição
ao crédito do ICMS acima noticiada é exemplo a ser evitado, dada a
controvérsia ensejada.
Já o texto inicial da PEC nº 110/2019 apresenta uma redação um
pouco mais detalhada, fazendo referência a uma atividade (operações,
importações e locações) em todos os dispositivos que definem a com-
29 DERZI, Misabel Abreu Machado. Aspectos Essenciais do ICMS, como imposto de mer-
cado. In Direito tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. SCHOUERI,
Luís Eduardo e ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). São Paulo: Dialética,
1998, p. 122
30 GALLO, Franco. Le ragioni del fisco. 2ª ed. Bolonha: Mulino, 2011, p. 85-90.
ǶɃɳ
petência tributária. Não há, como na PEC nº 45/2019 uma referência
exclusiva a objetos, com omissão da conduta a eles relativa (indicativa
do verbo componente do aspecto material). Essa a redação inicial pro-
posta das regras de competência e da não-cumulatividade do imposto:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir:
(…)
IV -por intermédio do Congresso Nacional, imposto sobre operações com
bens e serviços, ainda que se iniciem no exterior.
§ 7° O imposto de que trata o inciso IV do caput deste artigo será instituído
por lei complementar, apresentada nos termos do disposto no art. 61 , §§
3° e 4°, e atenderá ao seguinte:
(…)
II - será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada opera-
ção com o montante cobrado nas anteriores, sendo assegurado:
a) o crédito relativo às operações com bens e serviços empregados, usados
ou consumidos na atividade econômica, ressalvadas as exceções relativas a
bens ou serviços caracterizados como de uso ou consumo pessoal;
III - incidirá também:
a) nas importações, a qualquer título;
b) nas locações e cessões de bens e direitos;
c) nas demais operações com bens intangíveis e direitos;
Uma crítica que pode ser endereçada também a essa redação é a falta
de uniformidade entre os dispositivos que estabelecem a competên-
cia e não-cumulatividade. Isso porque este se refere exclusivamente às
“operações”, enquanto aqueles se referem, além das “operações”, tam-
bém às “importações” e às “locações”, sem equipará-las à operações.
A uniformização das expressões também seria desejável, para afastar
qualquer interpretação que pretenda se utilizar da distinta redação dos
dispositivos que regram a competência para fraturar a não-cumulati-
vidade do imposto.
O mesmo problema pode ser visualizado na complementação de
voto do Senador Relator da PEC nº 110/2019, no qual foram analisadas
e acolhidas em parte as emendas propostas pelos demais senadores.
Eis a redação dos dispositivos pertinentes como constam da referida
complementação de voto:
Art. 155-A. Lei complementar, apresentada nos termos do art. 61, §§ 3º
e 4º, instituirá imposto sobre operações com bens e serviços, cuja com-
petência será compartilhada pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos
Municípios.
§ 1º O imposto de que trata o caput atenderá ao seguinte:
(…)
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II - será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada ope-
ração com o montante efetivamente pago nas etapas anteriores ou con-
comitantes da cadeia de circulação dos bens, serviços e direitos, sendo
assegurado:
a) o crédito físico e financeiro, integral e imediato relativo a todas e quais-
quer aquisições realizadas, independentemente de os bens ou serviços ad-
quiridos serem caracterizados como de uso ou consumo, ou integrados ao
ativo imobilizado, exceto nas operações com bens ou serviços caracteriza-
dos como de uso ou consumo pessoal;
III – incidirá também:
a) nas importações a qualquer título;
b) nas locações e cessões de bens e direitos, exceto de bens imóveis;
c) nas operações de seguro, cosseguro, previdência complementar e
capitalização;
d) nas demais operações com bens intangíveis e direitos.
Apesar de não haver referência a objetos sem a indicação das ativi-
dades com ou sobre eles exercida (o verbo do aspecto material do fato
tributável), nota-se que não há consistência entre os dispositivos que
atribuem a competência tributária e os que instituem a não-cumula-
tividade. Como exemplo, verifica-se que o art. 155-A, §1º, III, ‘b’ se
refere a um fato que não necessariamente implica aquisição de bens ou
serviços (cessão de bens e direitos), enquanto o art. 155-A§2º, II, ‘a’ ao
explicitar a amplitude da não-cumulatividade se refere a “aquisições”
de bens e serviços, não mencionando a “cessão” de bens e direitos.
ǩ CONCLUSÃO
O presente artigo se ocupou da redação dos dispositivos que regu-
lam a competência tributária e a não-cumulatividade do IBS na PEC
nº 45/2019 e na PEC nº 110/2019. Com base na jurisprudência sobre
temas correlatos em matéria de IPI e ICMS, conclui-se que o texto das
propostas de alteração pode ser aperfeiçoado.
Quanto à competência tributária, a falta de explicitação da atividade
(o verbo do aspecto material) pode dar ensejo a uma tributação que
não se coaduna com a ideia do IBS como um imposto de mercado,
plurifásico e neutro, a exemplo da possível abrangência do desenvol-
vimento de ativo intangível dentro de uma pessoa jurídica. Já quanto
à não-cumulatividade, nota-se um descompasso entre os fatos tributá-
veis segundo a regra de competência e a descrição dos fatos que geram
direito ao crédito a ser compensado com o tributo devido, em uma
situação que gera controvérsia sobre o alcance e extensão do direito ao
crédito inerente à não-cumulatividade.
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