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Análise Psicolbgica (1990), 4 (VIII): 399-402

O Luto por Morte Perinatal e/ou


Malformação do Bebé

LÍLIA MARIA FERREIRA (*)


GRAÇA MADEIRA GÓIS (*)
MARIA DA CONCEIÇÃO FARIA (*)
MARIA DE JESUS CORREIA (*)

I. INTRODUÇÃO do bebé-real ou imaginário - e da qual surge


esta reflexão.
Na Instituição em que trabalhamos, umas das
situações com que frequentemente nos
deparamos é a da Morte Perinatal. Como 11. O VIVENCIAR DA SITUAÇÃO
parêntesis podemos dizer que em 1987 a taxa
de Mortalidade Perinatal atingiu os 20.5%, o Numa perspectiva dinâmica, as grandes
que é importante considerar. alterações psicológicas que ocorrem no período
Uma outra situação que também nos surge de gravidez com a mulher, têm a ver com o
com alguma frequência tem a ver com as reactivar de conflitos vivenciados na sua
Malformações do Bebé. infância, com a sua própria mãe.
Qualquer destas situações é um desafio A gravidez surge, assim, como um grande
complexo para nós, psicólogos, e para a família período de resolução de conflitos ou, pelo
da criança afectada. contrário, da sua reactivação.
Não importa se a criança viveu uma hora ou Tendo em conta o reactivar dos conflitos
algumas semanas; se foi um feto inviável com passados, não nos parecerá estranho que se
baixo peso ou se tinha o peso adequado; se foi reavivem conflitos relativos a própria identidade
ou não uma gravidez planeada. O que acontece sexual: é a mulher que deixa de ser filha para
de certeza é uma reacção de sofrimento se tornar mãe.
emocional, que acarreta ajustamentos Tudo isto tem a ver com dificuldades ou não
psicológicos, familiares e individuais, difíceis da sua finalidade, dificuldades estas que se
de serem vividos e aceites, que são sem dúvida poderão expressar numa incapacidade de ser
merecedores da nossa atenção. mãe e manifestar-se de diferentes formas,
nomeadamente no plano somático com
Por o que acabámos de referir, torna-se
representação psíquica. Por exemplo, podemos
compreensível a intervenção profissional que
dizer que a mãe ao não proporcionar o meio
realizamos nas situações que envolvem a perda
intra-uterino adequado a um desenvolvimento
físico saudável ao bebé poderá estar a exprimir
(*) Psicólogas do Departamento de Psicologia as suas tendências hostis em relação a ele,
Clínica da Maternidade Dr. Aifredo da Costa. rejeitado pelo seu inconsciente.

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Existe, portanto, uma problemática ligada a Tendo em conta a vivência emocional da
imagem precoce da sua identidade sexual e da gravidez, obviamente que a morte perinatal
sexualidade em geral que terá repercussões em envolve estes sentimentos de luto. Há, portanto,
vários fenómenos, entre os quais a morte para a maioria dos pais um choque, uma
perinatal. Para além deste aspecto, devemos ter descrença e um período inicial de intensos
em c o n t a que a morte perinatal, distúrbios emocionais (ex: raiva, tristeza,
independentemente dos fenómenos inconscientes ansiedade) seguido de um período de adaptação
que lhe estejam adjacentes, envolve um processo gradual em que se verifica diminuição da
de luto com sentimentos de angústia e reacção emocional.
culpabilidade. O choque, a descrença e a recusa parecem
A perda experimentada pela mulher, ocasiona ser uma tentativa compreensível para escapar
uma reacção depressiva que apela para o uso a notícia traumática que foge a expectativa.
intenso de mecanismos de defesa. Haverá pois Há, portanto, a vivência de um período de
um sentimento de luto normal que envolve crise no qual existe o impacto, o aumento de
sintomatologia somática e psicológica. tensão aliado ao stress e o retorno ao equílibrio.
Para Lindeman, luto normal é definido como Existe sem dúvida uma diminuição do reagir
um processo que envolve sofrimento somático, com as actividades usuais capazes de solucionar
preocupação com a imagem do objecto perdido, o problema e, assim, resolver a crise.
sentimentos de culpa e preocupação com No início, a reacção total pode ser retardada
pequenas omissões e negligências, hostilidade ou haver embotamento, reagindo os enlutados
em relação ao meio circundante e alterações como se nada houvesse. Seguem-se crises de
p r o f u n d a s nos padrões normais de saudade e angústia com os sintomas associados,
procedimento. começando estes a declinar após 1 a 6 semanas
Este sindrome pode surgir imediatamente e sendo mínima após 6 meses.
após a perda, ou estar aparentemente ausente. Um outro luto que importa «ajudar a
O período de dor e sofrimento é normal e resolver» é a perda da criança «normal» quando
necessário na perda do objecto amado, sendo nasce uma criança com malformação.
a sua ausência um sinal de alarme. Solmit e Stark, relacionam a crise provocada
Permitir que o luto não fique bloqueado e pelo nascimento de uma criança malformada
se complete, é tarefa do psicólogo que trabalha com a provocada pela morte perinatal, pois,
com esta situação. Parafraseando Coimbra de em ambos os casos, há a perda do filho normal
Matos, «Devemos ajudar a ‘vestirem-se de luto’ que era esperado.
por estas perdas, a expressar a sua dor, a Aqui há que elaborar o luto da criança
deprimirem-se, a desequilibrarem-se para que idealizada ou, utilizando a terminologia de
se possam reequilibrar de forma estruturada, Coimbra de Matos, «O objecto idealizado
com o conflito ‘resolvido’ e não a pseudo perdido)). Só o luto deste objecto ideal trava
equilibrar-se, organizando a sua vida numa fuga a depressão causada pela perda libidinal.
a depressão, que mantém no inconsciente o luto No entanto, a sequência de reacções em
por viver.» ambos os casos - morte perinatal e
Fazer o trabalho de luto e poder conquistar malformação - é diferente. Pois quando nasce
novo objecto é, portanto, a única saída da uma criança com malformação existe uma
depressão (doença). necessidade de afeiçoamento a esta. Devido aos
Este processo, independentemente da situação complicados acontecimentos suscitados pela
concreta, parece seguir um curso prevísivel que continuação da vida da criança e exigências do
Kennell divide nas seguintes fases: cuidar dela, a tristeza que é inicialmente elevada
diminui com o cuidar físico.
- Choque Pelo contrário, quando a criança real morre
- Recusa há um ((duplo luto» com perda do bebé interno
- Tristeza e Raiva idealizado e do bebé externo.
- Equilibrio Se o objecto desaparece ou é abandonado -
- Reorganização por morte ou decepção - a agressividade para

