Você está na página 1de 11

ACÓRDÃO N.

º 199/2012

Processo n.º 45/11


1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I.- Relatório
1. A., recorreu para a Relação do Porto do despacho proferido em 5
de março de 2010 no Tribunal Judicial de Espinho pelo qual, deferindo
pedido formulado pelo exequente, o juiz ordenou a substituição da
recorrente, enquanto agente de execução, pelo solicitador B.. A Relação
do Porto negou provimento ao recurso, por acórdão de 18 de novembro
de 2010, nos seguintes termos:

“ No recurso interposto não vem posto em causa o exercício do direito


que a lei confere ao exequente de substituir livremente o agente de execução
– como refere expressamente a apelante na sua alegação de recurso –, mas
tão-somente a inconstitucionalidade material da norma – nº 6 do Artº 808º
– que, em sua opinião, interpretada literalmente como fez o Tribunal
recorrido, viola os referidos preceitos constitucionais, “já que ofende os
seus direitos pessoais de natureza profissional, assim como ofende a
integridade de um sistema judicial de execução das decisões judiciais e de
outros títulos executivos de que a própria Recorrente faz parte integrante” –
(Sic).
São as seguintes as normas (legais e constitucionais) em causa:
Artº 808º nº 6 do CPC: - O agente de execução pode ser livremente
substituído pelo exequente ou, com fundamento em atuação processual
dolosa ou negligente ou em violação grave de dever que lhe seja imposto
pelo respetivo estatuto, destituído pelo órgão com competência disciplinar
sobre os agentes de execução.
Artº 20º nº 4 da CRP: - Todos têm direito a que uma causa em que
intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo
equitativo.
Artº 202º nº 2 da CRP: - Na administração da justiça incumbe aos
tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados.
Artº 203º da CRP: - Os tribunais são independentes e apenas estão
sujeitos à lei.
A questão é agora a de saber se a norma legal ínsita no CPC – nº 6 do
Artº 808º –, viola algum ou alguns daqueles preceitos constitucionais.
A nossa resposta é desde já que tal norma legal não está ferida de
inconstitucionalidade.
(…)
Sendo verdade que a lei confere aos Agentes de execução uma função
de Oficial Público, a verdade é que, ao contrário do que parece entender a
recorrente, o Agente de execução não exerce uma função jurisdicional no
processo executivo, pois não é “Tribunal” enquanto órgão de soberania.
Tribunal, enquanto órgão de soberania com competência para
administrar a justiça em nome do povo, é apenas e tão-somente os Juízes
(de quaisquer Tribunais), e os Jurados — Artºs 202º, 203º e 207º da CREP.
Todos os outros agentes e autoridades intervenientes (por qualquer
forma) na administração da justiça, integrando ou podendo integrar a noção
“lactu sensu” de Tribunal, não exercem qualquer função jurisdicional, a qual
é reserva dos Juízes e Jurados.
Daí que o Agente de execução não é na ação executiva uma primeira
instância de decisão, nem a lei o tratou como tal, como diz a recorrente,
nem tal se pode inferir de na alínea c) do nº 1 do Artº 809º do CPC o
legislador ter atribuído competência ao Juiz da causa para julgar, sem
possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões
do agente de execução, pelo simples facto de “as decisões do Agente de
execução” não terem natureza jurisdicional, ou seja, não lhe caber “dizer o
direito”, função que apenas cabe ao Tribunal/Juiz no interesse e defesa do
cidadão.
A função decisória relativamente a determinados atos ou
requerimentos das partes no processo executivo (e que podem ser objeto de
reclamação ou impugnação para o Juiz da causa), sendo da competência do
Agente de execução, não constituem verdadeiros julgamentos das questões
cujo conhecimento lhes é submetido, pois não têm natureza jurisdicional.
Diz a recorrente, que os Agentes de execução devem, também eles, em
primeira linha garantir a legalidade e o direito, em estrito cumprimento da
lei, assegurando os direitos de uns em face dos direitos e interesses de
outros.
Pois devem.
Mas, esse é um dever de todo e qualquer agente que exerça uma função
de Oficial Público, e não do Agente de execução em particular, que nada
tem a ver com a função jurisdicional do Tribunal.
Atrevemo-nos até a dizer, que esse é um dever de todas as entidades,
públicas e privadas, e de todos os cidadãos que verdadeiramente exercem a
cidadania.
