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Registro: Avctoris
Minha preceptora uma vez me disse que ódio e amor não são sentimentos
divergentes e sim que estão entrelaçados. Segundo ela, ao odiar uma pessoa
explicitamente, estamos anunciando, nas entrelinhas, a existência de um elo de
identificação e o que nutrimos, em essência, é ressentimento por não termos um
vínculo ou coragem para agirmos da forma como ela age. Por sua vez, nos faz
reprovar suas ações, seja por inveja ou covardia.
Portanto, a lição que minha preceptora quis me dar naquele dia, é que amor
e ódio são dois sentimentos que possuem o mesmo elo de identificação, mas a
forma de se expressá-los os difere completamente um do outro.
E então entra a questão que me fez compreender o que, de fato, está por
detrás do ódio. Embora me doa confessar, não posso negar que a admiro no
íntimo do meu ser.
Céus! Como eu queria arrancar esse sentimento do meu peito nem que
fosse com as unhas!
O que isso faz de mim? Ela destruiu a minha vida. Tudo o que eu conhecia
acabou por causa das suas conspirações desprezíveis. Ela quer roubar algo que
acredita ser seu, mas não é. Não é!
Helena jamais arriscaria tudo por nós. Não. Antes de tudo minha irmã é
egoísta, portanto, atende aos seus próprios interesses. Não posso ser injusta ao
não reconhecer que lutou por nós, no entanto, não sou cega. Existia algo a mais
acontecendo lá naquela luta na Ilha do Comércio.
Não era somente por nós. Era principalmente por ele. Não que eu acredite
que minha irmã é capaz de amar puramente, porque o lado dela obscuro é
sombrio demais. Prova disso foi quando ela me confidenciou, com um sorriso
pregado nos lábios, que transformaria as reféns em cortesãs.
Ao que tudo indica, não deu certo. Mas fiquei assustada e entendi que,
mesmo a amando, não posso negar que há um negrume em sua alma que a deixa
a beira da insanidade, já que propôs um terrível destino a duas garotas da mesma
idade do que a Hanna e eu, além também de inocentes, assim como nós duas.
No entanto, não sou a única inimiga dela aqui. Sei da existência de vários
dentre os rebeldes que adoraria derrubá-la. Até mesmo sei que o líder deles,
Koli, faz parte desse grupo. Embora ela não saiba. No entanto, todos, mesmo ele
e incluindo a mim, ansiamos sermos notados por ela.
Maldita seja! O que há nela que nos faz respeitá-la quando um sentimento
tão intenso e profundo quanto o ódio é o que nos aflora em relação a si? Não
pode ser o fato de vir do outro mundo. Seu irmão, o que usa aros ao redor dos
olhos, também veio de lá e quanto a ele consigo repudiá-lo sem dificuldade.
Inclusive, o desprezo.
Quando ele teve que escolher entre salvar a própria pele e ajudar o irmão,
ele optou por si mesmo. Mas ela não. Por isso é fácil odiá-la e impossível não a
admirar.
Helena também teve uma escolha naquele dia e optou lutar por sua honra
em vez de vir atrás de nós, suas irmãs. Nunca serei capaz de perdoar a escolha
dela uma vez que se nossos papéis se invertessem, e eu fosse a parte mais forte e
ela a mais frágil, eu teria agido diferente, não importa a situação. Eu teria lutado
com todas as minhas habilidades, com toda a força que há em mim, para salvar a
minha irmã mais velha, sangue do meu sangue.
Ela passa reto sem sequer me relancear um mísero olhar. Não sou digna de
observação. Diferente de mim, para ela é completamente possível ignorar a
minha existência. Ela nunca se aproxima de mim. Nem me notar, nota.
No entanto, sei que é por causa dela que sou tratada bem. Também é por
causa dela que não tenho nenhum vergão em minha pele lisa feito a porcelana de
uma boneca. Exceto por aquele dia.
Naquele dia, ela me olhou. Foi quando pude ver as chamas da fúria em seu
olhar enquanto o corpo sem vida do seu irmão era trazido a bordo. Ali, naquele
momento, descobri que, para ela, sou a representação em carne e osso de tudo o
que foi arrancado de suas mãos e coração. No entanto, em vez de descontar em
mim a dor dilacerante que todos nós sabemos que a aflige dia e noite, ela me
protege e vai além.
Sou uma nobre e tratada como tal em um reino inimigo. Todas as pessoas
que tenho aversão me tratam bem. No entanto, elas agem assim porque são
obrigadas ou porque precisam dela. O curioso é que esse tratamento que recebo é
semelhante ao que ela recebe, mas com uma única diferença, algo que nos
distingue do tamanho de um abismo. Todos os serviçais deste reino, sem
exceção, querem agradá-la simplesmente porque desejam cair em suas graças,
porque a admiram mais do que qualquer outra pessoa, inclusive a rainha deles.
Se a rainha Magnólia percebeu, não sei. Sei que ela é uma mulher astuta,
portanto, meu palpite é de que sim e se isso gerar um ressentimento entre elas...
Bom, mais uma pessoa de grande poder estaria lhe odiando.
Guerra. Ele não consegue pronunciar, mas essa única palavra paira sobre
as nossas cabeças feito a lâmina de uma guilhotina.
Não consigo imaginar o tormento pelo qual Isabelle está passando. Ela era
muito ligada ao Felipe mesmo quando não se dava conta disso. Nos nossos
treinamentos em Fayrehal, quando Isabelle era um desastre, descobri que a
inaptidão dela para lutar nada mais era do que instinto de recorrer a ele. Não ao
Carlos ou Ludmila, mas ao Felipe.
Um ataque direto contra os irmãos dela é algo capaz de fazer com que ela
procure um meio de declarar guerra e justo ele... Infernos! No entanto, talvez...
— Ele morreu pelas mãos de quem? — pergunto com um fio de esperança
de que tenha sido pelas mãos dos rebeldes. Seria o melhor cenário, uma vez que
se o Felipe tiver sido morto por eles, há uma chance de que a Isabelle ainda seja
alcançada.
— Helena, senhor.
Maldita seja!
Dou um murro na mesa tão forte que quase esmago os ossos da mão.
Helena é desumana por atacar a Isabelle justo na essência dela, o que por
sua vez é um ataque a mim também, a Yerus... Infernos! É um ato que irá abalar
a ordem do mundo inteiro. Helena ficou cega dos desejos do coração, o que por
sua vez a tornou incapaz de enxergar o maior.
É por isso que soldados como nós tem os sentimentos suprimidos durante
nossos longos anos de formação. Somos ensinados que agir impensadamente é
condenação certeira. E o que são os sentimentos se não o mal de todas as atitudes
irracionais?
A desolação virá sobre nós, mas antes que isso aconteça, Helena irá pagar
caro. É uma promessa, porque é fácil perceber qual será a dedução da Isabelle.
Eu dei a ela minha palavra de que estaria lá, mas não estive. Além disso, Helena,
minha noiva, quem prometi entregar as irmãs em troca da segurança da Ludmila
e da Rebeca, matou o Felipe deliberadamente.
Não é uma hipótese. Isabelle certamente crê que estou por trás dessa
traição e a conheço bem o suficiente para saber que me tornei alvo dos seus
sentimentos mais desagradáveis. Ela já balançava entre amor e ódio por mim.
Estou certo de qual sentimento venceu a disputa, tanto quanto reconheço o cheiro
podre que antecede uma guerra.
Ela tem muito a perder. Então, no primeiro momento, creio que irá sentir
uma vontade insana de cortar todas as nossas cabeças, mas, pelos três, Isabelle
irá recuar. Ao tomar essa sábia atitude, aí sim será preocupante.
Sei o que esperar de uma Isabelle que não pensa, só age. Se ela vier pronta
para uma guerra de campo, sei como me preparar para recebê-la. No entanto,
uma Isabelle que recua, calcula e planeja cada passo? Só os deuses sabem o que
o futuro nos reserva.
Posso assegurar que não sei o que esperar a partir de agora. Isabelle pode
se transformar em qualquer pessoa e a minha última aposta é de que se deixará
ser controlada pela raiva.
No nosso primeiro encontro, ela me disse algo que nunca esqueci: medo é
mais fácil de controlar do que raiva. A achei o ser mais atrevido que havia
cruzado meu caminho, uma vez que estava cercada por todos os lados por
Guerreiros de Fayrehal. Além disso, eu estava prestes a esganá-la por ter me
distraído, resultando em um corte em minhas costas feito por Helena.
Temo um embate entre nós, porém não físico. Pelo menos, não em
primeira instância, uma vez que guerras não são apenas duelos travados em
campos de batalhas. Pelo contrário. O início se dá na política, portanto, onde está
concentrado todo o potencial para destruir reinados. Os embates físicos, se
acontecem, são somente depois das reivindicações por mais privilégio entre as
monarquias.
Algo desperta a atenção dela, porque depois de vários minutos ela vira a
cabeça para um ponto do navio. Sigo a linha de visão e juro ser capaz de
compartilhar da fúria dela ao me deparar com dois pares de olhos azuis
semelhantes aos da Helena.
Ela encara as garotas por um longo tempo antes de se voltar para nós. Kaká
engole um soluço e faz menção de dizer algo, mas basta um olhar atravessado da
irmã que ele cai em um silêncio profundo.
Temoroso, mas não surpreso por ser a primeira escolha dela, o anão
sustenta com altivez a própria postura e o olhar gélido da Isa.
Não sabia que era possível, mas o ar fica ainda mais denso sobre as nossas
cabeças e absolutamente todos a observa com cuidado. Acontece que ela se
transformou em gelo e nada transparece em suas feições. Isabelle está
malditamente estática, sem perder um movimento sequer de qualquer um de nós.
Tão fria e distante que até mesmo me causa arrepios na nuca.
Observo como cada um reage a ela e constato que Oclan é o único, além de
mim, que percebe o mesmo nível de poder que emana dela. Seu olhar encontra o
meu e ele assente levemente como se dissesse: “é ela”.
Não sei definir como me sinto diante dessa reviravolta. Sei que dentro do
meu peito é como se acendesse uma chama potente que emana calor para todo o
restante do meu corpo.
Isabelle ainda não sabe, mas acaba de selar o meu destino, que será morrer
em favor das suas decisões. A dúvida, se agi certo ao desertar dos Guerreiros,
virando as costas para o Reinado que cresci defendendo, acaba de desaparecer.
Minha lealdade pertence a ela, minha futura rainha.
Mestre Ponda aperta as mãos uma à outra e encara a Isabelle com angústia,
porque até agora ela não deu nenhum sinal do que está pensando. E ela fica
bastante tempo ponderando as palavras dele. Até mesmo eu começo a ficar
desconfortável com o escrutínio dela. Por fim, ela pigarreia.
— Felipe era o único que sabia que eu não tinha nenhuma intenção de
reivindicar a minha linhagem perdida. Além disso, ele também estava disposto a
lutar ao meu lado pra que eu não ficasse pra trás. Portanto, Mestre Ponda — o
anão contrai levemente os ombros ante o tom severo na voz dela —, não faz
sentido algum o interesse do meu irmão quanto a obter informações políticas
sobre este mundo. O azar do senhor é que não foi o Kaká, porque se fosse ele, eu
teria acreditado nessa mentira deslavada. Tina.
Isabelle não me olha, mas sei o que está me pedindo, além de estar me
colocando em provação. Durante longos anos, eram as ordens do Mestre Ponda
que eu acatava e agora aqui está ela me pedindo para ir contra ele.
Dou um passo em direção ao anão, que perde toda a cor do rosto e fica tão
pálido que juro estar prestes a desmaiar. Troco um olhar com ele onde digo: sinto
muito, Mestre Ponda, mas a Isabelle é a rainha por quem tanto esperei.
O olhar dela cruza com o meu por breves segundos, o suficiente para que
ela note que penso que eles estão certos.
O que mais me deixa perplexa, e talvez seja o que a está causando ainda
mais sofrimento, é o fato do Felipe se preocupar tanto com ela a ponto de agir
por suas costas para garantir a segurança deles. Aquele garoto deixou claro que
nunca permitiria que a Isa ficasse para trás, mas se ela não conseguisse voltar, ele
quis se certificar de que eles teriam onde ficar em segurança. Os dois. Juntos.
Isabelle se aproxima dele, que não recua, não se encolhe, apenas aceita
qualquer que seja a decisão dela. Logo ambas de suas mãos seguram os ombros
do anão.
— O senhor disse que Lufstar tem um forte poder militar. Qual é o mais
rico dentre eles?
— Gosto de como isso soa. — Koli abre um sorriso debochado, o que faz
Mestre Ponda estremecer com a ameaça que o líder dos rebeldes está deixando
implícita. Também não me agrada a ideia deles conquistando aquelas terras. No
entanto, sei que Isabelle não está blefando.
— Isso é tudo. Pode levá-lo pra onde você está mantendo aquelas duas.
Kaká relanceia um olhar sobre todos nós. Acredito que está escolhendo
quais batalhas lutar. Quando seu olhar cruza com o meu digo a ele, sem
verbalizar: essa não, camarada. Discutir com ela justo agora, diante todos nós,
só o envergonhará ainda mais.
— Você disse que este navio irá para os Braxus, um dos Países Baixos...
Nunca coloco um plano em ação sem antes ter um de fuga bem definido. A
missão na Ilha do Comércio não foi diferente. Tracei duas rotas de fuga. Uma
por terra, caso o risco fosse mínimo, e uma por mar, caso o risco fosse alto.
Iríamos para Braxus, o mais irrelevante dos Países Baixos, portanto, o mais
seguro diante da crise política que estamos vivenciando. Além disso, o rei de lá
está com praticamente os dois pés dentro da cova. Ter um casamento para formar
uma aliança com ele, seria uma boa opção para a Isabelle.
Com relação aos rebeldes, como já fui mandada para uma missão lá,
também conheço terrenos onde poderíamos escondê-los de forma a viverem
clandestinamente até a Isabelle formar a tal aliança. No entanto...
— Este navio irá para o Norte. — Koli desce as escadas até ficar frente a
frente a ela.
Isabelle me encara com a testa franzida. Eu disse a ela o meu plano, que
mudou quando ele se intrometeu, o que quer dizer que estou furiosa.
Absolutamente nada saiu como planejei. A aparição dela na Ilha do Comércio foi
uma catástrofe impossível de ser mensurada. E como se já não tivéssemos
atravessado uma maldição desarmados, veio o Koli alterando tudo.
— Não posso fazer nada. O navio é dele, Isa — digo rangendo os dentes
para o rebelde.
Assinto, mas Koli se adianta antes que eu saia, então paro no lugar.
— Faça o que quiser quando atracarmos no Sul. Não vou desperdiçar nem
um segundo do meu tempo, por isso é para lá que este navio irá.
— Todo o ouro do meu povo — Koli bate no peito — está aqui para que
pudéssemos fugir para o Norte! Portanto, a decisão quanto ao destino deste navio
cabe a mim.
— Como? Você não tem nada além de um possível título, menina — Koli
basicamente cospe as palavras.
Isabelle abre um sorriso, que não reflete em seus olhos. Os dois não estão
enxergando que precisamos tanto do poder dela quanto dos recursos dele.
— Não — ela diz com rispidez. — Se vocês têm tempo para perder, eu não
tenho. São meses de viagem em alto mar que irá aumentar ainda mais se
primeiro formos para o Norte para só então irmos para o Sul. Posso perder anos e
a cada segundo que passa é uma atrocidade diferente que aquela família comete.
Se as vidas de um reino não estão no topo da prioridade de vocês, devo informar
que agora está no meu! Quer ouro, Koli? Dê-me o seu preço.
— Irei cobrar.
Estou gostando dessa versão fodona dela, como diria o Felipe. Mesmo não
entendendo metade do que está acontecendo.
— Não sou fiel aos seus deuses. Nem meu irmão o era. Acreditamos
apenas em um Deus.
Isabelle se volta com tudo para mim e me calo. Eu gosto de brigar pelo que
acredito, mas não contra ela no estado furioso do luto quando estamos em alto
mar. Se ela ordenar me jogar da embarcação, tenho minhas dúvidas de que
alguém irá ao meu socorro.
Assinto e Ruan a toca novamente, o que me faz sentir outro calafrio. Logo
ele nos deixa e suspiro aliviada. Ficamos apenas nós duas, o que de certa forma é
reconfortante.
Sei que, para ela, isso pode soar muito mais como uma maldição do que
uma dádiva. Em certo grau, concordo. As decisões irão piorar cada vez mais e
acredito que em determinados momentos Isabelle irá desejar a própria morte. No
entanto, não há ninguém melhor do que ela para essa posição. Mas entendo que
levará tempo até que se enxergue da mesma forma como eu a enxergo.
Isabelle suspira e percebo o cansaço que a abraça. Eu, que sou bem mais
preparada do que ela para embates físicos, também estou a um passo da
exaustão. Imagino ela que, além de ter de lidar com todas essas novas
responsabilidades, ainda carrega a carga emocional do luto.
— O seu destino é pior do que o meu — Isabelle diz, sem qualquer traço
de emoção na voz. — Você deverá proteger a minha vida com a sua. Péssima
notícia, Tina, mas desde o dia em que nasci, descobri que venho sendo
perseguida. É melhor cair fora enquanto há tempo.
Me preparo para correr em sua direção com toda a força e velocidade que
sou capaz de aplicar em minhas pernas. Nesta última, sou melhor do que ele.
Muito. Na primeira, não. Por isso o efeito surpresa será imprescindível.
Caio com força e minhas costas varrem o chão de tablado molhado por
onde sou arrastada. Estico os braços e firmo as palmas das mãos para tentar frear
o meu corpo. Bato a cabeça em um dos vários caixotes espalhados e então paro,
completamente estatelada no chão, feito uma estrela do mar.
Quando uma mão grosseira e cheia de calos é estendida para mim, não
penso duas vezes antes de aceitá-la. Logo sou colocada sobre os meus pés.
Ele respira fundo, indicando que essa resposta o chateia mais do que se
tivesse sido os tais pavorosos sonhos. Estou um caco. Ele sabe. Eu sei.
Oclan investe contra mim e então lutamos da forma mais suja que existe.
Levo várias pancadas, mas me deleito quando consigo ultrapassar a barreira dele
para desferir e acertar um golpe em sua barriga. Dói mais em mim do que nele
— como sempre —, mas é um grande feito da minha parte, então fico orgulhosa
de mim mesma.
— Ela é a sua futura rainha! — Minha amiga grita nas fuças do Oclan, que
dá um safanão nela, que cai de lado. E então ele me golpeia.
Acho que isso desperta a fúria que vive dentro dela, porque feito um
vulcão em erupção, Tina planta o salto da bota no peito do pé do Oclan e em
seguida dá um murro em suas partes íntimas. Ele cai no chão gemendo de dor.
Limpo o suor da testa e apoio as mãos nos joelhos, tentando recuperar o
fôlego antes de brigar com Tina por interromper a minha sessão de terapia.
— Você está louca? — Ela avança sobre mim com ferocidade. — Pelos
deuses, Isabelle! O que está se passando nessa sua cabeça?
— Você não pode machucá-la, Oclan. Ela é a nossa líder, nossa futura
rainha.
— Ela está certa. — Ele recusa minha oferta e se levanta com dificuldades
por conta própria ao mesmo tempo em que chia de dor.
— Não está, não. Não posso ser uma líder o tempo inteiro. Ninguém pode.
Agora ela desperta o pior que vive em mim. Me volto para ela, cuspindo
fogo pelas ventas enquanto a encaro com violência.
— Você pretende ter um encontro com uma rainha enquanto estiver toda
machucada, cheia de hematomas? Sem contar que Oclan pode te matar.
— Não devo explicações a você quanto ao que faço no meu tempo livre.
— Você precisa aprender a lidar com o luto de uma forma que não te
machu...
Tina franze o cenho. Crispo os lábios. Ela precisa recuar. Mesmo que
acredite estar certa, e mesmo que esteja, ela não pode bater de frente comigo
dessa forma. Se espera que eu seja a líder que deseja, Tina tem que me deixar no
controle total, mesmo que não concorde com as minhas escolhas.
— Perdão.
— Está perdoada, mas não vou tolerar que aconteça outra vez — digo isso
mais por causa do Koli na plateia do que propriamente por causa dela.
Quatro dias sem dormir. Sem nem mesmo um cochilo para dar descanso
para o meu corpo e mente. Só por isso vim atrás do Oclan. Se peço para que me
trate como uma Guerreira, ele me trata. Se peço para que me trate feito sua líder,
ele me trata. Porém, sempre que existe a possibilidade e a necessidade, ele me dá
um conselho. Mas é isso: conselho.
Kaká me segue quando passo por ele sem dirigir nem mesmo um olhar em
sua direção. Detesto ter de lidar com o meu irmão quando ainda estou lutando
para afastar da mente a imagem do Felipe morrendo em meus braços.
É por isso que dormir virou uma tortura. Todas as vezes acordo gritando e
suando tanto que os lençóis ficam encharcados. Então só durmo quando perco
completamente o controle sobre todos os meus sentidos e emoções.
Preciso descobrir como faço isso e rápido, porque, supondo que eu faça
uma aliança forte com algum rei ou rainha dos Países Baixos, onde conquisto
poder e dinheiro, ainda terá um agravante: não sei liderar. Não nasci para isso,
mas estou disposta a aprender.
Como vou fazer isso? Ser persuasiva e não apelativa? Convencer uma
rainha que nunca me viu na vida a me ajudar? Sair viva de lá já será uma grande
vitória.
Respiro fundo.
Saio decidida da minha cabine, mas não segura de que a minha decisão é a
certa. Paro ao notá-lo rodeado pelas crianças. Tami está sentada à sua frente com
as pernas cruzadas e os olhos arregalados de fascínio enquanto Mestre Ponda faz
um cavalo de água no ar, que cavalga na direção dos pequenos, que ficam em um
silêncio contemplativo.
— Uau! — Tami suspira quando a água volta para o copo. — Queria ter
magia.
Como um serzinho tão traiçoeiro quanto ele pode ser adorado por crianças?
Até onde sei, elas são boas em detectar pessoas que não prestam. É então que me
lembro de algo que o Kaká uma vez me disse. Só porque alguém não é bom para
mim não necessariamente é ruim para o outro.
Tami vira a cabeça em minha direção e corre para abraçar a minha cintura.
Retiro a franja da testa dela com delicadeza e dou um beijo em sua bochecha,
notando como ela cresceu bastante desde em que nos conhecemos. Ela já não é
mais uma criancinha e imagino a hora que se dará conta de que está a um passo
de distância de deixar as bonecas de lado e começar a treinar com espadas de
verdade.
Me encolho mais uma vez com esse lembrete constante de que agora sou
uma figura da realeza. Eu, uma ladra vinda de uma favela, princesa. Sinto
vontade de rir, mas não mais do que quero arrancar os cabelos da cabeça.
— De princesa?
— Oras, a rainha das terras para onde este navio está navegando. Sua
Majestade Magnólia.
Claro. Quem pode me ensinar a ser uma princesa? Alguém que já o foi. Só
preciso saber como convencer essa tal rainha a me ajudar. Até agora, só tenho
planos para não ser atacada imediatamente, mas quando estiver frente a frente
com ela, nada.
Ando em círculos em frente da porta de uma cabine. Já faz tanto tempo que
estou nessa indecisão, se peço ajuda ou não, que daqui a pouco abro um buraco
no tablado e caio no oceano.
Quer saber? Que se dane o meu orgulho. Ele é a pessoa mais inteligente
que conheço e pode me ajudar nessa.
Para não perder a coragem, não bato antes para evitar dar para trás como já
fiz dez vezes. Abro a porta de uma só vez.
— Mas eu poderia.
— Por um acaso você sabe quem era a Hortense no nosso mundo? — Roo
a unha do polegar.
— Uhum. Você já leu nos livros de história sobre ela ou estudou na escola?
Acho que ela era uma rainha ou coisa assim.
— Mesmo assim tem dias que você passa horas e horas ao lado dele,
bebendo todo tipo de informação que ele compartilha. — Lanço um olhar
enviesado para o meu irmão que levanta as duas mãos no ar. — Não estou te
reprovando. Estou apenas apontando um fato.
Dou as costas a ele e, no mesmo instante, ouço meu irmão pular da cama.
Ele corre para me deter e se intromete no meu caminho.
— Me perdoa, maninha. Sei que você duvida do amor que sinto por você,
mas eu te amo como amo qualquer um de vocês. Perder o...
— Eu sei. — Aperto meus braços ao redor da sua cintura para que não
termine a frase. — Eu sei, Kaká. Também te amo e é por isso que estou tão
machucada, porque tenho a sensação de que te perdi de alguma forma.
Assinto e meu irmão solta um suspiro de alívio intenso que desata cada nó
do meu coração. Eu não tinha noção do quanto precisava que ele me dissesse
essas coisas, que assegurasse a minha importância na nossa família, na vida dele.
Não sei se um dia serei capaz de superar a morte do Felipe, mas agora sei que
não estou mais sozinha nessa dor. É um elo que Kaká e eu teremos para sempre.
— Posso tentar.
Meu irmão não precisa dar nomes. Sei muito bem a quem se refere.
Não culpo o Áquila, mas isso não é o mesmo que dizer que não dói pensar
nele. Só que discutir a respeito dele com outras pessoas é algo que não faço. A
nossa história, os nossos sentimentos, dizem respeito apenas a nós dois e a mais
ninguém.
Saio antes que meu irmão tenha a chance de dizer um “a” que seja, mas
com meus pensamentos inteiros no Áquila e com ainda mais intensidade do que
já foi um dia. Algo que volta e meia me pego fazendo constantemente.
Tenho certeza de que, assim como eu, ele também já se deu conta de que
em algum momento vamos ser obrigados a superarmos um ao outro. Já ficou
provado que fomos condenados a amar alguém que jamais será nosso. Nós não
fomos feitos para ficarmos juntos. Fomos condenados a nos amar em silêncio e a
distância.
— Eu posso te dizer...
— Sim, mas sou considerado um inimigo nas terras mais próximas daqui.
Se eu desembarcar em Lufstar sem a proteção da senhorita, serei preso.
— Mas... — Oclan segura o braço dele e Mestre Ponda o encara com fúria.
— Sou capaz de encontrar o caminho do bote por conta própria, senhor. Retire a
mão. — Assinto para Oclan e ele atende ao pedido do Mestre Ponda. — Pois
bem. Sequer posso me ressentir de Vossa Alteza, uma vez que admiro a vossa
decisão e é exatamente o que se esperaria de uma figura da realeza que não
confia em alguém da tripulação. Além disso, ancorar em Lufstar comigo a bordo,
um inimigo declarado da rainha daquelas terras, seria a ruína da senhorita.
— Com todo o respeito, mas, quanto a mim, espero não nos encontrarmos
mais, Mestre Ponda.
Não posso dizer que somos adversários, mas também não posso afirmar
que somos amigos. Porém há um respeito mútuo entre nós dois, mesmo que
tenhamos sido prejudicados pelas ações um do outro ao longo da nossa jornada.
Jogo minha espada de ferro simples no gramado e cruzo os braços na altura
do peito enquanto observo com minúcia uma comitiva pomposa se aproximar da
minha residência. Um criado Real logo baixa as escadas e abre a porta para o
Rei. Em solo, a primeira coisa que ele faz não é observar os seus arredores e sim
cravar os olhos diretamente nos meus.
Meu primeiro pensamento é que Rakar morreu. Afinal, qual outro motivo
seria forte o suficiente para que o Rei em pessoa viesse ao meu encontro quando
o mesmo orquestrou para que eu desaparecesse? Só consigo pensar que sou o
próximo na linha de sucessão.
Vou até ele em passos duros sem me preocupar com os meus trajes. No
caso, a falta deles, uma vez que estou vestindo apenas uma calça simples de
treinamento. Quando paro, o Rei enruga o nariz levemente ao ver o sangue seco
em minhas mãos, em seguida seus olhos percorrem os vários machucados que
adquiri no treinamento desta manhã.
Não me envergonho da minha seminudez, menos ainda da fina camada de
suor cobrindo minha pele. Se minha aparência o incomoda, não dou importância,
porque eu não esperava por uma visita. Ademais, aparência ultrajante era a que
eu sustentava na infância após meus treinamentos com Oclan ou, pior, quando
saio de um campo de batalha. Esses meus estados reconheço serem os de darem
nojo. No entanto, para um Rei, não estou nada apresentável.
Ele entra na minha casa como se fosse o dono. Não vou contra, uma vez
que ele é o Rei. Ao invés, lanço um olhar para a minha governanta parada na
entrada para que lide com os preparativos. Logo meus criados, que foram
atraídos para o gramado ao ouvirem o som da chegada de uma visita inesperada,
se dissipam pela imensa propriedade.
— Recebi uma carta informando que a embarcação dela foi vista seguindo
em direção aos domínios da rainha Magnólia.
— O que isso tem a ver comigo? — Sento com a postura rígida em uma
das quatro poltronas enquanto ele se mantém de pé com um olhar calculista para
cada movimento que faço.
Espero por uma retaliação diante minha ousadia. Por muito menos ele já
mandou que eu fosse punido. No entanto, nada acontece. A segunda nota que
tomo, desde que pisou no meu gramado, é que isso significa que o Rei precisa
mais de mim do que jamais precisei dele.
Tenho para mim que passei de ser apenas um cavalo no tabuleiro do xadrez
dele para me tornar uma peça ainda mais importante. No entanto, ainda não
consigo deduzir qual seria. O meu medo é o de ter me tornado o ser humano
mais valioso para ele.
Com essas palavras, meu coração dispara tanto que a impressão que tenho
é que falta pouco para que o cuspa pela boca. Enrijeço cada músculo do corpo na
intenção de voltar ao controle das minhas emoções. Terceira nota do dia que
faço: falhei.
O Rei nota como fui afetado por brevíssimos segundos. No entanto, ele
não gasta seu precioso tempo saboreando a vitória sobre mim. Tomo proveito
para distanciar os meus pensamentos de qualquer assunto que remeta a Isabelle.
— Todos sabem que será questão de tempo até Rakar renunciar ao direito
dele ao trono, portanto, o seu valor incalculável no momento.
— Meu caro, em uma partida de xadrez, o jogo acaba quando um dos reis é
derrubado. — Prenso os lábios em uma linha fina, indicando que não estou
gostando do tom, menos ainda do assunto. No entanto, ele prossegue sem dar a
mínima. — Todas as ações do Máximus, e dos soldados que você muito bem
treinou, foram para proteger o rei do tabuleiro deles. Esconder para impedir que
ele seja derrubado é muito diferente de traí-lo.
Máximus agiu como um soldado fiel, quanto a isso, ele deve ser
recompensado. No entanto, Máximus também me traiu, uma vez que sabe que a
Isabelle possui um valor inestimável para mim e agiu contra isso, portanto,
também deve ser punido.
— Não vim até aqui para discutir Helena e Máximus. Vim até aqui porque
a Viajante está atrás de alianças e a rainha Magnólia não pode oferecer uma forte
como um casamento. Vá imediatamente para Lufstar e retorne com ela ao seu
lado como sua esposa.
— Como futuro rei é preciso que você faça algo a respeito, portanto, não
estou pedindo suas considerações. Estou ordenando para que vá até aquela
usurpadora e use a fraqueza dela para que assim evite que a guerra fria, que
estamos travando com os Países Baixos, se estenda para os campos de batalha..
Fico em pé em um salto.
— Ah, sim. Você foi. Por obra do destino, tudo o que você fez por ela será
o que usaremos para acabar com ela. — Aperto os dedos nos punhos e o encaro
com a boca espumando de ódio. — Você, Áquila, meu precioso filho, que será o
meu sucessor, agiu a meu mando para proteger a... como é mesmo o nome dela?
— Não preciso do seu apoio, Áquila. Está feito. A Coroa agradece os seus
serviços prestados em nome da segurança do nosso reino e, por conta deles, você
se tornará o sucessor mais querido e esperado por nosso reino, uma vez que foi o
responsável por proteger a vida da tão estimada Viajante. O povo que ainda a
venera irá te idolatrar.
— Por que não? Você por um acaso não sabe que o fatídico dia na Ilha do
Comércio serviu para que o povo se voltasse de novo para mim? Não que eu
precise da aprovação deles, de qualquer forma.
— Aquela confusão não foi orquestrada por ninguém do BOP. Pelo menos,
não de forma direta. Vocês foram traídos naquele plano para pegar as reféns.
— Impressionante.
— Quanto mais Rakar atrai a insatisfação de todos para si, com mais
avidez você será recebido tanto pelos nobres quanto pelo povo. — O Rei abre
um sorriso perverso. — Viu como será uma questão de tempo até que o seu
irmão se veja obrigado a fazer uma declaração pública renunciando ao trono?
Mas não se preocupe. Caso Rakar se mostre relutante, já assinei os documentos
para a troca na linha de sucessão ao trono. Sua tarefa é se concentrar no que fará
para reconquistar aquela garota.
Ele se cala e, pela primeira vez desde em que pisou nas minhas terras, é ele
quem fica colérico comigo e não o contrário.
— Uma grande dor de cabeça nas mãos erradas, não herdeira legítima. No
entanto, podemos concordar que é do meu interesse que ela não se case com
nenhum outro rei ou príncipe, assim como também é do seu.
— Não sei, mas achei essa referência aqui em uma cantiga de criança. —
Kaká aponta para a gravura. — É a única coisa sobre Hortense e mesmo assim
pode ser que não seja nada, uma vez que é um livro para crianças. De qualquer
forma, a música fala sobre uma mulher que deu à luz a dois imperadores. Pelas
referências atribuídas à tal rainha como bela como o nascer do sol, creio que seja
uma referência a Hortense quando assumiu o lugar da Aurora, que não sei se
você sabe, mas aurora significa nascer do sol. Enfim, o que quero dizer é que...
— A Aurora legítima não pode ser, porque ela não teve filhos. Ou
Hortense teve dois filhos com o Telok I, o que não faz sentido, porque um seria
imperador e o outro príncipe. Ou um de seus filhos do nosso mundo se tornou
imperador, portanto, ela foi mãe de dois imperadores. Um deste mundo e o outro
do nosso. — Dou voz ao raciocínio dele.
— Isso não é nada. — Meu irmão fecha o livro. — Só por curiosidade, por
que você quer saber isso?
— Estou te enchendo o saco. Também acho o mesmo que você. Não deve
ser uma estrela. — Ele dá um peteleco na minha testa.
— Fala sério, Kaká. Tenho coisa melhor pra fazer do que ficar tentando
acertar esses seus testes chatos de conhecimento.
— Dela, não deles. De qualquer forma, é inegável que isso te faz duas
vezes mais poderosa, porque ela era rainha lá e aqui. Além disso, em ambos os
casamentos deu à luz a imperadores.
Meu irmão se senta aos pés da minha cama e dá batidinhas para que eu me
sente ao seu lado. É como ter um déjà-vu. Incontáveis vezes Kaká fez isso com
um de nós na infância para nos ensinar algo de valor.
— Me confere poder.
— Talvez mais do que você possa imaginar. — Kaká abre um sorriso triste.
— Eu posso imaginar sim. O Rei vem tentando me matar desde que roubei
o Orientador, então só posso representar uma grande ameaça.
— Por ordens da Helena que suspeito não ter agido a mando do Rei.
— Helena realmente te quer morta, mas é pelo que você roubou dela.
— Você não tem como saber o que o Áquila significa pra ela, a menos que
entre na mente dela pra descobrir exatamente o que Helena pensa que você
roubou. — O lanço um olhar cortante. — Sem querer.
