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CAPÍTULO XX
Objectivos
Pretende-se que no final da leitura deste capítulo, o leitor ou a leitora seja capaz de:
COMPREENDER A COMPETÊNCIA
Aprende-se, ou ensina-se, a agir eticamente? A pergunta será natural para alguns, bizarra para
outros. Em qualquer dos casos, dar resposta é importante, dado que algumas vozes asseveram a
impossibilidade de prescrever orientações quanto aos comportamentos eticamente recomendáveis
ou sobre como evitar actos indesejáveis, nomeadamente nas organizações1, atribuindo às
convicções éticas um estatuto que não difere do mero gosto ou opinião. Descartando essa
orientação, ainda que cientes dos riscos da tarefa, assumimos uma resposta positiva à questão
inicial: neste capítulo tratamos das competências subjacentes às decisões e aos comportamentos
individuais sensíveis ao escrutínio ético, particularmente quando ocorrem no âmbito organizacional.
Relativizando as polémicas sobre a (im)possibilidade de “objectivar” normas éticas, tomaremos
em consideração, sobretudo, os resultados recentes da pesquisa nos domínios da psicologia e
especialmente da psicologia social. Estes mostram que, em situações consideradas eticamente
dúbias, as decisões estão, muitas vezes, fora do controlo consciente e podem mesmo entrar em
conflito com os padrões morais do indivíduo. Quer dizer, pessoas “boas” podem fazer coisas “más”,
continuando a ver-se como moralmente impolutas2. Como adiante veremos, diversos processos
psicológicos concorrem para que tenhamos tendência a enviesar as nossas decisões nas questões
éticas sem sequer estarmos cientes disso, um fenómeno a que se atribuiu a designação “eticidade
limitada”3.
Alguns dos resultados da investigação sobre os comportamentos éticos permitem ajudar a
detectar e compreender as dificuldades individuais no acto de discernir entre vários cursos de acção
em situações eticamente dúbias e constituem, portanto, uma base aceitável para estabelecer
orientações para as decisões neste domínio. Em suma, trata-se de uma perspectiva que permite
uma abordagem descritiva e não apenas prescritiva, oferecendo ideias sobre as dinâmicas
cognitivas e emocionais bem como acerca das motivações subjacentes aos comportamentos menos
éticos das pessoas.
Avaliar o carácter problemático de uma situação em termos éticos e saber como conduzir o
subsequente processo de tomada de decisão podem, assim, constituir-se como competências
pessoais, susceptíveis de aprendizagem, reflexão e treino como quaisquer outras. Ainda que não
garantam o carácter ético de uma decisão ou de um comportamento, fazem parte dos requisitos
para o conseguir. Não se trata, por isso, de promover competências de ética, mas competências
para a ética. Não receitas, mas ingredientes.
Nesse sentido, mais do que expor e promover normas, como é usual neste domínio, pretende-se
aqui fornecer informação específica sobre as competências que favorecem o processo proactivo de
tomada de decisão ética, incluindo evidências sobre dificuldades que as abordagens tradicionais da
ética geralmente ignoram. São igualmente sugeridas formas de apoiar directamente o
comportamento ético nos outros, bem como indicações para implementar mudanças no ambiente
social que possam promovê-lo. Para esse efeito, considera-se que uma decisão ética é a que se
revela “aceitável tanto legal como moralmente para a comunidade alargada” 4
Apesar de abranger potencialmente todos os contextos sociais, este capítulo dá destaque aos
aspectos éticos do comportamento nas organizações. Afinal, passamos uma parte importante do
nosso tempo interagindo enquanto membros, clientes ou utentes de organizações e adentro delas
lidamos com algumas das questões éticas mais agudas. E, nos tempos que correm, é indiscutível
que os desmandos éticos nas organizações concentram mais a nossa atenção do que outros
domínios da vida social.