Em conclusão, a reforma da ação executiva de 2008 operada pelo DL-
226/2008 de 20 de novembro, aprofundou uma desjurisdicionalização do
processo executivo em relação à reforma da ação executiva de 2003, mas
nem desjudicializou a ação executiva, nem cometeu qualquer função
jurisdicional ao Agente de execução.
Onde radica então “in casu”, no dizer da recorrente, a
inconstitucionalidade da dita norma legal?
Alega a recorrente, que tal norma – nº 6 do Artº 808º do CPC –, ao
permitir que o exequente possa livremente substituir o Agente de execução,
e face a todos os poderes/deveres processuais do Agente de execução já
acima enunciados e tratados, tal substituição colide com a independência
necessária à boa prática da gestão dos processos, já que os Agentes de
execução devem ser independentes e imparciais pela aplicação daqueles
normativos constitucionais que impõem essa mesma independência e
imparcialidade aos Tribunais.
Essa independência e imparcialidade fica em causa, no dizer da
recorrente, porque ao poder substituir livremente o Agente de execução, o
exequente passa a ter o mais completo e amplo poder sobre o processo,
poder do qual o Agente de execução é obrigado a abdicar, por decair
perante a mais elementar dependência – a económica –, já que é um
profissional liberal (embora depositário de funções públicas), e que fiscal e
comercialmente agem no mercado como verdadeiras empresas ou
comerciantes, em concorrência aberta.
Essa limitação, como qualquer outra, na independência ou
imparcialidade dos Agentes de execução, ofende a garantia do due process,
e com isso ofende virtualmente os direitos de todos os executados.
Acrescenta que “... a imparcialidade e independência de quem tem a
seu cargo a gestão do processo é claramente condenada com a possibilidade
constante daquela disposição do CPC, inviabilizando, em abstrato, o
exercício de funções públicas com o necessário afastamento e serenidade,
essenciais à boa tramitação processual e à garantia dos direitos de todas as
partes envolvidas – partes processuais e terceiros intervenientes (fiel
depositário, encarregados de venda, credores reclamantes, devedores do
executado, etc… e por isso viola os normativos constitucionais que impõem
a independência e imparcialidade dos Tribunais (englobando estes os
Agentes de Execução, como vimos já…”
Se assim fosse, como alega a recorrente, se os Agentes de execução,
por razões de dependência económica decorrente do facto de poderem ser
substituídos pelos exequentes, e para o não serem, perdessem a
imparcialidade e independência a que estão vinculados na gestão do
processo pela sua condição de Oficial Público, então bem poderíamos dizer
que estávamos perante “razões de caráter” absolutamente incompatíveis
com tais funções.
Restar-lhes-ia abdicar de as exercer.
Por outro lado, em parte, estaria explicado o público inêxito que com
as ditas reformas tem sido a ação executiva, “cancro” nos nossos dias e nos
últimos anos da boa administração da justiça.
Só que recusamos a ideia de que, a sua possível substituição num mero
processo pelo exequente, seria passível de, por deixar de receber honorários
nesse processo, levar o Agente de execução a favorecer ou prejudicar uma
das partes processuais, abdicando da sua imparcialidade e independência,
mesmo em abstrato.
Os valores da vida em sociedade vão sendo ultrajados, mas pensamos
que ainda não chegou tão longe...
Concluímos, tal como o Snr. Juiz na decisão recorrida, que a
circunstância de o agente de execução ser nomeado pelo exequente e por
este poder ser substituído não obstaculiza a que o agente de execução
proceda aos atos de execução em prazo razoável e mediante processo
equitativo, não pondo, por isso, em causa a exigência constitucional de que
“todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de
decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” – cf. nº 4 do
artigo 20º da CRP – .
Também que, apesar de o agente de execução ter uma função de oficial
público, não exerce uma função jurisdicional, nem é o “tribunal” enquanto
órgão de soberania, que importe apreciar à luz dos artigos 202º e 203º, da
CRP.
Ainda e também que, tal circunstância não põe (nem pode pôr) em
causa a independência e imparcialidade do Agente de execução no exercício
de tais funções públicas.
Conclui-se assim pela não verificação da invocada
inconstitucionalidade e pela improcedência da apelação”.