— Não quero inocentar ninguém. De duas uma, ou ele não tem mesmo
nenhuma participação nessa perseguição ou ele é esperto pra caramba e não
deixou vestígio algum para que não fosse possível acusá-lo diretamente. De
qualquer forma, meu objetivo é que você chegue na verdade e tudo o que
podemos afirmar até agora é que nossas irmãs ainda estão vivas, portanto, morta
ele não te quer, ou já as teria matado. Além do mais, Mestre Ponda ter mandado
te matar significa que se ele não pudesse te ter sob o domínio dele, era preferível
que você morresse, caso contrário você poderia cair nas mãos do Rei... viva.
— Se a sua dedução for correta, por que raios o Rei me quer viva e por que
isso seria um perigo? — Meu coração bate forte no peito enquanto minha barriga
gela de apreensão.
Não tenho a chance de pensar a respeito, uma vez que ouvimos gritos de
histeria vindos da parte de cima do navio. Espicho o pescoço por trás do Kaká e
pego um vislumbre de terra através da pequena janela circular.
Em um rompante, fico em pé e corro até ela para tirar a prova se não foi
alucinação. No início, o mar era algo que dava prazer de admirar, mas depois de
um mês ficou cansativo. Quando esse um mês se estendeu para mais e mais e
mais... nossa! Comecei a ter pavor de olhar para água e a odiar a cor azul. Mas
agora?
Não perco tempo. A toda, saio da minha cabine com meu irmão seguindo
em meu encalço. Assim que piso no convés, Tina e Oclan se materializam vindos
de não sei onde e tomam ambos os meus lados, um passo à minha frente.
Quando volto a olhar para frente, o líder deles me assiste com atenção.
Sinto a vibração de inquietação da Tina, mas não é ela quem faz algo
estúpido e sim Oclan, que desce as escadas e se coloca frente a frente ao homem.
— Pelo menos agora sei que estou lidando com dois Guerreiros
indisciplinados ao invés de apenas um — sussurro em repreensão para o Oclan.
— Vossa Alteza está lidando com dois Guerreiros que darão a vida pela
sua, isso quer dizer que, aonde quer que vá, um de nós estará lá também. Para o
bem deles, é melhor que não façam nada estúpido. — Dito isso, Oclan se cala de
tal forma que sei que não será possível arrancar nem mesmo um suspiro dele.
Juntos, somos vendados e escoltados até uma prisão, mas ficamos em celas
separadas, uma ao lado da outra, porque Oclan quase matou um dos soldados
quando tentaram nos separar.
Revivo cada momento que passei ao lado dele, desde o dia em que nos
conhecemos, em um de seus treinos em Fayrehal, até o nosso último encontro,
em seu palacete. Em determinado ponto, internalizo de forma definitiva que o
nosso amor é uma causa perdida.
Meu coração bate de forma errante. Minha pele pega fogo. Minha
respiração fica irregular. Minha barriga gela.
Talvez seja apenas uma impressão, ou medo por conta da decisão que estou
prestes a tomar, mas sinto no meu âmago que, de alguma forma, neste exato
segundo, Áquila também está pensando em mim. Nós estamos conectados e ele
pode sentir o que estou sentindo. Estou desistindo dele.
Separo tudo o que foi bom e guardo na memória para que nada que vier
seja capaz de me tirar essas lembranças preciosas, que serão tudo o que terei dele
a partir de agora. Momentos passados. Nada mais. Nunca mais.
Fecho os olhos e uma lágrima me escapa. Respiro fundo e então exalo
baixinho que estou pronta para os próximos desafios.
Há aproximadamente seis meses, venho tentando decidir se a rainha de
Lufstar, a inigualável Magnólia, é minha esperança ou meu tormento em forma
de mulher. Além disso, há um ano lido com a ausência do Felipe, algo que me
machuca até hoje e que também transformou a minha vida da água para o vinho.
Magnólia é mais cruel do que o Oclan jamais foi um dia, estou certa disso.
Me dê um dia inteiro de treinamento com ele, mas não me dê uma hora nas mãos
dela. Por conta disso, não sei dizer se me ressinto ou não do fato de que justo ela
é a minha esperança, uma vez que é um tormento no meu dia a dia sem um
segundo de folga.
Mas preciso ser justa e é graças aos métodos de puro terror psicológico
dela que hoje me sinto capaz de sustentar um título de nobreza. O preço é alto.
Se eu fosse comparar, a rainha Magnólia seria similar a ser treinada pela
professora de balé mais rígida que já se aventurou a ensinar meninas sonhadoras
a dançarem sobre as pontas dos pés. Para a minha sorte, não conto mais com
facilidades. Ela me destrói em cada aula, mas não é nada que eu não consiga
lidar, por pior que seja o trauma infligido.
— Pelos deuses, Isabelle. Você está atrasada. Perdeu o juízo de vez, foi? —
Tina apressa o passo para me alcançar, vinda de uma das várias alas do pátio
interno do castelo. Seu rosto está retorcido em puro pânico.
— Tina! — solto um grito de alívio e paro para que ela chegue até mim. —
Eu me perdi pela milésima vez. Me ajuda! Pelo amor de Deus!
Se tem algo que aprendi é que tudo tem um preço. Mestre Ponda me usou
para benefício próprio em Fayrehal. Laghertia, a princesa Drakar, salvou a minha
vida em Salavinder e me deu a Espada Viva. Logo em seguida descobri que suas
atitudes foram na esperança de que eu retribuísse esses favores renunciando
salvar minhas irmãs para encontrar Aurora. Até mesmo o Áquila teve segundas
intenções quando me propôs uma aliança. Ele visava a paz de Yerus e em troca
me pediu para rejeitar minha linhagem. Nem Tina escapa dessa. Ela também
sempre deixou claro que esperava de mim que eu estivesse exatamente onde hoje
estou, reivindicando o meu título.
Sei que ela não perde nada, nem a lama seca na lateral da sola das minhas
botas puídas — não deu tempo de trocar como consegui fazer com as minhas
roupas — até os fios de cabelos indomáveis que tanto tentei colocar no lugar —
a razão pela qual fiquei sem tempo para trocar os sapatos. Me retraio
internamente, porque era aparecer assim ou me atrasar ainda mais.
Não sou nem louca de tentar me justificar. Uma vez fiz isso e saí daqui
destruída mentalmente. Tenho calafrios só de lembrar daquele episódio.
A rainha Magnólia não usa punições físicas. Não, ela é superior a todas
essas técnicas dolorosas que Oclan aplica em mim. Seus métodos são mais sutis
e refinados, portanto, infinitamente mais excruciantes.
Merda. Merda. Merda. Mil vezes merda! Estou tão preocupada com meu
atraso e minha aparência tenebrosa que me esqueci do básico. Não devo me
curvar perante ninguém por maior que seja a força invisível que me instiga a tal.
E, minha nossa, a rainha Magnólia tem um poder que faz formiga se curvar.
Capaz que essa mulher tem sangue Drakar correndo em suas veias, porque
não é possível ser capaz de adivinhar com tanta facilidade assim tudo o que
penso, ou as menores inclinações que sinto secretamente. Tem que ser algum
tipo de magia, porque isso é uma desgraça diária na minha vida. Sem lógica.
— Hmmm — ela volta minha mão com cuidado para o lado do meu corpo.
— Vossa Alteza está em minhas terras à procura de diversão?
— Então me permita ouvir as razões para uma princesa ter mãos calejadas
e machucadas como as de um soldado. — Ela se senta em um sofá com a coluna
ereta, sem recostar as costas no encosto, com as pernas juntas e viradas para o
lado e o queixo inclinado para cima em minha direção.
— Não sou nada parecida com ele. — Trinco os dentes e ela nem mesmo
altera a inclinação do corpo.
Aperto os dedos com tanta força ao redor dos punhos que chega a doer as
minhas juntas.
— Vejo, parada à minha frente, uma escrava almejando ser uma princesa.
— O meu decreto seria para salvar os meus para que não sejam as minhas
mulheres, homens, crianças e idosos a sofrerem tais brutalidades, Vossa Alteza
— Magnólia diz como se fosse capaz de ler os meus pensamentos. — A
crueldade começa simples, como o desejo de matar a mulher que assassinou o
vosso irmão. É completamente justificável perante muitos, incluindo a mim e a si
mesma, mas não aos olhos de todos. No entanto, esta não é a questão mais
agravante, embora estejamos falando de sentenciar à morte uma pessoa culpada e
que merece pagar pelo que fez. Há algumas questões a serem ponderadas. A
principal é o quanto essa decisão te deixará confortável. Quanto mais
justificativas plausíveis Vossa Alteza tiver para dar a si mesma, mais fácil será
assinar um simples decreto que irá dizimar com milhares de vidas quando
alcançar a minha posição.
— Merece? — pergunto em uma calma fria. — Acho que não, mas é o que
eles terão.
— Vossa Alteza é uma vergonha para a linhagem dos Tupper. Eles devem
se revirar no túmulo por terem uma sucessora com estas características
deploráveis e inaceitáveis. — Ela percorre meu corpo com o olhar carregado de
desprezo.
Não caia na dela. Não caia na dela. Não caia na dela — repito várias
vezes em minha mente para que suas provocações não me atinjam. Magnólia está
atacada hoje, mas preciso dela e ela precisa de mim. Ambas odiamos isso, mas
estamos dispostas a passarmos por cima do nosso desconforto por termos um
objetivo em comum.
Ela indica com o olhar um pergaminho virgem sobre a mesa e uma pena
com o tinteiro ao lado. Entendo seu chamado para que me aproxime e faço o que
me pede.
Estou fazendo algo errado. Jesus. Como posso errar a escrita do meu
nome? Meu nome, caramba!
Magnólia não se digna a explicar e tenho medo de perguntar. Ela vai me
atacar no Felipe ou no Áquila, uma vez que o Rei e Helena já foram. Acontece
que qualquer um dos dois me tira o ar só de pensar em ter de lidar e... merda!
Gosto de respirar. Também não gosto de ficar com minhas mãos machucadas e
estou assim por conta do treinamento de ontem, porque ela me atingiu
incessantemente no Felipe. Foi tão doloroso que precisei ir atrás do Oclan no
meio da noite e implorar para que lutasse contra mim.
Nem uma hora se passa e tenho para mim que meu cérebro já virou mingau
enquanto meus dedos começam a dar calos. Sinto vontade de saltar da janela e
findar com a minha desgraça agora mesmo.
Quando fui presa, nem por um segundo me desesperei. Isso não quer dizer
que gostei daquela experiência, porque posso afirmar com cada fibra do meu ser
que tanto Oclan, quanto eu, odiamos aqueles dias naquelas celas insanamente
tediosas.
Então foi com sobriedade que a encarei e sustentei quem eu era. Também
foi com lucidez que declarei que estava à procura de formar alianças por meio de
um casamento. Também foi com determinação que deixei subentendido que
estava disposta a avaliar com grande consideração alguém que ela me indicasse,
dependendo do que se dispusesse a me oferecer em troca, claro. E, de novo, foi
consciente que concordei em esperar para conhecer pessoalmente qualquer rei,
príncipe ou nobre de grande influência dos Países Baixos, até que o sobrinho
dela pudesse chegar do Reino do Norte para me conhecer.
— Jura que Sua Majestade está de acordo com essa decisão? — Tina
arregala os olhos.
— Sua Majestade não tem que concordar com a minha decisão e sim
aceitá-la.
Tina se afasta da janela e vira-se de frente para mim. Relutante, desvio a
atenção do alvo do meu interesse e a encaro de volta.
— Não fique tão surpresa. Não é tão difícil assim fazer valer a minha
vontade perante uma força como a dela.
— Isa...
Eu tento, juro que tento ressignificar a forma como me enxergo, mas ainda
me sinto igual à Tina do que jamais me identifiquei com a rainha Magnólia.
Além do mais, Tina não é qualquer pessoa. Ela é mais do que minha
amiga. A considero como se fosse minha irmã, então é bem estranho ter que
cobrar dela esse comportamento. Mas não há nada que eu possa fazer. Se decidi
abraçar a minha linhagem perdida, então tenho que aceitar tudo o que implica ser
uma princesa. Não que eu goste, porque, verdade seja dita, detesto com todas as
minhas forças.
Tudo o que ele tem é uma descrição da minha aparência física. Se muito,
algum retrato desenhado por um artesão, o que acredito ser bem difícil, uma vez
que nunca posei para ninguém. A dama em questão tem a maioria, se não todas,
as características físicas atribuídas a mim. Só que, a meu ver, a diferença é que
ela é mais bonita e graciosa do que jamais serei um dia.
Ela estende uma das mãos, exatamente como deve ser, e ele a toma sem
pestanejar.
Mal tenho tempo de inspirar de novo quando ele se afasta de forma abrupta
e solta a mão dela. Daqui sou capaz de notar o cenho franzido na testa dele.
Não é possível.
O meu pretendente não é alguém fácil de controlar, uma vez que levou
menos de um minuto para reconhecer a farsa e, além disso, me encontrar tendo a
certeza de que eu sou eu.
Sei que, de onde estou, é impossível que tenha me ouvido, mas de alguma
forma ele parece saber que estou insatisfeita com a sagacidade dele, já que tomba
levemente a cabeça para o lado. Não sei como, mas consigo identificar
exatamente o que está me dizendo sendo que seus lábios continuam estampando
um sorriso divertido. O príncipe está esperando que eu desça para recebê-lo. É o
que a rainha Magnólia deixou claro que era para eu fazer.
Não sei se ela ainda está abobada com a visão do príncipe ou se atônita
com o meu pedido.
— Não quero usar essa coisa. — Tina aponta com nojo para o meu vestido.
Ele é preto com bordados à mão de folhas de ouro, que brilham a cada
movimento que faço. O decote é estilo canoa que destaca o colo do peito, o que
por sua vez é provocante. As mangas descem com um tecido mais fino, dando o
efeito nas costas de uma capa que se movimenta de forma fluida, projetando a
falsa sensação de que o vestido é leve. Mas não é, porque o peso está no restante
da peça. O corpete é justo na cintura e o vestido desce agarrado até a altura das
minhas coxas, onde tem uma fenda. Com uma saia acoplada na cintura, que dá
volume apenas na região dos quadris, o resultado final é uma peça elegante.
Não posso negar que é lindo, mas sei exatamente qual é a sensação que
Tina está sentindo. Todos os dias sou atingida por essa aversão e mesmo assim
passo por cima do meu desconforto para assumir o meu papel. Visto
religiosamente vestidos exuberantes como esse que acrescentam, no mínimo,
cinco quilos a mais sobre os meus ombros.
— Você pode até não querer, mas vai. É bom que sinta o que é estar nesse
papel que insistiu incansavelmente para que eu assumisse.
Tina engole em seco e não fala mais nada enquanto se despe de suas
roupas de soldada. Não vou negar que sinto um prazer doentio em vê-la sentindo
na própria pele o que passo todos os dias. Ela foi a que mais lutou — ou melhor,
brigou — para que eu reclamasse a minha linhagem perdida. Nada mais justo
que experimente, nem que seja uma parcela efêmera, do peso que isso traz.
Se um dia fui acusada de ser egoísta, hoje sou capaz de ordenar que cortem
a cabeça de quem ousar me atribuir essa característica. Esse “quem” é a Tina
mesmo, que vivia jogando isso na minha cara.
Desço com Tina ao meu lado, que está com uma carranca explícita para
quem quiser ver. Às vezes ela até mostra os dentes e rosna para os corajosos que
ousam olhá-la diretamente nos olhos.
Não consigo decifrar o sentimento que o toma. O que consigo notar é que
o ar de divertimento evaporou completamente de suas feições.
Ergo o queixo quando paro bem na frente dele e seus olhos verdes, de um
tom idêntico às pedras crisólita, fixam em mim com uma intensidade
enlouquecedora. Sua pele de porcelana, exatamente igual à retratada no quadro
em que a mãe dele posou ao lado da rainha Magnólia, dá um contraste
interessante com seus fios escuros de cabelo. Fios esses que se assemelham
muito aos do primo dele por parte de pai, o Áquila.
Ah, ele também é primo primeiro do Áquila, cuja mãe é irmã do pai do
Dominic, o rei do Reino do Norte.
Ele solta uma risadinha com minha sinceridade e inclina o rosto em minha
direção como se fôssemos íntimos, o que não somos de forma alguma. Fico
parada no lugar, em vez de me afastar, apenas porque também já treinei situações
como essa.
Toda essa liberdade que está tomando comigo, me incomoda. O que me faz
deixar de lado as regras de etiquetas para fazer, sem rodeios, a pergunta que vem
me atazanando desde o momento em que os olhos dele encontraram os meus.
— O que me entregou?
— Ainda não tinha visto os seus olhos para saber como exatamente eles
seriam diferentes do que estamos acostumados. No entanto, agora sou capaz de
identificar que eles são duros como faca e penetram a alma, o que
assustadoramente os torna atraentes. Outros diriam que o resultado é o brilho
incomum e não a atração. Afinal, foi o que tanto ouvi falar, mas não o que
experienciei ao vê-los pela primeira vez. — Aperto os olhos sem paciência e ele
sorri. — Algum outro palpite do que a delatou, princesa?
— Estou certo de que esse vestido era o que Vossa Alteza estava usando.
— Minha amiga fica envergonhada até a raiz dos cabelos enquanto simplesmente
ergo uma sobrancelha quando Dominic volta a atenção para mim. — Receio te
decepcionar outra vez, mas não. Ela é uma soldada que acata as suas ordens,
como trocar as pressas as vestes pelas suas. O que quero dizer, é que a Guerreira
Tina poderia estar em qualquer outro lugar a seu serviço. No entanto, quando te
procurei dentre todas aquelas pessoas que me espiavam dentre as várias janelas
do castelo, suspeitei que era a senhorita por ser a única que avaliava as minhas
reações com interesse enquanto todos os outros estavam apenas curiosos com a
minha chegada. Mas foi a soldada de cabelos vermelhos ao seu lado quem me
deu a certeza da sua identidade.
— Minha cara princesa, sua fama a precede. Confesso que estava curioso
para conhecer a dona de tanta autenticidade. — Ele prensa o lábio inferior entre
os dentes em uma tentativa de frear o riso. — Permita-me? — Ele indica minhas
mãos e assinto. Logo ele as segura com delicadeza. — Calos. Guerreiros têm
uma porção deles.
— A surpreendi?
Não desvia o olhar. Não desvia o olhar. Não desvia o olhar — digo a mim
mesma repetidas vezes.
A pressão dele, para que eu ceda, é grande. Dominic é sobrinho da
Magnólia, mas eu é que sou o projeto dela. Por conta disso, consigo sustentar a
minha pose sem fraquejar.
Não caio com tanta facilidade. Não caía antes e não caio agora, mesmo
diante a pressão de príncipes, princesas, rainhas ou reis.
Eu devia ter falado que estava cansada, mas a vontade de parecer forte
falou mais alto e agora estou pagando por isso. Magnólia precisa se esforçar
mais para que eu aprenda a controlar as minhas emoções e não o contrário.
Passo por ele e subo o primeiro degrau. Não vejo o sorriso do Dominic,
mas sinto o ar de diversão emanar dele quando começa a subir atrás de mim.
Quanto a Tina, ela solta um resmungo antes de seguir em nosso encalço.
Centenas de degraus e curvas depois, subindo e subindo, virando e
virando, para Dominic dizer que ainda não chegamos nem na metade do
caminho. Eu me lembro que, da última vez em que aceitei o desafio de um cara
que tinha acabado de conhecer, o mesmo virou o meu treinador e quase me jogou
da encosta de uma cascata. Não terminou bem para mim e aqui estou eu
cometendo a mesma burrada outra vez.
— Pensei que vocês fossem hóspedes da minha tia — Dominic diz com o
fôlego afetado.
— Não compreendo.
Volto a subir com ele no meu encalço e Tina resmungando atrás de nós.
Tonta de tanto fazer curva, e sem ar de tantos degraus, não noto uma pedra solta
e piso nela. Desequilibro e só não caio para trás porque no segundo seguinte as
mãos do Dominic pressionam a minha cintura para me firmar no lugar.
Volto a subir sem dizer nada e evitando a todo custo olhar para trás. Porém,
juro que sinto o olhar da Tina queimando em minhas costas. Ela vai infernizar a
minha vida com comentários maldosos quando estivermos apenas nós duas.
Merda.
— Você é mesmo muito sobrinho da sua tia para me fazer pagar antes de
ter a chance de sequer pedir por algo.
— Tia Magnólia age com esse propósito. Quanto a mim, apenas entendo
que tudo o que vale a pena requer esforço. — Dominic é esperto, porque opta por
deixar o meu constrangimento de lado ao invés de insistir no assunto. — Além
disso, neste caso em específico, nós três iremos ganhar.
— Tenho certeza de que você sabe até mesmo cada corredor que há no
pequeno castelo em que estou hospedada.
— Foi a residência da minha mãe antes dela se casar com o meu pai.
— Entendo. — Desvio o olhar de volta para as colinas, o ponto alto da
vista.
Dominic fica parado por tanto tempo em silêncio que fico incomodada
com a falta de reação dele. Viro o rosto de lado e imediatamente encontro com
seus olhos verdes, que me dão a sensação de terem me observado esse tempo
todo em que estive distraída contemplando a paisagem.
Solto uma risada pensando que ele está falando no sentido figurado, mas
Dominic continua sério.
— Espera. Isso quer dizer que a rainha Magnólia matou mesmo o marido?
De qualquer forma, se não foi isso, foi outra coisa. Mas algo aconteceu e
Magnólia não gostou de quem se tornou depois de ter tomado a decisão de punir
gravemente alguém. Ela insiste muito na questão do meu desejo de vingar a
morte do Felipe. Isso me leva a crer que Magnólia já esteve em uma situação
similar a minha.
— Sim.
— Obrigada.
Ele leva uma das minhas mãos aos lábios e beija os nós dos meus dedos,
sempre mantendo contato visual.
Tina se reaproxima de mim, mas com ela não preciso pisar em ovos, então
fico tranquila.
Tenho minhas ressalvas. Uma delas é que Dominic é um dos homens mais
espertos que já conheci na vida. Ele é sobrinho da Magnólia, então não sei por
que me surpreendi com isso. Os dois não são pessoas manipuláveis. Mas quero
saber quais são as razões da Tina.
— E o quê?
— E se...
Não posso ser dura comigo mesma, porque eu não estava sozinha nessa.
Embora as circunstâncias nos jogassem um contra o outro o tempo todo, tanto o
Áquila quanto eu desejamo-nos com ainda mais força. Foi assim quando
formamos aquela aliança com o objetivo de nos separar no fim.
Foram três dias estabelecendo a aliança. Foram três dias nos aproveitando
de cada brecha que aparecia. Mãos entrelaçadas por debaixo da mesa. Troca de
olhares carregando promessas quando Felipe e Máximus estavam distraídos em
um embate caloroso. Abraços escondidos e beijos roubados. Por fim, Áquila me
pediu abertamente para voltar para lá depois de conquistar as reféns. E eu? Eu
queria estar com ele acima de qualquer coisa, embora nunca tenha revelado isso
para ninguém.
Nós dois éramos hipócritas. Nossos lábios diziam o que os nossos corações
não sentiam.
Entrei em uma situação terrível, porque... Como vou controlar algo que já
não me pertence mais? Algo que pertence ao Áquila? Aquele Guerreiro
conquistou o meu coração. Se autodeclarou senhor dele. Ao fazer isso, ele me
condenou a um destino miserável!
— Eu posso não ter um soldado aqui comigo agora, mas você vai cometer
um grande erro se tentar me atacar. Não sou uma princesa indefesa.
— Meu pagamento.
Koli não se aproxima mais de mim, mas é porque não consegue, uma vez
que sempre estou acompanhada. Porém, ele procura outros meios de me
pressionar. Para onde quer que eu vá, se não é o Koli em pessoa é um dos
rebeldes do grupo dele seguindo cada passo que dou.
Eles não me amedrontam, caso seja essa a intenção. O que estou é curiosa
com a mudança súbita de comportamento. Até a chegada do Dominic, todos os
rebeldes, desde os líderes até os comuns, estavam mais do que felizes em ficar
aqui em Lufstar. Mas foi o príncipe chegar para Koli ultrapassar as minhas
barreiras de segurança para me cobrar.
Ele é o pretendente dos sonhos, uma vez que o Reino do Norte está em pé
de igualdade com Yerus. Me aliar ao herdeiro daquelas terras é a maior força que
posso ter para reclamar meu título e, enfim, libertar minhas irmãs. Além disso,
ele também é o herdeiro de Lufstar, já que Magnólia não teve filhos.
Se ele se casar comigo, será possível que um dia o Norte alcance mais do
que já conquistou. Mas será apenas uma possibilidade. Talvez nem seja o
Dominic, ou mesmo eu, mas os nossos herdeiros. De qualquer forma, não há o
que fazer, já que não há declaração de guerra. Além disso, o Norte só poderá
reinar em Yerus, caso Rakar e Áquila não assumam o poder ou não tenham
herdeiros.
Posso estar errada, mas é assim que vejo que o Reino do Norte pretende
enfraquecer o Rei de Yerus. Ele não terá motivos para pegar em armas contra o
sobrinho da esposa alegando defesa, porque não há ataque.
— Mestre Ponda uma vez comentou a respeito de uma batalha contra seres
malignos que invadiram este mundo, forçando os Drakars e os Homens a se
unirem contra eles. Depois disso, as duas raças viveram em paz, até que a
ganância dos homens aumentou e chegou aos ouvidos da princesa Laghertia que
o rei Telok I sequestrou a Hortense, cópia da falecida rainha Aurora. Onde os
Salonsk entram neste cenário, Vossa Majestade?
Acho que toco em um nervo, porque ela respira fundo e seu olhar prateado
endurece feito ferro.
— E depois?
— Não é possível atribuir como tendo sido tempos de paz somente porque
ambas as raças coexistiram no mesmo espaço, porque houve muitos conflitos
entre o nosso povo e o deles. — Magnólia me lança um olhar cortante. — E não
foi por uma questão de ganância do nosso povo, os Homens, como aquele
pérfido defende. Os Salonsk, atual linhagem no trono de Yerus, os Pryteon, do
Reino do Norte, a minha linhagem e a de todos os outros reinos deste mundo,
lutaram em uma batalha contra todos os Drakars e então, finalmente, nos
livramos daquela raça traiçoeira. Por isso é uma ofensa aos nossos reinados o Rei
usar o argumento de que é graças aos Salonsk que temos prosperidade quando,
na verdade, é graças à saída dos Drakars de nossas terras em uma ação conjunta.
Não sei quem foi inocente e quem foi vilão nessas disputas. O que sei com
certeza é que Hortense, a cópia do meu mundo, foi trazida para cá, assumiu o
lugar da falecida rainha Aurora e esse evento impactou de alguma forma essa
disputa entre os Drakars e os Homens.
A minha existência e presença neste mundo despertou essa briga, uma vez
que o Rei começou a me perseguir e a Laghertia entrou em contato comigo. E,
dessa vez, os reinos não estão se unindo. Isso me mostra que há algo apenas
entre o Rei e os Drakars que, ou os outros reinos desconhecem, ou ignoram por
ora.
— Dominic. — Tina faz uma careta. — Mas acho que foi um mal-
entendi...
Minha atitude pode ser considerada errada por vários motivos, mas pelo
menos o tratei com o pronome de tratamento correto. Acho um grande feito da
minha parte, se alguém me perguntar.
Sinto a atenção do Dominic em nós duas, mas evito olhar para ele porque
estou mortificada por não ter tirado a história a limpo antes de atacar o pobre
coitado.
— Conheço o Kaká como a palma da minha mão. É ele quem foi preso.
— Talvez não. Eles prenderam a cópia errada. — Tina resmunga para que
apenas eu a ouça.
— Sabia que você seria rápida, por isso nem me desesperei — Kaká diz
para a Tina, que fica com as bochechas rosadas e entra em um silêncio profundo.
Será...? Não quero saber.
— O que foi que você fez, Carlos Eduardo? — Dou um tapa no ombro
dele como se ele fosse o culpado por eu ter agido de forma mal-educada com o
Dominic e quase causado confusão sem motivo.
— Respeita que eu sou o mais velho. — Ele segura meu pulso para evitar
apanhar de novo. — Você acha mesmo que gosto de vestir essas roupas
fedorentas do Koli? Aquele ordinário tramou para mim enquanto foge de
Lufstar!
— Tina agiu rápido, então é bem provável que o navio daquele salafrário
ainda esteja ancorado aqui.
— Dominic, desculpa...
— Não tem problema algum comigo. Os dois são idênticos e a forma como
se vestem é o que mais os distingue um do outro. Por falar nisso. — Volto a
atenção para o Kaká e enrugo o nariz. — Por que mesmo você disse que está
com as roupas do Koli?
— Traiu como?
A curiosidade vence e volto a olhar para os dois sem intervir. Quero saber
o que está se passando entre eles e o que acontece pelas minhas costas.
— A minha irmã passou meses no mesmo navio que o homem que atentou
contra a vida dela, porque ela confia no seu julgamento mais do que no meu!
Você deveria ser mais esperta e passar informações seguras.
Perco o ar e Tina fica com uma mancha vermelha imensa na testa. A veia
do pescoço dela falta explodir!
Nos meus quase vinte e um anos de idade, eu nunca vi o meu irmão dessa
forma. Nunca mesmo. Ele é sempre o mediador, o que chama a razão os
briguentos, no caso, era o Felipe e eu. Então estou absurdamente assustada e
paralisada com a forma com que ele está atacando a Tina.
— Calem-se. — Dominic ordena quando Tina parece que irá revidar de
uma forma bem feia. Ao som da voz dele, os dois param de brigar feito dois
gatos enfurecidos. — Conte-nos o que aconteceu, senhor Carlos. — Meu irmão
se recompõe.
— O Koli lutou ao meu lado naquele horror! Nós dois quase morremos. —
A Guerreira não nota, mas Dominic lança um olhar altamente desconfiado para
ela. Se eu não a conhecesse, também desconfiaria dela depois dessa. — Você não
ouviu errado? Áquila...
Meu irmão respira fundo e, quando volta a encarar a Tina, a raiva dele já
está completamente sob controle. Acho incrível a mudança súbita de
comportamento.
Koli constantemente dizia que os rebeldes vinham do Norte. Não sei por
que pensei que lá eles eram considerados bons, mas pensei que assim fosse.
Talvez por associar ao que eu via, como a inocência do Ruan e daquele grupo
que veio atrás de mim pedindo ajuda para salvar Salavinder do cerco.
Não sei como fui cega, mas isso justifica a tomada de decisão do Rei ao
cercar Salavinder. Não que eu concorde com o que ele fez, porque não concordo
de jeito nenhum! Apenas agora sei qual foi a desculpa dele para ordenar aquele
cerco.
Os nobres foram alertados e saíram de lá. Algumas pessoas comuns, ao
achar suspeita aquela movimentação, desconfiaram e também saíram de
Salavinder. Ruan foi um deles. Mas muitos inocentes foram condenados por
causa dos rebeldes que haviam tomado Salavinder e do Rei que ordenou aquela
atrocidade. Ambos são culpados, a meu ver.
— Ela não sabia. — Dominic intervém a meu favor. — Assim como eu,
Isabelle acabou de descobrir que Koli a enganou e a traiu naquele massacre que
aconteceu na Ilha do Comércio.
A rainha não perde tempo e logo todos os suspeitos são interrogados após
tomar o soro da verdade, incluindo a mim, que me prontifico a ser a primeira.
Magnólia vai tão afundo na investigação no caso do rebelde que descobre que,
além de um fugitivo de um grupo criminoso do Norte, traidor dentre os rebeldes,
o que inocenta Tina, Ruan e eu, ele também aliciou pessoas do reino de Lufstar e
roubou da Coroa.
O navio que ele tentou fugir, e que foi capturado pelos homens do Dominic
graças as informações do meu irmão, era um navio de carga do reino da
Magnólia. Como se não bastasse, também foi encontrado ouro, joias e
armamentos no meio das cargas.
Eu devia ter feito algo ao invés de procurar entender por conta própria a
mudança súbita no comportamento dele. Agora sei que Koli ficou desesperado
com a possibilidade de ser desmascarado quando ficou sabendo que o Dominic
estava aqui. Foi por isso que começou a me ameaçar pedindo ouro. Ele queria
fugir antes que alguém do reino do Norte o reconhecesse.
Aquele caos que aconteceu na Ilha do Comércio, onde o meu irmão perdeu
a vida, é o tipo de coisa que Koli trama para que aconteça. Seja em Yerus, Reino
do Norte ou até mesmo nos Países Baixos. E foi a esse tipo de gente que me
associei sem saber.
Está certo que nem todos os rebeldes são criminosos, como Magnólia fez
questão de averiguar. Mas eu me aliei ao Koli. E quando eu podia ter feito algo
para ajudar, como quando comecei a receber ameaças, me calei.
Nem posso culpá-lo por ter se ressentido de mim quando me associei aos
rebeldes. Na verdade, agora não entendo como o Áquila conseguiu ficar comigo
apesar das circunstâncias.
Depois de dois longos dias de investigação, ao fim da tarde, Dominic me
acompanha para o castelo em que estou morando enquanto seus soldados nos
seguem a uma certa distância. É a primeira vez que temos um momento sozinhos
e longe de toda a confusão.
— Mas eles não estão na mesma posição que a minha. Magnólia poderia
me condenar e mandar cortarem a minha cabeça!
Dominic para de andar e segura ambas as minhas mãos. Ele as aperta com
delicadeza para chamar a minha atenção, mas estou frustrada demais comigo
mesma para ser alcançada.
— Olhe para mim. — Atendo ao pedido dele e noto como ele está
absurdamente sério. — A culpa não é sua. Principalmente no que diz respeito a
morte do seu irmão.
Aí está a razão por eu ser consumida por essa culpa que mais parece uma
gosma negra e sufocante.
— Por que você está fazendo isso? — O encaro fundo nos olhos, porque
quero realmente saber quais são as intenções do Dominic ao tomar o meu partido
dessa forma tão natural.
A praça já está cheia de centenas de expectadores, o que por sua vez piora
a dor que sinto na boca do estômago. Eu não queria nunca ter que passar por isso
sozinha, sem alguém da minha confiança por perto, e não estou conseguindo
segurar a angústia que está me corroendo de dentro para fora.
Quando Dominic chega, logo seu olhar pousa sobre mim. Ele caminha na
minha direção com elegância e altivez enquanto cumprimenta os nobres ao longo
do caminho. Em plano de fundo, o som da população o ovacionando encobre
qualquer outro ruído.
Ao se sentar do meu lado, Dominic espicha o pescoço e traz a boca para
perto do meu ouvido para que ninguém, tanto ao nosso redor, quanto alguém da
plateia, saiba o que irá me dizer.
— Quando chegar a hora, não desvie o olhar nem mesmo feche os olhos.
Pode fazer isso? — ele pede gentilmente.
Assinto quase que de forma imperceptível quando ele volta a ficar ereto
em seu lugar. Seus olhos de crisólito me dizem para que eu seja forte e então me
obrigo a aplacar o nervosismo como Magnólia me ensinou diversas vezes.
A rainha chega instantes depois e todos nós nos levantamos para recebê-la.
Os expectadores na praça vão ao delírio.
Magnólia assente com a cabeça para o algoz, tomando a sua decisão. Luto
contra a vontade de olhar para a rainha a fim de descobrir se ela se sente
confortável em não os perdoar. Acredito que nunca vou saber, porque olhar para
ela agora chamaria atenção para mim e já sinto peso demais das observações dos
vários pares de olhos na minha direção, por causa do lugar de destaque em que
me encontro.
Para encontrar paz por participar disso, recordo da rainha me ensinar que
decisões como essa, de sentenciar alguém à morte, antes é preciso se certificar de
que é para o benefício de várias vidas. Magnólia investigou o caso a fundo
durante esses dias. Lufstar praticamente parou até que a verdade fosse
encontrada. Portanto, Koli e seus comparsas não são inocentes.
