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Mylena Aladim

Copyright © 2020 Mylena Aladim


Livro: A Herdeira de Dois Mundos

Registro: Avctoris

Capa: Sara Vertuan


Diagramação: Nathalia Franco
Mapa: Camila Araújo

Revisão: Juliana Arruda

Aladim, Mylena — 1ª Ed. — Publicação Independente 2022

1. Fantasia 2. Literatura Nacional 3. Romance 4. Ficção Brasileira

É proibida a reprodução, armazenamento ou estocagem, seja por meio


eletrônico, físico, fotocópia ou qualquer outro, de qualquer parte dessa obra, sem a
permissão por escrito da autora. Esta detém todos os direitos autorais e, em caso de
violação, os mesmos serão reavidos perante a lei.

* Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998*


Para a Bebela, minha primeira leitora cujo apoio foi fundamental
para que essa história fosse publicada e continuasse sendo contada.
Prólogo
Parte I
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Parte II
Caoítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Parte III
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Inicio
Agradecimentos
Sobre a Autora
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Spotify - A Herdeira de Dois Mundos


Ódio.

Uma palavra intensa em todas as suas formas. No sentimento denso que


aflige o ser, assim como na pronúncia forte de cada sílaba, no significado que
carrega, no gosto amargo que produz na boca e, por fim, na imagem grotesca que
evoca na mente.

Minha preceptora uma vez me disse que ódio e amor não são sentimentos
divergentes e sim que estão entrelaçados. Segundo ela, ao odiar uma pessoa
explicitamente, estamos anunciando, nas entrelinhas, a existência de um elo de
identificação e o que nutrimos, em essência, é ressentimento por não termos um
vínculo ou coragem para agirmos da forma como ela age. Por sua vez, nos faz
reprovar suas ações, seja por inveja ou covardia.

Portanto, a lição que minha preceptora quis me dar naquele dia, é que amor
e ódio são dois sentimentos que possuem o mesmo elo de identificação, mas a
forma de se expressá-los os difere completamente um do outro.

No entanto, não tenho problema algum em admitir com determinação que


a odeio com todas as minhas forças. Seja qual for a razão, ela é minha inimiga.
Ela representa tudo aquilo que desprezo. Ela é o motivo para que eu esteja
nessa situação humilhante. É por causa dela que hoje é impossível que eu abra
um mísero sorriso. E eu amo sorrir... amava — devo me lembrar que há quase
dois anos a vida que eu levava deixou de existir. Tudo por causa daquela garota!

E então entra a questão que me fez compreender o que, de fato, está por
detrás do ódio. Embora me doa confessar, não posso negar que a admiro no
íntimo do meu ser.

Céus! Como eu queria arrancar esse sentimento do meu peito nem que
fosse com as unhas!

Se estivesse em meu poder, o faria de olhos fechados e, ao invés de ódio,


eu sentiria indiferença. Eu daria qualquer coisa para ser indiferente a ela, mas
não sou. Não consigo. Meu ser se recusa a deixar que ela passe despercebida.

Todas as vezes em que a vejo, sinto o ódio borbulhar em minhas veias ao


passo em que algo no fundo da minha consciência aponta que o meu desejo
secreto é o de estar do outro lado da linha. Ter um vínculo com ela.

O que isso faz de mim? Ela destruiu a minha vida. Tudo o que eu conhecia
acabou por causa das suas conspirações desprezíveis. Ela quer roubar algo que
acredita ser seu, mas não é. Não é!

Uma ladra, é o que ela é e para sempre será.

Acontece que todas as ações dela foram na intenção de salvar as irmãs. E


essa é a parte que não gosto de admitir, nem mesmo para mim mesma, mas é
aqui que a admiro e que gostaria de fazer parte do lado de lá.

Helena jamais arriscaria tudo por nós. Não. Antes de tudo minha irmã é
egoísta, portanto, atende aos seus próprios interesses. Não posso ser injusta ao
não reconhecer que lutou por nós, no entanto, não sou cega. Existia algo a mais
acontecendo lá naquela luta na Ilha do Comércio.
Não era somente por nós. Era principalmente por ele. Não que eu acredite
que minha irmã é capaz de amar puramente, porque o lado dela obscuro é
sombrio demais. Prova disso foi quando ela me confidenciou, com um sorriso
pregado nos lábios, que transformaria as reféns em cortesãs.

Ao que tudo indica, não deu certo. Mas fiquei assustada e entendi que,
mesmo a amando, não posso negar que há um negrume em sua alma que a deixa
a beira da insanidade, já que propôs um terrível destino a duas garotas da mesma
idade do que a Hanna e eu, além também de inocentes, assim como nós duas.

Não consigo encontrar desculpas para as ações da Helena. Ela age de


forma deliberada. Eu posso atestar isso, uma vez que sou sua confidente mesmo
quando estava infiltrada nos Guerreiros de Fayrehal. Nós duas nunca deixamos
de trocar correspondências. Portanto, tudo me leva a crer que o sentimento dela
pelo Áquila tem muito mais a ver com possessão do que qualquer outra coisa.
Helena sempre pensou que ele fosse dela. Isto foi até ela aparecer.

Observo as pessoas ao meu redor que estão na expectativa de receber a


atenção dela. Todo mundo anseia ser notado por ela. Toda maldita pessoa que
está por perto por onde quer que ela passe. É sempre assim e hoje não é nada
diferente.

No entanto, não sou a única inimiga dela aqui. Sei da existência de vários
dentre os rebeldes que adoraria derrubá-la. Até mesmo sei que o líder deles,
Koli, faz parte desse grupo. Embora ela não saiba. No entanto, todos, mesmo ele
e incluindo a mim, ansiamos sermos notados por ela.

Maldita seja! O que há nela que nos faz respeitá-la quando um sentimento
tão intenso e profundo quanto o ódio é o que nos aflora em relação a si? Não
pode ser o fato de vir do outro mundo. Seu irmão, o que usa aros ao redor dos
olhos, também veio de lá e quanto a ele consigo repudiá-lo sem dificuldade.
Inclusive, o desprezo.
Quando ele teve que escolher entre salvar a própria pele e ajudar o irmão,
ele optou por si mesmo. Mas ela não. Por isso é fácil odiá-la e impossível não a
admirar.

Helena também teve uma escolha naquele dia e optou lutar por sua honra
em vez de vir atrás de nós, suas irmãs. Nunca serei capaz de perdoar a escolha
dela uma vez que se nossos papéis se invertessem, e eu fosse a parte mais forte e
ela a mais frágil, eu teria agido diferente, não importa a situação. Eu teria lutado
com todas as minhas habilidades, com toda a força que há em mim, para salvar a
minha irmã mais velha, sangue do meu sangue.

Fecho os dedos ao redor do punho quando a responsável pela minha ruína,


e a da minha irmã mais nova, se aproxima de onde estamos.

Olhe para mim, sua maldita! Me inflija qualquer punição. Eu tenho os


mesmos traços da Helena, a pessoa que matou o seu querido irmão. Desconte
em mim. Faça algo a respeito. Tome uma atitude que justifique o meu ódio!

Ela passa reto sem sequer me relancear um mísero olhar. Não sou digna de
observação. Diferente de mim, para ela é completamente possível ignorar a
minha existência. Ela nunca se aproxima de mim. Nem me notar, nota.

No entanto, sei que é por causa dela que sou tratada bem. Também é por
causa dela que não tenho nenhum vergão em minha pele lisa feito a porcelana de
uma boneca. Exceto por aquele dia.

Naquele dia, ela me olhou. Foi quando pude ver as chamas da fúria em seu
olhar enquanto o corpo sem vida do seu irmão era trazido a bordo. Ali, naquele
momento, descobri que, para ela, sou a representação em carne e osso de tudo o
que foi arrancado de suas mãos e coração. No entanto, em vez de descontar em
mim a dor dilacerante que todos nós sabemos que a aflige dia e noite, ela me
protege e vai além.
Sou uma nobre e tratada como tal em um reino inimigo. Todas as pessoas
que tenho aversão me tratam bem. No entanto, elas agem assim porque são
obrigadas ou porque precisam dela. O curioso é que esse tratamento que recebo é
semelhante ao que ela recebe, mas com uma única diferença, algo que nos
distingue do tamanho de um abismo. Todos os serviçais deste reino, sem
exceção, querem agradá-la simplesmente porque desejam cair em suas graças,
porque a admiram mais do que qualquer outra pessoa, inclusive a rainha deles.

Se a rainha Magnólia percebeu, não sei. Sei que ela é uma mulher astuta,
portanto, meu palpite é de que sim e se isso gerar um ressentimento entre elas...
Bom, mais uma pessoa de grande poder estaria lhe odiando.

De qualquer forma, não importa quem ou quantos a odeie. O que importa é


que sou Heloise Borys e declaro em meu coração que odeio a Isabelle
Beauharnais com todas as minhas forças. Ela é a minha inimiga, mas a respeito,
em consequência, me odeio por respeitá-la. Mas isso não vem ao caso agora
porque, enfim, a oportunidade que venho esperando aparecer finalmente está
chegando.

Vou matá-la com as minhas próprias mãos e rir de escárnio quando o


último suspiro de vida deixar o corpo dela.
— Senhor, o irmão dela morreu.

— Qual deles? — Minha voz treme, o que automaticamente o assusta. Se é


algo que me abala, é algo que desestabiliza todos os meus soldados.

— O que andava sempre junto dela. — Fecho os olhos por um segundo a


mais. Ele pigarreia. — Perdão, senhor. Mas isso significa...

Guerra. Ele não consegue pronunciar, mas essa única palavra paira sobre
as nossas cabeças feito a lâmina de uma guilhotina.

Não consigo imaginar o tormento pelo qual Isabelle está passando. Ela era
muito ligada ao Felipe mesmo quando não se dava conta disso. Nos nossos
treinamentos em Fayrehal, quando Isabelle era um desastre, descobri que a
inaptidão dela para lutar nada mais era do que instinto de recorrer a ele. Não ao
Carlos ou Ludmila, mas ao Felipe.

Um ataque direto contra os irmãos dela é algo capaz de fazer com que ela
procure um meio de declarar guerra e justo ele... Infernos! No entanto, talvez...
— Ele morreu pelas mãos de quem? — pergunto com um fio de esperança
de que tenha sido pelas mãos dos rebeldes. Seria o melhor cenário, uma vez que
se o Felipe tiver sido morto por eles, há uma chance de que a Isabelle ainda seja
alcançada.

No entanto, meu soldado não responde de imediato e sei que não há


esperanças para mim. Colérico, travo meu olhar ao dele. Ele engole em seco,
com os ombros tensos.

— Quem? — pergunto entredentes, fechando os punhos nas mãos com


força.

— Helena, senhor.

Maldita seja!

Dou um murro na mesa tão forte que quase esmago os ossos da mão.

Helena é desumana por atacar a Isabelle justo na essência dela, o que por
sua vez é um ataque a mim também, a Yerus... Infernos! É um ato que irá abalar
a ordem do mundo inteiro. Helena ficou cega dos desejos do coração, o que por
sua vez a tornou incapaz de enxergar o maior.

É por isso que soldados como nós tem os sentimentos suprimidos durante
nossos longos anos de formação. Somos ensinados que agir impensadamente é
condenação certeira. E o que são os sentimentos se não o mal de todas as atitudes
irracionais?

A desolação virá sobre nós, mas antes que isso aconteça, Helena irá pagar
caro. É uma promessa, porque é fácil perceber qual será a dedução da Isabelle.
Eu dei a ela minha palavra de que estaria lá, mas não estive. Além disso, Helena,
minha noiva, quem prometi entregar as irmãs em troca da segurança da Ludmila
e da Rebeca, matou o Felipe deliberadamente.
Não é uma hipótese. Isabelle certamente crê que estou por trás dessa
traição e a conheço bem o suficiente para saber que me tornei alvo dos seus
sentimentos mais desagradáveis. Ela já balançava entre amor e ódio por mim.
Estou certo de qual sentimento venceu a disputa, tanto quanto reconheço o cheiro
podre que antecede uma guerra.

— Senhor, peço permissão para dar o meu parecer sobre a questão. —


Assinto. — Não é seguro continuar nesta residência. Antes da missão, havia o
combinado do senhor a esperar aqui. Como ela sabe da nossa localização, virá
até nós cuspindo fogo. Precisamos evacuar ou nos preparar para o pior.

— Ela não virá — declaro de forma enfática.

Se Felipe fosse o único irmão dela, Isabelle naturalmente reagiria da forma


como sempre acontece, com toda sua força e inconsequência, uma vez que não
teria mais nada a perder. No entanto, ela ainda tem três irmãos para se preocupar,
sendo que dois deles ainda estão sob o domínio do Rei.

Ela tem muito a perder. Então, no primeiro momento, creio que irá sentir
uma vontade insana de cortar todas as nossas cabeças, mas, pelos três, Isabelle
irá recuar. Ao tomar essa sábia atitude, aí sim será preocupante.

Sei o que esperar de uma Isabelle que não pensa, só age. Se ela vier pronta
para uma guerra de campo, sei como me preparar para recebê-la. No entanto,
uma Isabelle que recua, calcula e planeja cada passo? Só os deuses sabem o que
o futuro nos reserva.

Posso assegurar que não sei o que esperar a partir de agora. Isabelle pode
se transformar em qualquer pessoa e a minha última aposta é de que se deixará
ser controlada pela raiva.

No nosso primeiro encontro, ela me disse algo que nunca esqueci: medo é
mais fácil de controlar do que raiva. A achei o ser mais atrevido que havia
cruzado meu caminho, uma vez que estava cercada por todos os lados por
Guerreiros de Fayrehal. Além disso, eu estava prestes a esganá-la por ter me
distraído, resultando em um corte em minhas costas feito por Helena.

No entanto, aquela garota petulante, de queixo erguido e nariz empinado,


tinha um ponto válido. Ela estava com medo e eu furioso. Ela se esquivou do
meu agarre naquela arena e minhas mãos cortaram apenas o ar.

Nossa história me leva a crer que a Isabelle é esperta o suficiente para se


curar primeiro e nos procurar depois, uma vez que as irmãs estão seguras por
conta das prisioneiras que conquistou. O “depois” é que me atormentará pelo
tempo que levar até que os nossos caminhos se cruzem novamente.

Temo um embate entre nós, porém não físico. Pelo menos, não em
primeira instância, uma vez que guerras não são apenas duelos travados em
campos de batalhas. Pelo contrário. O início se dá na política, portanto, onde está
concentrado todo o potencial para destruir reinados. Os embates físicos, se
acontecem, são somente depois das reivindicações por mais privilégio entre as
monarquias.

A minha apreensão é totalmente justificável, uma vez que quanto a


combatente, desde em que me formei nos Guerreiros de Fayrehal, nunca perdi
sequer um duelo. No entanto, não é para os campos que serei mandado. Agora
me encontro na posição de segundo príncipe, o que significa que o meu papel em
um cenário de guerra mudou e, mesmo contra a minha vontade, será exigido de
mim sabedoria para lutar nas tramoias de tomadas de poder que acontecem por
detrás dos panos.

Além dessas questões referentes ao reino, há as que mais me preocupam,


as questões pessoais.

Afinal, Isabelle está mesmo me culpando e em consequência nutrindo ódio


por mim? Ou será que minha situação perante seus olhos é ainda mais
preocupante e quando nos encontrarmos novamente serei contemplado com seu
desprezo ou, pior, indiferença? Perguntas cujas respostas não tenho como saber
até que fiquemos frente a frente novamente.

De qualquer forma, uma coisa é inegável, corro grande risco de tê-la


perdido de forma irrevogável.
Isabelle volta o olhar em direção ao horizonte. Os nós dos dedos dela estão
brancos de tanto que aperta a borda do navio. Temo o luto da Isa. Dado seu
comportamento inconsequente, tenho todos os motivos para acreditar que
enfrentaremos tempos difíceis nos próximos dias.

Se Isabelle colapsar, e voltar a ser inerte quanto ao papel que deve


desempenhar, saberei que a julguei errado. Mas, se ela perceber que há muito em
jogo neste exato segundo e conseguir colocar de lado a dor para assumir as
responsabilidades, então saberei que devo ir até o inferno para protegê-la com a
certeza de que é a líder que devo a minha vida.

É uma questão de tudo ou nada.

Ninguém ousa interrompê-la, embora todos nós estejamos provavelmente


temendo o mesmo. Será que ela vai se jogar do navio? Digo a mim mesma,
repetidas vezes, que se fosse atentar contra a própria vida, já o teria feito.

Algo desperta a atenção dela, porque depois de vários minutos ela vira a
cabeça para um ponto do navio. Sigo a linha de visão e juro ser capaz de
compartilhar da fúria dela ao me deparar com dois pares de olhos azuis
semelhantes aos da Helena.

Ela encara as garotas por um longo tempo antes de se voltar para nós. Kaká
engole um soluço e faz menção de dizer algo, mas basta um olhar atravessado da
irmã que ele cai em um silêncio profundo.

— O que está fazendo aqui, Mestre Ponda?

Temoroso, mas não surpreso por ser a primeira escolha dela, o anão
sustenta com altivez a própria postura e o olhar gélido da Isa.

— Vim por causa do garoto, senhorita Isabelle.

Não sabia que era possível, mas o ar fica ainda mais denso sobre as nossas
cabeças e absolutamente todos a observa com cuidado. Acontece que ela se
transformou em gelo e nada transparece em suas feições. Isabelle está
malditamente estática, sem perder um movimento sequer de qualquer um de nós.
Tão fria e distante que até mesmo me causa arrepios na nuca.

Deixo de enxergar aquela garota de olhos arregalados e assustadiça que


apareceu em Fayrehal. Ou aquela ladra petulante de nariz empinado que só
servia para criar confusão. Nem mesmo rebelde é uma palavra que se encaixa
para defini-la. Isabelle tem poder, o poder da família Real correndo em suas
veias, e é esse lado que está reivindicando diante todos nós.

Observo como cada um reage a ela e constato que Oclan é o único, além de
mim, que percebe o mesmo nível de poder que emana dela. Seu olhar encontra o
meu e ele assente levemente como se dissesse: “é ela”.

Pelos deuses! É ela. Finalmente!

Não sei definir como me sinto diante dessa reviravolta. Sei que dentro do
meu peito é como se acendesse uma chama potente que emana calor para todo o
restante do meu corpo.

Isabelle ainda não sabe, mas acaba de selar o meu destino, que será morrer
em favor das suas decisões. A dúvida, se agi certo ao desertar dos Guerreiros,
virando as costas para o Reinado que cresci defendendo, acaba de desaparecer.
Minha lealdade pertence a ela, minha futura rainha.

Mestre Ponda pigarreia em desconforto, porque a vida dele está em risco,


então duvido que esteja percebendo essa mudança na postura da Isabelle.

— O senhor Felipe manteve contato comigo após o fracassado acordo com


o Rei. Embora ele dissesse não ter negociação quanto a uma possível troca entre
vocês, estabelecemos um meio termo onde eu o nutria com informações valiosas
a respeito do nosso mundo enquanto ele me prometia discutir com a senhorita
um posto para mim em Fayrehal.

Mestre Ponda aperta as mãos uma à outra e encara a Isabelle com angústia,
porque até agora ela não deu nenhum sinal do que está pensando. E ela fica
bastante tempo ponderando as palavras dele. Até mesmo eu começo a ficar
desconfortável com o escrutínio dela. Por fim, ela pigarreia.

— Felipe era o único que sabia que eu não tinha nenhuma intenção de
reivindicar a minha linhagem perdida. Além disso, ele também estava disposto a
lutar ao meu lado pra que eu não ficasse pra trás. Portanto, Mestre Ponda — o
anão contrai levemente os ombros ante o tom severo na voz dela —, não faz
sentido algum o interesse do meu irmão quanto a obter informações políticas
sobre este mundo. O azar do senhor é que não foi o Kaká, porque se fosse ele, eu
teria acreditado nessa mentira deslavada. Tina.

Isabelle não me olha, mas sei o que está me pedindo, além de estar me
colocando em provação. Durante longos anos, eram as ordens do Mestre Ponda
que eu acatava e agora aqui está ela me pedindo para ir contra ele.
Dou um passo em direção ao anão, que perde toda a cor do rosto e fica tão
pálido que juro estar prestes a desmaiar. Troco um olhar com ele onde digo: sinto
muito, Mestre Ponda, mas a Isabelle é a rainha por quem tanto esperei.

— No início eu também duvidei das intenções dele, senhorita Isabelle —


Mestre Ponda diz apressadamente. — No entanto, ele me confidenciou o medo
que nutria da chegada do momento de vocês retornarem ao lar e a senhorita os
informasse a respeito da decisão de ficar aqui. O senhor Felipe se aliou a mim
porque quis encontrar um meio seguro para que vocês dois tivessem onde ficar
aqui, nestas terras, caso a senhorita não conseguisse mais voltar.

— Mentiroso! — Isabelle aperta os dedos nos punhos com violência ao


vociferar.

— Diga a ela — Mestre Ponda se volta para o Kaká. — O senhor também


deve compartilhar das mesmas suspeitas que o senhor Felipe e eu nutríamos de
que a senhorita Isabelle não conseguiria mais viver no outro mundo.

Para o completo horror dela, Kaká a lança um olhar pesaroso e assente.


Mestre Ponda solta um suspiro de alívio. Fico paralisada sem saber como agir,
além de também estar assimilando as novas informações.

Durante todo esse ano, estive enganada. Quando nos separamos em


Salavinder, era questão de tempo até que a Isabelle retornasse para cá. E a acusei,
repetidas vezes, de ter me virado as costas. Fui injusta, porque a personalidade
da Isabelle não permite que ela feche os olhos para uma situação complicada,
ainda mais quando a envolve diretamente.

O olhar dela cruza com o meu por breves segundos, o suficiente para que
ela note que penso que eles estão certos.

O que mais me deixa perplexa, e talvez seja o que a está causando ainda
mais sofrimento, é o fato do Felipe se preocupar tanto com ela a ponto de agir
por suas costas para garantir a segurança deles. Aquele garoto deixou claro que
nunca permitiria que a Isa ficasse para trás, mas se ela não conseguisse voltar, ele
quis se certificar de que eles teriam onde ficar em segurança. Os dois. Juntos.

— Não tenho nenhum senso de dever em relação ao senhor, Mestre Ponda


— Isabelle responde após vários segundos de tensão.

— Estou ciente, senhorita. No entanto, me permita esclarecer o porquê de


ter arriscado a minha vida para estar aqui. — Mestre Ponda ganha mais
confiança quando Isabelle não diz nada. — O decreto do príncipe Rakar irá
arruinar Fayrehal. Lufstar, o País Baixo mais próximo, possui uma tropa tão bem
treinada quanto os Guerreiros de Fayrehal. Aquelas terras estão correndo perigo.
Não lhe peço uma participação no reinado da senhorita. Essa questão passou a
ser irrelevante para mim. Estou arriscando a minha vida para implorar em nome
daquele povo que te acolheu no passado.

Isabelle se aproxima dele, que não recua, não se encolhe, apenas aceita
qualquer que seja a decisão dela. Logo ambas de suas mãos seguram os ombros
do anão.

— O senhor disse que Lufstar tem um forte poder militar. Qual é o mais
rico dentre eles?

O anão pisca, atônito. Também fico sem entender o interesse repentino


dela e a mudança abrupta de assunto.

— Tzar, o que vem perturbando Yerus. No entanto, vale ressaltar que


Trindade também tem seu valor, uma vez que o Rei renunciou a uma aliança
através de um casamento entre a princesa e o príncipe Áquila...

— Nunca mais diga o nome dele na minha presença.

Mestre Ponda assente rápido. Kaká e eu trocamos um olhar carregado de


preocupação.
— O senhor é um prisioneiro. Será vigiado dia e noite. Se eu desconfiar
que está me alimentando com falsas informações, Fayrehal será a nova terra dos
rebeldes.

— Gosto de como isso soa. — Koli abre um sorriso debochado, o que faz
Mestre Ponda estremecer com a ameaça que o líder dos rebeldes está deixando
implícita. Também não me agrada a ideia deles conquistando aquelas terras. No
entanto, sei que Isabelle não está blefando.

— Kaká, já que você nutre um sentimento especial por prisioneiros, este


também estará sob os seus cuidados.

— Isa... — Kaká arregala os olhos ante a acusação velada da irmã.

— Isso é tudo. Pode levá-lo pra onde você está mantendo aquelas duas.

Kaká relanceia um olhar sobre todos nós. Acredito que está escolhendo
quais batalhas lutar. Quando seu olhar cruza com o meu digo a ele, sem
verbalizar: essa não, camarada. Discutir com ela justo agora, diante todos nós,
só o envergonhará ainda mais.

Ele desvia o olhar do meu, assente para a irmã e então sai.

— Tina. — Ela me chama e meu coração dá um salto no peito, porque


Isabelle está acabando com todo mundo.

— Sim. — Aperto com força minhas mãos atrás das costas.

— Você disse que este navio irá para os Braxus, um dos Países Baixos...

— Quanto a irmos para lá... — pigarreio e a interrompo, desconfortável.

Nunca coloco um plano em ação sem antes ter um de fuga bem definido. A
missão na Ilha do Comércio não foi diferente. Tracei duas rotas de fuga. Uma
por terra, caso o risco fosse mínimo, e uma por mar, caso o risco fosse alto.
Iríamos para Braxus, o mais irrelevante dos Países Baixos, portanto, o mais
seguro diante da crise política que estamos vivenciando. Além disso, o rei de lá
está com praticamente os dois pés dentro da cova. Ter um casamento para formar
uma aliança com ele, seria uma boa opção para a Isabelle.

Com relação aos rebeldes, como já fui mandada para uma missão lá,
também conheço terrenos onde poderíamos escondê-los de forma a viverem
clandestinamente até a Isabelle formar a tal aliança. No entanto...

— Este navio irá para o Norte. — Koli desce as escadas até ficar frente a
frente a ela.

Isabelle me encara com a testa franzida. Eu disse a ela o meu plano, que
mudou quando ele se intrometeu, o que quer dizer que estou furiosa.
Absolutamente nada saiu como planejei. A aparição dela na Ilha do Comércio foi
uma catástrofe impossível de ser mensurada. E como se já não tivéssemos
atravessado uma maldição desarmados, veio o Koli alterando tudo.

— Não posso fazer nada. O navio é dele, Isa — digo rangendo os dentes
para o rebelde.

— Diga ao comandante para mudar a rota novamente, porque nós iremos


sim para os Países Baixos. — Ela o ignora e me dá o comando.

Assinto, mas Koli se adianta antes que eu saia, então paro no lugar.

— O Sul está em guerra e já deixei claro a mentira de que nós, rebeldes,


viemos dos Países Baixos. Além do mais, temos uma tripulação de crianças,
mulheres e idosos que precisamos alocar em terras seguras, ou seja, o Reino do
Norte, onde estão os nossos verdadeiros aliados.

Ela procura o meu olhar e assinto, confirmando que é verdade.


A solução para o problema da Isabelle se encontra no Sul. Mas a solução
para os rebeldes se encontra no Norte. Como o navio é deles, Koli não irá aceitar
as ordens dela mesmo que saiba que, dentre todos nós, é ela quem possui mais
poder. É o sangue dela que é Real, não o nosso, portanto, é ela quem consegue
formar alianças, não eles.

— O navio é meu, garota. — Koli rosna e, no mesmo segundo, Oclan se


coloca a frente da Isabelle, preparado para intervir.

— Faça o que quiser quando atracarmos no Sul. Não vou desperdiçar nem
um segundo do meu tempo, por isso é para lá que este navio irá.

— Todo o ouro do meu povo — Koli bate no peito — está aqui para que
pudéssemos fugir para o Norte! Portanto, a decisão quanto ao destino deste navio
cabe a mim.

— Se a sua preocupação é com dinheiro, então fique tranquilo. Assim que


chegarmos aos Países Baixos, consigo o dobro do que você colocou neste navio.

— Como? Você não tem nada além de um possível título, menina — Koli
basicamente cospe as palavras.

Isabelle abre um sorriso, que não reflete em seus olhos. Os dois não estão
enxergando que precisamos tanto do poder dela quanto dos recursos dele.

— Isa, podemos ir primeiro para o Norte — intervenho. — Garantimos a


segurança dessas pessoas, incluindo Tami, e então partimos para o Sul.

— Não — ela diz com rispidez. — Se vocês têm tempo para perder, eu não
tenho. São meses de viagem em alto mar que irá aumentar ainda mais se
primeiro formos para o Norte para só então irmos para o Sul. Posso perder anos e
a cada segundo que passa é uma atrocidade diferente que aquela família comete.
Se as vidas de um reino não estão no topo da prioridade de vocês, devo informar
que agora está no meu! Quer ouro, Koli? Dê-me o seu preço.
— Irei cobrar.

— E lhe pagarei cada moeda em dobro. — Ela trinca os dentes e o lança


um olhar violento.

Koli a encara enfurecido por longos segundos antes de se retirar para


informar o comandante quanto a mudança do nosso destino. Isabelle, Oclan,
Ruan e eu o observamos em silêncio até que desapareça das nossas vistas.

Estou gostando dessa versão fodona dela, como diria o Felipe. Mesmo não
entendendo metade do que está acontecendo.

— O que devo fazer com o corpo do Felipe? — Oclan pergunta


corajosamente e Ruan se aproxima da Isabelle, envolvendo os dedos ao redor do
pulso dela. Sinto um calafrio apenas em observar de longe. Realmente detesto
ser tocada por ele. É uma sensação muito estranha.

— Preciso da dor. — Isabelle se afasta com brusquidão.

— Geralmente, nos despedimos com uma prece aos deuses e queimamos o


corpo — digo. — Podemos pedir aos deuses do mar e então jogarmos o corpo na
água...

— Não sou fiel aos seus deuses. Nem meu irmão o era. Acreditamos
apenas em um Deus.

— Há muito tempo cumpri missões em Lufstar. Eles também seguem o seu


Deus, então sei que é comum o enterro, no entanto, como enterraremos um corpo
estando em alto mar? — Oclan pergunta.

É a primeira vez que o vejo revelar tanto a respeito de si mesmo. E quando


Isabelle franze o cenho, desconfio que algo a mais foi dito nas entrelinhas, só
não consigo imaginar o que seja.
— O velaremos de acordo com as nossas crenças e então jogaremos o
corpo no mar. — Isabelle se engasga e então se cala.

— Aquele garoto era especial. — Oclan pigarreia antes de voltar a ficar


sério. — Tomarei a frente dos preparativos.

— Obrigada. E quanto a você, Ruan, passe a informação para o Koli de


que iremos para Lufstar, por favor.

Eu sabia! Oclan expressou a opinião dele quanto ao nosso destino sem


precisar dizer muito. Um dia quero chegar nesse nível de sutileza, porque quem
fala pouco sempre é levado mais a sério. Áquila vivia me dizendo isso quando
era o treinador do meu pelotão em Fayrehal, mas o detesto desde sempre, então
tenho tendência a ignorar os ensinamentos dele. Faço mais o tipo que briga pelo
que quer e é exatamente por isso que me preparo.

— Braxus é o melhor destino, como eu havia planeja...

Isabelle se volta com tudo para mim e me calo. Eu gosto de brigar pelo que
acredito, mas não contra ela no estado furioso do luto quando estamos em alto
mar. Se ela ordenar me jogar da embarcação, tenho minhas dúvidas de que
alguém irá ao meu socorro.

— Você me disse que Braxus é o mais insignificante. Não estou atrás de


pouco, portanto, Lufstar será o nosso destino.

Assinto e Ruan a toca novamente, o que me faz sentir outro calafrio. Logo
ele nos deixa e suspiro aliviada. Ficamos apenas nós duas, o que de certa forma é
reconfortante.

— Espero que no futuro você não se arrependa de ter desejado que eu


tomasse a decisão de assumir a minha linhagem perdida. — Isabelle escora os
antebraços na mureta do navio e observa a linha em que o céu encontra o mar. —
Uma ladra no poder. Você é maluca por ter sonhado com isso, Tina.
— Nem ladra, nem rebelde. Você é a herdeira legítima do trono de Yerus.
— Assumo o lugar ao lado dela. — E eu confio em você.

Sei que, para ela, isso pode soar muito mais como uma maldição do que
uma dádiva. Em certo grau, concordo. As decisões irão piorar cada vez mais e
acredito que em determinados momentos Isabelle irá desejar a própria morte. No
entanto, não há ninguém melhor do que ela para essa posição. Mas entendo que
levará tempo até que se enxergue da mesma forma como eu a enxergo.

Isabelle suspira e percebo o cansaço que a abraça. Eu, que sou bem mais
preparada do que ela para embates físicos, também estou a um passo da
exaustão. Imagino ela que, além de ter de lidar com todas essas novas
responsabilidades, ainda carrega a carga emocional do luto.

— O seu destino é pior do que o meu — Isabelle diz, sem qualquer traço
de emoção na voz. — Você deverá proteger a minha vida com a sua. Péssima
notícia, Tina, mas desde o dia em que nasci, descobri que venho sendo
perseguida. É melhor cair fora enquanto há tempo.

— Isabelle. — Seguro seus ombros e a viro de frente para mim. O vento


chicoteia nossos cabelos sobre as nossas costas enquanto encaro a minha futura
rainha nos olhos. — Se eu morrer por sua causa quero que fique registrado que
terá sido a minha maior honra, caso eu tenha te salvado.

Os olhos dela brilham um pouco mais do que o normal por um momento


fugaz e é assim que acompanho de perto o instante exato em que aquela garota
insegura morre para sempre.

Isabelle não é mais a mesma de quando chegou em Fayrehal. Toda a sua


inocência se foi e é triste testemunhar isso, ainda mais tão de perto. No entanto,
agora ela é uma rainha que irá carregar o peso de uma coroa sobre a cabeça,
portanto, serei a súdita mais fiel dela.
Ele está distraído, então tenho chances de pegá-lo de surpresa. São
mínimas, confesso, mas o que importa é que elas existem.

Me preparo para correr em sua direção com toda a força e velocidade que
sou capaz de aplicar em minhas pernas. Nesta última, sou melhor do que ele.
Muito. Na primeira, não. Por isso o efeito surpresa será imprescindível.

Pego impulso e então corro silenciosamente a ponto dos meus pulmões


urrarem de dor. Uso um caixote como trampolim e então dou um salto no ar,
caindo em cima dele. Ele se vira quando ainda estou no meio do arco. Tudo o
que precisa fazer é estender o braço grosso feito o tronco de uma árvore e então
estou sendo arremessada para trás, refazendo no ar o caminho por onde voei.

Caio com força e minhas costas varrem o chão de tablado molhado por
onde sou arrastada. Estico os braços e firmo as palmas das mãos para tentar frear
o meu corpo. Bato a cabeça em um dos vários caixotes espalhados e então paro,
completamente estatelada no chão, feito uma estrela do mar.

Observo as velas, açoitadas pela violência do vento, antes de desviar a


atenção para o céu estrelado. Jurava que ele estava coberto de nuvens e que não
rodava tanto assim.

— Ai — solto um lamento profundo enquanto a dor se alastra por cada


pedacinho do meu corpo.

Ele é muito mais forte do que eu e consegue me detonar apenas nessa


defesa. Inocência a minha acreditar que o elemento surpresa me faria ganhar.
Ouço risadas de alguns dos marinheiros.

Quando uma mão grosseira e cheia de calos é estendida para mim, não
penso duas vezes antes de aceitá-la. Logo sou colocada sobre os meus pés.

— Juro que um dia te pego desprevenido — resmungo enquanto avalio o


estrago em minhas roupas. Alguns rasgados aqui, outros ali, mas tudo bem.

— Pesadelos novamente, Isabelle? — Ele me pergunta com um “q” de


preocupação.

Pressiono os lábios em linha fina. Se eu conseguisse dormir, seria um


sonoro sim. Sempre que o procuro ou é porque quero ferrar com o meu corpo
para conseguir calar os meus pensamentos e, enfim, dormir. Ou porque
finalmente fui vencida pelo cansaço, dormi e fui assaltada por pesadelos.

— Eles foram há quatro dias.

Ele respira fundo, indicando que essa resposta o chateia mais do que se
tivesse sido os tais pavorosos sonhos. Estou um caco. Ele sabe. Eu sei.

— Uma coisa é te treinar. Outra completamente diferente é você me


procurar pra levar uma surra. Esses encontros precisam acabar.

— Você responde a mim. Então fica na sua e vem. — Ergo os punhos no ar


e fixo minha base com as pernas.

— Isabelle... — ele me adverte.


— Oclan... — Faço sinal com as mãos para que ataque. — Cadê todos
aqueles feitos bestiais dos quais tanto ouvi falar?

Sempre é esse o argumento que o convence. Logo tenho um brutamontes


chutando caixotes para liberar o caminho enquanto avança com tudo sobre mim.
Ele é uma besta que palita os dentes com os ossinhos das crianças que come no
jantar. E eu sou a lunática que fica balançando a bandeira vermelha em frente aos
seus olhos para redirecionar toda fúria que arde dentro de si para mim.

Os rapazes do turno noturno deixam de lado as obrigações enquanto fazem


apostas de quanto tempo vou durar dessa vez. No começo, eu não durava nem
mesmo um minuto. Agora consigo chegar nos cinco antes de cair apagada.
Amém. Que assim seja. Preciso dormir.

Oclan investe contra mim e então lutamos da forma mais suja que existe.
Levo várias pancadas, mas me deleito quando consigo ultrapassar a barreira dele
para desferir e acertar um golpe em sua barriga. Dói mais em mim do que nele
— como sempre —, mas é um grande feito da minha parte, então fico orgulhosa
de mim mesma.

— O que está acontecendo? — Uma voz feminina pragueja vindo do meio


dos rapazes, mas estou concentrada demais no embate para desviar a atenção. —
Isabelle? Oclan? Que... Parem já com isso! Os dois!

Pela visão periférica, capto um vulto vermelho tentando acabar com a


nossa diversão. Tina luta para entrar no meio da briga e nos separar.

— Ela é a sua futura rainha! — Minha amiga grita nas fuças do Oclan, que
dá um safanão nela, que cai de lado. E então ele me golpeia.

Acho que isso desperta a fúria que vive dentro dela, porque feito um
vulcão em erupção, Tina planta o salto da bota no peito do pé do Oclan e em
seguida dá um murro em suas partes íntimas. Ele cai no chão gemendo de dor.
Limpo o suor da testa e apoio as mãos nos joelhos, tentando recuperar o
fôlego antes de brigar com Tina por interromper a minha sessão de terapia.

— Você está louca? — Ela avança sobre mim com ferocidade. — Pelos
deuses, Isabelle! O que está se passando nessa sua cabeça?

— O que está se passando na sua pra ousar interferir? — pergunto entre


arfadas de ar.

Tina me encara como se tivesse surgido braços na minha cabeça. Quando


consigo recuperar um pouco da força, vou até Oclan e estendo a mão para ele.

— Você não pode machucá-la, Oclan. Ela é a nossa líder, nossa futura
rainha.

— Vai pra merda, Tina. — Balanço a mão no ar para que o Guerreiro a


pegue. — Anda. Levanta. Seu bunda mole.

— Ela está certa. — Ele recusa minha oferta e se levanta com dificuldades
por conta própria ao mesmo tempo em que chia de dor.

— Não está, não. Não posso ser uma líder o tempo inteiro. Ninguém pode.

— Você deve! — Tina me afasta do Oclan com fúria. — Vidas estão em


jogo e...

Agora ela desperta o pior que vive em mim. Me volto para ela, cuspindo
fogo pelas ventas enquanto a encaro com violência.

— É graças a mim que estamos indo para os Países Baixos. Também é


graças a mim que não seremos atacados no segundo em que atracarmos em
Lufstar, um dos Países Baixos de grande importância...

— Você não tem como saber. — Ela me interrompe.


— Tenho sim. Já mandei pintar uma cruz em uma bandeira branca,
sinalizando que não somos inimigos. A rainha Magnólia entenderá que se trata
de uma embarcação de pessoas que acreditam no mesmo Deus que o dela e com
toda a certeza irá querer me ouvir antes de nos atacar.

— É por isso que escolheu Lufstar?

— É óbvio! Como vamos atracar um navio de Yerus em reinos poderosos


que estão guerreando contra ele? Preciso de um ponto em comum com qualquer
um dos reis de relevância, em vez de me esconder feito uma criminosa em
Braxus. Lufstar tem os elementos que preciso ao mesmo tempo em que ninguém
será ferido. Mais alguma objeção quanto as minhas decisões?

Por um segundo, Tina encolhe os ombros, mas logo os apruma e ergue o


queixo.

— Você pretende ter um encontro com uma rainha enquanto estiver toda
machucada, cheia de hematomas? Sem contar que Oclan pode te matar.

— Eu nunca faria isso. — Agora é o Guerreiro quem fica furioso. — Uso


apenas uma fração da minha força contra ela e somente porque me implora por
isso todas as malditas vezes.

Me intrometo entre os dois.

— Não devo explicações a você quanto ao que faço no meu tempo livre.

— Você será uma rainha!

— Então me trate como tal! — Vocifero de volta. Nós duas respiramos


pesadamente. Sou a primeira a quebrar o silêncio tenso. — Você não é obrigada a
concordar com as minhas decisões, mas é obrigada a respeitá-las.

Noto um aglomerado de pessoas se juntando no convés, atraídos pelo


nosso pequeno embate. Se Tina não recuar, e os rebeldes descobrirem que estou
perdendo esse embate contra ela, serei considerada fraca.

— Você precisa aprender a lidar com o luto de uma forma que não te
machu...

— Vou te dar um alerta — a corto com rispidez em um sibilo. — Somente


um. Você está indo longe demais. Pare agora mesmo e se desculpe.

Tina franze o cenho. Crispo os lábios. Ela precisa recuar. Mesmo que
acredite estar certa, e mesmo que esteja, ela não pode bater de frente comigo
dessa forma. Se espera que eu seja a líder que deseja, Tina tem que me deixar no
controle total, mesmo que não concorde com as minhas escolhas.

— O que está acontecendo aqui? — Kaká pergunta ao se aproximar de


nós.

A interrupção dele a distrai. Só então Tina nota o aglomerado de pessoas


ao nosso redor. Quando volta o olhar para mim, já está livre de repreensão.

— Perdão.

— Está perdoada, mas não vou tolerar que aconteça outra vez — digo isso
mais por causa do Koli na plateia do que propriamente por causa dela.

Tina abre espaço entre as pessoas e volta para dentro da embarcação.


Encaro Koli com intensidade, ele revida. Não desvio. Não fraquejo. Fico firme
até que vá embora levando consigo os rebeldes.

— Voltem ao trabalho — grito para os marinheiros, que se dissipam feito


fumaça no ar, restando apenas eu, Oclan e Kaká.

— A Guerreira está certa, princesa — Oclan sussurra com medo de atrair a


atenção de alguém que não seja eu.
— Pode até ser, mas ela deve externar a preocupação dela da forma como
você está fazendo agora. — Oclan assente, sabendo que estou coberta de razão.
— Não se preocupe. Essa foi a última vez que te procurei para que me deixasse
exausta para que então eu, enfim, consiga dormir.

Quatro dias sem dormir. Sem nem mesmo um cochilo para dar descanso
para o meu corpo e mente. Só por isso vim atrás do Oclan. Se peço para que me
trate como uma Guerreira, ele me trata. Se peço para que me trate feito sua líder,
ele me trata. Porém, sempre que existe a possibilidade e a necessidade, ele me dá
um conselho. Mas é isso: conselho.

Kaká me segue quando passo por ele sem dirigir nem mesmo um olhar em
sua direção. Detesto ter de lidar com o meu irmão quando ainda estou lutando
para afastar da mente a imagem do Felipe morrendo em meus braços.

É por isso que dormir virou uma tortura. Todas as vezes acordo gritando e
suando tanto que os lençóis ficam encharcados. Então só durmo quando perco
completamente o controle sobre todos os meus sentidos e emoções.