2. É deste aresto que A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao


abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de
novembro), pedindo a fiscalização da inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 808º n.º 6 do Código de Processo Civil, por violação
dos artigos 20º, 202º e 203º da Constituição.

3. Recebido o recurso, recorrente apresentou a sua alegação,


concluindo do seguinte modo:

“A. O Decreto-Lei nº 226/2008 de 20 de novembro (diploma


aprovado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº 18/ 2008
de 21 de abril) operou a reforma da ação executiva.

B. No âmbito dessa reforma o legislador previu a possibilidade da livre


substituição do agente de execução pelo exequente (art. 808º nº 6 do CPC) e
a criação de uma Comissão para a Eficácia das Execuções (novos artigos
69º -B a 69º-F do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), órgão com poder
disciplinar sobre a atuação dos agentes de execução.

C. Embora o Agente de Execução se apresente como um misto de


profissional liberal e oficial público, a natureza do seu estatuto é
predominantemente pública pois ele exerce poderes de autoridade no
âmbito do tribunal em que a ação decorre.
D. A natureza pública do seu estatuto decorre da função que lhe é
atribuída de direção do processo, função anteriormente entregue ao juiz e às
secretarias judiciais.

E. A Lei Fundamental estipula que incumbe aos tribunais assegurar a


defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir
a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses
públicos e privados (nº 2 do art. 202º.) E isso há de ser feito por tribunais
independentes (art. 203º) que garantem a todas as partes numa ação um
processo equitativo (art. 20º nº 4)

F. Os tribunais são órgãos complexos que integram não apenas juízes


mas também o Ministério Público e os funcionários judiciais.

G. A exigência de independência, imparcialidade, objetividade e isenção


estende-se a todos os órgãos que integram esse conceito de tribunal.

H. Sendo os agentes de execução oficiais públicos a quem cabe a


direção do processo executivo, processo no âmbito do qual eles exercem
poderes de autoridade, também a eles lhe são aplicáveis as mesmas
exigências.

I. A livre substituição do agente de execução, por discricionária e não


fundamentada vontade do exequente, ainda para mais tendo em conta a
supressão do poder geral de controlo do juiz e a cessação da dependência
funcional face a ele, cria objetivamente condições para colocar o primeiro
na dependência do segundo.

J. Nessa medida essa solução põe em causa a independência,


objetividade, imparcialidade e isenção que deve pautar a atuação do agente
de execução, entrando em conflito com as normas constitucionais.

K. É assim inconstitucional a norma do nº 6 do art. 808.º do CPC que


estabelece, em favor do exequente, a possibilidade livre e infundamentada
de substituição do agente de execução.

Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso e por


via dele se pede a declaração da inconstitucionalidade do art. 808.º nº 6 do
Código de Processo Civil na parte em que estatui a possibilidade, sem
qualquer fundamento, da substituição pelo exequente, do agente de
execução nomeado na ação executiva, por violação dos art. 20.º, 202.º e
203.º da Constituição da República Portuguesa”.

4. O exequente aqui recorrido não apresentou contra-alegação.


Corridos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

5. A norma objeto do presente recurso é a que se extrai do artigo


808º n.º 6 do Código de Processo Civil, na parte em que estatui a
possibilidade de substituição livre do agente de execução nomeado na
ação executiva, apresentando a seguinte redação:

Artigo 808.º
Agente de execução
(…)
6 - O agente de execução pode ser livremente substituído pelo
exequente ou, com fundamento em atuação processual dolosa ou
negligente ou em violação grave de dever que lhe seja imposto pelo
respetivo estatuto, destituído pelo órgão com competência disciplinar
sobre os agentes de execução.