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outro, tornam virtualmente impossível antever todas as consequências que possam afectar outrem
numa tomada de decisão específica. Adicionalmente, o cálculo do maior benefício versus o menor
dano pode ser enviesado de forma a justificar a minimização da importância deste último. Apesar
destas fragilidades, pode considerar-se que a abordagem consequencialista apresenta um razoável
grau de utilidade imediata quando se pretende prescrever uma orientação ética para uma
organização ou para um grupo.
interesse próprio como únicos motores da economia. Todavia, como outros bem notaram14 numa
obra anterior, este putativo padroeiro do individualismo materialista expressa, na verdade, a crença
de que uma vida boa assenta na expressão da “benevolência'' e não da riqueza material. Isto é,
defende que o ser humano, por mais egoísta que possa parecer, possui “alguns princípios na sua
natureza, em que lhe interessa a sorte dos outros e torna a felicidade deles necessária para si
próprio, apesar de nada daí retirar excepto o prazer de a contemplar”15. Ou seja, Smith exprime a
convicção de que os seres humanos são empáticos por natureza e de que frequentemente se
sentem bem com o bem dos outros. Note-se que qualquer concepção da natureza humana nos
negócios que exclua este pressuposto genérico equivale a encarar o sofrimento de outros seres
humanos como resultado colateral e aceitável das actividades empresariais.
Na verdade, mesmo muitos dos que se regem pelo paradigma clássico da racionalidade
económica entendem que “o altruísmo e outros tipos de comportamento virtuoso podem ser
incorporados na função comportamental do agente económico”16. Por exemplo, os resultados de
experiências baseadas no chamado “jogo do ultimato” mostram que, mesmo em situações que
permitem dar primazia ao interesse individual, os seres humanos levam em conta os interesses de
outrem e evidenciam preocupações de partilha justa17. Neste jogo, um dos participantes, escolhido
aleatoriamente, é convidado a dividir uma determinada verba, fazendo uma oferta a um parceiro
anónimo. De acordo com a única regra do jogo, se o parceiro aceitar a proposta, cada um receberá
a quantia respectiva. Porém, se aquela não for aceite, nenhum dos dois receberá nada.
Aproximadamente 70% das ofertas situam-se entre 40% a 50% e apenas 4 em cada 100
participantes fazem propostas inferiores a 20% da quantia em jogo, sendo que do lado dos
participantes que as recebem mais de metade rejeita ofertas inferiores a 20%. Quer dizer, a maioria
das pessoas preocupa-se com a justiça da partilha. E, ao contrário da crença de que as pessoas só
fazem o bem por razões últimas de benefício pessoal, os resultados desta e de outras linhas de
investigação sugerem que as pessoas querem genuinamente ser éticas e que não tentam sê-lo
apenas por temerem um qualquer tipo de punição externa18.
Ainda que as abordagens consequencialista e deontológica sejam dominantes nas questões
organizacionais, alguns negam que a ética seja matéria de cálculo de consequências ou de deveres
aplicados apenas por obediência a princípios. É possível, por isso, defender uma ética da virtude
destinada a apoiar valores associados às aspirações no trabalho. Por exemplo, um estudo19 permitiu
salientar seis dimensões de virtude organizacional (integridade, empatia, calor, coragem,
consciência e zelo), as quais parecem estar associadas não só aos resultados de natureza
financeira, mas também a aspectos qualitativos, como sejam a satisfação dos empregados ou a
fidelização e retenção de clientes.
A “ética empresarial” é um caso à parte? Numa parte importante das abordagens, veicula-se a
ideia de que a ética nos negócios, e nas organizações em geral, corresponde a domínios
específicos, i.e., apenas diz respeito às actividades organizacionais. Nalguns casos, como acontece
com as empresas de investimento, que transaccionam produtos financeiros, a ética é, aliás, central
e inerente ao funcionamento organizacional20 Noutro extremo21, considera-se que não é possível
separar a identidade da pessoa dentro e fora do trabalho: se as pessoas agem de forma ética ou
não é uma questão individual e independente do contexto, inserida na vida organizacional ou não. E,
por isso, neste caso, assume-se que “ética empresarial” é coisa que não existe!
Note-se que esta última posição centra no indivíduo as causas determinantes dos
comportamentos éticos, ao passo que a ideia de especificidade da ética organizacional coloca
implicitamente a ênfase no contexto. Em alternativa, é possível assumir, uma posição que
poderíamos designar interacionista: considerar que o quadro de referência ético dos indivíduos é
multideterminado. Diversos factores do contexto afectam a conduta ética e, assim sendo, qualquer
orientação prescritiva sobre a tomada de decisão ética deverá ter em conta a natureza do ambiente
organizacional, para além de características individuais relevantes para o julgamento sobre os
objectos da decisão. Nessa perspectiva, que é a assumida neste capítulo, importa relevar as
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Atendendo à natureza e aos conteúdos dessa percepção, cinco tipos de clima ético ocorrem com
maior frequência27 Assim, em climas benevolentes as pessoas tendem a ver a organização como
entidade que se preocupa com o bem-estar dos outros, ao contrário dos climas instrumentais, que
evidenciam uma visão da ética subordinada ao interesse próprio mesmo em detrimento dos outros.