— Um dia você vai deixar de me culpar pelo que aconteceu? — Kaká


segura meu pulso e me obriga a parar. — Você mal olha na minha cara, Isabelle.
Sei que preferia que tivesse sido eu no lugar do Felipe. — Fecho os olhos por um
segundo a mais. Não quero discutir o que aconteceu e, principalmente, não quero
ouvir falar no nome do meu irmão, porque toda vez que alguém toca no nome
dele, o vejo morrer de novo, e de novo... Kaká leva ambas as mãos até a nuca. —
Se eu não tivesse remado o barco para o navio, nós nunca teríamos uma chance
de resgatar as nossas irmãs.
— Essa é a diferença entre nós dois. — Finalmente o encaro nos olhos. —
Eu jamais escolheria perder qualquer um de vocês, mesmo que fosse para salvar
todo o restante. Prefiro continuar lutando até encontrar a solução onde caiba
todos a ter que escolher perder um.
— Aí que está! Nem todo mundo é corajoso assim. Você me culpa por não
ter agido da forma como você agiria, mas não reajo assim. É maldade condenar
as minhas ações baseadas no seu comportamento.
— Da mesma forma como era maldade sua me culpar por ir mal na escola
quando você é um gênio? — Cruzo os braços e meu irmão repuxa a boca em
desagrado.
— Estamos discutindo o fato de você me culpar pela morte do nosso
irmão. Esse peso, que está colocando em minhas costas, não tem comparação
com nada, menos ainda com escola, Isabelle. — As narinas dele dilatam.
— Só estou tentando te mostrar que você e eu somos iguais nesse ponto,
Carlos Eduardo. Se deixar a hipocrisia de lado, você vai perceber que também
julga os outros baseado nos seus próprios conceitos. Nas suas definições.
— Posso concordar que você tem razão nesse ponto em específico.
— Ótimo, porque tenho mesmo. — Ergo o queixo.
— Mas escola é uma coisa e me culpar pela morte do Felipe é crueldade.
— Kaká, quando parei de desejar viver no termo de vocês e passei a aceitar
quem sou de verdade, uma ladra, uma vergonha para a nossa família, a irmã
inconsequente que não pesa as ações e acaba trazendo ruína para a vida de todo
mundo, aceitei quem sou. Você precisa aceitar quem você é e encontrar um meio
de viver bem com a sua maneira de ser.
— Covarde, é o que você tá querendo insinuar.
— Se a carapuça tá servindo...
— A mão que arremessou aquela adaga não era minha, Isabelle. Nem
mesmo a presença do Felipe lá foi nossa decisão.
Perco o balanço. Kaká não me encara mais com fúria e sim pena. Ele
descruza meus braços e me abraça contra a minha vontade. Deixo que continue
me apertando porque, apesar de toda mágoa que carrego, ele é o meu irmão mais
velho.
— Felipe não tinha preparação para um combate — digo contra o peito
dele. — Ele tinha músculos e só. Mesmo assim permiti que fosse comigo. —
Minha garganta aperta, mas não choro. Jamais vou me permitir fazer isso, ainda
mais na frente do Kaká.
— Mesmo que você tivesse dito não, Felipe teria dado um jeito de ficar ao
seu lado, nem que fosse escondido, Isa. Você sabe disso.
— Eu hesitei! — digo com angústia. — Na hora de matar Helena, hesitei.
Agora ela está viva e o Felipe morto. — Meu irmão me afasta e me encara com
firmeza. Desvio o olhar. — Para, Kaká. Sou culpada sim. Todos nós somos.
— Helena é a culpada. Não Felipe. Não você. Não eu. Não Oclan. Não
Tina. Nem mesmo o Áquila tem culpa nesse caso. Foi aquela cretina quem tirou
a vida dele, portanto, a culpa é toda dela.
— Se é o que te faz deitar a cabeça no travesseiro sem dor na consciência,
então continue nessa ilusão. — O encaro com frieza. — Negar a nossa parcela de
culpa é querer nos eximir da responsabilidade dos nossos atos. Meu conselho é
que encare as consequências dos seus para que aquilo não se repita com uma de
nossas irmãs. Eu bem sei que naquele dia aprendi uma lição importante da pior
maneira possível, por isso nunca mais vou repetir o mesmo erro. Veja só o que a
minha hesitação nos causou.
— Não quero carregar essa culpa, Isabelle!
— Não cabe querer aqui, Carlos Eduardo! — Nos encaramos, ambos
respirando pesado. — Por um acaso você acha que eu me sinto bem sabendo que
o meu irmão que tanto amo morreu porque eu hesitei? — Kaká fecha os olhos
diante a dor que minhas palavras o causam. — Você não consegue ver que estou
morrendo por dentro? Mas eu não posso e não vou negar que tive a minha
parcela de culpa no que aconteceu. Você também teve a sua e não há nada que
possamos fazer para mudar o passado. Nos resta aprender com o nosso erro para
não repeti-lo nunca mais. Ficar neste mundo significa que vou ter, para sempre,
uma arma apontada na minha direção, e na de vocês também. É esse o destino
que você traçou com tanto entusiasmo. Boa noite.
Deixo o meu irmão para trás e volto para a minha cabine. Deito na cama e
fecho os olhos contra a minha vontade. Sou transportada para aquele dia na Ilha
do Comércio. Logo o meu colchão fica encharcado de suor, mas a sensação que
tenho é o de me afundar em sangue... no sangue do Felipe.
Os raios amanteigados do sol invadem a pequena janela da minha cabine e
os observo pensando o que devo fazer, como mudar meu comportamento, meu
posicionamento... Tina tinha razão. Não posso ficar agindo da forma como agi
ontem à noite.

Preciso descobrir como faço isso e rápido, porque, supondo que eu faça
uma aliança forte com algum rei ou rainha dos Países Baixos, onde conquisto
poder e dinheiro, ainda terá um agravante: não sei liderar. Não nasci para isso,
mas estou disposta a aprender.

Cheguei à conclusão de que liderar vai além de simplesmente dar ordens.


As coisas não funcionam assim, eu mando e as pessoas automaticamente
obedecem. Mesmo que esse fosse o caso, não quero ser esse tipo de líder. A
verdade é que é difícil manter a minha decisão dependendo do nível de confiança
da pessoa com quem estou tratando.

Se estou sendo pretensiosa para tomar posse da minha linhagem perdida,


preciso ter capacidade de sustentar esse título ou tudo pelo qual eu lutar será em
vão. Preciso aprender a ser uma princesa para, quem sabe, no futuro, me tornar
uma rainha.

Como vou fazer isso? Ser persuasiva e não apelativa? Convencer uma
rainha que nunca me viu na vida a me ajudar? Sair viva de lá já será uma grande
vitória.

Respiro fundo.

O problema é que todas as vezes em que penso sobre essas questões, só há


um nome que pipoca na minha mente. Porém, é alguém que tenho mil e uma
ressalvas. Infelizmente, não tem outro jeito. Ele é o único aqui que sabe o que
significa governar um povo.

Saio decidida da minha cabine, mas não segura de que a minha decisão é a
certa. Paro ao notá-lo rodeado pelas crianças. Tami está sentada à sua frente com
as pernas cruzadas e os olhos arregalados de fascínio enquanto Mestre Ponda faz
um cavalo de água no ar, que cavalga na direção dos pequenos, que ficam em um
silêncio contemplativo.

— Uau! — Tami suspira quando a água volta para o copo. — Queria ter
magia.

— Todos possuem magia dentro de si, menina — o anão diz com a


confiança de um sábio professor. — A única diferença entre a sua e a minha é
que em minhas veias corre o sangue dos Drakars, portanto é possível direcionar
essa energia, também conhecida como magia, para que eu possa manejar a água.

— Se eu pudesse escolher, controlaria o fogo — Tami diz de forma solene.

Abro um sorriso, porque Tina e ela certamente seriam dois dragões


fumegantes, se o cabelo for um indicativo dos poderes que teriam.
As crianças começam a gritar o que gostariam de fazer com suas
respectivas magias. Cruzo os braços e escoro o ombro na parede enquanto estudo
o Mestre Ponda as observando com um sorriso sereno nos lábios.

Como um serzinho tão traiçoeiro quanto ele pode ser adorado por crianças?
Até onde sei, elas são boas em detectar pessoas que não prestam. É então que me
lembro de algo que o Kaká uma vez me disse. Só porque alguém não é bom para
mim não necessariamente é ruim para o outro.

— Vossa Alteza — Mestre Ponda me chama ao me notar os observando.

Instintivamente encolho os ombros à menção do pronome de tratamento.


Minha reação é só mais uma evidência de que não estou tão errada em procurá-
lo. Preciso mesmo aprender a sustentar o peso que esse título traz.

Tami vira a cabeça em minha direção e corre para abraçar a minha cintura.
Retiro a franja da testa dela com delicadeza e dou um beijo em sua bochecha,
notando como ela cresceu bastante desde em que nos conhecemos. Ela já não é
mais uma criancinha e imagino a hora que se dará conta de que está a um passo
de distância de deixar as bonecas de lado e começar a treinar com espadas de
verdade.

Solto um suspiro melancólico ao me dar conta disso e volto a atenção para


o Mestre Ponda, quem vim em busca.

— Podemos ter uma palavrinha em particular?

— Claro. — O anão se levanta do caixote e me segue depois que me


despeço da Tami.

Indico o minúsculo gabinete do comandante, que me cedeu o espaço sem


que eu precisasse pedir. Sento na cadeira atrás da mesa de carvalho e aponto para
Mestre Ponda o assento de frente a mim.
— Preciso da ajuda do senhor — digo sem rodeios. Mestre Ponda franze o
cenho e se remexe. — Não finja surpresa. Nós dois já estamos habituados nesse
vai e vem. O senhor me trai e volto pedindo ajuda. Parece um ciclo vicioso do
qual não consigo me livrar. — Solto um suspiro pesaroso.

— Em que posso servi-la, Vossa Alteza?

Me encolho mais uma vez com esse lembrete constante de que agora sou
uma figura da realeza. Eu, uma ladra vinda de uma favela, princesa. Sinto
vontade de rir, mas não mais do que quero arrancar os cabelos da cabeça.

— Começando a me dar dicas de como sustentar um título desses.

— De princesa?

— Sim. — Coço a nuca. — Princesa. Liderança. Essas coisas.

— Entendo. — O anão cruza as mãos sobre o colo. — Ouvi um relato a


respeito de algo que aconteceu na noite de ontem...

— Esqueça. Oclan liderava tropas de guerra. Talvez dê no mesmo.

— Perdão, Vossa Alteza. Não foi minha intenção ofendê-la.

Solto um chiado de frustração. Esse “Vossa Alteza” me dá nos nervos.


Tenho a sensação de que estão debochando da minha cara, de que estou vivendo
uma pegadinha. Afinal, durante anos da minha vida fui uma garota pobre de uma
favela.

— Só por um segundo, dá pra parar de me chamar de Vossa Alteza? Parece


que está zombando de mim.

— Não estou, senhorita Isabelle. De forma alguma. Posso te auxiliar até


certo ponto, mas sei de alguém que possui a capacidade de transformar uma
plebeia em princesa.
— Quem? — Inclino o tronco para frente, completamente embevecida por
suas palavras.

— Oras, a rainha das terras para onde este navio está navegando. Sua
Majestade Magnólia.

Claro. Quem pode me ensinar a ser uma princesa? Alguém que já o foi. Só
preciso saber como convencer essa tal rainha a me ajudar. Até agora, só tenho
planos para não ser atacada imediatamente, mas quando estiver frente a frente
com ela, nada.

— O senhor a conhece? — Batuco os dedos na mesa.

— Rainha Magnólia e eu não tínhamos o melhor dos relacionamentos. —


Bufo e recosto na cadeira. — No entanto, sou adepto da filosofia de conhecer
melhor os meus inimigos do que os meus amigos. — Ele abre um sorriso
enorme. — Sou a pessoa certa para te ajudar a persuadi-la para que fique do lado
da senhorita.

Tenho a sensação de ser uma criancinha e Mestre Ponda um adulto


perverso balançando uma balinha na minha frente para me atrair e então dar o
bote. Ele já fez isso duas vezes, por que agora seria diferente?

— Em troca do quê? — Semicerro os olhos.

— Nada. Considere como minhas mais sinceras desculpas por todo


desentendimento que houve entre nós dois no passado.

— De jeito nenhum. Me dê um preço ou nada feito.

O anão me analisa com afinco. Cruzo os braços e mantenho a postura


rígida. Não vou cair nessa arapuca nem em mil anos. Se eu aceitar, na inocência
de que não terá um preço, a derrota será certeira. Agora, se ele me der um preço,
consigo ter controle sobre a forma como será feito o pagamento.
— Tudo bem, senhorita. — Mestre Ponda pigarreia. — Minha liberdade. É
justo?

Reprimo a vontade de abrir um sorriso de gato. Já esperava por essa


resposta. E, honestamente, é a melhor que poderia ter me dado.

— Sua liberdade então, Mestre Ponda. — Aprumo os ombros. — Conte


tudo o que sabe sobre a rainha Magnólia e será um anão livre. — Só que nos
meus termos, é o que deixo de fora.
Não sei o que está me deixando mais maluca, ficar meses e mais meses em
uma embarcação em alto mar, sem qualquer vislumbre que seja de terra, ou lidar
com o Mestre Ponda dia após dia nesta terrível longa viagem.

Ando em círculos em frente da porta de uma cabine. Já faz tanto tempo que
estou nessa indecisão, se peço ajuda ou não, que daqui a pouco abro um buraco
no tablado e caio no oceano.

Quer saber? Que se dane o meu orgulho. Ele é a pessoa mais inteligente
que conheço e pode me ajudar nessa.

Para não perder a coragem, não bato antes para evitar dar para trás como já
fiz dez vezes. Abro a porta de uma só vez.

— Puta merda! — Kaká se senta de forma abrupta na cama e leva a mão


ao peito. — Que susto, Isabelle. Custava bater antes de entrar? Eu podia tá
trocando de roupa.

— Mas não tá.


Indico as roupas dele de dormir no devido lugar, embora do cabelo dele eu
não possa dizer o mesmo. Com cara de sono e os cabelos arrepiados, meu irmão
amarra a cara para mim.

— Mas eu poderia.

— Tá bom. Da próxima, eu bato. Hmm... Kaká, preciso saber de uma


coisa.

Meu irmão busca os óculos e os coloca, me dando sua total atenção.

— O que eu puder ajudar... — Ele abre um sorriso apaziguador, o que por


sua vez me deixa com raiva. Ainda não estou bem com ele, então fico indignada
com essa mansidão calculada. Endureço os ombros.

— Por um acaso você sabe quem era a Hortense no nosso mundo? — Roo
a unha do polegar.

— Hortense? — Kaká franze a testa.

— Uhum. Você já leu nos livros de história sobre ela ou estudou na escola?
Acho que ela era uma rainha ou coisa assim.

— Desculpa. Não me recordo de nenhuma Hortense.

Solto os braços ao lado do corpo e um suspiro desanimado.

— Saco. Mestre Ponda não sabe muita coisa a respeito da Hortense do


nosso mundo e, mesmo que soubesse, todas as informações que compartilha
comigo são tendenciosas para que de alguma forma seja em seu próprio
benefício.

— Mesmo assim tem dias que você passa horas e horas ao lado dele,
bebendo todo tipo de informação que ele compartilha. — Lanço um olhar
enviesado para o meu irmão que levanta as duas mãos no ar. — Não estou te
reprovando. Estou apenas apontando um fato.

— Infelizmente, Kaká, aquele anão traiçoeiro é o único aqui com quem


posso contar quando o assunto se trata de obter informações. — Meu irmão me
encara de forma firme diante minha indireta. — Enfim. Meu objetivo era me
livrar dele, mas não acho que será possível.

Dou as costas a ele e, no mesmo instante, ouço meu irmão pular da cama.
Ele corre para me deter e se intromete no meu caminho.

— Espere, Isa. — Ele agarra meus ombros e me mantém presa em frente a


si com ansiedade. — Se o seu medo é de que ao se livrar dele perderá uma fonte
importante de informações, então não se preocupe. Vou estudar todos os livros
que encontrar até descobrir tudo o que há para se saber a respeito de quem era
Hortense, ou qualquer que seja a questão que você precise conhecer. Hoje
mesmo começo a pesquisa na estante do gabinete do capitão. E se eu não
encontrar nada lá, pode ter certeza de que em algum lugar vou encontrar. Te
prometo. Você pode contar comigo também.

Surpresa, ergo as sobrancelhas e o encaro com os olhos do tamanho da lua.

— Você faria isso por mim? — pergunto em um sussurro.

— Claro que sim. Você é minha irmã. — Solto um chiado de incredulidade


e desvio o olhar. Kaká aperta meus ombros. — Sei que te desapontei, mas quero
que saiba que eu me importo sim com você. Vou te provar isso.

Engulo o nó na garganta e tento não demonstrar como estou mexida com o


que ele está dizendo. Kaká parece saber mesmo assim, porque logo me puxa para
um abraço apertado.

— Me perdoa, maninha. Sei que você duvida do amor que sinto por você,
mas eu te amo como amo qualquer um de vocês. Perder o...
— Eu sei. — Aperto meus braços ao redor da sua cintura para que não
termine a frase. — Eu sei, Kaká. Também te amo e é por isso que estou tão
machucada, porque tenho a sensação de que te perdi de alguma forma.

— Sempre estive do seu lado, Isa. Em todas as brigas, tenho a tendência de


tomar o seu partido. Estou mentindo? — Balanço a cabeça para os lados, porque
é verdade. Quando Felipe e eu brigávamos, a primeira reação do Kaká sempre
foi a de me defender. — Mesmo quando eu era duro com você, era porque eu
estava do seu lado e não queria que nenhum mal te acontecesse. Quem corrige
ama. Nunca o contrário.

Assinto e meu irmão solta um suspiro de alívio intenso que desata cada nó
do meu coração. Eu não tinha noção do quanto precisava que ele me dissesse
essas coisas, que assegurasse a minha importância na nossa família, na vida dele.
Não sei se um dia serei capaz de superar a morte do Felipe, mas agora sei que
não estou mais sozinha nessa dor. É um elo que Kaká e eu teremos para sempre.

Ele me afasta e olha fundo em meus olhos.

— A qualidade que sempre admirei em você é a sua espontaneidade. Você


é única, Isabelle, e não se trata da sua árvore genealógica composta por reis e
rainhas. Trata-se do seu espírito livre e do sorriso que arranca não apenas dos
nossos lábios, mas também dos nossos corações. A única coisa que te peço em
retorno do que me pediu é para que nunca permita que algo endureça o seu
coração.

— Posso tentar.

— Ótimo. Então comece perdoando a si mesma e a ele também.

Meu irmão não precisa dar nomes. Sei muito bem a quem se refere.

— Não há o que perdoar. Eu não o culpo.


— Ainda bem, porque tenho para mim que algo aconteceu e que ele não te
traiu como Tina vive resmungando. Oclan concorda comigo e achamos que o
Áquila...

— Por favor, não. — O interrompo.

— Mas você disse que não o culpa.

Não culpo o Áquila, mas isso não é o mesmo que dizer que não dói pensar
nele. Só que discutir a respeito dele com outras pessoas é algo que não faço. A
nossa história, os nossos sentimentos, dizem respeito apenas a nós dois e a mais
ninguém.

— Hortense, Kaká, por favor. Estou contando com você nessa.

Saio antes que meu irmão tenha a chance de dizer um “a” que seja, mas
com meus pensamentos inteiros no Áquila e com ainda mais intensidade do que
já foi um dia. Algo que volta e meia me pego fazendo constantemente.

Tenho certeza de que, assim como eu, ele também já se deu conta de que
em algum momento vamos ser obrigados a superarmos um ao outro. Já ficou
provado que fomos condenados a amar alguém que jamais será nosso. Nós não
fomos feitos para ficarmos juntos. Fomos condenados a nos amar em silêncio e a
distância.

Não posso me distrair com o Áquila agora, então suprimo os meus


sentimentos e me concentro em colocar em ação o meu plano, já que finalmente
posso confiar no meu irmão.

Aproveitei o quanto pude para sugar o máximo de informações do Mestre


Ponda em relação a como é Lufstar e, principalmente, a respeito da rainha deles.
Mas, agora que estamos a poucos dias de distância daquelas terras, preciso dar
um fim a esse ciclo vicioso em que me pego sempre com ele.

O encontro na proa, observando a ponta da embarcação quebrando a água.


Assim que se vira de frente para mim, o brilho do seu olhar ofusca aos poucos.
Mestre Ponda assiste com intensidade cada passo que dou em sua direção. De
forma tranquila, escoro os antebraços na mureta ao lado dele.

— Vossa Alteza — o anão me cumprimenta e, graças a ele, já estou mais


acostumada a ser tratada assim. Quer dizer, mais ou menos.

— Mestre anão — retribuo de forma formal a saudação respeitosa.

— Há algo que queira tratar comigo, Alteza?

— Sim. Vim até aqui para me despedir do senhor.

— Vossa Alteza prometeu...

— Que te libertaria — complemento. — E estou cumprindo com o nosso


acordo. O senhor é um homem livre, Mestre Ponda.

— M-mas... — ele olha para os lados, onde só há água e a nossa


embarcação. Nada mais. Nenhum sinal de terra. — Peço para que Vossa Alteza
reconsidere.

— De forma alguma. Mas agradeço as informações que compartilhou


comigo ao longo desses dias e, como prometido, estou te entregando a minha
parte do acordo.

— Senhorita Isabelle, estamos no meio do nada! — ele se exalta.

— Vossa Alteza — o corrijo. — E não me lembro de ter especificado em


quais termos eu te libertaria. Assim como não foi especificado quais tipos de
informações o senhor compartilharia a respeito da rainha Magnólia e estou certa
de que saber sobre as tomadas de decisões dela no passado não é o mesmo que
saber sobre a rede de contatos atuais dela. Também sei que o senhor é
conhecedor de quem a rainha mantém por perto e retém para si todas essas
questões de suma importância.

— Eu posso te dizer...

— Já sei tudo o que me importa. — Faço um sinal e logo Oclan se


aproxima. Mestre Ponda fica pálido. — Enfim chegou o nosso adeus.

— Vossa Alteza, imploro para que reconsidere.

— Não é tão absurdo assim o largar em um bote em alto mar. Afinal de


contas, o senhor controla as águas.

— Sim, mas sou considerado um inimigo nas terras mais próximas daqui.
Se eu desembarcar em Lufstar sem a proteção da senhorita, serei preso.

— O senhor é esperto, anão. Confio que dará um jeito de driblar quem


quer que te capture no caminho.

— Mas... — Oclan segura o braço dele e Mestre Ponda o encara com fúria.
— Sou capaz de encontrar o caminho do bote por conta própria, senhor. Retire a
mão. — Assinto para Oclan e ele atende ao pedido do Mestre Ponda. — Pois
bem. Sequer posso me ressentir de Vossa Alteza, uma vez que admiro a vossa
decisão e é exatamente o que se esperaria de uma figura da realeza que não
confia em alguém da tripulação. Além disso, ancorar em Lufstar comigo a bordo,
um inimigo declarado da rainha daquelas terras, seria a ruína da senhorita.

— Poderia me causar transtornos, concordo, mas ruína o senhor exagerou.

Mestre Ponda abre um sorriso divertido.

— Deixando as formalidades de lado, me permita dizer algo. — Assinto.


— Ah, senhorita Isabelle! Apesar de todos os altos e baixos da nossa relação
preciso confessar que foi um privilégio te conhecer e que sinto falta daqueles
nomes que me chamava. Como eram mesmo?

— Umpa-Lumpa e duende de Papai Noel — digo com um sorriso no rosto


que desmancha aos poucos. — Acho que não fui respeitosa com o senhor no
passado. Peço perdão pelas minhas maneiras, Mestre Ponda.

— A senhorita era a única a quem eu permitia tais liberdades, minha cara.


Eu me divertia muito com o seu jeito de ser. — Ele respira fundo e me encara
com um certo brilho de nostalgia no olhar. — Mas agora a senhorita é uma
princesa e, aos seus olhos, serei o Mestre que sou para todos. — Assinto. —
Espero nos encontrarmos da próxima vez em melhores termos, Vossa Alteza.

— Com todo o respeito, mas, quanto a mim, espero não nos encontrarmos
mais, Mestre Ponda.

— Então adeus, senhorita Isabelle. Mas para a princesa é um “até logo”.


Tenho um forte palpite de que com ela irei me encontrar novamente.

Sem precisar de escolta, Mestre Ponda sai em direção à lateral da


embarcação onde há homens prontos para descer o bote que irá libertá-lo. De
cabeça erguida, o anão entra e nem por um segundo olha para trás.

Não posso dizer que somos adversários, mas também não posso afirmar
que somos amigos. Porém há um respeito mútuo entre nós dois, mesmo que
tenhamos sido prejudicados pelas ações um do outro ao longo da nossa jornada.
Jogo minha espada de ferro simples no gramado e cruzo os braços na altura
do peito enquanto observo com minúcia uma comitiva pomposa se aproximar da
minha residência. Um criado Real logo baixa as escadas e abre a porta para o
Rei. Em solo, a primeira coisa que ele faz não é observar os seus arredores e sim
cravar os olhos diretamente nos meus.

Meu primeiro pensamento é que Rakar morreu. Afinal, qual outro motivo
seria forte o suficiente para que o Rei em pessoa viesse ao meu encontro quando
o mesmo orquestrou para que eu desaparecesse? Só consigo pensar que sou o
próximo na linha de sucessão.

Até estremeço diante indesejado pensamento e fecho os dedos nos punhos


com força.

Vou até ele em passos duros sem me preocupar com os meus trajes. No
caso, a falta deles, uma vez que estou vestindo apenas uma calça simples de
treinamento. Quando paro, o Rei enruga o nariz levemente ao ver o sangue seco
em minhas mãos, em seguida seus olhos percorrem os vários machucados que
adquiri no treinamento desta manhã.
Não me envergonho da minha seminudez, menos ainda da fina camada de
suor cobrindo minha pele. Se minha aparência o incomoda, não dou importância,
porque eu não esperava por uma visita. Ademais, aparência ultrajante era a que
eu sustentava na infância após meus treinamentos com Oclan ou, pior, quando
saio de um campo de batalha. Esses meus estados reconheço serem os de darem
nojo. No entanto, para um Rei, não estou nada apresentável.

— Vossa Majestade. — Faço uma saudação respeitosa.

— Vá se vestir de forma apropriada e me encontre no gabinete em meia


hora. Há questões urgentes que precisamos tratar. E não se esqueça de ordenar
para que os criados preparem uma refeição digna da minha pessoa.

Ele entra na minha casa como se fosse o dono. Não vou contra, uma vez
que ele é o Rei. Ao invés, lanço um olhar para a minha governanta parada na
entrada para que lide com os preparativos. Logo meus criados, que foram
atraídos para o gramado ao ouvirem o som da chegada de uma visita inesperada,
se dissipam pela imensa propriedade.

— Vossa Alteza? — Meu valete me chama e respiro fundo, o


acompanhando para os meus aposentos.

Se eu não estivesse curioso quanto a esses assuntos urgentes, levaria um


tempo considerável até me tornar apresentável. Como não é o caso, me arrumo
rápido com o auxílio do valete e um criado.

Durante meus longos anos de missão em Fayrehal, o quadro de


empregados da minha residência reduziu para mais da metade. No encontro que
tive com a Isabelle, Máximus dispensou os poucos que restaram, ficando apenas
a governanta. Porém, desde o meu retorno da tragédia que aconteceu na Ilha do
Comércio, minha residência passou a ser um lugar digno da moradia de um
príncipe, e nada disso foi feito, ou até mesmo planejado, por mim.
Apropriadamente vestido, entro no meu gabinete e logo o conselheiro Real
me cumprimenta antes de sair apressadamente. Tomo nota da situação. O Rei
veio do Palácio de Pedralhos até aqui para tratar comigo um assunto que, além
de urgente, também é sigiloso. Interessante.

— Recebi uma carta informando que a embarcação dela foi vista seguindo
em direção aos domínios da rainha Magnólia.

Dela. Uma simples palavra que possui a capacidade de despertar os


sentimentos mais poderosos e intensos que existem em mim. Todo segundo que
minha mente vagueia, me vejo tentando descobrir o paradeiro da Isabelle. Os
Países Baixos eram a minha primeira aposta, obviamente, mas não tinha como
saber ao certo qual deles seria a escolha dela.

— O que isso tem a ver comigo? — Sento com a postura rígida em uma
das quatro poltronas enquanto ele se mantém de pé com um olhar calculista para
cada movimento que faço.

— Qual é a natureza exata do relacionamento de vocês?

— Não é possível que Vossa Majestade tenha saído do suntuoso Palácio de


Pedralhos para vir até aqui me perguntar sobre a minha vida pessoal. —
Descanso, de forma despreocupada, um tornozelo sobre o joelho enquanto relaxo
os braços nos apoios da poltrona. — Conheço Sua Majestade Magnólia apenas
de boatos, e não são características agradáveis de se ouvir.

Espero por uma retaliação diante minha ousadia. Por muito menos ele já
mandou que eu fosse punido. No entanto, nada acontece. A segunda nota que
tomo, desde que pisou no meu gramado, é que isso significa que o Rei precisa
mais de mim do que jamais precisei dele.

Imagino que Rakar tenha se tornado um projeto perigoso e, por causa do


meu irmão, estou sendo mantido escondido na minha propriedade até que algo
maior requeira a minha presença. Meu pai, que convém de ser a criatura cruel
ostentando uma coroa sobre a cabeça, parado de frente a mim, ao lado das longas
janelas do gabinete, me transformou em uma besta e agora quer me transformar
em seu maldito sucessor.

Tenho para mim que passei de ser apenas um cavalo no tabuleiro do xadrez
dele para me tornar uma peça ainda mais importante. No entanto, ainda não
consigo deduzir qual seria. O meu medo é o de ter me tornado o ser humano
mais valioso para ele.

— Case-se com ela.

Com essas palavras, meu coração dispara tanto que a impressão que tenho
é que falta pouco para que o cuspa pela boca. Enrijeço cada músculo do corpo na
intenção de voltar ao controle das minhas emoções. Terceira nota do dia que
faço: falhei.

O Rei nota como fui afetado por brevíssimos segundos. No entanto, ele
não gasta seu precioso tempo saboreando a vitória sobre mim. Tomo proveito
para distanciar os meus pensamentos de qualquer assunto que remeta a Isabelle.

— Interessante — digo com a voz relaxada e calma. Ouso até soar um


pouco jocoso. — Então meu noivado com a Helena foi mesmo desfeito. Não que
eu fosse me casar com ela. No entanto, não posso deixar de imaginar a reação do
Borys quando ouviu a respeito dessa nova decisão do Rei

— Todos sabem que será questão de tempo até Rakar renunciar ao direito
dele ao trono, portanto, o seu valor incalculável no momento.

Engulo em seco. A peça mais importante do tabuleiro é o que o maldito me


transformou.

— Rakar jamais renunciaria...


— Ele vai, no momento oportuno — o Rei me interrompe com convicção.
— Quanto ao Borys, estamos em paz, uma vez que coloquei a filha dele sob a
minha proteção e ninguém, nem mesmo um príncipe, terá poder de decisão sobre
o destino dela.

— Imagino que Máximus siga a mesma linha de raciocínio.

Ele me avalia com ponderação por alguns segundos. Já presenciei


inúmeras pessoas se encolhendo ante um olhar avaliativo como o que estou
recebendo, no entanto o efeito em mim é inexistente. Sustento com louvor o peso
do poder que emana dele. Ao perceber que não vou me dobrar aos seus
caprichos, ele quebra o silêncio.

— Acredite ou não, Áquila, você e eu queremos o mesmo e, portanto,


estamos do mesmo lado. Quanto ao Máximus, ele é o seu soldado mais fiel. Se o
seu desejo é o de condená-lo por ter salvado a sua vida em uma situação crítica,
que assim o seja.

— É uma oferta na esperança de que eu me dobre com mais facilidade às


suas vontades?

O Rei abre um sorriso como se soubesse de algo que não sei.

— Meu caro, em uma partida de xadrez, o jogo acaba quando um dos reis é
derrubado. — Prenso os lábios em uma linha fina, indicando que não estou
gostando do tom, menos ainda do assunto. No entanto, ele prossegue sem dar a
mínima. — Todas as ações do Máximus, e dos soldados que você muito bem
treinou, foram para proteger o rei do tabuleiro deles. Esconder para impedir que
ele seja derrubado é muito diferente de traí-lo.

Lanço-o um olhar cortante diante a ousadia de se intrometer nos meus


assuntos pessoais e me instruir como se eu fosse uma maldita criancinha. Eu sei
que as ações do Máximus e dos meus soldados, no que dizem respeito a mim,
não podem ser atribuídas a uma traição. Rakar queria me matar e eles juraram
proteger Yerus com a própria vida. Diante daquela situação delicada, isso
significava me proteger até mesmo de mim, visando o bem maior: Yerus.

O que não sou capaz de perdoar é que, ao me proteger, Isabelle ficou


desprotegida. É nessa corda bamba que ando há anos. Aquele dia foi apenas o
meu pesadelo se tornando realidade. O bem de Yerus contra a segurança da
Isabelle.

Máximus agiu como um soldado fiel, quanto a isso, ele deve ser
recompensado. No entanto, Máximus também me traiu, uma vez que sabe que a
Isabelle possui um valor inestimável para mim e agiu contra isso, portanto,
também deve ser punido.

— Máximus está em Pedralhos?

— Não vim até aqui para discutir Helena e Máximus. Vim até aqui porque
a Viajante está atrás de alianças e a rainha Magnólia não pode oferecer uma forte
como um casamento. Vá imediatamente para Lufstar e retorne com ela ao seu
lado como sua esposa.

— Máximus está em Pedralhos? — repito a pergunta com um tom mais


ameaçador e o Rei me lança um olhar assassino.

Ele não desvia o olhar do meu ao balançar um sininho chamando o


Conselheiro Real.

— Pois não, Vossa Majestade?

— Mande trazerem o Máximus de Pedralhos. — Com uma mesura rápida,


o Conselheiro se retira e então o olhar afiado do Rei se volta para mim. — Vá
para Lufstar e case-se com ela.
— Antes, é preciso supor que a Isabelle vá querer se casar comigo e que a
rainha Magnólia não vá dependurar minha cabeça em uma estaca no menor do
meu vislumbre. — Ele prensa os lábios com firmeza. — Eu os alertei quanto a
transformarem-na em um inimigo. Acontece que a situação ficou tão crítica que
provavelmente ocupo a terceira posição na lista de pessoas odiadas pela Isabelle.
O meu palpite é que perco apenas para Vossa Majestade e Helena.

— Como futuro rei é preciso que você faça algo a respeito, portanto, não
estou pedindo suas considerações. Estou ordenando para que vá até aquela
usurpadora e use a fraqueza dela para que assim evite que a guerra fria, que
estamos travando com os Países Baixos, se estenda para os campos de batalha..

Fico em pé em um salto.

— Primeiro, prefiro enfiar uma espada no meu coração a me sentar no seu


trono. Segundo, Isabelle pode me odiar eternamente, mas a natureza dos meus
sentimentos por ela é imutável, portanto, jamais serei inescrupuloso para usá-la
em tramoias. Terceiro, essa instabilidade que precede uma guerra física foram
vocês que começaram. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para evitar que
chegássemos ao ponto de pegarmos em armas. A minha contribuição já foi feita.

Ele empertiga os ombros e me encara com dureza, mas sem se mover um


milímetro que seja do lugar.

— Então estou certo ao supor que as filhas do Borys terem se tornado


reféns dela foi por sua intervenção? — Não respondo, mas também não desvio o
olhar. — Foi o que pensei. Isso muda tudo e será algo que usaremos a nosso
favor.

— Perdão. Acho que não fui claro...

— Ah, sim. Você foi. Por obra do destino, tudo o que você fez por ela será
o que usaremos para acabar com ela. — Aperto os dedos nos punhos e o encaro
com a boca espumando de ódio. — Você, Áquila, meu precioso filho, que será o
meu sucessor, agiu a meu mando para proteger a... como é mesmo o nome dela?

— Pare — rosno diante o descaso. Ele sorri friamente.

— Nunca foi o meu desejo matar a Isabelle Beauharnais. Tudo o que eu


sempre quis, foi conhecer a descendente dos meus antepassados que compartilha
o mesmo sangue que o meu para, quem sabe, formarmos uma aliança poderosa.
No entanto, Rakar, sedento por poder, mandou que sequestrassem as irmãs dela,
tentou transformar uma delas em cortesã, além de ter colocado um prêmio sobre
a cabeça da Isabelle. Quanto a mim, não poderia me posicionar abertamente em
um assunto que gera tamanha divergência entre a nobreza, mas, por baixo dos
panos, ordenei que o meu outro filho a protegesse.

— Quanta blasfêmia! — Minha respiração até mesmo fica errática,


tamanha a fúria que corrói minhas veias.

— Todas as vezes em que a Isabelle escapou dos soldados do BOP, era


porque o meu segundo filho cumpria as minhas ordens de protegê-la. A meu
mando, ele também procurou um meio de evitar que a irmã dela perdesse a voz.
Tudo feito em segredo, claro. — Ele está me tirando tanto do eixo que sou
incapaz de controlar minhas reações, então arregalo os olhos, abismado por ele
saber dos meus planos que executei em segredo enquanto estava em Pedralhos.
O Rei nota o meu estado de estupor. — Eu sei que um dos seus soldados estava
protegendo a voz da prisioneira. Nada me escapa, Áquila. Além disso, agora a
pouco você confirmou as minhas suspeitas de que você é o responsável para que
as filhas do Borys fossem feitas reféns para que as prisioneiras ficassem a salvo
da insensatez do Rakar.

— Insensatez do Rakar? — repito em um sibilo destruidor.

— Isabelle Beauharnais sempre esteve protegida por mim através de você,


o futuro marido dela e o meu sucessor.
Solto uma risada sem humor diante a loucura dele. Até mesmo encho um
copo com uísque a fim de ordenar os meus pensamentos. Meu autocontrole foi
para os ares.

— Vossa Majestade perdeu a cabeça se acredita que vou sustentar essa


farsa — digo com firmeza e bebo todo o líquido do copo.

— Não preciso do seu apoio, Áquila. Está feito. A Coroa agradece os seus
serviços prestados em nome da segurança do nosso reino e, por conta deles, você
se tornará o sucessor mais querido e esperado por nosso reino, uma vez que foi o
responsável por proteger a vida da tão estimada Viajante. O povo que ainda a
venera irá te idolatrar.

— Eles nunca acreditariam nessa mentira deslavada.

— Por que não? Você por um acaso não sabe que o fatídico dia na Ilha do
Comércio serviu para que o povo se voltasse de novo para mim? Não que eu
precise da aprovação deles, de qualquer forma.

— Do que você está falando?

Ele sorri e se aproxima de mim, enchendo um copo para si mesmo e


reabastecendo o meu com o líquido amarelado. Deixo-o em cima do aparador
sem beber um gole que seja.

— A culpa daquele massacre caiu sobre os rebeldes.

— Onde fica o BOP nessa história?

— Aquela confusão não foi orquestrada por ninguém do BOP. Pelo menos,
não de forma direta. Vocês foram traídos naquele plano para pegar as reféns.

— Maldição! — praguejo ao entender o que ele deixou subentendido.


O Rei assente e bebo o líquido de uma só vez. Isso significa que a Isabelle
está correndo perigo entre os rebeldes. Eu sabia que alguém tinha nos traído e
parte da minha vontade de colocar as mãos no Máximus é porque acreditei que
tivesse sido ele. Ao que tudo indica, ele é inocente neste caso também.

— Os rebeldes e o Rakar são os responsáveis por aquela bagunça. De


qualquer forma, a culpa caiu por inteiro nos rebeldes e advinha quem está
associada a eles? — O Rei abre um sorriso de lado. Fico em silêncio. — A
aprovação da Isabelle caiu drasticamente, mas ainda há os mais fervorosos que
acreditam que ela foi traída pelos rebeldes. Se ela continuar associada a eles,
encontrará a condenação certeira. Tanto porque os líderes dos rebeldes tramaram
contra a vida dela, quanto também porque uma parte da população a culpa por
associação. Eu não preciso da aprovação deles. O mesmo não pode ser dito dela,
caso queira reivindicar o trono algum dia. No entanto, se você, o soldado que
ascendeu a príncipe, que protegeu a vida da querida Viajante ao mesmo tempo
em que sempre lutou para a segurança do reino, se casa com ela, tudo se resolve
pacificamente. Portanto, aceite as honras. O mérito é todo seu por estarmos a um
passo de resolvermos todas as crises internas de Yerus e solidificarmos a
confiança do nosso povo em nosso reinado.

— Impressionante.

— Recebo minhas honras depois. Agora precisamos nos concentrar no fato


de que você está certo. Magnólia jamais permitiria a sua entrada em Lufstar. O
que nos resta é esperar até que a Isabelle retorne. Até lá, pense em tudo o que
fará para reconquistá-la. Essa é a sua nova missão.

Maldito! Se eu reconquistar a Isabelle, minha intenção desde o dia em que


descobri o que aconteceu na Ilha do Comércio, ele reclamará a glória para si. Se
não faço nada, Isabelle me tomará como inimigo e irá me odiar para sempre.
Minha vontade é de esganá-lo aqui e agora até a morte, mas então me
lembro que, se ele morre, corro sérios riscos de virar rei. Deixo minhas mãos
firmes ao lado do corpo.

— Quanto mais Rakar atrai a insatisfação de todos para si, com mais
avidez você será recebido tanto pelos nobres quanto pelo povo. — O Rei abre
um sorriso perverso. — Viu como será uma questão de tempo até que o seu
irmão se veja obrigado a fazer uma declaração pública renunciando ao trono?
Mas não se preocupe. Caso Rakar se mostre relutante, já assinei os documentos
para a troca na linha de sucessão ao trono. Sua tarefa é se concentrar no que fará
para reconquistar aquela garota.

— Se não pode vencer os inimigos, junte-se a eles — digo pensativo e o


Rei assente. — E a verdadeira ameaça que a Isabelle representa é porque a lenda
é verdadeira, portanto, ela é a legítima herdeira do trono.

Ele se cala e, pela primeira vez desde em que pisou nas minhas terras, é ele
quem fica colérico comigo e não o contrário.

— Uma grande dor de cabeça nas mãos erradas, não herdeira legítima. No
entanto, podemos concordar que é do meu interesse que ela não se case com
nenhum outro rei ou príncipe, assim como também é do seu.

O maldito me pegou nessa!


— Achei! — Kaká entra com tudo na minha cabine e joga um livro cheio
de gravuras sobre a mesa, bem à minha frente. Ergo uma sobrancelha e ele
folheia as páginas até encontrar o que quer me mostrar.

— Hã... sem ofensas, mas isso não é um livro pra crianças?

— Não encontrei nada a respeito da Hortense, apenas Aurora, tanto a


verdadeira quanto a cópia. Mesmo assim, quanto a esta última, são apenas
informações insignificantes, como a teoria de que sua cor favorita era vermelho
por causa da sala que mandou redecorar etc., etc.

— O que eles tanto escondem? Mestre Ponda também não falava da


Hortense, sempre fazia referência à Aurora ou Telok I.

— Não sei, mas achei essa referência aqui em uma cantiga de criança. —
Kaká aponta para a gravura. — É a única coisa sobre Hortense e mesmo assim
pode ser que não seja nada, uma vez que é um livro para crianças. De qualquer
forma, a música fala sobre uma mulher que deu à luz a dois imperadores. Pelas
referências atribuídas à tal rainha como bela como o nascer do sol, creio que seja
uma referência a Hortense quando assumiu o lugar da Aurora, que não sei se
você sabe, mas aurora significa nascer do sol. Enfim, o que quero dizer é que...

— A Aurora legítima não pode ser, porque ela não teve filhos. Ou
Hortense teve dois filhos com o Telok I, o que não faz sentido, porque um seria
imperador e o outro príncipe. Ou um de seus filhos do nosso mundo se tornou
imperador, portanto, ela foi mãe de dois imperadores. Um deste mundo e o outro
do nosso. — Dou voz ao raciocínio dele.

— Na mosca. — Kaká abre um sorriso imenso de orgulho.

— É isso. Damião tinha um diadema no antiquário que dizia pertencer a


ela, portanto, Hortense foi mãe de um imperador de lá. Muito obrigada.

— Isso não é nada. — Meu irmão fecha o livro. — Só por curiosidade, por
que você quer saber isso?

— Porque Hortense é a mãe do legítimo herdeiro do trono de Yerus. Sabe,


aquele cuja linhagem estou reivindicando? — Meu irmão solta um resmungo de
impaciência com a minha gracinha. Fico séria. — Ele ganhou o Orientador de
um Drakar e Mestre Ponda uma vez me disse que queria que eu roubasse uma
estrela. Quanto mais eu souber quem era Hortense, mais chances tenho de
descobrir o que significa essa estrela, porque não pode ser estrela, estrela, né?

— Um astro de plasma que possui luz própria, você quer dizer?

— Aff. Sei lá qual é a definição de uma estrela, Kaká.

— Estou te enchendo o saco. Também acho o mesmo que você. Não deve
ser uma estrela. — Ele dá um peteleco na minha testa.

Na conversa que tive em Fayrehal com Mestre Ponda e o Áquila, descobri


quais eram as verdadeiras intenções do anão. Ele queria me usar para roubar uma
estrela. Quando perguntei o que Hortense, o Orientador e eu tínhamos a ver,
Mestre Ponda e Áquila escorregaram para me responder. Mas hoje já descobri
que venho de uma de suas linhagens, a única que é deste mundo e que o
Orientador foi um presente da princesa Laghertia, uma Drakar, para o meu
antepassado, o legítimo herdeiro de Yerus.

Também descobri qual é o objetivo do Orientador, apontar a direção do


desejo do seu dono. Sempre que precisei de algo, ele apontou. Mas não posso me
esquecer que a bússola foi criada especificamente para o filho da Hortense. A
hipótese de que ele procuraria pela mãe e o Orientador o levaria até ela, faz
sentido. O que não entendo é: onde entra a estrela?

Não são informações a respeito do filho da Hortense que devo procurar e


sim sobre a própria Hortense. No meu íntimo, é com ela que tenho um elo de
ligação. Assim como ela, vim do outro mundo, nasci lá, deixei minha família
para trás e acabei presa aqui.

Não é ele. É ela.

— Você sabe de algum imperador do nosso mundo?

— Sei de todos, mas é desnecessário. Basta pensar um pouco que você


descobre quem supostamente era o filho dela. Seu nome é de origem...?

— Fala sério, Kaká. Tenho coisa melhor pra fazer do que ficar tentando
acertar esses seus testes chatos de conhecimento.

— Como olhar o tempo passar até desembarcarmos em Lufstar?

— Isso mesmo. Pode apostar que é bem melhor.

— Seu nome é de origem francesa, Isabelle. — Meu irmão fecha o livro


em um baque e o joga sobre a mesa.

— Sei disso. Seu ponto?


— Como sei que Hortense não era mãe do Napoleão Bonaparte, tudo me
leva a crer que ela era mãe do Napoleão III, sobrinho e herdeiro de Bonaparte.

— Você tá querendo me dizer que eu venho dessa galera? — Arregalo os


olhos.

— Dela, não deles. De qualquer forma, é inegável que isso te faz duas
vezes mais poderosa, porque ela era rainha lá e aqui. Além disso, em ambos os
casamentos deu à luz a imperadores.

— Você disse p-poderosa? — gaguejo.

Meu irmão se senta aos pés da minha cama e dá batidinhas para que eu me
sente ao seu lado. É como ter um déjà-vu. Incontáveis vezes Kaká fez isso com
um de nós na infância para nos ensinar algo de valor.

— Você sabe a respeito da teoria de como os reis eram escolhidos no nosso


mundo? — Balanço a cabeça em negativa ao me sentar ao lado dele. — Segundo
conta a história dos monarcas, eles foram escolhidos diretamente por Deus para
que ocupassem o topo da pirâmide dos homens, sendo assim, eles mantêm
contato direto com Ele em favor da humanidade. Caso a crença deste mundo seja
similar ao do nosso, você está no topo de duas pirâmides.