A recorrente alega que a norma é inconstitucional por violação dos


artigos 20.º, 202.º e 203.º da Constituição. Invoca, para tal, que a norma
em causa, ao permitir que o exequente possa livremente substituir o
agente de execução, colide com a independência necessária à boa prática
da gestão dos processos, já que os agentes de execução devem ser
independentes e imparciais na aplicação daqueles normativos
constitucionais.

6. A figura do agente de execução foi instituída na reforma da ação


executiva decorrente da aprovação do Decreto-lei n.º 38/2003 de 8 de
março. Segundo o preâmbulo do diploma, na base da sua criação está o
propósito de acabar com a excessiva jurisdicionalização do processo,
entregando ao agente de execução “a iniciativa e prática dos atos necessários à
realização da função executiva, a fim de libertar o juiz das tarefas processuais que não
envolvem uma função jurisdicional, e os funcionários judiciais de tarefas a praticar fora
do tribunal”. Tais funções foram preferencialmente atribuídas aos
solicitadores de execução (artigo 808.º, n.º 2, do Código de Processo
Civil), ou seja aos solicitadores que reunissem os requisitos exigidos pelo
artigo 117.º, do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (E.C.S.), pois
apenas no caso de não haver solicitador de execução inscrito no círculo
judicial, ou sendo impossível nomear um desses solicitadores, é que as
funções de agente de execução poderiam ser exercidas por um oficial de
justiça (artigo 808.º, n.º 2, parte final, do CPC na versão do no Decreto-
lei n.º 38/2003). Como referia o então artigo 116.º, do E.C.S., “o solicitador
de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na dependência funcional
do juiz da causa, exerce as competências específicas de agente de execução e as demais
funções que lhe forem atribuídas por lei”. Tendo o seu estatuto específico
definido no E.C.S., estava sujeito, quer na sua atuação de solicitador, quer
enquanto agente de execução, à ação fiscalizadora dos órgãos da Câmara
de Solici­tadores, encontrando-se, nomeadamente, sob o seu poder
disciplinar.
A reforma concretizada pelo Decreto-lei n.º 38/2003 de 8 de março
foi impulsionada pela urgente necessidade de rever o sistema de processo
executivo, até então marcadamente jurisdicionalizado, o que entravava o
efetivo cumprimento do dever de suum cuique tribuere.
Conforme escreveu, a este propósito, José Lebre de Freitas (Agente de
execução e Poder Jurisdicional, Themis, Ano IV, n.º 7, 2003: p. 19), "O
desenvolvimento vertiginoso das relações económicas, o esvaziamento dos valores sociais
tradicionais, o exacerbamento do liberalismo, o aumento da conflitualidade e o
acréscimo de facilidade na deslocação dos bens têm levado, um pouco por toda a parte, à
progressiva generalização de comportamentos de fuga ao cumprimento das obrigações
jurídicas e a situações de grave estrangulamento do aparelho estadual competente para a
execução forçada. Consequentemente, um pouco por toda a parte, preocupam-se, ou
fingem preocupar-se, os Governos em erguer barreiras e encontrar soluções para a
crescente dissolução da garantia do direito em pântanos de progressiva ineficácia. A
década de 90 e o início do século XXI assistiram a um renovar do interesse
(pragmático e também científico) pelo processo de execução e pelos institutos que com ele
se relacionam: vários países europeus, com a França em primeiro lugar, empreenderam
importantes reformas do direito processual executivo; noutros, como a Itália, têm-se
sucedido os projetos de reforma, finalmente em vias de passar à forma de lei; no plano
da União Europeia, a revisão da Convenção de Bruxelas Relativa à Competência
Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27.9.68,
finalmente substituída pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de
22.12.2000, teve como um dos seus pivots o aligeiramento do procedimento de
exequatur, no mesmo plano, estuda-se a instituição dum título executivo europeu e
tenta-se a harmonização dos regimes da penhora dos depósitos bancários."
Em consequência, o processo de execução saiu da direção do juiz em
tudo o que não fosse estritamente ligado à garantia de direitos
fundamentais, e passou a ser dirigido pelo agente de execução. Conforme
dizia o citado Autor (ob. cit.), "o exequente designa o solicitador de execução na
petição executiva (art. 810-3-e); mas a indicação não é vinculativa, pois carece de
aceitação do designado, na própria petição ou em requerimento avulso apresentado nos
5 dias subsequentes (art. 810-6); se a designação não for feita pelo exequente ou o
solicitador não a aceitar, fá-la-á a secretaria por escala (art. 811-A). Dir-se-ia que, no
primeiro caso, nos encontramos perante um contrato de prestação de serviços de direito
privado, semelhante ao estabelecido entre a parte e o mandatário judicial, tendo em
conta que é o exequente quem paga os serviços do solicitador (embora no final eles
entrem em regra de custas: art. 455); mas o exequente não tem o poder de denunciar o
contrato, só o juiz podendo destituir o solicitador designado, por atuação processual
dolosa ou negligente ou violação grave do dever imposto pelo respetivo estatuto (art.
808-4), o que o descaracteriza como figura de direito privado. Acresce que o solicitador
de execução está sujeito a um regime de impedimentos, como os juízes, os peritos e os
funcionários da secretaria (art. 121 do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), e a
algumas incompatibilidades (art. 120 do mesmo estatuto). Por outro lado, praticando,
como se viu, atos executivos, exerce poderes de autoridade; por isso, o solicitador de
execução pode promover a realização de diligências por empregado ao seu serviço,
credenciado pela Câmara dos Solicitadores, mas não quando se trate de penhora,
venda, pagamento ou outro ato de natureza executiva (art. 808-6), pois os poderes de
autoridade que a lei lhe atribui não são delegáveis, a não ser em outro agente de
execução para diligências a efetuar fora da área da comarca e suas limítrofes ou da
área metropolitana de Lisboa e Porto (art. 808-5)".
Importa, assim, fazer notar que, nesta versão inicial, o agente de
execução é preferencialmente escolhido pelo exequente e que a sua
destituição cabia ao juiz da execução, oficiosamente ou a requerimento do
exequente, em razão de atuação processual dolosa ou negligente ou
violação grave dos deveres estatutários.