A plateia grita com fervor, mas Koli não parece dar ouvidos a nada.
Alguns nobres suspiram atrás de nós, mas Magnólia e Dominic não demonstram
qualquer tipo de reação. Quanto a mim, aperto com força o pano do meu vestido
entre as minhas mãos enquanto os outros prisioneiros dizem coisas parecidas
com a do líder deles.
Seja forte.
Seja forte.
Seja forte.
Embora eu não concorde, e talvez nem caiba a minha opinião, o fato é que
uma mensagem precisa ser enviada e faço parte dela, mesmo não gostando, ou
querendo.
Dominic segura minhas mãos sobre o meu colo. Algo me diz que ele não
deveria fazer isso, mas serei eternamente grata a ele por ter agido contra todos os
protocolos neste momento crucial. Aperto meus dedos ao redor dos dele, que
apenas me segura, mostrando que está aqui comigo.
Nunca mais!
— Por aqui — Dominic diz, mas, sinceramente? Não tenho ideia de para
onde eu estava indo.
— Ela vai desmaiar. — Acho que é a voz do Oclan, mas não tenho certeza.
— Porque o meu também está. — Ele desliza os nós dos dedos sobre a
minha bochecha.
— Acabou, princesa.
Tina se afasta e nos lança um olhar que bem poderia ser definido como
nojo. Quando viro a cabeça para trás, a fim de medir a reação do Dominic,
percebo que ele está atento a tudo e a todos.
O olhar dele encontra com o meu e ele disfarça com um sorriso ensaiado.
— Sim, por favor. Antes fingir engolir a comida aqui do que na presença
da tia Magnólia.
Volto para o príncipe sem saber como me livrar desse assunto sem me
entregar a ela. Dou de ombros, porque é uma resposta para ele que ela não
enxergará.
Tina arfa de um jeito que me leva a entender que ficou surpresa. Essa
abelhuda não vai nos deixar a sós e Dominic não parece pronto para deixar a
questão de lado. É compreensível, uma vez que ele mantém a intenção de me
pedir em casamento em alguma parte do futuro.
— Somos amigos.
Aperto os lábios e o encaro com a expressão que diz: você vai mesmo me
obrigar a dizer isso?
— Não acho que ele seja capaz de escolher quem o coração dele ama,
Dominic. — Sei por experiência que não sou capaz de impedir o meu de amar o
Áquila. Não digo isso, mas é o que penso.
— Paixão não é uma escolha. Amor é e sempre será uma escolha.
Ninguém é perfeito e nos momentos em que o outro nos irrita, ou falha conosco,
ou tira a nossa sanidade, até podemos não controlar o desgosto que sentimos da
pessoa em questão nessas situações, mas podemos escolher amá-la mesmo
assim. Se a sua escolha é amar, então você permanece. Paixão não. Se o outro
falhar, você se irritar e passar a não gostar dele, você não permanecerá.
— Entendi sim. Para você, ignorar que sabe da natureza dos sentimentos
dele é se eximir da culpa por não corresponder. Mas se ele escolhe te amar
mesmo assim a responsabilidade é dele, não sua.
Dominic ri com vontade, porque sabe que tenho razão. Ele só está me
provocando.
— Um criado do Dominic me pediu para te entregar. — Tina me estende
um envelope assim que saio de uma aula com a Magnólia.
— O que é? — pergunto sem nem mesmo abrir. Sei que ela sabe o
conteúdo da carta, porque Tina, além de abelhuda, também tem a missão de
fiscalizar tudo o que chega até mim.
Na cela em que fiquei presa com o Oclan, ele tinha que comer minha
comida para testar se não estava envenenada. A minha ilusão foi pensar que esse
tipo de perigo acabaria quando eu deixasse o forte. Não acabou. Uma carta que
passa pelas mãos de desconhecidos, também representa uma ameaça, então Tina
sempre toca em tudo antes de mim.
— Ele solicitou um encontro na galeria de arte e pediu para que você fosse
sozinha. — Ela repuxa os lábios para o lado em desagrado.
Baixo os olhos para a minha roupa e concluo que o vestido creme soltinho
que estou vestindo serve para uma pequena caminhada. O sol já está baixo, então
também será tranquilo, uma vez que nunca usei, nem nunca usarei, chapéu ou
sombrinha. Não sei como funciona nos outros reinos, mas na corte da Magnólia,
são acessórios completamente dispensáveis.
Os vestidos, no geral, estão mais para sensuais do que para o recato. Por
Lufstar ser uma terra quente, predomina os estilos mais abertos e soltos do que
longos e fechados. A questão é que nem sempre por ser uma peça com a
impressão de solta e aberta que não é pesada. A minha sorte é que hoje a minha
escolha de vestimenta foi simples em todos os sentidos.
— Vou sozinha.
— Pare de insistir nessa questão. Somente sob o meu cadáver que você irá
sozinha, Isabelle! — Tina se exalta e lanço um olhar cortante para ela que respira
fundo. — Vamos fazer um trato? Eu te acompanho até próximo de onde você
quer ir. Uma vez lá, você fica por conta do príncipe e a escolta dele enquanto
volto para tratar umas questões com o Oclan.
— Não gosto quando você e o Oclan me tratam como criança pedindo aos
pais para pararem o carro na esquina do colégio. Não sou nem mesmo
adolescente, Guerreira.
— O que quer que isso signifique, princesa. Sozinha você não vai.
Respiro fundo e faço do jeito que a minha guarda deseja, no caso, os dois
Guerreiros mais protetores do planeta!
— O que você quer tratar comigo fora do alcance dos ouvidos que nos
cercam no castelo, príncipe?
Dominic joga uma uva na boca e mastiga de forma caprichosa. Seus olhos
de crisólito apertam-se para mim em diversão enquanto o observo comer. Aperto
os olhos de volta como se dissesse: “Travesso! Já saquei qual é a sua”. Ele é
charmoso, sabe disso e está tirando proveito dessa característica.
— O que quer saber? — pego uma uva e, de forma bem menos graciosa do
que ele, levo-a até a boca.
Dominic dá de ombros enquanto pega outra bolinha verde.
— Tudo bem.
Ele me desarma de uma forma boa, o que é inédito para mim. Não sei se
alguém alguma vez prestou tanta atenção ao que digo da forma como ele faz,
sorrindo nas horas certas e demonstrando interesse sincero por minhas histórias.
— Qual é, príncipe? — Jogo uma uva, que caiu no gramado, na testa dele.
Dominic sorri de forma travessa. — Eu gostava de agitar as crianças na creche
que o meu irmão me obrigava a trabalhar sempre que eu saía da linha. Mas
confesso que eu corria na hora de trocar alguma fralda. Logo a dona, amiga do
Kaká, percebeu qual era a minha e passou a me enxergar mais como uma
animadora de festa infantil do que cuidadora. Até mesmo uma mãe uma vez me
contratou para isso.
— Contratou?
— Ela me deu uma quantia equivalente a poucas moedas de cobre para que
em troca eu divertisse as crianças em uma festinha do filho dela. — Minha
garganta arranha e começo a tossir.
— Parece que te pagavam mal, mas que você se divertia muito — ele diz
ao me estender uma garrafinha com água.
Compartilhei com o Dominic como era a minha situação antes de vir para
este mundo. Contei sobre a minha rotina e não foquei em nenhum extremo. Disse
a ele como eu ia muito mal na escola, mas também como gostava dos amigos
que fiz lá. Revelei que a situação financeira da minha família era péssima, mas,
em contrapartida, nós nos amávamos e éramos unidos.
Mestre Ponda, Felipe e Kaká estavam certos. Eu teria voltado para cá. Por
mais que eu tenha várias memórias felizes no outro mundo, é neste que sinto que
pertenço. E isso antes mesmo de descobrir sobre a minha linhagem perdida.
Eu já não sou mais a mesma Isabelle de antes e não gostaria de voltar a ser
ela.
— Queria mais momentos como este para te mostrar que, mesmo que seja
uma aliança política, não precisa ser desagradável. Não precisa ser infeliz. Nós
dois podemos construir algo que nos faça bem. Mesmo que o propósito não seja
um dos quais as pessoas sonham... que você tenha sonhado algum dia... sinto,
nos meus ossos, que seremos bons um para o outro, Isa. Porém, temo não ter
mais tempo para te fazer enxergar sob o mesmo prisma que o meu. — Dominic
faz uma pausa e seus cílios negros de cima se encontram com os debaixo. Ele
respira fundo. Quando seus olhos verdes voltam a me encarar, meu coração
dispara. — Preciso da sua resposta, Isa.
— Eu na monarquia.
— E os nossos herdeiros.
— Correto.
Espero que ele complemente, mas Dominic não diz mais nada.
— Elas se tornarão minhas irmãs também, portanto, é claro que irei usar
tudo o que está em meu poder até libertá-las. — A intensidade com que ele
profere faz até mesmo que eu me afaste um pouco para trás.
Mas não posso pensar somente nelas. Tem muita coisa em jogo. Tem muita
vida em risco.
— Também é do meu desejo que essa caça a eles acabe. Que eles sejam
parte da sociedade de forma igual. Eles não têm culpa de ter sangue Drakar
correndo em suas veias.
Podemos... Isso quer dizer o que penso que quer dizer? Dominic pretende
que nós dois governemos Yerus? Se sim, isso significa que...
— Não quero atentar contra a vida de ninguém. Não quero que o Áquila
morra! — digo em um fôlego só. No segundo seguinte em que as palavras saem
da minha boca, me dou conta do que impliquei sem querer, mas, mesmo sendo
uma confissão terrível, não volto atrás. Vou além. Pigarreio e reforço para que
não haja dúvida entre nós. — Eu decidi reclamar a linhagem dos Tupper com o
propósito de libertar as minhas irmãs e ajudar os menos favorecidos de Yerus ao
me tornar uma resistência forte ao Rei. A minha intenção de formar uma aliança
com outro reino é essa, porque não quero e não vou sujar as minhas mãos de
sangue. Se me casar com você significa tramar contra a vida de alguém,
principalmente contra a vida do Áquila, então a minha resposta é um sonoro não.
— Fico até mesmo ofendido com a sua implicação, Isabelle. Eu não sou
um assassino.
Devo negar? Porque isso pode se voltar contra mim. Mas negar seria o
mesmo que mentir e Dominic já deixou claro que prefere a sinceridade.
— Sim. Confesso que ele ainda é o meu maior obstáculo a ser superado.
— Você sabe que não foi isso que eu quis dizer, Dominic. — o repreendo.
— O que eles têm a ver com o tempo que você me deu para pensar?
— Rakar irá se casar com a minha irmã, Isabelle. — Ele esclarece a minha
suposição errada. — Você precisa treinar um pouco mais com a minha tia a não
deixar transparecer com tanta facilidade o quanto ainda está ligada ao Áquila.
— Não estou. Sei o que quero para o meu futuro e o que faz parte do meu
passado. Áquila faz parte do meu passado.
— Sou capaz de lidar com o fato de que o seu coração ainda batalha contra
os seus sentimentos por ele, mas se a sua mente estiver de acordo com o seu
coração, então não vou fazer um pedido.
— Desde que você aceite que eu faça tudo o que estiver ao meu alcance
para que a minha vida não se torne miserável no que diz respeito a essa união.
— Desde que você não me exija amor, estou aberta a negociar qualquer
coisa — digo séria enquanto o encaro fundo nos olhos. Dominic também já não
tem qualquer traço de diversão no rosto.
Assinto e isso soa muito como selar o nosso destino, o que por sua vez me
assusta feito um animal selvagem ferido. Fico em pé e logo ele se junta a mim,
segurando minhas mãos com delicadeza entre as dele.
Segundo o Máximus, o espião que ele tem no castelo o alertou que Rakar
foi ao encontro do Koli. Ao ficar sabendo da conspiração dos dois, meu soldado
teve pouco tempo para agir e elaborou às pressas um plano para a minha
segurança com o auxílio de um soldado de confiança do Rei, que na ocasião
voltava de uma visita ao Reino do Norte.
Então, segundo Máximus, ele também lutou contra os rebeldes para chegar
até a Isabelle. Inclusive a Guerreira Tina, a quem ele não sabia dizer se estava ou
não do nosso lado e, na dúvida, Máximus agiu como se todos fossem traidores.
O problema foi que Helena chegou na Isabelle antes dele e foi neste ponto
onde Máximus baixou a cabeça e confessou o seu grande erro naquele dia.
Helena já tinha ferido o Felipe quando ele as alcançou e, ao ficar diante das duas,
Máximus percebeu que a vida da Helena corria perigo e escolheu salvá-la acima
de qualquer outra coisa.
O meu soldado sabia muito bem que a minha ordem era clara. Era para que
ele protegesse a vida da Isabelle acima de qualquer outra pessoa. Ele não lutou
contra ela, no entanto, confessou que ameaçou tanto a Isabelle quanto a Tina
para que saíssem da Ilha do Comércio porque estava com medo de que elas
atacassem a Helena.
Máximus sabe que estava a meu serviço ali e que falhou comigo. Como
um soldado honrado, ele não usou nenhuma justificativa para o que fez. Embora
eu saiba que, desde criança, Máximus alimenta sentimentos românticos pela
Helena. Além disso, nós três crescemos juntos e, embora eu não me comova, a
eles é como se houvesse um laço mais forte que nos ligue.
De qualquer forma, ele salvou a minha vida, mas quando a situação ficou
entre Helena e eu, Máximus se voltou a favor dela e contra mim. Se Helena é
quem governa os instintos dele, não posso tê-lo em uma posição de alta
confiança. Por conta disso, ele foi punido.
Ainda não posso punir Helena por ter atacado a Isabelle ao tirar a vida do
Felipe porque o Rei colocou-a sob a proteção dele. No entanto, o Rei não irá
durar para sempre e se há uma característica da qual me orgulho é que sou um
homem paciente.
Máximus foi punido e cortado do meu grupo de soldados, mas foi alocado
pelo Rei em um cargo baixo da Guarda Real, uma vez que não me opus a ideia.
Quanto a Helena, ela continua na patente alta da Guarda Real e, ora ou outra,
somos obrigados a ter de lidar um com outro. Posso afirmar que ela detesta
quando tem que tratar qualquer tipo de assunto comigo mais do que eu não gosto
de ter de me encontrar com ela.
Para o bem de todos, é bom que não haja outra possiblidade. Do contrário,
de nada adiantará essa aliança com o Reino do Norte através do casamento da
princesa deles com um dos príncipes de Yerus.
Felipe.
Meus pés deslizam dentro das botas, que espirram água para todos os
lados ao pisarem em solo firme. Minhas roupas também me atrapalham ao me
retardar, uma vez que estão mais pesadas do que o normal. Quanto ao meu
cabelo, ele está pegajoso com se um líquido viscoso e morno fluísse dele.
À procura dos sinais do apocalipse, ergo outra vez os olhos para o céu ao
ouvir o som de trovões. Através das minhas vistas, agora embaçadas de
vermelho, noto a ausência de nuvens.
Felipe!
Tenho que acordar agora mesmo porque sei o que vem em seguida!
O sono me traga de volta para o píer, mas, dessa vez, não estou mais
sozinha. Felipe está caído no tablado. No segundo seguinte, estou sobre o meu
irmão, colocando todo o peso do corpo dele sobre o meu colo. Preciso absorver
toda a dor que sei que ele está sentindo. Dessa vez, tenho que ser capaz de
inverter as nossas posições. Não posso falhar com ele. De novo não.
Percebo que estou lutando contra o inevitável. Vou perdê-lo outra vez.
Mudo de táctica e não peço para que ele seja forte. Eu imploro para que o
Felipe troque de lugar comigo. Para que esse destino não seja dele. Para que
seja meu.
Um retumbar forte de uma pancada contra madeira se sobressai a qualquer
som de trovoada.
Tum.
Tum.
Tum.
— Estou bem. Mas quero saber o que você está fazendo na minha cabine.
Eu te acordei?
Sei bem quem é que precisa de socorro e que foi uma grande coincidência
ele ter entrado na minha cabine bem quando eu atravessava um pesadelo.
Se for algo que coloque a vida dele em risco, o meu irmão teme. Agora,
pesadelo? Kaká é um cético, pouca coisa o abala emocionalmente.
— Sei que não faz o menor sentido o que vou te dizer. Eu mesmo estou
tentando encontrar a racionalidade na minha dedução, mas estou falhando...
— Kaká, deixa a razão de lado por um segundo e fala logo o que você
sonhou.
— Essa é a questão. Não era sonho — ele sussurra com as pupilas ainda
mais dilatadas. — Parecia que era, mas eu senti tudo com nitidez. É como se eu
estivesse acordado, mas não no plano tridimensional e sim em algum outro. Até
onde sei, existem mais de quinhentas dimensões, o que torna a situação
plausível, mesmo que a gente só consiga enxergar três...
— Eu não diria que mulher, porque ela não era humana. Mas diria que,
seja lá de qual espécie estamos falando, por sinal, uma linda espécie, eu a
catalogaria como sendo fêmea.
— Não da forma como foi com ela. Na verdade, nem sei se vi o Felipe. Até
suspeito que era algum truque dela, mas o que ouvi soava muito com algo que o
nosso irmão falaria.
— Na verdade, foi uma pergunta. Ele indagou se, caso as nossas posições,
minha e sua, se invertesse com a dele, a gente gostaria que ele menosprezasse o
nosso sacrifício como estamos menosprezando o dele? — Perco o fôlego como
se tivesse levado um murro na boca do estômago. — Talvez tenha sido um
truque, porque eu não tenho capacidade para agir como o Felipe agiu. Acho que
a minha mente criou palavras de conforto que eu gostaria de ouvir para suavizar
o peso da culpa que sinto até hoje. Só que...
— Real ou não, o Felipe falaria algo assim.
— Isa, eu estive lá, então posso afirmar que doeu muito nele o peso da
possibilidade de que você tivesse fugido de casa por conta da briga que vocês
dois tiveram. Felipe se transformou depois daquilo, por isso que quando te
encontramos, ele agiu diferente com você. Felipe aprendeu a valorizar o que
realmente importa.
— É claro que soube. Você não ofereceu nenhuma resistência. Felipe quis
se aproximar e você permitiu. — Ele respira fundo. — Olha, nos últimos meses
deixei a razão de lado e pensei muito em algo. Creio que o tempo em que você e
o Felipe tiveram aqui foi uma oportunidade pra que vocês dois se entendessem e
pudessem, enfim, experienciar a nossa irmandade de forma plena.
Fico na defensiva, porque as palavras do Kaká não soam nada como algo
que ele falaria. Nada mesmo.
— Você está tentando me confortar com coisas que não acredita porque viu
como são os meus pesadelos?
Além disso, até então, Kaká negava aceitar a responsabilidade dele no que
aconteceu na Ilha do Comércio. Por isso que o Felipe é um assunto que não
discutimos por termos visões contrárias sobre os fatos. Ao que tudo indica, as
coisas mudaram para ele e estamos, finalmente, chegando em um concesso.
— É uma boa pergunta. — Meu irmão fica com o olhar vidrado, refletindo
sobre a questão. — Acho que o Felipe não foi real, mas ela foi e está me
induzindo a ter essa percepção acerca dos fatos. — Ele se volta para mim. —
Para que você e eu fiquemos em comum acordo com esta questão.
— Não. Ela sabe que rejeito qualquer coisa vinda dela e imagino que
desconfie que trazer qualquer assunto que envolva o Felipe vá surtir o efeito
contrário ao desejado.
— Foi mesmo falso. — Assinto. — De qualquer forma, ela tentou me
enganar, mas nós dois finalmente nos entendemos... — de repente, Kaká franze o
cenho. — Ela também me lembrou que hoje é o dia que a estrela corta o céu,
aquela que aparece uma vez a cada ano e que o povo celebra.
— Hoje é a Festa da Aurora? — franzo o cenho, uma vez que não decorei
a data e não vi nenhuma movimentação de ninguém do navio a respeito de uma
celebração.
— Sim. E, pelos meus cálculos, a data bate com a última. — Kaká solta
um suspiro. — O que ela ganha ao me dar essas informações? Me induzir a
pensar que as consequências do que acontece a nós, seus irmãos, são nossas para
lidar e não sua?
— Porque agora que estamos voltando para Pedralhos ela quer te usar para
que você me convença a deixar as questões da Lud e da Rebeca de lado para me
concentrar na Aurora.
— Você me disse que fugiu de Fayrehal porque Mestre Ponda revelou que
estava te usando para que roubasse uma estrela. — Fico confusa com a pergunta
aleatória, mas assinto. — Estrela não é apenas um cosmo. Ela também é utilizada
como símbolo em questões ocultas, como invocação ou coisas do tipo.
— Você tá me assustando.
— Você me contou que ouviu o Mestre Ponda dizer que todas as pessoas
possuem magia, que a diferença entre ele e nós é que nas veias dos mestiços
corre sangue Drakar, o que torna possível manejar essa energia.
— Tenho até medo de perguntar, mas o que eu tenho a ver com isso? —
Prendo a respiração e meu irmão me encara com pesar.
— Como não vimos isso antes? Hortense está no topo de duas hierarquias
humanas. Você é descendente dela. Se ela tem duas vezes mais poder...
— Pode parar. — Fico em pé. — Não gostei como isso soava antes e agora
estou gostando menos ainda.
O pomo de adão do meu irmão sobe e desce lentamente. Sinto meu sangue
drenar ao notar os olhos dele rasos d’água. As únicas vezes em que o vi chorar,
foi quando alguém da nossa família morreu. Ele me lança um olhar que me faz
sentir que estou condenada.
— Alusão ao quê?
— Essa estrela de hoje faz uma alusão a outra estrela que, como eu disse,
estrela não é necessariamente um cosmo.
Mestre Ponda queria que eu roubasse uma estrela, mas não tem como
roubar um cosmo, portanto, não era isso que ele se referia. E se essa estrela for
alusão a outro tipo de estrela... Balanço a cabeça para os lados e engulo em seco
ao seguir a linha de raciocínio do meu irmão.
— Não, Kaká.
— Isa — ele chama meu nome com carinho —, vá conversar com o seu
noivo e arranque uma confissão dele, porque o Dominic sabe o que o dia de hoje
faz alusão, uma vez que não planejou nenhuma celebração no navio. — Meus
olhos ardem das lágrimas que seguro e só agora Kaká percebe como está me
afetando negativamente. — Sinto muito, maninha. — A voz dele embarga e uma
lágrima escorre dos seus olhos. É o suficiente para me estilhaçar em mil
pedacinhos.
De camisola, e com o coração lutando para saltar pela boca, subo a toda
em direção à proa bem no meio de um torrencial que por pouco ainda não
afundou a nossa embarcação.
Preciso respirar.
Meus cabelos ricocheteiam com força contra minhas costas enquanto
observo Dominic dar passos largos, ao mesmo tempo em que tenta se equilibrar,
até chegar a mim. Ao me alcançar, ele segura na borda do navio e enlaça o braço
livre ao redor da minha cintura a fim de me manter firme no lugar quando a
embarcação chacoalha e quase me arremessa para fora.
Ao ver a reação dele, meus olhos ardem de tal forma que não consigo mais
segurar as lágrimas. Meu corpo treme da ponta dos dedos dos pés até o topo da
cabeça, tanto por conta da água gelada do mar que respinga em nós somado ao
vento forte, quanto pelo medo que sinto nos ossos dessa cruel descoberta.
Dominic respira fundo e não me encara mais nos olhos. Claramente ele
teve muito tempo para pensar na questão e a situação ainda o chateia. Mas em
mim, essa crueldade está me corroendo feito ácido.
— Seguro para você, porque, para mim, perder a vida será um privilégio.
— Eu nunca vou permitir que aquilo aconteça com você. Nunca, Isabelle.
Está me ouvindo? — Ele crispa os lábios e alterna o olhar entre os meus olhos,
deixando claro o seu ponto.
— Eu vou libertá-la.
— E eu não vou permitir que seja a sua a tomar o lugar dela, porque é isso
que irá acontecer assim que ela for libertada, Isabelle!
Meu coração martela tão forte que tenho certeza de que Dominic é capaz
de sentir através do próprio peito, uma vez que estou completamente prensada
entre o mastro e o corpo dele para não cair. Eu não dou a mínima para a
tempestade que tenta me derrubar. Ela e os meus sentimentos representam o
mesmo, um grande tormento, melhor que acabem comigo de uma vez.
— Eu vim aqui justamente para capturá-la, Vossa Alteza. Mas vou levá-la
para a cabine dela.
Logo sou escoltada até a minha cabine, já sem qualquer sinal do Kaká.
Dominic entra em seguida e ordena para que Oclan vá buscar algo quente para
nós dois nos aquecermos. O Guerreiro busca o meu olhar para aprovação e
assinto.
Ele fecha a porta atrás de si e Dominic anda pela minha cabine, revirando
minhas coisas em busca de toalhas secas como se estivesse habituado ao
ambiente, o que não está. Mas a invasão de privacidade é o menor dos meus
problemas no momento.
Oclan traz o que Dominic ordenou e reluta em nos deixar a sós quando o
príncipe manda. Como não levanto nenhuma objeção, a única coisa que resta a
ele é atender ao desejo do príncipe.
— Aquela pobre alma está presa em algo que tenho certeza ter alguma
relação com um símbolo sombrio de uma estrela. Isso quer dizer que Aurora vem
sendo atormentada, Dominic. Há milênios! Você tem noção da crueldade que é
isso? O preço que outra pessoa está pagando pela paz de vocês? — As lágrimas
escorrem pelo meu rosto com violência e engulo o soluço que sobe pela minha
garganta.
— Você prefere que os Drakars invadam o nosso mundo? Porque é isso o
que eles farão quando perceberem que não há mais nenhuma barreira de proteção
os impedindo de aniquilar milhões de vidas inocentes!
— Dominic...
— Acredito que não há nada que eu possa dizer que sirva de alívio para a
dor que acompanha esta descoberta, minha querida. — Desvio o olhar e fico em
silêncio. Dominic solta o ar devagar pelos dentes. — Um passo de cada vez,
Isabelle. Vamos comparecer ao casamento da minha irmã com o Rakar. Em
seguida, negociaremos a liberdade das suas irmãs para então começarmos os
preparativos do nosso casamento. Depois que conquistarmos tudo isso, aí sim
veremos essa questão.
Vou libertar a Aurora, mesmo que comece uma caçada pela minha alma.
— Você é muito mais do que eles dizem a seu respeito — ele sussurra
sobre os meus lábios, roubando meu espaço pessoal e o meu ar. — Eu já
suspeitava que vir atrás de você poderia me inserir em uma maldita guerra.
Agora tenho certeza, porque você assumir o lugar da Aurora está fora de
cogitação.
Tenho a sensação de que os dias passam mais rápido e não sei explicar por
que sinto a volta para Pedralhos infinitamente mais curta. Talvez seja porque
agora não subo mais no convés; ou porque toda ida parece mais longa do que a
volta; ou se é porque a embarcação é menor e isso interfere no ritmo de
navegação. Não sei dizer exatamente qual é a razão e, sinceramente, não procuro
entender.
Por ela, sinto vontade de pedir para que não siga adiante. Consigo ver na
alma da garota que ela não será capaz de conviver com o peso de tirar a minha
vida. Por mim, sinto vontade de implorar para que seja misericordiosa e me dê o
melhor fim que existe para alguém na minha condição.
— Não vai dizer nada em sua defesa? — Minha agressora pergunta com
angústia, sofrendo mais do que eu, a vítima. Sei disso porque Heloise tem as
mãos suaves e um coração delicado. Não é da natureza dela a agressividade que
se espera encontrar em um soldado, por exemplo. Heloise é o tipo de mulher que
os soldados protegem, como a Ludmila.
— Não tenho nada para dizer em minha defesa, apenas na sua. — Seu
olhar azul turquesa brilha de surpresa. — Não comece uma guerra se não está
disposta a lutar até o final.
— Eu te odeio! — Heloise berra a plenos pulmões, o que por sua vez atrai
mais gente para dentro da cabine.
Heloise não sabe, mas a minha ordem, aparentemente imbecil, será a ruína
dela. Tanto é que Dominic não levanta objeção, provavelmente aprovando o peso
do castigo que ela irá sofrer.
Heloise tem nobreza escrita na testa! Uma mulher como ela não pode
andar desacompanhada, porque tudo nela grita ouro, fragilidade e, pior,
inocência. Largá-la em um cais cheio de marinheiros, que não tem qualquer tipo
de pudor, é um destino terrível. Talvez a punição do Dominic fosse a melhor,
porque, pensando bem, eu preferia morrer se estivesse na pele dela.
O que foi que eu fiz? Enterro a cabeça entre as mãos e logo sinto o colchão
ao meu lado afundar.
— Eu não sou seu inimigo. — Por fim, ele esclarece com suavidade,
porém firme. Fico balançada, porque ele está certo.
Não é como se ele não quisesse nada em troca, porque ele quer, tanto é que
vamos nos casar por se tratar de um benefício mútuo. Mas Dominic e eu temos
uma característica em comum, o que cria um elo de identificação forte entre nós
dois. A gente se compadece do outro com facilidade. Ele se compadece de mim
e, embora eu deteste pena, Dominic não me oferece a dele. Ele simplesmente me
entende e até mesmo sente a minha dor a fim de amenizar o meu fardo.
O que posso afirmar com toda a certeza é que conheço destinos piores e,
definitivamente, me casar com um homem assim sequer entra na lista de finais
ruins, muito pelo contrário.
Não sei o que tem mais valor. O que sei é que em ao menos uma coisa dei
sorte e foi quanto a determinadas pessoas que entraram na minha vida neste
mundo. Áquila. Tina. Tami. Ruan. Magnólia e Dominic.
Detestei me despedir do Ruan, mas ele não queria vir de jeito nenhum e me
encorajou a voltar para Yerus. Entendi que a perspectiva de vida para ele em
Lufstar era muito melhor do que a que encontraria em Pedralhos, uma vez que
ele era um cortesão famoso em Salavinder. Mas desconfio que o meu noivado
com o Dominic influenciou a decisão dele de ficar para trás. Então o que me
restou foi abraçar apertado o meu leal amigo e arrancar dele a promessa de
manter contato por cartas.
Deus, não! Ele é o meu noivo, mas ainda não estou preparada para isso.
Quando fecho meus olhos, ainda é o Áquila quem vejo. Seguir adiante quando
bem sei quem é o objeto dos meus sentimentos seria errado com o Dominic.
Agora mais do que nunca fico atenta à velocidade do navio. Assim que
atracamos no porto da Ilha do Comércio, finjo que estou passando mal, o que por
sua vez me garante o aliado perfeito. Dominic mesmo sugere que passemos a
noite na embarcação até que eu melhore para seguirmos a viagem de subida até o
Palácio.
Ele acha que é demais para mim, voltar justamente a este lugar e ter de
lidar com as recordações que a baía evoca. Não está completamente errado. A
morte do Felipe é uma dor constante. Mas nem de longe é este o único motivo
pelo qual quero passar a noite no navio.
Assim que escurece, pego um casaco negro com capuz, cubro a cabeça e
me oculto no negrume que as sombras da lua oferecem.
— Isa? — Bato na porta da cabine dela e nenhuma resposta. — Já te dei
espaço suficiente nesta viagem. Agora chega. Me deixa entrar.
Por que fiquei de fora? Já tentei arrancar dele o que foi que fez com que a
Isabelle se isolasse, mas ele está deprimido como nunca vi igual. Eu mesma
nunca fui capaz de abalá-lo dessa forma nas nossas constantes brigas quanto ele
se encontra no momento. E sei que se tem alguém que tira o Carlos Eduardo do
sério, esse alguém sou eu, porque o contrário também é verdadeiro.
Tenho a impressão de que ele está se apaixonando por ela, algo que já não
me surpreende mais, porque o que mais vi acontecer nos últimos anos é alguém
querer tomar um pedaço da Isabelle. A Isa conseguiu a proeza de despertar até
mesmo a admiração da rainha Magnólia, e ninguém intimida mais do que aquela
mulher azeda. É por essas coisas que não fico mais impressionada com esses
sentimentos aflorados que aquela garota desperta em nós.
Mas tenho esperanças de que as coisas mudem... ou não, porque não tenho
disposição para esses dramas cheios de sentimentalismo. Se tivesse, eu estaria
gastando um tempo só me deleitando na satisfação de que, em algum momento,
o Áquila vai perceber que os ventos não estão mais favoráveis a ele. Porém, não
tenho mesmo paciência para essas questões.
Que o Áquila se dê mal para lá! Quero mesmo é saber o que está
acontecendo por detrás dos panos, porque algo está em andamento sem o meu
conhecimento.
Bato mais uma vez na porta, mas agora com uma determinação monstra.
Quando a Isabelle precisa de uma soldada que não questiona, aprendi goela
abaixo a ser uma. Quando ela precisa de alguém cobrindo a retaguarda dela, saio
no braço com o Oclan para ser eu ali ao invés dele. Mas agora basta ter que
renunciar à nossa amizade.
Isabelle, para mim, é família e não aceito mais ficar de fora. Quero estar
em par de igualdade com o Carlos Eduardo, o outro traidor que, sem mais nem
menos, me deixou no escuro também.
Não obtenho resposta e a porta também não abre quando forço. Em passos
duros, vou até o infeliz do Carlos Eduardo.
Abro a porta da cabine dele de supetão e ele fica desesperado por alguns
segundos, até notar que sou eu. Cheguei em um momento bem inoportuno, mas
já vi a bunda branca dele mais vezes do que consigo contar nos dedos. Nenhuma
novidade nesse corpinho do pecado para mim.
Carlos Eduardo me confessou que se sentiu atraído por mim desde o dia
em que a Isa nos apresentou. Nunca vou confessar a ele que também o achei uma
versão melhorada do Koli, a quem eu achava um deleite para os olhos. O líder
dos rebeldes era um idiota que mereceu o fim que levou. Porém, isso não vem ao
caso.
O irmão da Isabelle ficou para trás na fuga deles da base dos rebeldes em
Pedralhos. Fiquei furiosa com ela e o Carlos Eduardo agarrou essa oportunidade
para me lançar o conto da sereia naquela voz aveludada.
Quando dei por mim, eu estava agarrando o safado. Desde aquele primeiro
beijo, com muito puxão de cabelo da minha parte, e gemidos de prazer da parte
dele, esse homem esquenta a minha cama noite sim, noite não — as vezes em
que não ficamos juntos é porque estou furiosa demais com ele por insistir para
contarmos para a Isabelle que estamos juntos. Nós não estamos juntos! Toda vez
que ele insiste nessa questão, eu o ameaço para valer.
Ele vem até mim e dou um safanão em seu antebraço antes que o punho
dele tenha a chance de tocar a madeira. Carlos Eduardo sorri e, em um ato
totalmente inesperado — ele estava furioso comigo —, me prensa contra a porta.
— Sai! — Firmo as mãos contra seus ombros e impeço seu avanço. Ele
sorri ainda mais. — Vocês estão me escondendo algo e não aceito mais essa
situação. Você não me deve nada, mas a sua irmã me deve sim.
Ultimamente está sempre assim entre nós e quando Carlos Eduardo entra
nesse modo de agir, não consigo nenhuma informação. Nem seduzindo esse
homem dá certo. E sim, já usei desse artifício e, embora tenha ficado satisfeita
fisicamente, não consegui obter nada além de prazer.
— Saiba que a culpa é sua, que não me deixou outra opção. — Aponto o
dedo em riste para ele
— É por isso que ela foi jogada para fora da embarcação essa manhã?
— Foi a Isabelle...
As palmas das minhas mãos até formigam de tanto ódio por estar nessa
situação. Oclan ficou no turno de ontem e não me reportou o que aconteceu.