— Você acredita nisso?

— Importa? — Meu irmão me encara com apreensão.

— Sim. Importa. — Sustento seu olhar.

— Não acredito, Isa. — Solto um suspiro de alívio. Já é um fardo carregar


o título de princesa. Agora, isso aí? Loucura! — Mas isso não quer dizer que a
minha opinião tenha valor. O que importa é que bilhares de pessoas acreditam.
Por consequência...

— Me confere poder.
— Talvez mais do que você possa imaginar. — Kaká abre um sorriso triste.

— Eu posso imaginar sim. O Rei vem tentando me matar desde que roubei
o Orientador, então só posso representar uma grande ameaça.

— Quem te disse isso?

— Que o Rei tá tentando me matar? — Ele assente. — Fala sério, Kaká. O


BOP invadiu o antiquário do Damião atrás de mim e eles mataram os pais da
Tina que estavam lá a serviço dos Guerreiros de Fayrehal.

— Mas eles não mataram Damião. — Confusa, concordo. — Quem te


disse que o BOP queria te matar?

— Mestre Ponda — digo, abobalhada. — Mas em Salavinder eles tentaram


mesmo me matar.

— Por ordens da Helena que suspeito não ter agido a mando do Rei.

— Por que você diz isso?

— Helena realmente te quer morta, mas é pelo que você roubou dela.

— Ah, pronto. Agora você tá sugerindo que minhas habilidades de ladra se


estendem a roubar homens? Vai se lascar, Kaká. Áquila é responsável por suas
próprias escolhas. Não tenho nada a ver com isso. Se Helena fosse minimamente
inteligente, chegaria à mesma conclusão que eu e se voltaria contra a pessoa
certa em vez de focar toda aquela cretinice dela para destruir a minha família.

— Você não tem como saber o que o Áquila significa pra ela, a menos que
entre na mente dela pra descobrir exatamente o que Helena pensa que você
roubou. — O lanço um olhar cortante. — Sem querer.

— Eu não roubei porcaria nenhuma. Áquila se interessou por mim por


conta própria. Enfim. Não quero discutir Helena. O que é dela tá guardado. Mas
eles quiseram me matar sim. Quando fugi de Fayrehal com Tina, a princípio os
Guerreiros só tentavam nos deter, mas quando viram que iríamos escapar,
tentaram nos matar.

— Guerreiros de Fayrehal, não BOP. E a mando do Mestre Ponda, não do


Rei.

— Você tá tentando inocentar o Rei? — Aperto os dedos nos punhos e o


lanço um olhar frio. — Jura, Kaká? Preciso te lembrar que ele sequestrou Lud e
Rebeca?

— Não quero inocentar ninguém. De duas uma, ou ele não tem mesmo
nenhuma participação nessa perseguição ou ele é esperto pra caramba e não
deixou vestígio algum para que não fosse possível acusá-lo diretamente. De
qualquer forma, meu objetivo é que você chegue na verdade e tudo o que
podemos afirmar até agora é que nossas irmãs ainda estão vivas, portanto, morta
ele não te quer, ou já as teria matado. Além do mais, Mestre Ponda ter mandado
te matar significa que se ele não pudesse te ter sob o domínio dele, era preferível
que você morresse, caso contrário você poderia cair nas mãos do Rei... viva.

— Se a sua dedução for correta, por que raios o Rei me quer viva e por que
isso seria um perigo? — Meu coração bate forte no peito enquanto minha barriga
gela de apreensão.

— Não é essa a pergunta cuja resposta desvenda todo o mistério que te


envolve?

Não tenho a chance de pensar a respeito, uma vez que ouvimos gritos de
histeria vindos da parte de cima do navio. Espicho o pescoço por trás do Kaká e
pego um vislumbre de terra através da pequena janela circular.

Em um rompante, fico em pé e corro até ela para tirar a prova se não foi
alucinação. No início, o mar era algo que dava prazer de admirar, mas depois de
um mês ficou cansativo. Quando esse um mês se estendeu para mais e mais e
mais... nossa! Comecei a ter pavor de olhar para água e a odiar a cor azul. Mas
agora?

— Terra — solto um suspiro de alívio e meu irmão logo se une a mim. —


Chegamos, Kaká!

— E estamos sendo invadidos. — Ele aponta na direção de um barco de


onde saem homens que escalam nossa embarcação.

Não perco tempo. A toda, saio da minha cabine com meu irmão seguindo
em meu encalço. Assim que piso no convés, Tina e Oclan se materializam vindos
de não sei onde e tomam ambos os meus lados, um passo à minha frente.

Cinco homens, vestidos com casacos de corte semelhante a fraques, cor


marsala, camisa branca com colete escuro por cima cheio de insígnias e
medalhas, calças da mesma cor e botas pretas, ajunta os tripulantes da nossa
embarcação de um lado com eles parados em uma linha a nossa frente.

Koli, que no primeiro dia reivindicou abertamente para quem quisesse


ouvir que a embarcação era dele a fim de me desafiar, se emaranha entre as
pessoas para passar despercebido — bastardo covarde! Quanto a mim, afasto
Tina e Oclan, ela sob protesto resmungado em um sussurro e ele tenso, mas
abrindo espaço para que eu tome a frente.

— Quem é o responsável por esta embarcação? — Um dos invasores, o


que está à frente do grupo, eleva a voz para ser ouvido por todos.

— Eu. Isabelle Beauharnais, herdeira legítima do trono de Yerus.

Em sincronia, os invasores viram a cabeça em direção à minha voz,


procurando por mim em meio a tanta gente.

— Deixe que eu assuma. — Tina me encara com o olhar em chamas.


— Não. E te proíbo de fazer qualquer coisa estúpida caso algo me
aconteça. — Ela abre a boca, pronta para revidar, mas ergo levemente uma
sobrancelha e ela se cala. — Você será responsável na minha ausência. Faça o
que precisa ser feito, mas não se intrometa no meu caminho.

Quando volto a olhar para frente, o líder deles me assiste com atenção.

— A senhorita está presa. — Seu olhar sem emoção fixa ao meu.

— Sob quais alegações? — pergunto de queixo erguido.

— Até o momento, posse de uma embarcação inimiga. No entanto, talvez


haja mais infrações. É o que iremos descobrir nas celas da nossa fortaleza.

Sinto a vibração de inquietação da Tina, mas não é ela quem faz algo
estúpido e sim Oclan, que desce as escadas e se coloca frente a frente ao homem.

— O senhor não levará a nossa princesa para as suas celas de prisioneiros


sujos. Leve-me preso enquanto os termos políticos serão tratados com a princesa
a salvo até que seja decidido se teremos permissão ou não para adentrarmos
Lufstar.

— É o senhor quem responde por esta embarcação? — Calmamente, o


homem pergunta. Oclan fica em silêncio. — Então é a suposta princesa quem
será presa.

— Basta, Oclan. — Seguro o antebraço dele e seus ombros ficam tensos


enquanto sigo os homens.

Antes que qualquer um de nós desça para o barco ao lado da nossa


embarcação, o Guerreiro pega um dos invasores e o agride. O homem cai
estatelado no chão e, lentamente, Oclan ergue a cabeça. Suas narinas estão
dilatadas, a respiração pesada e os punhos cerrados ao lado do corpo enquanto
ele destila um olhar de ódio para o líder.
— Abater um de vocês é crime suficiente para ser preso no mesmo lugar
para onde a estão levando? — Oclan pergunta entredentes.

Sem argumentos, o líder da guarda de Lufstar apenas gira nos calcanhares


e volta a guiar o caminho.

— Pelo menos agora sei que estou lidando com dois Guerreiros
indisciplinados ao invés de apenas um — sussurro em repreensão para o Oclan.

— Vossa Alteza está lidando com dois Guerreiros que darão a vida pela
sua, isso quer dizer que, aonde quer que vá, um de nós estará lá também. Para o
bem deles, é melhor que não façam nada estúpido. — Dito isso, Oclan se cala de
tal forma que sei que não será possível arrancar nem mesmo um suspiro dele.

Juntos, somos vendados e escoltados até uma prisão, mas ficamos em celas
separadas, uma ao lado da outra, porque Oclan quase matou um dos soldados
quando tentaram nos separar.

No entanto, nem mesmo toda a determinação dele, ou a minha sagacidade,


são suficientes para nos tirar daqui. E é então que percebo como a rainha
Magnólia recebe as aspirantes a princesa. Ela deixa que apodreçam em uma das
várias celas de sua fortaleza.

Após vários dias confinada, ontem, finalmente, um mensageiro trouxe a


notícia de que amanhã serei levada até a presença da rainha Magnólia.

Respiro fundo e, da minúscula janela na parte superior da minha cela,


observo a estrela passar enquanto do lado de fora ouço a celebração da Festa da
Aurora. Essa é a terceira que presencio. A primeira eu estava em Fayrehal e
festejei junto aos Fayrehns sem saber o que aquilo significava. Na segunda, eu já
sabia do que se tratava e não tive qualquer disposição para me juntar aos
tripulantes do navio que levava a mim, Kaká e Felipe para Pedralhos. Na época,
nós três tínhamos nos reencontrado na Floresta Negra e estávamos entupidos de
esperança de que conseguiríamos resgatar as nossas irmãs com a ajuda dos
rebeldes.

No entanto, para a minha imensa surpresa, o que me mantém firme não é


pensar nos meus irmãos, ou nos mistérios que me cercam, a lenda ou minha
linhagem. São as memórias que construí com um certo Guerreiro que me
sustenta segundo após segundo.

Revivo cada momento que passei ao lado dele, desde o dia em que nos
conhecemos, em um de seus treinos em Fayrehal, até o nosso último encontro,
em seu palacete. Em determinado ponto, internalizo de forma definitiva que o
nosso amor é uma causa perdida.

Meu coração bate de forma errante. Minha pele pega fogo. Minha
respiração fica irregular. Minha barriga gela.

Talvez seja apenas uma impressão, ou medo por conta da decisão que estou
prestes a tomar, mas sinto no meu âmago que, de alguma forma, neste exato
segundo, Áquila também está pensando em mim. Nós estamos conectados e ele
pode sentir o que estou sentindo. Estou desistindo dele.

Eu o amo profundamente, mas sei o que será esperado de mim, portanto, o


que preciso fazer. Chegou o momento em que tenho que deixar que Áquila se vá
para sempre para que eu seja capaz de encarar os desafios que me aguardam do
lado de fora desta cela.

Separo tudo o que foi bom e guardo na memória para que nada que vier
seja capaz de me tirar essas lembranças preciosas, que serão tudo o que terei dele
a partir de agora. Momentos passados. Nada mais. Nunca mais.
Fecho os olhos e uma lágrima me escapa. Respiro fundo e então exalo
baixinho que estou pronta para os próximos desafios.
Há aproximadamente seis meses, venho tentando decidir se a rainha de
Lufstar, a inigualável Magnólia, é minha esperança ou meu tormento em forma
de mulher. Além disso, há um ano lido com a ausência do Felipe, algo que me
machuca até hoje e que também transformou a minha vida da água para o vinho.

Sufoco a lembrança do meu irmão. Mais tarde, eu querendo ou não, virá


aquele vazio causado pelo luto. Mas agora eu preciso apressar o passo. Tenho um
encontro marcado com a rainha Magnólia e ela é alguém que definitivamente
não quero deixar esperando. Corrigindo, deixar esperando por mais tempo.

Droga! Aquela mulher implacável vai arrancar o meu couro.

Magnólia é mais cruel do que o Oclan jamais foi um dia, estou certa disso.
Me dê um dia inteiro de treinamento com ele, mas não me dê uma hora nas mãos
dela. Por conta disso, não sei dizer se me ressinto ou não do fato de que justo ela
é a minha esperança, uma vez que é um tormento no meu dia a dia sem um
segundo de folga.

Mas preciso ser justa e é graças aos métodos de puro terror psicológico
dela que hoje me sinto capaz de sustentar um título de nobreza. O preço é alto.
Se eu fosse comparar, a rainha Magnólia seria similar a ser treinada pela
professora de balé mais rígida que já se aventurou a ensinar meninas sonhadoras
a dançarem sobre as pontas dos pés. Para a minha sorte, não conto mais com
facilidades. Ela me destrói em cada aula, mas não é nada que eu não consiga
lidar, por pior que seja o trauma infligido.

— Pelos deuses, Isabelle. Você está atrasada. Perdeu o juízo de vez, foi? —
Tina apressa o passo para me alcançar, vinda de uma das várias alas do pátio
interno do castelo. Seu rosto está retorcido em puro pânico.

— Tina! — solto um grito de alívio e paro para que ela chegue até mim. —
Eu me perdi pela milésima vez. Me ajuda! Pelo amor de Deus!

Há essa altura, já era esperado que eu conhecesse este castelo como as


palmas das minhas mãos. No entanto, basta uma mísera mudança no trajeto, que
seja entrar em um corredor novo, o que tem aos montes, e pronto, me perco
completamente. Tenho certeza de que todas as curvas e caminhos, construídos
como se fossem um labirinto, tem o objetivo de confundir os visitantes.

São incontáveis torres e alas. Há ruas no interior do castelo, pátios, jardins,


lagos a perder de vista, labirintos verdes, templos, cemitério e até mesmo uma
igreja com uma abóbada alta onde a rainha Magnólia me obriga a ir todos os
domingos. Não obriga no sentido de me ameaçar, mas no sentido de que ir contra
o que ela espera é um terrível erro. Enfim. Acredito que tenha ainda mais coisas
para se descobrir, mas nem perco meu tempo explorando o lugar. Uma hora ou
outra sei que vou descobrir algo interessante por acidente, já que vivo me
perdendo.

A parte interna é como uma cidade pavimentada em paralelepípedos e


pedras com corte reto e liso encaixadas na formação da construção dos prédios e
torres. Dentro do muro que contorna o castelo de fora a fora, pareço uma barata
tonta. Prefiro os jardins, que seja o que rodeia a área externa, ou os dois jardins
internos que já esbarrei algumas vezes. Do lado de fora, descendo uma longa
escada que atravessa uma colina, há o castelo menor que estava desativado, bem
ao pé do morro. É nele que fomos generosamente alocados pela rainha Magnólia.

Generosamente... como se eu fosse acreditar na benevolência de alguém


depois de tudo pelo qual passei.

Se tem algo que aprendi é que tudo tem um preço. Mestre Ponda me usou
para benefício próprio em Fayrehal. Laghertia, a princesa Drakar, salvou a minha
vida em Salavinder e me deu a Espada Viva. Logo em seguida descobri que suas
atitudes foram na esperança de que eu retribuísse esses favores renunciando
salvar minhas irmãs para encontrar Aurora. Até mesmo o Áquila teve segundas
intenções quando me propôs uma aliança. Ele visava a paz de Yerus e em troca
me pediu para rejeitar minha linhagem. Nem Tina escapa dessa. Ela também
sempre deixou claro que esperava de mim que eu estivesse exatamente onde hoje
estou, reivindicando o meu título.

Por que eu esperaria justo da rainha Magnólia, uma mulher de grande


poder, que nunca me viu na vida até o dia em que ancorei um navio inimigo em
suas terras, uma oferta de algo que desejo, mas sem esperar nada em troca? De
forma alguma. Sei que não há graça em suas ações. Há um acordo entre nós, um
ganho mútuo.

É do interesse dela que eu seja capaz de sustentar uma coroa sobre a


cabeça. E é aqui onde a rainha Magnólia se torna o meu pior pesadelo. Ela usa
todos os seus conhecimentos para me sufocar, tirar a minha voz, me transformar
em algo que não sou, me domar. E ela tem muitas habilidades para ser bem-
sucedida com louvor.

Tina me lança um olhar para transmitir força quando paro em frente às


portas do aposento onde diariamente me encontro com a rainha. Engulo em seco
ao ouvir minha presença ser anunciada e Tina aperta de leve meu antebraço antes
de virar as costas depois de ter me ajudado a encontrar o caminho correto.

Respiro fundo, seguro as laterais da saia do meu vestido de veludo preto e


dou um passo para dentro da minha sala de tortura revestida com tapeçarias
luxuosas, detalhes em ouro nas pilastras, lustres de cristal espalhados pelo amplo
espaço, obras de artes magníficas pintadas a mão nas paredes e um piso de
mármore brilhoso. Cada milímetro da sala tem um detalhe da riqueza do reino de
Lufstar, como o teto, por exemplo, que é todo trabalhado na arte de um talentoso
artesão.

Mas o centro das atenções é o retrato da rainha Magnólia. Nenhuma


pincelada foi desperdiçada e todas trabalham para o objetivo comum de
transmitir a altivez da rainha de Lufstar. Nele, Magnólia está de pé, com os
ombros rígidos, cabeça erguida e olhar prateado penetrante e matador.

Tudo na pintura me impressiona. Inclusive, já me peguei diversas vezes


abismada com a riqueza de detalhes... as pinceladas dando vida ao seu tom de
pele marrom, o vestido cor de marfim, os olhos profundamente cinzas, o
penteado com cada fio de cabelo escuro bem desenhado... Cada milímetro é de
um brilhantismo indescritível, da mesma forma como Magnólia é
presencialmente. Um retrato perfeito da mulher impenetrável.

Embora seja este o quadro em destaque, nem de longe é o meu favorito. O


que mais me intriga até hoje, e que volta e meia me pego observando, é um onde
Magnólia está retratada ao lado da irmã, a rainha do Reino do Norte. Enquanto o
tom de pele de uma é escuro, o da outra é claro. Quanto às cores dos vestidos,
elas invertem, tons pastéis para uma e tons fortes para a outra. Um cabelo é loiro
branco platinado e o outro preto obsidiana. E assim segue um contraste, mas um
contraste da vida real que ganha vida na tela. A única similaridade entre as duas
é o olhar ferroso, que dá a sensação de transmitir uma personalidade que as duas
compartilham. Intensas. Altivas. Impetuosas.
As duas não são opostas, embora todo o contraste, tanto nas constituições
físicas quanto na forma de se vestirem, indique. Não. Elas são dois lados da
mesma moeda e isso é intrigante, ou assustador, depende do ponto de vista em
que se olha, porque conhecer uma Magnólia é trauma suficiente para uma vida.
Não quero nem imaginar o que é conviver com as duas ao mesmo tempo. Passo,
obrigada.

— Perdão pelo inconveniente de fazer Vossa Majestade esperar por mim.


— Faço uma mesura rápida enquanto o olhar da rainha me avalia das pontas dos
pés à cabeça.

Sei que ela não perde nada, nem a lama seca na lateral da sola das minhas
botas puídas — não deu tempo de trocar como consegui fazer com as minhas
roupas — até os fios de cabelos indomáveis que tanto tentei colocar no lugar —
a razão pela qual fiquei sem tempo para trocar os sapatos. Me retraio
internamente, porque era aparecer assim ou me atrasar ainda mais.

Não sou nem louca de tentar me justificar. Uma vez fiz isso e saí daqui
destruída mentalmente. Tenho calafrios só de lembrar daquele episódio.

A rainha Magnólia não usa punições físicas. Não, ela é superior a todas
essas técnicas dolorosas que Oclan aplica em mim. Seus métodos são mais sutis
e refinados, portanto, infinitamente mais excruciantes.

— Foi uma curvatura o que vi? — Ela crispa a boca em reprovação.

Merda. Merda. Merda. Mil vezes merda! Estou tão preocupada com meu
atraso e minha aparência tenebrosa que me esqueci do básico. Não devo me
curvar perante ninguém por maior que seja a força invisível que me instiga a tal.
E, minha nossa, a rainha Magnólia tem um poder que faz formiga se curvar.

Aprumo os ombros. Sou a herdeira legítima do maior reino deste mundo.


— Confesso que até hoje sinto vontade de debochar disso.
A rainha Magnólia parece ler o meu sarcasmo interno, o que por sua vez
faz um peso cair na boca do meu estômago.

Capaz que essa mulher tem sangue Drakar correndo em suas veias, porque
não é possível ser capaz de adivinhar com tanta facilidade assim tudo o que
penso, ou as menores inclinações que sinto secretamente. Tem que ser algum
tipo de magia, porque isso é uma desgraça diária na minha vida. Sem lógica.

Ela atravessa a sala com uma graciosidade invejável. A rainha Magnólia


não anda, ela desliza como se fosse um cisne negro majestoso nadando em um
lago de águas calmas e cristalinas.

Fico estática no lugar quando ela se aproxima de mim. Com delicadeza,


Sua Majestade segura uma das minhas mãos e a inspeciona com minúcia. Agora
quero morrer! Sei que a rainha nota cada um dos novos machucados que adquiri
na noite de ontem.

— Hmmm — ela volta minha mão com cuidado para o lado do meu corpo.
— Vossa Alteza está em minhas terras à procura de diversão?

— Não, Vossa Majestade. — Requer energia, mas sustento seu olhar e


mantenho a voz firme, sem gaguejar. Também não quero lembrar o dia em que
gaguejei na frente dela. Tenho horror de cometer esse deslize.

— Então me permita ouvir as razões para uma princesa ter mãos calejadas
e machucadas como as de um soldado. — Ela se senta em um sofá com a coluna
ereta, sem recostar as costas no encosto, com as pernas juntas e viradas para o
lado e o queixo inclinado para cima em minha direção.

Estou em vantagem em relação à altura, no entanto, é ela a força maior


dentro dessas quatro paredes. E está me dizendo exatamente isso com sua
linguagem corporal. Sentada, ainda por cima.

Deus, que hoje o treinamento não seja me sentar desta forma.


— Eu precisava lutar.

Observo atentamente os efeitos que minhas palavras surtem nela.


Nenhuma reação. Nada. Nem mesmo uma centelha que seja dos seus
pensamentos. De tudo, isso é o que até hoje tenho dificuldades em aprender.

Sou impulsiva demais, portanto, é bastante desgastante tentar controlar


minhas feições. Para ser bem honesta, detesto ter que treinar meu temperamento.

— O que a diferencia dele, Vossa Alteza, quando se mostra incapaz de


controlar seus impulsos destrutivos?

Engulo em seco. Não há escolha de palavras que me tira mais o fôlego do


que quando ela me compara a ele, o Rei. A rainha Magnólia várias vezes aponta,
de forma sutil, que sou parecida com o Rei, o que por sua vez me faz enxergar
vermelho. Óbvio que ela nota o ódio palpável que sinto com a mera ideia de me
assemelhar a ele, verdade ou não, e nunca hesita em usar esse recurso contra
mim sempre que a convém.

— Não sou nada parecida com ele. — Trinco os dentes e ela nem mesmo
altera a inclinação do corpo.

— Estou errada ao pressupor que Vossa Alteza ainda sente o desejo


incontrolável de se vingar da soldada Helena?

Aperto os dedos com tanta força ao redor dos punhos que chega a doer as
minhas juntas.

— Ela deve pagar — digo com violência.

— Vejo, parada à minha frente, uma escrava almejando ser uma princesa.

— Não sou... — ofendida, começo a me defender, mas ela me corta.


— Se Vossa Alteza não é capaz de ter controle sobre as próprias emoções,
então isso a torna escrava de si mesma. — Faço menção de dizer algo, mas
Magnólia ergue uma sobrancelha e, simples assim, fecho a boca. — Escrava,
Isabelle Beauharnais. — Crispo os lábios. — É o que enxergo todas as vezes em
que os meus olhos pousam sobre si desde a primeira vez em que apareceu
imunda diante o meu trono e me pediu por uma aliança. — A encaro nos olhos
prateados que faíscam, embora as feições dela continuem inalteradas. — Se a
guerra deixar de ser um conflito político-ideológico para ser declarada nos
campos de batalha, eu darei a ordem para que os meus soldados bem treinados
invadam Fayrehal e os Kondas. A assinatura que condenará milhares de vidas
será minha. Mães irão chorar a perda dos filhos, sejam eles jovens, crianças,
bebês... Mulheres sofrerão a violação de seus corpos, violação essa que acontece
sempre que há uma conquista de um povoado. Esposas ficarão viúvas. Velhos
serão mortos. Os homens que sobreviverem ficarão aleijados até o fim de suas
vidas... Todo esse sofrimento de pessoas que Vossa Alteza provavelmente
conheceu, será por consequência da minha assinatura. No entanto, Vossa Alteza
veio até mim com o desejo de um dia estar aonde estou. — Magnólia se cala e
me encara à espera de que eu diga algo.

— Sim. Nutro esse desejo. — Engulo em seco, fazendo um esforço


monumental para não gaguejar ou, pior, chorar. Não quero ser responsável por
uma guerra, mas ao concordar com ela parece que é isso que estou dizendo. No
entanto, o que quero é apenas ter a posição de poder dela para salvar inocentes.

— O meu decreto seria para salvar os meus para que não sejam as minhas
mulheres, homens, crianças e idosos a sofrerem tais brutalidades, Vossa Alteza
— Magnólia diz como se fosse capaz de ler os meus pensamentos. — A
crueldade começa simples, como o desejo de matar a mulher que assassinou o
vosso irmão. É completamente justificável perante muitos, incluindo a mim e a si
mesma, mas não aos olhos de todos. No entanto, esta não é a questão mais
agravante, embora estejamos falando de sentenciar à morte uma pessoa culpada e
que merece pagar pelo que fez. Há algumas questões a serem ponderadas. A
principal é o quanto essa decisão te deixará confortável. Quanto mais
justificativas plausíveis Vossa Alteza tiver para dar a si mesma, mais fácil será
assinar um simples decreto que irá dizimar com milhares de vidas quando
alcançar a minha posição.

— Que fique claro. Eu não quero deflagrar uma gue...

Magnólia se levanta com altivez e me calo. Ela se aproxima de mim.

— Continue escrava do ódio que semeia em vosso coração e logo será


guerra o que Vossa Alteza enxergará sem se importar com as implicações que ela
carrega. — Magnólia me encara por alguns segundos. — O que irá diferenciá-la
dele é o que Vossa Alteza irá semear durante o caminho. O que dirá se a vossa
sentença de condenar alguém a morte foi a decisão correta, será o descanso de
uma consciência tranquila ao fim do dia ao saber que salvou tantos outros.
Enquanto não tiver certeza da vossa decisão, não o faça, portanto, controle a sua
sede de vingança, Isabelle.

— Sim, Vossa Majestade.

— É esperado de um soberano a servidão. — Magnólia caminha até uma


mesa de carvalho. — Para isso, o povo precisa depositar a fé em nós. Como é
possível quando não somos capazes de nos controlar em primeiro lugar e
lutamos na calada da noite feito um baderneiro?

— Com todo o respeito, Vossa Majestade. Na questão que diz respeito a


Helena, compreendo e estou de acordo, mas quanto aos meus treinos físicos,
estamos andando em círculos. Não posso ser completamente isenta de reação.
Isso é o que me torna eu mesma. Lutar ajuda a manter minha mente sã.

— Impulsiva. — Ela inclina levemente a cabeça para o lado. —


Despreparada. Teimosa. Invasiva. Malvestida. Mal-educada. — Magnólia para
um momento para me avaliar e juro que seu olhar prateado tem a capacidade de
atravessar meus ossos. — Ladra. Há seis meses é com este tipo de personalidade
que tenho de lidar diariamente e me questiono constantemente se é esta figura
que o reino de Yerus merece como governante.

— Merece? — pergunto em uma calma fria. — Acho que não, mas é o que
eles terão.

Se um olhar fosse capaz de cortar, eu já estaria triturada no piso de


mármore sob meus pés.

— Ele irá destruí-la na primeira oportunidade. Sem a minha ajuda, Vossa


Alteza não terá nada, porque é uma ninguém, uma escrava de si mesma. — Ela
nem mesmo altera o tom de voz, mas sinto as bofetadas no rosto mesmo assim.

— Pare de me chamar de escrava. — Cerro os pulsos ao lado do corpo em


uma tentativa de controlar a raiva.

— Vossa Alteza é uma vergonha para a linhagem dos Tupper. Eles devem
se revirar no túmulo por terem uma sucessora com estas características
deploráveis e inaceitáveis. — Ela percorre meu corpo com o olhar carregado de
desprezo.

Não caia na dela. Não caia na dela. Não caia na dela — repito várias
vezes em minha mente para que suas provocações não me atinjam. Magnólia está
atacada hoje, mas preciso dela e ela precisa de mim. Ambas odiamos isso, mas
estamos dispostas a passarmos por cima do nosso desconforto por termos um
objetivo em comum.

Visto minha máscara de indiferença. Magnólia me ensinou a reprimir a


raiva em momentos como este, e ela já foi bem mais cruel do que está sendo
desde em que pisei nesta sala. Ergo o queixo e a encaro com firmeza.
— Se eu for a primeira a negar quem sou, fingir que meus defeitos não
existem, entregarei de mãos beijadas as armas para que meus inimigos me
destruam. — Crispo os lábios. — Sou tudo o que Vossa Majestade listou. E
então, qual é o ponto?

Para a minha surpresa, ela sorri em aprovação o que me faz piscar


repetidas vezes.

— Finalmente, Vossa Alteza. — Ela bate palmas elegantemente, porque


tudo o que Magnólia faz é com altivez. — Fico contente que não tenha me dado
uma resposta infantil ou saído desta sala aos prantos. — O que já aconteceu.
Infelizmente, mais vezes do que gosto de lembrar. Acontecia principalmente
quando ela me atacava em relação ao Felipe ou ao Áquila. Porque Magnólia é
cruel e vai diretamente no meu sistema nervoso. — Finalmente Vossa Alteza
encontrou o motivo correto para manter a vossa decisão. Este argumento é um
que consigo aceitar, portanto, esta divergência, em específico, agora faz parte do
nosso passado.

Ela indica com o olhar um pergaminho virgem sobre a mesa e uma pena
com o tinteiro ao lado. Entendo seu chamado para que me aproxime e faço o que
me pede.

— Escreva o vosso nome.

Reprimo a vontade de perguntar: “só isso?”. Com Magnólia nada é tão


simples quanto parece ser. Então, sem falar nada, cubro o papel branco com tinta
preta e escrevo: “Isabelle”.

Relanceio um olhar para ela, que enrijece ainda mais a postura.

Estou fazendo algo errado. Jesus. Como posso errar a escrita do meu
nome? Meu nome, caramba!
Magnólia não se digna a explicar e tenho medo de perguntar. Ela vai me
atacar no Felipe ou no Áquila, uma vez que o Rei e Helena já foram. Acontece
que qualquer um dos dois me tira o ar só de pensar em ter de lidar e... merda!
Gosto de respirar. Também não gosto de ficar com minhas mãos machucadas e
estou assim por conta do treinamento de ontem, porque ela me atingiu
incessantemente no Felipe. Foi tão doloroso que precisei ir atrás do Oclan no
meio da noite e implorar para que lutasse contra mim.

Pensa rápido, Isabelle. Está faltando algo. Você só precisa descobrir em


um segundo o que é.

Está faltando algo.

Mais do que depressa, acrescento “Tupper Beauharnais”. A primeira é a


linhagem do Telok I e a segunda a da Hortense no meu mundo. Para fins
políticos, apenas a primeira importa. Para fins de poder, a segunda me diferencia
por se tratar de uma evidência de que pertenço a dois reinados de dois mundos.
Esta foi, de longe, a lição mais significativa que tive com a rainha até hoje.

Dou palminhas imaginárias em meus ombros por ter conseguido reverter a


situação a tempo e solto um suspiro de alívio.

— Esta é a assinatura de uma monarca? — Magnólia puxa o papel e avalia


por tanto tempo minha letra infantil, que minhas bochechas pegam fogo. —
Sente-se.

Sento na cadeira indicada sem grandes expetativas na aula de hoje.


Magnólia escreve a assinatura dela no topo de uma folha e engulo em seco. Vou
mofar aqui, porque levará um milênio até chegar minimamente próximo da
caligrafia tão refinada quanto a dela. Para piorar tudo, ela me deixa ver sua
assinatura por poucos segundos e logo lança o pergaminho dentro da lareira,
diretamente na boca do fogo.
— Comece. — É tudo o que se digna a dizer antes de começar com nossa
aula de história.

Ela discorre sobre o reinado de um dos meus antepassados enquanto tento


lidar com o fato de ter que praticamente reaprender a escrever. Além disso, para
garantir que estou prestando atenção, Magnólia faz perguntas durante o
entediante monólogo.

Nem uma hora se passa e tenho para mim que meu cérebro já virou mingau
enquanto meus dedos começam a dar calos. Sinto vontade de saltar da janela e
findar com a minha desgraça agora mesmo.

No menor relancear de olhar para a janela, Magnólia detecta minha


distração e me pune ao me fazer transcrever um livro. E não qualquer livro, mas
um sobre cultivo de plantas exóticas.

Solto um suspiro pesaroso pensando como prefiro os ataques surpresas do


Oclan. Milhões de vezes, o que é bem triste e diz muito a respeito da situação em
que me encontro há seis excruciantes meses.
— E a rainha Magnólia está de acordo com o seu plano? — Tina pergunta
com um tom que deixa implícito que ela não está.

— Não é um plano, é a minha decisão. — Afasto a cortina para o lado e


observo o príncipe herdeiro do Reino do Norte chegar junto ao seu séquito.

Quando fui presa, nem por um segundo me desesperei. Isso não quer dizer
que gostei daquela experiência, porque posso afirmar com cada fibra do meu ser
que tanto Oclan, quanto eu, odiamos aqueles dias naquelas celas insanamente
tediosas.

Oclan mais do que eu. O coitado sempre trocava as nossas comidas e só


me permitia comer a refeição que era destinada a ele depois de provar se não
estava contaminada. Acontece que a minha sempre estava com algum
ingrediente que puxava a língua do Oclan e o fazia compartilhar coisas a respeito
da sua intimidade que duvido que em um estado de sobriedade ele teria
compartilhado comigo.

Quando ficou claro que Oclan comeria tudo, ou nada, porque em


determinado ponto ambos paramos de comer, a rainha Magnólia desistiu do
plano de me chamar à presença dela dopada com alguma substância que me
fizesse revelar até mesmo o meu segredo mais vergonhoso.

Então foi com sobriedade que a encarei e sustentei quem eu era. Também
foi com lucidez que declarei que estava à procura de formar alianças por meio de
um casamento. Também foi com determinação que deixei subentendido que
estava disposta a avaliar com grande consideração alguém que ela me indicasse,
dependendo do que se dispusesse a me oferecer em troca, claro. E, de novo, foi
consciente que concordei em esperar para conhecer pessoalmente qualquer rei,
príncipe ou nobre de grande influência dos Países Baixos, até que o sobrinho
dela pudesse chegar do Reino do Norte para me conhecer.

Neste meio tempo, a rainha Magnólia se dispôs a me educar e a me colocar


nos moldes do que se é esperado de uma princesa. Ela me presenteou com baús
de roupas e joias. Também me alocou em um pequeno castelo e foi além ao
permitir que os aliados e inimigos que vieram comigo tivessem um teto e comida
para comer. E assim como ainda estou em dívida com o Koli, nada,
absolutamente nada, veio isento de um preço com a rainha Magnólia.

Quanto ao pagamento dele, ainda estou avaliando tanto a rainha quanto


alguns dos nobres de seu reino para ver com quem faço uma aliança em troca de
ouro para pagá-lo como prometido. Como o rebelde não está com pressa, e
parece bem confortável em ficar em Lufstar, estou levando meu tempo para fazer
um bom acordo.

Quanto ao preço da rainha Magnólia, estou prestes a saber exatamente qual


será o valor exigido.

— Jura que Sua Majestade está de acordo com essa decisão? — Tina
arregala os olhos.

— Sua Majestade não tem que concordar com a minha decisão e sim
aceitá-la.
Tina se afasta da janela e vira-se de frente para mim. Relutante, desvio a
atenção do alvo do meu interesse e a encaro de volta.

— Você conseguiu. — Minha amiga abre um sorriso orgulhoso.

— Não fique tão surpresa. Não é tão difícil assim fazer valer a minha
vontade perante uma força como a dela.

O difícil mesmo é agir como se é esperado de alguém da minha posição.


Como nas aulas com a rainha Magnólia em que ela coloca todo o conhecimento
cruel dela para que eu aja majestosamente. E vem dando resultado. Nessas aulas
pavorosas, gradativamente sou menos ladra, menos guerreira, menos rebelde,
menos eu e mais alguém da realeza: domada, elegante e altiva.

Eles querem uma princesa submissa.

Mal sabem eles que estão levando uma rainha indomável.

— Isa...

— Só me chame assim quando estivermos a sós. — Advirto Tina


prontamente.

Ela pigarreia e assente após relancear um olhar rápido para as damas de


companhia que me seguiram.

— O que Vossa Alteza pretende descobrir? — Tina não parece


desconfortável com o pronome de tratamento, mas eu ainda fico ao ouvir vindo
dela até hoje.

Eu tento, juro que tento ressignificar a forma como me enxergo, mas ainda
me sinto igual à Tina do que jamais me identifiquei com a rainha Magnólia.

Além do mais, Tina não é qualquer pessoa. Ela é mais do que minha
amiga. A considero como se fosse minha irmã, então é bem estranho ter que
cobrar dela esse comportamento. Mas não há nada que eu possa fazer. Se decidi
abraçar a minha linhagem perdida, então tenho que aceitar tudo o que implica ser
uma princesa. Não que eu goste, porque, verdade seja dita, detesto com todas as
minhas forças.

O príncipe desce da diligência, chamando minha atenção de volta para o


que importa: ele.

— Pretendo descobrir o quanto devo me preocupar com o sobrinho dela —


respondo com a atenção completamente fixa nele.

O observamos de uma dentre as várias e várias torres do castelo. Além


disso, são incontáveis janelas que tomam a fachada da frente, portanto, a visão
dele. Me aproximo ainda mais quando o príncipe cumprimenta a comitiva que
está lá embaixo para recebê-lo. Após receber as saudações educadas, ele para em
frente a uma das minhas damas, que mandei até lá para que se passasse por mim.

Tudo o que ele tem é uma descrição da minha aparência física. Se muito,
algum retrato desenhado por um artesão, o que acredito ser bem difícil, uma vez
que nunca posei para ninguém. A dama em questão tem a maioria, se não todas,
as características físicas atribuídas a mim. Só que, a meu ver, a diferença é que
ela é mais bonita e graciosa do que jamais serei um dia.

Ela estende uma das mãos, exatamente como deve ser, e ele a toma sem
pestanejar.

Fácil. Respiro aliviada. Será moleza ter de lidar com ele.

Mal tenho tempo de inspirar de novo quando ele se afasta de forma abrupta
e solta a mão dela. Daqui sou capaz de notar o cenho franzido na testa dele.

Não é possível.

Eu me aproximo tanto da janela que praticamente colo a testa no vidro.


A emoção, de ter embarcado em uma missão fácil, desaparece aos poucos.
Para piorar, ele é ainda mais esperto do que imaginei ser possível, porque leva
exatos trinta segundos — contei em voz baixa — para me encontrar dentre as
centenas de janelas que sei ocuparem todo o seu campo de visão.

Ele abre um sorriso de diversão enquanto solto um chiado de frustração.

O meu pretendente não é alguém fácil de controlar, uma vez que levou
menos de um minuto para reconhecer a farsa e, além disso, me encontrar tendo a
certeza de que eu sou eu.

— Pelos deuses! O príncipe do Norte é... — Tina perde o fôlego enquanto


ele ergue de leve uma sobrancelha, com os olhos cravados em mim e o sorriso
pregado nos lábios.

— Merda! — praguejo baixo e o sorriso dele alarga ainda mais.

Sei que, de onde estou, é impossível que tenha me ouvido, mas de alguma
forma ele parece saber que estou insatisfeita com a sagacidade dele, já que tomba
levemente a cabeça para o lado. Não sei como, mas consigo identificar
exatamente o que está me dizendo sendo que seus lábios continuam estampando
um sorriso divertido. O príncipe está esperando que eu desça para recebê-lo. É o
que a rainha Magnólia deixou claro que era para eu fazer.

Um leve inclinar de cabeça e também sei o que a rainha Magnólia está


dizendo. No caso dela é um: “venha até aqui imediatamente!”.

Merda uma vez mais.

Cerro a cortina pesada de cor magenta e encaro as minhas roupas. Preciso


mostrar quem sou, e não sou uma dama inofensiva que se sente confortável em
usar vestidos o tempo inteiro.

— Troque de roupa comigo.


— O-o quê? — Tina engasga.

Não sei se ela ainda está abobada com a visão do príncipe ou se atônita
com o meu pedido.

— Rápido. — Faço um sinal para que as damas de companhia me ajudem


a tirar todas as peças sufocantes.

— Não quero usar essa coisa. — Tina aponta com nojo para o meu vestido.

Ele é preto com bordados à mão de folhas de ouro, que brilham a cada
movimento que faço. O decote é estilo canoa que destaca o colo do peito, o que
por sua vez é provocante. As mangas descem com um tecido mais fino, dando o
efeito nas costas de uma capa que se movimenta de forma fluida, projetando a
falsa sensação de que o vestido é leve. Mas não é, porque o peso está no restante
da peça. O corpete é justo na cintura e o vestido desce agarrado até a altura das
minhas coxas, onde tem uma fenda. Com uma saia acoplada na cintura, que dá
volume apenas na região dos quadris, o resultado final é uma peça elegante.

Não posso negar que é lindo, mas sei exatamente qual é a sensação que
Tina está sentindo. Todos os dias sou atingida por essa aversão e mesmo assim
passo por cima do meu desconforto para assumir o meu papel. Visto
religiosamente vestidos exuberantes como esse que acrescentam, no mínimo,
cinco quilos a mais sobre os meus ombros.

Prefiro o estilo confortável dos Guerreiros, mas fazer o quê? Em Lufstar,


tudo é excessivamente majestoso. As peças de roupas não são diferentes. As
vestimentas da corte são produzidas para retratar a altivez e esplendor dos nobres
e, dentre todos, perco apenas para a rainha Magnólia no quesito elegância.

— Você pode até não querer, mas vai. É bom que sinta o que é estar nesse
papel que insistiu incansavelmente para que eu assumisse.
Tina engole em seco e não fala mais nada enquanto se despe de suas
roupas de soldada. Não vou negar que sinto um prazer doentio em vê-la sentindo
na própria pele o que passo todos os dias. Ela foi a que mais lutou — ou melhor,
brigou — para que eu reclamasse a minha linhagem perdida. Nada mais justo
que experimente, nem que seja uma parcela efêmera, do peso que isso traz.

Eu renunciei às minhas roupas, ao meu conforto, a um casamento no futuro


por amor e, pior, tenho que escolher quem irá compartilhar a minha vida em uma
lista de uma mulher que quer satisfazer os próprios interesses políticos. Faço
tudo isso em prol de outros.

Se um dia fui acusada de ser egoísta, hoje sou capaz de ordenar que cortem
a cabeça de quem ousar me atribuir essa característica. Esse “quem” é a Tina
mesmo, que vivia jogando isso na minha cara.

— Estou ridícula. — Minha amiga choraminga ao observar seu reflexo no


espelho ao meu lado. Quanto a mim, saboreio por alguns segundos a liberdade de
usar calças e botas, coisa que só acontece na calada da noite quando fujo para
treinar com o Oclan.

Magnólia vai encontrar uma forma de apertar os dedos ao redor do meu


pescoço sem a necessidade de contato físico ao me ver vestida assim. Vou sofrer,
mas deixo para me preocupar com as consequências dos meus atos mais tarde.
Agora preciso mostrar para aquele príncipe, que tem toda a intenção de me tomar
como esposa, que também não sou alguém fácil de ser manipulada. Não mais.

Tudo o que faço, antes eu aceito, portanto, a decisão é minha. Se uso


vestidos pesados todos os dias como a nobreza de Lufstar é porque escolho ser a
Isabelle Tupper Beauharnais, herdeira legítima do trono de Yerus. Passo por todo
tipo de insatisfação, porque quero me tornar quem estou me tornando.

Magnólia me ensina, me guia, me orienta, mas ela não me controla. A


qualquer momento posso decidir que esse acordo não está dando certo, portanto,
me aliar a outro rei ou rainha dos Países Baixos que estou em contato por
correspondência. Ela sabe disso. Assim como também sei que o investimento
dela na minha educação, para que me transforme em alguém da realeza, é de
imensurável valor.

É um acordo que beneficia a ambas. E sabemos que só dá certo porque nos


respeitamos mutuamente. Ela pode ser um carrasco, mas admiro Magnólia como
jamais admirei qualquer outra pessoa. É estranho e se me perguntarem nego até a
morte, mas desenvolvi um carinho secreto por ela. O mais esquisito de tudo é
que desconfio que o contrário também aconteceu.

Desço com Tina ao meu lado, que está com uma carranca explícita para
quem quiser ver. Às vezes ela até mostra os dentes e rosna para os corajosos que
ousam olhá-la diretamente nos olhos.

Se eu não estivesse tão apreensiva por estar há segundos de distância de


conhecer o homem que Magnólia quer que eu me prenda para o resto da minha
vida, certamente riria da situação dela. Desconfio que é a primeira vez na vida
dela que Tina usa um vestido.

Quando finalmente meus pés tocam a entrada do castelo, o príncipe


interrompe a conversa com a rainha ao me notar. Seu sorriso desaparece
lentamente dos lábios, que se entreabrem levemente enquanto os olhos assimilam
cada parte do meu rosto.

Não consigo decifrar o sentimento que o toma. O que consigo notar é que
o ar de divertimento evaporou completamente de suas feições.

Ergo o queixo quando paro bem na frente dele e seus olhos verdes, de um
tom idêntico às pedras crisólita, fixam em mim com uma intensidade
enlouquecedora. Sua pele de porcelana, exatamente igual à retratada no quadro
em que a mãe dele posou ao lado da rainha Magnólia, dá um contraste
interessante com seus fios escuros de cabelo. Fios esses que se assemelham
muito aos do primo dele por parte de pai, o Áquila.

— Que bom que se juntou a nós. — Magnólia corta o silêncio. — Este é


Dominic Pryteon, príncipe herdeiro do Reino do Norte, meu querido sobrinho. E
esta é a Isabelle Tupper Beauharnais, herdeira legítima do trono de Yerus, minha
ilustre convidada. — Magnólia olha dele para mim.