7. Em 15 de janeiro de 2008 o Governo apresentou à Assembleia da


República uma Proposta de Lei (n.º 176/X) que visava obter autorização
legislativa para aprovar medidas destinadas a "aperfeiçoar" o modelo
adotado pela “Reforma da ação executiva”. Entre as novas medidas
propunha-se o reforço do papel do agente de execução na tramitação das
ações executivas. No exercício da subsequente autorização legislativa, o
Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 226/2008 de 20 de novembro, que
procedeu a nova reforma do regime da ação executiva em processo civil,
com o objetivo de “tornar as execuções mais simples e eliminar formalidades
processuais desnecessárias”, como se lê no preâmbulo do diploma. Na prática,
esta opção legislativa conduziu a uma redistribuição das competências
funcionais entre os órgãos da execução, traduzida no reforço da posição do
agente de execução e na correspondente diminuição do papel do juiz de
execução. Ao agente de execução foi atribuído o poder de direção do
processo executivo, tal como resultou da redação dada ao artigo 808º n.º
1 CPC, ao estabelecer que cabe ao agente de execução efetuar todas as
diligências de execução, sendo genericamente reforçados os seus poderes
processuais. Eliminou-se então a menção, feita anteriormente pelo n.º 1
do artigo 809º do CPC, de que ao juiz cabia “um poder geral de controlo do
processo”. O poder de controlo exercido pelo juiz passou a ter de ser
solicitado pelo interessado, sendo desempenhado caso a caso, de modo
meramente “cassatório”, uma vez que o juiz se limita a controlar o ato ou a
decisão do agente de execução, sem se substituir na realização do ato ou
da tomada da decisão. Na formulação de Miguel Teixeira de Sousa, pode
dizer-se, enfim, que “o agente de execução é o órgão ao qual incumbe a condução do
processo executivo e o juiz de execução torna-se o “juiz dos incidentes” desse processo”
(A Reforma da Ação Executiva, Lex, Lisboa, 2004, p. 16).
Após a reforma de 2008 os poderes de supervisão e controlo do juiz
sobre o agente de execução foram atenuados; foi eliminada a
possibilidade de o solicitador de execução ser destituído oficiosamente
pelo juiz de execução. Por seu turno, foi alterado o artigo 116.º do
Estatuto da Câmara dos Solicitadores, onde se dispunha que o solicitador
atua na dependência funcional do juiz de execução, passando a atuação do
agente de execução a ser feita exclusivamente sob fiscalização da
Comissão para a Eficácia das Execuções. Em suma, após a reforma
operada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, a atividade
do agente de execução tornou-se mais independente do controlo do juiz.
8. É no contexto dessa reforma que surge a norma objeto do
presente recurso, que veio prever a possibilidade da livre substituição do
agente de execução pelo exequente. Considera a recorrente que essa
norma coloca em causa a independência e imparcialidade dos tribunais.
O princípio da imparcialidade dos tribunais decorre desde logo dos
artigos 202.º e 203.º da Constituição, que estabelecem as garantias da
função jurisdicional e da independência dos tribunais, e ainda do artigo
20.º da Constituição, que garante o acesso ao direito e à tutela
jurisdicional efetiva, o que implica o direito de acesso a um órgão
independente e imparcial de resolução de conflitos e de administração da
justiça (Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada,