Quando as pessoas crêem que podem agir apenas baseadas nas suas convicções pessoais no
domínio ético, fala-se de climas de independência, por contraste com os climas de regras em que as
decisões organizacionais são percepcionadas como ancoradas em regras de conduta ética claras e
fortes. Finalmente, os climas de lei e código as escolhas éticas são tidas como reguladas por
códigos externos como a lei geral e as orientações normativas de conduta profissional.
Dado que as pessoas possuem uma necessidade básica de serem aceites pelos grupos a que
pertencem28 o clima afecta o comportamento ético dos indivíduos na organização, influenciando a
maior ou menor propensão dos indivíduos para se envolverem num um largo leque de
comportamentos antiéticos. Por exemplo, um clima ético claro e positivo diminui a probabilidade de
falsificação de relatórios29. Também a prevalência de manobras antiéticas para atingir as quotas de
venda30 e da mentira face a clientes e superiores hierárquicos31 parece ser tanto menor quanto mais
forte for a percepção de clima ético.
Liderança ética
Os numerosos escândalos que abalaram, nalguns casos drasticamente, a credibilidade de
organizações outrora tidas como honestas e impolutas estão associados ao comportamento de
líderes envolvidos em actos imorais e egoístas. Apesar da responsabilidade pela ética na acção ser
partilhada por todos os intervenientes na vida organizacional, na base dos processos mais
importantes estão líderes, cujos valores e interesses afectam, por um lado, a forma como as
decisões são tomadas e, por outro, determinam a importância atribuída pelos colaboradores às
considerações éticas a elas associadas. Daí a importância atribuída às práticas de liderança
enquanto “farol” ético para os comportamentos individuais na organização.
Os primeiros estudos empíricos sobre a questão da dimensão ética da liderança32 indicaram,
sem surpresa, que a reputação moral de um gestor é construída em torno da percepção de que este
é honesto, íntegro e de que manifesta interesse pelo bem-estar dos outros. Ou seja, na perspectiva
dos observadores, a envergadura moral do líder, enquanto indivíduo com traços de personalidade
favoráveis à moralidade na acção e com motivação altruística evidente, define a base da liderança
ética. Mas, para além da reputação, como se caracteriza a liderança ética no que respeita à acção?
Em termos comportamentais, pode ser definida como ''a demonstração da conduta normativamente
adequada através de acções pessoais e relações interpessoais, bem como a promoção de tal
conduta para os seguidores através da comunicação, do reforço, e da tomada de decisão''33 (p.120).
Quer dizer, a liderança ética distingue-se pela orientação proactiva relativamente aos problemas
éticos da organização e pela promoção explícita e continuada dos valores morais junto dos
colaboradores, recompensando explicitamente a conduta apropriada e punindo os atropelos às
normas. O exercício da liderança ética envolve, deste modo, a demonstração explícita e clara de
uma preocupação pela qualidade ética das decisões e dos comportamentos dos colaboradores.
Um gestor (supervisor, coordenador) pode ser uma pessoa moralmente impoluta e a sua acção
não configurar a de uma liderança ética? É possível responder afirmativamente: um líder pode
comportar-se de forma ética porque isso decorre dos seus valores pessoais, isto é, por ser uma
“pessoa moral”, e, no entanto, estar longe de exercer uma liderança ética, dado que age de modo
passivo ou omisso no que toca à influência intencional sobre o comportamento ético dos seus
colaboradores34.