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ele dirigida e os consequentes sentimentos de IV. CASO ILUSTRATIVO
culpa aumentam desmedidamente, obrigando
a um reforço do recalcamento que vai bloquear Tentando ilustrar a perturbação emocional
o processo de luto que importa desbloquear. que acarreta para uma família o nascimento de
uma criança malformada, passaremos a
apresentar um breve resumo de um caso por
111. REFLECTINDO SOBRE nós acompanhado n a instituição onde
A INTEREVENÇÃO trabalhamos.

Tendo em conta o que acabámos de referir A Marina tem 32 anos, é operária fabril,
urge, então, perguntar como é que nós, casada há 11 anos, com uma filha de 8.
psicólogos clínicos, poderemos intervir nestas Aparentemente existe um bom relacionamento
situações. familiar. Planeou uma segunda gravidez, «a
Da nossa prática, verificámos a importância minha filha pedia muito um irmão e agora
duma abordagem imediata, num clima decidi-me.)) A gravidez decorreu sempre bem,
facilitativo - criado através de uma escuta foi seguida, fez duas ecografias que não
empática e activa - que permita a verbalização apontavam quaisquer problemas; no entanto,
da agressividade, da culpa, das fantasias o parto mostrou-se difícil e foi necessário
relativas a origem e consequências do problema proceder a uma cesariana. Verificou-se que o
e, consequentemente, a resolução dos bebé era portador de Sindrome de Down.
sentimentos de luto. Quando a Marina acordou da cesariana,
Ao mesmo tempo é feita uma sensibilização ainda no bloco operatório, foi-lhe comunicado,
aos outros técnicos, no sentido de os ajudar por outros técnicos, que o bebé tinha alguns
a lidar com estas situações, o mais problemas, ao que ela reagiu de forma violenta
adequadamente possível. (evidenciando bem a 1." fase do processo de luto
Concretamente, e na linha de Kennell, todas segundo Kennell - o choque), o que suscitou
as informações relativas a situação devem ser nos técnicos a necessidade de recorrer a
dadas a ambos os pais, pois que cada um pode intervenção do Psicólogo.
experimentar os sentimentos de choque, recusa, Passamos a transcrever alguns excertos de
raiva, culpa e adaptação a um ritmo diferente sessões com a Marina, nas quais é evidente a
sendo importante que possam receber e discutir reacção e evolução do processo de luto e de
juntos a informação, a fim de serem mantidos adaptação a criança:
os padrões de comunicação e relacionamento
«Eu não sou mãe deste monstro, fui mãe da
do casal.
minha filha mas disto não sou... eu não lhe
O contacto com a realidade do problema é
vou dar peito, não vou dar o meu leite a isto,
importante que seja estabelecido o mais cedo
e mesmo biberon vamos a ver se dou...))
possível, uma vez que a imagem mental que os
«Eu devia ter apertado as pernas quando
pais fazem da anomalia é mais alarmante,
nasceu, assim pronto ... eu não o quero ver,
normalmente, que a realidade.
se o vir é para lhe pôr uma almofada na
Deve-se ter em conta, sempre que possível,
cara.»
da importância de realçar os aspectos normais
«Sei lá como reagir com este monstro, será
e saudáveis da criança, no caso de criança
que chora, será que mama de 3 em 3 horas.»
mal formada.
Convém, sobretudo, não esquecer que Nestas frases é saliente a dificuldade e recusa
situações deste tipo despoletam sentimentos de da aceitação da situação.
impotência, insucesso e fragilidade nos técnicos Em relação ao marido:
da instituição, que é importante poderem ser
trabalhados; e que eles próprios se permitam «Eu não sei como reagiu... sei que isto é dele,
um espaço onde falem das suas vivências, na minha família não há nada disto, eu já
desdramatizando e reduzindo a ansiedade quando acontece alguma coisa o culpo a ele
envolvida na situação. quanto mais agora ... e ele tem uma prima