Coimbra Editora, 2005, p. 186). Cabe aqui afirmar esta dupla dimensão da
imparcialidade imposta aos tribunais, que se decompõe na exigência de
um processo justo e na equidistância dos agentes que intervêm na
administração da justiça.
A imparcialidade de que falam estas normas constitucionais reporta-
se, portanto, à atividade jurisdicional, visando caracterizar a atuação dos
juízes e o poder dos tribunais. Acontece que o agente de execução não
exerce nem participa na função jurisdicional, e não integra o “tribunal”
enquanto órgão de soberania, sendo-lhe consequentemente inaplicável o
acervo de garantias que vinculam a função jurisdicional. Por outro lado, é
bem certo que o processo executivo não perdeu equitatividade com a
criação do solicitador de execução, visto que esta figura não interfere nos
poderes processuais das partes envolvidas, no equilíbrio do exercício
desses poderes, ou na possibilidade de acesso ao juiz nos casos em que tal
é autorizado.
É certo que a exigência de imparcialidade do funcionamento dos
órgãos judiciários não se basta com as exigências impostas ao estrito
exercício da função jurisdicional, uma vez que a atividade das autoridades
públicas está genericamente vinculada à prossecução do interesse público,
impondo-se-lhes que atuem "com respeito pelos princípios da igualdade,
da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé" (artigo
266º n.º 2 da Constituição). Ora, sendo certo que o solicitador de
execução exerce funções próprias de oficial público (José Lebre de
Freitas, “Agente de Execução e Poder Jurisdicional”, Themis, Ano IV, n.º 7,
2003, p. 26; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução,
Almedina, 2010, p. 140; Miguel Teixeira de Sousa, “Novas tendências de
desjudicialização na ação executiva: o agente de execução como órgão da
execução”, Cadernos de Direito Privado, n.º 1, dezembro de 2010, p. 8), a
verdade é que as exerce episodicamente e como profissional liberal.
A competência que é atribuída ao agente de execução no processo
executivo – incluindo a prática de atos fundamentais como a penhora, a
venda e o pagamento – não põe em causa a exclusividade do exercício da
função jurisdicional pelos tribunais, razão pela qual o juiz de execução
deve intervir sempre que haja de resolver um conflito de interesses entre
as partes da execução, ou entre estas e terceiros. Nas impressivas palavras
de Miguel Teixeira de Sousa, “enquanto o agente de execução executa mas não
decide, o juiz de execução decide mas não executa”. Da enunciação dos atos
processuais em relação aos quais o juiz possui competência exclusiva (v.g.,
julgamento da oposição à execução e à penhora, verificação e graduação
dos créditos reclamados, nos termos do artigo 809º n.º 1 do CPC), retira-
se que a imparcialidade do órgão – o tribunal – se mostra garantida pela
atividade do juiz, e não depende da atuação do agente de execução. A este
está reservada uma outra função: a de tornar efetivo o crédito do
exequente. Trata-se, portanto, de uma atuação que se justifica pelo
interesse em dar pronta satisfação ao crédito do exequente, sendo
exercida por profissional liberal, sujeito a um especial estatuto profissional
de caráter público – fixado por lei – que lhe impõe um comportamento
lícito, isento, e protegido por segredo profissional (artigos 109º, 110º,
114º e 115º E.C.S.).