Carlos Eduardo me vê e só pensa em me pressionar para que eu concorde em nos
assumir para a irmã dele. Quanto ao Dominic... eu gosto do príncipe, mas que
imbecil! Isabelle quase desmaiou depois da execução do Koli. Dominic estava lá
e viu a reação dela. Como ele não concluiu que ela não conseguiria lidar em
ordenar uma sentença dura para uma garota? Garota.
— Tina! — Carlos Eduardo vocifera atrás de mim quando não diminuo o
passo e ele não consegue me alcançar. — O que você vai fazer, sua pirada? —
Ele debruça sobre a mureta do navio enquanto desço as escadas de madeira em
um rompante, em busca dos marinheiros mais nojentos que puder encontrar na
calada da noite.
A questão é que não me importo nem um pouco com o que possa acontecer
a Heloise. O mesmo não pode ser dito sobre a Isa. Então é com grande alívio que
solto um suspiro ao ver uma figura pequena sob um capuz preto.
O marujo, que a Isa está ameaçando, não tem nem mesmo a chance de
gritar ao notar a minha adaga voando na direção dele. Logo a lâmina o acerta no
centro da testa e o homem desliza o corpo contra a parede, caindo morto aos pés
da Isabelle. Ela desvia o olhar para o lado, evitando ver o fim trágico que dou a
ele.
Se a conheço bem, e minha presença aqui significa que conheço essa tola
absurdamente bem, ela não teria matado. Pelo suor em sua testa, e dois corpos
apagados no corredor, os quais me trouxeram a este quarto, estou certa de que a
Isa estava lutando para deixar esses marinheiros nojentos apenas inconscientes.
— Você usou a adaga em alguém? — pergunto entre dentes e ela nega com
a cabeça. — Muito bem, porque eu faço o serviço sujo, Isabelle. As minhas mãos
podem ficar manchadas de sangue. As suas, não.
Com passos firmes, vou até elas. Antes que eu consiga segurar os ombros
mirrados da Heloise para colocá-la de pé e a arrastar para fora desta pocilga,
Isabelle segura meu antebraço e me impede. O olhar que me lança é duro, mas o
que se volta para a Heloise é suave.
Heloise finalmente se dá conta de que sua vida está pelo fio de uma
navalha e que não sou a salvadora dela. Não sou mesmo! Como eu disse, meu
mundo é feio, porque é composto de pessoas como eu que não dão a mínima para
atitudes nobres quando o assunto é o interesse próprio. E o meu interesse próprio
é vingança.
Porém, assim como conheço a Isa como nunca conheci ninguém, o mesmo
pode ser dito dela em relação a mim. Minha amiga coloca uma mão no meu
ombro em um pedido para segurar meus cavalos vorazes.
Respiro fundo e não solto a Heloise até que olhe para mim de novo.
— Se você não acompanhar o nosso ritmo, azar o seu. — Solto com nojo
os ombros dela e encaro a Isa. — E você nem ouse derramar uma gota de sangue
que seja.
Isabelle assente apenas para aplacar a fúria que sinto. Não importa que não
seja sincera. Ela está certa e precisamos sair daqui enquanto há tempo.
Como não posso me dar ao luxo de perder a única adaga que empunho,
luto corpo a corpo com o mais perto de nós, procurando um meio de nocauteá-lo
rápido para partir para cima do outro. O homem é um completo palerma, então
consigo apagá-lo bem rápido e parto para o amigo dele, que se mostra um
adversário bem mais preparado.
Consigo mandar meu adversário para o mundo dos mortos a tempo de ver
Heloise caminhar com passos firmes até o homem caído. Isabelle arregala os
olhos e arfa. Confesso que eu também fico impressionada. Assim como ela,
também não acreditei, de fato, que Heloise teria estômago para isso. A garota
surpreende a nós duas.
Enquanto assisto sem nem piscar, Isabelle desvia o olhar e encara o chão.
A mim não escapa o assombro da Heloise ao se afastar e contemplar o que fez.
Nem mesmo a satisfação que vem logo em seguida e toma suas feições.
Se Isabelle visse isso, entenderia que a forma dela de pensar não admite tal
maldade. O mesmo não pode ser dito do restante de nós, incluindo a mirrada da
Heloise. Ela é irmã da Helena. É óbvio que tem perversidade correndo naquelas
veias. Aliás, essa é uma das razões pelas quais não me compadeço dela. Mas a
Isa não pensa assim e esse é o principal motivo para que eu queira tanto estar sob
o reinado dela.
Não quero alguém como eu. Não quero alguém com essa falsa aparência
de bondade que a Heloise demonstra. Quero alguém como a Isabelle e só. Sou
capaz de fazer uma concessão para aceitar Dominic também, mas somente se for
acompanhado da Isa.
Seguro a manga do manto da Isabelle e a puxo para que me siga. Nem por
um segundo perco tempo averiguando se Heloise está nos acompanhando. Se
não estiver, o problema é todo dela. Minha missão é colocar a princesa que jurei
lealdade em segurança no nosso navio. Nada mais do que isso.
Quando tomo uma rua que nos leva de volta para o cais, Isabelle se
desvencilha do meu aperto. Faço menção de brigar, mas ela me contém com
apenas um levantar de mão.
— Era o que meu mais queria ouvir. Adeus, Heloise — digo para a garota
colada às costas da Isa e agarro de volta a manga da princesa, que se desvencilha.
Tomo de suas mãos com brusquidão. Ela faz menção de protestar e rosno.
Heloise sela os lábios e não me encara mais.
— Você não foi capaz de assistir, mas eu não hesitei em matar aquele
homem.
Até mesmo eu sou pega desprevenida com essa atitude da Isabelle. Toda
pena que não senti da garota mais cedo, agora sinto de forma intensa, caso a Isa a
obrigue a tocar no Orientador.
— Para o navio, você não volta. A outra opção que me resta é te largar
aqui e algo pior do que acabamos de passar naquela estalagem pode te acontecer.
— Prefiro — Heloise diz sem nem mesmo piscar e ganha pontos comigo
pela valentia.
Faço uma careta que ambas não conseguem ver. Acho que a Isabelle
acredita no que diz, mas eu não acredito de forma alguma. Quem não tem o
sangue do descendente da cópia da Aurora, atrai sim maldição sobre si ao tocar o
Orientador.
Carlos Eduardo deu sorte, foi o que eu disse a ele quando me contou que
resgatou o Orientador do pântano em um acesso de raiva da Isa. Segundo ele, a
única coisa em que os dedos dele tocaram, foi o cordão e que ele nunca chegou a
segurar a bússola contra a própria pele.
Foi então que eu disse que ele teve sorte e o paspalho teve a ousadia de me
encarar fundo nos olhos ao apontar que, depois daquele incidente, entrei na vida
dele. Em resposta, dei um murro em seu ombro por insinuar que sou uma
maldição jogada pelos antepassados da Isa. No fim daquela discussão, o safado
conseguiu aplacar o meu ódio debaixo dos lençóis da minha cama.
— Ao amanhecer, irei para o palácio e você irá ao meu encontro para que
eu o pegue de volta. Você nem vai tocar nele. Eu mesma coloco e tiro do seu
pescoço. Mas seu pai precisa ter certeza de que sou responsável por te entregar
em segurança.
Isabelle ajeita o Orientador e Heloise fica dura feito pedra quando o objeto
toca seu peito sobre a roupa. Tenho certeza de que ela não correrá o risco nem de
levantar o antebraço com medo de esbarrar qualquer pele nele.
Isabelle agora tem a garota comendo nas palmas das mãos. Talvez isso seja
um castigo pior para Helena. Abro um sorriso imenso de satisfação, porque, de
fato, Heloise respeitar a Isabelle e admirá-la é uma tortura terrível para aquela
vadia.
Helena está perdendo espaço na vida das pessoas mais próximas dela e é
justamente para a arqui-inimiga. Eu mesma não teria planejado uma vingança tão
boa quanto essa, então sorrio ainda mais.
— Por que você está sorrindo? — Isabelle me pergunta.
— Não quero saber — Isabelle diz rápido e se volta para Heloise, retirando
seu manto preto com capuz e o entregando a ela. — Vista isso. Tina e eu
ficaremos escondidas aqui até que os guardas da outra ilha a reconheça e a leve
para subir para o palácio.
A garota ajeita o manto da Isa, escondendo bem o rosto, não deixando nem
mesmo um fio de cabelo loiro visível, e sai de queixo erguido. Lado a lado,
Isabelle e eu a observamos se aproximar de uma embarcação do BOP. Ela retira
o capuz, abre de leve o manto e daqui é possível perceber o assombro deles ao
notar o Orientador. No segundo seguinte, ela entra a salvo.
Ela respira fundo, esfrega a testa e então balança a cabeça para os lados.
— Vamos. Amanhã faremos o mesmo caminho que o dela e, não sei você,
mas preciso me preparar mentalmente para encarar as pessoas que nos aguardam
lá.
Até parece que são pessoas no plural. Ela só teme o encontro com uma
pessoa, no singular e no masculino.
Tina e Oclan me seguem de perto, apenas um passo atrás, porque ninguém
pode ficar ao meu lado, menos ainda andar na minha frente.
Meu vestido é de um pano grosso azul bem escuro que dá para confundir
com preto. Ele é justo, com um corte reto na altura dos ombros que não é
completamente fechado no tronco por conta de uma abertura no centro do peito,
onde a costura é interrompida e desce em uma fenda até a faixa na cintura.
Na região dos quadris, ele se fecha completamente, mas logo a fenda abre
na mesma direção que a da parte superior, e então desce até os tornozelos de
forma a formar uma capa na parte de trás, rente às minhas pernas. Nos ombros,
ele desce solto, e rente também, sem costuras em volta dos meus braços,
intensificando o efeito de capa.
É uma peça tão magnífica que não tive problema algum em aceitar.
Diferente das joias, este presente sequer passou pela minha cabeça recusar, mas
agora estou querendo arrancá-lo de mim.
Por muito pouco não é tarde demais e freio o passo, evitando trombar
contra um peitoral maciço que conheço muito bem e que, ao que tudo indica,
assim como eu, também estava distraído enquanto liderava o caminho do grupo
dele, também composto por três pares de pernas.
Ergo as vistas e encontro um par de olhos âmbar fixos nos meus castanhos.
O pomo de adão do Áquila sobe e desce devagar enquanto ele engole seco.
Também muda, mas, diferente dele, não com os olhos brilhando e sim
arregalados, devolvo a avaliação.
Talvez seja impressão minha, mas... seus ombros eram tão largos assim
mesmo ou eles aumentaram de tamanho? E o cabelo dele era tão bonito assim ou
esse novo corte, que não é nem tão longo como da vez em que nos conhecemos e
nem tão curto quanto da última vez em que nos vimos, favoreceu suas feições
muito mais? E é impressão minha ou os olhos dele estão ainda mais intensos e
misteriosos? Afinal de contas, Áquila sempre teve essa áurea perigosa sedutora
ou é o fato de que agora ele realmente é proibido para mim que meu estômago
parece ter borboletas? Borboletas não. Beija-flores desesperados.
Meu Deus! Estou nervosa. Minhas pernas parecem gelatina e minhas mãos
estão geladas. Magnólia me preparou tanto, mas tanto para esse encontro, e sinto
que estou falhando.
Não consigo mascarar a decepção que me toma. Foi uma escolha pessoal
não ouvir nada a respeito do Áquila, porque me ajudava a me manter firme no
meu propósito. Então não sei nada a respeito da vida que hoje ele leva.
Absolutamente nada, porque Dominic é o primeiro a querer discutir qualquer
assunto menos o primo. Quanto a Tina, ela sempre foi implicada com o Áquila e
Oclan e ele tem um passado delicado.
Entre Helena e Máximus, fica nítido que nunca estivemos do mesmo lado.
Ele está rodeado dos meus inimigos e eu dos dele. Além disso, mesmo que nunca
tenha levantado nenhum um dedo contra mim, sua associação, justo a esses dois,
soa como a última prova que eu precisava para ficar em paz com o rumo que dei
para a minha vida.
Sou inundada pela certeza de que fiz a escolha certa. Por mais confuso e
conflitante que os meus sentimentos por ele sejam, entre Áquila e eu não existe
aliança. Nós nos enganamos no passado, isso sim. Como eu temi, tudo o que
tivemos não passou de oportunidades bem aproveitadas.
Áquila dá um passo para frente e Oclan cola às minhas costas. Mesmo com
a atenção fixa no Máximus, o recado para o Áquila é passado com sucesso,
porque ele se mantém em seu lugar e não ousa mais nenhuma tentativa de
aproximação.
Tina e Oclan são as maiores ameaças no meu grupo, mas não farão nada
sem a minha ordem. No entanto, treinei tanto que aprendi a ser sensata o
suficiente para saber discernir a hora de falar e a hora de sair de cena.
Movimento a cabeça em saudação e reconhecimento, exatamente como
Magnólia me ensinou a fazer quando encontrasse alguém com o mesmo título
que o meu. Quando encontrasse o Áquila.
— Vossa Alteza — digo em respeito ao título dele e dou a volta nele para
seguir o meu caminho.
Oclan segue tão próximo das minhas costas que um passo em falso e ele
me atropela. Tina não. Ela para na frente da Helena.
Basta um deslize nosso e o caos irá reinar. As sentinelas irão cair sobre a
gente. Isso sem contar que os três também vão revidar e acho que nem toda a
política do Dominic será capaz de nos livrar dessa enrascada.
— A sua hora vai chegar. Tique. Taque. — Tina estala a língua, cospe no
chão aos pés da Helena e se junta a mim.
— Você está me pedindo para agir como uma covarde justamente com a
Helena? Você, Isabelle? Aquela ordinária tentou te matar duas vezes e conseguiu
matar o Felipe! E eu jurei que a mataria em retaliação pelo que fez, porque não
foi uma briga justa. Fui formada pelos mesmos Guerreiros que a formaram e te
afirmo que nós não lutamos contra inocentes, a não ser que estejamos sob o
ataque deles e o Felipe não a atacou. Foi o contrário. Estou errada, Oclan?
Para o azar dela, ela pegou a pessoa errada para ter como apoio. Oclan
realmente não questiona ordens e, por causa disso, fez muitas maldades no
passado quando era o treinador do Áquila. Inclusive com inocentes.
— Não há um dia sequer em que fecho os olhos e não sou soterrada pelo
que Helena me fez, mas aprendi a minha lição da pior maneira possível e não
darei um passo em falso. Ludmila, Rebeca, Kaká, Tami e você estão vivos, por
isso todas as minhas ações são antes milimetricamente pesadas na mente. Além
disso, existem coisas piores acontecendo e eu não desejo ser aquela a estourar
uma guerra. Portanto, Tina, eu não te pedi para se afastar da Helena. Trata-se de
uma ordem.
Tina é como um cachorro tinhoso que não larga o osso. É claro que, de
tudo o que eu disse, ela se concentraria no que eu não disse. É por essa razão que
a Guerreira não pode jamais desconfiar o que descobri a respeito da lenda. Se
chegar aos ouvidos dela a condição em que a alma da Hortense se encontra, Tina
irá me impedir de libertá-la da mesma forma como veio atrás de mim ao ficar
sabendo da punição que dei para Heloise.
Não sigo em frente enquanto ela não me der garantias de que irá ficar fora
do caminho da Helena. Ela percebe que irá perder essa batalha, porque descruza
os braços e dá um passo para mais perto de mim.
— Helena vai sofrer o dobro pelo que você está me obrigando a fazer. Juro
por tudo que há de mais sagrado!
Sei que os dois gostam de trocar farpas, que nada mais é do que uma
disputa de ego para ver quem é o melhor entre eles, mas nunca aconteceu na
minha frente. Culpo os ânimos alterados de todos nós por conta do encontro
desastroso que acabamos de ter.
— Você não disse que estava com pressa para o baile, Isabelle? — Tina
cruza os braços na altura do peito e me encara com uma expressão de suspeita.
O problema de ter soldados espertos como ela é que eles aprendem com os
próprios erros. Depois que desertou dos Guerreiros de Fayrehal, e percebeu
como era fácil cair nas armadilhas de alguém, Tina ficou mais atenta. Ela não
caiu completamente na do Koli, como o meu irmão uma vez a acusou. A
Guerreira mantinha suas ressalvas em relação a ele, mas era esperta para tirar
proveito do que ele pudesse oferecer até onde fosse seguro.
Porém, Koli conseguiu driblar a todos nós com a minha ajuda. Eu fui
incisiva naquela aparição na Ilha do Comércio, coisa que Tina não queria aceitar
de forma alguma. Por minha causa, ela se viu sem saída e então o rebelde teve a
oportunidade de ouro de nos trair.
Depois daquilo, duvido que Tina irá concordar com qualquer coisa que
digo. Por Deus! Ela já está deixando isso claro ao avaliar e rebater todas as
minhas ordens que a incomodam. Portanto, se Tina sonhar que estou em busca
de onde Hortense está sendo mantida, com ou sem a minha permissão, ela irá me
tirar de Yerus.
— De jeito nenhum.
— Sim, Alteza.
Tina entreabre os lábios, chocada. Lanço a ela um olhar que diz: trabalho
com o que tenho disponível.
Fico rígida porque Tina tem um ponto válido. Por mais que Heloise não
tenha qualquer tipo de participação na morte do Felipe, a irmã dela foi quem
matou o meu irmão. Além disso, ela atentou contra a minha vida no navio.
— Perdão?
— Não é espiã, mas veio também com a intenção de fazer fuxico. — Tina
desprende as costas da parede. — Já chega, Heloise. Pode ir embora.
— Já chega, Tina — digo baixo, porém firme, embora ela tenha razão
quanto as intenções da garota. A Guerreira me lança um olhar fatal antes de se
calar. Volto a atenção para a Heloise. — O que mais o seu pai te contou?
A garota me lança um olhar duro, mas não fraquejo. Jamais irei pedir
desculpas por ter feito delas reféns. Eu precisava manter as minhas irmãs
seguras. Mas, em contrapartida, cuidei pessoalmente para que ela e a irmã
fossem bem assistidas e que nada de ruim acontecesse a elas.
Ela nega com a cabeça, embora agora esteja mais relutante em continuar o
relato. Imagino que a situação fere seus sentimentos, algo que ela se esqueceu
quando tocou no assunto na esperança de me conquistar.
— Ele confessou a ameaça que fez a Vossa Alteza e a Guerreira Tina e, por
conta dessa atitude, o príncipe o retirou do cargo de confiança. Porém, por conta
da primeira atitude, o príncipe permitiu que ficasse na Guarda Real de Pedralhos.
É tudo o que sei sobre a questão. — Ela se cala com o maxilar rígido.
A nobre faz uma mesura rápida com a cabeça antes de segurar as saias do
vestido e sair a passos duros do meu quarto. Posso estar enganada, mas juro que
vislumbro o brilho de lágrimas nos olhos dela.
Meu coração bate acelerado. Uma parte de mim fica satisfeita ao ouvir
essas palavras, mas o pavor do Dominic aparecer a qualquer segundo vence a
prazer de estar diante do Áquila. E muito!
— Não vou conversar com você sob essas condições, Áquila. E se você me
causar problemas com mais outro reino, pode esquecer que algum dia me
conheceu!
Nós dois nos avaliamos por longos segundos. Aprumo os ombros de forma
a deixar claro que estou falando sério. Se eu me ferrar por causa dele, ele pode
esquecer que existo, porque vou morrer para ele. Custe o que custar.
Como posso vencer os meus sentimentos pelo Áquila quando ele abala
ainda mais as minhas estruturas?
— Príncipe Dominic Pryteon, herdeiro do Reino do Norte. — Várias
cabeças se viram para a entrada em que estamos parados à espera de adentrarmos
o salão após a anunciação da nossa presença. — E a noiva, Princesa Isabelle
Tupper Beauharnais, a Viajante. — Cada pescoço se espicha em nossa direção e
até mesmo os acordes da música param de tocar.
— Perdão se isso te ofende, Dominic, mas não posso negar quem sou, nem
de onde vim. Com certeza eles esperavam usar isso contra mim na primeira
oportunidade. Tirei essa arma deles de forma elegante, espero.
— Que você, minha cara Isabelle, abala a minha pacata vida. Veja só todas
essas pessoas assustadas com a minha ousadia de me casar com a Ladra do Outro
Mundo. — Ele chacota enquanto percorre o olhar pelo salão e nada me deixa
mais relaxada do que essa simples tentativa de transformar o peso das atenções
negativas que recebo em algo digno de dar risadas.
— Obrigada. — Aperto de leve o antebraço dele com um sorriso genuíno
pregado nos meus lábios.
Sufoco a vontade de rir. Mas logo ela desaparece por conta própria quando
Rakar desce da plataforma e se aproxima de mim.
— Você deve curvar-se perante o Rei e a Rainha — Rakar praticamente
rosna no meu ouvido.
Se não houvesse toda essa balela de protocolo que preciso seguir, Rakar
estaria deitado no chão de barriga para baixo com a lâmina afiada da adaga presa
na cinta da minha perna prensada contra o pescoço dele. Tina acha que não tenho
capacidade para matar alguém a sangue frio. O que eu tenho, na verdade, é um
limite de tolerância alto. Pelo tremor das minhas mãos, a minha tolerância com
esse verme é bem baixa.
— Fui capaz de ouvir suas afrontas com clareza, Rakar. Espero o mesmo
das suas desculpas para a minha noiva.
— Perdão, Viajante.
O Rei assente no alto da sua altivez, mas seus olhos encontram brevemente
os meus. Fica claro que nós dois sabemos que eu tinha plena consciência de que
ele estava me afrontando ao negar reconhecer a minha presença ao lado do
sobrinho da esposa dele, como se rejeitasse o nosso noivado, e eu reagindo de
forma afrontosa deliberadamente.
Ele sabe, e eu também sei, que sou fruto dos ensinamentos da Magnólia e
ela me ensinou a encontrar brechas para ser petulante sem correr o risco de
perder a cabeça em uma guilhotina.
E com isso ele demonstra, de forma sublime, o poder dele. O rei Charles é
o maior aliado de Yerus. Nos Países Baixos, Magnólia, a rainha de Lufstar, a
maior ameaça a Konda e Fayrehal. E eu sou a última da linhagem dos Tupper,
que convém de ainda por cima ser aclamada pelo povo de Yerus.
Ele estende a mão para o meu lado e por muito pouco não me sobressalto
ao notar que o Áquila se aproximou de forma tão sorrateira que nem sei dizer há
quanto tempo está perto de mim.
Engulo em seco.
Não posso rejeitar e fico muito mal em ter que aceitar, porque parece uma
traição ao Dominic. Ao mesmo tempo, não aceitar e querer rejeitar parece uma
traição ao Áquila. Qualquer que seja a minha decisão, ambas me dão a sensação
de traição.
Decido pela primeira porque não posso negar que nos conhecemos. Seria
dar um tiro no meu próprio pé, e se teve um ponto em que Magnólia e eu
concordamos, é que não devo negar nada acerca do meu passado, mesmo o que
supostamente me colocaria em maus lençóis, como o fato de ter sido uma ladra
na outra vida que levava.
Coloco a mão sobre a dele estendida na esperança de agir bem rápido. E
consigo, porque seus lábios mal tocam os nós dos meus dedos e já estou
puxando-a de volta.
O vestido que usei, quando nos encontramos sem querer, era infimamente
mais revelador. O mais chamativo do que estou usando agora é a cor vermelho
vivo, uma vez que nem a fenda mais discreta na lateral da perna está aparecendo,
já que se revela somente quando ando.
Quando o olhar dele volta para o meu, quero esganá-lo até a morte.
O que eu queria mesmo dizer era outra coisa. Algo que gire em torno de:
eu não tive culpa do comportamento dele, nem mais cedo, nem agora. E não
gostei também. Quem ele pensa que é para fazer aquela cena? Que audácia...
prepotência... não, infantilidade!
O que não entendo é que o Áquila nunca foi infantil. Nunca! Eu? Tive
meus momentos que ficaram no nosso passado, não nego. Mas ele agir daquela
forma? Nunca passou pela minha cabeça.
Ela não. Com ela, sei como lidar, porque se teve algo que Magnólia
trabalhou com afinco comigo, foi em relação àquela cretina. A rainha se
empenhou até me fazer entender que nada é mais angustiante do que o momento
que antecede o fim, o bendito do prelúdio. A espera de uma retaliação
enlouquece muito mais do que qualquer castigo cumprido de imediato.
Posso ter feito um papel vexatório perante a família Real, e fracassado até
mesmo na minha ousadia, porque depois não passei de uma bárbara burra, que
falta capacidade para aprender os costumes imbecis dessa gente, mas não vou
falhar no que diz respeito à assassina do meu irmão.
Grupos e mais grupos da nobreza vem nos cumprimentar. Menos um.
Justamente com eles, noto olhares de apreensão que alternam de mim para um
homem alto e loiro no centro.
Respiro aliviada porque esse não foi um erro que cometi como o príncipe.
Pelo menos, não completamente.
Depois que voltei para o navio, fui direto até a cabine do Dominic. O
acordei e contei o que havia acontecido, inclusive qual foi a minha decisão. Ele
se mostrou compreensivo de que foi mesmo o melhor para a segurança das
minhas irmãs. Então fui para a minha cabine e deitei a cabeça tranquila no
travesseiro.
Não é que devo a ele satisfações do que faço. É que entendo que nem
mesmo uma amizade é capaz de sobreviver sem a falta de confiança. Agir pelas
costas dele traria o efeito contrário do que desejo.
Além disso, Heloise tentou matar uma princesa que estava no navio dele,
que seguia as leis dele. A voz de comando ali, era do Dominic e ele me concedeu
o julgamento dela. Seria uma traição e, de certa forma, foi uma quando fui atrás
dela. O que soma pontos a meu favor é que imediatamente corrigi o meu erro.
Pela expressão do Dominic, ele acaba de perceber que teria sido bem mais
fácil tê-lo deixado no escuro e então ele descobriria agora, de uma forma bem
menos honrosa, que agi pelas costas dele. Seu leve sorriso aplaca minha aflição,
porque ele reconhece ainda mais o valor do meu ato de arrependimento ontem ao
procurá-lo para me retratar.
— Tenho uma reunião marcada com o Rei pela manhã em que discutirei a
possibilidade de um encontro entre Vossa Alteza e elas. — Meu coração martela
forte no peito.
— Para Hanna tudo não passa de uma grande aventura, papai. — Heloise o
surpreende ao se aproximar por detrás dele e segurar o antebraço do pai. — Os
príncipes e a rainha Magnólia sempre a trataram bem.
Dominic segura a minha mão com galanteio e nos tira de perto dos dois.
— Não quero nada em troca pela noite de ontem, Heloise. Se é por essa
razão que me persegue.
— M-mas... Alteza.
— Você está livre, Heloise. Inclusive para voltar a me odiar, se for do seu
desejo. Com licença.
Assinto com os olhos ardendo. Sou obrigada a morder o lábio inferior para
não sorrir tanto quanto gostaria.
— Se há algo capaz de me derrotar são lágrimas, querida. Por favor, não
chore. Prometo que em breve as suas irmãs estarão com você como te prometi.
Dominic segura meu queixo com delicadeza e o inclina até alinhar a nossa
visão.
Dominic não parece nada feliz, tanto pela interrupção, quanto pelo pedido
feito como se fosse uma ordem. Eu, por outro lado, já estou acostumada com
esse jeito mandão do Áquila. Não deveria, mas infelizmente estou.
Isso significa que ele também está acostumado com as minhas ações
contrárias às suas ordens. Então ele se adianta, envolve um braço na minha
cintura e segura minha mão livre no ar antes que eu saia de forma despistada.
Fico entre a cruz e a espada, porque ou saio e crio uma cena, ou começo a
movimentar meus pés e finjo normalidade.
A Rainha coloca uma mão sobre o ombro do Dominic e, simples assim, ele
também se vê obrigado a aceitar ao convite de dança. Logo, somos separados e
então passo a me concentrar nos passos da canção.
Tenho consciência de todos os pontos em que a minha pele encosta na do
Áquila, mas ignoro o ardor do âmbar em meu rosto enquanto deixo que ele
pessimamente nos guie em uma valsa.
Sei que Dominic sentiu mais dores nos pés do que ousava reclamar quando
Magnólia o puxava pelo braço para que fosse meu parceiro de dança enquanto
me ensinava a valsar. Mas também sei que aprendi o suficiente a ponto de ser
uma dançarina infinitamente melhor do que o Guerreiro está se mostrando ser.
— Que infernos, Isabelle! Você está noiva do Dominic. — Ele para bem no
meio da pista. Com medo de atrair atenção indesejada, seguro suas mãos e
começo eu mesma a guiá-lo até que volte a fazer a parte dele na dança.
— Cumpra com o seu papel na dança e pare com essas abordagens. Estou
me sentindo caçada e não estou gostando da sensação.
— É isso o que tem para me dizer? — O olhar frio que me lança é idêntico
ao gelo que sinto no peito.
Áquila respira fundo e seus olhos percorrem o meu rosto com cuidado.
Nunca!, grito internamente, mas não pronuncio, porque seria o mesmo que
dar a ele a satisfação de me ouvir atestar o fato de que ele não luta de forma
humana. Áquila é cruel na batalha. Portanto, a honra o obriga a lutar, mas na
hora que ele pisa em uma arena, ele deixa-a do lado de fora e se transforma no
Anjo da Morte. Não há nobreza e certamente não é bonito.
O brilho no olhar dele revela que ele percebeu a direção dos meus
pensamentos, portanto, conseguiu deixar claro o seu ponto.
Dou as costas e saio da pista de dança a passadas largas. Sei que estou
fazendo justamente o que não gostaria: uma cena. Mas por muito pouco não
gritei que não é teimosia.
Estou tão distraída com ela que não percebo a aproximação da última
pessoa que gostaria de conversar.
— Creio que minha missão foi cumprida, já que a senhorita é uma mulher
esperta, portanto é plenamente capaz de compreender a situação em que está se
envolvendo.
Meu sorriso alarga à medida que ele fica roxo de ódio, e sem palavras.
Rakar agora me encara com uma veia saltando também da testa. Ele sabe que me
ameaçar é o mesmo que declarar que tenho razão, portanto, ele é fraco.
— Acho que coloquei a sua irmã em perigo, Dominic. Perdão. Não sei no
que estava pensando, mas ele...
— Eu diria que até hoje ela é a parte indisciplinada de nós dois. Ainda não
descartei a hipótese do meu pai ter feito um acordo que a beneficia para
finalmente aceitar se casar com o Rakar.
Ele vira para a mesa cheia de bebidas, ficando de costas para o salão,
portanto, fora das vistas das pessoas que nos observam à espera de encontrar cara
de tédio, marca registrada dos nobres de Pedralhos.
— Isso não é justo! — digo por trás da mão que tapo discretamente a boca.
Na lateral da mesa, não posso fazer o mesmo, então não tenho como
disfarçar como ele. Além disso, um de nós precisa ficar atento e ele jogou essa
árdua missão no meu colo justo numa insana crise de riso.
Mando comandos para mim mesma para conter a vontade de soltar uma
gargalhada. É quando tenho a brilhante ideia de procurar pelo Rei na esperança
de que um simples pousar de olhos sobre ele funcione como um balde de água
fria. Não funciona. Mas fico ciente de que o monarca está me observando com
muito interesse.
Helena. Olhar para ela certamente será uma distração mais eficiente de
matar a vontade de rir. Não a encontro em parte alguma, mas meu olhar é atraído
para o Áquila, que me observa com diversão.
Ele sorri porque sabe que estou perto de uma crise de riso. Eu fazia muita
gracinha para arrancar um sorriso dele quando me treinava em Fayrehal. Na
maioria das vezes, eu gargalhava sozinha, mas ao menos ele sorria.
— Conhe...
— Céus — ele suspira contra os meus lábios. — Sonhei tanto com este
momento.
Acho que Dominic não nota que estou paralisada feito uma estátua.
Suspeito até que meus pulmões pararam de funcionar. Seguro seus ombros para
me apoiar, ou afastá-lo, não sei bem o que fazer. De qualquer forma, ele entende
como um sinal positivo e volta a me beijar de uma forma... apaixonada.
O suspiro de satisfação que ele solta é o meu algoz. Sou consumida pela
culpa, porque, para poupar os sentimentos dele, eu não deveria terminar apenas
esse beijo, mas também esse noivado antes que ele se envolva ainda mais
comigo. Porém, eu não posso. Dominic irá saber o real motivo para não nos
casarmos porque não vou me comprometer com nenhum outro homem e então o
príncipe irá me trancar no palácio dele, como me ameaçou.
Mas alimentar seus sentimentos, a fim de satisfazer os desejos dele até que
seja inevitável a nossa separação, é ainda mais terrível, porque não é verdadeiro.
Ele terá no máximo um fantasma de quem sou. Fui muito sincera ao dizer que
não há como entregá-lo algo que não me pertence mais.
Ela só implica com quem gosta, e ela implica muito comigo e com o
Oclan. Isso me leva a crer que, se Tina fosse um dragão, estaria cuspindo fogo no
salão inteiro para vingar a prisão do Oclan. Na verdade, acho que não precisa de
muito material, já que sabe usar os punhos.
Tudo o que está no poder dele para dificultar a minha vida, o ordinário está
usando. Como se todas essas artimanhas não bastassem, começo a suspeitar, por
conta dos resmungos do Dominic depois dessas reuniões improdutivas, e
também por conta do olhar dócil que o Rei sempre me recebe, de que ele está se
aproveitando de tudo o que o Áquila fez por mim no passado a seu favor, como
se o precioso filho dele tivesse agido sob seu comando.
Acho que estou ficando maluca por deduzir isso, porque não é possível o
Rei ser tão cara de pau de usar justo as ações do Áquila para dizer, nas
entrelinhas, que nunca esteve atrás de mim, que nunca teve a intenção de me
matar. Se eu estiver certa, o que bizarramente acredito que estou, aquele homem
é manipulador em um nível que beira a demência porque ele definitivamente não
conhece nem o Áquila de hoje.
É claro que não há a menor possibilidade de que tudo o que o Áquila fez
por mim tenha sido fruto de ordens vindas do Rei. A menor. Eu estive presente
nas crises existenciais do Guerreiro e todas elas tinham a ver com a gente. Todas.
Não uma. Nem duas. Nem três vezes, Áquila entrou em um conflito
interno ferrenho por me querer, mas precisar, ao seu ver, trair o reino que ele
jurou lealdade.
É por usar justo isso, algo que sempre esperei do Áquila e que só
conquistei agora que ele se deu conta de que me perdeu, que a minha vida seguiu
um rumo que não o cabe de forma alguma, que sinto verdadeiro asco do Rei.
Asco!
Aquele perverso usa minhas irmãs, meu soldado, Dominic e até mesmo o
filho contra mim. Maldito! Mil vezes maldito!
E é esse tipo de conforto que Dominic me traz. Na minha ausência, ele não
faltará. Muito pelo contrário. Tenho confiança plena no caráter dele para
acreditar que Dominic cuidará do que amo por lealdade a mim. O príncipe até
pode ficar com raiva, por conta do que vou fazer, mas se tem alguém que irá
compreender os meus motivos para libertar Aurora, esse alguém é ele que
ameaçou trancar no seu palácio uma pessoa que mal conhecia para evitar que
aquela perversidade acontecesse com ela.
Logo meu acesso é liberado e um deles sobe as escadas por onde vim.
Aposto que para avisar algum superior da minha presença na prisão. Mas quero
ver quem é que vai ter a audácia de negar minha permanência aqui. Duvido que
será o Rei. No momento, temos muitas divergências e sei que esta não é mais
uma batalha contra o Dominic e eu que ele irá querer entrar.
Passo por entre as celas à procura do Oclan, sem dar atenção aos
prisioneiros moribundos que tem aos montes. É impossível não comparar que o
forte em que a Magnólia me prendeu parece uma mansão em relação à masmorra
de Pedralhos.