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em segundo grau que é mongolóide, eu sei Algumas semanas depois:
que é dele... quero fazer um estudo genético,
«Esta situação é muito difícil, ainda não
se se detectar alguma coisa separo-me, não
percebo bem como isto pôde acontecer e o
estou para viver com um homem estragado.))
que vai ser o nosso futuro com ela, mas se
«Será que isto é um castigo de Deus por eu agora morresse ia-me custar muito. Ela tem
ter feito um aborto há 4 anos? Se calhar o coisas queridas... e já viu a Rita vem tão
outro era normal e eu achava que não tinha bonita que nem parece deficiente... eu só
dinheiro suficiente e agora sai-me isto.)) queria que um dia mais tarde ela se valesse
a ela própria ... tenho que mudar algumas
Aqui verificamos manifestações de raiva
coisas na minha vida, estar mais tempo com
projectada no exterior e de culpabilidade,
ela do que se fosse um bebé normal mas
havendo, no entanto, já um envolvimento de
havemos de fazer o melhor possível por
si própria na situação, o que representa uma
ela...))
fase mais adiantada do processo.
Nestes últimos momentos está bem patente
a vontade da Marina reorganizar a sua vida de
A Marina pediu para ver o bebé ao fim de
forma a incluir um bebé deficiente, não negando
dois dias:
que ele existe e tem problemas, não esperando
«Já viu como ela é... não sei como a hei-de demais dele, mas o que lhe é possível.
educar.))
((Tenho de lhe vestir umas roupas bonitas BIBLIOGRAFIA
para ver se os outros não olham para ela
Coimbra, A.M. (1980). Sobre a Depressão. O Médico,
como uma curiosidade ... e além disso não 97: 363-370.
q u e r o q u e a m i n h a filha fique Coimbra, A.M. (1983). Três notas sobre depressão.
impressionada.)) Jornal do Médico, Maio.
«Já tem nome a rapariga, é Rita, foi a minha Deutsch, H. (1949). La Psychologie des Femmes (Vol.
filha que escolheu... não é um nome feio, 2). Paris: PUF.
não é o que tinha pensado porque não fui Justo, J. (1986). Zntodução ao estudo defensivo da
capaz, mas é engraçado, já agora que não mulher grávida. Lisboa.
seja tudo mau, não consegui pôr Raquel mas Langer, M. (1986). Maternidade e Sexo. Porto Alegre:
Artes Médicas.
Rita também é bonito.»
Maldonado, M.T.P. (1982). Psicologia da Gravidez,
Parto e Puerpério (5: Ed.). Rio de Janeiro.
Continuamos a verificar uma evolução no
Soifer, R. (1980). Psicologia da Gravidez, Parto e
processo de luto da criança idealizada. Começa Puerpério. Porto Alegre: Artes Médicas.
a notar-se uma tendência para o equdibrio com
uma progressiva aceitação da realidade da Rita. RESUMO
Neste artigo as autoras abordam a vivência e
problemática das mulheres a quem morrem os filhos
Após ter tido alta da instituição, a Marina na fase perinatal e também daquelas que têm bebés
continuou a ser acompanhada psicologicamente. com malformações.
Duas semanas mais tarde: São focados, em particular, os aspectos deste tipo
de lutos e da intervenção possível dos psicólogos
«Tenho muita dificuldade em lidar com ela, clínicos nestas situações.
irrita-me que seja tão mole, não tenho
vontade de cuidar dela mas ela começa a ABSTRACT
choramingar e eu as vezes começo a ter pena
In this paper the authors broach the subject of
dela... vou vê-la, começo a ver como é the women to whom children dead in the perinatal
sossegadinha e quase gosto dela ... fui com period and also of that who have babies with
a Rita Associação dos Mongolóides, hei- congenital malformations. Especially, the authors
-de fazer dela o que puder, mas não posso focalize aspects about these kind of mournings and
negar que ainda me custa muito.)) the clinical psychologist’s interventions.

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