Dominic abre um sorriso charmoso ao estender a mão em um convite claro


para que eu a aceite. Engulo em seco e alterno o olhar entre a mão estendida no
ar e o olhar estonteante de crisólito que me observa calorosamente.
Sem desviar meu olhar do Dominic, pouso minha mão da forma como
ensaiei repetidas vezes até ficar a um fio de perder a sanidade. Ele a segura com
leveza — como manda o protocolo — e pousa os lábios sobre os nós dos meus
dedos. Tudo segue como o esperado. Até que sutilmente o polegar dele roça
sobre a almofadinha da minha mão.

Levemente, cerro os olhos. Levemente, ele morde o lábio inferior a fim de


mascarar o sorriso de divertimento que teima aparecer outra vez.

— Encantado em finalmente te conhecer. — Dominic solta minha mão,


mas não desprende o olhar do meu. Somente quando Magnólia pigarreia é que
ele quebra o nosso contato visual.

Ela lidera o caminho, apoiada no braço que Dominic prontamente a


estende. Sigo no encalço deles. Volta e meia ele relanceia um olhar por sobre o
ombro, sempre encontrando instantaneamente com os meus olhos.

Não é comum que reis e rainhas recebam seus convidados na entrada.


Acontece que Dominic não é apenas um príncipe, mas também é o querido
sobrinho e herdeiro de Lufstar, uma vez que Magnólia não teve filhos.
Ah, ele também é o objeto dos interesses políticos dela, então convém que
ela o mantenha embaixo das asas, assim como faz comigo.

Ah, ele também é primo primeiro do Áquila, cuja mãe é irmã do pai do
Dominic, o rei do Reino do Norte.

— Creio que podemos pular a parte das apresentações do castelo —


Magnólia diz a ele.

Fico surpresa ao notar o toque aveludado na voz dela ao se dirigir com


tamanho carinho ao sobrinho. Nunca pensei que alguém tão coração de gelo
quanto Magnólia fosse capaz de sentir afeição genuína por outro ser humano. É,
no mínimo, esquisito.

— As lembranças da infância já não são mais vívidas, querida tia. —


Dominic também diz com amabilidade, mas nele não soa nada estranho e sim
natural. Ele se vira para mim. — Eu ficaria contente se Vossa Alteza pudesse
reforçar minhas memórias de garoto ao me mostrar o castelo.

Magnólia para de andar e me observa, assim como ele, à espera de uma


resposta. Não consigo ler a expressão dela, o que sempre me irrita bastante,
porque é um lembrete constante de como é difícil agir como ela.

A decisão é inteiramente minha, porque eles se calam e não parecem


dispostos a seguir caminho até que eu me manifeste. Acontece que, interesses
políticos de lado, sou a pior pessoa dentre todos que estão neste castelo para
fazer um tour por aí. Ainda me perco com facilidade. No entanto, concordo.

— Será um prazer, Vossa Alteza.

Prontamente, Magnólia promete nos encontrar no jantar. No segundo


seguinte, lanço um olhar para Tina em um pedido silencioso para que fique por
perto. Se ela me deixa por conta própria justo agora, terei entrado em uma fria.
Por um instante, penso que minha amiga irá negar meu pedido em
retaliação por tê-la obrigado a usar meu vestido. Mas ela parece engolir a mágoa
ao prontamente ficar ao meu lado.

Eu estaria tão perdida se não fosse por ela! Literalmente e figuradamente.

Discretamente, Tina faz sinais me indicando o caminho. Passamos por


salões de dança, salas de jogos, biblioteca e só respiro aliviada quando saímos no
pátio interno.

— Minha companhia te exauriu? — Dominic, que até então fez breves


observações quanto a estrutura dos lugares por onde passamos, me pergunta.

— De forma alguma. Acontece que ainda me perco lá dentro, por isso


prefiro qualquer parte que seja possível ver o céu.

Ele solta uma risadinha com minha sinceridade e inclina o rosto em minha
direção como se fôssemos íntimos, o que não somos de forma alguma. Fico
parada no lugar, em vez de me afastar, apenas porque também já treinei situações
como essa.

É o outro quem deve se sentir desconfortável ao invadir o meu espaço


pessoal, nunca o contrário.

— Se não estou te entediando, então qual sentimento estou provocando em


Vossa Alteza?

Toda essa liberdade que está tomando comigo, me incomoda. O que me faz
deixar de lado as regras de etiquetas para fazer, sem rodeios, a pergunta que vem
me atazanando desde o momento em que os olhos dele encontraram os meus.

— O que me entregou?

— Qual o seu palpite?


— Meus olhos.

— Ainda não tinha visto os seus olhos para saber como exatamente eles
seriam diferentes do que estamos acostumados. No entanto, agora sou capaz de
identificar que eles são duros como faca e penetram a alma, o que
assustadoramente os torna atraentes. Outros diriam que o resultado é o brilho
incomum e não a atração. Afinal, foi o que tanto ouvi falar, mas não o que
experienciei ao vê-los pela primeira vez. — Aperto os olhos sem paciência e ele
sorri. — Algum outro palpite do que a delatou, princesa?

— A ausência de uma soldada de cabelos vermelhos ao lado da minha


sósia.

Tina retesa levemente os ombros quando Dominic a avalia da cabeça aos


pés. Esse foi um obstáculo que tentei a todo custo encontrar uma solução, mas
não achei ninguém que se assemelhasse a Tina.

— Estou certo de que esse vestido era o que Vossa Alteza estava usando.
— Minha amiga fica envergonhada até a raiz dos cabelos enquanto simplesmente
ergo uma sobrancelha quando Dominic volta a atenção para mim. — Receio te
decepcionar outra vez, mas não. Ela é uma soldada que acata as suas ordens,
como trocar as pressas as vestes pelas suas. O que quero dizer, é que a Guerreira
Tina poderia estar em qualquer outro lugar a seu serviço. No entanto, quando te
procurei dentre todas aquelas pessoas que me espiavam dentre as várias janelas
do castelo, suspeitei que era a senhorita por ser a única que avaliava as minhas
reações com interesse enquanto todos os outros estavam apenas curiosos com a
minha chegada. Mas foi a soldada de cabelos vermelhos ao seu lado quem me
deu a certeza da sua identidade.

Tina me encara com os olhos arregalados e logo disfarça como está


impressionada, voltando a vestir sua carranca de todo o dia. Verdade seja dita, eu
também estou impressionada por ele saber até mesmo o nome dela.
— Qual o tamanho do seu apego pela cor dos seus cabelos? — Dessa vez,
Tina não só arregala os olhos como também entreabre os lábios. — Estou
brincando. Da próxima, te arrumo uma peruca.

Dominic solta uma gargalhada, deixando os protocolos de lado de uma vez


por todas.

— Minha cara princesa, sua fama a precede. Confesso que estava curioso
para conhecer a dona de tanta autenticidade. — Ele prensa o lábio inferior entre
os dentes em uma tentativa de frear o riso. — Permita-me? — Ele indica minhas
mãos e assinto. Logo ele as segura com delicadeza. — Calos. Guerreiros têm
uma porção deles.

Dominic é muito mais esperto do que imaginei. Pensei em várias coisas


que poderiam me entregar, mas nunca passou pela minha cabeça que seria logo a
aspereza das minhas mãos.

— A moda das mulheres do reino não combina com luvas — resmungo e


ele sorri abertamente.

— A surpreendi?

— Essa pergunta implica que eu nutria certa expectativa no senhor. —


Retiro minhas mãos. — E não foi o caso, embora eu me sinta na obrigação de
confessar que o senhor está se mostrando um oponente à altura. — Sequer pisco
ao encarar seus olhos de um verde incrível.

— Pode se referir a mim pelo primeiro nome. E gosto mais da palavra


parceiro a oponente. — A diversão desaparece dos seus traços e, mais uma vez, o
clima intenso se instaura entre nós, mas vindo dele. — Espero que em breve seja
o que seremos um do outro.

Não desvia o olhar. Não desvia o olhar. Não desvia o olhar — digo a mim
mesma repetidas vezes.
A pressão dele, para que eu ceda, é grande. Dominic é sobrinho da
Magnólia, mas eu é que sou o projeto dela. Por conta disso, consigo sustentar a
minha pose sem fraquejar.

Não caio com tanta facilidade. Não caía antes e não caio agora, mesmo
diante a pressão de príncipes, princesas, rainhas ou reis.

Até mesmo Tina parece desconfortável com o rumo da conversa ou,


melhor, com a falta dela. Ele pigarreia quando não faço menção de preencher o
silêncio.

— Posso me referir a senhorita pelo primeiro nome? — Assinto. — Está


cansada ou posso te mostrar um dos meus lugares favoritos, Isabelle?

Eu devia ter falado que estava cansada, mas a vontade de parecer forte
falou mais alto e agora estou pagando por isso. Magnólia precisa se esforçar
mais para que eu aprenda a controlar as minhas emoções e não o contrário.

Quando Dominic para ao pé de uma escada em caracol, não consigo


disfarçar a insatisfação tanto por ter voltado para o interior do castelo, quanto por
desconfiar do nosso destino final.

— São quinhentos e vinte e dois degraus — Dominic diz e entreabro os


lábios. — Sei que é muito, no entanto prometo que valerá o esforço. Caso você
tenha problemas com escadas, compreendo.

Passo por ele e subo o primeiro degrau. Não vejo o sorriso do Dominic,
mas sinto o ar de diversão emanar dele quando começa a subir atrás de mim.
Quanto a Tina, ela solta um resmungo antes de seguir em nosso encalço.
Centenas de degraus e curvas depois, subindo e subindo, virando e
virando, para Dominic dizer que ainda não chegamos nem na metade do
caminho. Eu me lembro que, da última vez em que aceitei o desafio de um cara
que tinha acabado de conhecer, o mesmo virou o meu treinador e quase me jogou
da encosta de uma cascata. Não terminou bem para mim e aqui estou eu
cometendo a mesma burrada outra vez.

Qual é o problema dos homens desse mundo?

— Jesus Amado! — resmungo, esbaforida. — Já não basta as escadas que


subimos todo dia para entrar no castelo.

Tina concorda com um resmungo também entre arfadas.

— Pensei que vocês fossem hóspedes da minha tia — Dominic diz com o
fôlego afetado.

— E somos — respondo com os pulmões ardendo. — Acontece que a sua


tia faz com que eu me esforce todos os dias para ter aulas com ela, também
conhecida como sessões de tortura.

— Não compreendo.

Paro de subir e escoro na parede para recuperar o fôlego. Tina solta um


suspiro de alívio pelo descanso inesperado.

— Não compreende que a sua tia é a professora dos carrascos? — pergunto


com o peito subindo e descendo de forma descompassada. — Tem dias que o
meu irmão foge de mim como o diabo foge da cruz com medo de cruzar o
caminho com o dela. Até mesmo o Oclan tem pavor da rainha Magnólia. Oclan!

— O lendário Guerreiro? — Dominic escora a cabeça na parede de pedras


e se esforça para normalizar a respiração. Assinto. — Só mesmo a masoquista da
minha irmã para ser indiferente as aulas de etiquetas da tia Magnólia. Acredite
quando digo que me compadeço da sua situação. Já estive em seu lugar. O que
não compreendo é a questão do esforço.

— Simples, príncipe. A sádica da sua tia me alocou no pequeno castelo em


desuso ao pé do morro.

Ele arregala os olhos.

— Perdão. Se eu soubesse que você sobe aquela trilha de escadas todos os


dias, não teria sugerido subirmos essa torre. Prefere voltar?

Tina me lança um olhar de súplica. Desvio a atenção para o Dominic, que


recuperou o fôlego com a nossa breve parada. Algo no semblante dele me
impulsiona a seguir em frente. Além disso, não sou de dar para trás.

Volto a subir com ele no meu encalço e Tina resmungando atrás de nós.
Tonta de tanto fazer curva, e sem ar de tantos degraus, não noto uma pedra solta
e piso nela. Desequilibro e só não caio para trás porque no segundo seguinte as
mãos do Dominic pressionam a minha cintura para me firmar no lugar.

— Se machucou, Isabelle? — A preocupação parece genuína, mas estou


perdida demais na audácia dele de ficar com as mãos na minha cintura para
responder qualquer coisa. Ele deve perceber a direção do meu olhar, porque me
solta de supetão.

Volto a subir sem dizer nada e evitando a todo custo olhar para trás. Porém,
juro que sinto o olhar da Tina queimando em minhas costas. Ela vai infernizar a
minha vida com comentários maldosos quando estivermos apenas nós duas.
Merda.

Por que eu não disse que estava cansada? Por quê?


— Cinco segundos de descanso, princesa. — Dominic pede e paro,
aliviada com o pedido.

— Você é mesmo muito sobrinho da sua tia para me fazer pagar antes de
ter a chance de sequer pedir por algo.

— O seu comentário implica que estou sendo considerado para um pedido.

Minhas bochechas queimam com o comentário e minha vergonha só piora


quando Tina abre um sorriso zombeteiro.

— Não quer dizer que eu vá pedir — digo nervosa.

Dominic abre um sorriso charmoso e assente como se não levasse a sério o


que estou falando, o que me irrita.

— Tia Magnólia age com esse propósito. Quanto a mim, apenas entendo
que tudo o que vale a pena requer esforço. — Dominic é esperto, porque opta por
deixar o meu constrangimento de lado ao invés de insistir no assunto. — Além
disso, neste caso em específico, nós três iremos ganhar.

— Só se for ganhar dor nas panturrilhas — Tina resmunga com tanta


sinceridade que não resisto e solto uma risada. Ela arregala os olhos e encara o
Dominic como se tivesse estrangulado o bichinho de estimação dele sem querer.
— Perdão, Vossa Alteza. Não tive a intenção de ofender...

— Está tudo bem. — Dominic a tranquiliza e então se volta para mim. —


Vamos, princesa. Se meus cálculos não falham, faltam apenas cem degraus.

Volto a subir e a previsão do Dominic não falha. Logo alcançamos o topo


da torre mais alta do castelo e um sorriso imenso de satisfação se abre em meus
lábios.

— Eu não te disse que valeria a pena? — Dominic pergunta ao me encarar


com um sorriso refletindo o meu.
No topo da torre, Dominic aponta vários pontos das colinas, na cercania do
castelo, onde os moradores de Lufstar residem. Tina nos dá espaço enquanto o
príncipe discorre sobre absolutamente toda a formação deste reino.

Ele me conta a respeito de todas as construções nas redondezas; dos


povoados espalhados perto daqui; da dinâmica do cotidiano dos aldeões em cada
um deles... Até mesmo o canal pelo qual nossa embarcação chegou, que daqui de
cima tem uma vista linda, ele narra a história da importância que teve para a
colonização de Lufstar.

— Tenho certeza de que você sabe até mesmo cada corredor que há no
pequeno castelo em que estou hospedada.

Ele abre um sorriso travesso ao compreender o que estou implicando. A


recordação da infância dele é vívida, o que por sua vez torna esse nosso tour uma
grande mentira.

— Foi a residência da minha mãe antes dela se casar com o meu pai.
— Entendo. — Desvio o olhar de volta para as colinas, o ponto alto da
vista.

Embora ele tenha me trazido para cá de forma deliberada, sob o pretexto


de recordar o ambiente, estou extasiada com a calmaria e tranquilidade que há ao
observar, do topo da torre, a cercania do castelo. O vento está agradável e os
raios de sol de fim de tarde cobrem a cidade com uma luz alaranjada
aconchegante.

— A vista é linda, não é mesmo? — Dominic sussurra próximo de mim,


com o braço esquerdo por pouco não tocando o meu direito. Assinto sem
conseguir virar a cabeça na direção dele. — Depois, vou te mostrar o meu outro
esconderijo favorito. Há árvores de cerejeiras naquela direção. — Ele aponta
para o sentido contrário ao pequeno castelo em que estou morando. — Após
aquela colina, entramos na obra de arte mais magnífica da natureza existente
nestas terras.

— Você conhece Pedralhos tão bem quanto Lufstar?

Dominic fica parado por tanto tempo em silêncio que fico incomodada
com a falta de reação dele. Viro o rosto de lado e imediatamente encontro com
seus olhos verdes, que me dão a sensação de terem me observado esse tempo
todo em que estive distraída contemplando a paisagem.

— Conheço o suficiente para saber que é um erro confiar no Rakar como


guia do Palácio de Pedralhos. A não ser que a pessoa em questão seja a minha
irmã, porque aí a situação inverte e quem fica em perigo é ele. Ela já tentou
matá-lo uma vez.

Solto uma risada pensando que ele está falando no sentido figurado, mas
Dominic continua sério.

— Tentou matar de verdade? — Arregalo os olhos.


— Minha irmã sim é muito sobrinha da tia Magnólia.

— Espera. Isso quer dizer que a rainha Magnólia matou mesmo o marido?

— Eu não era nascido na época e este é um assunto que nunca é discutido,


portanto, não tenho a menor ideia, porém não duvido. Alguém na posição dela às
vezes tem que tomar decisões que, sob condições normais, jamais cogitaria.

Nunca pensei que os boatos sobre o marido da Magnólia ter se envolvido


diretamente em uma conspiração para destroná-la para que ele se tornasse rei,
fossem verdadeiros. Mas quando penso no que ela me disse outro dia, tenho a
forte sensação de que é completamente possível.

De qualquer forma, se não foi isso, foi outra coisa. Mas algo aconteceu e
Magnólia não gostou de quem se tornou depois de ter tomado a decisão de punir
gravemente alguém. Ela insiste muito na questão do meu desejo de vingar a
morte do Felipe. Isso me leva a crer que Magnólia já esteve em uma situação
similar a minha.

— E por qual motivo a sua irmã tentou matar o primo de vocês?

— Passamos várias temporadas na infância com o meu primo. Esse contato


constante foi o suficiente para aflorar nela o desejo de matar o Rakar. Antes que
me pergunte, sou mais pacífico do que ela. Além disso, meus instintos são
voltados para resolver as situações graves usando o cérebro e não a força física.

— Vocês conviviam apenas com o Rakar?

— Eu não convivi com o Áquila, se é o que está tentando descobrir. —


Desvio o olhar e volto a contemplar a paisagem. Pela visão periférica, percebo
que Dominic também observa as colinas. — Todos nós acreditamos na história
de que o segundo príncipe de Yerus tinha morrido de uma doença comum. O que
quero dizer é que também fomos surpreendidos com a revelação de que o
Guerreiro de maior prestígio da atualidade, na verdade, faz parte da nossa
família. — Dominic coloca as duas mãos nos bolsos da frente da calça. — Os
boatos a respeito de vocês dois são verdadeiros?

— Não sei quais boatos seriam esses.

— Ele foi o seu treinador em Fayrehal?

— Sim.

— Em Salavinder vocês lutaram juntos?

— Ele salvou a minha vida e eu salvei a dele. Se isso se aplica na definição


de “lutar junto”, então creio que sim.

— Os boatos são verdadeiros. Vocês se apaixonaram.

— É preciso de dois para responder essa pergunta.

— Não foi uma pergunta. — Dominic me encara compenetrado. Selo os


lábios e revido o olhar. Ele é o primeiro a quebrar o silêncio, mas não suaviza a
expressão. — Isabelle, você é uma mulher de mente sagaz, portanto, já concluiu
que eu não saí do Reino do Norte para encarar meses de viagem de navio sem ter
um propósito a cumprir aqui em Lufstar.

— Não me faça um pedido quando mal pude te conhecer, Dominic. Serei


obrigada a recusar e isso irá me colocar em uma situação delicada com a rainha
Magnólia.

— Eu iria fazer uma pergunta que se fez desnecessária com o seu


comentário.

— E que pergunta seria essa?

— Se sou um pretendente levado seriamente em consideração.


Fico em silêncio e ele também, porque palavras são dispensáveis. Nós dois
sabemos que sim, embora eu lute contra a verdade desde o instante em que os
nossos olhares se cruzaram. Sei que essa luta nem deveria existir, afinal, não sou
comprometida com ninguém. Neste mundo, nunca fui, embora o meu coração
não reconheça isso. Mas desde em que cheguei em Lufstar, tomei a decisão de
não seguir os desejos do meu coração, portanto, a razão que me guia é a mesma
que fez uma promessa à Magnólia.

— Não se preocupe. — Dominic abre um sorriso sereno ante o meu


desconforto. — Irei lhe conceder tempo até que me conheça, porque eu também
gostaria de te conhecer antes de fazer qualquer pedido. — Assinto. — Vamos
voltar?

— Prefiro ficar um pouco mais.

Dominic assente com a cabeça como se entendesse mais do que estou


dizendo.

— Vou descer na frente para escrever um bilhete para tia Magnólia


pedindo desculpas em nosso nome por não comparecermos ao jantar.

— Obrigada.

Ele leva uma das minhas mãos aos lábios e beija os nós dos meus dedos,
sempre mantendo contato visual.

— Até breve, Isabelle.

Assim que Dominic desce o primeiro degrau, relaxo os ombros e saio do


papel de princesa.

Jesus! Essas conversas cheias de protocolos me cansam de uma forma que


os treinos físicos com o Oclan não conseguem fazer. Esse jeito de se portar não
se parece em nada comigo e não me vejo escapando dessa tão cedo, muito pelo
contrário.

Tina se reaproxima de mim, mas com ela não preciso pisar em ovos, então
fico tranquila.

— Acho que ele é um péssimo pretendente — minha amiga já vai logo


dizendo.

— Um príncipe do nível de poder dele é algo que sequer imaginamos ser


possível conquistar um dia. Sem contar a promessa que fiz à rainha Magnólia.
Essas duas questões fazem dele o pretendente ideal, Tina. E nós duas sabemos
disso.

— Concordo, mas acho melhor não descartarmos a opção de formarmos


uma aliança através de um casamento com o rei de Braxus. Alguém como o
príncipe Dominic é arriscado.

— Arriscado por que exatamente?

Tenho minhas ressalvas. Uma delas é que Dominic é um dos homens mais
espertos que já conheci na vida. Ele é sobrinho da Magnólia, então não sei por
que me surpreendi com isso. Os dois não são pessoas manipuláveis. Mas quero
saber quais são as razões da Tina.

— Além do óbvio, ele é intenso e... — Tina para de falar abruptamente


com as bochechas coradas.

— E o quê?

— Viril, Isabelle. Pronto. Falei. — Ela me encara com raiva.


— E daí? Será um arranjo político. Não enxergo como isso pode ser um
problema.

— Pelos deuses, Isabelle! — Exasperada, ela balança as mãos no ar. —


Você terá que conceber os herdeiros dele. — Enrijeço os ombros e Tina suaviza a
expressão provavelmente ao ver o meu choque.

— E se...

— Não tem e se. Reis e rainhas precisam de herdeiros ou ficam na situação


em que a rainha Magnólia se encontra. Dominic, o próximo na linha de sucessão
de Lufstar, também é o futuro rei do Norte. Tenho certeza de que a rainha é
atormentada diariamente por não saber qual será o futuro do reino dela quando
ela se for. Provavelmente esse deve ser um dos motivos para aquela mulher ser
tão azeda. Enfim, o que quero dizer é que com certeza Dominic e a rainha
Magnólia estão desesperados por mais herdeiros.

— Jesus! — Esfrego os dedos trêmulos na testa. — Pensei que talvez eu


pudesse ser como a rainha Magnólia...

— Impossível, Isa. A rainha Magnólia foi a exceção de regentes sem


herdeiros e mesmo assim tenho certeza de que ela não vê a própria situação com
bons olhos. Você e Dominic são jovens, portanto, será um jogo para o resto da
vida de vocês. Não tem como escapar disso. O meu medo é o quanto essa
situação poderá te afetar ao longo do tempo, por isso sugeri um rei que já
estivesse perto de morrer, por mais mórbido que isso soe.

— Eu deveria ter procurado saber tudo nos mínimos detalhes em vez de


sair supondo as coisas. — Observo o horizonte, pesarosa.

Mesmo quando não deveria, é o Áquila quem invade os meus pensamentos


quando penso na pessoa com quem eu gostaria de compartilhar o resto dos meus
dias.
Deus, como agora tenho plena consciência da minha burrice! Eu não podia
ter entregado o meu coração para alguém que, para todos os efeitos que
importam, é o meu inimigo.

Não posso ser dura comigo mesma, porque eu não estava sozinha nessa.
Embora as circunstâncias nos jogassem um contra o outro o tempo todo, tanto o
Áquila quanto eu desejamo-nos com ainda mais força. Foi assim quando
formamos aquela aliança com o objetivo de nos separar no fim.

Quando chegamos a um concesso no palacete dele, aquilo quebrou o meu


coração e tudo piorou quando em seguida descobri que os meus irmãos não eram
meus irmãos de sangue. Mas o Áquila estava lá por mim, mesmo quando nós
dois dizíamos que um dia teríamos que nos separar.

Foram três dias estabelecendo a aliança. Foram três dias nos aproveitando
de cada brecha que aparecia. Mãos entrelaçadas por debaixo da mesa. Troca de
olhares carregando promessas quando Felipe e Máximus estavam distraídos em
um embate caloroso. Abraços escondidos e beijos roubados. Por fim, Áquila me
pediu abertamente para voltar para lá depois de conquistar as reféns. E eu? Eu
queria estar com ele acima de qualquer coisa, embora nunca tenha revelado isso
para ninguém.

Nós dois éramos hipócritas. Nossos lábios diziam o que os nossos corações
não sentiam.

Entrei em uma situação terrível, porque... Como vou controlar algo que já
não me pertence mais? Algo que pertence ao Áquila? Aquele Guerreiro
conquistou o meu coração. Se autodeclarou senhor dele. Ao fazer isso, ele me
condenou a um destino miserável!

— Isa, no que você está pensando? — Tina me tira do meu estado de


transe.
— Preciso ficar sozinha. — Viro de costas para que ela não veja meus
olhos cheios de lágrimas.

— Jamais. Para onde quer que eu olhe, só vejo potenciais inimigos.


Qualquer um pode querer te matar!

— Tina, estamos no topo de uma torre. Só se alguém aparecer aqui


voando.

— Uma flecha é capaz de chegar até aqui.

— Desça e me espere ao pé da escada. É uma ordem.

— Um dia, Isabelle Beauharnais, eu vou te esganar por se aproveitar do


seu poder e usá-lo contra mim desse jeito desaforado. Garota idiota. — Tina
range os dentes e sai batendo os pés.

Respiro fundo ao finalmente ter um minuto de paz. Sem soldados


possessivos no meu encalço.

No entanto, o cuidado excessivo tanto dela quanto do Oclan tem um


motivo plausível. Só percebo que eles estão certos e eu errada quando uma figura
aparece vindo das escadas minutos depois que Tina desaparece.

— Como você conseguiu passar pela Tina e chegar até aqui?

— Tenho os meus métodos.

Nos encaramos como dois predadores se avaliam.

— Eu posso não ter um soldado aqui comigo agora, mas você vai cometer
um grande erro se tentar me atacar. Não sou uma princesa indefesa.

— Nem princesa você é.

Não caio na provocação. Ao invés, cruzo os braços e inclino o queixo.


— O que você quer, Koli?

Ele abre um sorriso perverso.

— Meu pagamento.
Koli não se aproxima mais de mim, mas é porque não consegue, uma vez
que sempre estou acompanhada. Porém, ele procura outros meios de me
pressionar. Para onde quer que eu vá, se não é o Koli em pessoa é um dos
rebeldes do grupo dele seguindo cada passo que dou.

Eles não me amedrontam, caso seja essa a intenção. O que estou é curiosa
com a mudança súbita de comportamento. Até a chegada do Dominic, todos os
rebeldes, desde os líderes até os comuns, estavam mais do que felizes em ficar
aqui em Lufstar. Mas foi o príncipe chegar para Koli ultrapassar as minhas
barreiras de segurança para me cobrar.

Além de querer descobrir o que aconteceu para eles mudarem de ideia do


dia para a noite, também não estou inclinada em ficar em dívida com outra
pessoa para pagar o Koli. Eu poderia pegar o par de joias que Magnólia me
emprestou e a que Dominic me presenteou e entregá-lo como forma de
pagamento, mas não vou.

As peças da Magnólia irei devolver em algum ponto do futuro. Quanto as


do Dominic, embora eu não tenha intenção de usá-las tão cedo, porque seria o
mesmo que declarar que estou inclinada a aceitar a proposta de casamento que
pretende me fazer, desfazer delas seria o mesmo que dizer que não estou aberta
para ouvir a proposta dele. Acontece que estou sim levando-o em consideração.

O que quero com o Dominic é tempo. Ainda preciso de mais informações


para saber exatamente com quem estou lidando.

Ele é o pretendente dos sonhos, uma vez que o Reino do Norte está em pé
de igualdade com Yerus. Me aliar ao herdeiro daquelas terras é a maior força que
posso ter para reclamar meu título e, enfim, libertar minhas irmãs. Além disso,
ele também é o herdeiro de Lufstar, já que Magnólia não teve filhos.

A linhagem dele é uma das mais poderosas, porque Dominic é sobrinho da


Magnólia por parte de mãe e sobrinho da rainha de Yerus por parte de pai. É
justamente por conta desta última união que o Reino do Norte e Yerus vivem em
paz e Lufstar não foi invadida, já que conta com a proteção do Norte.

Se ele se casar comigo, será possível que um dia o Norte alcance mais do
que já conquistou. Mas será apenas uma possibilidade. Talvez nem seja o
Dominic, ou mesmo eu, mas os nossos herdeiros. De qualquer forma, não há o
que fazer, já que não há declaração de guerra. Além disso, o Norte só poderá
reinar em Yerus, caso Rakar e Áquila não assumam o poder ou não tenham
herdeiros.

Posso estar errada, mas é assim que vejo que o Reino do Norte pretende
enfraquecer o Rei de Yerus. Ele não terá motivos para pegar em armas contra o
sobrinho da esposa alegando defesa, porque não há ataque.

Uma conquista enorme sem o derramamento de uma gota sequer de


sangue. Por isso sou o maior interesse do Dominic. E ele deveria ser o meu, mas
ainda não disponho de todos os fatos. Preciso deles antes de tomar uma decisão.
Koli e os rebeldes estão me dando dor de cabeça? Estão. Mas tenho coisas
maiores para me preocupar, como Dominic, as aulas da Magnólia e até mesmo a
missão que dei ao Kaká quando navegávamos para Lufstar.

— De qual reino veio a rainha Aurora? — pergunto à Magnólia na nossa


décima aula desde a chegada do sobrinho dela.

— Tzar, vizinho a Lufstar.

— Ela não era do Reino do Norte?

— Não. A rainha mãe é quem veio de lá. É um pouco confuso todos os


tipos existentes de rainhas, mas a Vossa Alteza irá entender com o tempo.

— Sim, é. — Uno as mãos uma à outra e inclino o queixo na direção da


Magnólia. — Quando Telok I desapareceu, quem assumiu o trono foi Teléfasos,
irmão dele, certo?

— Vejo que Vossa Alteza está prestando atenção nas aulas.

Abro um sorriso de agradecimento ante o brilho no olhar prateado da


Magnólia. Ela nota meu raro interesse nas questões políticas e se senta ao meu
lado.

— Ele era um bastardo e tramou contra a vida do Telok I e seu herdeiro.


Dessa forma, houve a queda do reinado dos Tupper e ascensão dos Salonsk.

— Teléfasos matou Aurora, Telok I e o herdeiro deles?

Magnólia me encara de forma avaliativa por alguns instantes. A hesitação


dela é bem breve, mas o suficiente para que eu note que ela pondera antes de
responder.

— Ele atentou contra a vida dos três e conseguiu ascender ao trono em


seguida. Desde então, os Salonsk estão no poder de Yerus.
Abro um sorriso sem mostrar os dentes. Atentar contra a vida dos três é
muito diferente de ter matado os três. Magnólia desviou da pergunta e não quero
fechar essa janela com ela, então mudo a abordagem ao invés de insistir na
questão. Meu irmão e eu teremos que nos virar para descobrir o que aconteceu.

— Isso quer dizer que Salonsk é a linhagem do atual Rei de Yerus?

— Exato — ela responde prontamente, então entendo que esse caminho


posso seguir.

— Mestre Ponda uma vez comentou a respeito de uma batalha contra seres
malignos que invadiram este mundo, forçando os Drakars e os Homens a se
unirem contra eles. Depois disso, as duas raças viveram em paz, até que a
ganância dos homens aumentou e chegou aos ouvidos da princesa Laghertia que
o rei Telok I sequestrou a Hortense, cópia da falecida rainha Aurora. Onde os
Salonsk entram neste cenário, Vossa Majestade?

Acho que toco em um nervo, porque ela respira fundo e seu olhar prateado
endurece feito ferro.

— Aquele pérfido anão! — Magnólia pragueja, o que me surpreende.


Nunca a vi perder a compostura, mas bastou tocar no nome do Mestre Ponda
para a rainha perder as estribeiras. Os dois se detestam mesmo. — Mestre Ponda
é um mestiço amante dos Drakars. Não sei como o Rei permitiu que ele
assumisse um cargo alto em Fayrehal.

Com a reação dela, e o que o Mestre Ponda já me disse a respeito da


Magnólia, acabo de descobrir o raciocínio do Rei. Os dois se detestam, portanto,
cada um oferece uma barreira para o outro, por consequência a fronteira entre
Yerus e Lufstar fica protegida. Mas deixo quieto a minha descoberta.

— Então os Homens não viveram em paz com os Drakars?


— Nunca houve essa entrada de outros seres malignos para começo de
conversa, Isabelle. — As narinas dela inflam. — É do interesse de alguns
difundir esta ideia absurda por vários motivos, os quais não cabe discutirmos.
Até reis conhecedores da verdade difundem essa mentira.

— Então não houve essa batalha?

— Sim, ela aconteceu. No entanto foi contra os próprios Drakars. —


Franzo o cenho e Magnólia me encara com ponderação antes de resolver contar o
ponto de vista dela sobre os acontecimentos passados. — Uma parte dos Drakars
ficou obcecada com a ideia de aperfeiçoar a própria magia. Visando benefício
próprio, e desconsiderando as consequências, eles continuaram ansiando por
mais poder, o que por sua vez trouxe cada vez mais ruína para todo o restante do
mundo. Os próprios Drakars se voltaram contra eles e então se uniram aos
Homens para exterminar essa ameaça. Esse episódio ficou conhecido como a
Batalha de Utão.

— E depois?

— Não é possível atribuir como tendo sido tempos de paz somente porque
ambas as raças coexistiram no mesmo espaço, porque houve muitos conflitos
entre o nosso povo e o deles. — Magnólia me lança um olhar cortante. — E não
foi por uma questão de ganância do nosso povo, os Homens, como aquele
pérfido defende. Os Salonsk, atual linhagem no trono de Yerus, os Pryteon, do
Reino do Norte, a minha linhagem e a de todos os outros reinos deste mundo,
lutaram em uma batalha contra todos os Drakars e então, finalmente, nos
livramos daquela raça traiçoeira. Por isso é uma ofensa aos nossos reinados o Rei
usar o argumento de que é graças aos Salonsk que temos prosperidade quando,
na verdade, é graças à saída dos Drakars de nossas terras em uma ação conjunta.

— Como vocês conseguiram tirar os Drakars dessas terras?


— Vencendo a batalha. — Ela responde de forma amarga e definitiva. Para
bom entendedor, o assunto foi encerrado.

— Compreendo. — Abro um sorriso gentil.

— Chega de distrações. Hoje iremos treinar o seu jeito de caminhar.

Não me passou despercebido que Magnólia deixou de fora Laghertia,


Aurora, Telok I e tudo o que envolve a tal lenda. Além disso, está claro que há
uma segregação de ideias. Alguns acreditam na inocência dos Drakars, como
Mestre Ponda. Outros defendem que eles são o grande mal, como Magnólia.

Quanto a mim, embora tenha conhecido Laghertia, não há como afirmar


que ela é boa, nem ruim. Mas eu também não confio nos Homens, como os
Salonsk, por exemplo. O que sei até o momento é que houve duas grandes
batalhas, uma antes da descoberta do meu mundo e a outra depois do sequestro
da Hortense.

Não sei quem foi inocente e quem foi vilão nessas disputas. O que sei com
certeza é que Hortense, a cópia do meu mundo, foi trazida para cá, assumiu o
lugar da falecida rainha Aurora e esse evento impactou de alguma forma essa
disputa entre os Drakars e os Homens.

A minha existência e presença neste mundo despertou essa briga, uma vez
que o Rei começou a me perseguir e a Laghertia entrou em contato comigo. E,
dessa vez, os reinos não estão se unindo. Isso me mostra que há algo apenas
entre o Rei e os Drakars que, ou os outros reinos desconhecem, ou ignoram por
ora.

Nunca vou confiar inteiramente em ninguém deste mundo. Acabo de


perceber o risco, uma vez que a história é uma só, mas há uma grande
divergência sobre o acontecido.
Depois de passar horas corrigindo a postura, medindo em milímetros a
distância que abro de um passo para o outro, milhões e milhões de vezes, deixo a
sala de aula exausta.

Assim que atravesso as portas, noto Tina vindo do corredor correndo. A


postura rígida dos seus ombros e a carranca de seriedade em seu rosto faz todos
os meus sinais de alerta interno soarem.

— O que aconteceu? — pergunto já prevendo o pior.

— Prenderam o Kaká — ela responde em um fôlego só.

Até mesmo perco o passo.

— Com a autoridade de quem o meu irmão foi preso? — Cerro os dedos


nos punhos.

— Dominic. — Tina faz uma careta. — Mas acho que foi um mal-
entendi...

— Eu vou matar aquele príncipe!

Saio a passadas largas sem dar ouvidos à Tina. Só foco em encontrar o


Dominic e arrancar a cabeça dele fora.
Encontro o Dominic conversando com o líder de formação dos guerreiros
de Lufstar. Pela linguagem corporal de ambos, a conversa parece séria, mas
pouco me importo de interrompê-los.

— Sob quais alegações Vossa Alteza mandou que prendessem o meu


irmão, posso saber? — pergunto com os dentes trincando.

Minha atitude pode ser considerada errada por vários motivos, mas pelo
menos o tratei com o pronome de tratamento correto. Acho um grande feito da
minha parte, se alguém me perguntar.

Educadamente, Dominic pede licença para o oficial antes de se afastar e


me dar total atenção.

— Perdão, Isabelle. Do que você está me acusando?

— Acabo de ser informada que você mandou prender o meu irmão!

— Vocês prenderam o irmão da princesa? — Tão nervoso quanto eu, se


não mais, Dominic pergunta ao responsável pela escolta pessoal dele.
— Não, Alteza. Prendemos o rebelde.

Fecho os olhos por um segundo a mais ao perceber a provável confusão


que Tina tentou me alertar. Cheguei como se fosse uma vespa e Dominic tivesse
brincado com o meu vespeiro. E talvez não tenha sido o caso. Viro para a
Guerreira no mesmo segundo.

— Você tem certeza de que quem foi preso foi o Kaká?

Sinto a atenção do Dominic em nós duas, mas evito olhar para ele porque
estou mortificada por não ter tirado a história a limpo antes de atacar o pobre
coitado.

— Conheço o Kaká como a palma da minha mão. É ele quem foi preso.

Acho a afirmação dela muito absoluta, mas estou imersa demais no


conflito que comecei a criar com o Dominic para dar atenção a Tina. Engulo a
vergonha e me volto para ele, que nos observa com atenção.

— Um dos rebeldes é a cópia do meu irmão. Talvez vocês tenham


prendido o homem errado.

— Talvez não. Eles prenderam a cópia errada. — Tina resmunga para que
apenas eu a ouça.

— Venha comigo, princesa. Vamos averiguar o que aconteceu.

Levando a situação a sério, Dominic lidera o caminho e me leva até as


celas. Tina e o soldado dele, responsável pela escolta do príncipe, nos
acompanham de perto. Quando entramos na prisão, encontro o meu irmão
relaxado e vestido com as roupas do Koli.

— É o seu irmão? — Dominic me pergunta.


Não entendo por que o infeliz está com as roupas do rebelde, menos ainda
compreendo a tranquilidade dele, mas assinto para o Dominic.

— Sim. Está vendo aquelas marcas no nariz dele? — Aponto e Dominic


assente. — Então, elas são dos óculos que ele usa durante toda a vida. Diferente
do Koli, que tem uma ótima visão.

— Solte-o. — Imediatamente, Dominic ordena a um dos guardas da prisão,


que hesita ao relancear um olhar demorado para o meu irmão. O homem não
parece acreditar que não seja o Koli, o que quer dizer que ele não acredita em
uma única palavra do que eu disse. — O senhor jurou servir a este reinado, então
poupe a vergonha de desobedecer a ordem do seu príncipe e duvidar da palavra
de uma princesa e solte-o imediatamente.

No segundo seguinte, um outro guarda atravessa o que recebeu as ordens,


pega as chaves da mão dele e destranca as celas do meu irmão com destreza.
Dominic troca um olhar com seu soldado pessoal. Eles nem precisam dizer em
voz alta para que eu entenda que o homem que hesitou para libertar o meu irmão
será rebaixado.

— Sabia que você seria rápida, por isso nem me desesperei — Kaká diz
para a Tina, que fica com as bochechas rosadas e entra em um silêncio profundo.
Será...? Não quero saber.

Ele bate as mãos na camisa para espanar a poeira.

— O que foi que você fez, Carlos Eduardo? — Dou um tapa no ombro
dele como se ele fosse o culpado por eu ter agido de forma mal-educada com o
Dominic e quase causado confusão sem motivo.

— Respeita que eu sou o mais velho. — Ele segura meu pulso para evitar
apanhar de novo. — Você acha mesmo que gosto de vestir essas roupas
fedorentas do Koli? Aquele ordinário tramou para mim enquanto foge de
Lufstar!

— Onde aquele criminoso está? — Dominic se intromete.

— Tina agiu rápido, então é bem provável que o navio daquele salafrário
ainda esteja ancorado aqui.

Sem nem mesmo um pingo de desconfiança, Dominic ordena para que os


soldados vão em busca do Koli e o capture com a ajuda das informações que o
meu irmão passa a respeito do navio. Quanto a mim, não sei se sinto alívio pelo
Dominic sequer titubear quando eu disse que ele mandou prender o homem
errado, ou vergonha pela forma como já cheguei o acusando.

— Dominic, desculpa...

— Eu que te peço desculpas por não ter me certificado quem os meus


soldados prenderam. Irei punir quem fez a confusão e prendeu o seu irmão ao
invés do Koli. Além de me causarem problemas com você, por pouco eles não
perderam o verdadeiro criminoso.

— Não tem problema algum comigo. Os dois são idênticos e a forma como
se vestem é o que mais os distingue um do outro. Por falar nisso. — Volto a
atenção para o Kaká e enrugo o nariz. — Por que mesmo você disse que está
com as roupas do Koli?

— Porque aquele pilantra é quem nos traiu!

— Traiu como?

— Aquele caos que aconteceu na Ilha do Comércio. Foi o Koli quem


vendeu a informação ao Rakar de que você estaria lá, Isa. — Kaká volta
enfurecido para a Tina. — Eu te disse mais de mil vezes que não fazia nenhum
sentido o traidor ser o Áquila, nem mesmo o soldado dele, e que era um grande
erro confiar nos rebeldes. Mas o que você entende de amor, Tina?

— E o que você entende de coragem, Carlos Eduardo? — Ela pergunta


com as narinas infladas e a ira do meu irmão parece triplicar.

Os assisto com assombro e o corpo quente do Dominic se aproxima do


meu. Desvio o olhar rapidamente para ele, que me observa com preocupação.
Fico sem saber se sinto vergonha pelo comportamento dos dois — eles estão
quebrando o pau e dizendo coisas que dizem respeito a mim também bem na
frente do príncipe —, ou se fico curiosa.

A curiosidade vence e volto a olhar para os dois sem intervir. Quero saber
o que está se passando entre eles e o que acontece pelas minhas costas.

— A minha irmã passou meses no mesmo navio que o homem que atentou
contra a vida dela, porque ela confia no seu julgamento mais do que no meu!
Você deveria ser mais esperta e passar informações seguras.

— Se você não demonstrasse mais interesse nas questões que envolvem a


Ludmila e a Rebeca, talvez eu te levasse a sério nas coisas que me diz a respeito
da Isabelle e talvez ela confiaria mais em você do que em mim!

— Eu amo todos os meus irmãos em igualdade. Todos! Mas o que você


pode falar a respeito de si mesma? Onde está a sua irmã? Por um acaso você
sabe? Ah, é mesmo. Esqueci. Você não sabe o que é amor.

Perco o ar e Tina fica com uma mancha vermelha imensa na testa. A veia
do pescoço dela falta explodir!

Nos meus quase vinte e um anos de idade, eu nunca vi o meu irmão dessa
forma. Nunca mesmo. Ele é sempre o mediador, o que chama a razão os
briguentos, no caso, era o Felipe e eu. Então estou absurdamente assustada e
paralisada com a forma com que ele está atacando a Tina.
— Calem-se. — Dominic ordena quando Tina parece que irá revidar de
uma forma bem feia. Ao som da voz dele, os dois param de brigar feito dois
gatos enfurecidos. — Conte-nos o que aconteceu, senhor Carlos. — Meu irmão
se recompõe.

— Eu entreouvi uma conversa do Koli com alguns dos rebeldes. Os


homens dele me viram e me apagaram, Alteza. Quando acordei, estava vestido
assim e sendo preso pelos soldados do Norte. Só não desesperei, porque vi que
você me viu. — Meu irmão lança um olhar para Tina que endurece ainda mais a
expressão ao invés de amolecer, o que foi a intenção do Kaká.

— O Koli lutou ao meu lado naquele horror! Nós dois quase morremos. —
A Guerreira não nota, mas Dominic lança um olhar altamente desconfiado para
ela. Se eu não a conhecesse, também desconfiaria dela depois dessa. — Você não
ouviu errado? Áquila...

— Já chega, Tina. — Intervenho.

É um absurdo que os dois se comportem dessa forma, principalmente na


frente do Dominic. Eu deveria ter acabado com isso antes que eles despejassem
um tanto de coisa que nos diz respeito na frente de terceiros.

— É. Dá um tempo nessa inveja que você sente do cara.