Comunicar frequentemente sobre valores e incentivar orientações éticas nas decisões e nas
acções de outrem constitui um pilar visível da dimensão ética da liderança. Porém, a saliência do
comportamento do líder, projectando o seu papel de modelo, revela-se fundamental na construção
da orientação ética dos que o rodeiam. De facto, fazer o que faz o líder é sempre mais provável do
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que fazer o que ele diz. Os colaboradores antecipam o comportamento esperado e sabem qual é
recompensado ou punido, através do processo de aprendizagem social35, i.e., com base na
observação do comportamento do líder e das suas consequências. Adicionalmente, a aprendizagem
social, envolvendo processos de retenção mnésica e de antecipação de consequências, permite a
inferência de normas a partir dos comportamentos observados na interacção com o líder. De acordo
com as predições da teoria da aprendizagem social, quanto mais elevado for o estatuto do líder,
mais saliente é o seu comportamento e, logo, mais provável é que sirva de base à modelagem do
comportamento dos colaboradores. Este processo pode ser particularmente importante num domínio
pouco estruturado e frequentemente ambíguo como o da decisão ética. O que parece inquestionável
é que gestores e líderes são fundamentais para que se possa estabelecer um ambiente ético na
organização.
Julgamento ético
A forma como as pessoas decidem nas situações eticamente dúbias está longe de seguir o
modelo do decisor racional, o qual supostamente teria acesso a toda a informação pertinente para o
julgamento ético, que saberia descortinar conscientemente todas as possibilidades de acção moral
e, finalmente, que estaria capacitado para fazer as escolhas devidas. Pelo contrário, a investigação
mostra que as pessoas, apesar de tenderem a avaliar-se como mais éticas do que a média
(Trenbunsel,1998), usam frequentemente manobras cognitivas, das quais não possuem consciência
no momento, destinadas a mitigar a noção individual de obrigação ética quando o exercício desta
contraria as suas motivações e interesses. Podem, por exemplo, adoptar os pontos de referência
que melhor servem os seus interesses ou fazer comparações com acções ou decisões passadas
que resultam na alteração da gravidade ou do significado da escolha sujeita a escrutínio ético. Dito
de outra forma, actuam muitas vezes como “advogados intuitivos”38, que se enganam a si próprios,
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sensíveis à qualidade ética de uma decisão apenas depois de conhecerem as suas consequências
e acham-na eticamente aceitável ou não consoante a natureza destas.
Predisposições individuais
Apesar das manobras cognitivas anteriormente descritas ocorrerem de forma inconsciente e
instigadas por factores contextuais, a intensidade e a frequência do uso pode depender de
características distintivas da personalidade.
O maquiavelismo constitui um dos traços mais evocados quando se trata de aquilatar da
influência das diferenças individuais no comportamento ético. Deve a sua designação ao livro
clássico de Maquiavel sobre o poder, e refere-se à disposição individual para evidenciar “um estilo
interpessoal hipócrita que emerge a partir de uma rede mais ampla de crenças cínicas e de
moralidade pragmática”45. Na prática, um elevado grau de maquiavelismo está associado a uma
visão amoral e meramente instrumental da relação com os outros. De um modo geral, a pesquisa
sobre os efeitos deste traço pessoal sobre o comportamento social revela que as pessoas com
valores altos de maquiavelismo são significativamente mais propensas a ter intenções e a exibir
comportamentos claramente antiéticos, como mentir, enganar ou aceitar subornos.
Outra variável frequentemente referida é o locus de controlo, o qual se refere à crença
generalizada do indivíduo a respeito do controlo que julga possuir sobre os eventos da sua vida. Um
indivíduo com um locus de controlo interno acredita que o que lhe acontece é principalmente o
resultado dos seus próprios esforços, ao passo que um indivíduo com um locus de controlo externo
acentuado acredita que os eventos de vida são determinados principalmente pelo destino ou por
outros determinantes fora do seu controlo. Ainda que os resultados da investigação sejam
inconclusivos, é possível sugerir46 que alguém com elevado locus interno de controlo terá mais em
conta as consequências dos seus actos e maior propensão, por exemplo, para resistir à influência
de uma chefia com perfil eticamente dúbio.
A identidade moral refere-se ao modo como o indivíduo se vê a si próprio no que toca à ética, ou
seja “um autoconceito organizado em torno de um conjunto de traços morais”47, mas também a
assunção de um conjunto de valores morais e da propensão para sequências automáticas de
comportamentos características.
Sabe-se que as componentes da identidade afectam o modo como os indivíduos percepcionam
o mundo, e nomeadamente como julgam os acontecimentos. Por outro, lado existem abundantes
provas de que as pessoas têm necessidade de se percepcionarem como congruentes. Logo, quanto
mais saliente for a identidade moral para o indivíduo mais este sentirá ímpeto para a congruência,
i.e., necessidade de se implicar na moralidade na acção. Quanto mais as questões éticas forem
importantes para o modo como o indivíduo se vê, maior a propensão do para agir em conformidade.