— Este não é um lugar para alguém como você, princesa — Oclan diz sem
sequer abrir os olhos.
— Estou começando a pensar que você tem fetiche por prisões, Oclan.
— Fetiche?
— Vamos, seu molenga. Está com medo de jogar contra mim porque sabe
que nisso aqui — indico as cartas que embaralho com maestria — dou uma surra
em você?
Oclan sorri e me dou conta de que é a primeira vez que testemunho isso
acontecer. Logo seu corpo imenso para uma cela tão pequena desaba à minha
frente, colado à grade que nos separa.
— Nós dois sabemos muito bem quem é que fica surrado após os nossos
embates físicos.
— Ow. Ow. Ow. — Distribuo as cartas entre nós dois. — Ele provoca feito
uma garotinha.
Jogamos para valer, como se nossas vidas estivessem em perigo, mas com
vários comentários debochados da minha parte e palavrões de marinheiros
proferidos com muita intensidade da dele. Oclan descontraído é um máximo!
— Você jamais faria isso — Oclan debocha em voz baixa para que apenas
eu o ouça.
— Mas ele não precisa saber que me falta esse tipo de coragem.
— Isabelle, o fato de que fiquei preso com você no forte de Lufstar, onde
comi uma comida contaminada com uma substância que me fez falar a respeito
da minha intimidade, não é o mesmo que você conhecer os meus segredos por
minha decisão. Não confunda as coisas entre nós.
— Você acha que estou com pena e por essa razão vim até aqui?
— O que não é o mesmo que dizer que você não sente alívio por alguém se
compadecer. Mesmo que tenha sido obrigado a falar a respeito de algo que, de
outra maneira, teria ido para o túmulo com você. — Coloco minhas cartas no
monte também e Oclan solta um chiado de frustração. — Não se preocupe,
Guerreiro. Não vou trazer à tona as coisas que me disse, porque também sinto
vontade de matar o homem que você foi tanto quanto você sente. O seu conflito
interno é o mesmo que o meu. Mas consigo separar a pessoa que você foi da
pessoa que você é, porque o homem à minha frente se arrependeu. A questão é,
você consegue?
Oclan me encara por tanto tempo que penso que não vai dizer mais nada,
então realmente fico surpresa quando ele volta a falar.
— Por causa dele você me escolheu. A sua intenção era dar um jeito
naquele mal que cometi contra aquela criança e a forma que encontrou foi me
oferecer a oportunidade de me redimir dos meus pecados.
São as primeiras palavras que ouço assim que toco os pés no calabouço em
que fui informado, por um dos meus soldados de confiança, que a Isabelle veio
fazer uma visita ao Oclan.
O que vejo é tão absurdo, que pisco várias vezes para ter certeza de que
não estou delirando. No entanto, não estou. Isabelle, que recentemente ascendeu
ao título de princesa, está mesmo sentada no chão jogando cartas com um
prisioneiro.
Não sei se há alguém que aflora em mim sentimentos tão ruins quanto
Oclan o faz só de estarmos presente no mesmo ambiente. Quanto a ela, Belle é
dona de todas as lembranças quentes e boas que carrego no peito. É por causa
dela que me aproximo para conseguir ouvir o que eles estão dizendo com mais
clareza, uma vez que perdi a resposta dela quando dispersei os soldados.
Fico ainda mais atônito quando Isabelle não devolve com uma resposta
engraçadinha. Ela deixa o baralho de lado e abraça as pernas, apoiando o queixo
sobre os joelhos. Tão vulnerável que quase me entrego ao sentir o impulso de ir
até ela. No entanto, me controlo e mantenho a posição.
— Estou falando sério quando digo que não consigo matar, a não ser em
legítima defesa. Não que eu conseguiria te matar mesmo que eu quisesse, porque
nós dois sabemos que eu não conseguiria...
— Mas acabou sendo bom para mim e para você, essa aliança. — Oclan
assente de forma rígida. — É estranho que eu te veja como uma figura paterna?
— Meu antigo carrasco fica lívido enquanto fecho os dedos ao redor do punho.
— Sei da sua capacidade. Você quase me matou quando te libertei da prisão.
Acontece que você é o único que me respeita sem restrições. Se preciso que me
encare como uma princesa, sou recebida como princesa. Se preciso ser sua
aprendiz, sou uma aprendiz. Mas se preciso ser só eu, você me trata como só
mais uma pessoa. — Isabelle olha para as mãos em seu colo. — Todos querem
ou esperam algo de mim. Que assuma a linhagem perdida. Que me case. Que
volte para o meu mundo... — Pisco por um segundo mais longo. — Não importa
o que seja. Alguém sempre quer me dizer o que fazer sem antes olhar para mim e
me perguntar o que eu quero. Você não. Por isso passei a te enxergar como um
lembrete para não sucumbir à pressão do que é esperado de mim. Para lutar até
que todos respeitem quem sou. Exatamente como meu pai era comigo. Embora
tenha certeza de que, se ele tivesse descoberto sobre meus roubos, não teria
ficado contente de jeito nenhum, perante os olhos dele eu não ficaria manchada.
Meu pai chamaria a minha atenção, me daria conselhos, me colocaria de castigo,
mas me acolheria para que eu não me sentisse menor do que ele ou os meus
irmãos. Ele me faria sentir vergonha dos meus erros, sim, mas me rejeitar porque
errei? Nunca. — Isabelle respira fundo. — De forma sutil, você me aconselha e
me passa a sensação de que minhas escolhas não importam, assim como era com
o meu pai. Posso ser princesa, rainha, aprendiz ou só amiga dependendo de quem
preciso ser no momento.
— Não eu — Isabelle diz com firmeza e até mesmo chega um pouco para
trás.
Sorrio, porque sim, é algo que ela faria. Afinal, Isabelle teve a audácia de
pedir que a anunciassem como “A Ladra do Outro Mundo” para o Rei. E agora
entendo que não foi para afrontá-lo. A Isabelle reconheceu um erro do passado a
fim de tirar o poder de alguém usar isso contra ela.
— Não sou melhor do que vocês, Oclan. Muito pelo contrário. Até posso
confessar os meus erros, ferindo o meu orgulho no processo, mas isso não faz de
mim melhor do que ninguém, entenda isso.
Reteso cada músculo do corpo. O que ele quis dizer com filho? Por um
acaso Oclan foi espancado até o delírio e não fui informado? No entanto, Isabelle
não demostra surpresa ao ouvi-lo se referir a mim como filho. Não entendo, uma
vez que ela sabe muito bem que o ódio do Oclan por mim nasceu principalmente
da morte do filho dele, cuja identidade fui obrigado a usurpar. Até mesmo o
nome que hoje carrego é da criança dele. Não o meu de batismo.
— Já fui, mau perdedor. Mas não prometo voltar amanhã, porque amanhã
você não estará mais aqui.
Não quero que Oclan saiba que escutei a conversa deles, então percorro o
caminho de onde vim de forma silenciosa, porém rápido. Paro ao alcançar o
térreo à espera da Isabelle.
No que diz respeito a ela, muda tudo e quero que saiba que ouvi cada
palavra do que foi dito.
Não vai ser um noivado por interesse político que me afastará. Nem as
mentiras que ela profere na minha cara ou, pior, um beijo doloroso de assistir.
Por pouco não fiz besteira ao ver o Dominic roubar um beijo dela. Até fui
na direção deles na intenção de interromper, o que teria sido catastrófico. Socar a
cara do príncipe do Reino do Norte poderia deflagrar uma guerra, no entanto,
sequer levei em consideração as consequências. A sorte de todos os reinos é que
a Guerreira Tina foi mais rápida do que eu e os separou.
Não permito que ela escape de mim. No que depender de mim não irá
acontecer nunca mais.
Sem saída, Isabelle aperta as mãos no centro do peito. Talvez o gesto seja
para esconder a respiração irregular. Ela percebe que estou tomando nota de
todos seus sinais de nervosismo exalando e apruma os ombros, me encarando de
queixo erguido.
— Estava.
— Creio que te faltam espelhos para que se veja. É impossível não encarar
seu corpo pecaminoso nesses vestidos sedutores que agora você vive usando.
Menos ainda o seu rosto que... Infernos, Belle. Você está linda de uma maneira
desconcertante.
Pelos deuses! Amo essa mulher com cada fibra do meu ser.
Ouço o som de passos vindo em nossa direção. Ela não. Envolvo sua
cintura e a puxo para um corredor vazio e escuro. Logo desço meus lábios sobre
os dela e devoro a boca doce que sonho diariamente. Tomo todos os gemidos de
surpresa feminino que logo se transformam em gemidos de prazer.
Aperto as mãos na cintura fina e colo suas curvas suaves ao meu corpo
rígido. Meus lábios, sedentos pelo sabor açucarado dos lábios dela, não
permitem nem mesmo que ela recupere o fôlego. O medo de que me afaste dita
os meus passos, então não deixo que Isabelle pense no que estamos fazendo.
Devoro-a como se quisesse absorver toda a sua essência e guardá-la dentro de
mim para que esteja comigo para onde quer que eu vá até a eternidade.
— Maldição! Como senti sua falta, Belle — sussurro, embriagado por ela.
Volto a beijá-la e Isabelle corresponde com ainda mais avidez. No entanto,
sou tomado pela confusão ao sentir algo úmido e quente tocar minhas bochechas.
Ergo as mãos e deslizo as pontas dos dedos no rosto dela. Percebo que se trata de
lágrimas.
— Belle...
Um peso afunda em meu estômago e fico gelado das pontas dos dedos até
meu último fio de cabelo. Isabelle parece sincera, o que por sua vez acaba
comigo.
— Belle, eu não te traí, meu amor. — Deslizo os nós dos dedos pela pele
suave do seu rosto. — É isso que está te chateando em relação a mim?
— Por Deus, Áquila! Não consigo resistir a você quando deveria me dar ao
respeito em primeiro lugar. Por favor, use a sua tão estimada honra e faça esse
favor para mim. Não me encurrale mais.
— Rakar atentou contra a minha vida. Em vez de fugir, tentei ir até a Ilha
do Comércio atrás de você. — Minhas palavras a paralisam no lugar e seus
olhos, desolados, travam nos meus.
Puxo seu braço para que volte a ficar frente a frente a mim e pouso uma
mão no pescoço dela, sentindo sua pulsação. De certa forma, senti-la me
tranquiliza. Acredito que o contrário também acontece, uma vez que Isabelle não
reluta, menos ainda demonstra desejo de se afastar do meu toque.
Na verdade, não é ódio. Nunca foi. Isabelle sente é medo ao perceber que o
amor que nutre por mim é tão intenso que enfraquece o seu propósito.
— Teria.
— Mas na posição da Helena eu não teria feito aquilo. Eu teria lutado para
salvar as minhas irmãs, não para matar o irmão dela.
— Fui pega desprevenida porque foi a primeira vez que ele... — Ela
respira fundo. — Foi a primeira vez que ele me beijou. Porém, vou ser sincera,
Áquila. Estou tentando, juro que estou tentando arrancar esse amor que sinto por
você do meu peito ou, no mínimo, abafá-lo. Mas todas as vezes que penso que
consigo, basta um maldito “Belle” saindo dos seus lábios e pronto, tudo pelo
qual lutei vai por ralo abaixo. Você me destrói de todas as maneiras possíveis e,
como a imbecil que sou, recebo a minha ruína com um sorriso pateta no rosto. O
meu coração é seu e não me dá poder de escolha quando o assunto são os meus
sentimentos. Tem ideia do quão terrível é isso?
Encosto a testa contra a dela. Beijo seus lábios delicadamente uma, duas,
três vezes. Nossos olhos abertos e sempre conectados. Suspeito que até mesmo o
ritmo dos nossos corações é o mesmo.
— Pare de lutar contra mim. Sou seu e você é minha. Não para possuirmos
um ao outro e sim para nos amarmos. Nunca quis ser cuidado por ninguém, no
entanto... inferno sangrento se não acabei de descobrir a sensação maravilhosa
do que é ter você se preocupando comigo! Desejo cuidar de você e...
Infernos! Ela teria me escolhido ali. Eu sabia disso. No entanto, agora está
me rejeitando para sempre e, diferente de quando proferiu mais cedo que me
odiava, agora está dizendo a verdade. Apesar de me amar, ela não irá me
escolher.
— Se eu tivesse...
Seus dedos envolvem com delicadeza o meu pulso para me afastar dela.
Para suavizar a rejeição, Isabelle desce a mão e cruza os dedos aos meus.
— Nossas escolhas nos trouxeram até aqui, portanto a realidade que temos
que enfrentar é essa — Isabelle sussurra, tão arrasada quanto eu. Seguro sua mão
contra meu peito e ela engole em seco ao sentir as batidas errantes do meu
coração, mas me encara decidida. — Várias vezes pensei que se você acordasse e
me escolhesse, tudo seria diferente. Agora é tarde demais e nunca saberemos.
— Isabelle, não vou lutar para te afastar como você me acusou que fiz das
outras vezes. Reconheço meu erro quando me convenci de que o certo a se fazer
era te levar em segurança para o outro mundo e te deixar lá sem mim. No
entanto, percebi que ficar longe de você é um destino inconcebível. O que estou
tentando te dizer é que eu teria ido atrás de você. — Os olhos dela ficam do
tamanho da lua. — Teria, Belle. Esse é o segredo que reluto em revelar até
mesmo para mim. Eu desistiria de tudo para viver com você, mesmo que fosse
em um mundo que, pelas coisas que você me contava, parecia uma realidade
assustadora para alguém como eu.
— Onde está aquela garota obstinada que corre para os braços do desafio
ao invés de fugir? — Alterno o olhar entre seus olhos.
— Você crê que somos uma causa perdida. É esse o motivo que te impede
de ficar comigo, mesmo me amando?
Ela não responde, mas não precisa. O simples fato de desviar o olhar,
brilhando com novas lágrimas não derramadas, diz tudo. Me afasto e entreabro
os lábios enquanto a encaro sem acreditar no que está acontecendo.
— Eu te perdi — sussurro.
— Sou egoísta e, secretamente, desejo ser para sempre o único amor da sua
vida. Mas estamos fadados ao fracasso, Áquila. Mesmo que me doa, o certo da
minha parte é pedir para que siga com a sua vida adiante sem esperar por mim.
Encontre outra — ela faz uma careta, mas se obriga a dizer mesmo que a
incomode.
— Não — digo com tanta ferocidade que ela até mesmo se assusta. Dou
um passo em sua direção e assomo meu corpo sobre o dela. Quase encosto
nossos lábios. — Não. Não. Não.
— Mas eu respeito...
— Serei mais claro. Não aceito que me diga para traçar um destino que não
tenha você para facilitar a forma como se sente por ter traçado um destino que
não me tenha. Se vai me rejeitar, me rejeite sabendo que te escolho até o fim.
Também não vou revidar ao ficar com outra. Não sou esse tipo de homem.
Portanto, você será a única de nós dois a infringir tal sofrimento. Não espere de
mim a cortesia de te oferecer o mesmo em retorno porque não há em mim
qualquer disposição de atenuar a dor que sente por me machucar ao te machucar
de volta. Lide com as consequências das suas próprias escolhas, Isabelle.
Uma lágrima escapa de seus olhos. Ela engole em seco e me encara com
desamparo. Quanto a mim, respiro de forma errática.
Mantenho minhas mãos para mim e não alivio a dor que sei que está
sentindo, porque é a mesma que está me condenando a viver até o meu último
suspiro. A conheço bem o suficiente para saber que Isabelle está no inferno por
ser a razão do meu sofrimento. Se ela pudesse escolher sei que inverteria as
nossas posições em um suspiro. Dói muito mais nela prejudicar alguém do que
ser a prejudicada.
— Basta que você volte para mim que nenhum de nós dois iremos sofrer.
Viro de frente para ele. Embora sejamos primos, Dominic e eu mal nos
conhecemos, então ele não sente dificuldades em me lançar um olhar
atravessado. Eu menos ainda em revidar, embora meu problema não seja com
ele.
Ele desvia o olhar para ela por breves segundos e então volta a me olhar de
forma mortal. Minhas defesas já estão no devido lugar. Isso e nada teria o mesmo
efeito em mim.
O clima fica ainda mais tenso entre nós três. Dominic range os dentes e
aprumo ainda mais os ombros.
Isabelle passa por ele e caminha apressada para se distanciar de nós dois.
Dominic não gasta fôlego comigo. Ele me dá as costas e vai atrás dela.
O pior não é vê-lo fazer algo que eu gostaria de fazer, no entanto não
posso. É o fato de que ao alcançá-la, ele pergunta algo a ela que assente com a
cabeça em resposta. Dominic estende o braço. Isabelle hesita por um segundo,
porém aceita em seguida.
Sou obrigado a lidar com as consequências dos meus atos. Vê-los partir
juntos é um deles.
Terei a Isabelle segura, o que eu queria. Terei o meu reino seguro, o que eu
também queria. Terei a minha cabeça sobre meu pescoço, o que também queria.
No entanto será ao custo de perdê-la para outro homem.
Inferno sangrento!
Dominic come em silêncio ao meu lado e não me esforço para preencher o
ambiente com conversas aleatórias. Felizmente, estamos jantando apenas na
presença um do outro, uma vez que não recebemos nenhum convite da família
Real desde que chegamos. Nunca senti tanto alívio diante a afronta deles.
Além de ter ficado calado durante todo o jantar, e feito discretas caretas de
dor, o que suponho se tratar de dor de cabeça, Dominic está com olheiras
profundas. Há dias ele sai e entra em reuniões com o Rei e nada acontece, apenas
o esgota.
Sou pega desprevenida com a pergunta e, portanto, fico muda. Não sei
como responder a isso.
Mas, por causa do meu encontro sem querer ontem com o Áquila, hoje não
perguntei nada ao Dominic.
— Nunca disse que não o fosse. — Dessa vez, o encaro nos olhos.
— O que quero dizer é que sou maduro o suficiente para arcar com as
consequências das minhas escolhas. Quero que fique claro que você não está me
obrigando a nada. Eu escolhi e continuo escolhendo o nosso noivado, por isso
essas reuniões não terminam nunca. Se você passar a me encarar como um pobre
coitado, então aí sim me ressentirei da nossa aliança.
É por isso que não me justifiquei ao Dominic. Ele não precisa saber nada
disso, uma vez que não vou permitir que se repita. Já basta o mal que o causei ao
me encontrar daquela forma e, aparentemente, piorei ainda mais com essa
pergunta estúpida.
Assim que ele fecha a porta atrás de si, e se volta para mim, percebo duas
coisas ao mesmo tempo. Dominic não está mais descontrolado, mas está distante,
tanto é que parou a vários passos de mim.
— Não teremos esse tipo de união — ele diz olhando fundo nos meus
olhos. — Não me peça para que o aceite como seu amante, porque não darei
permissão, Isabelle.
Pronto. Falei. Meu estômago até revira tamanha vergonha que sinto diante
dele. Baixo a cabeça, querendo me esconder. Porque ele é íntegro. Eu não. Foi
por isso que chorei ontem quando o Áquila me beijou. Notei a minha
incapacidade de agir corretamente. Pior que isso. Notei o alívio que senti nos
braços do Áquila mesmo estando comprometida com outro.
Eu não mato a sangue frio, mas sou uma traidora. Descobrir isso me
machuca tanto!
Dominic não abre um sorriso. Nem mesmo parece contente com a minha
resposta não verbal. Creio que ele nota que não estou bem, uma vez que desvia o
olhar do meu e encara o quarto às minhas costas.
— O que você quis dizer com as reuniões nunca terminarem porque você
continua escolhendo o nosso noivado?
Dominic respira fundo e dá um passo para trás. Ele para perto da porta e
coloca as duas mãos nos bolsos da frente da calça.
— Todos os acordos que o Rei oferece nos prejudica. Por isso ainda não
saímos desse impasse. Creio que levará um tempo até que eu consiga um
encontro com as suas irmãs.
— Por favor, eu preciso saber a sua verdade. Uma vez você me disse que
acredita que o amor é uma escolha. Mesmo assim, insiste em se casar com uma
mulher que deixou claro que não acredita no mesmo porque não tem controle
sobre o próprio coração.
Ele me avalia em silêncio por alguns segundos. Espero que perceba que
não vou deixar a questão de lado e que não aceito nada além da completa
sinceridade dele.
Agora sim sei qual é a verdade e, embora seja um motivo nobre, me sinto
péssima. Antes Dominic estivesse me passando a perna, porque não vou partir o
coração dele. Eu vou destruir as esperanças daquele rapaz que via os pais e
sonhava conquistar o mesmo.
Fico tão mal que a minha vontade é terminar esse noivado agora mesmo.
Mas então penso na Hortense presa em um feitiço que a atormenta há séculos e
controlo o meu instinto de apenas reagir de acordo com as minhas emoções.
Mais do que qualquer coisa, eu preciso salvá-la.
— Eu não posso ficar com ele. Eu já sabia disso quando aceitei o seu
pedido de casamento e essa compreensão apenas se solidificou ainda mais. —
Sou cuidadosa com a escolha de palavras. Dominic parece perceber que usei
“posso” ao invés de “quero” porque solta um suspiro.
— Não importa o começo. Não importa mesmo — ele diz mais para si
mesmo do que para mim.
Estou cansada de ver o mal que causo a ele. Cansada de ver o Dominic
com dor de cabeça e olheiras profundas porque o Rei dificulta a vida dele por
minha causa. Também não aguento mais não ser capaz de contar doces mentiras
para ele. Coisas como: esqueci o Áquila. O meu coração não pertence ao
Guerreiro. E sou capaz sim de dá-lo a você.
— Eu confio em você.
Não deveria. Mesmo assim, pego a mão dele e o puxo para fora do meu
quarto. Os nossos guardas nos acompanham enquanto arrasto o Dominic para a
área externa do palácio.
Respiro aliviada. Ele ainda nem viu o que quero mostrá-lo e já se distraiu
dos imensos problemas que nos cercam. Aumento o passo em resposta.
Hoje à tarde, consegui ir um pouco mais longe na minha exploração do
Palácio de Pedralhos em busca da Hortense. Tina ficou presa em uma reunião
com a guarda enquanto Dominic ficou preso na com o Rei.
Não posso usar o Orientador se quero ser discreta. Então vi no meu quarto
a direção que ele me apontou e decidi ir para os jardins. Uma vez lá, encontrei
um labirinto verde, um templo do lado oposto e uma pequena floresta. Tive que
escolher um caminho. Na verdade, miados agudos escolheram o caminho para
mim. E é por isso que estou arrastando o Dominic para lá.
Solto a mão dele e percorro a curta distância que resta em uma pequena
corrida. Dominic me acompanha de perto e para de súbito quando me abaixo.
— Aqui. Pegue. Se essa coisinha linda não for capaz de te alegrar, não sei
mais o que seria.
— Não posso. — Dou um passo para trás e até mesmo balanço a cabeça.
— Querida...
— Então eu pego este para mim. E vamos encontrar um lar para os outros.
— Ele coloca o gatinho de volta no ninho. — Alguém em mente que possa
querer filhotinhos de gatos?
— Hanna.
— A nossa prisioneira?
— Ela é uma criança. Certamente gostará de ter um gatinho, uma vez que
está triste desde que se separou da Heloise. — Solto um suspiro de pena da
garotinha. Infelizmente, não há muito o que a gente possa fazer. Ficar com a
Hanna significa proteger as minhas irmãs que o Rei reluta em soltar. — Tami
talvez também queira.
O príncipe estende a mão e brinca com uma mecha solta do meu penteado.
Meu coração começa a bater de forma errática e a vontade de sair correndo surge
no meu peito. Porém, fico parada no lugar. Mas, ao relancear do olhar dele sobre
os meus lábios, me coloco em ação.
Em um ato que pega a nós dois de surpresa, envolvo meus braços ao redor
do pescoço dele e o abraço apertado. A única forma tranquila que encontro de
desviar a atenção do que sei que ele estava prestes a fazer. Não posso rejeitar
abertamente um beijo do meu noivo e desejo menos ainda magoá-lo com uma
rejeição. Abraçá-lo funciona bem.
Mentira. Eu não tinha o menor interesse em ir, mas foi a única coisa que
cruzou a minha mente para me tirar dessa situação embaraçosa em que me enfiei
por conta própria. Será que um dia os meus impulsos não me colocarão em
enrascadas?
— Tudo bem. Elas estão seguras por ora. Além do mais, talvez com a
mente descansada surja uma ideia melhor para tratar com o Rei na próxima
negociação.
Não entendo por que nenhuma delas se inscreveu para participar. Depois
de passar tanto tempo sobre o lombo de um cavalo nas minhas fugas do passado,
posso afirmar que não é algo que desperta o meu interesse, mas eu teria ido se
não fosse por conta do meu vestido.
Outra vez me arrependo de tê-lo escolhido para hoje, mas era a minha
última opção antes de começar a repetir as roupas. A primeira vez que me
ressenti da minha decisão foi quando Dominic me viu. Ele ficou mudo e não
disse nada.
A minha escolha foi infeliz, mas há uma porção de mulheres que estão de
vestidos possíveis de montar.
— Aqui. Bebe isso. — Estendo a ela a minha taça depois de dar outras
batidinhas em suas costas, que não funcionam. A mulher de pele marrom claro, e
finos traços do rosto, bebe em goles pequenos até passar. — Dá próxima, faço
um som avisando a minha aproximação.
— Montar a cavalo não irá borrar o seu batom. E, diferente do meu, o seu
vestido é completamente possível de montar.
— Eu teria medo.
— Hmm... — Pego uma outra taça, já que ela ficou com a minha, e dou
um gole no líquido saboroso. — Qual a próxima atividade?
Ela me avalia dos pés à cabeça. Diferente das outras observações que
peguei na minha direção, a dela é contemplativa e não ameaçadora.
— É por isso que o príncipe se encantou e nunca mais quis saber de outra
dama. — Busco com o olhar pelo Dominic, que está socializando em algum
lugar por aí. — Não me refiro a este príncipe e sim àquele.
Lady Myra volta a atenção do Áquila para mim e posso jurar que vejo
trespassar no seu rosto um misto de tristeza.
— Claro, Alteza.
O senhor, responsável pelo torneio, não faz uma expressão muito contente
quando mando colocar o meu nome para a disputa do arco e flecha. Pelo menos
ele é esperto e não discute comigo.
— E eu aqui pensando em te pedir para torcer por mim quando você está
tramando competir comigo. — Me sobressalto com a aproximação do Dominic.
— Apenas neste cenário. Mesmo assim, depois de mim, irei torcer por
você.
— Desculpa, mas não vou torcer por você não. Sou altamente competitiva.
Dou um braço para não entrar em uma briga e um corpo inteiro para não sair de
uma depois que entro.
Ele solta uma risada, provavelmente achando que sou espirituosa. Mas
falei sério e se o Oclan estivesse aqui saberia disso. Só não sou uma pior
adversária em competições do que ele, que já deixou de falar comigo por levar
uma sova em jogos de baralho.
O sorteio dos nomes é feito para tirar a ordem dos participantes e o nome
do Áquila sai primeiro do que o meu. Lanço um olhar para ele que revida com
um sorriso discreto.
Não acerto todos os centros como ele, mas também não erro nenhum alvo.
Isso me garante participar da segunda rodada. Dominic também tem um
desempenho melhor do que o meu e termina a primeira partida bem colocado.
Áquila cruza o olhar com o meu quando o nobre que me antecede caminha
para o último alvo.
Minha torcida não é tão grande quanto a do Guerreiro, mas ouço algumas
vibrações de comemoração. Como fui ensinada, não me deixo entrar na onda e
ser levada por essa euforia. Com a mesma concentração, parto para o outro alvo.
Nos dois últimos, não acerto o centro, mas chego próximo de acertar.
— Não me deixe vencer. — Movimento os lábios para que ele faça leitura
labial como fez comigo.
— Eu sempre ganho.
Descubro o que fazer e é sair sem dar nenhuma resposta que o Guerreiro
provocador merece. Acontece que ele me conhece bem demais e age mais rápido
ao estender o outro braço por minhas costas até pegar uma taça do meu outro
lado. Claro que seria mais prático estender o braço pela mesa, à minha frente,
mas dessa forma seu peitoral não resfolegaria nas minhas costas nuas.
Ele leva a taça aos lábios, com um brilho de diversão nos olhos ao me ver
muda diante a ousadia dele. Um segundo depois e Dominic ocupa o meu lado em
que o Áquila acabou de pegar a bebida.
E pensar que tudo o que fiz até hoje foi para me defender. Mesmo assim,
caí nessa arapuca, como se diz o Áquila, dos infernos!
— Creio que o ego de Vossa Alteza esteja muito bem alimentado ao ter
dois belos homens disputando a vossa atenção.
Sustento seu olhar austero. É nítido a animosidade que ela sente em relação
a mim. Como se eu me importasse, uma vez que também não vou muito com a
cara dela.
— Não irei admitir que Vossa Alteza coloque o meu filho contra o meu
sobrinho. Se não parar agora mesmo de brincar com os sentimentos de dois
homens, enfeitiçados pelo charme de uma mulher ardilosa, serei obrigada a
intervir.
— Sei que foi possível me ouvir com clareza. Não entrarei nem mesmo na
questão de se tratar de um conflito que pode evoluir em uma disputa entre o
Reino do Norte e Yerus. Áquila precisa de uma dama ao lado dele, não alguém
do seu tipo. — De forma discreta, a Rainha lança um olhar por sobre a xícara
para a mulher gentil que conheci mais cedo. — Alguém como a primeira dama
que o meu filho escolheu para dançar assim que ascendeu ao título de príncipe.
Lady Myra abre um sorriso discreto que desaparece quando nota o meu
olhar avaliativo sobre si. Ela até mesmo baixa a cabeça. Então foi mesmo tristeza
o que vi quando ela olhou do Áquila para mim. Lady Myra está apaixonada por
ele.
Ótimo! Simplesmente ótimo! Será mais fácil para ele me esquecer assim
que eu me for, uma vez que opção não faltará.
— Não que eu te deva qualquer satisfação do que faço da minha vida, mas
tudo o que fiz até hoje foi procurar meios de me defender, visando também a
liberdade das minhas irmãs, prisioneiras do vosso reino. Sei que não me pediu,
mas lhe darei um conselho. Antes de apontar um dedo na minha direção, lembre-
se do mal que causou de forma deliberada ao próprio filho e a indiferença com
que trata o sobrinho. Dominic e eu estamos noivos e essa conversa é uma afronta
a ele e a mim ao insinuar que estou usando artimanhas para seduzir outro
homem!
— O que foi que uma vez eu te disse, Heloise? — pergunto para a garota
sem desviar o olhar da monarca ao interrompê-la de forma impertinente.
— Não comece uma guerra se não estiver disposta a ir até o final? — A
voz da Heloise quase não passa de um sussurro ao perguntar ao invés de afirmar.
Assim que ela termina de falar, a mãe dela a repreende e a ordena não se
envolver.
Para facilitar, trespasso meu braço ao dela e nos guiamos para fora da área
da Rainha. Sei que é para poucos enfrentar uma mulher como a Rainha e
reconheço a coragem da Heloise por se levantar e me acompanhar.
— Se ela se voltar contra você, quero que venha imediatamente até mim.
Eu mesma vou lidar com aquela megera. Magnólia me ensinou como combatê-
los sem perder a cabeça em uma guilhotina.
— Obrigada? — A garota me pergunta abobalhada.
— Quero mesmo te atualizar sobre a sua irmã. Ela me fez prometer que
viria pessoalmente falar com você.
— É claro que estou! Ela é uma garotinha que foi separada da irmã. Ontem
mesmo fui com o Dominic levar um filhote de gatinho para que ela esquecesse
um pouco a falta que sente da família. Hanna ficou muito feliz.
— Agradeço, porque não gosto de lidar com o seu pai. Ele me lembra
muito a sua... Enfim.
— É claro que não vamos apostar contra o maior Guerreiro dos últimos
tempos — o soldado do Dominic blasfema.
Volto a discutir a alegação mais falsa que existe enquanto a minha previsão
e a dele não erra. Isabelle fica em segundo lugar na competição de arco e flecha
da festa mais insuportável que já fui obrigada a cobrir a retaguarda dela.
Céus! Tenho certeza de que todas as pessoas mais fúteis de todos os reinos
estão concentradas nesta ilha. O tédio, de observá-los enquanto ficamos ao
longe, fazendo a segurança das nossas respectivas realezas, estava beirando a
insanidade.
O pior é que nem o nosso serviço temos como fazer, uma vez que há
guardas cobrindo a ilha de ameaças externas e não podemos nos juntar a eles.
Também não podemos circular no meio dos nobres. O que nos restou foi
ficarmos parados a uma distância observando Isabelle, Dominic e o Áquila.
Desnecessário, uma vez que se algum desses nobres fúteis forem idiotas de
atentarem contra qualquer um deles, eles conseguem lidar com a ameaça antes
que qualquer um de nós três dê dez passos na direção deles.
Não desvio a atenção para ninguém, uma vez que estou altamente
preocupada com a aproximação da Rainha da Isabelle.
Antes que eu grite nas fuças dos dois soldados mais incompetentes com
quem já fui pareada, a Isabelle sai da tenda de cabeça erguida com a Heloise de
braços dado a ela.
— Olhe aqui, seu insolente saído direto das labaredas do inferno! Só não
esfrego agora mesmo a cara dos dois na terra, porque tenho que ir atrás dela.
Ergo as mãos no ar e mostro os dois dedos médios para eles enquanto vou
na direção da mansão em que vi a Isabelle desaparecer.
— Você está passando mal? A Rainha fez algo? Tentei intervir quando
ela...
— Ainda bem que você teve o bom senso de não interferir ou a situação
teria ficado realmente séria — Isabelle diz sem qualquer traço de emoção na voz.
A justificativa que me dou é que a Isabelle não é nada como as pessoas que
eles protegem. Dominic é o tipo que evita o caos por meio de uma pena, tinta e
papel. Áquila é do tipo que guerreia para acabar com o caos quando ele se
instaura. Isabelle é o tipo que cria o caos. Não dá para comparar. A minha
missão é infinitamente mais desafiante do que a de qualquer soldado de outra
pessoa da realeza.
Viro a cabeça para ficar com o rosto virado de frente para o perfil dela.
— Últimos dias em Yerus. — Percebo o cuidado com que ela escolhe cada
palavra.
Carlos Eduardo era um rato de biblioteca. Não uma, nem duas vezes, tive
que arrancá-lo das bibliotecas de Lufstar. Ele sempre estudava sobre todas as
monarquias, principalmente a linhagem da Isabelle. Porém, desde que chegamos
em Yerus, nunca mais o vi com um livro na mão que fosse.
Isabelle fica dura ao meu lado. Acho que até mesmo para de respirar.
— Não acredito que o meu irmão traiu a minha confiança e te contou sobre
essa missão. — Pela primeira vez desde em que entrei aqui, ela me lança um
olhar, e um cortante ainda por cima.
— Não vou pedir desculpas, Isabelle. Você sabe muito bem que não pode
ficar sozinha.
— Ela fez o quê?! — Minha mente fica branca e o meu sangue ferve. —
Isso não pode ficar assim. Eles te perseguem desde o seu nascimento, tentam te
matar, sequestram as suas irmãs, e ainda por cima te acusam de criar
instabilidade entre dois reinos quando você finalmente compreendeu a situação e
procurou um príncipe com meios de te defender quando tudo o que o príncipe
deles fez foi te machucar igualzinho a eles? Ninguém daquela família presta! —
exalo, revoltada.
— O Áquila não é como eles, Tina. — Ela franze o cenho com raiva para
mim. — E ele não me machucou.