— Já chega você também, Kaká.

Meu irmão respira fundo e, quando volta a encarar a Tina, a raiva dele já
está completamente sob controle. Acho incrível a mudança súbita de
comportamento.

— Koli vendeu a informação de que a Isabelle estaria na Ilha do Comércio


para o Rakar que por sua vez traiu aquele pilantra ao ordenar que o BOP atacasse
todos os rebeldes. Como ele virou um alvo, assim como nós, Koli precisou lutar
para salvar a própria pele, o que explica ele ter recorrido ao mais forte do grupo
para sobreviver. Você, Tina.

— Eu vou matar aquele ordinário! — A Guerreira praticamente cospe as


palavras com violência. — Se não fosse por ele... — ela se cala subitamente,
incapaz de dar voz ao restante do pensamento.

Kaká e eu engolimos em seco. Se Koli não tivesse nos traído, e aquela


minha aparição não tivesse virado um massacre, Felipe estaria vivo.

Magnólia ouve atentamente enquanto Dominic narra os crimes que Koli e


seu bando cometeram no Norte. Com as coisas que ele conta, percebo que o meu
erro foi acreditar que todos os rebeldes eram iguais, portanto, inocentes.

Koli constantemente dizia que os rebeldes vinham do Norte. Não sei por
que pensei que lá eles eram considerados bons, mas pensei que assim fosse.
Talvez por associar ao que eu via, como a inocência do Ruan e daquele grupo
que veio atrás de mim pedindo ajuda para salvar Salavinder do cerco.

Com o relato do Dominic, mais a recém-descoberta da traição do Koli, fica


claro para mim que nem todos os rebeldes são iguais. Acredito que a cópia do
meu irmão agiu de forma deliberada ao se associar a pessoas de boa índole de
Yerus. Ele quis mascarar suas verdadeiras intenções, a de promover o caos e lutar
por uma anarquia.

Não sei como fui cega, mas isso justifica a tomada de decisão do Rei ao
cercar Salavinder. Não que eu concorde com o que ele fez, porque não concordo
de jeito nenhum! Apenas agora sei qual foi a desculpa dele para ordenar aquele
cerco.
Os nobres foram alertados e saíram de lá. Algumas pessoas comuns, ao
achar suspeita aquela movimentação, desconfiaram e também saíram de
Salavinder. Ruan foi um deles. Mas muitos inocentes foram condenados por
causa dos rebeldes que haviam tomado Salavinder e do Rei que ordenou aquela
atrocidade. Ambos são culpados, a meu ver.

— Vossa Alteza trouxe esse criminoso e o acobertou nas minhas terras? —


Magnólia me pergunta em uma calma fria.

— Ela não sabia. — Dominic intervém a meu favor. — Assim como eu,
Isabelle acabou de descobrir que Koli a enganou e a traiu naquele massacre que
aconteceu na Ilha do Comércio.

— Obrigada, Dominic. — Aperto gentilmente seu antebraço antes de me


voltar para a Magnólia. — Vossa Majestade, também estou digerindo o que
aconteceu, mas estou a disposição para ser interrogada. Além disso, peço para
que Vossa Majestade interrogue a minha soldada Tina e Ruan, dois dos meus que
já se envolveram com a liderança dos rebeldes. É do meu desejo apurar os fatos e
punir a todos os envolvidos nas tramas do Koli.

Sei que os dois são inocentes, então colocá-los a disposição de uma


interrogação é o mesmo que proteger a todos nós, principalmente aos rebeldes
comuns que vieram comigo.

A rainha não perde tempo e logo todos os suspeitos são interrogados após
tomar o soro da verdade, incluindo a mim, que me prontifico a ser a primeira.
Magnólia vai tão afundo na investigação no caso do rebelde que descobre que,
além de um fugitivo de um grupo criminoso do Norte, traidor dentre os rebeldes,
o que inocenta Tina, Ruan e eu, ele também aliciou pessoas do reino de Lufstar e
roubou da Coroa.

O navio que ele tentou fugir, e que foi capturado pelos homens do Dominic
graças as informações do meu irmão, era um navio de carga do reino da
Magnólia. Como se não bastasse, também foi encontrado ouro, joias e
armamentos no meio das cargas.

Fico com o sentimento terrível de culpa e, embora minha inocência tenha


sido atestada, não consigo parar de pensar que tive participação nisso. Afinal de
contas, Koli veio comigo. Foi graças a mim que ele encontrou asilo em Lufstar.
Para piorar, ele começou a me ameaçar e eu não contei nada para ninguém.

Eu devia ter feito algo ao invés de procurar entender por conta própria a
mudança súbita no comportamento dele. Agora sei que Koli ficou desesperado
com a possibilidade de ser desmascarado quando ficou sabendo que o Dominic
estava aqui. Foi por isso que começou a me ameaçar pedindo ouro. Ele queria
fugir antes que alguém do reino do Norte o reconhecesse.

Aquele caos que aconteceu na Ilha do Comércio, onde o meu irmão perdeu
a vida, é o tipo de coisa que Koli trama para que aconteça. Seja em Yerus, Reino
do Norte ou até mesmo nos Países Baixos. E foi a esse tipo de gente que me
associei sem saber.

Está certo que nem todos os rebeldes são criminosos, como Magnólia fez
questão de averiguar. Mas eu me aliei ao Koli. E quando eu podia ter feito algo
para ajudar, como quando comecei a receber ameaças, me calei.

Agora sou capaz de perceber com mais clareza os sentimentos do Áquila.


Ele sentia aversão por eu ter me associado aos rebeldes. Acredito que ele não
sabia tão afundo o que o grupo do Koli fazia, mas conheço o Guerreiro o
suficiente para saber que ele detectou com facilidade que nada ali cheirava bem.

Nem posso culpá-lo por ter se ressentido de mim quando me associei aos
rebeldes. Na verdade, agora não entendo como o Áquila conseguiu ficar comigo
apesar das circunstâncias.
Depois de dois longos dias de investigação, ao fim da tarde, Dominic me
acompanha para o castelo em que estou morando enquanto seus soldados nos
seguem a uma certa distância. É a primeira vez que temos um momento sozinhos
e longe de toda a confusão.

— Não se culpe pelos crimes dele, Isabelle — Dominic diz com


delicadeza. Ele deve sentir que estou me martirizando por dentro.

— Como não? Eu não percebi...

— Nem a sua soldada que é nascida e criada neste mundo. Além de


também ser uma Guerreira bem treinada. Aquele cortesão de Salavinder é outro
que acreditou na boa fé do Koli. Os dois, e tantos outros, foram enganados e, a
meu ver, o equívoco deles é pior do que o seu, uma pessoa que veio de outro
sistema, modo de agir e pensar.

— Mas eles não estão na mesma posição que a minha. Magnólia poderia
me condenar e mandar cortarem a minha cabeça!

— Se fosse achado crime em você, o que não foi.

— Dominic, eu era uma ladra no meu mundo!

— Eu entendo o seu raciocínio. Porém, são situações distintas, princesa.

— Por associação eu... — Meus olhos se enchem de lágrimas e minha voz


embarga. Engulo o nó na garganta e desvio o olhar.

Dominic para de andar e segura ambas as minhas mãos. Ele as aperta com
delicadeza para chamar a minha atenção, mas estou frustrada demais comigo
mesma para ser alcançada.

— Olhe para mim. — Atendo ao pedido dele e noto como ele está
absurdamente sério. — A culpa não é sua. Principalmente no que diz respeito a
morte do seu irmão.
Aí está a razão por eu ser consumida por essa culpa que mais parece uma
gosma negra e sufocante.

— Por que você está fazendo isso? — O encaro fundo nos olhos, porque
quero realmente saber quais são as intenções do Dominic ao tomar o meu partido
dessa forma tão natural.

— Porque eu acredito na sua inocência.

— Você nem me conhece, Dominic.

— E quanto a tia Magnólia? Há meses que vocês duas convivem


diariamente e ela também ficou ao seu lado com facilidade. — Fico sem
argumentos para rebater essa, mas ele não parece esperar que eu diga algo em
retorno. — Seja forte, Isabelle.

É o alerta que ele me dá antes de fazer um cumprimento e se retirar ao me


deixar sozinha na porta do castelo, e carregando uma culpa tremenda.
Sou a primeira a chegar no camarote projetado para a realeza ficar em
realce durante o julgamento e execução do Koli e seus comparsas. Apenas Oclan
pôde vir comigo, mas, como os outros guardas pessoais que não são de Lufstar,
ele ficará fazendo a segurança do lado de fora.

A praça já está cheia de centenas de expectadores, o que por sua vez piora
a dor que sinto na boca do estômago. Eu não queria nunca ter que passar por isso
sozinha, sem alguém da minha confiança por perto, e não estou conseguindo
segurar a angústia que está me corroendo de dentro para fora.

Os nobres, selecionados a dedo para ficar no camarote, vão tomando os


assentos vazios. Ora ou outra, me vejo obrigada a cumprimentar alguém, mas o
meu cérebro registra pouca coisa.

Quando Dominic chega, logo seu olhar pousa sobre mim. Ele caminha na
minha direção com elegância e altivez enquanto cumprimenta os nobres ao longo
do caminho. Em plano de fundo, o som da população o ovacionando encobre
qualquer outro ruído.
Ao se sentar do meu lado, Dominic espicha o pescoço e traz a boca para
perto do meu ouvido para que ninguém, tanto ao nosso redor, quanto alguém da
plateia, saiba o que irá me dizer.

— Quando chegar a hora, não desvie o olhar nem mesmo feche os olhos.
Pode fazer isso? — ele pede gentilmente.

Assinto quase que de forma imperceptível quando ele volta a ficar ereto
em seu lugar. Seus olhos de crisólito me dizem para que eu seja forte e então me
obrigo a aplacar o nervosismo como Magnólia me ensinou diversas vezes.

A rainha chega instantes depois e todos nós nos levantamos para recebê-la.
Os expectadores na praça vão ao delírio.

Assim como o sobrinho, Magnólia cumprimenta as pessoas ao longo do


caminho e então a mim, seguida do Dominic, antes de se sentar no único lugar
vago, que é bem ao lado dele.

Assim que Magnólia fica confortável em seu trono, o algoz traz os


prisioneiros para o tablado. Koli, e os únicos três rebeldes aliados a ele, que
foram achado crime na investigação minuciosa da rainha, têm correntes
amarradas ao redor dos tornozelos e pulsos, o que dificulta a mobilidade. Mas
logo eles param enfileirados perto da guilhotina e então, o que presumo ser um
tipo de juiz, abre um pergaminho.

O zunido da multidão desaparece assim que o homem de baixa estatura


pigarreia. Com a voz de barítono, ele lê as várias acusações que há contra o Koli
e seus comparsas.

— Esses quatro homens foram condenados à morte por conspiração nos


reinos do Norte, Yerus e Lufstar, bem como revolta contra a monarquia, roubo da
Coroa, organização de motins e alta traição. Somente Sua Majestade, a rainha,
tem o poder de perdoar os condenados.
— Não perdoe! — O povo grita, enfurecido.

Magnólia assente com a cabeça para o algoz, tomando a sua decisão. Luto
contra a vontade de olhar para a rainha a fim de descobrir se ela se sente
confortável em não os perdoar. Acredito que nunca vou saber, porque olhar para
ela agora chamaria atenção para mim e já sinto peso demais das observações dos
vários pares de olhos na minha direção, por causa do lugar de destaque em que
me encontro.

Posso afirmar que, se os nossos papéis se invertessem, eu não sentiria


nenhum tipo de satisfação, muito pelo contrário. Agora mesmo estou lutando
contra a dor no estômago e o tremor das minhas mãos ao observar o juiz se
aproximar do Koli.

Para encontrar paz por participar disso, recordo da rainha me ensinar que
decisões como essa, de sentenciar alguém à morte, antes é preciso se certificar de
que é para o benefício de várias vidas. Magnólia investigou o caso a fundo
durante esses dias. Lufstar praticamente parou até que a verdade fosse
encontrada. Portanto, Koli e seus comparsas não são inocentes.

— Os condenados à morte têm algo a dizer? — o juiz pergunta aos


prisioneiros.

Koli abre um sorriso perverso e então nos encara um a um. Magnólia,


Dominic e então eu.

— Vejo vocês no inferno.

A plateia grita com fervor, mas Koli não parece dar ouvidos a nada.
Alguns nobres suspiram atrás de nós, mas Magnólia e Dominic não demonstram
qualquer tipo de reação. Quanto a mim, aperto com força o pano do meu vestido
entre as minhas mãos enquanto os outros prisioneiros dizem coisas parecidas
com a do líder deles.
Seja forte.

Seja forte.

Seja forte.

Repito como um mantra as palavras do Dominic. Eu não posso desviar ou


fechar os olhos. A plateia não está aqui somente para a execução, mas
principalmente para nós que estamos nesse camarote sendo observados feito
animais em uma jaula de zoológico.

Embora eu não concorde, e talvez nem caiba a minha opinião, o fato é que
uma mensagem precisa ser enviada e faço parte dela, mesmo não gostando, ou
querendo.

O calor insuportável da tarde também não ajuda os ânimos. Só fico ainda


mais desconfortável diante de tudo o que está acontecendo. Mas minha aflição
chega ao ápice, quando o algoz posiciona o pescoço do Koli sobre o descanso
embaixo da lâmina afiada.

Fico entalada com o próprio ar que respiro quando o homem de vestes


negras se afasta. Logo as mãos dele encontram os nós da corda que prende a
lâmina da guilhotina.

Dominic segura minhas mãos sobre o meu colo. Algo me diz que ele não
deveria fazer isso, mas serei eternamente grata a ele por ter agido contra todos os
protocolos neste momento crucial. Aperto meus dedos ao redor dos dele, que
apenas me segura, mostrando que está aqui comigo.

Quando a lâmina desce com uma velocidade absurda e a cabeça do Koli se


separa do pescoço, Dominic aperta meus dedos tanto quanto eu aperto os dele.
Porém, nenhum suspiro sai de seus lábios. Nem mesmo quando sangue se
espalha sobre o centro da praça, ou o algoz segura no ar a cabeça do Koli com os
olhos abertos e boca retorcida.
Engulo a bile enquanto um coro de vitória vem da plateia.

— Matem os outros! — a população grita em frenesi.

Um a um, assisto a todos os conspiradores dos rebeldes terem suas cabeças


decepadas.

Eu nunca vou me acostumar com isso.

Eu nunca vou achar isso normal.

Eu não quero nunca mais participar de uma execução em praça.

Nunca mais!

Magnólia é a primeira a se levantar e sair sem falar nada com ninguém.


Desorientada, também fico em pé querendo ir embora o mais rápido possível. Só
sei que Dominic me segue de perto, porque os dedos dele ainda agarram os
meus.

— Por aqui — Dominic diz, mas, sinceramente? Não tenho ideia de para
onde eu estava indo.

Ele me guia para algum lugar do castelo e logo entramos em algum


cômodo que cobre as nossas cabeças do sol, é a única distinção que consigo fazer
da minha redondeza.

— Ela vai desmaiar. — Acho que é a voz do Oclan, mas não tenho certeza.

Logo um par de olhos crisólito me encara de perto.

— Fique firme comigo, Isabelle. Ainda estamos sendo observados. —


Assinto. O que mais eu posso fazer? — Soldado, mande alguém trazer duas
poções para o estômago.
— Como você sabe que o meu estômago está doendo a ponto de me fazer
ver estrelas? — pergunto ao Dominic.

— Porque o meu também está. — Ele desliza os nós dos dedos sobre a
minha bochecha.

— Eu já lutei e vi de perto várias pessoas morrer, mas...

— Execução em praça pública, ainda mais quando somos o alvo da


promessa de que os prisioneiros irão nos encontrar no inferno, não tem
comparação.

— Não tem mesmo. — Balanço a cabeça para os lados e o encaro com


uma angústia profunda.

— Acabou, princesa.

Dominic, o soldado pessoal dele, Oclan e eu, partimos para o pequeno


castelo. Tina, Kaká e Ruan estão a nossa espera já logo na entrada.

Pensei que eu não conseguiria olhar para o Kaká quando nos


encontrássemos depois da execução do Koli, mas o que acontece é exatamente o
oposto. Além de não parar de olhar para os traços do meu irmão, também o
aperto em um abraço firme para me certificar de que a pessoa certa morreu. Que
não foi o meu irmão por engano.

Tenho a sensação de que só adquiri mais munição para os meus constantes


pesadelos. Agora além do tormento de ser aterrorizada pela morte do Felipe,
tenho medo de sonhar que era o Kaká no lugar do Koli.
O único momento em que finalmente o pavor me deixa, é quando Ruan
envolve os dedos ao redor do meu pulso e me afasta do meu irmão, que começou
a reclamar que eu estava machucando-o. Nunca achei tão bem-vindo os poderes
dele e, sem resistência, permito que o Sensitivo altere todas as minhas emoções.

Tina se afasta e nos lança um olhar que bem poderia ser definido como
nojo. Quando viro a cabeça para trás, a fim de medir a reação do Dominic,
percebo que ele está atento a tudo e a todos.

O olhar dele encontra com o meu e ele disfarça com um sorriso ensaiado.

— Gostaria de ficar para o jantar, Alteza?

— Sim, por favor. Antes fingir engolir a comida aqui do que na presença
da tia Magnólia.

Abro um sorriso porque é exatamente assim que me sinto. Com o Dominic


aceitando jantar comigo, é possível rejeitar um convite que tenho certeza de que
a Magnólia irá me mandar. Dominic sorri de volta e esse sim é um sorriso
verdadeiro.

Kaká, Ruan, Tina e Tami, se espalham pelas cadeiras ao redor da mesa.


Oclan não. Na presença de qualquer pessoa, o Guerreiro não se senta na mesa
comigo. Imagina na frente do Dominic! Só quando estamos nós dois no
treinamento, sem ninguém por perto, é que Oclan se permite me tratar como a
velha Isa. Fora isso, nunca.

Tudo transcorre normalmente durante o jantar e, quando Dominic agradece


e se despede, fico em pé para acompanhá-lo até a saída. O soldado dele nos dá
distância quando Dominic para nas escadas de frente a mim.

— O Sensitivo gosta de você.


De todas as possibilidades que passaram na minha cabeça de frases que o
Dominic um dia poderia me falar, essa nunca sequer imaginei ser possível.

Desconfortável com o assunto levantado do nada, olho por sobre um dos


ombros para ver se tem alguém por perto. Para o meu azar, Tina parece que
passava bem na hora em que essa terrível afirmação saiu dos lábios do Dominic.

A Guerreira se esconde antes de perceber que eu a vi e, de onde estamos,


não somos capazes de nos ver por causa de uma pilastra. Mas eu sei que Tina se
aproveita da situação e não sai para nos dar privacidade como o soldado do
Dominic fez. Ao invés, ela está bisbilhotando a nossa conversa.

Volto para o príncipe sem saber como me livrar desse assunto sem me
entregar a ela. Dou de ombros, porque é uma resposta para ele que ela não
enxergará.

— Desconfiei que você soubesse e ignorasse de forma deliberada.

Tina arfa de um jeito que me leva a entender que ficou surpresa. Essa
abelhuda não vai nos deixar a sós e Dominic não parece pronto para deixar a
questão de lado. É compreensível, uma vez que ele mantém a intenção de me
pedir em casamento em alguma parte do futuro.

— O que acha de um passeio ali no jardim? Seu soldado é o suficiente para


nos acompanhar.

— Eu adoraria. — Ele me estende o braço e, prontamente, aceito para sair


de perto da amiga da onça nos escutando na surdina. — Te ofendi com a minha
observação, princesa? — Dominic pergunta quando alcançamos uma região do
jardim que possui damas da noite.

— Está tudo bem. Se nossas posições se invertessem, eu também gostaria


de entender a situação.
— E qual é a situação?

— Somos amigos.

— Não entenda como uma acusação. Apenas estou curioso. — Assinto


permitindo que ele expresse o que está pensando. — Se você sabe a natureza dos
sentimentos dele por você, por que finge que não?

Paro de andar e Dominic me acompanha. Respiro fundo e observo a luz


prateada da lua iluminando um trecho do jardim. Volto a atenção para o príncipe
e não desvio os olhos dos dele.

— Você já sentiu a necessidade de proteger os sentimentos de uma pessoa


de quem gosta muito?

— Não compreendo como eu seria capaz de tal feito.

Aperto os lábios e o encaro com a expressão que diz: você vai mesmo me
obrigar a dizer isso?

Dominic apenas ergue uma sobrancelha como se dissesse: obrigar a dizer o


quê?

— Nunca serei capaz de corresponder aos sentimentos românticos que o


Ruan nutre por mim, mas o amo como amigo e por saber como o meu coração
funciona, não quero que a minha rejeição machuque o dele. Não é medo de
perder a nossa amizade. Isso seria ruim, mas não o pior. O que me faz ignorar de
forma deliberada, como você apontou, é a vontade de protegê-lo de mim.

— A escolha dele, onde ela fica?

— Não acho que ele seja capaz de escolher quem o coração dele ama,
Dominic. — Sei por experiência que não sou capaz de impedir o meu de amar o
Áquila. Não digo isso, mas é o que penso.
— Paixão não é uma escolha. Amor é e sempre será uma escolha.
Ninguém é perfeito e nos momentos em que o outro nos irrita, ou falha conosco,
ou tira a nossa sanidade, até podemos não controlar o desgosto que sentimos da
pessoa em questão nessas situações, mas podemos escolher amá-la mesmo
assim. Se a sua escolha é amar, então você permanece. Paixão não. Se o outro
falhar, você se irritar e passar a não gostar dele, você não permanecerá.

— Acho que você não me entendeu...

— Entendi sim. Para você, ignorar que sabe da natureza dos sentimentos
dele é se eximir da culpa por não corresponder. Mas se ele escolhe te amar
mesmo assim a responsabilidade é dele, não sua.

— Mas a rejeição machuca e seria eu a infligir tal dor, já que seria eu a


rejeitá-lo.

— Se ele não escolhesse te amar, você não o rejeitaria. — Voltamos a


passear em passos curtos na sombra da lua. — A escolha do coração é
individual. Você não pode escolher proteger o coração de alguém se ele não
quiser ter o coração protegido para começo de conversa.

— Seguindo o seu raciocínio, o certo seria eu virar para o Ruan e pedir


para que ele parasse de escolher me amar porque eu não vou corresponder? Na
minha definição, isso é rejeitar e eu o machucaria.

— Ao menos você seria sincera com os seus próprios sentimentos. Fingir


deve ser cansativo.

— Eu me sentiria culpada sendo sincera com os meus sentimentos nesse


nível!

— E ele poderia escolher te amar mesmo assim. — Calmamente, Dominic


revida. — Você não decide pelo coração do outro, princesa. Apenas pelo seu.
Esse é o ponto da nossa discussão.
Fico em silêncio absorvendo o ponto de vista dele. Embora eu não
concorde inteiramente, consigo ver a lógica.

— O que você iria preferir, Dominic? — sussurro.

— Amo uma pessoa que prefere não corresponder os meus sentimentos ou


alguém me ama e sou eu que prefiro não retribuir?

— Não é uma questão puramente de querer, príncipe. — O repreendo. —


Sentimento não é uma ciência exata e muitas vezes a gente só sente e não
controla.

— Emoção é uma reação imediata. Sentimento é uma construção, portanto,


você escolhe o que deseja construir. — Reviro os olhos e ele solta uma risadinha
divertida com a minha reação. Dominic aperta a minha mão repousada no
antebraço dele. — De qualquer forma, em ambas as hipóteses levantadas, prefiro
a sinceridade.

— Fácil falar — resmungo.

— A verdade liberta, princesa. Mesmo que eu me sinta culpado ou


rejeitado. Porém, concordo que a amizade correria certo grau de risco. No
entanto, ambos seríamos livres de qualquer tipo de amarra.

— De novo, fácil falar — resmungo outra vez. — Difícil é ter o coração


partido ou, pior, ser a razão de um coração partido.

— Nunca disse que seria fácil.

— Agora você só está me irritando, príncipe.

Dominic ri com vontade, porque sabe que tenho razão. Ele só está me
provocando.
— Um criado do Dominic me pediu para te entregar. — Tina me estende
um envelope assim que saio de uma aula com a Magnólia.

— O que é? — pergunto sem nem mesmo abrir. Sei que ela sabe o
conteúdo da carta, porque Tina, além de abelhuda, também tem a missão de
fiscalizar tudo o que chega até mim.

Na cela em que fiquei presa com o Oclan, ele tinha que comer minha
comida para testar se não estava envenenada. A minha ilusão foi pensar que esse
tipo de perigo acabaria quando eu deixasse o forte. Não acabou. Uma carta que
passa pelas mãos de desconhecidos, também representa uma ameaça, então Tina
sempre toca em tudo antes de mim.

— Ele solicitou um encontro na galeria de arte e pediu para que você fosse
sozinha. — Ela repuxa os lábios para o lado em desagrado.

Dominic vive me guiando e lutando para que eu aprenda a me localizar no


interior do castelo. Nunca consegui, então ele sabe que não tenho a menor
condição de me orientar por conta própria. Portanto, não faz sentido algum que
me peça para encontrá-lo sozinha na galeria de arte. Sei lá onde isso fica.
Paro de andar e penso a respeito. Logo concluo que Dominic é esperto
demais para deixar passar qualquer informação, ainda mais uma tão óbvia quanto
essa. Abro o bilhete e leio com atenção as palavras dele à procura de uma pista.
Porque há algo oculto nesse pedido. Estou certa de que, na galeria de arte,
Dominic não está.

No entanto, o bilhete é simples. Apenas um: “Encontre-me na magnífica


galeria de arte da natureza”.

Dobro o papel de volta enquanto repasso mentalmente todas as conversas


que tivemos. Cada uma delas. Como um estalo, me recordo de algo que uma vez
ele me disse quando subimos a torre mais alta do castelo. Dominic falou a
respeito dos esconderijos favoritos dele e apontou para uma direção onde disse
haver árvores de cerejeiras, a obra de arte mais magnífica da natureza.

Abro um sorriso ao descobrir a charada dele. Dominic quer me encontrar


sozinho na parte externa do castelo.

Baixo os olhos para a minha roupa e concluo que o vestido creme soltinho
que estou vestindo serve para uma pequena caminhada. O sol já está baixo, então
também será tranquilo, uma vez que nunca usei, nem nunca usarei, chapéu ou
sombrinha. Não sei como funciona nos outros reinos, mas na corte da Magnólia,
são acessórios completamente dispensáveis.

Os vestidos, no geral, estão mais para sensuais do que para o recato. Por
Lufstar ser uma terra quente, predomina os estilos mais abertos e soltos do que
longos e fechados. A questão é que nem sempre por ser uma peça com a
impressão de solta e aberta que não é pesada. A minha sorte é que hoje a minha
escolha de vestimenta foi simples em todos os sentidos.

— Obrigada. — Viro e sigo na direção que me levará para os muros do


castelo.
— A galeria de arte fica no terceiro andar. — Tina aponta as escadas em
caracol próxima a nós.

— Ele não está lá.

— Vocês dois ficam nesses jogos estranhos, sempre cheios de charadas.


Nem é irritante. Imagina. — Ela logo alcança o meu ritmo e usa sarcasmo, algo
que a ensinei com empenho.

Paro de andar e ela também.

— Vou sozinha.

— Não é seguro — a Guerreira rebate de prontidão.

— Os traidores já foram punidos.

— Pare de insistir nessa questão. Somente sob o meu cadáver que você irá
sozinha, Isabelle! — Tina se exalta e lanço um olhar cortante para ela que respira
fundo. — Vamos fazer um trato? Eu te acompanho até próximo de onde você
quer ir. Uma vez lá, você fica por conta do príncipe e a escolta dele enquanto
volto para tratar umas questões com o Oclan.

— Não gosto quando você e o Oclan me tratam como criança pedindo aos
pais para pararem o carro na esquina do colégio. Não sou nem mesmo
adolescente, Guerreira.

— O que quer que isso signifique, princesa. Sozinha você não vai.

Respiro fundo e faço do jeito que a minha guarda deseja, no caso, os dois
Guerreiros mais protetores do planeta!

Quando chegamos próximo da colina, é exatamente como Dominic disse


que seria. Avisto várias árvores completamente carregadas com delicadas flores
cor de rosa, que também formam um tapete suave sobre a grama verde.
Lanço um olhar para Tina, que finalmente me deixa sozinha depois de se
certificar de que há soldados do Dominic cobrindo a área.

Atravesso o gramado na direção do príncipe, que está deitado enquanto me


observa de sob a sombra da árvore rosinha mais bela. Sobre a toalha em que ele
está, há uma cesta ao centro. É um cenário tão romântico e lindo que me falta ar.

Com essa minha reação espontânea entendo qual é a intenção dele.


Dominic pretende tocar o lado sensível de uma mulher, o que me dá vontade de
rir, porque não tem como ele alcançar algo que não está mais em meu poder. Já
discutimos isso algumas noites passadas.

— A obra de arte mais magnífica da natureza — digo ao me sentar de


forma elegante sobre a toalha, ficando de frente a ele.

— Touché. — Ele pisca com um sorriso pregado nos lábios ao mesmo


tempo em que uma franja de cabelos escuros cai sobre a testa. Dominic os afasta
de forma meticulosa. Tudo o que ele faz, é com altivez.

— O que você quer tratar comigo fora do alcance dos ouvidos que nos
cercam no castelo, príncipe?

— Primeiro, vamos comer. Você demorou e estou faminto. — Ele abre a


cesta e dispõe os alimentos entre nós sobre a toalha quadriculada. — Fale-me um
pouco sobre o outro mundo.

Dominic joga uma uva na boca e mastiga de forma caprichosa. Seus olhos
de crisólito apertam-se para mim em diversão enquanto o observo comer. Aperto
os olhos de volta como se dissesse: “Travesso! Já saquei qual é a sua”. Ele é
charmoso, sabe disso e está tirando proveito dessa característica.

— O que quer saber? — pego uma uva e, de forma bem menos graciosa do
que ele, levo-a até a boca.
Dominic dá de ombros enquanto pega outra bolinha verde.

— Qualquer coisa. Só quero te conhecer um pouco mais afundo. Se quiser


começar pelo seu antigo lar, sou todo ouvidos.

O analiso por alguns instantes. Quando percebo que, brincadeiras de lado,


ele está sendo sincero, respiro fundo e aprumo os ombros.

— Tudo bem.

Compartilhamos o piquenique que ele preparou enquanto conto a respeito


da minha antiga vida. Para a minha surpresa, Dominic é um ótimo ouvinte e,
quando me dou conta, a comida acabou, já está próximo do pôr-do-sol, e estou
falando sem parar por tanto tempo que minha garganta está ressecada.

Ele me desarma de uma forma boa, o que é inédito para mim. Não sei se
alguém alguma vez prestou tanta atenção ao que digo da forma como ele faz,
sorrindo nas horas certas e demonstrando interesse sincero por minhas histórias.

— Não consigo te imaginar cuidando de crianças.

— Qual é, príncipe? — Jogo uma uva, que caiu no gramado, na testa dele.
Dominic sorri de forma travessa. — Eu gostava de agitar as crianças na creche
que o meu irmão me obrigava a trabalhar sempre que eu saía da linha. Mas
confesso que eu corria na hora de trocar alguma fralda. Logo a dona, amiga do
Kaká, percebeu qual era a minha e passou a me enxergar mais como uma
animadora de festa infantil do que cuidadora. Até mesmo uma mãe uma vez me
contratou para isso.

— Contratou?

— Ela me deu uma quantia equivalente a poucas moedas de cobre para que
em troca eu divertisse as crianças em uma festinha do filho dela. — Minha
garganta arranha e começo a tossir.
— Parece que te pagavam mal, mas que você se divertia muito — ele diz
ao me estender uma garrafinha com água.

— Obrigada. — Dou um gole na água e então mantenho a garrafinha entre


as mãos. — Foi o mais legal que já fiz lá, porque ilusionismo era o mais próximo
das minhas habilidades de ladra. Inclusive, foi essa festinha que me ajudou em
Adelin. Eu precisei despistar um taberneiro que me desafiou.

O Áquila apareceu, virou uma confusão na taberna e tive que sair


correndo. E foi depois daquele episódio que o Koli, que estava escondido lá, veio
atrás de mim.

— Legal é o mesmo que divertido? — Dominic me puxa de volta dos


meus pensamentos que seguiam um rumo de frustração.

— Pode-se dizer que sim. — Dou de ombros.

— Você sente saudades da vida que levava? — Dominic repousa a cabeça


na mão e avalia a minha reação.

— Ninguém nunca me perguntou isso — digo enquanto fecho a tampa da


garrafa para encarar outra coisa que não seja os olhos dele.

Dominic estende o braço e segura as minhas mãos que estão em volta da


garrafinha.

— Temo que este é um erro que qualquer um pode cometer, princesa. —


Ergo o olhar sem entender o que ele quer dizer com isso. — O de esquecer que,
antes de parar aqui, você tinha uma vida. Talvez um sonho que hoje já não há
mais a possibilidade de virar realidade. Eu não ficaria contente em perceber que
tudo o que almejei por anos, por mais bobo e insignificante que fosse, acabou.

Engulo o nó na garganta e assinto em agradecimento por este pequeno


gesto de consideração. O tempo todo estou acostumada com as pessoas
esperando algo de mim, mas não sei se alguém algum dia verdadeiramente já
tentou enxergar o meu ponto de vista.

Penso na pergunta dele, se sinto saudades da vida que levava, e minha


primeira reação é responder que sim, sinto saudades da minha antiga vida. Freio
no último instante.

Compartilhei com o Dominic como era a minha situação antes de vir para
este mundo. Contei sobre a minha rotina e não foquei em nenhum extremo. Disse
a ele como eu ia muito mal na escola, mas também como gostava dos amigos
que fiz lá. Revelei que a situação financeira da minha família era péssima, mas,
em contrapartida, nós nos amávamos e éramos unidos.

Durante todo o meu relato, foi como se eu estivesse narrando a história de


outra pessoa. Aquela realidade já destoa muito de quem me tornei. Isso me
entristece profundamente ao mesmo tempo em que, se alguém me perguntasse se
eu gostaria de voltar a ser aquela Isabelle...

Mestre Ponda, Felipe e Kaká estavam certos. Eu teria voltado para cá. Por
mais que eu tenha várias memórias felizes no outro mundo, é neste que sinto que
pertenço. E isso antes mesmo de descobrir sobre a minha linhagem perdida.

Eu já não sou mais a mesma Isabelle de antes e não gostaria de voltar a ser
ela.

— Vamos direto ao ponto. — Fico séria e volto a garrafinha para a cesta,


colocando um fim nesse clima de descontração que ele se esforçou em criar. —
Por que estamos aqui, Dominic?

— Queria mais momentos como este para te mostrar que, mesmo que seja
uma aliança política, não precisa ser desagradável. Não precisa ser infeliz. Nós
dois podemos construir algo que nos faça bem. Mesmo que o propósito não seja
um dos quais as pessoas sonham... que você tenha sonhado algum dia... sinto,
nos meus ossos, que seremos bons um para o outro, Isa. Porém, temo não ter
mais tempo para te fazer enxergar sob o mesmo prisma que o meu. — Dominic
faz uma pausa e seus cílios negros de cima se encontram com os debaixo. Ele
respira fundo. Quando seus olhos verdes voltam a me encarar, meu coração
dispara. — Preciso da sua resposta, Isa.

— Neste exato segundo? — Arregalo os olhos e ele assente. — Não posso


tomar uma decisão grande como essa assim, do nada. Eu ainda não...

— Você ainda não me conhece.

— Não conheço a situação inteiramente. — Deixo claro qual é a minha


real preocupação e Dominic não demonstra chateação.

— Sem problemas. Vamos esclarecer tudo. — Ele ajeita a postura e se


senta de forma ereta. — Isabelle, eu sou o primeiro na linha de sucessão ao trono
do Reino do Norte, um reino com grande alcance de poder e que um dia espero
te levar para conhecer. Mas também sou herdeiro destas terras — ele aponta com
a mão livre o ambiente ao nosso redor. — O reino dos Países Baixos com a
posição privilegiada e que possui uma frota armada invejável. Portanto, tenho
forças suficientes para corrigir um erro do passado, uma vez que agora é possível
que a linhagem dos Tupper volte aonde eles pertencem.

— Eu na monarquia.

— E os nossos herdeiros.

— Seja sincero comigo. O que você pretende mesmo é conquistar vários


reinos e se tornar um Imperador, não é?

— Longe de mim tal pretensão. — Dominic franze o cenho como se


tivesse ficado ofendido. — Grandes poderes como esse é capaz de tornar o
homem mais são no mais desvairado. Portanto, Isabelle, a minha intenção de me
aliar a você é uma questão de ter herdeiros e fazer o que é certo. Talvez você não
saiba, mas Telok I, de forma indireta, também pertencia ao Reino do Norte.

— Magnólia me contou que a rainha mãe era de lá.

— Então você já sabe que o último Tupper, o seu antepassado, também


fazia parte da árvore genealógica da minha família. Além disso, até onde se sabe,
ele foi assassinado. De qualquer forma, se Telok I era do Norte...

— Então também tenho um galho na minha árvore genealógica que vem


do Norte. — Ele assente. — Mas Áquila e Rakar são seus primos primeiro. Isso
coloca os Salonsk ainda mais próximos da sua família do que eu, alguém que
pertence há não sei quantas gerações posterior dos Tupper.

— Correto.

Espero que ele complemente, mas Dominic não diz mais nada.

Dominic está sendo cuidadoso com a escolha de palavras e evasivo de uma


forma sutil. Preciso arrancar informações dele com outra abordagem, porque
nem em mil anos vou cair nesse papo furado de que é para corrigir um erro do
passado, fazer o que é certo... Herdeiros tudo bem. Tina já me alertou quanto ao
interesse do Dominic e da Magnólia e percebi que faz todo o sentido.

— Se eu disser que sim, você irá se comprometer a me ajudar a libertar as


minhas irmãs?

— Elas se tornarão minhas irmãs também, portanto, é claro que irei usar
tudo o que está em meu poder até libertá-las. — A intensidade com que ele
profere faz até mesmo que eu me afaste um pouco para trás.

Desvio o olhar e encaro a toalha sem nada ver.


Isso é tudo o que sonhei. Alguém com mais força e com tanta vontade
quanto eu de libertar as meninas. É por isso que minhas mãos começam a tremer
e meu coração galopa feroz em meu peito. Finalmente tenho condições de
proteger Ludmila e Rebeca de forma definitiva.

Mas não posso pensar somente nelas. Tem muita coisa em jogo. Tem muita
vida em risco.

— Os mestiços... — sussurro enquanto minha mente pensa freneticamente


em todas as possíveis brechas.

— O que tem eles?

— Também é do meu desejo que essa caça a eles acabe. Que eles sejam
parte da sociedade de forma igual. Eles não têm culpa de ter sangue Drakar
correndo em suas veias.

— No Reino do Norte não há nenhuma caça. Eles são tratados como


qualquer outro habitante do reino. Então não se preocupe, podemos propor o
mesmo para Yerus, se é isso que te preocupa.

Podemos... Isso quer dizer o que penso que quer dizer? Dominic pretende
que nós dois governemos Yerus? Se sim, isso significa que...

— Não quero atentar contra a vida de ninguém. Não quero que o Áquila
morra! — digo em um fôlego só. No segundo seguinte em que as palavras saem
da minha boca, me dou conta do que impliquei sem querer, mas, mesmo sendo
uma confissão terrível, não volto atrás. Vou além. Pigarreio e reforço para que
não haja dúvida entre nós. — Eu decidi reclamar a linhagem dos Tupper com o
propósito de libertar as minhas irmãs e ajudar os menos favorecidos de Yerus ao
me tornar uma resistência forte ao Rei. A minha intenção de formar uma aliança
com outro reino é essa, porque não quero e não vou sujar as minhas mãos de
sangue. Se me casar com você significa tramar contra a vida de alguém,
principalmente contra a vida do Áquila, então a minha resposta é um sonoro não.

— Fico até mesmo ofendido com a sua implicação, Isabelle. Eu não sou
um assassino.

— Perdão, Dominic. Eu não quis te ofender.

— Você está exaltada. — Assinto e respiro fundo para me acalmar. Ele


também faz o mesmo. — Pelo menos descobri qual é o único obstáculo que está
entre nós — ele diz mais recomposto. Franzo o cenho. — O meu primo.

Devo negar? Porque isso pode se voltar contra mim. Mas negar seria o
mesmo que mentir e Dominic já deixou claro que prefere a sinceridade.

— Sim. Confesso que ele ainda é o meu maior obstáculo a ser superado.

— Não vou prometer me encarregar da segurança pessoal dele. Até


porque, ele é o melhor Guerreiro vivo. Confio que é capaz de proteger a si
mesmo por conta própria.

— Você sabe que não foi isso que eu quis dizer, Dominic. — o repreendo.

— Eu entendi, Isabelle. E te dou a minha palavra que também nunca esteve


nos meus planos atentar contra a vida de alguém, seja o Rei, Rakar ou Áquila.
Afinal, Rakar e Áquila, como você mesma disse, são meus primos. Além disso, o
motivo que me deixou sem tempo para te esperar é justamente eles.

— O que eles têm a ver com o tempo que você me deu para pensar?

— Meu primo irá se casar e preciso comparecer ao casamento dele. Isso


significa que tenho que partir o quanto antes. O que ainda não sei é se vou só ou
acompanhado. Depende da sua resposta.
Meu coração falta sair pela boca diante desta revelação. Minhas mãos
suam frio e aperto o pano do vestido entre meus dedos com força. Dominic segue
o olhar para elas e então solta um suspiro cansado.

— Rakar irá se casar com a minha irmã, Isabelle. — Ele esclarece a minha
suposição errada. — Você precisa treinar um pouco mais com a minha tia a não
deixar transparecer com tanta facilidade o quanto ainda está ligada ao Áquila.

— Não estou. Sei o que quero para o meu futuro e o que faz parte do meu
passado. Áquila faz parte do meu passado.

— Sou capaz de lidar com o fato de que o seu coração ainda batalha contra
os seus sentimentos por ele, mas se a sua mente estiver de acordo com o seu
coração, então não vou fazer um pedido.

— Eu não sigo o meu coração — digo com convicção. — Mas não


prometo nada além de uma aliança política. Espero que isso fique claro. Vou
cumprir com todas as minhas obrigações e espero o mesmo em retorno.

— Desde que você aceite que eu faça tudo o que estiver ao meu alcance
para que a minha vida não se torne miserável no que diz respeito a essa união.

— Desde que você não me exija amor, estou aberta a negociar qualquer
coisa — digo séria enquanto o encaro fundo nos olhos. Dominic também já não
tem qualquer traço de diversão no rosto.

— Acho que podemos concordar que nenhum de nós deseja um futuro


ruim e amor não se exige.

Assinto e isso soa muito como selar o nosso destino, o que por sua vez me
assusta feito um animal selvagem ferido. Fico em pé e logo ele se junta a mim,
segurando minhas mãos com delicadeza entre as dele.

— Você aceita ser minha rainha, Isabelle?


Mal sabia eu que a visita inesperada do Rei, há vários meses, tinha como
propósito principal me trazer de volta ao Palácio de Pedralhos. Como um ato de
boa-fé, ele esperou que Máximus se juntasse a nós e eu apurasse os fatos com o
meu soldado do que aconteceu na Ilha do Comércio.

Segundo o Máximus, o espião que ele tem no castelo o alertou que Rakar
foi ao encontro do Koli. Ao ficar sabendo da conspiração dos dois, meu soldado
teve pouco tempo para agir e elaborou às pressas um plano para a minha
segurança com o auxílio de um soldado de confiança do Rei, que na ocasião
voltava de uma visita ao Reino do Norte.

Depois de garantir a minha segurança, Máximus se encarregou


pessoalmente de ir até a Ilha do Comércio com a finalidade de alertar a Isabelle a
respeito do plano do Rakar em conjunto com o Koli, mas chegou tarde demais.
Os soldados do BOP, fiéis ao meu irmão, já tinha dado início ao plano de atacar
os rebeldes e, no meio da confusão, vários inocentes foram feridos também.

Máximus não confiava em nenhum rebelde, afinal de contas, Koli era o


líder deles e foi ele quem vendeu a informação ao Rakar de onde a Isabelle
estaria. Foi então que o soldado tomou a decisão de tratar qualquer rebelde como
inimigo, já que não tinha como saber até onde se estendia a traição deles, se
todos estavam envolvidos ou não.

Então, segundo Máximus, ele também lutou contra os rebeldes para chegar
até a Isabelle. Inclusive a Guerreira Tina, a quem ele não sabia dizer se estava ou
não do nosso lado e, na dúvida, Máximus agiu como se todos fossem traidores.

O problema foi que Helena chegou na Isabelle antes dele e foi neste ponto
onde Máximus baixou a cabeça e confessou o seu grande erro naquele dia.
Helena já tinha ferido o Felipe quando ele as alcançou e, ao ficar diante das duas,
Máximus percebeu que a vida da Helena corria perigo e escolheu salvá-la acima
de qualquer outra coisa.

O meu soldado sabia muito bem que a minha ordem era clara. Era para que
ele protegesse a vida da Isabelle acima de qualquer outra pessoa. Ele não lutou
contra ela, no entanto, confessou que ameaçou tanto a Isabelle quanto a Tina
para que saíssem da Ilha do Comércio porque estava com medo de que elas
atacassem a Helena.

Máximus sabe que estava a meu serviço ali e que falhou comigo. Como
um soldado honrado, ele não usou nenhuma justificativa para o que fez. Embora
eu saiba que, desde criança, Máximus alimenta sentimentos românticos pela
Helena. Além disso, nós três crescemos juntos e, embora eu não me comova, a
eles é como se houvesse um laço mais forte que nos ligue.

De qualquer forma, ele salvou a minha vida, mas quando a situação ficou
entre Helena e eu, Máximus se voltou a favor dela e contra mim. Se Helena é
quem governa os instintos dele, não posso tê-lo em uma posição de alta
confiança. Por conta disso, ele foi punido.