Outras predisposições individuais parecem incrementar a probabilidade de comportamentos
menos éticos, sendo que algumas surpreendem por estarem geralmente associadas a condutas e
realizações socialmente desejáveis. Por exemplo, Francesca Gino e Dan Ariely, ao investigarem “o
lado negro da criatividade”48 mostraram que indivíduos com uma forte orientação para a criatividade
são mais propensos a comportamentos antiéticos. Aparentemente, esses indivíduos possuem mais
capacidades para justificar a desonestidade nos seus comportamentos. Num estudo de campo
numa agência de publicidade, os mesmos autores confirmaram a associação entre comportamento
antiético e funções criativas na organização.
Face à perplexidade gerada pela constatação de que os indivíduos se comportam
frequentemente ao arrepio dos seus próprios princípios, é natural a pergunta: como é possível que
certas pessoas actuem de forma claramente antiética sem sentirem qualquer tipo de perturbação?
Uma parte da resposta radica na maior ou menor propensão individual para o desprendimento
moral49, o qual constitui um importante factor antecedente de muitas decisões antiéticas. Refere-se
a um processo que permite que os indivíduos se envolvam em comportamentos antiéticos sem se
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sentirem mal por isso, distorcendo inconscientemente o modo como a sua decisão e o consequente
comportamento são interpretados por eles próprios. Três conjuntos de mecanismos o sustentam.
Em primeiro lugar, as pessoas podem reestruturar e reenquadrar cognitivamente o comportamento
eticamente dúbio de forma a torná-lo aceitável, como acontece, por exemplo, quando se justifica o
trabalho infantil, alegando que, decidindo de outro modo, a miséria atingiria as crianças.
O uso de linguagem eufemística é outra manobra cognitiva que mascara a gravidade de actos e
decisões. São exemplos conhecidos: referir “inverdades” que são, de facto, mentiras completas,
mencionar “danos colaterais” em vez de mortes de civis ou falar de “desinformação estratégica” que
corresponde, de facto, a engano deliberado da concorrência, ou ainda, defender “reestruturação” em
vez de despedimentos. As pessoas podem também fazer comparações desequilibradas: aceitar
dinheiro a mais num erro de trocos parece claramente um deslize menor quando comparado com
um roubo deliberado.
Um outro mecanismo de desprendimento moral assenta na minimização do papel do indivíduo
nas acções eticamente questionáveis, deslocando a responsabilidade para outrem (“foi uma ordem
superior”) ou diluindo-a (“foi uma decisão da equipa”). Finalmente, o desprendimento moral pode ser
conseguido minimizando as consequências (“não vem mal ao mundo se forjar algumas despesas a
apresentar na Contabilidade”) ou minimizando a percepção do dano que as acções causam nos
outros. No limite, estes últimos mecanismos podem incluir a negação da existência de vítimas ou a
atribuição da responsabilidade da desumanização
Ao facilitar a tomada de decisão antiética individual, o desprendimento moral desempenha,
provavelmente, um papel importante nos processos que conduzem às falhas de ética nas
organizações, De facto, pode até contribuir para perpetuar e disseminar a corrupção como statu
aceitável, dado que algumas decisões antiéticas, tomadas por indivíduos moralmente desprendidos,
tendem a ser recompensadas quando servem os interesses organizacionais50.
prescritiva parece indispensável, menos como repositório de normas do que como súmula de
orientações para a acção capazes de ajudar a estruturar os elementos necessários para a tomada
de decisão ética no quotidiano.
Para poderem constituir orientações válidas, recomendações como estas deverão ser
associadas a procedimentos que nos coloquem em alerta quanto a tendências egocêntricas e a
enviesamentos derivados de influências contextuais. Como vimos, a despeito do que se indica que
as pessoas deveriam fazer, sabe-se hoje que o processo de tomada de decisão ética é determinado
pela interacção complexa entre algumas características do decisor enquanto indivíduo e diversos
factores sociais e/ou organizacionais. Assim, os processos cognitivos envolvidos, as diferenças
individuais e a presença de características organizacionais incentivadoras ou inibidoras do escrutínio
ético das situações interferem na tomada de decisão sobre assuntos de carácter ético de tal modo
que as etapas previstas no modelo nem sempre são susceptíveis de ser plenamente consumadas.