9. As exigências que caracterizam a atividade dos agentes de execução


são salvaguardadas pelas regras de deontologia profissional que os
vinculam, constantes do seu Estatuto. Com efeito, o Estatuto da Câmara
dos Solicitadores preocupa-se em estabelecer garantias de isenção do
trabalho do agente de execução. O exercício de funções de agente de
execução é incompatível com outras funções (artigo 120º do E.C.S.), e o
agente de execução está sujeito ao regime estabelecido no CPC no que
toca aos impedimentos e suspeições dos funcionários da secretaria (artigo
121º n.º 1). Por outro lado, nos termos do artigo 121º n.º 2 alínea a) do
E.C.S. o agente de execução não pode exercer as suas funções quando
haja participado na obtenção do título que serve de base à execução e
quando tenha representado judicialmente alguma das partes nos últimos
dois anos (alínea b)). Visa-se com isso, como refere Miguel Teixeira de
Sousa, “evitar (…) colocar em perigo a independência e a imparcialidade da sua
atuação na execução” (A Reforma… cit., p. 54). Por outro lado, nos termos
do artigo 115º n.º 2 do E.C.S., o solicitador de execução está impedido de
exercer o mandato judicial, em representação do exequente ou do
executado, durante três anos contados a partir da extinção do processo de
execução.
São regras que demonstram, afinal, que o legislador pretendeu
dignificar profissionalmente a atividade do solicitador de execução,
garantindo-lhe um mínimo de independência face aos interesses que
defende no processo, o que se mostra suficiente para afastar os receios
que a norma objeto do presente recurso suscita à recorrente. O que,
obviamente, o Estatuto não poderá prever é a total independência do
solicitador de execução face à atividade que justifica, afinal, a existência da
figura e que é, conforme se viu já, o interesse em dar pronta satisfação ao
crédito do exequente.
Desta forma, a norma entrega a avaliação da eficácia da atuação do
solicitador de execução a quem melhor a pode aferir, e que é,
precisamente, o principal interessado na tramitação célere e eficaz da
execução: o exequente.
Assim, para além de ser nomeado pelo exequente, o agente de
execução pode ser livremente destituído sem ser necessário invocar
qualquer fundamento específico para esse efeito, e esse poder de
destituição livre do solicitador de execução aproxima-o de uma relação de
direito privado de mandato; a introdução da possibilidade de destituição
livre do agente de execução pelo exequente veio, afinal, impor a este
órgão do processo executivo que atue em sintonia com o interesse do
exequente, o que nada tem de constitucionalmente reprovável, tanto mais
que, como consequência do seu caráter de profissional liberal, a
remuneração que o agente de execução aufere é aquela que respeitar os
serviços prestados.
Nestes termos, haverá que concluir que a norma objeto do presente
recurso, que permite que o agente de execução pode ser livremente
substituído pelo exequente, não põe em causa, para além do admissível, a
independência e a imparcialidade que se mostram exigíveis ao agente de
execução.
Não se mostram, enfim, violadas as normas constitucionais por ela
invocadas.

III. Decisão
10. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pela
recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João
Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.

Você também pode gostar