Helena escolheu, outra vez, perseguir a Isabelle. E se ela ataca a Isabelle,


ela ataca a mim. Ela tentou se justificar alegando que agiu em defesa das irmãs
que estavam sendo capturadas com a minha ajuda. Nós dois sabemos que não foi
esse o motivo que a levou a matar o Felipe. Mesmo que fosse, pouco me importo
com as razões dela. Eu não vou cometer o mesmo erro outra vez.

Em Salavinder, Helena se voltou contra a Isabelle e eu. Sobrevivemos e,


após esse episódio, vim para o Palácio de Pedralhos. Uma vez aqui, eu não soube
lidar com as tramas políticas na posição de príncipe, uma vez que as minhas
habilidades foram aprimoradas para liderar os Guerreiros de Fayrehal, tanto na
formação de novos Guerreiros, quanto nos combates, além de reportar os passos
do Mestre Ponda. No entanto, o mesmo empenho que apliquei nos Guerreiros
para me tornar um exímio combatente, aplico agora que abracei a ideia de ser um
membro da realeza.

Ainda não posso punir Helena por ter atacado a Isabelle ao tirar a vida do
Felipe porque o Rei colocou-a sob a proteção dele. No entanto, o Rei não irá
durar para sempre e se há uma característica da qual me orgulho é que sou um
homem paciente.

Máximus foi punido e cortado do meu grupo de soldados, mas foi alocado
pelo Rei em um cargo baixo da Guarda Real, uma vez que não me opus a ideia.
Quanto a Helena, ela continua na patente alta da Guarda Real e, ora ou outra,
somos obrigados a ter de lidar um com outro. Posso afirmar que ela detesta
quando tem que tratar qualquer tipo de assunto comigo mais do que eu não gosto
de ter de me encontrar com ela.

— Alteza, recebemos uma nova correspondência do espião em Lufstar. —


O meu novo braço direito me estende uma carta ainda com o selo intacto ao
entrar no meu gabinete no Palácio de Pedralhos.

Junto ao soldado que me trouxe a recém notícia, dispenso também o


Conselheiro de Guerra, com quem estava tratando alguns assuntos de suma
importância. Somente quando fico a sós, quebro o selo vermelho e leio a
mensagem. Meus olhos praticamente saltam sobre o papel e, ao fim, amasso-o e
jogo direto nas labaredas do fogo ardendo na lareira.

Apenas um navio do Reino do Norte saiu de Lufstar em direção a Yerus.


Como o Rei previu, Dominic seria obrigado a sair dos Países Baixos para vir
para o casamento da irmã com o Rakar. No entanto, as recém notícias podem
significar duas coisas: Isabelle rejeitou a proposta que Dominic foi até lá fazer a
ela, portanto, irá continuar em Lufstar com a rainha Magnólia. Ou...

Cerro os dedos no punho e mordo o indicador.

Para o bem de todos, é bom que não haja outra possiblidade. Do contrário,
de nada adiantará essa aliança com o Reino do Norte através do casamento da
princesa deles com um dos príncipes de Yerus.

Eu não sei lutar de forma nobre em campos de batalhas. Não agirei


diferente para ter de volta a mulher que amo. É mais fácil o inferno congelar!
Ao longe, ouço o som de trovoadas. Confusa, ergo as vistas para o céu,
límpido feito dia de verão. Nenhum vestígio de qualquer nuvem, nem carregada,
nem branca. Só o tapete azul claro.

Quando baixo as vistas, meu corpo balança como se estivesse em uma


área de terremoto. Firmo a base das pernas para não cair e, procurando
entender o que está acontecendo, inspeciono minhas roupas. Levo um susto ao
notar que estou dentro do mar e tudo o mais se torna irrelevante.

De uma só vez, o desespero engolfa a tranquilidade que eu sentia. Meu


coração bate em um ritmo frenético e minhas mãos tremem quando sou sugada
para o fundo do oceano como se blocos de pedras estivessem amarrados em
meus tornozelos.

Assombrada, luto contra a força que me puxa e debato o corpo com


ferocidade na tentativa de subir à superfície, mas meus braços não cooperam.
Olho para as minhas mãos em busca de entender o que está acontecendo e noto
que meus pulsos estão atados um ao outro enquanto sou arrastada ainda mais
para baixo.
Meus pulmões reclamam da falta de ar tanto quanto meus olhos ardem por
ficarem arregalados dentro de águas salinas.

Não! De novo não!

Paro de me debater de uma só vez ao pensar em um nome, um único nome.

Felipe.

Meu irmão preenche todo espaço existente na minha mente. A


determinação extermina o desespero de saber que estou afogando outra vez no
mar em volta da Ilha do Comércio. Eu não me importo mais comigo, só preciso
chegar até o Felipe para que tudo fique bem.

Minhas forças se renovam e consigo libertar minhas mãos. Bato os braços


com tanta determinação que em um piscar de olhos estou perto do píer.
Frenética, subo as escadas de madeira.

Meus pés deslizam dentro das botas, que espirram água para todos os
lados ao pisarem em solo firme. Minhas roupas também me atrapalham ao me
retardar, uma vez que estão mais pesadas do que o normal. Quanto ao meu
cabelo, ele está pegajoso com se um líquido viscoso e morno fluísse dele.

À procura dos sinais do apocalipse, ergo outra vez os olhos para o céu ao
ouvir o som de trovões. Através das minhas vistas, agora embaçadas de
vermelho, noto a ausência de nuvens.

Não entendo o som de tempestade em meio a calmaria, mas meu coração


parece perceber algo que ainda não percebi. Ele galopa feroz no meu peito,
gritando para que eu me apresse. Confusa, levo uma mão até ele enquanto com
a outra esfrego os olhos para desembaçar a visão. Assim que eles ficam limpos,
noto, no canto periférico, o vulto do arremesso de um objeto.
Empertigo a coluna e assisto, em câmera lenta, o metal frio cortar o vento.
Um calafrio atravessa minha espinha dorsal como se um líquido gelado a
percorresse de cima a baixo, infiltrando entre ossos e medulas.

O que há de errado comigo? Por que estou perdendo tempo tentando


entender o que está acontecendo nos meus arredores em vez de ir atrás do
Felipe?

Felipe!

Com a respiração falhando, olho para os lados em busca do meu irmão. O


sufoco envolve os braços ao meu redor quando percebo que, para onde quer que
eu olhe, não há qualquer vestígio do Felipe. Eu estou sozinha no píer.

Tenho que acordar agora mesmo porque sei o que vem em seguida!

Começo a me debater ferozmente e tento gritar para me livrar da prisão


da minha mente. Meu corpo não responde aos meus comandos, e minha lucidez
não dura muito tempo.

O sono me traga de volta para o píer, mas, dessa vez, não estou mais
sozinha. Felipe está caído no tablado. No segundo seguinte, estou sobre o meu
irmão, colocando todo o peso do corpo dele sobre o meu colo. Preciso absorver
toda a dor que sei que ele está sentindo. Dessa vez, tenho que ser capaz de
inverter as nossas posições. Não posso falhar com ele. De novo não.

Lágrimas quentes escorrem pelo meu rosto enquanto aperto o corpo do


Felipe contra o meu. Rouca, sussurro em uma melodia incessante para que ele
aguente firme. Embora o meu pedido não tenha fim, as forças dele sim.

Percebo que estou lutando contra o inevitável. Vou perdê-lo outra vez.
Mudo de táctica e não peço para que ele seja forte. Eu imploro para que o
Felipe troque de lugar comigo. Para que esse destino não seja dele. Para que
seja meu.
Um retumbar forte de uma pancada contra madeira se sobressai a qualquer
som de trovoada.

Confusa, volto a olhar para o Felipe em meus braços. Seus olhos se


fecham e o último suspiro deixa os seus lábios.

Tum.

Tum.

Tum.

Aperto os punhos contra o peito e noto que minhas vistas voltaram a


embaçar. Enxergo vermelho mais uma vez, porque não estou afogando no mar.
Estou me afogando em um líquido denso e carmesim.

Curvo as costas para frente a fim de extravasar a dor em um grito sem


som.

— Acorda, Isabelle! — Uma voz grave exige com firmeza ao mesmo


tempo em que dedos gelados tocam a minha testa febril. — É só um sonho.
Estou aqui com você. — Braços fortes me apertam contra um peitoral macio e
me concentro no cheiro da loção impregnada na camisa. Meu corpo inteiro
convulsiona contra ele. — Shh. Vai passar. Vai passar. — Ele me embala.

O som de uma trovoada atravessa a nuvem de sonho que ainda permeia a


minha mente. Meu corpo balança e, dessa vez, percebo que a tempestade faz
parte da realidade.

— Estamos afundando? — Minha garganta arranha. Pigarreio para afastar


o desconforto.

— Estamos atravessando uma tempestade. — Ele me afasta para pegar o


meu cantil. — Beba um pouco de água. Vai ajudar. — Assinto e me afasto para
me sentar direito na cama. — Melhor?
Devolvo o cantil e finalmente o encaro nos olhos.

— Estou bem. Mas quero saber o que você está fazendo na minha cabine.
Eu te acordei?

Meu irmão balança a cabeça para os lados ao mesmo tempo em que a


embarcação chacoalha de um lado para o outro de um jeito que quase me derruba
da cama. Os ombros dele ficam tensos e o pescoço rígido. As pupilas do Kaká
dilatam e os lábios entreabrem.

Sei bem quem é que precisa de socorro e que foi uma grande coincidência
ele ter entrado na minha cabine bem quando eu atravessava um pesadelo.

— Acho que ainda preciso ser reconfortada.

— Não estou com medo. — Nossos olhares se cruzam e fico em silêncio.


— Isabelle, eu não estou com medo.

— Tudo bem então. — Retiro a oferta do abraço de apoio moral e meu


irmão respira fundo.

— Não acordei por conta da tempestade. Eu também tive um sonho


estranho, por isso vim aqui.

— Isso não soa como você.

Se for algo que coloque a vida dele em risco, o meu irmão teme. Agora,
pesadelo? Kaká é um cético, pouca coisa o abala emocionalmente.

— Sei que não faz o menor sentido o que vou te dizer. Eu mesmo estou
tentando encontrar a racionalidade na minha dedução, mas estou falhando...
— Kaká, deixa a razão de lado por um segundo e fala logo o que você
sonhou.

— Essa é a questão. Não era sonho — ele sussurra com as pupilas ainda
mais dilatadas. — Parecia que era, mas eu senti tudo com nitidez. É como se eu
estivesse acordado, mas não no plano tridimensional e sim em algum outro. Até
onde sei, existem mais de quinhentas dimensões, o que torna a situação
plausível, mesmo que a gente só consiga enxergar três...

— Tinha uma mulher? — Aprumo os ombros e o encaro com seriedade.

— Eu não diria que mulher, porque ela não era humana. Mas diria que,
seja lá de qual espécie estamos falando, por sinal, uma linda espécie, eu a
catalogaria como sendo fêmea.

— Não era sonho. Foi real. O que a Laghertia te disse?

— Estou mais perturbado com o que o Felipe disse.

— Você se encontrou com ele? — Arregalo os olhos.

— Não da forma como foi com ela. Na verdade, nem sei se vi o Felipe. Até
suspeito que era algum truque dela, mas o que ouvi soava muito com algo que o
nosso irmão falaria.

— O que ele disse? — Mordo o interior da boca.

— Na verdade, foi uma pergunta. Ele indagou se, caso as nossas posições,
minha e sua, se invertesse com a dele, a gente gostaria que ele menosprezasse o
nosso sacrifício como estamos menosprezando o dele? — Perco o fôlego como
se tivesse levado um murro na boca do estômago. — Talvez tenha sido um
truque, porque eu não tenho capacidade para agir como o Felipe agiu. Acho que
a minha mente criou palavras de conforto que eu gostaria de ouvir para suavizar
o peso da culpa que sinto até hoje. Só que...
— Real ou não, o Felipe falaria algo assim.

Kaká assente ao me encarar fundo nos olhos.

— Isa, eu estive lá, então posso afirmar que doeu muito nele o peso da
possibilidade de que você tivesse fugido de casa por conta da briga que vocês
dois tiveram. Felipe se transformou depois daquilo, por isso que quando te
encontramos, ele agiu diferente com você. Felipe aprendeu a valorizar o que
realmente importa.

— Eu não soube valorizar...

— É claro que soube. Você não ofereceu nenhuma resistência. Felipe quis
se aproximar e você permitiu. — Ele respira fundo. — Olha, nos últimos meses
deixei a razão de lado e pensei muito em algo. Creio que o tempo em que você e
o Felipe tiveram aqui foi uma oportunidade pra que vocês dois se entendessem e
pudessem, enfim, experienciar a nossa irmandade de forma plena.

Fico na defensiva, porque as palavras do Kaká não soam nada como algo
que ele falaria. Nada mesmo.

— Você está tentando me confortar com coisas que não acredita porque viu
como são os meus pesadelos?

Meu irmão fecha a cara na mesma hora.

— Sou calculista. Preto no branco. Mas também tenho coração, Isabelle.


Quando me coloquei no lugar do Felipe, percebi que se fosse uma escolha entre
viver tudo isto sabendo o que me aguardava ao fim e continuar do jeito que
sempre fomos lá na favela, prefiro a primeira opção, porque foi só assim que
pudemos enxergar o valor da nossa irmandade. Felipe, você e eu. E isso vindo de
mim, Isa. Imagina como o Felipe se sentia diante essa oportunidade que a vida
nos deu. Ou você pensa diferente?
Nego com a cabeça, impressionada com a mudança drástica do meu irmão
que tramou, a ponto de soar frio e nos afastar, para que eu ficasse aqui e
reivindicasse uma coroa sabendo exatamente o que acontece a alguém que
ostenta esse tipo de joia sobre a cabeça. Nem mesmo água posso beber sem antes
uma pessoa da minha confiança provar. E será assim para o resto da minha vida!

É totalmente justificável minha surpresa ao me dar conta de que é a


primeira vez na minha relação com o Kaká que conversamos abertamente sobre
sentimentos. Ele sempre foi o irmão mais velho, um apoio, mas frio e distante.

Além disso, até então, Kaká negava aceitar a responsabilidade dele no que
aconteceu na Ilha do Comércio. Por isso que o Felipe é um assunto que não
discutimos por termos visões contrárias sobre os fatos. Ao que tudo indica, as
coisas mudaram para ele e estamos, finalmente, chegando em um concesso.

— O que finalmente te fez mudar a forma de enxergar as coisas? De


perceber que não são os números que importam e que tanto para o Felipe quanto
para mim não é uma questão de escolher a maior quantidade e sim a de se
sacrificar para não perder ninguém?

— É uma boa pergunta. — Meu irmão fica com o olhar vidrado, refletindo
sobre a questão. — Acho que o Felipe não foi real, mas ela foi e está me
induzindo a ter essa percepção acerca dos fatos. — Ele se volta para mim. —
Para que você e eu fiquemos em comum acordo com esta questão.

— Ela quem? — Franzo o cenho e cruzo os braços.

— Essa tal de Laghertia. Ela não aparece mais para você?

— Não. Ela sabe que rejeito qualquer coisa vinda dela e imagino que
desconfie que trazer qualquer assunto que envolva o Felipe vá surtir o efeito
contrário ao desejado.
— Foi mesmo falso. — Assinto. — De qualquer forma, ela tentou me
enganar, mas nós dois finalmente nos entendemos... — de repente, Kaká franze o
cenho. — Ela também me lembrou que hoje é o dia que a estrela corta o céu,
aquela que aparece uma vez a cada ano e que o povo celebra.

— Hoje é a Festa da Aurora? — franzo o cenho, uma vez que não decorei
a data e não vi nenhuma movimentação de ninguém do navio a respeito de uma
celebração.

— Sim. E, pelos meus cálculos, a data bate com a última. — Kaká solta
um suspiro. — O que ela ganha ao me dar essas informações? Me induzir a
pensar que as consequências do que acontece a nós, seus irmãos, são nossas para
lidar e não sua?

— Porque agora que estamos voltando para Pedralhos ela quer te usar para
que você me convença a deixar as questões da Lud e da Rebeca de lado para me
concentrar na Aurora.

Meu irmão reflete por alguns instantes e então acena em concordância.


Logo ele esbugalha os olhos e prende a respiração. Fico preocupada que ele
esteja na iminência de ter um ataque de pânico. Antes que eu tenha a chance de
encostar a mão no ombro dele para verificar se está tudo bem, ele se volta com
tudo para mim.

— Você me disse que fugiu de Fayrehal porque Mestre Ponda revelou que
estava te usando para que roubasse uma estrela. — Fico confusa com a pergunta
aleatória, mas assinto. — Estrela não é apenas um cosmo. Ela também é utilizada
como símbolo em questões ocultas, como invocação ou coisas do tipo.

— Você tá me assustando.

Meu irmão me ignora.


— O Orientador, um presente de uma princesa Drakar para o descendente
da Aurora, aponta para o desejo das pessoas que são fruto da linhagem dele.
Laghertia quer que você pare de perder tempo com a gente para libertar a
Aurora.

— Kaká — chamo seu nome em tom de advertência, porque agora meu


coração martela tão forte que o som das batidas nos meus tímpanos está quase
insuportável. Mas ele me ignora completamente e continua vomitando as peças
que estão se juntando na mente dele.

— Você me contou que ouviu o Mestre Ponda dizer que todas as pessoas
possuem magia, que a diferença entre ele e nós é que nas veias dos mestiços
corre sangue Drakar, o que torna possível manejar essa energia.

— Tenho até medo de perguntar, mas o que eu tenho a ver com isso? —
Prendo a respiração e meu irmão me encara com pesar.

— Como não vimos isso antes? Hortense está no topo de duas hierarquias
humanas. Você é descendente dela. Se ela tem duas vezes mais poder...

— Pode parar. — Fico em pé. — Não gostei como isso soava antes e agora
estou gostando menos ainda.

O pomo de adão do meu irmão sobe e desce lentamente. Sinto meu sangue
drenar ao notar os olhos dele rasos d’água. As únicas vezes em que o vi chorar,
foi quando alguém da nossa família morreu. Ele me lança um olhar que me faz
sentir que estou condenada.

— Você me contou que a rainha Magnólia te disse que depois da última


batalha contra os Drakars, eles foram expulsos. Isso se deu em paralelo ao
mistério envolvendo Aurora, o filho e Telok I, que a rainha desconversou. Mas
nós dois sabemos que ele morreu, o filho deles foi parar no nosso mundo, uma
vez que você nasceu e cresceu lá, e ela desapareceu na história. A única
referência ao paradeiro dela, é a data de hoje em que passa uma estrela que é
associada a Aurora. E se a Festa da Aurora for uma alusão?

— Alusão ao quê?

— Essa estrela de hoje faz uma alusão a outra estrela que, como eu disse,
estrela não é necessariamente um cosmo.

Mestre Ponda queria que eu roubasse uma estrela, mas não tem como
roubar um cosmo, portanto, não era isso que ele se referia. E se essa estrela for
alusão a outro tipo de estrela... Balanço a cabeça para os lados e engulo em seco
ao seguir a linha de raciocínio do meu irmão.

— Não, Kaká.

— Isa — ele chama meu nome com carinho —, vá conversar com o seu
noivo e arranque uma confissão dele, porque o Dominic sabe o que o dia de hoje
faz alusão, uma vez que não planejou nenhuma celebração no navio. — Meus
olhos ardem das lágrimas que seguro e só agora Kaká percebe como está me
afetando negativamente. — Sinto muito, maninha. — A voz dele embarga e uma
lágrima escorre dos seus olhos. É o suficiente para me estilhaçar em mil
pedacinhos.

De camisola, e com o coração lutando para saltar pela boca, subo a toda
em direção à proa bem no meio de um torrencial que por pouco ainda não
afundou a nossa embarcação.

Preciso respirar.
Meus cabelos ricocheteiam com força contra minhas costas enquanto
observo Dominic dar passos largos, ao mesmo tempo em que tenta se equilibrar,
até chegar a mim. Ao me alcançar, ele segura na borda do navio e enlaça o braço
livre ao redor da minha cintura a fim de me manter firme no lugar quando a
embarcação chacoalha e quase me arremessa para fora.

— Por que você mandou que me chamassem para te encontrar aqui,


Isabelle? — Ele grita para ser ouvido por sobre os açoites do vento nas velas e as
ondas furiosas do mar. — Quer nos matar?

— Onde está Aurora?

Dominic franze o cenho e me encara como se eu tivesse ficado louca.

— Nunca te contaram? Ninguém sabe ao certo do paradeiro da Aurora.

— Vou reformular a minha pergunta. O que foi feito com o poder da


Hortense depois que ela assumiu o lugar da rainha Aurora?

A cor drena do rosto do Dominic e seus olhos ficam do tamanho da lua.


Ele até mesmo perde o passo e sei que não é só por causa do chacoalhar da
embarcação.

Ao ver a reação dele, meus olhos ardem de tal forma que não consigo mais
segurar as lágrimas. Meu corpo treme da ponta dos dedos dos pés até o topo da
cabeça, tanto por conta da água gelada do mar que respinga em nós somado ao
vento forte, quanto pelo medo que sinto nos ossos dessa cruel descoberta.

— Vamos para um lugar seguro — Dominic diz em um tom de voz


aveludado.

— Ela está sendo atormentada? — Cruzo os braços ao meu redor para me


proteger, não sei. Dominic nota como estou me sentindo ferida e vulnerável e
segura meu antebraço descoberto com seus longos dedos quentes.

— Isa, vamos ter essa conversa em um lugar seguro.

— Responda! — grito usando toda energia de cada fibra do meu ser e


retiro a mão dele de cima de mim.

— Eu não sei! — Dominic grita de volta, também exaltado com a questão.


— Ela não era uma Drakar, então não tinha magia...

— Mas era duas vezes rainha! Mãe de dois imperadores!

Dominic respira fundo e não me encara mais nos olhos. Claramente ele
teve muito tempo para pensar na questão e a situação ainda o chateia. Mas em
mim, essa crueldade está me corroendo feito ácido.

O navio tomba bruscamente para a esquerda e Dominic se joga sobre mim,


me prensando contra um mastro e se agarrando a ele para que não sejamos
arremessados para fora da embarcação. Seu olhar de crisólito me observa com
profundidade e não é medo de um acidente que acabe com as nossas vidas o que
ele está sentindo. Dominic sofre do mesmo mal que eu. O tormento de ter suas
suspeitas confirmadas ao perceber que só há uma explicação possível, portanto, é
mesmo o horror que estamos pensando. Eu e ele.

— Por favor. — Dominic me encara com súplica. — Vamos conversar em


um lugar seguro.

— Seguro para você, porque, para mim, perder a vida será um privilégio.

— Eu nunca vou permitir que aquilo aconteça com você. Nunca, Isabelle.
Está me ouvindo? — Ele crispa os lábios e alterna o olhar entre os meus olhos,
deixando claro o seu ponto.

— Eu vou libertá-la.

— Não vai. — As narinas dele inflam, tamanha a raiva ao ouvir a minha


promessa.

— Aquela alma está sendo atormentada há séculos. Séculos, Dominic!

— E eu não vou permitir que seja a sua a tomar o lugar dela, porque é isso
que irá acontecer assim que ela for libertada, Isabelle!

— Você nem me conhece direito pra ter qualquer senso de proteção em


relação a mim!

Meu coração martela tão forte que tenho certeza de que Dominic é capaz
de sentir através do próprio peito, uma vez que estou completamente prensada
entre o mastro e o corpo dele para não cair. Eu não dou a mínima para a
tempestade que tenta me derrubar. Ela e os meus sentimentos representam o
mesmo, um grande tormento, melhor que acabem comigo de uma vez.

Dominic respira pesado enquanto nossas respirações frenéticas se


misturam. Algo atrás de mim desperta a atenção dele, que desvia a atenção dos
meus olhos ao mesmo tempo em que solta um suspiro alto de alívio.
— Soldado, me ajude a tirar a princesa daqui e levá-la para um lugar
seguro. — Ele brada a ordem de forma a deixar claro que mesmo que o tal
soldado seja arremessado para fora da embarcação, não lhe resta alternativa.

— Não se atreva... — começo a ameaçar o Dominic, mas ele dá um passo


para trás no mesmo segundo em que duas mãos fortes agarram com força meus
bíceps. Sou arrastada pelo convés por um soldado que conheço bem e que luta
contra a minha resistência mais o tablado escorregadio e instável que nos
desequilibra.

— Me solta, Oclan. É uma ordem!

— Perdão, Alteza. Estou no meio de uma ordem do príncipe.

— Não a solte ou mando cortarem sua cabeça! — Dominic vocifera em


reforço, vindo logo atrás de nós. — Leve-a para a minha cabine.

— Eu vim aqui justamente para capturá-la, Vossa Alteza. Mas vou levá-la
para a cabine dela.

Logo sou escoltada até a minha cabine, já sem qualquer sinal do Kaká.
Dominic entra em seguida e ordena para que Oclan vá buscar algo quente para
nós dois nos aquecermos. O Guerreiro busca o meu olhar para aprovação e
assinto.

Ele fecha a porta atrás de si e Dominic anda pela minha cabine, revirando
minhas coisas em busca de toalhas secas como se estivesse habituado ao
ambiente, o que não está. Mas a invasão de privacidade é o menor dos meus
problemas no momento.

— Eu vou libertá-la e ninguém vai me impedir. Nem mesmo você. —


Cruzo os braços, trêmula de frio. Meus dentes até mesmo estão batendo.
— Vamos conversar sobre essa questão, mas só depois que seu soldado
voltar e se retirar novamente. Não quero ninguém entreouvindo a nossa
conversa. — Ele me estende uma toalha seca e pega outra para si.

O observo com raiva enquanto seca de forma majestosa os fios negros da


cabeça. Nos menores dos atos, Dominic exala de que veio de um berço de ouro.
Quanto a mim, até aprendi a me movimentar de forma menos brusca e mais
suave, mas tenho coisas mais urgentes para me preocupar. De forma deliberada,
ignoro todos os ensinamentos para ser livre, para me comportar sem pesar antes
na mente cada gesto que executo.

Oclan traz o que Dominic ordenou e reluta em nos deixar a sós quando o
príncipe manda. Como não levanto nenhuma objeção, a única coisa que resta a
ele é atender ao desejo do príncipe.

— Aurora — demando no mesmo instante em que ficamos a sós.

Dominic aperta com força as mãos na nuca antes de me lançar um olhar


para me medir. Envolvo a toalha ao redor dos meus ombros e inclino o queixo.
Se ele quiser brigar para discutirmos esse assunto, então é o que farei. O príncipe
simplesmente respira fundo.

— Se você libertar a cópia da Aurora, os Drakars irão retornar. Maldição!


Você não precisa nem mesmo libertá-la. Basta demonstrar intenção de tal para
que não seja apenas o Rei te caçando. Será um ponto em comum em que todos os
reis de todos os reinos terão. Eles irão se unir para ir atrás de você.

— Aquela pobre alma está presa em algo que tenho certeza ter alguma
relação com um símbolo sombrio de uma estrela. Isso quer dizer que Aurora vem
sendo atormentada, Dominic. Há milênios! Você tem noção da crueldade que é
isso? O preço que outra pessoa está pagando pela paz de vocês? — As lágrimas
escorrem pelo meu rosto com violência e engulo o soluço que sobe pela minha
garganta.
— Você prefere que os Drakars invadam o nosso mundo? Porque é isso o
que eles farão quando perceberem que não há mais nenhuma barreira de proteção
os impedindo de aniquilar milhões de vidas inocentes!

Seguro com força as pontas da toalha no centro do meu peito e o encaro


com as narinas infladas. A vontade de jogá-lo para os tubarões que me atinge não
é pequena.

— Não é uma questão de escolha! Coloca a mão na consciência, Dominic.


E se fosse a sua alma que não tivesse um segundo de paz há milênios? O
conforto da morte está justamente em encontrar descanso. Mas o poder da alma
dela vem sendo sugado por magia obscura em outro plano existencial... até hoje!
É desumano. É hediondo. É horripilante. É... — Passo a mão na testa e solto um
suspiro que estremece meus ossos. — Deus, me faltam palavras para definir a
monstruosidade do que é isso.

Dominic atravessa o quarto. Exausta emocionalmente, portanto, incapaz de


lutar contra, não me afasto quando ele segura meu rosto entre suas mãos e olha
fundo nos meus olhos.

— Eu concordo. Concordo com tudo. E você já me apontou uma vez e


reforçou outra que não faz sentido eu ficar do seu lado prontamente quando nos
conhecemos tão pouco. No entanto, não tenho qualquer justificativa para querer
te proteger como provavelmente apenas um amante o faria. Eu sei disso, Isabelle.
E também não entendo, porque não sinto que estou escolhendo e sim apenas
reagindo.

— Dominic...

Ele aperta as mãos com delicadeza ao redor do meu rosto para me


silenciar.
— Não precisa me dizer o que já sei. Embora eu saiba que você também
reconhece que, no mínimo, viveremos uma união baseada na amizade. Você pode
argumentar contra agora porque não vê sentido algum no meu comportamento,
Isabelle. Eu também não, para ser sincero. Mesmo assim, preciso deixar claro
que eu não vou permitir que aquilo aconteça com você. Simplesmente não vou.
Faltam-me palavras para justificar o motivo de me importar. No entanto, o meu
posicionamento é este. Eu te tranco. Te aprisiono no meu palácio e jogo as
chaves fora, mas você não vai libertar a cópia da Aurora.

— A decisão não é sua — digo com determinação, mas as minhas lágrimas


voltam a cair, expondo a vulnerabilidade que esmaga o meu peito. Dominic as
ampara com os polegares e as afasta com uma carícia suave e reconfortante sobre
as minhas bochechas.

— Acredito que não há nada que eu possa dizer que sirva de alívio para a
dor que acompanha esta descoberta, minha querida. — Desvio o olhar e fico em
silêncio. Dominic solta o ar devagar pelos dentes. — Um passo de cada vez,
Isabelle. Vamos comparecer ao casamento da minha irmã com o Rakar. Em
seguida, negociaremos a liberdade das suas irmãs para então começarmos os
preparativos do nosso casamento. Depois que conquistarmos tudo isso, aí sim
veremos essa questão.

Assinto apenas para tranquilizá-lo. No fundo, não concordo com esse


plano. E... Deus, não quero isso. De jeito nenhum. Mas um líder serve. É isso o
que a Magnólia me ensinou.

Vou libertar a Aurora, mesmo que comece uma caçada pela minha alma.

— Você é muito mais do que eles dizem a seu respeito — ele sussurra
sobre os meus lábios, roubando meu espaço pessoal e o meu ar. — Eu já
suspeitava que vir atrás de você poderia me inserir em uma maldita guerra.
Agora tenho certeza, porque você assumir o lugar da Aurora está fora de
cogitação.

Dominic deposita um beijo longo na minha testa antes de sair da minha


cabine, me deixando sozinha e com o coração em fragalhos.
Ao menos a minha vontade de ficar sozinha e ser deixada em paz é
respeitada. Dominic não permite que Tina, Oclan ou mesmo Kaká me perturbe e
sou imensamente grata a ele por me proporcionar essa privacidade e lidar
pessoalmente com os três que certamente dão trabalho para acatar a ordem dele.

Tenho a sensação de que os dias passam mais rápido e não sei explicar por
que sinto a volta para Pedralhos infinitamente mais curta. Talvez seja porque
agora não subo mais no convés; ou porque toda ida parece mais longa do que a
volta; ou se é porque a embarcação é menor e isso interfere no ritmo de
navegação. Não sei dizer exatamente qual é a razão e, sinceramente, não procuro
entender.

Ultimamente pouca coisa desperta o meu interesse. Mas, embora o nosso


ritmo de navegação não me incomode, ser atacada no meio da noite
definitivamente é algo que atrai toda a minha atenção.

Acordo em um sobressalto com uma cabeleira loira fazendo cócegas no


meu rosto e uma lâmina afiada pressionada contra a minha garganta. Quando
noto que é a Heloise em cima de mim, me prensando com o seu corpo magricelo
contra o colchão, volto a respirar normal e a encaro sem um pingo de emoção.

Heloise trinca os dentes com a minha reação e aprofunda a lâmina tanto


que passa a incomodar a minha pele. Mas os olhos dela entregam seus
verdadeiros sentimentos ao brilharem das lágrimas que ameaçam cair.

Por ela, sinto vontade de pedir para que não siga adiante. Consigo ver na
alma da garota que ela não será capaz de conviver com o peso de tirar a minha
vida. Por mim, sinto vontade de implorar para que seja misericordiosa e me dê o
melhor fim que existe para alguém na minha condição.

— Não vai dizer nada em sua defesa? — Minha agressora pergunta com
angústia, sofrendo mais do que eu, a vítima. Sei disso porque Heloise tem as
mãos suaves e um coração delicado. Não é da natureza dela a agressividade que
se espera encontrar em um soldado, por exemplo. Heloise é o tipo de mulher que
os soldados protegem, como a Ludmila.

— Não tenho nada para dizer em minha defesa, apenas na sua. — Seu
olhar azul turquesa brilha de surpresa. — Não comece uma guerra se não está
disposta a lutar até o final.

Ela solta um grito feminino carregado de ódio e logo a cabine é invadida


por Oclan que a retira de cima de mim com grande esforço. A garota mirrada
surpreende ao espernear no ar para se livrar do agarre dele. Heloise parece um
animal selvagem enjaulado. Tudo o que consigo sentir é pena. Sinto pesar por
ver uma garota como ela obrigada a fazer algo que não conseguiria lidar, caso
seguisse adiante.

A decisão não foi dela. Helena a colocou nesta condição ao criar um


problema enorme comigo. Acho até que Heloise demorou demais para reagir. No
lugar dela, eu já teria, no mínimo, mordido várias vezes quem tentava me
oprimir. Ela nunca tentou nada, até agora.
Áquila é prova viva de que não lido bem com repreendas, mas nunca
demonstrou falta de capacidade para lidar com o meu jeito de ser. O Guerreiro
sabia como atravessar a minha ousadia e me vencer.

— Eu te odeio! — Heloise berra a plenos pulmões, o que por sua vez atrai
mais gente para dentro da cabine.

Dominic, acompanhado do seu soldado particular, abre espaço para entrar.


Basta um relancear de olhar para mim, sentada na cama, descabelada, a lâmina
afiada do punhal da Heloise brilhando com um filete de sangue acusatoriamente
no chão e a própria se debatendo nos braços do Oclan na tentativa de se livrar do
aperto dele, e o príncipe entende o que aconteceu.

— Ela atentou contra a sua vida — ele não pergunta, afirma.

— Heloise teve uma crise. — Dominic imediatamente fecha a cara ante a


minha mentira deslavada. Não dou chances a uma objeção, ao invés, me adianto
para punir a Heloise antes que ele o faça. Cair na repreensão dele, custará a vida
dela. Porém, não posso dar uma punição tranquila como eu teria feito, uma vez
que a idiota atraiu justamente o príncipe no comando da embarcação. — Oclan,
solte a Heloise no cais assim que atracarmos em Pedralhos.

O Guerreiro assente e a garota me encara enfurecida, ainda dominada pelo


ódio que sente por mim corroendo suas veias, enquanto é arrastada para fora da
cabine. Dominic dispensa seu soldado, ficando apenas nós dois sozinhos no meu
quarto.

Heloise não sabe, mas a minha ordem, aparentemente imbecil, será a ruína
dela. Tanto é que Dominic não levanta objeção, provavelmente aprovando o peso
do castigo que ela irá sofrer.

Só me faltava essa. Estou lidando com os meus pesadelos recorrentes com


o que aconteceu na Ilha do Comércio, que aparecem com uma frequência maior
à medida que nos aproximamos de Pedralhos. Também estou aguentando o peso
da descoberta da coisa mais hedionda que já ouvi em toda a minha vida, como o
que foi feito com a Hortense. Agora me vem Heloise e soma o peso da minha
ordem que levará desgraça sobre a vida da garota.

Heloise tem nobreza escrita na testa! Uma mulher como ela não pode
andar desacompanhada, porque tudo nela grita ouro, fragilidade e, pior,
inocência. Largá-la em um cais cheio de marinheiros, que não tem qualquer tipo
de pudor, é um destino terrível. Talvez a punição do Dominic fosse a melhor,
porque, pensando bem, eu preferia morrer se estivesse na pele dela.

Heloise certamente será entregue ao pai em troca de uma recompensa


gorda, mas a custo de algo que acredito não ter dinheiro no mundo que pague.

O que foi que eu fiz? Enterro a cabeça entre as mãos e logo sinto o colchão
ao meu lado afundar.

— Isa, minha querida... — Dominic me chama com mansidão.

— Eu estou bem, mas não quero conversar a respeito do que acabou de


acontecer.

— Compreendo. Vou te deixar sozinha, mas antes preciso te dizer algo. —


Ele me espera até que eu perca a paciência e o encare de volta. — Decisões com
pesos maiores do que essa te aguardam no futuro. Aprenda a separar a política da
sua humanidade.

— Sei que ultimamente estou me dividindo em várias versões de mim,


mas, no fim do dia, sou a mesma Isabelle.

— Então temo que o seu castigo seja pior do que o dela.

— Descobriu isso só agora, Dominic? — revido de forma agressiva,


extravasando a raiva que me domina.
Os segundos se arrastam enquanto Dominic me encara com firmeza, mas
não de uma forma repreensiva. Apenas querendo dar peso a alguma mensagem
que acredita que preciso internalizar. Qual, não sei.

— Eu não sou seu inimigo. — Por fim, ele esclarece com suavidade,
porém firme. Fico balançada, porque ele está certo.

O príncipe do Reino do Norte está longe de ser um inimigo. Para ser


honesta comigo mesma, ele é o mais próximo de aliado que encontrei até hoje.

Não é como se ele não quisesse nada em troca, porque ele quer, tanto é que
vamos nos casar por se tratar de um benefício mútuo. Mas Dominic e eu temos
uma característica em comum, o que cria um elo de identificação forte entre nós
dois. A gente se compadece do outro com facilidade. Ele se compadece de mim
e, embora eu deteste pena, Dominic não me oferece a dele. Ele simplesmente me
entende e até mesmo sente a minha dor a fim de amenizar o meu fardo.

É mais do que muita gente poderia sonhar encontrar em um casamento. Ter


esse vínculo de cumplicidade com o parceiro. Talvez o amor seja subestimado.
Talvez isso seja mais importante do que aquelas malditas borboletas na barriga.

O que posso afirmar com toda a certeza é que conheço destinos piores e,
definitivamente, me casar com um homem assim sequer entra na lista de finais
ruins, muito pelo contrário.

— Perdão. — Aperto a mão dele sobre o colo e, surpreso, seus olhos


verdes encontram com os meus.

Sempre é o Dominic quem dá o primeiro passo. Faço mais o papel da


resistência. Mas estou cansada de lutar contra. De subir minhas barreiras o tempo
todo, principalmente na presença dele. Eu já percebi que não é algo ruim, então
vou me esforçar para não somente deixar que ele entre, mas o puxar para dentro
também.
Áquila conquistou o meu coração de forma irreversível. Mas em questão
de dias, Dominic conquistou a minha lealdade.

Não sei o que tem mais valor. O que sei é que em ao menos uma coisa dei
sorte e foi quanto a determinadas pessoas que entraram na minha vida neste
mundo. Áquila. Tina. Tami. Ruan. Magnólia e Dominic.

Detestei me despedir do Ruan, mas ele não queria vir de jeito nenhum e me
encorajou a voltar para Yerus. Entendi que a perspectiva de vida para ele em
Lufstar era muito melhor do que a que encontraria em Pedralhos, uma vez que
ele era um cortesão famoso em Salavinder. Mas desconfio que o meu noivado
com o Dominic influenciou a decisão dele de ficar para trás. Então o que me
restou foi abraçar apertado o meu leal amigo e arrancar dele a promessa de
manter contato por cartas.

Com relação a Magnólia, ela mesma me advertiu que manteria contato.


Mesmo soando como uma ameaça, a surpreendi com um abraço de despedida.

Todas essas pessoas se tornaram importantes para mim. Já não é mais só


pela minha família que sigo em frente. É principalmente porque eles me mantêm
firme no meu propósito. Cada um à sua maneira.

Dominic baixa o olhar para a minha mão sobre a dele novamente. O


príncipe engole em seco ao levantar o olhar lentamente, fitando por alguns
instantes mais longos os meus lábios, e então me encara nos olhos.

Deus, não! Ele é o meu noivo, mas ainda não estou preparada para isso.
Quando fecho meus olhos, ainda é o Áquila quem vejo. Seguir adiante quando
bem sei quem é o objeto dos meus sentimentos seria errado com o Dominic.

— Obrigada por ter vindo. — Dou um aperto na mão dele antes de me


levantar para me servir um copo d’água. Nunca me faltou coragem, mas agora
sou incapaz de olhar para trás ao ouvi-lo se levantar da minha cama.
— Não faça nada estúpido, princesa. — Ele me pede, se referindo a
Heloise, com o peito próximo as minhas costas. Próximo até demais.

Até assinto enquanto Dominic segura delicadamente meus antebraços.


Estou consciente de que estou mentindo. Não fazer nada estúpido não condiz
com a minha personalidade. Não sei se ele sabe disso ainda, mas vai descobrir.

Agora mais do que nunca fico atenta à velocidade do navio. Assim que
atracamos no porto da Ilha do Comércio, finjo que estou passando mal, o que por
sua vez me garante o aliado perfeito. Dominic mesmo sugere que passemos a
noite na embarcação até que eu melhore para seguirmos a viagem de subida até o
Palácio.

Ele acha que é demais para mim, voltar justamente a este lugar e ter de
lidar com as recordações que a baía evoca. Não está completamente errado. A
morte do Felipe é uma dor constante. Mas nem de longe é este o único motivo
pelo qual quero passar a noite no navio.

Assim que escurece, pego um casaco negro com capuz, cubro a cabeça e
me oculto no negrume que as sombras da lua oferecem.
— Isa? — Bato na porta da cabine dela e nenhuma resposta. — Já te dei
espaço suficiente nesta viagem. Agora chega. Me deixa entrar.

Bato de novo e nenhuma resposta.

Na minha opinião, venho lidando bem com a situação, embora deteste as


circunstâncias. Isabelle está mais distante do que jamais imaginei ser possível.
Ela agora guarda segredos de mim! Ela também ri menos. Brinca menos. É
menos... Isa. Não entendo. Porque em Lufstar, depois da chegada do Dominic,
ela parecia ter superado o luto da morte do Felipe.

O novo comportamento dela desde o início da viagem de volta a Pedralhos


me chateia, mas não mais do que o sentimento de não pertencer. A sensação de
ser deixada do lado de fora está terrível, mas compreendo que as prioridades dela
mudaram desde o noivado com o príncipe do Reino do Norte. Porém, o Carlos
Eduardo sabe de alguma coisa.

Por que fiquei de fora? Já tentei arrancar dele o que foi que fez com que a
Isabelle se isolasse, mas ele está deprimido como nunca vi igual. Eu mesma
nunca fui capaz de abalá-lo dessa forma nas nossas constantes brigas quanto ele
se encontra no momento. E sei que se tem alguém que tira o Carlos Eduardo do
sério, esse alguém sou eu, porque o contrário também é verdadeiro.

Não tenho qualquer tipo de intimidade com o príncipe do Norte, entretanto


estou a um passo de ir atrás dele e arrancar o que eles sabem que não sei. Porque
Dominic sabe, uma vez que é o único que consegue confrontar essa nova versão
da Isabelle e sair vitorioso.

Tenho a impressão de que ele está se apaixonando por ela, algo que já não
me surpreende mais, porque o que mais vi acontecer nos últimos anos é alguém
querer tomar um pedaço da Isabelle. A Isa conseguiu a proeza de despertar até
mesmo a admiração da rainha Magnólia, e ninguém intimida mais do que aquela
mulher azeda. É por essas coisas que não fico mais impressionada com esses
sentimentos aflorados que aquela garota desperta em nós.

O maior obstáculo do príncipe é que a Isabelle é idiota demais por causa de


um Guerreiro ainda mais idiota do que ela.

Mas tenho esperanças de que as coisas mudem... ou não, porque não tenho
disposição para esses dramas cheios de sentimentalismo. Se tivesse, eu estaria
gastando um tempo só me deleitando na satisfação de que, em algum momento,
o Áquila vai perceber que os ventos não estão mais favoráveis a ele. Porém, não
tenho mesmo paciência para essas questões.

Que o Áquila se dê mal para lá! Quero mesmo é saber o que está
acontecendo por detrás dos panos, porque algo está em andamento sem o meu
conhecimento.

Bato mais uma vez na porta, mas agora com uma determinação monstra.

Quando a Isabelle precisa de uma soldada que não questiona, aprendi goela
abaixo a ser uma. Quando ela precisa de alguém cobrindo a retaguarda dela, saio
no braço com o Oclan para ser eu ali ao invés dele. Mas agora basta ter que
renunciar à nossa amizade.

Ninguém obrigou aquela ladrazinha ordinária a conquistar a minha


lealdade quando escapamos de Fayrehal. Agora que é uma princesa, que em
algum momento se tornará rainha, é dever dela encontrar um espaço em sua vida
que me caiba sem ser somente no âmbito de soldada.

Isabelle, para mim, é família e não aceito mais ficar de fora. Quero estar
em par de igualdade com o Carlos Eduardo, o outro traidor que, sem mais nem
menos, me deixou no escuro também.

Não obtenho resposta e a porta também não abre quando forço. Em passos
duros, vou até o infeliz do Carlos Eduardo.

Abro a porta da cabine dele de supetão e ele fica desesperado por alguns
segundos, até notar que sou eu. Cheguei em um momento bem inoportuno, mas
já vi a bunda branca dele mais vezes do que consigo contar nos dedos. Nenhuma
novidade nesse corpinho do pecado para mim.

Carlos Eduardo me confessou que se sentiu atraído por mim desde o dia
em que a Isa nos apresentou. Nunca vou confessar a ele que também o achei uma
versão melhorada do Koli, a quem eu achava um deleite para os olhos. O líder
dos rebeldes era um idiota que mereceu o fim que levou. Porém, isso não vem ao
caso.