Em qualquer caso, trata-se de incrementar o pensamento sistemático e reflexivo por contraponto
ao modo intuitivo, emocional e automático. De pensar com mais tempo e mais aprofundadamente
antes de decidir e agir.
Tomar consciência das questões éticas
São muitas vezes evocadas velhas regras de algibeira que prometem resolver as derradeiras
dúvidas quanto à eticidade de um determinado acto ou decisão. Por exemplo: “se você tem dúvidas
sobre se uma intenção é ética, então não o deve ser” ou “gostaria de ver o que pretende fazer
relatado na primeira página de um jornal? Se tem dúvidas é porque não é ético”. Ou ainda: “gostaria
que a sua mãe soubesse o que tenciona fazer? Se não, é porque não é ético”. Na verdade, a
despeito da utilidade instrumental de algumas destas recomendações normativas, apresentá-las
isoladamente pode sustentar a ilusão de que ser ético é fácil, de tal modo que uma simples pergunta
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faria sumir todas ambiguidades. Sendo verdade que os problemas morais, muitas vezes,
desencadeiam julgamentos intuitivos acerca do que está certo ou errado, a verdade é que a maioria
das decisões que envolvem questões éticas são complexas, antes de mais, porque não afectam
apenas matérias de que o decisor está consciente. No quotidiano, a interligação das decisões é a
norma. Sendo a atenção um recurso escasso51, qualquer decisão gera consequências e dilemas
que os indivíduos não detectam. Como acentuam Treviño e Brown52 os problemas éticos não andam
de bandeira na mão a chamar a nossa atenção!
Grande parte do que antes foi apresentado já deverá ter levado o leitor, ou leitora, a dar-se conta
de que a maioria das dificuldades de agir eticamente radica no relativo desconhecimento das
consequências negativas das nossas acções. Mais importante ainda, decidimos e agimos sem nos
darmos conta de que existe um problema ético. Daí que o primeiro passo para melhorar o nosso
desempenho neste domínio seja aumentar a sensibilidade às implicações éticas das situações.
Reconhecer uma questão ética consubstancia o uso do que se designa “consciência moral”.
Tradicionalmente, esta tem sido definida como a articulação entre a identificação das consequências
para os outros das possibilidades de acção de um indivíduo, numa dada situação, e o entendimento
intuitivo deste sobre o assunto53. Sendo questionável, como vimos, que as pessoas tenham
conhecimento consciente de todas as consequências das suas acções, parece mais realista e
prudente propor simplesmente que alguém possui consciência moral relativamente a uma situação
específica quando está ciente de que as suas acções afectam negativamente os interesses e o
bem-estar de outrem54. Isto é, quando o indivíduo possui a consciência, mesmo difusa, de que algo
pode ocorrer de prejudicial a outrem em resultado da sua decisão. A relevância ou importância que
a questão ética detectada possui para o indivíduo exprime-se no conceito de intensidade ética.
Em termos práticos, fortalecer a “consciência moral” consiste em desenvolver a capacidade de
reconhecimento ético. E este envolve o estabelecimento de rotinas de perscrutação: esta decisão
pode ser prejudicial a alguém ou a algum grupo de pessoas? Existe algum dilema ético associado,
i.e., a decisão envolve uma escolha entre um mal e um bem que acarreta um mal inevitável?
Igualmente, para garantir alguma segurança na decisão, é fundamental obter e analisar a
informação relevante sobre os factos conhecidos e tentar indagar da existência de factos
desconhecidos, mas de ocorrência provável.
No que toca a conflitos de interesses, reconhecer a sua existência é particularmente difícil para um
indivíduo isolado. O interesse próprio parece manifestar-se de forma mais automática do que as
obrigações profissionais ou os interesses dos outros. A tendência para o que se poderia designar
“ética egocêntrica”, como vimos antes, é de tal modo forte que parece irrealista imaginar que se
possam detectar essas situações de conflito sem apoio de outrem. E mesmo no que toca a este a
apoio, a única estratégia eficaz para obstar à percepção egocêntrica dos conflitos de interesses
consiste em intervir antes que as pessoas já tenham desenvolvido uma perspectiva enviesada nos
seus julgamentos, e/ou fazendo com que as pessoas detectem e se foquem nos pontos fracos das
suas posições ou intenções comportamentais.