— Você foi treinada pelo mesmo Guerreiro que treinou o meu pelotão? Ah,
não. Esqueci que o treino de vocês envolvia beijos.
Algo na voz dela causa um aperto estranho no meu estômago. Mágoa. Fui
longe demais e a magoei para valer.
— Já parou para pensar que talvez o problema que você acha que tem com
ele, na verdade, é um problema interno seu?
Aperto os olhos para ela e meus lábios viram uma linha fina e rígida.
Sem que eu espere, Isabelle tomba a cabeça no meu ombro e sou obrigada
a recostar no sofá. Ela segura a minha mão entre as dela em seu colo.
— Ah, pelos deuses! O que foi que o imbecil do Carlos Eduardo te disse?
— Ela dá de ombros. — Vou matá-lo por ter enchido os seus ouvidos! Não sei se
ele te contou tudo, mas vou repetir palavra por palavra do que eu disse a ele. Eu
não vou largar a sua Guarda para ficar com ele.
— Nós não estamos juntos! Vou socar a cara dele por me atravessar ao ir
correndo te encher de mentiras.
— Ele merece ser feliz. Além disso, fico aliviada por saber que o meu
irmão tem alguém como você na vida dele. E ele entende sim que cumprir com o
seu dever é importante. Então não é uma questão de escolha entre ser a minha
soldada ou a namorada do meu irmão. Você pode ser os dois.
Isabelle ergue a cabeça para sorrir para mim. Sorriso esse que não reflete
em seus olhos.
— Isa, você está absurdamente melancólica. Não pode ser só esse embate
com a Rainha que te deixou assim. O que está me escondendo?
— Por que eu tenho que esconder algo, Tina? Não conseguir livrar minhas
irmãs dos domínios de um Rei manipulador, ter um dos meus soldados mais fiéis
preso e, ainda por cima, dormir sob o mesmo teto que abriga a assassina do meu
irmão não são motivos suficientes para me entristecer?
Parece que ficou no século passado a última vez que tivemos uma conversa
de amigas. Como sinto falta disso, tenho medo de assustá-la e que se feche outra
vez. Mas preciso sondar o que está acontecendo para saber como agir.
Fiquei tentada a contar tudo para ela na esperança de que me salvasse. Mas
então quem salvaria a Hortense? Como se eu já não estivesse me desmanchando
em um desespero interno, ela me perguntou se os pesadelos tinham voltado e
automaticamente revivi a morte do Felipe.
— Passou?
— O susto.
Quando ele era meu treinador, já me chamou a atenção por muito menos.
Ser pego com a guarda baixa, mesmo enquanto dorme, é praticamente
considerado um crime para o Áquila. Mas Tina estava certa, ultimamente estou
mesmo muito cansada, então apaguei feito uma pedra e nem precisei do Oclan
acabar comigo em um treino para que isso acontecesse.
Ele alivia meu desconforto ao trazer luz para o dia em que invadi a torre
dele no meio da noite. Fico perdida naquelas doces recordações.
Áquila provavelmente nota que estou suscetível a ele ao trazer luz para um
momento bom do nosso passado, porque volta a se aproximar até se sentar na
beirada da cama.
— Vim para te levar até as suas irmãs. Estou ciente dos planos do Rei e ele
não pretende te deixar vê-las tão cedo.
Relembro das minhas suspeitas das indiretas que o Rei vem jogando aqui e
ali. Aquele ardiloso está tentando dar a entender que tudo que o Áquila fez por
mim, na verdade, eram ordens vindas dele.
— Por um acaso esses planos têm a ver com você? — Aperto os olhos.
— O Rei não quer que esse encontro ocorra a pedido do Borys. Menos
ainda do Dominic. — O Guerreiro se mantém calado, porque raramente se
explica, mas não precisa. Sei que estou certa. — Ele quer que ocorra por meio
dele ou, melhor, por meio de você.
— Não vim a mando dele. Inclusive, este encontro terá que ser mantido em
segredo.
— Mantido em segredo dele porque não quer que eu acredite quando o Rei
dá a entender que a sua aproximação de mim foi cumprindo ordens dele. Se ele
souber, irá usar esse encontro, que está tentando me arrumar com as minhas
irmãs, para os fins dele. — O Guerreiro sela os lábios e simplesmente me encara.
Áquila não vai se justificar, mas sei que estou certa. Assim como sei que o
Rei está usando o nome dele em mentiras.
— Não que você esteja preocupado no que penso, mas não acredito nele
nem por um segundo. Aquele homem odioso pode mentir o quanto for com o seu
nome que não caio nessa. — Um leve arquear de sobrancelha é a resposta que
preciso de que o Guerreiro ficou surpreso. — Eu estava lá, Áquila, quando você
estava a ponto de ficar louco por me amar sabendo que eu era a maior ameaça ao
reinado do seu Rei. A sua luta de descobrir o que fazer, se seguia o seu coração
ou a sua honra, foi uma das maiores dores que já enfrentei na vida. E você sabe
disso, porque me viu colapsar no seu colo e aquilo não aconteceu apenas por
causa da descoberta de que os meus irmãos não eram meus irmãos de sangue.
— Se durante todo esse tempo você acreditou em mim, por que está me
rejeitando? Pensei que fosse esse o motivo para continuar o escolhendo ao invés
de voltar para mim. — Desvio o olhar e engulo o nó na garganta. Áquila segura
as minhas mãos e as aperta. — Você o ama? — Ele pergunta em um esforço
tremendo.
— Esse tipo de amor só tem espaço para um. Pelo menos, para mim é
assim.
— Então é o quê? É medo de que o Rei te faça mais mal do que já fez? Se
for, posso te assegurar que o meu valor neste cenário mudou drasticamente desde
o nosso encontro no meu palacete. Atualmente, sou capaz de te oferecer bem
mais do que o Dominic. Você estará sob a minha proteção. Para sempre.
Ninguém poderá te tocar. E não precisa me prometer nada em troca.
Desvio o olhar e fecho o manto com firmeza enquanto dou um passo para
o lado, me distanciando um pouco do calor agradável que seu corpo emana.
— Ir com você é demonstrar que não confio na aliança que tenho com o
Dominic e eu confio que ele está mesmo tentando libertá-las nessas reuniões.
— Dominic não vai aceitar os termos do Rei e o Rei não vai aceitar as
contrapropostas dele.
Ele parece decidido e nenhuma objeção que levanto o abala. Respiro fundo
e o encaro com firmeza.
Dessa vez, tenho minhas dúvidas de que eu conseguiria reverter caso fique
em silêncio. Se eu não disser nada, desconfio que ele me dará as costas e
perderei essa oportunidade para sempre.
O guarda do Dominic não está em seu lugar e as sentinelas do palácio
fazem vista grossa enquanto atravessamos as penumbras do corredor até uma
passagem secreta atrás de uma tapeçaria. Então é assim que o Áquila invade o
meu quarto. Malandro.
Ele para de andar e me lança um olhar por sobre um dos ombros. Fico
apreensiva ao entender a mensagem para que eu me prepare.
Fico estática no lugar enquanto assimilo duas camas. Uma delas está vazia
enquanto a outra acomoda duas pessoas de forma apertada. Quero dar as costas e
voltar correndo pelo caminho que fizemos, mas jamais encontraria meu quarto
sem a ajuda do Áquila.
— Isabelle, você não passou por todas aquelas dificuldades para desistir
agora. Eu te treinei melhor do que isso. Engula o nervosismo e entre.
— Por que você está fazendo isso? — Aperto minhas mãos na frente do
corpo, tremendo da cabeça aos pés enquanto o Áquila praticamente me arrasta
para ficar na frente dele.
— Porque o que sinto por você não depende das suas atitudes e sim de
mim. — Ele afasta com delicadeza os cabelos do meu ombro, resfolegando de
leve as pontas dos dedos no meu pescoço.
Ludmila me encara com os olhos arregalados e meu pavor volta com força.
Só penso em fugir. Porém o Áquila firma as duas mãos nos meus ombros e me
mantém presa no lugar.
Minha irmã sempre foi delicada como uma flor e sempre puxei para mim a
missão de proteger o jardim onde ela estava plantada, mesmo que eu fosse mais
nova do que ela.
Não sei exatamente pelo que peço perdão. O fato de ter roubado o
Orientador e por consequência ter colocado um alvo nas costas dos meus irmãos.
Ou por não ter conseguido vir antes. Ou por não ter conseguido proteger o
Felipe. E quando penso nele, minha dor beira o insuportável.
Será que a minha irmã sabe o que aconteceu? Será que terei que contar a
ela como fracassei naquele dia? Não há nenhum treinamento que tenha me
preparado para contar que o nosso irmão morreu por minha causa.
Rebeca acorda e corre para se juntar a nós. Diferente da Ludmila, ela grita
e chora bem alto.
Áquila pode me pedir o que quiser depois disso que darei a ele. Mas
duvido que me pedirá algo em troca. Ele simplesmente desejou fazer isso por
mim.
O Guerreiro está com uma expressão desolada no rosto, algo que nunca vi
antes. Em nenhum momento, desde em que os nossos caminhos se cruzaram,
Áquila ficou tão sem vida. Nem mesmo quando dizemos adeus um ao outro após
o nosso primeiro beijo, sabendo que nunca mais nos veríamos, ele ficou dessa
forma.
Ludmila está mais calma, percebo pela sua respiração que voltou a ficar
controlada. Rebeca ainda parece imersa em uma dor tão profunda que é como se
fosse física.
Em silêncio, a abraço. Subo a mão por suas costas e beijo o topo da sua
cabeça enquanto procuro com o olhar pela Ludmila. Tenho medo de que se tirar
os meus olhos das minhas irmãs elas irão desaparecer.
— Vou tirar vocês daqui. — Minha irmã engole em seco e desvia o olhar.
— O que foi? — Ela não diz nada e apenas encara o lado oposto do quarto. —
Lud?
— Ela não pode falar. — Rebeca sussurra no meu colo e a afasto.
— Como assim a Lud não pode falar, Beca? — Preocupada, encaro minha
irmã mais nova.
Escuto o Áquila se movimentar atrás de mim. Olho por sobre o ombro para
ele e, se é possível, seus ombros alcançam o ápice da tensão.
Porém Ruan era um cortesão e teve a voz arrancada. Agora Ludmila está
sem voz.
— Por que você tem que esconder sua voz? — Franzo o cenho e Ludmila
encolhe os ombros. — Por Deus, Ludmila! O que foi que eles fizeram?
— Fica na sua. Não perguntei a você. — Aponto o dedo em riste para ele.
— Ludmila. O. Que. Aconteceu? — pergunto entredentes.
Não preciso ouvir mais nada para entender o que aconteceu. Aquele
crápula do Rakar vai me pagar por essa. Ele tentou mesmo transformar a minha
irmã em cortesã. Pelo visto, de todas as formas possíveis, porque Ludmila estava
escondendo a voz. Canalha!
— Mas não perdi, Isa. É isso que o príncipe está dizendo. Ele está nos
protegendo desde o início. — Ludmila sai em defesa do Áquila.
Áquila fica tenso e sei que está a um passo de vociferar bem nas minhas
fuças que estou extrapolando os limites, mas não estou nem aí para o que ele
pensa.
Solto uma risada sem humor. Áquila bom por visitá-la na prisão. Eu teria
cuspido na cara dele se fosse eu no lugar delas! É isso que qualquer um deles
merecia receber. Só uma criança mesmo para atribuir a ele essa característica,
ainda por cima sob tais condições.
Acho que ele fica ofendido com a minha reação, porque para de acenar em
concordância para a Rebeca e me encara bem chateado. O encaro de volta com
determinação. Esqueço até mesmo que minhas irmãs estão no mesmo aposento
que nós dois.
— Isso acaba hoje — digo com tanta veemência que se existisse um pingo
de sangue Drakar em minhas veias, era capaz de afastá-lo apenas com a força das
minhas palavras.
— Você precisa passar por mim para fazer a besteira que acredito que está
pensando em fazer.
Dou um passo para o lado e ele coloca o corpo na frente para me impedir
de sair. Abro um sorriso zombeteiro.
Não venho treinando com Oclan à toa. Não quebrei vários ossos, nem fui
parar na terra do inconsciente várias vezes, para nada. O Guerreiro não tem ideia
de que seu treinador foi tão inclemente comigo quanto foi com ele.
Talvez por não estar esperando minha reação, Áquila fica surpreso
quando uso meu cotovelo para acertar seu antebraço a fim de abrir passagem.
Por breves segundos, ele se contorce de dor, mas não perde muito tempo
tentando assimilar o que está acontecendo e parte para me conter novamente.
Piso no pé do Áquila ao mesmo tempo em que jogo a cabeça para trás com
força para acertá-lo. Ele se esquiva da cabeçada, mas leva o pisão de revirar os
olhos. Não que eu veja se isso aconteceu, mas seu braço perde uma fração da
força, o suficiente para que eu consiga empregar força contrária e sair do aperto
dele.
Ele agarra meu manto e me puxa com força para trás. Sou arremessada
contra a parede e dói, mas não tanto quanto era nos treinamentos, então não é
nada que surte um efeito capaz de me derrubar.
Não respondo e quando ele percebe que estou bem longe do alcance de ser
chamada de volta a razão, pragueja antes de lançar um golpe que, se pegasse,
certamente me apagaria imediatamente. Mas seguro seu braço e giro o corpo
para evitar o golpe.
Surpreso, Áquila me encara. Ele sabe que antes eu jamais teria conseguido
me livrar e então passa a me olhar por sob outro prisma. Eu estaria tão ferrada se
não viesse treinando religiosamente durante todo esse tempo, porque o Áquila
para de se segurar e agora solta toda a força em cima de mim.
— Pare...
Dou uma joelhada no centro das suas pernas e ele revira os olhos,
afrouxando o aperto nos meus cabelos. Me desvencilho sabendo que tenho
segundos para conseguir abrir a porta. Nem ouso sair, porque o Áquila não
levará tanto tempo assim para ficar em pé, mesmo que seja enxergando estrelas.
— Áquila — seguro suas mãos e percebo que estou gelada —, vou ser
baixa o suficiente para pedir em nome dos seus sentimentos por mim. Vá
embora!
Nos encaramos com afinco. Tudo o que o Áquila faz é cruzar os braços à
espera de que as sentinelas alcancem o quarto, ao invés de usar esse curto espaço
de tempo para fugir pela passagem secreta por onde entramos.
— Teimoso — resmungo.
Não sei do que ele está falando, mas não tenho tempo de perguntar ao que
se refere, porque os guardas nos alcançam.
Eles não têm nenhum problema de me informar a violação que estou
cometendo ao entrar no quarto das prisioneiras no meio da madrugada. Também
sou contida por conta disso. No Áquila, eles não encostam um dedo.
— Vai ficar tudo bem. — Garanto às minhas irmãs antes de ser arrastada.
Não tenho chance de ver a reação delas, mas espero que acreditem em
mim, mesmo que eu não saiba se estou dizendo a verdade. Talvez tudo piore,
embora eu espere sinceramente que não.
Sou jogada para dentro de uma sala e não me incomodo com isso, muito
menos me comovo com o Áquila repreendendo os guardas pela forma como
estão me tratando. Ele parece prestes a esmurrá-los, mas os guardas saem antes
que grandes estragos sejam feitos e ficamos sozinhos.
Áquila se vira para mim com brusquidão e puxa a mão em que apoio a
cabeça. Me desequilibro e reclamo ao me sentar ereta de novo. Ele nem pisca.
— Você acha que estou preocupado com o meu destino? — Seus olhos
âmbar me fitam com urgência. — Você não entende a dimensão do seu
significado para mim? No dia em que Oclan matou a minha ama, bem diante os
meus olhos, a fim de matar a minha humanidade com ela, eu escolhi deixar de
lado as emoções comuns em homens para me tornar a besta que você já viu de
perto. Vivi durante anos sem um peso sequer na consciência quanto às vidas que
eu tirava. Tudo o que eu enxergava era o meu dever. Até você cruzar o meu
caminho. Você se opunha às menores das regras, infernos!
Áquila passa as mãos pelos cabelos, desorientado. Fico mal, mas não a
ponto de dizer qualquer coisa e com isso incentivá-lo a continuar. Desnecessário,
porque ele continua ao perceber o meu silêncio e suaviza a expressão.
Desvio o olhar. Essa conversa quase me faz arrepender da escolha que fiz,
porque significa abrir mão de tudo... dele e não posso fraquejar. Preciso libertar a
Hortense e a cada segundo que passo ao lado do Áquila, é um segundo a mais em
que penso em gritar por ajuda ou, pior, desistir.
— Olhe para mim! — ele exige e atendo a sua ordem. — Você sorriu para
mim, e me fez sorrir de volta. Você me beijou, e me fez beijar você de volta.
Você me entregou o seu coração, e me fez entregar o meu para você de volta.
Você me amou, Isabelle, e me fez te amar de volta. Consegue perceber o que fez
comigo?
— Áquila, eu sinto muito quando te fizer sofrer ainda mais. — Minha voz
custa a sair, porque a emoção está me soterrando. — Quero que saiba que é
simplesmente porque eu não tenho opção.
Não espero nem mesmo que o Áquila tenha tempo de respirar e disparo a
falar na frente dele.
— Áquila está prestes a mentir, por isso me seguiu e fez o favor de sentar a
bunda nessa poltrona, se recusando a ir embora.
— Nunca pensei que diria isso, mas agradeço se conseguir livrá-la deste
incidente. — Áquila me ignora de forma deliberada e fixa a atenção no Dominic,
ao que tudo indica, com as esperanças renovadas.
— Ele não vai aceitar, Isabelle, porque se isso acontecer, irei declarar
guerra — Dominic diz de forma irrevogável. — Venha. — Ele me estende a
mão. — Você está descabelada. Parece que uma cavalaria passou por cima de
você.
— Eu não vou! Cansei dessa enrolação do Rei e não saio daqui até libertar
as minhas irmãs.
— Sou eu quem está do seu lado, Isa. — Ele segura minha mão.
Eu deveria ficar aliviada pelo desenrolar dos fatos, mas... por que tenho a
sensação de que as coisas estão prestes a mudar drasticamente? Não vou
comemorar antes da hora, porque, com o Rei, uma vitória nunca é, de fato, uma
vitória.
Não respondo de imediato, porque não sei o que será dito lá dentro. Não
sei quais serão os termos do Rei. Existem condições que não irei aceitar e é por
isso que fico em silêncio.
Ele respira fundo e volta a guiar os nossos passos. Os guardas nos dão
passagem e fico surpresa ao notar que apenas o Rei e o Áquila nos aguardam no
interior do aposento.
Não sei por que, mas pensei que haveria mais pessoas. Talvez o Rakar.
Mas acho bom que eles tenham tido o bom senso de manter aquele escroto longe
de mim, porque eu certamente perderia as estribeiras e avançaria com tudo nele.
— Como já foi discutido com o seu noivo — pela visão periférica noto
Dominic apertar os dedos —, os termos da soltura das minhas prisioneiras é o
filho de vocês.
O Rei abre um sorriso frio. Áquila cruza os braços às costas e evita o meu
olhar. Quanto ao Dominic...
É a primeira vez que o vejo tão fora de si. Agora sou capaz de entender de
onde vem seu cansaço após essas infindáveis reuniões. Se ele se comporta assim
em todas elas, faz todo sentido que fique esgotado ao fim do dia.
— Caso o primogênito de vocês seja uma menina, ela deverá se casar com
o futuro herdeiro de Yerus. — Relanceio um olhar para o Áquila. — Exatamente,
Viajante. Filho dele.
— Com quantos anos será feito o casamento, caso seja uma menina?
— Assim que a garota deixar a puberdade, deverá ser mandada para Yerus.
Então é isso o que está por detrás. Caso algo aconteça, e eu não puder ser a
mulher que irá gerar essas crianças, ainda assim Dominic estará preso a este
tratado.
Ele engole em seco e retira a mão. Pego o pergaminho e encaro o Rei com
intensidade. Rasgo o papel ao meio. Mesmo que o som quebre o silêncio, não é
capaz de encobrir o suspiro de choque que Dominic exala.
Rasgo mais uma vez e outra. E outra. E outra. Pego os picadinhos, fico em
pé e lanço-os na lareira.
— Não importa quem seja o rei de Yerus, irei declarar guerra se Vossa
Majestade ousar punir a minha noiva por visitar as irmãs e procurar meios de se
defender de falsas acusações. — Dominic se intromete na discussão.
Três cenários terríveis para me punir através dos dois, é o que parece.
Áquila deixar a linha de sucessão e Rakar assumir o trono. Ou uma guerra ser
deflagrada. Ou o Reino do Norte perder Lufstar. Porém, não é o desejo dele
seguir em frente com nada disso e ele sabe que não precisará, porque eu jamais
permitiria que qualquer um dos dois fosse punido por me defender.
Sei que vou fazer exatamente o que o Rei espera que eu faça. Ele não criou
toda aquela mentira em cima dos feitos do Áquila à toa. Nem redigiu um tratado
impossível de ser aceito pelo meu noivo por mero capricho. Cada passo que deu,
foi para me encurralar até não me restar outra opção a não ser me curvar perante
a vontade dele.
Oclan continua preso e Tina, Kaká e eu somos insuficientes para lidar com
os perigos que me cercam neste palácio, onde pessoas como a Rainha, Rakar e
Helena possuem poder. Além disso, ficarei à disposição do Rei, sendo obrigada a
acatar os caprichos dele, uma vez que não terei ninguém forte por detrás de mim.
Não terei nenhum rei, rainha, príncipe ou princesa de outro reinado que
possa usar seus interesses políticos em meu benefício, em minha proteção. Nem
mesmo os rebeldes. Quanto a população que me apoia, no máximo pode se
revoltar caso eu seja morta. Mas daí será tarde demais para mim.
Além disso, o Reino do Norte não terá nenhum tipo de vantagem a mais,
uma vez que irá perder o último descendente dos Tupper que os apoia. Quanto ao
Guerreiro, perderá o trunfo de um dia se voltar contra o Rei ao ameaçar abdicar
do seu direito ao trono.
Acontece que eu sei o mesmo que o Rei. Uma aliança entre os Salonsk e o
Reino do Norte não apaziguará os ânimos da tensão que existe de que uma
guerra pode ser deflagrada a qualquer momento. A aliança entre o último Tupper
e qualquer herdeiro dos Salonsk, sim. Portanto, Rakar jamais será rei, uma vez
que vai se casar com uma princesa do Reino do Norte. Quanto ao que o Rei está
armando para o Áquila... bem, o Guerreiro jamais poderá fugir do destino de
virar rei com essa jogada do pai dele a qual irei me curvar. Não enquanto
respirar.
— Case-se comigo.
Dominic deixa a sala tempestivamente. Quanto ao Áquila, ele me lança um
olhar que arrepia até mesmo os cabelos da minha nuca. Eu não o deixei com
raiva. Eu o deixei colérico! E nunca, em toda a nossa história, Áquila me olhou
da forma como está me olhando agora.
— Uma maldita jogada política. É por essa razão que você deseja se casar
comigo, Isabelle?
Volto a atenção para o Rei, que noto me observar com bastante interesse.
Desconfio que durante todo esse tempo seus olhos sempre estiveram em mim.
Meu coração bate tão rápido que a sensação que tenho é a de que estou prestes a
cuspi-lo pela boca. Porém, graças a todos os ensinamentos da Magnólia, no
exterior exalo calma, controle e confiança.
Por um segundo, penso que é apenas isso, mas então percebo que a falta de
exigências por si só é uma armadilha.
O Rei não pede nada além porque não pretende me manter por perto por
muito tempo. Aposto que a ideia é me deixar viva apenas o suficiente para
aplacar os ânimos de uma possível guerra e então ele lidará comigo novamente.
Ótimo! Meu tempo de vida, que já era curto, acaba de ser reduzido pela
metade. Terei que achar a maldita localização da Hortense o quanto antes, se
quiser libertá-la ao mesmo passo em que diminuo a duração das mãos dessa
serpente inescrupulosa ao redor do meu pescoço.
— Como Vossa Alteza pode ver, meus termos são poucos e estão
explicados aí de forma minuciosa. Porém, estou disposto a gastar minhas horas
para tratarmos linha por linha, caso seja do seu desejo. — Ergo a vista para ele,
que abre ainda mais o sorriso ao notar a minha insatisfação de virar um fantoche
em suas mãos. Estendo o pergaminho de volta.
— Quero a Rainha, Helena e Rakar longe de mim e das pessoas que
vieram comigo.
Ele está concordando fácil demais e isso, mais do que qualquer outra
atitude, me aterroriza! Não é um palpite e sim uma certeza. Assim que eu deixar
de representar uma ameaça de guerra, ele irá me matar. Acontece que antes disso
pretendo partir dessa para melhor, já que é a única opção que me resta ao libertar
a alma da Hortense. A minha alma é que não irá assumir o lugar da dela! Nem a
pau!
— Também desejo que Helena seja punida por ter tirado a vida do meu
irmão.
— Negado. — Uma única palavra, mas a força com que ele profere e a
rapidez, deixam claro que ele não irá se explicar e menos ainda está aberto para
negociação. O Rei me encara de forma fria. — Mais alguma exigência, Viajante?
— O tom de voz dele gela a minha nuca.
— Pois não?
Os dois assinam e então eu. Com furor, entrego tudo de volta para o Rei.
Por último a assinatura dele preenche o papel, selando o nosso acordo.
Sempre que ele se sente mal, o contato com a natureza o ajuda. Dessa vez,
fui a responsável pelo mal-estar dele. Acho que nunca serei capaz de amenizar o
ódio que provavelmente o domina, mas preciso fazer alguma coisa por respeito a
tudo o que ele já fez por mim.
— Perdão, Dominic.
— Você sabe? — Ele se aproxima tanto que, por um segundo, penso que
irá segurar meus braços e me chacoalhar, mas Dominic não encosta um dedo
sequer em mim. — Eu te considerei uma amiga, Isabelle. E antes que diga
qualquer coisa, sim, seria do meu benefício me casar com a última descendente
dos Tupper, mas não foi por questões políticas que saí do Norte para ir até
Lufstar te encontrar. Eu fui porque você precisava de ajuda e eu precisava te
conhecer na esperança de que talvez você pudesse me querer como um parceiro.
Não uma união fria. Um parceiro. Mas o que você fez desde o instante em que
pisamos neste palácio? — Ele respira fundo e engulo em seco. — Como o
imbecil que sou, continuei te dando a minha lealdade na esperança de que você
me desse a sua em troca, mas veja o que eu ganhei!
— Foi justamente por conta da lealdade que tenho por você que recusei
aquele acordo. — O interrompo em um rompante. — Eu não podia concordar
com aquelas exigências, Dominic. Ele queria os seus herdeiros a todo custo!
Dominic solta uma risada sem humor e desvia a atenção para o chão. Ele
fita o nada por alguns instantes. Quanto a mim, fico paralisada com o coração
lutando forte contra o meu peito.
— Fui paciente por entender que não fiz parte do seu passado e que, para
fazer parte do seu futuro, as questões pendentes que você tinha com o Áquila
precisavam ser encerradas. Em momento algum me senti traído. Nem mesmo ao
te encontrar hoje de manhã com roupas de dormir sentada ao lado dele. Você
ainda não era minha, a não ser no título. — Encolho os ombros. — Porém o que
você acabou de fazer na frente do Rei? — Ele aponta furioso na direção do
palácio. — Você pisou em cima de tudo o que tanto a minha tia, quanto eu,
fizemos por você visando benefício próprio! — Dominic termina gritando.
— Sei que parece que fui egoísta, mas não pensei em mim — respondo
com calma a fim de aplacar a fúria dele. — Eu pensei em você...
Nem penso no que faço, apenas reajo. Desfiro um tapa no rosto dele, que
me encara com os olhos arregalados ao levar a mão para a pele. Imagino que a
bochecha dele deve estar ardendo absurdamente, porque não medi força.
— Eu fiz por você, seu imbecil! — Agora sou eu quem grita ao cerrar os
punhos ao lado do corpo. — O Rei não quer o meu primogênito. Ele quer o
primogênito do Norte para enfraquecer o seu reinado e estava disposto a ir até a
última instância para usar a minha condição desfavorável com Yerus para tirar
vantagem de você, o futuro rei daquele reino. Ele não ia sossegar em ter o seu
herdeiro, não meu, mas seu — aperto o indicador contra o peito dele —, ou me
tirar de você a qualquer custo para que eu me casasse com o Áquila. Aquele
dragão traiçoeiro não iria permitir, sob hipótese alguma, que o futuro rei do
Norte fosse mais forte do que ele e deixou isso claro ao usar Lufstar como
punição por algo que era minha culpa! Como se todo esse absurdo não bastasse,
eu te conheço bem o suficiente para juntar os pontos e ter certeza absoluta de que
todas aquelas malditas reuniões, eram você ganhando tempo enquanto ponderava
se abria mão do seu primogênito por minha causa ou não! — Dou um passo para
frente e sou eu quem o encara com as narinas dilatadas. — Me odeie, Dominic.
Me transforme em inimiga, mas nunca me peça para aceitar que o seu futuro
filho seja condenado por minha causa ou que Lufstar caia nas mãos daquele
cretino. Eu gosto de você, caramba!
O príncipe aperta com mais força, mas me recuso a olhá-lo. Eu mereço, sei
que mereço tudo o que Dominic jogou para cima de mim, mas estou magoada ao
extremo com ele. Ter meus defeitos jogados na minha cara por quem não dou a
mínima é uma coisa. Ser acusada por uma pessoa com quem me importo
horrores é outra completamente diferente. E isso dói!
— Isa, eu não sei o que pensar. — Ele me solta e enterra as mãos nos
cabelos. — Você o ama e...
— Isabelle...
— Você também não tem noção do que sou capaz de fazer por quem prezo.
Mesmo destroçando minhas esperanças, e pisando nos meus sentimentos, você
continua no meu topo de pessoas prediletas, Isabelle.
Estou com um medo enorme de que o Dominic revele para mais alguém
que sei o que está acontecendo com a Hortense. Enquanto somos apenas eu, ele e
o Kaká detendo essa informação, é fácil dar seguimento ao meu plano. Mas se
Tina ou, pior, o Áquila descobrir...
Ele solta uma risada sem querer, o que alivia a tensão entre nós dois.
— Tenho certeza de que a minha tia irá concordar comigo e solicitará uma
aliança com Yerus através de você em retorno por ter te ajudado no passado.
Lufstar e Yerus, enfim, terão a tão sonhada conciliação.
— Não sei o que quis dizer com “sambar”, mas temo que não, Isabelle. O
melhor cenário para a minha tia é ter um acordo com um monarca de Yerus.
Bem, ela terá com a futura rainha deles, portanto, creio que a dívida será quitada,
uma vez que você se afeiçoou a ela.
Sorrio, mas fico em silêncio, porque... não. O que sinto pelo Áquila não é
uma questão de ordem de quem veio primeiro. Ele poderia ter sido o último a
cruzar o meu caminho que mesmo assim meu coração seria dele.
Mesmo que o Áquila não me quisesse — e agora corro sérios riscos de que
me rejeite para valer — ainda assim eu iria me apaixonar por ele. É
simplesmente uma força inevitável que não adianta lutar contra.
Está inteiramente nas mãos do Áquila. Não nas minhas. Se ele me rejeitar,
vai doer, mas vou entender. Será merecido. Mas se ele me quiser... sempre fui
dele, não importa as circunstâncias.
Acho que ganhei minha resposta. Ele me odeia por rejeitá-lo vez após vez
para, no fim, cair na trama do pai dele. Se os nossos papéis se invertessem, eu
também ficaria magoada por querer ficar com ele por amor e ele só aceitar ficar
comigo por causa de fins políticos.
Agora sim entendo o dilema que a Isabelle enfrentou em relação a nós dois
no passado. Até então, só fui capaz de nutrir apenas um tipo de sentimento por
ela. No entanto, depois de ser rejeitado não uma, mas diversas vezes, para
naquela maldita reunião ouvi-la me pedir em casamento por questões políticas?
Quero arrancar com os dentes o que sinto por ela do meu peito! Quero me
livrar desse maldito sentimento que intoxica meu coração e me faz renunciar à
minha honra como se eu fosse um tolo apaixonado! Maldito que sou!
Pela primeira vez tenho vontade de voltar a ser a besta que sempre fui até a
Isabelle cruzar o meu caminho. Não existia essa questão de sentir. Tudo que eu
tinha eram necessidades e satisfazê-las me bastava.
— Sei que a minha atitude foi horrível... Fazer aquela jogada política logo
depois de tudo o que você me disse mais cedo... Depois de tudo o que fez por
mim. Você cuidou das minhas irmãs e sei que pode parecer que te menosprezei.
Acredite em mim, eu valorizo cada pequeno gesto seu. — Ela prensa os lábios
em aflição à espera de uma resposta. Fico em silêncio. Seus ombros desabam,
mas seus olhos nem por um segundo desviam dos meus. — Independentemente
de qualquer coisa, Áquila, preciso deixar claro que, desde que me apaixonei por
você, descobri que se não for para ser você, não será mais ninguém. Não há
outro homem. Nunca ouve. O meu coração não vale muita coisa também, mas é
seu. — Isabelle me encara fundo nos olhos. Ela sequer pisca, porque quer que eu
acredite em cada palavra que me diz.
Ela é minha e eu sou dela. É isso o que a trouxe de volta, mais uma vez.
Sem nenhum esforço, ergo-a do chão e levanto seu vestido para que
envolva as pernas ao redor da minha cintura com facilidade. Suas coxas me
apertam em um agarre firme enquanto as mãos pequenas dela molduram meu
rosto e seus lábios cálidos descem de encontro aos meus. Espalmo as mãos no
traseiro dela e puxo-a para que se agarre ainda mais em mim, firmando seu peso
completamente.
— Eu amo você com cada fibra do meu ser, Guerreiro — ela sussurra
contra a minha boca como se quisesse que eu bebesse cada sílaba.
As palavras dela até me geram um certo tipo de conforto, mas ainda estou
carregado de uma raiva abrasadora, cuja responsável por isso é a mulher
agarrada a mim. O Rei tramou para que a Isabelle fosse minha no papel e ela
aceitou cair nos planos dele.
Por conta disso, estou furioso e preciso descarregar essa fúria de qualquer
forma. Acontece que, agora que a Isabelle apareceu na minha frente, sei que não
será com treinamentos castigando meu corpo, correndo o risco de voltar a ser a
besta que eu era. Isabelle vai descobrir o que significa ser minha no papel e no
quarto, porque é assim que escolho extravasar esse acúmulo de energia. Também
não dou a mínima se ela ainda tiver pouca experiência na cama.
Volto para dentro da minha torre e subo as escadas até o meu quarto. As
coxas dela apertam a minha cintura o tempo todo, talvez porque a Isabelle pense
que será como foi da última vez em que nos deitamos. Ela está enganada e, assim
que entramos, mostro isso ao descê-la para o chão e imediatamente a prensá-la
com o meu corpo rígido contra a porta fechada.
Levo as mãos até a gola da minha camisa e a retiro por cima. Isabelle arfa
de leve quando meu peitoral fica nu, exposto à sua frente.
Com dedos firmes, nada trêmula, nada apreensiva, ela percorre cada sulco
e elevação do meu corpo. Faço menção de agarrar seus pulsos e impedi-la de me
tocar. No entanto, paro ao toque das pontas dos seus dedos dedilhando meu
abdômen, exatamente onde uma vez esteve uma cicatriz que conquistei em
Salavinder e que agora não existe mais.
— Como? — Ela ergue a cabeça para me encarar nos olhos, sem parar de
me tocar.
Prenso-a dessa vez contra a parede, sem permitir qualquer espaço entre os
nossos corpos dominados pela luxúria. Comecei querendo apenas extravasar a
raiva que sinto dela, no entanto a Isabelle conseguiu somar a isso uma
embriaguez do desejo que sinto por ela há anos.