O irmão da Isabelle ficou para trás na fuga deles da base dos rebeldes em
Pedralhos. Fiquei furiosa com ela e o Carlos Eduardo agarrou essa oportunidade
para me lançar o conto da sereia naquela voz aveludada.

Quando dei por mim, eu estava agarrando o safado. Desde aquele primeiro
beijo, com muito puxão de cabelo da minha parte, e gemidos de prazer da parte
dele, esse homem esquenta a minha cama noite sim, noite não — as vezes em
que não ficamos juntos é porque estou furiosa demais com ele por insistir para
contarmos para a Isabelle que estamos juntos. Nós não estamos juntos! Toda vez
que ele insiste nessa questão, eu o ameaço para valer.

Tenho prioridades na vida. Me envolver com o irmão da futura rainha, a


quem jurei defender com a minha vida, definitivamente não é uma delas.

— É melhor você começar a vomitar o motivo que está deixando a Isabelle


trancada dentro daquela cabine. E nem adianta vir com a mentira deslavada de
que é por conta da aproximação da Ilha do Comércio.

Carlos Eduardo termina de subir a calça de forma languida, pega uma


camisa para cobrir os pelos loiro mel do peito e então retira o excesso de água
dos cabelos enquanto me lança um olhar atravessado.

— Você e minha irmã compartilham a característica irritante de não bater


antes de entrar. Vou te ensinar como se faz.

Ele vem até mim e dou um safanão em seu antebraço antes que o punho
dele tenha a chance de tocar a madeira. Carlos Eduardo sorri e, em um ato
totalmente inesperado — ele estava furioso comigo —, me prensa contra a porta.

— Sai! — Firmo as mãos contra seus ombros e impeço seu avanço. Ele
sorri ainda mais. — Vocês estão me escondendo algo e não aceito mais essa
situação. Você não me deve nada, mas a sua irmã me deve sim.

— Eu não te devo nada? — Ele faz beicinho. — Assim você me magoa,


Tina.

Carlos Eduardo tenta me roubar um beijo e o empurro com força. O


problema é que ele gosta da minha brutalidade. Homem esperto. Porque gosto de
ser bruta com ele.
Inclusive, essa foi a razão que não me fez pensar duas vezes em trocar o
Koli por ele. O rebelde que me perdoe no além, ou não, não ligo. Se fosse
possível, eu falaria na cara dele que a cópia dele é infinitamente mais
interessante. Mesmo que seja impossível, tenho prioridades e, por mais
satisfatório que seja o meu encontro com o Carlos Eduardo, preciso saber da
irmã dele.

— Isabelle. Te dou trinta segundos para dizer tudo o que vem me


escondendo ou vou colocar a porta dela abaixo.

— Não diz respeito a mim. — Ele fica sério e se afasta.

Solto um rugido de raiva antes de crispar os lábios.

Ultimamente está sempre assim entre nós e quando Carlos Eduardo entra
nesse modo de agir, não consigo nenhuma informação. Nem seduzindo esse
homem dá certo. E sim, já usei desse artifício e, embora tenha ficado satisfeita
fisicamente, não consegui obter nada além de prazer.

— Saiba que a culpa é sua, que não me deixou outra opção. — Aponto o
dedo em riste para ele

— Ela sofreu um atentado — ele se apressa em dizer quando dou as costas


e perco o passo.

— O quê?! — Berro. — Como só estou sendo informada agora?

— Porque o Dominic não quer ninguém incomodando a Isa e eu estou de


acordo com essa ordem dele. — Carlos Eduardo me lança um olhar reprovador
como se eu ficasse incomodando a Isabelle.

— Que os deuses engulam vocês dois em uma maldição! Quero saber


quem, quando e o que aconteceu. E fala rápido, Carlos Eduardo. Juro pelos
deuses que não estou para brincadeiras. — Cruzo os braços.
— Não sei dos detalhes. Ontem à noite? — Ele coça o queixo. — E foi a
Heloise.

— É por isso que ela foi jogada para fora da embarcação essa manhã?

— Ela foi jogada da embarcação?

— Não literalmente, seu tonto. — Carlos Eduardo me encara de forma


agressiva. Ele é vaidoso com sabedoria e odeia ser chamado de ignorante ou
adjetivos semelhantes. Indiferente, o encaro de volta. — Quem deu a ordem?
Dominic ou Isabelle?

— Foi a Isabelle...

— Bando de imbecis! — grito agora com toda a fúria que há em mim e


volto a dar as costas a ele.

— Escuta aqui, Tina. Eu tenho paciência com o seu temperamento de coice


de égua, mas não me acuse de ser imbecil quando você vive me procurando para
satisfazer os seus desejos ou caio fora. — Carlos Eduardo resmunga ao seguir no
meu encalço enquanto tenta chamar a minha atenção, mas o ignoro. — O meu QI
é alto, para a sua informação.

— Eu só lido com gente estúpida. Impressionante — resmungo enquanto


atravesso o convés em passadas tão largas e fortes que sou capaz de quebrar o
tablado, não duvido.

As palmas das minhas mãos até formigam de tanto ódio por estar nessa
situação. Oclan ficou no turno de ontem e não me reportou o que aconteceu.
Carlos Eduardo me vê e só pensa em me pressionar para que eu concorde em nos
assumir para a irmã dele. Quanto ao Dominic... eu gosto do príncipe, mas que
imbecil! Isabelle quase desmaiou depois da execução do Koli. Dominic estava lá
e viu a reação dela. Como ele não concluiu que ela não conseguiria lidar em
ordenar uma sentença dura para uma garota? Garota.
— Tina! — Carlos Eduardo vocifera atrás de mim quando não diminuo o
passo e ele não consegue me alcançar. — O que você vai fazer, sua pirada? —
Ele debruça sobre a mureta do navio enquanto desço as escadas de madeira em
um rompante, em busca dos marinheiros mais nojentos que puder encontrar na
calada da noite.

— Salvar a estúpida que você chama de irmã e que convém de ser a


ladrazinha ordinária cuja minha missão de vida é manter protegida — grito em
resposta sem olhar para ver como ele recebeu a informação de que estamos todos
correndo perigo.

Eu mato um hoje e não estou sendo leviana. Será um verdadeiro milagre se


eu voltar para a embarcação sem ter nenhuma gota de sangue em minhas mãos.
Isabelle não deixou qualquer rastro. O mesmo não pode ser dito sobre
Heloise. E é graças aos vestígios que ela deixou que consigo descobrir uma
estalagem perigosa para uma mulher do nível social dela.

A questão é que não me importo nem um pouco com o que possa acontecer
a Heloise. O mesmo não pode ser dito sobre a Isa. Então é com grande alívio que
solto um suspiro ao ver uma figura pequena sob um capuz preto.

— Não suje suas mãos! — vocifero em um sussurro e Isabelle dá um passo


para trás, sem demonstrar qualquer sinal de surpresa por ter sido descoberta.

O marujo, que a Isa está ameaçando, não tem nem mesmo a chance de
gritar ao notar a minha adaga voando na direção dele. Logo a lâmina o acerta no
centro da testa e o homem desliza o corpo contra a parede, caindo morto aos pés
da Isabelle. Ela desvia o olhar para o lado, evitando ver o fim trágico que dou a
ele.

Se a conheço bem, e minha presença aqui significa que conheço essa tola
absurdamente bem, ela não teria matado. Pelo suor em sua testa, e dois corpos
apagados no corredor, os quais me trouxeram a este quarto, estou certa de que a
Isa estava lutando para deixar esses marinheiros nojentos apenas inconscientes.

— Você usou a adaga em alguém? — pergunto entre dentes e ela nega com
a cabeça. — Muito bem, porque eu faço o serviço sujo, Isabelle. As minhas mãos
podem ficar manchadas de sangue. As suas, não.

Isabelle me ignora ao empertigar os ombros antes de caminhar até a cama.


Ela estende a mão em um chamado para que Heloise a aceite, mas a garota está
assustada feito o inferno para notar o gesto de socorro.

Com passos firmes, vou até elas. Antes que eu consiga segurar os ombros
mirrados da Heloise para colocá-la de pé e a arrastar para fora desta pocilga,
Isabelle segura meu antebraço e me impede. O olhar que me lança é duro, mas o
que se volta para a Heloise é suave.

— Chegamos tarde demais? — Uma pessoa menos treinada, não notaria a


apreensão da Isabelle, mas noto o leve tremor em seu tom de voz.

Heloise finalmente a encara e engole um soluço.

— E-eles iam me leiloar.

— Considere-se com sorte, garota — digo com rispidez. — Eles poderiam


nem ter pensado nisso e então teria sido tarde demais.

Isabelle me lança um olhar cortante, mas dou de ombros.

Não estou inventando nada. Esses homens com certeza arquitetaram um


plano para não a violar de imediato e sim lucrar duas vezes. A primeira ao
vendê-la para alguém com recursos para pagar pela virgindade de uma nobre. A
segunda ao pedir uma recompensa ao pai dela depois de a terem usado como
bem quisessem.
A ganância deles, foi a salvação dela. E a consciência pesada da Isa, que já
se deu conta de que o nosso mundo não é nenhum conto de fadas. As coisas são
feias e escalonam para a destruição com uma rapidez insana.

— Vem, Heloise. — Isabelle balança a mão no ar.

A insolente empina o nariz, ignorando de forma deliberada a oferta da


Isabelle. Isso faz meu sangue, já quente, borbulhar.

— Escuta aqui, garota. — Seguro-a pelos ombros e a coloco de pé à minha


frente. — Não dou a mínima para o que te acontecer. A mínima. Que fique claro
que vim até aqui para pegar a princesa, nem que seja pelos cabelos, e arrastá-la
de volta para o navio. Não tenho problema algum em te jogar e trancar em
qualquer um dos quartos deste corredor apinhado de gente de tipo pior do que
aquele ali. — Aponto para o homem caído no chão.

Heloise finalmente se dá conta de que sua vida está pelo fio de uma
navalha e que não sou a salvadora dela. Não sou mesmo! Como eu disse, meu
mundo é feio, porque é composto de pessoas como eu que não dão a mínima para
atitudes nobres quando o assunto é o interesse próprio. E o meu interesse próprio
é vingança.

Isabelle foi treinada pela rainha Magnólia e, além disso, possui a


capacidade de desassociar a Heloise da Helena. Quanto a mim? Quero acabar
com a vadia da Helena e não tenho escrúpulo algum em atingir a família dela, se
isso significa cumprir com o meu propósito.

Porém, assim como conheço a Isa como nunca conheci ninguém, o mesmo
pode ser dito dela em relação a mim. Minha amiga coloca uma mão no meu
ombro em um pedido para segurar meus cavalos vorazes.

— Vamos embora enquanto a nossa presença ainda não foi notada.

Respiro fundo e não solto a Heloise até que olhe para mim de novo.
— Se você não acompanhar o nosso ritmo, azar o seu. — Solto com nojo
os ombros dela e encaro a Isa. — E você nem ouse derramar uma gota de sangue
que seja.

Isabelle assente apenas para aplacar a fúria que sinto. Não importa que não
seja sincera. Ela está certa e precisamos sair daqui enquanto há tempo.

Lidero o caminho e, ao abrir a porta, encontro de pé os dois marujos que a


Isa apagou. Não consigo evitar o rugido de impaciência que me sobe pela
garganta. Pego a adaga da Isabelle e indico com o queixo a minha, enterrada na
testa do homem, para Heloise. Empurro a princesa contra a parede e lanço um
olhar que deixa claro para que fique de fora.

Como não posso me dar ao luxo de perder a única adaga que empunho,
luto corpo a corpo com o mais perto de nós, procurando um meio de nocauteá-lo
rápido para partir para cima do outro. O homem é um completo palerma, então
consigo apagá-lo bem rápido e parto para o amigo dele, que se mostra um
adversário bem mais preparado.

Enquanto desfiro golpes e me desvencilho de levar alguma pancada, noto


Heloise parada na porta do quarto segurando a minha adaga ensanguentada.

— Corte a garganta dele — digo a ela, me referindo ao homem que deixei


apagado.

Consigo mandar meu adversário para o mundo dos mortos a tempo de ver
Heloise caminhar com passos firmes até o homem caído. Isabelle arregala os
olhos e arfa. Confesso que eu também fico impressionada. Assim como ela,
também não acreditei, de fato, que Heloise teria estômago para isso. A garota
surpreende a nós duas.

Enquanto assisto sem nem piscar, Isabelle desvia o olhar e encara o chão.
A mim não escapa o assombro da Heloise ao se afastar e contemplar o que fez.
Nem mesmo a satisfação que vem logo em seguida e toma suas feições.

Se Isabelle visse isso, entenderia que a forma dela de pensar não admite tal
maldade. O mesmo não pode ser dito do restante de nós, incluindo a mirrada da
Heloise. Ela é irmã da Helena. É óbvio que tem perversidade correndo naquelas
veias. Aliás, essa é uma das razões pelas quais não me compadeço dela. Mas a
Isa não pensa assim e esse é o principal motivo para que eu queira tanto estar sob
o reinado dela.

Não quero alguém como eu. Não quero alguém com essa falsa aparência
de bondade que a Heloise demonstra. Quero alguém como a Isabelle e só. Sou
capaz de fazer uma concessão para aceitar Dominic também, mas somente se for
acompanhado da Isa.

Seguro a manga do manto da Isabelle e a puxo para que me siga. Nem por
um segundo perco tempo averiguando se Heloise está nos acompanhando. Se
não estiver, o problema é todo dela. Minha missão é colocar a princesa que jurei
lealdade em segurança no nosso navio. Nada mais do que isso.

Quando tomo uma rua que nos leva de volta para o cais, Isabelle se
desvencilha do meu aperto. Faço menção de brigar, mas ela me contém com
apenas um levantar de mão.

— Não posso voltar com a Heloise para o navio.

— Era o que meu mais queria ouvir. Adeus, Heloise — digo para a garota
colada às costas da Isa e agarro de volta a manga da princesa, que se desvencilha.

— Pare, Tina — Isabelle diz com veemência. — Preciso de um segundo


para pensar no que fazer com a Heloise.

— Deixá-la a própria sorte me parece um bom plano. — Cruzo os braços.


A garota faz uma careta para mim que logo se desmancha ao voltar a
atenção para a Isa. Noto o anseio tremendo que ela sente em ser enxergada pela
Isabelle.

Reviro os olhos. Não é possível que até mesmo os inimigos declarados da


Isabelle a admire. Isso é... assustador, por falta de palavra que defina melhor o
que sinto ao ver Heloise ávida por atenção. Ao notar que está demonstrando, e
que estou bastante atenta as emoções dela, a garota disfarça com uma indiferença
fingida.

— Eu posso cuidar de mim mesma, se vocês me deixarem com isso. —


Heloise suspende no ar a minha adaga.

Tomo de suas mãos com brusquidão. Ela faz menção de protestar e rosno.
Heloise sela os lábios e não me encara mais.

— Fora de cogitação. — Isabelle se coloca entre nós duas.

Heloise ergue o queixo, petulante.

— Você não foi capaz de assistir, mas eu não hesitei em matar aquele
homem.

— E você está sob o meu poder novamente, portanto, a decisão do seu


destino cabe a mim — Isabelle diz de forma clara e direta para a garota antes de
se virar de frente para mim. — Quem mais, além de você, sabe que saí na calada
da noite?

— Somente o seu irmão.

Ela franze o cenho e ergue uma sobrancelha enquanto me avalia com


cuidado.

— O que você estava fazendo tarde da noite com o meu irmão?


— E-eu — pigarreio para me recompor do susto diante da pergunta
inesperada. — Veja bem...

— Esqueça que perguntei. — Ela balança a cabeça para os lados. — Não


quero saber o que vocês fazem no tempo livre de vocês. A questão é a seguinte,
ninguém mais pode saber o que aconteceu aqui, compreendido?

— Você tem a minha palavra. — Assinto prontamente. A última coisa que


quero é discutir o que faço com o irmão dela no meu tempo livre.

Isabelle retira o Orientador do bolso e, tanto eu, quanto Heloise, a


observamos com curiosidade.

— Heloise, você será entregue ao seu pai em segurança. — Ela dá um


passo na direção da garota, que dá outro para trás.

— Não encoste isso em mim. — A cor drena do rosto da Heloise que


também fica com as mãos trêmulas.

Até mesmo eu sou pega desprevenida com essa atitude da Isabelle. Toda
pena que não senti da garota mais cedo, agora sinto de forma intensa, caso a Isa a
obrigue a tocar no Orientador.

— Para o navio, você não volta. A outra opção que me resta é te largar
aqui e algo pior do que acabamos de passar naquela estalagem pode te acontecer.

— Prefiro — Heloise diz sem nem mesmo piscar e ganha pontos comigo
pela valentia.

— Eu não — Isabelle revida, também sem pestanejar. — Você já cumpriu


com a minha sentença, mesmo que tenha sido salva. Caso Dominic descubra, não
há o que discutir. Você pagou. Mas agora você será entregue sã e salva para o seu
pai e ele saberá que estou por trás.
— Por favor, Alteza. — Heloise balança a cabeça para os lados enquanto
seus olhos se enchem de lágrimas.

— É mito, tudo bem? Não há maldição alguma.

Faço uma careta que ambas não conseguem ver. Acho que a Isabelle
acredita no que diz, mas eu não acredito de forma alguma. Quem não tem o
sangue do descendente da cópia da Aurora, atrai sim maldição sobre si ao tocar o
Orientador.

Até onde sei, Felipe tocou. Felipe morreu.

Carlos Eduardo deu sorte, foi o que eu disse a ele quando me contou que
resgatou o Orientador do pântano em um acesso de raiva da Isa. Segundo ele, a
única coisa em que os dedos dele tocaram, foi o cordão e que ele nunca chegou a
segurar a bússola contra a própria pele.

Foi então que eu disse que ele teve sorte e o paspalho teve a ousadia de me
encarar fundo nos olhos ao apontar que, depois daquele incidente, entrei na vida
dele. Em resposta, dei um murro em seu ombro por insinuar que sou uma
maldição jogada pelos antepassados da Isa. No fim daquela discussão, o safado
conseguiu aplacar o meu ódio debaixo dos lençóis da minha cama.

— Ao amanhecer, irei para o palácio e você irá ao meu encontro para que
eu o pegue de volta. Você nem vai tocar nele. Eu mesma coloco e tiro do seu
pescoço. Mas seu pai precisa ter certeza de que sou responsável por te entregar
em segurança.

— Por causa das suas irmãs — Heloise exala em um suspiro derrotado e


Isabelle assente com os lábios prensados em solidariedade.

Derrotada, a garota baixa a cabeça.


Certamente ela não sabe que Felipe tocou o Orientador, ou não permitiria
isso de jeito nenhum. Morrer é o melhor que pode acontecer, na minha opinião.
Existem destinos piores do que a morte e as histórias que já ouvi a respeito desse
objeto, fazem os cabelos da minha nuca eriçarem. Obviamente, a teoria do
Carlos Eduardo que se refere a mim é algo que descarto prontamente.

Aquele infeliz provocador!

Isabelle ajeita o Orientador e Heloise fica dura feito pedra quando o objeto
toca seu peito sobre a roupa. Tenho certeza de que ela não correrá o risco nem de
levantar o antebraço com medo de esbarrar qualquer pele nele.

— Você é muito corajosa. — Não é bem um elogio, porque sei que a


Isabelle mais deixou escapar do que quis admirar. De qualquer forma, Heloise
toma como um elogio e aquela parte fugaz, que ficou ávida para receber a
atenção dela, se sacia.

Tenho certeza de que estou certa, quando a garota empertiga os ombros e


qualquer nervosismo anterior é como se nunca tivesse existido.

— E agora, Alteza? — Heloise pergunta de forma respeitosa, sem mais


aquela petulância que demonstrou desde o princípio.

Isabelle agora tem a garota comendo nas palmas das mãos. Talvez isso seja
um castigo pior para Helena. Abro um sorriso imenso de satisfação, porque, de
fato, Heloise respeitar a Isabelle e admirá-la é uma tortura terrível para aquela
vadia.

Primeiro o amante dela, Áquila. Agora a irmã do meio, Heloise.

Helena está perdendo espaço na vida das pessoas mais próximas dela e é
justamente para a arqui-inimiga. Eu mesma não teria planejado uma vingança tão
boa quanto essa, então sorrio ainda mais.
— Por que você está sorrindo? — Isabelle me pergunta.

Balanço a cabeça para os lados e Heloise faz uma careta.

— Uma piada do mundo de vocês que o Carlos Eduardo me contou.

— Não quero saber — Isabelle diz rápido e se volta para Heloise, retirando
seu manto preto com capuz e o entregando a ela. — Vista isso. Tina e eu
ficaremos escondidas aqui até que os guardas da outra ilha a reconheça e a leve
para subir para o palácio.

— Obrigada, Vossa Alteza.

A garota ajeita o manto da Isa, escondendo bem o rosto, não deixando nem
mesmo um fio de cabelo loiro visível, e sai de queixo erguido. Lado a lado,
Isabelle e eu a observamos se aproximar de uma embarcação do BOP. Ela retira
o capuz, abre de leve o manto e daqui é possível perceber o assombro deles ao
notar o Orientador. No segundo seguinte, ela entra a salvo.

— Você compreende a dimensão do que acabou de acontecer aqui?

— Não fiz de propósito.

— Você conquistou o respeito dela, Isa.

— Não foi de caso pensado, Tina. — Isabelle me encara com firmeza. —


Eu só pensei na segurança das minhas irmãs.

— Negue a si mesma o quanto quiser, mas os desejos do seu coração não


me enganam.

Ela respira fundo, esfrega a testa e então balança a cabeça para os lados.

— Vamos. Amanhã faremos o mesmo caminho que o dela e, não sei você,
mas preciso me preparar mentalmente para encarar as pessoas que nos aguardam
lá.

Até parece que são pessoas no plural. Ela só teme o encontro com uma
pessoa, no singular e no masculino.
Tina e Oclan me seguem de perto, apenas um passo atrás, porque ninguém
pode ficar ao meu lado, menos ainda andar na minha frente.

Minha amiga cobre a minha retaguarda esquerda e ele a direita enquanto


lidero o caminho em um corredor. De um lado, tem uma parede de pedra. Do
outro, arcos que oferecem uma vista de tirar o fôlego do céu e da queda do topo
da montanha em que o palácio de Pedralhos está construído. O mar está tão lá
embaixo que não é possível nem mesmo ver um ponto azul sequer.

Dentro do palácio, não posso me dar ao luxo de ficar sozinha e, embora


antes isso soasse como perder completamente a liberdade, especificamente aqui,
estou aliviada que seja sempre os dois comigo.

Chegamos há pouco e logo Dominic e eu tivemos que nos separar.


Confesso que fiquei apreensiva sem a presença dele ao meu lado, mas já
esperava enfrentar algumas situações sozinha, ou quase sozinha.

Meu vestido é de um pano grosso azul bem escuro que dá para confundir
com preto. Ele é justo, com um corte reto na altura dos ombros que não é
completamente fechado no tronco por conta de uma abertura no centro do peito,
onde a costura é interrompida e desce em uma fenda até a faixa na cintura.

Na região dos quadris, ele se fecha completamente, mas logo a fenda abre
na mesma direção que a da parte superior, e então desce até os tornozelos de
forma a formar uma capa na parte de trás, rente às minhas pernas. Nos ombros,
ele desce solto, e rente também, sem costuras em volta dos meus braços,
intensificando o efeito de capa.

As flores em vinho, com alguns detalhes em prata e outros em dourado,


dando um efeito visual precioso à peça, são cores do reino do Dominic, porque
se trata de um presente do meu noivo.

É uma peça tão magnífica que não tive problema algum em aceitar.
Diferente das joias, este presente sequer passou pela minha cabeça recusar, mas
agora estou querendo arrancá-lo de mim.

— Ah, meu Deus! — resmungo enquanto esfrego os dedos de forma


discreta entre o decote da frente.

Estávamos caminhando em um silêncio pesado, apenas os nossos passos


fazendo plano de fundo enquanto atravessamos o terraço com as luzes do sol se
infiltrando em nosso caminho ora sim, ora não. Mas não aguento mais reprimir o
incomodo que estou sentindo.

— Erga a cabeça, Alteza — Tina diz em um comando baixo entredentes


que me dá nos nervos.

Sei que há várias sentinelas nos observando discretamente, mas claramente


atentos. E que preciso manter a postura altiva, mas...

— Você já teve urticária? Tá coçando muito. Estou ficando vermelha!


— Princesa, erga a cabeça — Oclan diz sério e automaticamente todos os
meus sinais de alerta soam.

Tina dizer algo é uma coisa. Agora o Oclan?

Por muito pouco não é tarde demais e freio o passo, evitando trombar
contra um peitoral maciço que conheço muito bem e que, ao que tudo indica,
assim como eu, também estava distraído enquanto liderava o caminho do grupo
dele, também composto por três pares de pernas.

Ergo as vistas e encontro um par de olhos âmbar fixos nos meus castanhos.
O pomo de adão do Áquila sobe e desce devagar enquanto ele engole seco.

Mudo, mas com os olhos brilhando, ele analisa o meu rosto,


provavelmente notando todas as mudanças físicas na minha aparência desde a
última vez em que nos vimos, há quase dois anos.

Também muda, mas, diferente dele, não com os olhos brilhando e sim
arregalados, devolvo a avaliação.

Sempre achei o Áquila um homem atraente, mas me faltam palavras para


descrever o quão estonteante ele ficou depois do efeito do tempo.

Talvez seja impressão minha, mas... seus ombros eram tão largos assim
mesmo ou eles aumentaram de tamanho? E o cabelo dele era tão bonito assim ou
esse novo corte, que não é nem tão longo como da vez em que nos conhecemos e
nem tão curto quanto da última vez em que nos vimos, favoreceu suas feições
muito mais? E é impressão minha ou os olhos dele estão ainda mais intensos e
misteriosos? Afinal de contas, Áquila sempre teve essa áurea perigosa sedutora
ou é o fato de que agora ele realmente é proibido para mim que meu estômago
parece ter borboletas? Borboletas não. Beija-flores desesperados.

Meu Deus! Estou nervosa. Minhas pernas parecem gelatina e minhas mãos
estão geladas. Magnólia me preparou tanto, mas tanto para esse encontro, e sinto
que estou falhando.

— Pelos deuses! Era isso o que eu estava tentando te alertar — a pessoa do


lado esquerdo dele diz. Desvio a atenção para ele, percebendo que se trata do
traidor do Máximus.

Oclan movimenta a cabeça levemente para o lado e Máximus quebra o


nosso contato visual. Ao se dar conta de quem está do meu lado direito, portanto,
à sua frente, no mesmo segundo ele fica pálido, mas se mantém firme no lugar,
mesmo que visivelmente esteja se borrando de medo.

Tina solta um palavrão baixo e procuro pelo alvo da insatisfação dela.


Percebo que, do outro lado do Áquila, está Helena. Ela ergue o queixo levemente
e estufa o peito enquanto sustenta o olhar da minha amiga. Seus olhos desviam
brevemente para mim ao notar que a observo.

— Não ouse olhar para ela.

Tão rápido quanto um raio, Helena volta a fixar a atenção em Tina.

Não consigo mascarar a decepção que me toma. Foi uma escolha pessoal
não ouvir nada a respeito do Áquila, porque me ajudava a me manter firme no
meu propósito. Então não sei nada a respeito da vida que hoje ele leva.
Absolutamente nada, porque Dominic é o primeiro a querer discutir qualquer
assunto menos o primo. Quanto a Tina, ela sempre foi implicada com o Áquila e
Oclan e ele tem um passado delicado.

Mesmo que eu quisesse saber a seu respeito, ninguém à minha volta me


nutriria de informações.

Quando volto a encarar o homem à minha frente, a apenas alguns palmos


de distância de mim, sei que a repulsa que sinto está estampada no meu rosto.
Posso estar imaginando coisas, mas tenho para mim que o âmbar dos olhos
dele me imploram por algo. O que seria, não sei dizer. Áquila não implora nem
pede perdão.

Entre Helena e Máximus, fica nítido que nunca estivemos do mesmo lado.
Ele está rodeado dos meus inimigos e eu dos dele. Além disso, mesmo que nunca
tenha levantado nenhum um dedo contra mim, sua associação, justo a esses dois,
soa como a última prova que eu precisava para ficar em paz com o rumo que dei
para a minha vida.

Sou inundada pela certeza de que fiz a escolha certa. Por mais confuso e
conflitante que os meus sentimentos por ele sejam, entre Áquila e eu não existe
aliança. Nós nos enganamos no passado, isso sim. Como eu temi, tudo o que
tivemos não passou de oportunidades bem aproveitadas.

Isso me entristece profundamente, porque ainda o amo, puro e simples


assim. Mas ele está do lado dos meus inimigos e sou a mulher com o desejo de
mudar o reinado que ele serve. A começar por acabar com a noiva dele, seguida
do seu fiel escudeiro e só paro quando tiver enfraquecido o poder do seu pai.

Áquila dá um passo para frente e Oclan cola às minhas costas. Mesmo com
a atenção fixa no Máximus, o recado para o Áquila é passado com sucesso,
porque ele se mantém em seu lugar e não ousa mais nenhuma tentativa de
aproximação.

A tensão entre Áquila e eu, Tina e Helena, Máximus e Oclan é pesada


como nuvens de uma tempestade. As sentinelas logo percebem que há algo
prestes a dar muito errado, porque antes eles fingiam não observar o meu grupo,
agora todos os pares de olhos estão em cima de nós... em cima de mim.

Tina e Oclan são as maiores ameaças no meu grupo, mas não farão nada
sem a minha ordem. No entanto, treinei tanto que aprendi a ser sensata o
suficiente para saber discernir a hora de falar e a hora de sair de cena.
Movimento a cabeça em saudação e reconhecimento, exatamente como
Magnólia me ensinou a fazer quando encontrasse alguém com o mesmo título
que o meu. Quando encontrasse o Áquila.

— Vossa Alteza — digo em respeito ao título dele e dou a volta nele para
seguir o meu caminho.

— Isabelle... — Áquila sussurra quando passo e sinto um leve roçar de


dedos na lateral do meu vestido, mas não paro.

Oclan segue tão próximo das minhas costas que um passo em falso e ele
me atropela. Tina não. Ela para na frente da Helena.

Oclan solta um suspiro pesado e para de andar. Sou obrigada a fazer o


mesmo. Viro para trás, mas ignoro Áquila, mesmo que o olhar dele queime sobre
mim.

Tina abre um sorriso carregado de deboche e dá um passo na direção da


Helena.

— Bela cicatriz. — Ela provoca ao estender a mão como se fosse


contornar com os dedos a cicatriz que fez no rosto da Helena.

— Tina! — chamo entredentes antes que a toque.

Basta um deslize nosso e o caos irá reinar. As sentinelas irão cair sobre a
gente. Isso sem contar que os três também vão revidar e acho que nem toda a
política do Dominic será capaz de nos livrar dessa enrascada.

— A sua hora vai chegar. Tique. Taque. — Tina estala a língua, cospe no
chão aos pés da Helena e se junta a mim.

Volto a liderar o caminho e ficamos em silêncio pelo tempo que levamos


até sumirmos das vistas deles. Só quando entramos em um corredor paralelo e
vazio é que solto um suspiro pesado. Meu coração galopa feroz, mas mantenho o
controle sobre as emoções.

Paro de andar e me viro para ficar de frente à Tina.

— Eu sou a impulsiva aqui e é você quem perde o controle?

— Você acha que aquilo foi eu perdendo o controle? — Ela abre um


sorriso divertido. — Minha cara Isa, aquilo foi apenas um fornecimento de
material gratuito para os pesadelos da Helena. Se eu tivesse perdido o controle,
minha faca teria degolado aquele pescoço fino em um piscar de olhos.

— Você não irá encostar um dedo sequer nela, Tina. — Ignoro a


justificativa dela e ordeno.

— Ela merece ser atormentada antes que...

— Está me ouvindo? — Dou um passo para frente e ela se cala


abruptamente. — Você vai ficar fora do caminho da Helena. Se você trombar
com ela em um corredor, como acabou de acontecer, não importa o que ela diga
ou faça, você irá dar meia volta e sair de perto sem dizer nada.

— Você está me pedindo para agir como uma covarde justamente com a
Helena? Você, Isabelle? Aquela ordinária tentou te matar duas vezes e conseguiu
matar o Felipe! E eu jurei que a mataria em retaliação pelo que fez, porque não
foi uma briga justa. Fui formada pelos mesmos Guerreiros que a formaram e te
afirmo que nós não lutamos contra inocentes, a não ser que estejamos sob o
ataque deles e o Felipe não a atacou. Foi o contrário. Estou errada, Oclan?

— Não questiono ordens, Guerreira. — O Guerreiro simplesmente declara


e se mantém impassível.

Para o azar dela, ela pegou a pessoa errada para ter como apoio. Oclan
realmente não questiona ordens e, por causa disso, fez muitas maldades no
passado quando era o treinador do Áquila. Inclusive com inocentes.

Tina solta um rosnado de insatisfação.

— Se não tem bolas o suficiente para contestar covardia, fique de fora


então. — Oclan não demonstra qualquer reação, mas sei que ela atingiu um
ponto sensível dele. O Guerreiro só não é consumido pela culpa, porque se
arrependeu de todos os crimes que cometeu, mas apenas eu sei disso. Tina se
volta para mim como se não tivesse destruído uma pessoa justamente porque ela
não sabe que conseguiu essa proeza com apenas um comentário sincero. — Mas
você certamente se lembra de que quando fomos emboscados pelos Guerreiros
de Fayrehal, depois de sairmos daquela pousada em Adelin, nenhum deles te
atacou. Ao invés, eles concentraram no Áquila, Helena e eu, porque as suas
habilidades de guerrilha na época eram pífias! Se isso não fosse o bastante para
condenar os crimes de qualquer Guerreiro de Fayrehal, independente da
condição, se ativo, inativo, jovem, velho, recruta do BOP, fora do BOP, homem
ou mulher, além disso tudo, Helena sentiu uma satisfação doentia ao matar o
Felipe porque eu vi!

O peito dela sobe em um ritmo desenfreado ao terminar de professar com


bastante fulgor o que acredito estar entalado no peito dela durante esses anos em
que estivemos longe de Pedralhos. Tina mudou ao longo do tempo e eu também.
Tanto é, que estou calma. Nem um pouco afetada com o ataque dela que bem
poderia ser interpretado como uma acusação de que eu tenha esquecido o mal
que sofri e, portanto, agora respiro flores e arco-íris. Ela não poderia estar mais
enganada sobre a minha condição.

— Não há um dia sequer em que fecho os olhos e não sou soterrada pelo
que Helena me fez, mas aprendi a minha lição da pior maneira possível e não
darei um passo em falso. Ludmila, Rebeca, Kaká, Tami e você estão vivos, por
isso todas as minhas ações são antes milimetricamente pesadas na mente. Além
disso, existem coisas piores acontecendo e eu não desejo ser aquela a estourar
uma guerra. Portanto, Tina, eu não te pedi para se afastar da Helena. Trata-se de
uma ordem.

— O que de pior está acontecendo? — Ela cruza os braços na altura do


peito.

Tina é como um cachorro tinhoso que não larga o osso. É claro que, de
tudo o que eu disse, ela se concentraria no que eu não disse. É por essa razão que
a Guerreira não pode jamais desconfiar o que descobri a respeito da lenda. Se
chegar aos ouvidos dela a condição em que a alma da Hortense se encontra, Tina
irá me impedir de libertá-la da mesma forma como veio atrás de mim ao ficar
sabendo da punição que dei para Heloise.

— Não te diz respeito. Fui clara quanto a Helena?

A Guerreira me mede por alguns segundos. As bochechas dela estão


vermelhas como as cores do cabelo. Posso ver o quanto a minha ordem é demais
para ela. Mas se estou conseguindo me controlar, então Tina é obrigada a manter
a raiva sob controle com muito mais afinco.

Não sigo em frente enquanto ela não me der garantias de que irá ficar fora
do caminho da Helena. Ela percebe que irá perder essa batalha, porque descruza
os braços e dá um passo para mais perto de mim.

— Helena vai sofrer o dobro pelo que você está me obrigando a fazer. Juro
por tudo que há de mais sagrado!

— Queime o mundo da Helena. Faça o inferno na vida dela. Torne-se o


pior pesadelo daquela perversa que tirou a vida do meu irmão com um sorriso de
satisfação nos lábios. Acredite em mim, eu desejo que ela pague pelo que fez,
mas na hora e do jeito certo.

A Guerreira não abre um sorriso, mas suaviza a expressão. Volto a seguir o


meu caminho e os dois me acompanham.
— Finalmente o cão foi domado. — Oclan a provoca.

— Vai para o inferno, seu bestial.

Sei que os dois gostam de trocar farpas, que nada mais é do que uma
disputa de ego para ver quem é o melhor entre eles, mas nunca aconteceu na
minha frente. Culpo os ânimos alterados de todos nós por conta do encontro
desastroso que acabamos de ter.

— Vocês podem se alfinetar depois? Preciso pegar o Orientador da


Heloise, encontrar o Dominic para informar que vou me atrasar para o baile,
porque antes preciso trocar esse vestido que só pode estar contaminado por
pulgas!

Os dois notam que estou absurdamente estressada e calam a boca na


mesma hora enquanto apertam o passo para me acompanhar.
A primeira coisa que faço ao pegar o Orientador do pescoço da Heloise é
conferir a direção que me aponta. Atenta às minhas reações, Tina não desprega
os olhos de mim, então tenho apenas um vislumbre da coordenada indicada.

Guardo-o dentro da gaveta do meu quarto, tomando um tempo


considerável enquanto penso no que sei que tem mais ou menos para onde ele
apontou. Várias alas e quartos e então a travessia dos arcos por onde viemos.
Pode ser qualquer lugar e não tenho como investigar isso agora.

— Você não disse que estava com pressa para o baile, Isabelle? — Tina
cruza os braços na altura do peito e me encara com uma expressão de suspeita.

O problema de ter soldados espertos como ela é que eles aprendem com os
próprios erros. Depois que desertou dos Guerreiros de Fayrehal, e percebeu
como era fácil cair nas armadilhas de alguém, Tina ficou mais atenta. Ela não
caiu completamente na do Koli, como o meu irmão uma vez a acusou. A
Guerreira mantinha suas ressalvas em relação a ele, mas era esperta para tirar
proveito do que ele pudesse oferecer até onde fosse seguro.
Porém, Koli conseguiu driblar a todos nós com a minha ajuda. Eu fui
incisiva naquela aparição na Ilha do Comércio, coisa que Tina não queria aceitar
de forma alguma. Por minha causa, ela se viu sem saída e então o rebelde teve a
oportunidade de ouro de nos trair.

Depois daquilo, duvido que Tina irá concordar com qualquer coisa que
digo. Por Deus! Ela já está deixando isso claro ao avaliar e rebater todas as
minhas ordens que a incomodam. Portanto, se Tina sonhar que estou em busca
de onde Hortense está sendo mantida, com ou sem a minha permissão, ela irá me
tirar de Yerus.

Preciso ser cautelosa na minha busca. Usar o Orientador está fora de


cogitação. Se não é a Guerreira em cima de mim é o Oclan que, querendo ou
não, pode comentar com ela se me pegar apreensiva com a bússola em mãos.
Enquanto apenas Kaká, Dominic e eu soubermos a respeito da lenda, terei
chances de agir em algum momento.

— Eu posso ser útil de alguma forma? — Heloise se manifesta quando


demoro para responder.

— Preciso trocar de roupa.

— De jeito nenhum.

Tina e eu dizemos ao mesmo tempo. A Guerreira me lança um olhar


acusatório quando me mostro favorável.

— Ela é irmã da Helena, caso você tenha se esquecido.

— E como você apontou, estou com pressa e sem damas de companhia,


portanto, por favor, Heloise. Ajude Tina a me livrar deste vestido e trocar para
qualquer outro.

— Sim, Alteza.
Tina entreabre os lábios, chocada. Lanço a ela um olhar que diz: trabalho
com o que tenho disponível.

— A irmã dela matou o seu irmão.

Heloise retesa às minhas costas.

— Eu não sou a minha irmã, Guerreira. Embora os nossos traços sejam


parecidos.

— Você perdeu a cabeça, Isabelle. — Tina resmunga, ignorando a resposta


amarga da Heloise.

Fico rígida porque Tina tem um ponto válido. Por mais que Heloise não
tenha qualquer tipo de participação na morte do Felipe, a irmã dela foi quem
matou o meu irmão. Além disso, ela atentou contra a minha vida no navio.

Embora a posição dela seja privilegiada, Heloise não é alguém da corte do


Rei que me sinto confortável em me aproximar, mesmo que seja sob a intenção
de descobrir fraquezas do reino dele. No fim do dia, ela é irmã da assassina do
meu irmão.

Em silêncio, Tina procura nas minhas coisas um vestido para assumir o


que estou vestindo enquanto Heloise começa a desabotoar os botões nas minhas
costas. Com a ajuda das duas, fico pronta novamente.

— Se me permite um comentário, Alteza. — Assinto para a garota. — O


seu penteado não combina com esse novo traje. Além disso, ele está ultrapassado
para a corte de Yerus, embora seja bem aceito em Lufstar.

— Você não pode estar levando-a a sério. — Incapaz de se manter quieta,


Tina solta uma risada jocosa. Fico em silêncio.

A Guerreira pragueja antes de se afastar, deixando claro o


descontentamento que sente diante a situação. Com as costas pregadas na parede,
Tina assume a posição de soldada e nos ignora completamente.

Heloise conquista um pouco da minha admiração por não demonstrar


qualquer reação de satisfação diante a infelicidade da Tina. Muito pelo contrário.
Se posso apostar em algo é que a garota parece desanimada por não ter sido
aceita.

Respiro fundo e sento na cadeira de frente a penteadeira. Com os dedos


ágeis e delicados, Heloise desafaz as tranças soltas, escova meus fios e então faz
um coque baixo elegante. Sem pedir por autorização, talvez por temer uma
recusa, ela também altera a minha maquiagem rapidamente.

— Gostou? — Ela se afasta e aperta uma mão contra a outra, apreensiva


com a minha reação enquanto observo meu reflexo no espelho.

— Combina mais comigo.

— Combina, Alteza. — Heloise abre um sorriso em meio a um suspiro de


alívio. — Eu entendo sobre a moda do reino de Yerus, portanto, sei como os
surpreender de uma maneira positiva. Como Vossa Alteza está sem damas de
companhia, e acabei de voltar para a corte, pensei que talvez...

Fico em pé e a encaro com um misto de compaixão. Heloise se cala


abruptamente. Quanto a Tina, percebo o olhar de águia atento a nós duas.

— Sinto muito, Heloise. Em outras condições, talvez você pudesse ser


mais do que minha dama de companhia. Talvez fôssemos amigas. No entanto, é
um cargo de alta confiança o que me pede.

— Ninguém me mandou até aqui. Vim para te entregar o Orientador. Não


sou uma espiã. — Ela empertiga a coluna e inclina o queixo, ofendida com a
mera sugestão.
— Mas é irmã da Helena. Caso aconteça uma situação em que nós duas
estejamos em lados opostos, é natural que você fique ao lado da sua irmã. Não
posso ter em cargos de confiança alguém que se volte contra mim sob qualquer
hipótese.

— Se fosse despeito por eu ser irmã da Helena, eu acharia o seu argumento


fraco, portanto, eu te acharia fraca. Entretanto, se é da mesma forma como o
príncipe Áquila dispensou o soldado Máximus... — Ela exala. — Bem, é um
motivo válido e inteligente. Achei sensato da parte dele e compreendo a lógica.

— Perdão?

— Não é espiã, mas veio também com a intenção de fazer fuxico. — Tina
desprende as costas da parede. — Já chega, Heloise. Pode ir embora.

— Não — me oponho e a garota para no mesmo segundo. — O que você


quis dizer com relação ao Áquila e ao Máximus?

— Segundo o meu pai, naquele dia trágico da Ilha do Comércio, o príncipe


Rakar também tentou matar irmão aqui no palácio. Graças ao soldado Máximus,
que agiu contra a ordem do príncipe Áquila, de que eles fossem todos para a Ilha
do Comércio, o soldado o nocauteou para protegê-lo de si mesmo. No momento
de decisão, o soldado Máximus escolheu salvar o príncipe Áquila.

— Criaturinha traiçoeira. — Tina se aproxima de nós. — Você está


tentando ludibriar a Isabelle para que te aceite por perto ao mostrar que tem
informações a respeito de assuntos que despertam o interesse dela.

— Já chega, Tina — digo baixo, porém firme, embora ela tenha razão
quanto as intenções da garota. A Guerreira me lança um olhar fatal antes de se
calar. Volto a atenção para a Heloise. — O que mais o seu pai te contou?

A garota me encara por alguns segundos ao me contemplar, talvez


medindo se revela ou não o restante dos fatos.
— Você pode manter para si mesma o que mais descobriu a respeito
daquele dia e ficar apenas com a minha gratidão pelo suporte com a vestimenta
de hoje. — A dispenso na intenção de dar um ultimato a ela. Magnólia me
ensinou esse truque.

— O soldado Máximus escolheu a minha irmã acima do príncipe quando


ficou frente a frente a Vossa Alteza e ela — Heloise indica Tina com o queixo —
na ocasião em que Hanna e eu fomos feitas reféns.

A garota me lança um olhar duro, mas não fraquejo. Jamais irei pedir
desculpas por ter feito delas reféns. Eu precisava manter as minhas irmãs
seguras. Mas, em contrapartida, cuidei pessoalmente para que ela e a irmã
fossem bem assistidas e que nada de ruim acontecesse a elas.

— Máximus não faz mais parte do grupo de soldados do Áquila?

Ela nega com a cabeça, embora agora esteja mais relutante em continuar o
relato. Imagino que a situação fere seus sentimentos, algo que ela se esqueceu
quando tocou no assunto na esperança de me conquistar.