Conhecer e avaliar as alternativas de decisão
Perante uma situação que reconhecemos como potencialmente problemática em termos éticos,
a primeira preocupação com vista a gerar alternativas de decisão deverá ser a de obter e verificar
factos. O que significa… ir além dos factos. Especificamente, trata-se de nos interrogarmos sobre o
que não sabemos, mas também acerca do que é (ir)relevante do ponto de vista ético. Indagar,
sobretudo, que outras partes, para além das que estão sinalizadas, podem ter interesse e ser
afectadas pelas consequências da decisão?
Na vida organizacional, muitas situações apresentam-se de forma repetida, o que permite
antecipar opções de resposta a situações potencialmente problemáticas em termos éticos. Assim,
as organizações podem produzir normas de decisão e acção para reduzir a incerteza e obstar a
algumas dificuldades de construção de alternativas. Como alguns notam55 as empresas investem
16 MANUAL DE COMPETÊNCIAS PESSOAIS, INTERPESSOAIS E INSTRUMENTAIS
muito tempo, dinheiro e energia a fazer com que os seus colaboradores sigam normas, desde
regras de preenchimento de impressos até formas correctas de atendimento dos clientes. Por que
não haveriam de fazer o mesmo no que toca às normas éticas? Indicar com clareza que presentes
dos fornecedores são ou não aceitáveis ou, ainda, que despesas de deslocação deverão ser
consideradas são apenas exemplos restritos, mas óbvios, de normas relacionadas com a conduta
ética nas organizações, cuja repercussão é imediata e controlável.
Focar-se nos princípios
De modo geral, quando estão psicologicamente distantes, por exemplo, quando antecipam
situações futuras, as pessoas são capazes de pensar sobre os pontos de vista de outras pessoas e
sobre alternativas de acção nessas situações56, mesmo quando contraditórias entre si. São, aliás,
mais capazes de pensar conceptualmente, ponderando os princípios que guiam a decisão do que no
momento em que a concretizam ou, como vimos antes, o “dever” nem sempre é congruente como o
“querer”.
Também no que toca a escolhas éticas, quando predizemos como nos iremos comportar numa
dada situação, em que existem opções tentadoras, mas antiéticas, é o pensamento abstracto que
domina: conseguimos isolar as dimensões do problema e estabelecer intenções com base no que
deveríamos fazer, separando o que desejamos e o que achamos que devemos fazer. Daí que uma
recomendação óbvia aponte para que pensemos mais nos princípios do que nos possíveis ganhos
ou perdas envolvidos na situação. Para aumentar a probabilidade de que exista congruência entre
os princípios e a acção é necessário prolongar este enfoque nos princípios até ao momento de
passar à acção Uma táctica de apoio para conseguir cumprir esta recomendação consiste em
evocar, no momento de agir, uma das “regras de algibeira” anteriormente mencionadas: “sentir-se-ia
confortável a partilhar esta decisão com a sua mãe?” Ou ainda: “imagine uma nota biográfica sobre
si. O que gostaria que constasse nela do ponto de vista dos seus princípios?”.
Analisar as alternativas de acção conjuntamente
Tal como acontece noutros domínios, ter mais alternativas não garante a eficácia na decisão
ética. Mas o modo como se analisam as várias opções de acção pode fazer a diferença.
Especificamente, quando as pessoas pensam sobre uma opção de cada vez, analisando prós e
contras, tendem mais a basear a decisão na valência das emoções que lhes estão associadas do
que quando comparam duas ou mais opções simultaneamente, avaliando-as conjuntamente57.
Porque muitas decisões podem beneficiar de aprofundamento da elaboração cognitiva e do controlo
das emoções, é importante entender como usar a análise conjunta de alternativas como uma
ferramenta no domínio moral. Tal como no enfoque nos princípios, esta abordagem força-nos a
explicitar critérios de mais alto nível e a fazer uso de pensamento abstracto, o que pode actuar como
uma espécie de tampão à saliência do “querer” em detrimento do “dever”. De resto, existem
evidências de que usar deliberada e conscientemente formas de pensamento sistemático antes de
fazer opções moralmente questionáveis pode melhorar a qualidade ética das decisões58,
provavelmente porque reforça o “dever” em detrimento do “querer”, no momento de decidir.