Remexo o quadril para que sinta minha ereção e perceba o quanto estou
pronto para reivindicá-la para mim de uma vez por todas. Ela arfa gostoso na
minha boca em resposta, o que por sua vez me ensandece. Percorro minhas mãos
calejadas pela pele macia com toque de pêssego dela até encontrar a peça íntima
que a envolve.
— Eu estou furioso com você! E não quero uma maldita explicação agora.
O que quero é me enterrar fundo em você e te mostrar o que o seu pedido
implica.
Isabelle arregala os olhos, o que por sua vez me faz ter certeza de que
continua inexperiente. Aposto a minha honra que a única vez em que ela se
deitou com um homem, esse homem era eu e isso há um tempo considerável.
— Hã?
Dou as costas a ela e juro que sou capaz de sentir o peso do seu olhar me
acompanhando a cada passo que dou. Sento-me no sofá e abro as pernas.
Sem nem pensar, Isabelle sai do seu estado de inércia e caminha até mim.
Ela para em pé à minha frente sem saber o que fazer em seguida. Agarro sua
cintura fina para que se aproxime ainda mais do meu colo.
— Aquela posição dá certo. — Minha voz arranha minha garganta
enquanto meus olhos, pesados de prazer, cativam os dela.
Deslizo a peça lentamente para baixo e ela permite com facilidade que eu a
retire. Ela até mesmo me ajuda a livrá-la da peça ao erguer uma perna e então a
outra. Isabelle leva as mãos aos botões do vestido e faz menção de desabotoá-lo.
Seguro seus pulsos no lugar e a impeço de seguir adiante.
Tomo alguns segundos para observar a minha deusa sensual sentada ainda
de vestido sobre o meu colo. Aperto os dedos contra as palmas das minhas mãos
para controlar a urgência de tomá-la de forma abrupta e, ao invés, ajeito a saia do
seu vestido ao nosso redor.
Estou a um fio de me entregar a selvageria que luta para me dominar, então
vê-la nua não é uma opção. Isabelle não está pronta para me receber dessa forma.
Espalmo as mãos em seu traseiro e a puxo para mais perto para senti-la,
por enquanto, apenas por sobre o pano da minha calça. Ela perde completamente
a mansidão, uma vez que seus lábios molhados descem ao encontro da pele
quente do meu pescoço e distribuem beijos sensuais que me colocam em um
completo estado de agonia.
Isabelle me devora com a mesma fome que sinto por ela, no entanto sei
que comigo será completamente diferente da forma como acontece com ela,
então luto contra a libertação do meu eu selvagem. Sempre quando assumo a
besta, fico fora de controle. No campo de batalha, mato sem qualquer pingo de
misericórdia. Na cama, sei que esse meu lado irá machucá-la, então me seguro
até que ela fique pronta.
Alheia acerca da minha luta interna para segurar a minha besta no lugar,
Isabelle suga a pele do meu pescoço e então mordisca o meu ombro. Paro de
pensar em qualquer coisa e, em reação, enterro os dedos em sua cintura delgada.
Remexo o quadril dela sobre o meu membro rígido em busca do alívio dela para
que eu possa assumir completamente o maldito controle dessa nossa situação
angustiante.
Isabelle volta a boca para a minha, mordisca meu lábio inferior e o puxa de
leve.
Capturo seus lábios com ainda mais força e, por muito pouco, não solto a
minha fera sobre ela. Recobro uma parcela miserável do meu autocontrole e
afasto-a de leve. A encaro fundo nos olhos e com tanta seriedade que o misto de
diversão dela evapora completamente. Creio que finalmente a Isabelle se deu
conta de que está brincando com uma fera que está há um passo de virar aquele
monstro que uma vez a fez vomitar até as tripas depois de uma luta.
— Áquila, os seus olhos... — ela sussurra. — Eles estão duros como no dia
em que...
Maldita seja essa garota inconsequente que não foge nem diante de um
evidente perigo!
— Vou te dizer o que vai acontecer se você ficar aqui. — Ela assente com
um misto de apreensão, mas também com muito desejo. — Você vai ditar o ritmo
no início. Assim que encontrar o seu alívio, estará pronta para me receber da
forma como desejo que me receba. A partir daí o controle será todo meu. Todo.
Meu. — Friso para deixar claro essa parte.
A resposta que recebo é um gemido feminino tão sensual que minha ereção
enrijece ainda mais de uma forma que beira o insuportável.
Mordisco seu lábio inferior em resposta de que até agora está tudo bem.
Ainda sou eu. Logo fico livre e ela posiciona a abertura úmida sobre a minha
ponta inchada.
O tempo todo luto contra a besta para deixar a Isabelle o mais pronta o
possível e isso é todo o incentivo que ela precisa para seguir adiante. Logo a
deusa sensual da minha Belle desce movimentando languidamente os quadris,
me fazendo prensar os olhos com força enquanto solto um grunhido alto diante o
delírio que é estar enterrado em seu corpo com suas paredes internas me
apertando de uma maneira insanamente prazerosa.
Não sei se é algo no meu comentário, ou se tem relação com o fato de que
estamos embriagados de desejo acumulado, ou se a consciência de que agora ela
é minha e eu sou dela de forma definitiva. O que posso afirmar com certeza é
que a nossa conexão supera a carnalidade, atingindo algo transcendental. E é
com ela nos conduzindo.
Retiro-a de cima do meu colo e a guio para a cama. Isabelle faz menção se
deitar de costas, no entanto não permito que siga adiante e puxo de leve seu
braço.
Ela engole em seco e posso jurar que até mesmo o ar que nos cerca está
mais tenso. No entanto, Isabelle para no lugar e se mantém quieta ao me assistir
despi-la até que fique completamente nua diante de mim. Ao som do seu vestido
caindo ao nosso redor, ela me lança um olhar ansioso por debaixo dos cílios
espessos, um pedido claro por orientação.
Sou muito inexperiente, o que por sua vez me deixa sem parâmetros, mas
acho que a forma como ficamos, quando o Áquila assumiu o controle
completamente, foi bem animalesco. A comparação tosca que consigo fazer é
como se o meu corpo fosse um bife suculento dando bobeira para um leão voraz.
Mas eu gostei de ser o jantar dele.
Ele está me olhando com cara de desejo outra vez. Ah, não!
Penso em fingir que dormi, mas é óbvio que fechar os olhos de supetão e
forçar uma respiração mais calma não vai ajudar a minha causa. Desesperada,
procuro por outra forma de distração.
Uma conversa. Isso. Preciso iniciar uma conversa, porque se ele quiser, eu
quero, mas posso morrer, então melhor não. Em um mês meu sistema nervoso
volta a funcionar perfeitamente e então será possível outra sessão de... prazer?
E eu amo qualquer parte dele, desde as mais lindas até as mais feias, mas
não quero tocar nesse assunto. Posso ser inexperiente na cama com um homem,
mas não sou iludida de acreditar que isso que fizemos dispensa uma conversa
para resolvermos as nossas pendências.
Talvez o Guerreiro pense que sim, pelo menos por ora, e por isso ainda não
levantou o assunto. Acontece que, para mim, não termos essa conversa é a
melhor coisa que pode me acontecer, uma vez que tenho algo que quero
continuar escondendo dele.
Pensando bem, foi uma péssima ideia tentar distraí-lo com uma conversa.
— Só não tire mais nada — digo e logo em seguida fecho os olhos. Fingir
dormir era a melhor estratégia e a aplico agora.
Os lábios dele tocam serenamente a ruguinha que sei que surgiu na minha
testa por causa do frenesi dos meus pensamentos. Simples assim, Áquila
consegue me distrair do medo que sinto de uma conversa entre nós e volto a abrir
meus olhos, porque sei que é o que ele espera que eu faça.
Quando quase pego no sono, sinto a parte íntima dele ganhar vida de novo.
Imediatamente recordo da nossa primeira vez. Foi nessa posição que o meu
Áquila me amou. Quanto a hoje, até então, os nossos corpos foram apenas um
meio para termos prazer.
Lembro também que, naquela época, eu gostei de ter dado a ele a minha
virgindade. Não foi tão doloroso quanto pensei que seria. Mas nada — nada
mesmo! — se compara ao que foi esse homem animalesco hoje do início até...
não sei se ele chegou ao fim.
Sinto vontade de rir ao ouvi-lo imitar o meu jeito de falar, mas quando ele
se remexe, o que faço mesmo é soltar um gemido misturado a lamúria.
— Eu te machuquei, Belle?
— Não.
— Te assustei então?
— Digamos que foi uma surpresa assustadoramente prazerosa.
— Não gostei das suas respostas ambíguas e quero deixar uma nova
impressão em você. Prometo que meus ânimos acalmaram, portanto vou ser
romântico dessa vez.
Não tenho chances de pensar a respeito, porque o meu Áquila, não aquela
fera descontrolada, beija os meus lábios languidamente. Ele introduz a língua na
minha boca e me saboreia como se eu fosse um manjar dos deuses.
Arfo quando a mão calejada dele toca a pele sensível do meu seio desnudo.
É uma das sensações mais sensuais que já vivenciei, ter as partes brutas dele
tocando as minhas sensíveis.
Sem pressa, ele desliza pelo meu corpo, distribuindo uma trilha de beijos
com os lábios e a língua pelo caminho. O gesto em si é sensual, mas a forma
como o Áquila faz é mais do que isso. Seus toques em mim são de reverência.
Não sinto como se fosse um corpo para ele obter e dar prazer, mas sim que ele
me enxerga no meu corpo, eu, Isabelle, e então o venera.
Não estamos consumidos pela chama da paixão. Ela já foi saciada pelo
meu lado inconsequente e o lado perigoso dele. As nossas partes que reivindicam
o controle, e ditam os nossos toques e reações, é a pureza dos nossos sentimentos
mais íntimos que nenhuma situação, ou condição, foi capaz de quebrar até hoje.
Compreendo, de forma ainda mais clara, que amo esse homem e que ele
me ama. Nossos corpos expressam isso um ao outro, em uma comunicação
própria ao nos apalparmos e beijarmos apreciando cada pequeno gesto, o que por
sua vez gera um prazer ímpar.
Seguro o rosto do meu Áquila entre as minhas mãos e o encaro com tanto
amor e carinho que sei ser impossível ele não sentir a minha veneração de volta.
— Céus! Você já está pronta para me receber por inteiro mais uma vez.
Seus lábios encontram os meus, mas ele não fecha os olhos. Também não
fecho os meus. Jamais imaginei que Áquila e eu pudéssemos ter um momento
tão... dócil e romântico. Mas é assim que me sinto nos braços dele e aposto que o
inverso também é verdadeiro.
Áquila retarda o nosso prazer, que demanda ser liberto, ao entrar e sair de
dentro de mim repetidas vezes com uma languidez de ensandecer uma mulher.
Nunca perdemos o contato visual. Nossos lábios também não se afastam nem por
um milímetro que seja da pele um do outro.
Não verbalizo mais nada, mas o amo com tudo o que há em mim e recebo
seu amor com tudo o que há nele. Sem ressalvas. Quero tudo. As partes boas e
ruins da personalidade dele. E entrego tudo também. As partes boas e ruins de
quem sou.
— Vamos juntos.
Outra coisa que também chocou o meu irmão, e que pouco entendi, é que
há regulagem da temperatura porque eles detêm o conhecimento de condução da
energia térmica, mas desconhecem a energia elétrica, por isso não há aparelhos
eletrônicos. Segundo o meu irmão, com o que eles já têm, seria possível
construir um meio de obter energia elétrica.
— Onde você prefere que sejam os nossos aposentos? Aqui, nesta torre
antiga, ou na parte mais nobre do palácio?
Deixo o sabão cair no chão. Entro em desespero por ter baixado a guarda e
não pensado em uma forma de fugir de perguntas como essa. Caramba! Eu só
pensei em como esconder os meus planos dele em uma possível conversa de
acerto de contas.
A pergunta do Áquila implica que, para ele, sexo foi mesmo um acerto de
contas e nada de conversa. Bem, fui pega desprevenida, porque eu não esperava
mesmo por essa.
— E quanto a decoração?
— Eu tinha uma colega na escola que não morava na favela e sim em uma
região um pouco mais nobre da cidade. Certo dia, ela me convidou para passar
uma tarde na casa dela e fiquei bem impressionada com o branco. Tapete branco.
Cortinas brancas... A gente nunca teria aquilo e pensei como seria legal, porque a
casa dela parecia mais iluminada. Fayrehal também me despertava essa
sensação. Ah, e na casa dessa minha colega, também tinha um cheirinho.
— Cheirinho?
— Branco, luz e perfume. — Ele espalma uma mão molhada no meu rosto
e beija meus lábios delicadamente. — É o que teremos.
Meu coração aperta e me falta ar nos pulmões. Acho que meus olhos se
enchem de lágrimas, porque estão ardendo absurdamente.
Não sei se ele está caindo, então sorrio e passo meus braços por sobre seus
ombros, unindo meus pulsos atrás da cabeça dele.
— Está certo que no começo eles eram vingativos, mas todos os dias você
estava presente neles. Em um dado momento as coisas mudaram e desde então
passei a sonhar acordada com você.
— Como é mesmo uma palavra que você me ensinou uma vez? — Ele
para um segundo, puxando na memória. — Malandra? — Assinto, sorrindo. —
Malandrinha.
Nós dois rimos, mas paro subitamente. Respiro fundo e deixo a gracinha
de lado para ficar séria.
— Para mim também não, Belle. — Ele desliza o dedo na lateral do meu
rosto. — Vou pedir para trazerem algo para comermos, Tantur para recuperarmos
a energia, e um novo vestido para você. Então irei te acompanhar até a outra
parte do palácio, porque estamos bem.
— Não. Isso não. A não ser que você queira me carregar no colo pelo resto
do dia.
Depois do acordo entre a Isabelle e o Rei, onde ela me intimou a ser uma
das testemunhas, não consigo evitar olhar o tempo todo para os lados à espera de
que algum guarda de Yerus me leve para fazer companhia ao meu amigo nas
masmorras.
Pelos deuses! Oclan foi preso mesmo quando contávamos com a proteção
do Dominic!
Parte de mim tenta se convencer de que a Isabelle não tomou essa atitude
por questões egoístas, pensando apenas nas irmãs dela e, principalmente, para
ficar com o Áquila, mas... Maldição cabeluda! Já faz horas que ela deixou todas
as atividades em suspenso para ficar enfurnada na torre dele.
Pelos deuses! As irmãs dela já estão sob o nosso domínio e ainda nem sinal
das fuças da Isabelle.
Não sou a única apreensiva com essas questões. Até mesmo o Carlos
Eduardo parece inseguro. Como ultimamente passei a conhecê-lo muito bem,
consigo identificar o esforço que faz para não transparecer nervosismo para suas
irmãs recém-libertas.
— Kaká? — Ludmila ergue as vistas para ele. A mão dela para de deslizar
suavemente sobre os cabelos da menor, que acabou de pegar no sono em seu
colo.
Ele sai de perto da janela ao lado da que estou, também vigiando o pátio na
esperança de qualquer vislumbre da Isabelle, e se senta perto da irmã. Meu
estômago fervilha ao ver a cara de tolo com que ele olha para ela. Viro de costas
para não vê-los juntos e me concentro lá fora, preparada para notar qualquer
vestígio da Isa.
— Comigo tudo bem, mas não admito essa sua grosseria com elas ou...
— Ela está certa, meu irmão. — A garota me lança um olhar doce que só
serve para fomentar ainda mais a raiva que controla o meu sistema. — O que
aconteceu, Guerreira Tina?
— Você vai preferir a versão floreada do seu irmão. A única coisa que vou
te alertar é quanto o seguinte, não toque no assunto “Felipe” com a Isabelle. Nós
atravessamos o inferno com ela se deteriorando em culpa. E eu sei que até hoje a
Isa se responsabiliza pelo que aconteceu a ele. E... — Respiro fundo. — Só
pergunte ao Carlos Eduardo o que você precisa saber a respeito do irmão de
vocês, mas poupe a Isabelle.
— Se você puder dizer a Isa que não a culpa, seria bom, Lud — Carlos
Eduardo diz. — Foram mesmo tempos sombrios e se eu, que sou
emocionalmente estável, ainda não me recuperei totalmente, pode apostar que a
Isabelle também não.
Começo a me sentir mal pelo meu jeito troglodita de ser. Muito diferente
dela, um dia o culpei por achá-lo covarde. Mesmo que tudo tenha mudado entre
nós, não sei se consigo ser um conforto para ele como ela está se mostrando ser.
— Ei! — Isabelle chama a nossa atenção. — Tudo bem aí com vocês dois?
Não sou capaz de ficar um segundo a mais na presença deles. Sendo muito
honesta comigo mesma, a minha vontade é de pegar a Isabelle e o Carlos
Eduardo pelo braço e tirá-los do alcance de todos eles.
Essa minha explosão do nada é ridícula até mesmo para mim. Em minha
defesa, nunca me senti tão possessiva assim. Tami, Carlos Eduardo e Isabelle me
afloram esse sentimento. A sensação que tenho é que se eu não agarrá-los,
alguém os tirará de mim e ficarei sozinha.
— Você odeia a minha irmã? O ser mais doce que já conheci e que você
nunca viu na vida até hoje? Qual é a porra do seu problema, Tina?!
E é o que eu faria mesmo, se ele não saísse correndo para o quarto depois
de me atacar com essas palavras carinhosas.
— É claro que quero! — Ela quase pula no lugar. — Foi por isso que a Isa
mandou me chamar? Ela te pediu para começar a me treinar?
— Não. — Balanço a cabeça para os lados. — Eu não sabia que a Isa tinha
mandado te chamar e ela não sabe que estou me oferecendo para te ensinar.
O sorriso brilhante que Tami abre ilumina cada célula de escuridão que
existe no meu peito. Ela não precisa dizer que me ama como a Isa e o Carlos
disseram. Minha irmã e eu nos entendemos nessa comunicação não verbal.
Tami assente e até começa a entrar, mas para e volta com tudo para mim.
Minha irmã me abraça apertado e cantarola baixinho no meu ouvido uma canção
que a nossa mãe costumava cantar.
Ouço vários sons de beijos e imagino que seja a Isa afogando a Tami de
baba. Ela sempre teve uma ligação especial com a minha irmã. Isso costumava
me enfurecer na época de Fayrehal, mas superei.
— Ah, meu Deus! Seu cabelo é tão lindo quanto o da sua irmã. Ouvi falar
muito das suas travessuras com a Isa em Fayrehal e estava doida para te
conhecer, doce Tami. — Ouço a Ludmila dizer e, depois dessa, decido parar de
ficar à espreita e dar o fora o quanto antes ou posso adoecer.
A princípio, visitar o Oclan era apenas uma desculpa para a minha irmã,
porém decido ir mesmo ao encontro daquela besta. Preciso de um pouco do lado
sombrio da vida. Nada melhor do que as masmorras para equilibrar essa dose
açucarada que foi derramada sobre a minha cabeça nos últimos minutos sem que
eu pedisse!
— Teve uma expressão que a Isa me ensinou uma vez e que serve muito
bem para você. — Ele ergue uma sobrancelha, prevendo o pior. — Me mira, mas
me erra, Oclan! — Aproximo-me das grades e escoro o ombro em uma delas. —
Vim aqui para te atualizar dos últimos acontecimentos. A questão é a seguinte, se
a gente não planejar a sua fuga, corro sérios riscos de virar sua companheira de
cela.
— O que aconteceu?
— O que aconteceu é que você vai querer chutar a minha bunda, mas estou
falando sério e pouco me importo com a sua reação. A Isabelle teve umas
decisões duvidosas e precisamos conversar sobre isso para entendermos, juntos,
o que está acontecendo. — No mesmo instante, o Guerreiro fecha o semblante e
se afasta das grades, me dando as costas completamente. — Oclan, ela desfez o
noivado com o Dominic e aceitou se casar com o Áquila em troca da liberdade
das irmãs.
— O que será preciso para que você aprenda que na nossa posição nós não
questionamos? Se a Isabelle quisesse fazer de você uma conselheira é o que ela
teria feito! Porém, o conselheiro dela é o irmão. Aceite este fato de uma vez por
todas, Guerreira, e pare de perturbar a minha paz.
Ele se senta no fim da cela. Só porque está preso é que sua atitude é essa.
Se a situação fosse diferente, ele já teria esfregado a minha cara na lama e me
dado uma surra.
Cruzo os braços na altura do peito. O bom dele estar preso é que não tem
como fugir de mim e naturalmente me aproveito disso.
— E o que você me diz dela ter feito um acordo com o Rei para ter as
irmãs de volta, mas sequer tratou a sua soltura?
— Fui uma das testemunhas desse acordo e não tinha uma única linha te
mencionando.
— A impeça de quê?
— Exatamente!
Áquila volta de forma sorrateira para a torre dele antes do sol raiar. Mal
fico sozinha nos meus aposentos e Tina surge vinda de lugar nenhum. Com ela
praticamente cheirando o meu cangote, me arrumo para ir ao encontro da
Ludmila.
Não sei o que aconteceu com a Guerreira, mas ultimamente ela não larga
do meu pé!
Com Tina em meu encalço, entro na sala de costura, onde a minha irmã
passa horas enfurnada.
Ludmila ficou tão, mas tão feliz, que andei nas nuvens pela semana toda.
Ter sido a responsável por aquela alegria genuína, depois das minhas atitudes
terem atraído tanta desgraça sobre a vida dos meus irmãos, foi uma cura que nem
mesmo eu sabia que precisava.
Nos dois primeiros dias, as garotas foram treinadas pela Tina, mas eu
percebi que a Guerreira não estava muito feliz com aquela nova obrigação.
Morrendo de medo do temperamento dela, comentei, como quem não quer nada,
que o Áquila me ofereceu um dos seus soldados para tirar um tempo e treinar as
duas. Esperei que Tina me desse uma patada, afinal, ela detesta o Áquila a troco
de nada, mas fui surpreendida ante a aceitação instantânea dela.
Hoje entendo o que a motivou. A minha soldada mais leal decidiu focalizar
seus olhos de águia em mim.
Quanto ao Áquila...
Deus! Nunca pensei que seria tão bom, mas estar com ele diariamente sem
culpa, sem honra, sem dever no meio do nosso caminho é... Me faltam palavras
para definir! O que posso dizer é que nunca estive tão nublada de felicidade
quanto nessas últimas semanas, o que por sua vez pausou a minha busca pelo
Palácio tornando, assim, dispensável essa preocupação toda da Tina.
— Voxê extá atraxada — Ludmila diz com três alfinetes prensados entre
os lábios quando entro em seu ateliê.
Tina se desloca para um canto, pronta para passar horas da sua vida me
vigiando. Só não tenho mais pena da situação dela, porque a minha também é
terrível.
— Não comece com as suas reclamações, Isabelle. Deus sabe que estou
estressada hoje! — Minha irmã dá batidinhas na minha bunda até que eu suba
em uma pequena plataforma circular. — Você é minha até o casamento.
Resmungo ante a ideia de passar horas parada em pé, sendo espetada por
agulhas por todo o corpo, ter meus cabelos puxados e várias coisas passadas no
meu rosto. Um glamour maravilhoso!
— Sabe, as horas passariam mais rápido se você parasse de fazer jogo duro
comigo e me contasse como o Áquila passou de ser seu treinador para ser seu
namorado.
— Não inventei. — Meu rosto pega fogo e, com vergonha das duas, lanço
um olhar para onde a Tina ficou de guarda, mas noto que a Guerreira deixou o
seu posto.
Imagino que, ou ela percebeu que não tenho como fugir do ateliê, ou
finalmente passou a confiar que não vou cometer nenhuma loucura se me perder
de vista. Talvez seja um pouco dos dois misturado com uma imensa dose do
ciúme que ela sente da Ludmila.
— E vocês ainda se odiavam? — Assinto, porque agora não sou capaz nem
de resmungar. — Se estou sentindo vergonha por você só de ouvir, faço ideia
você na hora. Você afundou no lago para se esconder, aposto.
Minha irmã cai em uma gargalhada que aposto doer a barriga dela. A
encaro sem paciência e estendo o indicador. Ela lança um olhar para o meu dedo
e então ergue uma sobrancelha, sem entender.
— Divina.
— Vossa Alteza. — Ludmila faz uma breve curvatura e ele faz um gesto de
reconhecimento.
— Acho fascinante. — Dominic sorri para ela, que por sua vez fica com o
rosto inteiro manchado de rosa.
Lanço um olhar indagador para a minha irmã. Ela desvia a atenção como
se quisesse esconder suas feições.
Acontece que a Lud nem precisa falar nada. A timidez dela diante o
príncipe diz tudo o que preciso saber. Sei que a Ludmila nunca irá confessar para
mim, pelo menos não por ora, uma vez que até recentemente Dominic era o meu
noivo, mas, pelo visto, ela se sente atraída por ele.
— Senhorita Ludmila...
Ele é mais esperto do que eu, não tenho dúvidas. Isso significa que
percebemos o mesmo. Além do mais, sei que o Dominic já está até acostumado
em despertar esse sentimento nas mulheres. Eu mesma presenciei de perto
diversas situações similares a essa.
Lanço um olhar a ela como se dissesse: agora quem está sentindo vergonha
de quem, hein?
Minha irmã pega os retalhos de pano e sai apressada do ateliê, mas com
um sorriso imenso no rosto e os olhos brilhando depois de avaliar uma vez mais
o seu trabalho.
— Obrigada.
— Não por isso. — Ele sorri de uma forma que me deixa mal.
Algo que nunca nos aconteceu antes, acontece. Ficamos sem jeito um com
o outro. Dominic parece não saber o que fazer com as mãos. Quanto a mim, fico
sem saber para onde olhar, então observo a vista da janela.
Nós dois falamos ao mesmo tempo. Ele solta uma risada nervosa. Eu não,
porque fiquei preocupada.
— O amor não é tão frio e racional quanto eu imaginava. Agora sou capaz
de reconhecer que nem sempre há uma escolha. Pode acontecer do nosso coração
ser mais rápido e decidir por nós.
— Sei o que está tentando me dizer, Isa. Até mesmo sei o que você tentou
fazer agora a pouco comigo e com a sua irmã. Porém, com relação a sinceridade,
ainda sustento a minha forma de pensar. Prefiro a rejeição clara a uma situação
enganosa.
— Eu não estou mentindo, nem manipulando. Foi apenas uma ideia que
me ocorreu.
— Ah, claro — digo ao perceber que ele está deixando implícito que
manter a nossa relação amigável significa manter a boa relação entre os dois
reinos. — Posso te fazer uma pergunta pessoal? — Ele me analisa por alguns
segundos, mas por fim assente. — Precisa ser da realeza?
Dominic solta um longo suspiro, como se não tivesse ficado satisfeito com
a minha pergunta. Mas o que ele pensou que eu perguntaria?
No mesmo segundo, desfaço o toque das nossas mãos e dou um passo para
trás, a fim de abrir um pouco de distância entre nós.
Solto uma risada involuntária e ele também ri sem querer. Magnólia não é
parâmetro. Ela é fora do comum e ambos sabemos disso. O bom é que trazê-la
para a conversa suaviza o clima entre nós.
— Espero que o convite para a minha irmã tenha sido sério, porque se ela
quiser mesmo tirar umas férias no Norte, não sou eu quem irá criar empecilhos.
— Quem sabe o seu reino aceite que a futura rainha deles tenha uma
ligação de parentesco com a última da linhagem dos Tupper?
Concordo e não concordo com ela. Eu não sou imbecil e todos os meus
motivos para terminar o meu noivado com ele são válidos. Porém, Dominic
realmente merece uma mulher que corresponda a altura do ser humano que ele é.
Só aconteceu dessa mulher não ser eu, nem dele ser o homem que amo.
A garota fica ainda mais fora de controle ao notar que não caio na dela.
Provavelmente, ela esperava que eu revidasse suas afrontas, mesmo que de
forma educada como Magnólia me ensinou, o que não faço.
— Tudo bem — digo e ele não se convence. — Dominic, a sua irmã quis
te proteger e, colocando meus sentimentos de lado, posso definir a atitude dela
como boa.
— Sim. Você, mais do que qualquer um, merece alguém que tome seu
partido com unhas e dentes sem nem pensar. Além do mais, ela vai acabar com o
Rakar, me livrando de fazer algo a respeito daquele escroto. Até prefiro que a
condenação dele venha pelas mãos dela. Acredito que a sua irmã será maléfica
de um jeito que anos passarão e jamais serei capaz de bolar algo similar.
— Caso ela não fuja assim que a cerimônia terminar, você quer dizer.
— Vou garantir que ele esteja amarrado na diligência que ela usar na fuga.
— Dominic.
— Áquila.
Lanço um olhar repreendedor para o Guerreiro, mas ele não me nota, uma
vez que está com a concentração inteira no Dominic.
— Creio que me precipitei e ainda seja cedo para tentarmos manter uma
boa relação pelo bem dos nossos reinos. — Dominic abre um sorriso forçado. —
De qualquer forma, vejo vocês no templo. Até mais.
— Assim como o seu com a Helena. Só que no meu caso ainda teve o
agravante que, além de você e ela terem tido um passado, nós nos deitamos pela
primeira vez sem que eu soubesse daquele noivado. Então eu não me senti da
mesma forma como você se sente. Foi bem pior.
— Pior? É nítido que você se importa com ele, Isabelle. Quanto a Helena e
eu, da minha parte posso atestar que sinto antipatia por ela. E não se engane,
Helena passou a me detestar tanto quanto a detesto.
— Eu me importo com ele como amigo. — Áquila faz menção de revidar,
mas o interrompo. — O que eu sentia pela Helena e você sente pelo Dominic é
até justificável. Porém, depois de ter experimentado na pele o nível doentio, onde
uma pessoa mata por ciúmes, passei a abominar esse sentimento! Eu te dou a
minha palavra que a minha preocupação com o Dominic é a mesma que sinto
pela Lud, Rebeca, Kaká, Tina e Tami. Nunca, em qualquer ponto do meu
noivado político com ele, cheguei perto de sentir o que sinto por você. Só te resta
uma opção, Guerreiro, confiar na minha palavra quanto a isso.
— Eu confio, Belle. E sinto muito pelo que ela te tomou. — Ele desliza o
polegar pelo meu rosto.
Desvio o olhar, porque a raiva que sinto da Helena, por ter matado o meu
irmão por puro ciúme do Áquila, ainda existe e me corrói. Tudo piora pelo
simples fato do Rei ter me negado que ela fosse punida pelo que me fez. Porém,
sei que a culpa não é do Áquila, tanto quanto não é minha, mas é um assunto
delicado entre nós dois e acho que sempre será.
— Você está magnífica. É possível te beijar sem manchar essa cor nos seus
lábios?
— Não. — Luto contra o sorriso bobo que teima em aparecer mesmo com
raiva dele. Espalmo as mãos no seu peitoral esculpido, tentando me afastar, mas
ele me aperta ainda mais. — Áquila, se controle.
— Laghertia — arfo.
Volto a atenção para a princesa dos Drakars que, pela primeira vez, vem ao
meu encontro ostentando uma coroa prata sobre seus lindos cabelos. Mas logo
desvio o olhar para os dois seres que estão cada um de ambos os seus lados.
Encontro seus olhos de obsidiana e ele não faz uma expressão que seja,
mas arrepio inteira. O Drakar não sorri. Não pisca. Não faz nada. Mas sinto, em
cada célula do meu corpo, que ele é terrivelmente perigoso. Talvez, o ser mais
poderoso com quem já cruzei caminho.
Diferente do outro Drakar, que transmite uma ameaça velada, a dele é mais
agressiva. Até mesmo o sorriso que abre ante a minha observação é uma
provocação para que eu sinta mesmo medo dele. Não sinto, mesmo que ele tenha
a largura dos ombros duas vezes maior do que a do Drakar vestido de negro, este
me intimida infinitamente mais. Ele também é o mais alto dos três, ostenta uma
coroa dourada e sem ornamentos e possui feições violentamente atraentes.
Percebo que beleza estonteante é um traço dos Drakars. Imagino que seja
como um feitiço sedutor cujo objetivo é atrair a presa para a condenação.
Portanto, tomo cuidado com o exterior perfeito dos três.
— Os senhores estão usufruindo da energia dos príncipes, rainhas e reis
que aqui estão para usar magia contra nós?
Quanto ao uso da magia deles, para aparecerem aqui desta forma, lembro
de como foi todos os encontros que tive com a Laghertia.
A segunda vez em que a princesa apareceu na forma física para mim, foi
usando a força de um templo. Já para o meu irmão, Laghertia apareceu apenas
em sonho, porque só tinha a força do Dominic e da minha. É assim que ela é
capaz de manifestar poder, através da energia de outros seres ou templos
sagrados.
— Aurora — sibilo.
— Temo que esta resposta seja importante para mim e, se não houver
cooperação da parte dos senhores, não haverá da minha.
De forma pragmática, penso que algo não faz sentido. Se a magia obscura
dos Salonsk mantém os Drakars longe deste mundo, então por que os três estão
aqui exercendo com facilidade os poderes deles?
Faço uma varredura rápida por todo o templo. Tami é o destaque no coral,
responsável por produzir as ricas melodias para as entradas da realeza. Em uma
das duas plataformas mais altas, dispostas nas laterais do edifício, Ludmila,
Rebeca e Carlos Eduardo estão sentados nas cadeiras nas fileiras mais ao fundo.
E sei que lá fora, junto aos guardas, está a Tina.
— O meu povo deseja o fim do tormento daquela pobre alma e viemos até
aqui te oferecer a proteção que falhamos com Aurora, mas que conseguimos com
o filho dela.
— Na sua mente reside a ideia de que terá que se sacrificar assim que
libertar Aurora para que não seja a sua alma a tomar o lugar da dela e,
compreensivelmente, teme perder a vida ainda tão jovem. Mas a sua resistência é
recente e se deve ao fato do medo de perder o futuro que os dois estão
fantasiando juntos, portanto, ele é o que está te atrasando. — Laghertia lança um
olhar para a mão do Áquila sobre a minha. — No entanto, Isabelle, os tempos
mudaram e nós podemos te oferecer esse futuro neste mundo. Nós a
protegeremos, portanto, nenhum homem aprisionará a sua alma como aconteceu
com a Aurora.
— Longe de mim concordar e me conformar com o que foi feito aos meus
antepassados! Então não tente me ludibriar quando eu bem sei que tenho que
escolher entre dois destinos ruins. Hortense sofreu duas vezes. Uma ao ser
raptada pelos antigos povos deste mundo e mantida aqui para assumir o lugar da
Aurora, a rainha morta. A outra ao ter a alma condenada para que estas terras
tivessem prosperidade sem a presença dos Drakars, raça com que aqueles
homens viviam constantemente em guerra. O que eu consigo discernir, em meio
a essa crueldade que Hortense sofreu, é que todos os que atentaram contra ela
estão mortos há milênios e serão os descendentes deles que sofrerão as
consequências. Acontece que, dentre eles, há alguns que amo profundamente.
Além do mais, até mesmo a minha família está entre os novos habitantes deste
mundo!
— Inocente essa que Vossa Alteza permite que continue sendo torturada,
mesmo após ter conquistado a liberdade das suas irmãs, o motivo inicial que te
fez ignorar a lenda — o Drakar sombrio diz baixo com sua voz de barítono.
Nossos olhares travam. Eu não fraquejo ante a sua acusação velada. Ele
também não se intimida ante o meu olhar frio.
Sei o que ele está tentando fazer. O metamorfo quer encontrar brechas para
me atemorizar, coisa que não aconteceu por eu me ver diante de três seres com
tanto poder que um piscar de olhos e estou morta. Como Laghertia os alertou,
sou teimosa, insolente e continuo inconsequente no que diz respeito a mim.
— Nós podemos...
Não. Estou tremendo da cabeça aos pés. Até tento disfarçar os sinais do
meu corpo, assim como camuflo os meus sentimentos. Mas Áquila é bem
treinado e certamente nota minhas mãos geladas e meu corpo trêmulo. Além,
claro, a minha falta de resposta.
— Não está tudo bem — ele diz, ríspido. — O que acabou de acontecer
aqui?
— Nada.
— Isabelle...
— Eu estou bem! — grito, o que por sua vez atrai a atenção de várias
pessoas.
Aposto a minha vida que ela me levará até a Hortense, ou a Aurora deles.
Encaro o Áquila com uma expressão que tenho certeza demonstrar o meu
repentino pavor, porque ele aperta a minha mão com força em reação. O
Guerreiro até abre a boca para me questionar uma vez mais, mas a fecha quando
me levanto junto aos convidados ao ouvir a voz da Tami cantar à capella uma
música digna de um casamento Real.
Solto sua mão e, chafurdando em medo, assisto, sem de fato ver, a princesa
jararaca entrar para se casar com o príncipe vil.
Eu odeio a escolha que estou prestes a fazer, mas não há mais para onde
correr. A alma da Hortense precisa ser libertada e não confio nos Drakars tanto
quanto não confio no Rei.
Depois do casamento, os recém-casados partem para uma viagem e nunca
mais ouvimos falar de nenhum deles. Fico mais tranquila ao saber que o Rakar
não está mais por perto, portanto, um inimigo a menos para ter de lidar. Mas a
minha tranquilidade desvanece gradativamente, porque poucos dias depois,
assisto um confiante Carlos Eduardo também deixar o palácio.
Assim como ele, também achei uma sábia decisão a da Isabelle de ordenar
que os portais para o outro mundo fossem destruídos, uma vez que os irmãos
dela manifestaram o desejo de continuarem morando aqui.
Respeitar as leis naturais é algo que concordo com a Isabelle. Nós não
somos capazes de mensurar a dimensão do que pode acontecer se algo alterar
este equilíbrio uma vez mais, como a tecnologia deles entrar aqui, ou o nosso
conhecimento sobre as curas entrar lá.
Portanto, é por uma medida preventiva que o Carlos Eduardo deixa o
palácio com um grupo de eruditas e soldados de alta capacidade. Os
conhecimentos dele, somado aos dos sábios do palácio, que convém de alguns
deles também serem mestiços, portanto, manuseiam a magia, é o que colocará
um fim na possibilidade de acontecer um novo desiquilíbrio entre as cópias.
A princípio, fui contra e disse a ela que Tami tinha o dever de se tornar
uma Guerreira, como manda a tradição da nossa família. Fui vista como
intransigente ao não aceitar que a minha irmã estudasse arte. Depois de uma
argumentação da Isabelle, que me deixou envergonhada, aceitei que o Norte
seria o lugar para as realizações dos sonhos da Tami, uma vez que lá a arte é
mais difundida do que no nosso reino. Então, quando a minha irmã me confessou
seu desejo de ir, permiti.
Tudo está sendo muito bem executado, com justificativas tão perfeitas que
nem mesmo eu desconfiaria de nada. Isto é, se eu não tivesse acabado de vir de
uma visita ao Oclan e a gente se desse conta de que ele continua preso e a
Isabelle nada fez até hoje para soltá-lo. Ele, como sempre, me pediu apenas para
ficar atenta aos passos dela.
Não há como eu ficar atrás da Isabelle o dia todo! É necessário que outros
soldados assumam a minha posição, mas eu confio neles e passei a confiar nela
de novo. Exceto que fui mais esperta dessa vez.
Depois da conversa que Oclan e eu tivemos, em que ficou acordado que eu
vigiaria a Isabelle de perto, relembrei de uma conversa muito estranha que tive
com ela em uma festa numa ilha de um dos nobres. Para mim, ficou claro que a
conversa inteira foi manipulada, portanto, mantive atenção no que havia de mais
importante de tudo o que aconteceu naquele dia.
Isabelle estava deprimida e não era apenas pela discussão com a Rainha,
uma vez que aquela tristeza dela eu já tinha percebido antes daquele dia em
questão. Outra coisa que gravei na memória foi que, ao tocar no assunto de que o
Carlos Eduardo recebeu a missão de pesquisar sobre a lenda, Isabelle ficou
furiosa, achando que ele tinha me revelado algo. E, o mais agravante de tudo, no
começo da conversa ela disse que queria aproveitar os últimos dias de liberdade
e, depois que o assunto rodou, ela disse que sentiria saudades de mim.
Foi assim que o humor dela passou a ser o meu maior objeto de atenção!
Bem mais do que o paradeiro dela, uma vez que as excursões sem sentido pelo
palácio acabaram junto ao noivado dela com o Áquila. Acontece que desde então
a Isabelle só demonstra felicidade.
Perco o passo e dou meia volta. Eu estava indo para os meus aposentos me
recolher para descansar, mas preciso encontrar a Isabelle por desencargo de
consciência.
Com passos firmes, vou em busca do Áquila. Ele ainda está no palácio e se
a Isabelle não se livrou justo dele, forte ou não, isso quer dizer que tudo pode
não passar de uma infeliz coincidência.
— Estou ocupado.
Ocupado. Ocupado a minha bunda! Eu vou chutar as bolas desse patife
ordinário, mas começo empurrando os soldados da porta e forçando a minha
passagem para entrar no gabinete.
Eu até me esforçaria para engoli-lo, se ele não usasse essa honra para se
enaltecer e não ficasse dando a entender que é o de maior importância em tudo.
Guerreiros, Yerus, realeza, Isabelle... Eu não suporto esse homem! E parece que
fui condenada a eternamente provar a ele que sou melhor sim.
— Onde está a Isabelle? — pergunto entredentes.
— Não tenho tempo para essas besteiras. Preciso saber o paradeiro dela. É
uma questão urgente, Guerreiro.
— Quando nos separamos mais cedo, ela disse que iria às masmorras.
Solto uma risada sem humor e começo a andar de um lado para o outro.
Agora sim estou desesperada.
— Como assim há dias que ela não aparece nas masmorras? — Ele
praticamente cospe as palavras, como se a culpa fosse minha. Ele é mestre em
me fazer sentir assim, incompetente, como se sempre estivesse falhando, porque
o Áquila nunca erra. Nunca! Eu, por outro lado...
— Maldição jogada por todos os deuses! Estamos ferrados e ainda nem sei
como ou por quê. — Praguejo, mas ele não perde tempo com o meu desespero.
— O que infernos está acontecendo? Já faz alguns dias que a Isabelle
desaparece alegando fazer visitas ao Oclan e não há qualquer sinal de que isso
não seja verdade.
— Bem, para mim, é fácil enxergar que ela encontrou uma forma de
manipular a todos nós nessa questão.
— Você acha que já não fiz isso?! Eles não sabem onde ela está. Ninguém
sabe! E não se engane, Guerreiro. Se a Isabelle consegue despistar ao Oclan,
você e a mim, juntos, ela é capaz de enganar qualquer soldado!
— Há algum lugar que você desconfia que ela possa ter ido? — Não sinto
satisfação da pergunta vulnerável do Áquila. Sinto desespero, assim como ele.
— É muito remoto...
Ele não me ouve, porque sai de novo para ordenar que um soldado vá em
busca da Heloise imediatamente.
— O que sei são aquelas histórias que o Mestre Ponda contava na Festa da
Aurora em Fayrehal, Guerreiro. E a relevância é que creio que esses sumiços da
Isabelle podem ter ligação com essa lenda.
— Infernos! Só sei o que o anão contava a todos nós em Fayrehal.
— Você disse que o Dominic ainda está aqui. — Áquila franze o cenho e
então assente, levando o meu raciocínio em consideração. Um certo tipo de
satisfação invade o meu peito. Ele nunca demonstrou interesse no meu modo de
pensar. — Onde?
— Não. O luto foi uma coisa. Essa melancolia é outra. — Áquila faz um
sinal com a mão para que eu me explique melhor. — No luto, o que posso dizer é
que a Isabelle entrou em um modo de autodestruição. Mas quando chegamos a
Lufstar, ela passou a ter um propósito com a rainha Magnólia. Se preparar para a
chegada do Dominic foi bom, mas nada se compara a quando ele chegou. —
Lanço um olhar temeroso ao Áquila para ver como está recebendo. Ele apenas
cruza as mãos nas costas, sem externar nada do que está sentindo ante a minha
revelação.
— Mudou como?
— Ela não saía da cabine e não conversava com ninguém, com exceção do
Dominic. Mas não foi só ela. O Carlos Eduardo voltou a agir da mesma forma
que agia quando estava sofrendo o luto pelo Felipe. É assim que sei que alguma
coisa aconteceu naquela viagem e que as únicas pessoas que sabem o que foi são
Dominic e Carlos Eduardo. Então veio Pedralhos. Isabelle ficou terrivelmente
balançada ao te reencontrar e o envolvimento entre vocês dois demandava muito
dela. Ao mesmo tempo, também vieram outras questões sérias para ela ter que
lidar e que, portanto, a distraíam. Até mesmo eu me esqueci daquela situação no
navio, mas... — paro de falar e engulo em seco.
— Mas o quê?
— Às vezes ela parava e voltava a ter aquele semblante triste que teve
naquela viagem. Acontecia toda vez que ela olhava sorrateiramente para o
Orientador; depois de algumas excursões pelo palácio sem sentido; e quando ela
se sentia cansada dos deveres de princesa. — O encaro com firmeza. — Entendo
a sua resistência em procurar o Dominic, mas ele sabe de algo que nós dois não
sabemos e talvez tenha a ver com a lenda.
Quando ela trespassou uma perna sobre o meu quadril, a girei na cama e
fiquei por cima enquanto me encaixava entre suas lindas pernas e fazia amor
com ela. Pensei que seus olhos brilhavam de emoção, porque, para mim, foi
como se os nossos corações tivessem se fundido em um. No entanto, agora
desconfio que aquele brilho eram lágrimas contidas, porque ao terminarmos, a
Isabelle me deu as costas e entrou no quarto de banho.
Diante tudo o que ela me contou que aconteceu, a única conclusão que
cheguei é que o Dominic seria um tolo se não tivesse se apaixonado por ela.
Como posso culpá-lo por não ser imbecil? Então, por ele, o máximo que eu
poderia sentir seria pena. No entanto, não o sinto, porque seria o mesmo que
lamentar sua condição de não tê-la ao seu lado, o que é impossível, porque o
único sentimento que sou capaz de sentir é satisfação porque ela está comigo. Ou
estava comigo, porque ela desapareceu. Essa é a fonte do meu tormento.
Os meus soldados, por quem passo, fazem sinal de que ainda não a
encontraram e o nó no meu peito intensifica ainda mais.
Não quero que os soldados do Rei descubram sobre esta busca. Eu não
confio no Rei. Não confio em quase ninguém. No entanto, no que diz respeito à
Isabelle, na Guerreira Tina eu confio, uma vez que o ponto dela foi válido.
Se todas essas razões ainda não fossem o suficiente para o Dominic desistir
da insistência em tratar as questões do reino dele apenas com a Isabelle, há o
interesse do Norte de não correr o risco de vazar o acontecido. Por isso a pressa
para resolver a situação independente de com quem seja.
Dominic enrijece a postura assim que entra na sala em que estamos apenas
a Guerreira Tina e eu o aguardando.
— Aconteceu algo? — Ele alterna o olhar entre nós dois e então reage
como se desse falta de algo ou de alguém. — A Isabelle está bem?
— Se há alguém capaz de saber onde ela está, esse alguém é Vossa Alteza,
portanto, retire essas mãos imundas do sangue de inocentes de mim. — Dominic
ordena, porém não o largo. Além disso, fico ainda mais fulo por ele me acusar de
saber onde a Isabelle está quando cada vez mais penso no pior acontecendo a ela.
A Guerreira Tina bate nos meus braços e me arrasta para trás, abrindo um
espaço considerável entre o Dominic e eu.
— Seu canalha! Eu não tenho a menor pista de onde ela está! — Rosno
para o Dominic e só não avanço sobre ele de novo, porque a Guerreira Tina se
posiciona na minha frente para me bloquear.
— Por que a Isabelle decidiu ir atrás da maldita lenda sozinha? Eu teria ido
atrás da Aurora com ela. — Para a minha surpresa, a Guerreira Tina faz a mesma
pergunta que eu faria se estivesse em melhores condições. No entanto, estou
gastando cada energia do meu corpo para me manter no lugar e não descer os
punhos sobre o nariz perfeito do príncipe do Norte.
— O que infernos você sabe que não está nos contando? — Trinco os
dentes e o encaro com frieza, pronto para acabar com a pequena distância entre
nós e agarrar o casaco dele para fazer bem mais do que apenas sacudi-lo.
— Ela descobriu essas coisas e, além de você não ter compartilhado com
ninguém as descobertas dela, também permitiu que a Isabelle escondesse isso de
mim? Do Oclan? Do Áquila? — Tina continua perguntando o que eu gostaria de
perguntar, porém estou ocupado me controlando para não matar o Dominic e
acabar com as nossas chances de encontrar a Isabelle. Só porque ele ainda é útil,
é que está respirando.
— É obvio que ela não está nas criptas dos seus antepassados — Dominic
diz.
Seu peito sobe e desce com tanta violência que, por um momento, penso
que irá cair dura no chão. O que não é nenhum absurdo, uma vez que já vi damas
desmaiarem incontáveis vezes.
— Vomita logo o que tem para nos dizer, Heloise — Tina diz entredentes.
Sou totalmente contra violência a uma dama, então faço uma anotação
mental de mandar prenderem a Heloise por me atrasar ao vir falar da Helena
quando a vida da Isabelle está em perigo. A Guerreira Tina não pensa como eu,
porque aperta os ombros da garota e parece querer puni-la de imediato.
Tenho uma vontade insana de gritar, mas o que faço mesmo é soltar um
gemido misturado de prazer com lamúria diante a minha impotência de controlar
o que está acontecendo comigo.
— Te machuquei, Belle?
Arregalo os olhos ao som da voz do Áquila.
Eu me lembro de tudo. Lembro de passar por isso. Da preocupação dele.
Do prazer. Da conversa... Percebo que dessa vez fui jogada para o passado.
Especificamente em um momento íntimo que compartilhei ontem com o Áquila.
— Ou te assustei de prazer de novo?
Nego com a cabeça, confusa demais para entender como estou aqui
vivendo isso como se fosse pela primeira vez ao mesmo tempo em que sei que já
passei por isso. Na mesma intensidade em que quero sentir essas sensações de
prazer de novo, também luto para focar no que está acontecendo de anormal a
fim de manter a lucidez.
— Áquila... — solto uma lamúria baixa que tanto pode ser de confusão
quanto de prazer. Ele entende como sendo a segunda porque baixa o rosto para
abocanhar os meus seios desnudos e me incitar com a boca.
— Seus seios estão mais fartos do que de costume. Suas curvas também
estão mais acentuadas. — As mãos dele apertam o meu quadril. — O que você
está fazendo de diferente?
— Nada — respondo absurdamente atordoada diante as sensações de
prazer dominando o meu corpo, as perguntas para as quais eu não tenho uma
resposta e o déjá-vu mais real que já experienciei.
— Seja lá o que você está fazendo, não pare. O seu corpo está um
verdadeiro deleite.
— Áquila, eu... Ah! — Prenso os olhos com força e... Merda!
Basta que os meus pés pisem no templo para que seis soldados, disfarçados
de homens santos, voltem a atenção para mim de uma só vez. Um segundo é o
tempo que levo para descobrir o disfarce deles. Eles percebem que descubro a
verdadeira identidade deles, porque levo a mão ao cabo da minha espada. Em um
piscar de olhos, a Guerreira Tina se junta a mim, com a espada firmemente em
mãos, e eles caem matando sobre nós dois.
Os soldados descaracterizados não nos dão nem chance de respirar, por
isso estou certo de que acertamos o paradeiro da Isabelle e que ela está aqui em
algum lugar. O que não sei é em que condições a encontrarei. No entanto, nutro
esperanças de que a sorte esteja do meu lado, uma vez que não há sinal de
qualquer embate anterior e todos os falsos homens santos parecem surpresos com
a nossa aparição.
Cobrindo bravamente a minha retaguarda, a Guerreira Tina segue os meus
comandos de guerrilha. Ordeno para que deixe apenas um deles vivo, uma vez
que precisamos descobrir o paradeiro da Isabelle e esses homens têm a resposta,
uma vez que estão protegendo algo. É lá onde a encontraremos.
O que eu não esperava, é que esses homens conseguiriam chamar reforços.
E não qualquer tipo de reforço e sim os homens do Rei com o próprio monarca
junto.
A Guerreira Tina perde o passo com a aparição deles no templo e quase é
nocauteada por conta disso.
— Fique atenta, soldada! — Puxo a camisa dela com força pela gola para
evitar que um dos falsos homens santos, ainda de pé, a acerte.
— Ele é meu. — A Guerreira aponta o queixo na direção do mezanino
acima das nossas cabeças.
Um relancear rápido para o alto e noto o Máximus vindo de lá e correndo
na nossa direção.
Inferno sangrento! Eu devia ter matado o Máximus ao invés de ter
oferecido perdão a ele e permitido que continuasse nos soldados do BOP desde
então!
Deixo de lado o meu erro para me concentrar na luta. A situação está
crítica e não há como combater todas as ameaças vindo de todos os lados e ainda
assim deixar os falsos homens santos vivos. Qualquer um que se aproximar de
mim, precisa morrer ou eu morro e tudo estará perdido para sempre.
Degolo o que eu estava lutando contra. Antes a minha intenção era a de
poupar a vida dele pelo tempo suficiente de descobrir o paradeiro da Isabelle.
Agora não mais.
Não tenho chances de lamentar a nossa falta de recursos — ele era o
último dos soldados disfarçados a morrer —, uma vez que o Máximus se
aproxima de nós pelo mezanino; os soldados do Rei nos cercam em todas as
direções e o monarca em pessoa avança sobre o Dominic, que paralisa no lugar.
Por que o maldito está parado? Ele vai morrer, infernos!
Um vulto desperta a minha atenção e noto, pela visão periférica, um ser
mirrado de cabelos loiro se esgueirar pelas sombras até chegar em uma porta
escondida no fim do templo.
Heloise.
Um dos homens do Rei avança sobre mim e, sem nem pensar a respeito,
enfio a espada em sua barriga. O homem arfa, no entanto, pouco me importo
com o seu último suspiro de vida, uma vez que a minha mente deduz que Tina e
eu estamos atraindo a atenção de todos os soldados; Heloise provavelmente
descobriu o paradeiro da Isabelle e foi atrás dela; e o Dominic irá morrer em
questão de segundos se ninguém for socorrê-lo.
Tomo uma decisão e confio que a Guerreira Tina é capaz de lutar sozinha
até a morte por um tempo razoável. Como ela pediu, deixo o Máximus para ela,
e todos os outros também.
— Áquila! — A Guerreira arfa em surpresa ao me ver afastar do combate.
— Eu não consigo lidar sozinha com todos eles de uma só vez!
— A Heloise foi atrás da... — não preciso terminar de falar, ela
compreende e se posiciona de uma forma que o meu caminho fica livre.
— Eu te ajudo, soldada. — Ouço a voz arfante do Máximus às minhas
costas.
Tina resmunga algo e os sons de mais espadas se chocando aumenta.
Ignoro-os e lanço um olhar da porta em que a Heloise desapareceu e então para o
Rei e o Dominic lutando de uma forma nada justa, já que o príncipe guerrilha
pior do que um garoto aprendendo a sustentar uma espada de madeira. Chego até
mesmo a pensar que ele está fazendo isso de propósito, porque não é possível
que alguém na posição dele lute dessa forma deplorável.
Um soldado avança sobre mim e antes que eu tenha a chance de fazer algo
a respeito, uma espada se impõe entre nós dois. Ergo as vistas e encaro o
Máximus, a mão que sustenta o metal frio.
— Eu e a Guerreira dos infernos damos conta de todos eles. Você é o único
aqui que pode salvar o príncipe sem nos condenar a uma maldita guerra.
Maldição! Ele tem razão.
Se o Dominic morre, o Reino do Norte declarará guerra contra Yerus. No
entanto, se o Rei morre pelas mãos do príncipe, será o meu reino que irá me
pressionar para declarar guerra contra o Reino do Norte.
Mudo meu trajeto para livrar o Dominic e o Rei da morte — assim evito
uma guerra — na certeza de que sou capaz de em seguida correr para ultrapassar
a Heloise e ir atrás da Isabelle eu mesmo. Corro na direção dos dois homens da
realeza, no entanto, chego tarde demais.
Os dois estão próximos um do outro a ponto de ser confundido com um
abraço. No entanto, sei do que se trata. Um deles enfiou a espada no outro.
De onde estou, não sou capaz de ver quem está a um fio de distância do
além e quem ainda está firmemente no mundo dos vivos. Se o Rei, ou se o
príncipe.
Meu coração martela diante a possibilidade de enfrentar uma guerra vinda
do Reino do Norte. Virar rei também não é algo que me agrade, no entanto, é a
nossa única chance de evitar uma guerra. Eu só preciso que o maldito do
Dominic tenha sido homem o suficiente para fazer o que precisava ser feito.
Não nutro esperanças, uma vez que é o olhar dele que se assemelha ao de
uma corça abatida ao erguer as vistas para mim.
Tento me sentar, mas é pedir demais. Acho que até mesmo erguer o braço
demanda muito esforço do meu corpo.
Fico morta de receios, apreensão... não sei bem o que sinto. A forma como
ele está me olhando está mexendo negativamente comigo. Mesmo assim, me
esforço para abrir um sorriso amigável.
— Eu dormi muito?
— O curandeiro garantiu que não há nada errado com você. O seu corpo só
precisava de mais tempo para recuperar as forças.
— Gritar com você. — Ele solta uma risada amarga. — Isabelle, passei do
ponto de acreditar que gritar com você adianta para alguma coisa.
— Não vai falar nada? — pergunto e ele me lança um olhar, que logo
desvia para a janela.
Coloco o copo na mesinha ao meu lado e solto um suspiro cansado. Prefiro
um milhão de vezes o Áquila brigar comigo do que me oferecer tratamento de
silêncio. Esse vazio entre nós dois me deixa inquieta.
Obtenho sucesso com essa pergunta inesperada, porque ele franze o cenho
estranhando o assunto, mas pelo menos mantém o olhar em mim. Considero um
avanço no tratamento de gelo que estou recebendo.
— Contraceptivo. — Sorrio, iludida de que está tudo bem, o que não está,
porque o clima entre nós dois decai bem uns dez graus.
— Por que eu teria contraceptivo feminino no meu quarto, uma vez que
você e eu estávamos separados e definitivamente eu não esperava a sua visita na
minha torre tão cedo?
O sorriso some do meu rosto e imagino que a minha cor também, porque
sinto como se a minha pressão despencasse aos meus pés.
— Nunca me deitei com ele e nem com qualquer outro homem que não
fosse você!
— Sei disso. — A réplica sincera e calma dele me deixa pior do que se ele
duvidasse da minha palavra, porque isso implica que o Áquila confia em mim
quando eu não confio nele, o que não é verdade.
O olhar que ele me desfere aniquila qualquer fagulha de ousadia que surgiu
no meu peito. Na verdade, sou tomada por um desespero maluco. Até mesmo as
pontas dos meus dedos ficam geladas.
— Quero que me diga que da última vez que nos deitamos, você não se
despediu de mim me deixando acreditar que era outra coisa. Quero que me dê
cada maldito motivo que te levou a aceitar se casar comigo. Quero que me
convença que eu não me enganei em relação a você durante todo esse tempo.
Quero uma reafirmação de que essa Isabelle, que estou olhando agora, ainda
carrega o mínimo que seja da Isabelle que conheci em Fayrehal e por quem me
apaixonei. Quero estar enxergando tudo errado, porque, Isabelle, estou dominado
pelo sentimento de que não te conheço mais, que não tenho a mínima ideia de
quem é essa mulher à minha frente.
Uma sequência de lágrimas silenciosas cai dos meus olhos. Não consigo
evitá-las tanto quanto não consigo erguer a mão para limpá-las.
Ele ergue o rosto para o teto e respira fundo. Meu coração bate tão forte
que me desconcentro inteira e perco o fio da meada da minha explicação. Minha
mente simplesmente vira... nada.
Isso não pode estar acontecendo. Eu não posso perder o Áquila. Ele não.
Por Deus!
— O Rei morreu e vou assumir o trono pelo tempo que levar até que a sua
linhagem seja reconhecida e aceita por todo o reino. Você será coroada como a
última descendente dos Tupper...
— Uma vez coroada, quero que me diga se prefere que Yerus te dê alguma
terra para você e sua família, ou se prefere que eu renuncie ao trono para que
você o assuma e então eu me recolho para a minha propriedade.
— E se despediu de mim por quê, Isabelle? Hmm? — Até abro a boca para
me defender, mas ele me corta. — Provavelmente porque pretendia se sacrificar
logo em seguida para que não fosse a sua alma a tomar o lugar da alma da
Hortense?
— Acho melhor você assumir o trono, uma vez que é a única de nós dois
capaz de tomar as decisões corretas. Sou um maldito incompetente que não
saberia o que fazer diante o cenário em que você sobreviveria. Imagine lidar com
um reino! Não vou nem entrar no mérito da questão de que uma vida ao meu
lado é completamente descartável e que você só aceitou se casar comigo porque
sabia que não viveria por muito tempo. — Balanço a cabeça para os lados,
tentando negar o que a minha voz não me ajuda a dizer. — Ao menos quando eu
pensava que, se fosse preciso me sacrificar para que você ficasse segura no outro
mundo, nós dois não tínhamos nenhum vínculo, menos ainda intenção de
estabelecermos um. Inclusive, esse foi o maior motivo para que eu resistisse me
aproximar de você. Eu não queria te fazer sofrer ao criar um vínculo forte
comigo, portanto, você não era minha noiva e eu não te ouvia planejar o futuro
ao meu lado sabendo que eu não estava disposto a viver para tanto.
— Mas eu te rejeitei várias vezes quando voltei para Pedralhos justamente
por esse motivo!
Não sou capaz de ver o Áquila me deixar, então fecho os olhos para não o
assistir sair do meu quarto... da minha vida, ao não conseguir responder uma
simples pergunta.
Ela se lembrava da timidez do início, uma vez que seus traços humanos
não eram distintos nem mesmo entre as meninas humanas com quem brincava.
Portanto, aqueles seres a intimidavam por possuírem tamanha perfeição e a
simples ideia de ser descoberta por eles a aterrorizava. Mas um belo dia, um
deles a pegou em flagrante. Na época, ele era criança, assim como ela, o que era
raro entre eles.
A mãe dela não teve opção se não compreender que nem todos os Drakars
eram ruins. Entre eles, existiam aqueles que eram horríveis — como os homens
temiam e que causavam caos —, mas os que moravam na Floresta Branca não
eram assim.
O pai dele notou o mesmo em relação aos homens. Existiam aqueles que
eram ruins, mas os que moravam na proximidade das terras dele, eram seres
pacíficos.
Assim, ficou estabelecido que nenhum dos pais se oporia à amizade entre
os filhos. Desde então, as idas dela até aquela pedra eram tranquilas. Mas não
naquele dia.
Apreensiva, ela procurou com os olhos por seu amigo, que ao longo dos
anos da amizade entre eles, mais estonteante ficava. Agora ele já era bem mais
alto do que ela.
Como se tivesse sido atraído pelo seu olhar, o garoto Drakar a olhou de
volta. Imediatamente ela notou o medo espelhado neles e passou a sentir o
mesmo, embora não soubesse explicar como ou por quê.
Espantada, a garota viu a gentileza ser substituída por egoísmo. Uma mãe,
que vira diversas vezes no passado tratar com carinho todas as poucas crianças
que existiam ali, agarrou o braço da filha com desespero e a arrastou em direção
a uma embarcação no rio. A Drakar sequer notou os três pequenos Drakars
desorientados, que ficaram para trás clamando pelos pais. Ela esperou e esperou,
no entanto, não viu ninguém indo naquela direção para socorrê-los.
Outra briga mais intensa a estarreceu. Aquela parecia ser por conta de
alimentos. Ambos brigavam por um pedaço de pão quando as trouxas já estavam
carregadas de todo tipo de comida.
Porém, o que mais a chocou, foi um outro deles que escondeu todas as
plantas medicinais no raio ao seu redor sem se importar com um grupo de
família por perto que procurava por apenas uma planta em específico. Ao que
parecia, um deles estava em idade avançada e precisava de forças para chegar até
a embarcação.
Mesmo de longe, ela foi capaz de perceber o desespero dele ao olhar para o
lado e não encontrar o filho. O príncipe dos Drakars de negro voltou a olhá-la e
notou o que havia acontecido. Naquele instante, ela pensou que aquele ser, a
quem ela respeitava, mas nutria um certo tipo de temor, iria lançar algum tipo de
magia e matá-la.
Petrificada no lugar, tudo o que a garota foi capaz de fazer foi entreabrir os
lábios à espera do seu fim. A princesa dos Drakars, a de uma beleza sombria,
agarrou o braço do príncipe vestido todo de preto e a conexão do olhar deles foi
quebrada.
Tão longe, não foi capaz de escutar o que a Drakar dizia, mas conseguiu
fazer leitura labial.
O príncipe Drakar pareceu dizer algo em resposta, mas a garota não sabia
dizer o que poderia ser, porque, de onde estava, não era possível ver os seus
lábios. Porém, viu a princesa, de uma beleza sombria, apertar os dedos no
antebraço do Drakar, fincando as garras na camisa de linho.
— Não há tempo! O seu filho está perdido! A sua única chance de voltar a
vê-lo um dia será se ele encontrar a Aurora. — A princesa apontou com a cabeça
para o príncipe humano, que parecia alarmado e, portanto, chegou para mais
perto do pai, o rei humano, que não parecia tão diferente do estado dele.
Com seus olhos grandes e o coração martelando forte contra o peito, ela o
encarou fundo nos olhos.
— Não sei dizer se seremos afetados, mas vim até aqui te buscar, porque
pode ser que eles se voltem contra nós.
Ela não ficou para ver o que o anão decidiria. Não ficaria ali parada. Se o
seu melhor amigo corria perigo, então precisava salvá-lo.
Mal deu dois passos quando uma escuridão repentina caiu sobre a Floresta
Branca. As buzinas do navio se perderam entre os gritos de histeria e sons de
corridas desesperadas.
Um terror repentino tomou conta de todo o seu corpo, que por sua vez
paralisou no lugar. O negrume, semelhante ao da noite, obstruiu os raios de sol
daquela manhã.
O rasgo de um clarão cortou o céu fora a fora. Ela imaginou ter se tratado
de uma estrela cadente, mas não tinha como ter certeza. Aproveitou do clarão
para procurar pelo amigo e foi quando finalmente o encontrou paralisado de
medo perto do lugar em que ela estava.
— Seu filho vai ficar bem — ela disse, mesmo sabendo que o Drakar não
poderia escutá-la, mas tinha esperanças de que lesse a determinação em sua
expressão.
Ela não sabia o que aquilo significava, porque ela mesmo não tinha feito
nada. Porém, percebeu que a floresta, outrora de uma beleza indescritível, se
tornou um pesadelo vívido.
O rei logo notou o perigo e correu agarrado com o príncipe à sua mão. Os
dedos da mão livre dele tocaram o tronco da única árvore que ainda ostentava
folhas e os dois desapareceram como que em um passe de mágica.
— Precisamos sair daqui antes que eles se voltem contra você. — Seu
amigo segurou sua mão e a puxou de volta para a encosta.
Assustada, deixou que o garoto Drakar a guiasse. Até que os dois pararam
ao mesmo tempo ao escutarem o som de uma cavalaria pesada se aproximando.
Homens, vestidos como se estivessem indo para a guerra, rodearam
aqueles que não conseguiram fugir. Pela primeira vez, ela viu um Drakar morrer
ao ser atravessado por uma espada. A garota nem mesmo sabia que aquilo era
possível!
— Por que eles estão fazendo isso? — Ela percebeu que chorava, mas não
se preocupou em limpar as lágrimas que molhavam o seu rosto.
— Não é seguro que você fique aqui. Veja, o meu povo também está
matando os homens. — Ele apontou para aqueles que perceberam o ataque e
começaram a revidar com o que ainda restava de magia.
Ela voltou a acompanhá-lo morro acima, mas puxou o braço dele para trás
com força. Os dois quase caíram do barranco.
— Por que você não foi com o seu pai? Por que teve que vir até mim? —
Ela gritou para ele, furiosa com o fato dele ter se colocado em perigo por
besteira.
— O meu pai jamais faria algo assim com você. — O garoto a repreendeu,
ofendido. — Ele não é mau. Ele é do bem.
— Tudo bem. Então seremos apenas nós dois até que o príncipe humano
volte. Meu pai disse que iríamos para outro lugar pelo tempo que o príncipe
levasse para voltar.
Porém, o que eles nunca viram, foi o príncipe humano voltar. Mas uma vez
por ano uma estrela passou a cortar o céu sempre na mesma data. Isso os enchia
de esperança, embora não soubessem bem dizer o porquê. Talvez um dia alguém
voltasse e desfizesse aquele mal, mas não se preocupavam com isso. Estavam
mais concentrados em serem felizes juntos.
E eis que cheguei na parte mais difícil! Em primeiro lugar, não posso
deixar de agradecer ao meu Pai. Afinal, é graças a Ele que foi possível essa obra
existir. Ele proporcionou os meios, a criatividade e a vontade em mim para que
A Herdeira ganhasse vida. Sem Ele, eu nada seria. A Cristo Jesus toda honra e
glória.
O meu marido também merece um destaque especial por ser a pessoa que
está comigo há anos e sempre ser o meu maior apoiador. Está certo que as
chances dele ler até mesmo os agradecimentos são poucas (rsrs), mas ele sempre
me ouve com paciência e isso é tudo para mim! Ele é uma pessoa fundamental e
faz parte dessa jornada para que essa trilogia deixasse de viver apenas na minha
mente e fizesse parte de cada leitor de A Ladra de Dois Mundos. Obrigada por
seu apoio, gauto! Te amo.
Quanto aos leitores que não me conheciam, mas tiveram contato com A
Ladra de Dois Mundos, leram e me mandaram mensagem no Instagram, preciso
deixar claro o quanto vocês foram importantes para a finalização dessa trilogia!
Cada mensagem que recebi foi um incentivo para que encarasse essa missão com
seriedade e fechasse a história da Isa e do Áquila. Para quem me mandou
mensagem, quer fosse no direct ou apenas uma pergunta simples de “quando sai
o terceiro livro?” em alguma publicação do feed, o meu muito obrigada!
Vocês não têm ideia de como o apoio que recebi, durante esses anos de
criação do universo de A Ladra de Dois Mundos, foi importante para que eu
continuasse firme nessa jornada de autora independe, portanto, um salve para
todos os apoiadores de autores brasileiros. Até a próxima!
Ps: deixe uma avaliação, mesmo que não seja escrita. Faz toda a diferença
;)
Mylena Aladim cresceu em Minas Gerais em uma casa cheia. Influenciada
pela avó, desde pequena ela devora livros. As leituras obrigatórias do colégio
nunca foram obrigatórias, principalmente se fosse um romance ou uma aventura.
Qualquer heroína que seja forte, rouba dela cinco estrelas. Além disso, ela vai do
Rock barulhento ao MPB em um piscar de olhos. Mylena mora atualmente em
Brasília com o marido e um Jack Russel, que dão a ela uma verdadeira aventura
todos os dias.