Tornar saliente e pública a intenção ética
Quando se comprometem publicamente com uma decisão, as pessoas tendem a mantê-la e agir
de forma coerente mesmo contra obstáculos e evidências antagónicas. Por exemplo, quanto mais
um gestor defende firme e publicamente determinado projecto, mais irá persistir em levá-lo por
diante, mesmo que os resultados se mostrem continuadamente negativos e/ ou haja reacções
adversas. Porque conduz a um nível de persistência que tende a ir além da racionalidade, esse
fenómeno, a escalada de compromisso (ver capítulo Y -decisão), produz frequentemente resultados
desastrosos. Todavia, como sugerem Anne Tenbrunsel e Max Bazerman59, é possível usá-lo em
prol da decisão ética. Assim, induzindo um compromisso explícito e público com uma intenção ética
aumenta-se a probabilidade de agir em conformidade no momento de concretizar a decisão,
actuando de forma coerente e persistente. Trata-se, afinal, de tirar partido de uma táctica de auto-
AGIR DE FORMA ÉTICA 17
Em suma…
O produto da reflexão efectuada neste capítulo pode, porventura, sumarizar-se assim:
independentemente das nossas intenções, desconhecemos grande parte dos atropelos éticos que
cometemos e, tal como acontece noutros tipos de decisões, conhecemos mal as nossas
preferências. O que, no caso da ética, quer dizer que temos dificuldades em traduzir em
comportamentos o que julgamos serem os nossos valores e princípios. Consequentemente,
decidimos e agimos muitas vezes contra as nossas próprias orientações morais declaradas.
Conhecer os principais obstáculos ao reconhecimento da existência de questões éticas nas
situações quotidianas, dentro e fora das organizações, pode constituir-se como um passo essencial
para decidir eticamente. São ainda partes integrantes e fundamentais das competências para a ética
identificar e saber como atenuar os enviesamentos que nos impelem para o autofavorecimento e
que mitigam a percepção das consequências negativas das nossas decisões.
B) ANALISAR A COMPETÊNCIA
As afirmações seguintes60 reflectem crenças pessoais sobre a moralidade.
Indique em que medida concorda com cada afirmação. Para responder, utilize a seguinte
escala:
2 3 4 5
Resposta
Quando alguém me faz um favor, sei que ele, ou ela, espera um favor em troca.
A natureza humana é assim: quase tudo o que as pessoas fazem é apenas para
zelar pelos seus interesses.
A maioria das pessoas não percebe que as nossas vidas são governadas por
jogos de interesses criados em segredo por políticos e grandes empresas.
Digam o que disserem, os homens estão interessados em mulheres por uma única
razão.
TOTAL
Uma pontuação total acima de 55 pontos pode indicar uma propensão para olhar o mundo
de forma tendencialmente cínica. O cinismo é um dos maiores obstáculos ao
comportamento ético. Impede uma apreciação aberta das situações que envolvem perigos
de decisão antiética e constitui uma justificação a priori para deslizes neste domínio.
C – TREINAR A COMPETÊNCIA
Nos exercícios seguintes, pode o leitor aplicar algumas indicações para a decisão ética expostas
e discutidas no capítulo.
Detectores de radar
Os detectores de radar são dispositivos simples, mas muito sensíveis, com a ajuda dos quais os
condutores são avisados da existência de um radar da polícia nas proximidades.
Quando um automóvel equipado com um desses dispositivos entra dentro do campo de acção
do radar, o detector activa um aviso luminoso e sonoro para que o condutor possa desacelerar antes
AGIR DE FORMA ÉTICA 19
que a velocidade excessiva possa ser detectada pelo equipamento da polícia. O uso de detectores
de radar é proibido em alguns países, mas a sua produção e promoção é uma realidade.
Um gestor de uma das empresas que produzem e vendem detectores de radar afirmou: “ nós
somos especialistas em electrónica e instrumentação de alta tecnologia. Os detectores são apenas
um item no nosso portefólio. Produzimos para os revendedores que os querem comprar. O que
fazem com eles depois de os entregarmos não é da nossa conta”
Pergunta:
• Concorda com esta afirmação?
• Existe algum problema ético nesta situação? Se sim, quais as partes envolvidas?
• Ensaie uma resposta a este gestor.
Ética na empresa
Que consequências
Caso A
Notas capítulo X
20 MANUAL DE COMPETÊNCIAS PESSOAIS, INTERPESSOAIS E INSTRUMENTAIS
1
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5
A palavra “deontologia” deriva do étimo grego deon, que significa “dever” ou “obrigação”.
6
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