— Ele confessou a ameaça que fez a Vossa Alteza e a Guerreira Tina e, por
conta dessa atitude, o príncipe o retirou do cargo de confiança. Porém, por conta
da primeira atitude, o príncipe permitiu que ficasse na Guarda Real de Pedralhos.
É tudo o que sei sobre a questão. — Ela se cala com o maxilar rígido.

— Obrigada, Heloise. — Abro um sorriso sincero, embora mixuruca.

A nobre faz uma mesura rápida com a cabeça antes de segurar as saias do
vestido e sair a passos duros do meu quarto. Posso estar enganada, mas juro que
vislumbro o brilho de lágrimas nos olhos dela.

Uma situação terrível, porque reconheço a coragem e ousadia dela e


também me identifico com a Heloise em certo nível. Mas a situação jamais irá
permitir que algum dia sejamos próximas. Prova disso é o sentimento de traição
que sei que ela está sentindo. Ao me revelar essas descobertas, ela ficou
angustiada e sei que é porque percebeu que, de certa forma, traiu Helena, sua
irmã mais velha.

— Não se esqueça que há menos de uma hora nós o encontramos ladeado


do Máximus e da Helena. Desconfio que a sua memória seja semelhante à de um
chimpanzé, Isa.

— Não, Tina. A diferença entre você e eu é que acredito que o Áquila


tenha um bom motivo para tal. — Ela abre a boca para contestar e me adianto.
— Embora não faça diferença a inocência dele nessa questão.

— Por que não, Isabelle?

Tina e eu nos sobressaltamos ao vermos o Áquila parado na porta do meu


quarto. Ele está com raiva. E no meu espaço pessoal.

Como ele conseguiu entrar aqui? Há guardas do Dominic a postos no


corredor, uma vez que Pedralhos não é seguro para nenhum de nós dois. Além
disso, nós chegamos de manhã, ou seja, a vigilância está ainda mais em cima do
que o de costume.

— Como você passou pelos guardas? — Catatônica, Tina verbaliza o que


eu também estou querendo saber.

Áquila cruza os braços na altura do peitoral, deixando ainda mais em


evidência os músculos dos bíceps contornados por uma camisa azul apertada.
Não sou capaz de desviar o olhar dos braços dele.

— Deixe-nos. Preciso conversar com a Isabelle. A sós. — Subo o olhar de


encontro ao dele, que perdeu um pouco a agressividade ao provavelmente notar o
impacto que a simples presença dele ainda me causa.
Sei que Tina irá protestar, mas nem precisa. Eu é que não vou ficar sozinha
no meu quarto com o Áquila... nem fodendo!

A minha carne é fraca. Sempre que ficamos sozinhos não importa se o


mundo ao meu redor está desabando. Não importa honra, lealdade ou palavra. Eu
só penso em me jogar nos braços dele e o aperto no meu estômago é uma
evidência de que o tempo não curou isso. Ele ainda mexe comigo como
ninguém!

— Dominic vai chegar em alguns instantes e é melhor ele não te encontrar


aqui. — Minha voz não treme, mas meus joelhos fraquejam.

— Não tenho medo dele.

Meu coração bate acelerado. Uma parte de mim fica satisfeita ao ouvir
essas palavras, mas o pavor do Dominic aparecer a qualquer segundo vence a
prazer de estar diante do Áquila. E muito!

— Não vou conversar com você sob essas condições, Áquila. E se você me
causar problemas com mais outro reino, pode esquecer que algum dia me
conheceu!

Nós dois nos avaliamos por longos segundos. Aprumo os ombros de forma
a deixar claro que estou falando sério. Se eu me ferrar por causa dele, ele pode
esquecer que existo, porque vou morrer para ele. Custe o que custar.

— Preciso te explicar as condições em que eu me encontrava quando nos


esbarramos mais cedo...

— Áquila, vai embora. Por favor. — Apreensiva, encaro a porta aberta


atrás dele.

Ele descruza os braços e me encara fundo nos olhos.


— Vou atender ao seu pedido. No entanto, essa conversa não acabou,
Isabelle — ele diz como uma promessa antes de sair e deixar o meu coração
batendo de uma forma assustadora.

Esfrego os dedos na testa e respiro fundo centenas de vezes para controlar


o nervosismo antes que o Dominic chegue.

Como posso vencer os meus sentimentos pelo Áquila quando ele abala
ainda mais as minhas estruturas?
— Príncipe Dominic Pryteon, herdeiro do Reino do Norte. — Várias
cabeças se viram para a entrada em que estamos parados à espera de adentrarmos
o salão após a anunciação da nossa presença. — E a noiva, Princesa Isabelle
Tupper Beauharnais, a Viajante. — Cada pescoço se espicha em nossa direção e
até mesmo os acordes da música param de tocar.

— A Ladra do Outro Mundo — informo ao anunciante.

— A Ladra do Outro Mundo. — Ele complementa em um acesso de tosse


desconfortável e só então Dominic e eu adentramos o aposento.

Somos alvo de absolutamente todas as pessoas do salão, mas a única


atenção que revido é a do Rei.

Tudo me assusta. Os olhares atentos que recebo; seguir o protocolo ao lado


do Dominic, alguém bem mais habituado nessas formalidades do que eu; a
certeza de que Helena está aqui, em algum lugar; o fato de que, mesmo que não
tenha como os guardas me prenderem, há o querer; também porque estou no
mesmo lugar onde minhas irmãs são mantidas reféns há anos; mas nada, nada
mesmo, se compara com o choque de ver o Rei pela primeira vez.
Os olhos dele são âmbar frios, absurdamente gélidos. É como olhar para
uma versão mais velha e refinada do Guerreiro e odeio cada semelhança entre
eles, porque eis, logo adiante, o homem que mais desprezo com as características
familiares ao Áquila. Um chute no meu estômago doeria menos.

Engulo a amargura na boca e ergo levemente o queixo para não demonstrar


nenhum sinal de fraqueza diante a inspeção dele.

— Ladra, Isabelle? — Dominic cochicha enquanto percorremos devagar o


longo corredor até o trono.

— Perdão se isso te ofende, Dominic, mas não posso negar quem sou, nem
de onde vim. Com certeza eles esperavam usar isso contra mim na primeira
oportunidade. Tirei essa arma deles de forma elegante, espero.

— Ofende? — Os olhos de crisólito dele brilham de diversão. — Jamais,


querida. Estou exultante de, enfim, perder o estigma de filho correto e ganhar um
traço de rebeldia. Digamos que você está realizando um sonho de uma criança
covarde.

— Você não é covarde.

— Concordo que já superei aquele traço, mas o estigma é algo que


custamos a perder. Entretanto, ninguém pode negar a minha coragem ao te
desposar.

— O que quer dizer com isso?

— Que você, minha cara Isabelle, abala a minha pacata vida. Veja só todas
essas pessoas assustadas com a minha ousadia de me casar com a Ladra do Outro
Mundo. — Ele chacota enquanto percorre o olhar pelo salão e nada me deixa
mais relaxada do que essa simples tentativa de transformar o peso das atenções
negativas que recebo em algo digno de dar risadas.
— Obrigada. — Aperto de leve o antebraço dele com um sorriso genuíno
pregado nos meus lábios.

Dominic me dá uma piscadela em resposta e, simples assim, cada passo


fica mais leve. Quando menos percebo, chegamos diante os tronos. Segurando o
meu braço entre o seu, ele me aperta em um gesto que transmite confiança.

— Vossa Majestade. — Dominic assente em respeito e então se vira para a


rainha. — Querida tia. — Ele sorri calorosamente para a mulher deslumbrante ao
lado do Rei. — Minha noiva e eu estamos embevecidos com tamanha beleza do
palácio de Pedralhos, mas, obviamente, nada surpreendidos. Nunca ousamos
pensar menos da beleza desta aclamada construção. Não há lugar mais belo para
a celebração do casamento da minha irmã com o meu primo.

Uma veia salta do pescoço do Rei, mas ele sustenta a máscara de


indiferença com perfeição ao fixar a atenção completamente no sobrinho da sua
Rainha, me ignorando completamente. Observo a mulher ao lado dele em vestes
verdes magníficas e descubro que ela também não gostou da novidade de que
Dominic e eu estamos noivos. É a primeira vez que fazemos uma declaração
pública.

— Cuidado, sobrinho, ou posso supor que, além de se associar a


criminosos, também se aproveitou das celebrações da aliança entre os nossos
reinos para me ameaçar no meu território.

Os dois homens se avaliam de cima abaixo.

— Longe de mim tal pretensão, Majestade. Perdoe a minha ousadia, mas


preciso perguntar. Há motivos para que Vossa Majestade se sinta ameaçado?

Sufoco a vontade de rir. Mas logo ela desaparece por conta própria quando
Rakar desce da plataforma e se aproxima de mim.
— Você deve curvar-se perante o Rei e a Rainha — Rakar praticamente
rosna no meu ouvido.

— Quando eles reconhecem a minha presença, estou certa disso. Assim


como estou certa de que ainda não aconteceu. — Mal termino de falar e tanto o
Rei, quanto a Rainha, me fulminam com o olhar.

— Vossa Majestade. — Refaço os mesmos gestos do Dominic com cada


um dos monarcas.

— Você pertence à escória — Rakar rosna entredentes — e isso foi uma


afronta. Se ninguém te ensinou a respeitar os seus superiores, farei questão de te
ensinar dando o mesmo fim que demos ao seu irmão.

No mesmo segundo, Dominic aperta minha mão contra o seu antebraço


para me acalmar. Ambos sabíamos que eles usariam a morte do Felipe para me
atingir, e me preparei mentalmente para este momento várias e várias vezes.
Mesmo assim, sinto a dor do luto e o ódio sobe por minha garganta, me
preenchendo por completo.

Se não houvesse toda essa balela de protocolo que preciso seguir, Rakar
estaria deitado no chão de barriga para baixo com a lâmina afiada da adaga presa
na cinta da minha perna prensada contra o pescoço dele. Tina acha que não tenho
capacidade para matar alguém a sangue frio. O que eu tenho, na verdade, é um
limite de tolerância alto. Pelo tremor das minhas mãos, a minha tolerância com
esse verme é bem baixa.

Os constantes ensinamentos da Magnólia não surtem o efeito de me


segurar na minha pose. Em minha defesa, estava dando certo. Consegui me
controlar com o que eu imaginei que seria o pior, o encontro com a Helena. Mas
pelo menos ela teme perder a vida, então ficou calada. Já esse verme...
— Receberemos um pedido de desculpas pelo comportamento do príncipe
ou estou livre para levar adiante esta afronta a minha noiva, o que por
consequência é uma afronta a mim e ao meu pai?

Um leve relancear de olhos do Rei e logo Rakar está murmurando um


pedido de desculpas.

— Fui capaz de ouvir suas afrontas com clareza, Rakar. Espero o mesmo
das suas desculpas para a minha noiva.

— Perdão, Viajante.

— Vossa Alteza — Dominic o corrige com severidade e aperto seu


antebraço, voltando ao meu papel graças a ajuda dele.

— Desculpas aceitas. — Me adianto para findar com o conflito entre os


dois. — E peço que Vossa Majestade me perdoe caso meu comportamento tenha
sido inapropriado. As etiquetas ainda são confusas.

O Rei assente no alto da sua altivez, mas seus olhos encontram brevemente
os meus. Fica claro que nós dois sabemos que eu tinha plena consciência de que
ele estava me afrontando ao negar reconhecer a minha presença ao lado do
sobrinho da esposa dele, como se rejeitasse o nosso noivado, e eu reagindo de
forma afrontosa deliberadamente.

Ele sabe, e eu também sei, que sou fruto dos ensinamentos da Magnólia e
ela me ensinou a encontrar brechas para ser petulante sem correr o risco de
perder a cabeça em uma guilhotina.

— O rei Charles mandou lembranças — Dominic preenche o silêncio


desconfortável. — Ele me pediu para representá-lo devido ao recente ferimento,
fruto de uma caçada. — Dominic faz um sinal com a mão. — Nada sério. Meu
pai viverá longos anos, mas é uma lástima que seremos privados da companhia
dele justo no casamento da minha irmã. Quanto à minha querida tia, a rainha
Magnólia, ela está com uma artrite terrível, incapaz de sequer colocar um pé no
chão sem se corroer de dor. Entretanto, também mandou felicitações e um
presente. — Reprimo a vontade de debochar dessa desculpa esfarrapada da
Magnólia. — Porém, sou obrigado a reconhecer que o melhor presente ela deu a
mim. — Dominic me encara com um carinho ensaiado. — A minha tia foi o
nosso cupido e não descansei até que a Isabelle, a última da linhagem dos
Tupper, aceitasse ser a minha futura rainha.

E com isso ele demonstra, de forma sublime, o poder dele. O rei Charles é
o maior aliado de Yerus. Nos Países Baixos, Magnólia, a rainha de Lufstar, a
maior ameaça a Konda e Fayrehal. E eu sou a última da linhagem dos Tupper,
que convém de ainda por cima ser aclamada pelo povo de Yerus.

— Vosso pai mandou mensageiros para me manter informado. — O Rei


abre um sorriso frio e Dominic prontamente revida. Logo toda a atenção
ameaçadora dos olhos âmbar é dirigida a mim. — É compreensível que as
etiquetas se mostrem mais difíceis de se seguir do que aparentam. Todavia, não
se preocupe. Teremos tempo para corrigir os seus comportamentos bárbaros, a
começar por outro dos seus lapsos.

Ele estende a mão para o meu lado e por muito pouco não me sobressalto
ao notar que o Áquila se aproximou de forma tão sorrateira que nem sei dizer há
quanto tempo está perto de mim.

— Sei que as apresentações são desnecessárias, mas Áquila também é meu


filho legítimo, portanto, um príncipe.

Áquila aperta os olhos levemente, o único indicativo de desconforto diante


o comentário. Tenho certeza de que sou a única a reconhecer essa falha na
postura dele, porque Áquila mascara as emoções com maestria. Mas já desvendei
cada pequena coisa a seu respeito que denuncia seus verdadeiros sentimentos.
Ele não gosta de ser associado ao pai de forma alguma.
— Isabelle. — Os olhos dele brilham e o timbre de voz, que está marcado
profundamente na minha alma, faz meu coração palpitar.

Ele estende a mão em um pedido para que eu coloque a minha. Ao meu


lado, Dominic segura a minha cintura em um gesto possessivo.

Engulo em seco.

O Rei parece satisfeito com a ousadia do Áquila. A Rainha fica


incomodada, como se não aprovasse. Quanto ao Rakar, ele parece prestes a
avançar no pescoço do irmão.

Dominic me estendeu a mão quando nos conhecemos, mas só porque havia


uma proposta de casamento a ser discutida por nós dois. Ou seja, segundo
Magnólia, a abertura que concede certas liberdades, aconteceu antes mesmo de
ficarmos frente a frente. O mesmo gesto no Áquila soa completamente diferente.

Nele, vai além do respeito ao reconhecer o meu título. É uma


demonstração pública de intimidade, de reconhecimento de que um dia já fomos
íntimos a ponto dele me chamar pelo primeiro nome e me tocar, mesmo que seja
um inofensivo cumprimento de mãos.

Não posso rejeitar e fico muito mal em ter que aceitar, porque parece uma
traição ao Dominic. Ao mesmo tempo, não aceitar e querer rejeitar parece uma
traição ao Áquila. Qualquer que seja a minha decisão, ambas me dão a sensação
de traição.

Decido pela primeira porque não posso negar que nos conhecemos. Seria
dar um tiro no meu próprio pé, e se teve um ponto em que Magnólia e eu
concordamos, é que não devo negar nada acerca do meu passado, mesmo o que
supostamente me colocaria em maus lençóis, como o fato de ter sido uma ladra
na outra vida que levava.
Coloco a mão sobre a dele estendida na esperança de agir bem rápido. E
consigo, porque seus lábios mal tocam os nós dos meus dedos e já estou
puxando-a de volta.

— Áquila — digo rápido em reconhecimento e até desvio a atenção, mas


volto a observá-lo quando ele percorre o olhar de forma lenta e delongada pelo
meu corpo, apreciando o meu vestido e, por consequência, o tornando muito
mais sensual e ousado do que de fato é.

O vestido que usei, quando nos encontramos sem querer, era infimamente
mais revelador. O mais chamativo do que estou usando agora é a cor vermelho
vivo, uma vez que nem a fenda mais discreta na lateral da perna está aparecendo,
já que se revela somente quando ando.

Quando o olhar dele volta para o meu, quero esganá-lo até a morte.

Pare já com isso!, grito em silêncio e ele abre um sorriso leve.

— Você está divina, Isabelle.

Reteso cada vértebra da coluna, sentindo o peso da mão do Dominic na


minha cintura.

— Não vamos mais monopolizar a atenção da família Real — Dominic me


puxa pela cintura para mais perto de si enquanto diz ao Rei. — Há muitos que
ainda esperam desfrutar desta honra e tantos outros que desejo apresentar à
minha noiva.

Se eu não tivesse ensaiado uma porção de vezes, provavelmente meus


saltos prenderiam na cauda do vestido e eu sairia cambaleando. Como Magnólia
me treinou a ponto da loucura, consigo acompanhar Dominic com uma altivez
invejável. Pelo menos, é o que espero.
— Um encontro de três miseráveis minutos e sinto que já estamos há horas
neste tenebroso baile — resmungo enquanto sigo o caminho que ele lidera.

O que eu queria mesmo dizer era outra coisa. Algo que gire em torno de:
eu não tive culpa do comportamento dele, nem mais cedo, nem agora. E não
gostei também. Quem ele pensa que é para fazer aquela cena? Que audácia...
prepotência... não, infantilidade!

O que não entendo é que o Áquila nunca foi infantil. Nunca! Eu? Tive
meus momentos que ficaram no nosso passado, não nego. Mas ele agir daquela
forma? Nunca passou pela minha cabeça.

Dominic se empenha para manter a fachada ao cumprimentar, com um


sorriso no rosto, os nobres que vem até nós. Quanto a mim, fico me debatendo
internamente no que mais vai sair completamente do nosso controle. Onde irei
fracassar de novo? Porque sinto que, de alguma forma, a culpa daquele clima
esquisito foi minha. O que é ilógico, mas é como me sinto.

Deus! Ainda há tantas possibilidades. Qualquer um desses nobres


arrogantes pode se mostrar um tremendo desafio, ou as danças, jantar e... Helena.

Ela não. Com ela, sei como lidar, porque se teve algo que Magnólia
trabalhou com afinco comigo, foi em relação àquela cretina. A rainha se
empenhou até me fazer entender que nada é mais angustiante do que o momento
que antecede o fim, o bendito do prelúdio. A espera de uma retaliação
enlouquece muito mais do que qualquer castigo cumprido de imediato.

Posso ter feito um papel vexatório perante a família Real, e fracassado até
mesmo na minha ousadia, porque depois não passei de uma bárbara burra, que
falta capacidade para aprender os costumes imbecis dessa gente, mas não vou
falhar no que diz respeito à assassina do meu irmão.
Grupos e mais grupos da nobreza vem nos cumprimentar. Menos um.
Justamente com eles, noto olhares de apreensão que alternam de mim para um
homem alto e loiro no centro.

Borys. Só pode ser. Ao notar que o vi, ele se aproxima de nós.

— Vossa Alteza. — Ele faz uma mesura. — Devo expressar os meus


sinceros agradecimentos por ter me entregue Heloise sã e salva.

Dominic deixa de lado a conversa com um nobre qualquer e encara o


homem à minha frente, que logo cumpre com os protocolos corretamente.

Respiro aliviada porque esse não foi um erro que cometi como o príncipe.
Pelo menos, não completamente.

Depois que voltei para o navio, fui direto até a cabine do Dominic. O
acordei e contei o que havia acontecido, inclusive qual foi a minha decisão. Ele
se mostrou compreensivo de que foi mesmo o melhor para a segurança das
minhas irmãs. Então fui para a minha cabine e deitei a cabeça tranquila no
travesseiro.

Não é que devo a ele satisfações do que faço. É que entendo que nem
mesmo uma amizade é capaz de sobreviver sem a falta de confiança. Agir pelas
costas dele traria o efeito contrário do que desejo.

Além disso, Heloise tentou matar uma princesa que estava no navio dele,
que seguia as leis dele. A voz de comando ali, era do Dominic e ele me concedeu
o julgamento dela. Seria uma traição e, de certa forma, foi uma quando fui atrás
dela. O que soma pontos a meu favor é que imediatamente corrigi o meu erro.

Pela expressão do Dominic, ele acaba de perceber que teria sido bem mais
fácil tê-lo deixado no escuro e então ele descobriria agora, de uma forma bem
menos honrosa, que agi pelas costas dele. Seu leve sorriso aplaca minha aflição,
porque ele reconhece ainda mais o valor do meu ato de arrependimento ontem ao
procurá-lo para me retratar.

Arrependimento é uma coisa. Remorso, outra. Dominic e eu valorizamos o


mesmo.

— Alguma notícia em relação às minhas irmãs? — pergunto ao Borys.

— Tenho uma reunião marcada com o Rei pela manhã em que discutirei a
possibilidade de um encontro entre Vossa Alteza e elas. — Meu coração martela
forte no peito.

— E a soltura de uma delas, suponho — Dominic diz de forma firme e


Borys engole em seco.

— É claro. — Ele pigarreia, desconfortável e com os olhos brilhantes. —


A minha filha mais nova, ela...

— Para Hanna tudo não passa de uma grande aventura, papai. — Heloise o
surpreende ao se aproximar por detrás dele e segurar o antebraço do pai. — Os
príncipes e a rainha Magnólia sempre a trataram bem.

Dominic e eu trocamos um olhar antes de voltarmos nossas atenções a eles.


É verdade o que ela diz, mas não sei por que Heloise está empenhada em me
conquistar a ponto de testemunhar a meu favor nessa questão.

— E assim será, a menos que sejamos forçados a agirmos diferente como


foi no passado. — Dominic encara com dureza o Borys, deixando claro que
agiremos em reação ao que eles fazem, não o contrário.

— Ludmila e Rebeca estão seguras, Vossa Alteza. Dou a minha palavra. —


O homem sustenta o olhar do Dominic com fulgor.

— Amanhã iremos tratar deste assunto. Deixo registrado de antemão que


não espero nada menos do que a soltura de uma delas em contrapartida pela
liberdade da sua filha. — Ele indica Heloise com a cabeça. — Agora, se me
deem licença.

Dominic segura a minha mão com galanteio e nos tira de perto dos dois.

— Alteza, um momento. — Heloise atravessa o nosso caminho e nos para.


— Sei reconhecer quando cabe uma punição e quando não cabe uma absolvição.
Vossa Alteza foi atrás de mim em pessoa e me salvou. — Ela me encara fundo
nos olhos. Posso sentir que Dominic está tão surpreso ao meu lado quanto eu. —
Não há muito que eu possa fazer para recompensá-la, uma vez que não me aceita
no seu grupo de damas de companhia...

— Não quero nada em troca pela noite de ontem, Heloise. Se é por essa
razão que me persegue.

Com essas simples palavras, desarmo-a completamente.

— M-mas... Alteza.

— Você está livre, Heloise. Inclusive para voltar a me odiar, se for do seu
desejo. Com licença.

A garota fica parada no lugar enquanto Dominic me guia até o centro da


pista de dança.

— Obrigada — sussurro em um suspiro de alívio por tê-lo ao meu lado


nessa briga pela soltura das minhas irmãs.

— Não me agradeça. Ainda não consegui a soltura delas, mas vou


conseguir, Isa. — Dominic sussurra em meu ouvido enquanto me guia de um
lado para o outro, seguindo a melodia da canção.

Assinto com os olhos ardendo. Sou obrigada a morder o lábio inferior para
não sorrir tanto quanto gostaria.
— Se há algo capaz de me derrotar são lágrimas, querida. Por favor, não
chore. Prometo que em breve as suas irmãs estarão com você como te prometi.

— Pouca coisa hoje em dia me faz chorar. — O tranquilizo.

Dominic segura meu queixo com delicadeza e o inclina até alinhar a nossa
visão.

— Já te contaram que você é uma péssima mentirosa?

Sorrio simplesmente porque está difícil resistir à vontade. Penso e


visualizo o meu encontro com as minhas irmãs o tempo todo. Sinto medo na
mesma proporção em que fico ansiosa para que aconteça logo.

— Não. Na verdade, sou bem dissimulada, príncipe.

— Então os outros procuram os sinais errados em você.

— Ou talvez você seja muito atento às minhas reações e detecta com


facilidade a mentira que conto com facilidade.

Dominic não tem chance de responder, porque os acordes da música


acabam. Ao mesmo tempo em que uma mão masculina pousa no ombro direito
dele, noto que todos trocam de par.

Arregalo os olhos em choque diante a ousadia. Áquila sequer pisca.


— É inapropriado dançar duas músicas seguidas com a mesma dama,
mesmo que a dama em questão seja sua noiva — Áquila diz ao Dominic sem
qualquer amistosidade na voz e suaviza muito pouco a expressão ao olhar para
mim. — Dance comigo, Isabelle.

Dominic não parece nada feliz, tanto pela interrupção, quanto pelo pedido
feito como se fosse uma ordem. Eu, por outro lado, já estou acostumada com
esse jeito mandão do Áquila. Não deveria, mas infelizmente estou.

Isso significa que ele também está acostumado com as minhas ações
contrárias às suas ordens. Então ele se adianta, envolve um braço na minha
cintura e segura minha mão livre no ar antes que eu saia de forma despistada.

Fico entre a cruz e a espada, porque ou saio e crio uma cena, ou começo a
movimentar meus pés e finjo normalidade.

A Rainha coloca uma mão sobre o ombro do Dominic e, simples assim, ele
também se vê obrigado a aceitar ao convite de dança. Logo, somos separados e
então passo a me concentrar nos passos da canção.
Tenho consciência de todos os pontos em que a minha pele encosta na do
Áquila, mas ignoro o ardor do âmbar em meu rosto enquanto deixo que ele
pessimamente nos guie em uma valsa.

Sei que Dominic sentiu mais dores nos pés do que ousava reclamar quando
Magnólia o puxava pelo braço para que fosse meu parceiro de dança enquanto
me ensinava a valsar. Mas também sei que aprendi o suficiente a ponto de ser
uma dançarina infinitamente melhor do que o Guerreiro está se mostrando ser.

— Os meus saltos já estão fazendo um desserviço aos meus pés. O


acréscimo dos seus é desnecessário, Áquila — resmungo quando ele me dá um
pisão pela terceira vez, sem se desculpar ainda por cima.

— Que infernos, Isabelle! Você está noiva do Dominic. — Ele para bem no
meio da pista. Com medo de atrair atenção indesejada, seguro suas mãos e
começo eu mesma a guiá-lo até que volte a fazer a parte dele na dança.

— Cumpra com o seu papel na dança e pare com essas abordagens. Estou
me sentindo caçada e não estou gostando da sensação.

— Você está noiva do meu primo.

— E você da Helena. — Encaro seu olhar duro de volta e me adianto


quando ele faz menção de me interromper. — Antes que diga qualquer coisa, vou
deixar claro que, sinceramente, isso me incomodava no passado. Hoje não é da
minha conta e sou madura o suficiente para pensar como você. — Áquila franze
o cenho. — Sabe aquela discussão que tivemos no seu palacete? Pois bem, eu
entendi o que significa pessoas que sustentam um título como o nosso
recorrerem a este tipo de comprometimento. Mas preciso expressar o quanto
sinto muito por você, porque você deu azar na escolha da sua futura esposa.

Volto a encarar qualquer coisa. Os músicos. As pessoas dançando ao nosso


redor. O Rei com o olhar ávido pregado em nós dois. Tudo. Menos no Guerreiro
que me envolve em seus braços.

— Não estou mais noivo dela, Belle — ele sussurra rouco.

— Minhas felicitações então, Áquila.

— É isso o que tem para me dizer? — O olhar frio que me lança é idêntico
ao gelo que sinto no peito.

— Nós dois sempre tivemos nossos objetivos claros, com pleno


conhecimento de que iam contra o que sentíamos um pelo outro. Foi assim desde
que nos conhecemos e não uma, mas várias vezes nós dois, você e eu,
escolhemos as nossas causas. Você pode até não se lembrar, mas eu me lembro
de ouvir, incontáveis vezes, você me dizer que me queria fora daqui e isso desde
Fayrehal. Fayrehal, Áquila!

— No entanto, eu estava lá, arriscando tudo por você. Arriscando a minha


vida por você, Isabelle. E você fazia o mesmo por mim. Portanto, não aceito que
nos defina com base nos nossos erros quando nós dois sabemos muito bem que
somos muito mais do que a soma de todos eles.

— Você está fazendo soar como se tivéssemos escolhido um ao outro


quando isso nunca aconteceu.

— Que absurdo você está dizendo?

— Na sua cabeça só existiam duas alternativas, ou eu te perdia para morte,


porque você estava disposto a dar a vida para que eu fosse para o outro mundo.
Ou eu te perdia para a distância, porque você teria sido bem-sucedido, portanto,
eu ficaria segura lá, mas sem você. Qualquer que fosse a opção, o fim era o
mesmo. Nós dois nos separaríamos.

Áquila respira fundo e seus olhos percorrem o meu rosto com cuidado.

— Sou capaz de reconhecer que cometi um erro de julgamento...


— Vários. E eu também. Eu poderia ter lutado para ficar aqui com você,
mas não lutei. Você poderia ter lutado para ficar aqui comigo, mas não lutou. —
Agora sou eu quem respira fundo e o olha com intensidade. — O tempo passou,
as coisas mudaram e decidi que o meu lugar é aqui. Mas é tarde demais para nós
dois. Além disso, dois anos é tempo suficiente para a gente cair na real que já
passou da hora de reconhecermos que estávamos condenados desde o princípio.

Paro de dançar e ele também. E agora fracasso na dança ao ficar parada no


centro da pista, atraindo várias atenções indesejadas. Faço menção de sair, mas
Áquila envolve os dedos com delicadeza no meu antebraço.

— Só preciso te fazer uma pergunta. Você não precisa me responder se não


quiser. — Assinto para me livrar logo do toque dele que faz coisas esquisitas
com o meu coração. — Quando foi que me viu lutar de forma nobre?

Nunca!, grito internamente, mas não pronuncio, porque seria o mesmo que
dar a ele a satisfação de me ouvir atestar o fato de que ele não luta de forma
humana. Áquila é cruel na batalha. Portanto, a honra o obriga a lutar, mas na
hora que ele pisa em uma arena, ele deixa-a do lado de fora e se transforma no
Anjo da Morte. Não há nobreza e certamente não é bonito.

Foi o próprio quem me ensinou, dando exemplos ao vivo e a cores, que


quando alguém o invoca para uma luta, ele suja até o topo da cabeça, mas não sai
do campo de batalha se não for para vencer ou, no mínimo, fazer miséria na vida
dos seus oponentes para que, caso perca, perca deixando a lembrança amarga do
que foi lutar contra ele.

O brilho no olhar dele revela que ele percebeu a direção dos meus
pensamentos, portanto, conseguiu deixar claro o seu ponto.

Seguro a saia do vestido, ergo o queixo e trinco os dentes.


— Não sou um maldito prêmio, Guerreiro. Menos ainda uma medalha de
honraria a ser conquistada.

— Você não compreendeu, Belle. A sua teimosia que é o meu maldito


adversário.

Dou as costas e saio da pista de dança a passadas largas. Sei que estou
fazendo justamente o que não gostaria: uma cena. Mas por muito pouco não
gritei que não é teimosia.

É inútil o Áquila se agarrar a mim quando, para começo de conversa, nem


deveria. É inútil o Dominic acreditar que teremos um casamento quando não
teremos. Mas ninguém, além de mim, pode saber deste fato, porque, embora dê a
entender que estou usando-o, não estou.

Quando consigo abrir uma certa distância da pista de dança, sigo


calmamente na única direção segura que vi mais cedo. Em instantes, um serviçal
para estrategicamente à minha frente e me estende uma taça com um líquido
acobreado. Pego uma e é bem quando noto-a.

Helena me encara na extremidade, do outro lado do salão. Mesmo com


uma distância considerável entre nós, a cicatriz, que se estende desde sua
têmpora até os seus lábios, é bem nítida.

Estou tão distraída com ela que não percebo a aproximação da última
pessoa que gostaria de conversar.

— A linha entre a coragem e a estupidez é muito tênue e temo que Vossa


Alteza tenha esbarrado na segunda ao ousar pisar no chão deste palácio.

— Está me ameaçando, Rakar?

— Acho sábio manter em mente que este domínio pertence a mim,


portanto, as leis são minhas, Viajante. Afinal, não foi a senhorita quem perdeu o
irmão para um dos nossos? — Ele ergue a taça e faz um gesto de saudação à
Helena. Ela abre um sorriso perverso e revida.

Fingindo indiferença, dou um gole na minha bebida e deixo meus olhos


percorrerem o salão, dando a entender que observar os pares dançando é
infinitamente mais interessante do que manter a conversa com ele.

— Creio que minha missão foi cumprida, já que a senhorita é uma mulher
esperta, portanto é plenamente capaz de compreender a situação em que está se
envolvendo.

— Ah, sim. Compreendi que a única forma possível dos Salonsk


conquistarem algo, é matando os adversários. — Relanceio um olhar para o Rei e
insinuo o fato de estar sentado em um trono apenas porque seu antepassado tirou
a vida do meu. — É como os fracos lidam diante um desafio. Eles sabem que a
única forma de vencer é não tendo adversários. Caso contrário, eles continuam
na insignificância de suas vidas e ficam a ver navios.

— Retire o que disse, Viajante! — Uma veia chega saltar do pescoço do


Rakar.

— Ou o quê? — Abro um sorriso de zombaria. — Vai mandar me matar?


— Ele abre a boca e me adianto. — Ah, claro. Vocês preferem ameaçar a vida
das minhas irmãs para me provar um ponto e me matar depois. De qualquer
forma, a estratégia não muda. Tire a vida dos adversários, caso contrário...

Meu sorriso alarga à medida que ele fica roxo de ódio, e sem palavras.
Rakar agora me encara com uma veia saltando também da testa. Ele sabe que me
ameaçar é o mesmo que declarar que tenho razão, portanto, ele é fraco.

— Há algo em que podemos te ajudar, Rakar? — Dominic me surpreende


ao chegar por trás de mim. Ele pousa uma mão no meu ombro e encara de forma
fria o homem ao meu lado.
— Lembre-se que dentro de poucos dias a irmã do seu querido noivo será
minha esposa. — Seus olhos faíscam e, com muito custo, consigo manter a
fachada de indiferença, mas agora sim ele conseguiu me atingir. Fui provocá-lo e
acabei colocando um inocente no alvo dele. — Não me esquecerei dessa nossa
conversa, Viajante.

Rakar nos dá as costas e um peso afunda na boca do meu estômago. Largo


a taça sobre o apoio ao meu lado e me viro de frente ao Dominic.

— Acho que coloquei a sua irmã em perigo, Dominic. Perdão. Não sei no
que estava pensando, mas ele...

— Shh... — Dominic enrola rapidamente o dedo em uma mecha solta do


meu penteado antes de soltá-la. — Você ainda não foi apresentada à minha irmã
para saber que, se há alguém vulnerável naquela união, esse alguém é ele.

— Alguma notícia de quando ela chega?

— Recebi uma carta avisando que o motivo do atraso da embarcação foi


devido a uma forte tempestade. Entretanto, conheço a irmã que tenho e é bem
capaz que ela esteja escondida em uma ilha qualquer e pretenda chegar somente
na hora de entrar vestida de noiva no templo.

— Na infância, ela era a parte corajosa de vocês dois?

— Eu diria que até hoje ela é a parte indisciplinada de nós dois. Ainda não
descartei a hipótese do meu pai ter feito um acordo que a beneficia para
finalmente aceitar se casar com o Rakar.

— Como o quê, por exemplo?

— Fugir para o outro mundo logo após a cerimônia. Recém-casada em


fuga. Daria um bom filme, como você me contou que existe no seu mundo. Não
daria? — Tapo a boca e solto uma risadinha. — Não ria. A pergunta é séria.
— Daria — respondo rindo. — Tenho para mim que ela sentiria mais
dificuldades de se adaptar lá do que eu senti em me adaptar aqui.

Lanço um olhar divertido ao Dominic. Ele vive me pedindo para contar


sobre como são as coisas no meu mundo, então é capaz de imaginar o mesmo
cenário cômico que estou imaginando.

O príncipe abre um sorriso absurdamente discreto e seus olhos enrugam


levemente dos lados. Simples assim, minha vontade de gargalhar intensifica ao
ver o brilho travesso do olhar que compartilha comigo.

— Ô Deus! Pare de sorrir e de me olhar assim, Dominic. Magnólia não me


ensinou a controlar crises de riso.

Ele vira para a mesa cheia de bebidas, ficando de costas para o salão,
portanto, fora das vistas das pessoas que nos observam à espera de encontrar cara
de tédio, marca registrada dos nobres de Pedralhos.

— Isso não é justo! — digo por trás da mão que tapo discretamente a boca.

Os ombros dele chacoalham em resposta e o príncipe começa a encher


várias taças para disfarçar que está rindo. Prenso os lábios com força e meus
olhos ardem das lágrimas provocadas pela vontade insana de gargalhar.

Na lateral da mesa, não posso fazer o mesmo, então não tenho como
disfarçar como ele. Além disso, um de nós precisa ficar atento e ele jogou essa
árdua missão no meu colo justo numa insana crise de riso.

Mando comandos para mim mesma para conter a vontade de soltar uma
gargalhada. É quando tenho a brilhante ideia de procurar pelo Rei na esperança
de que um simples pousar de olhos sobre ele funcione como um balde de água
fria. Não funciona. Mas fico ciente de que o monarca está me observando com
muito interesse.
Helena. Olhar para ela certamente será uma distração mais eficiente de
matar a vontade de rir. Não a encontro em parte alguma, mas meu olhar é atraído
para o Áquila, que me observa com diversão.

Ele sorri porque sabe que estou perto de uma crise de riso. Eu fazia muita
gracinha para arrancar um sorriso dele quando me treinava em Fayrehal. Na
maioria das vezes, eu gargalhava sozinha, mas ao menos ele sorria.

Definitivamente olhar para o Áquila não me ajuda. Baixo a cabeça e fixo a


atenção na barra do meu vestido enquanto apoio uma mão na beirada da mesa.

— Não consigo mais me controlar — digo ao Dominic que continua no


mesmíssimo lugar. Ele já encheu todas as taças enquanto solta risadinhas
discretas. Mas se eu soltar um riso que seja, não será nada bonito como é com
ele. — Onde é a saída mais próxima? — pergunto prendendo o ar.

— Conheço uma solução mais rápida.

Ergo a cabeça na direção dele.

— Conhe...

Dominic pressiona os lábios contra os meus com intensidade enquanto


segura minha cabeça entre suas mãos.

A vontade de rir passa no mesmo instante. E a tremedeira, efeito da crise


de riso, é substituída pela rigidez de cada músculo do meu corpo.

— Céus — ele suspira contra os meus lábios. — Sonhei tanto com este
momento.

Acho que Dominic não nota que estou paralisada feito uma estátua.
Suspeito até que meus pulmões pararam de funcionar. Seguro seus ombros para
me apoiar, ou afastá-lo, não sei bem o que fazer. De qualquer forma, ele entende
como um sinal positivo e volta a me beijar de uma forma... apaixonada.
O suspiro de satisfação que ele solta é o meu algoz. Sou consumida pela
culpa, porque, para poupar os sentimentos dele, eu não deveria terminar apenas
esse beijo, mas também esse noivado antes que ele se envolva ainda mais
comigo. Porém, eu não posso. Dominic irá saber o real motivo para não nos
casarmos porque não vou me comprometer com nenhum outro homem e então o
príncipe irá me trancar no palácio dele, como me ameaçou.

Mas alimentar seus sentimentos, a fim de satisfazer os desejos dele até que
seja inevitável a nossa separação, é ainda mais terrível, porque não é verdadeiro.
Ele terá no máximo um fantasma de quem sou. Fui muito sincera ao dizer que
não há como entregá-lo algo que não me pertence mais.

Quanto ao Áquila... Meu Deus! Vou morrer!

— Perdão interromper — Tina pigarreia ao parar do nosso lado e, com


muito custo, controlo suspirar de alívio pela interrupção. Fico muito feliz com o
meu feito porque Dominic me lança um olhar afetuoso antes de voltar a atenção
para ela.

— Aconteceu algo? — pergunto ao notar como Tina parece descontrolada.

— O BOP pegou o Oclan — Tina diz entredentes e aperta os punhos com


tanta força que temo que as unhas dela cortem sua pele. — Ele foi levado para as
masmorras como um maldito criminoso. Masmorras, Isabelle!

Ela só implica com quem gosta, e ela implica muito comigo e com o
Oclan. Isso me leva a crer que, se Tina fosse um dragão, estaria cuspindo fogo no
salão inteiro para vingar a prisão do Oclan. Na verdade, acho que não precisa de
muito material, já que sabe usar os punhos.

— Vou solicitar uma reunião de emergência. — Dominic aperta meu


ombro para me tranquilizar antes de sair.
Seguro o antebraço da Tina em um comando para que me siga. Com ela
em meu encalço, saio do salão sem ousar olhar para trás. Sem coragem de olhar
para o Áquila.
Três dias se passam e não há nenhum indicativo de que o Rei irá soltar o
meu soldado. Ele se esconde atrás do fato de que Oclan é um fugitivo de Yerus.
Por conta dessa situação delicada, as atividades festivas do reino estão em
suspenso por enquanto.

Só posso imaginar que a irmã do Dominic está dançando em uma ilha


paradisíaca qualquer ao receber a notícia de que o casamento foi remarcado para
mais alguns dias adiante. Quanto a mim, estou vivenciando um inferno, porque
além de se esconder atrás dessas constantes reuniões apenas com o Dominic, o
Rei usa essa desculpa para não se reunir com o Borys a fim de marcar um
encontro entre as minhas irmãs e eu.

Tudo o que está no poder dele para dificultar a minha vida, o ordinário está
usando. Como se todas essas artimanhas não bastassem, começo a suspeitar, por
conta dos resmungos do Dominic depois dessas reuniões improdutivas, e
também por conta do olhar dócil que o Rei sempre me recebe, de que ele está se
aproveitando de tudo o que o Áquila fez por mim no passado a seu favor, como
se o precioso filho dele tivesse agido sob seu comando.
Acho que estou ficando maluca por deduzir isso, porque não é possível o
Rei ser tão cara de pau de usar justo as ações do Áquila para dizer, nas
entrelinhas, que nunca esteve atrás de mim, que nunca teve a intenção de me
matar. Se eu estiver certa, o que bizarramente acredito que estou, aquele homem
é manipulador em um nível que beira a demência porque ele definitivamente não
conhece nem o Áquila de hoje.

É claro que não há a menor possibilidade de que tudo o que o Áquila fez
por mim tenha sido fruto de ordens vindas do Rei. A menor. Eu estive presente
nas crises existenciais do Guerreiro e todas elas tinham a ver com a gente. Todas.

Não uma. Nem duas. Nem três vezes, Áquila entrou em um conflito
interno ferrenho por me querer, mas precisar, ao seu ver, trair o reino que ele
jurou lealdade.

Meu Deus! Os nossos caminhos se separaram justamente por conta dessa


nossa divergência. A honra dele ficou acima de tudo. Acima de mim. Repetidas
vezes.

Se as coisas tivessem ocorrido do jeito que aquele patife está dando a


entender, Áquila teria pedido a minha mão em casamento quando veio atrás de
mim depois que fugi de Fayrehal para cumprir com o dever de “me conquistar”.
É isso que aquele inescrupuloso do pai dele parece não saber.

O filho dele é um péssimo mentiroso e só conseguiu ser um excelente


espião em Fayrehal porque a história dele foi vivida. Do contrário, a honra do
Áquila é quem o comanda. Completamente.

O que ninguém sabe, nem mesmo o Áquila e apenas o Felipe desconfiava


— já que Mestre Ponda veio com o argumento de que meu irmão o procurou a
fim de garantir a nossa segurança neste mundo — é que depois que saí do
palacete do Guerreiro, após o nosso encontro em que ele concordou me entregar
as irmãs da Helena em troca da segurança das minhas, eu tinha o escolhido.
Eu tinha desistido de voltar para o meu mundo. Estava disposta a pegar as
irmãs da Helena, naquele fatídico dia na Ilha do Comércio, largar os rebeldes
para lá e não só voltar para o palacete do Áquila, como nós dois tínhamos
combinado, mas ficar. Eu estava disposta a esperar para ter minhas irmãs de
volta quando fosse possível, de acordo com os planos do Áquila.

Eu menti ao dizer que nós dois sempre colocamos os nossos propósitos


acima dos nossos sentimentos. Eu abri mão do meu pelo Áquila, mesmo que a
oportunidade de colocar os meus planos em prática tenha me escapado, uma vez
que o meu destino mudou completamente naquele dia.

Quanto ao Guerreiro? O máximo que ele fez foi concessões. Malditas


concessões! Malditas oportunidades bem aproveitadas!

É por usar justo isso, algo que sempre esperei do Áquila e que só
conquistei agora que ele se deu conta de que me perdeu, que a minha vida seguiu
um rumo que não o cabe de forma alguma, que sinto verdadeiro asco do Rei.
Asco!

Aquele perverso usa minhas irmãs, meu soldado, Dominic e até mesmo o
filho contra mim. Maldito! Mil vezes maldito!

Mas vou libertar a Hortense, ou a Aurora deles. E se antes eu não tinha


tanta certeza assim, agora não há um pingo de dúvida do que o futuro reserva
para mim.

Só há uma chance verdadeira de tudo mudar e é cortando o mal pela raiz.


Vou acabar com esse poder vil que o Rei tem através do uso que faz de magia
obscura. E como sei o que virá em seguida, vou garantir não estar presente para
ver o que vai acontecer.

Se os Drakars invadirem este mundo, as pessoas terão que dar um jeito de


lidar com isso sem contarem comigo. E quando digo as pessoas, me refiro aos
meus irmãos também, porque eles vão ficar aqui e estou contando com o
Dominic para agir como eu agiria, porque não vou desviar do meu caminho nem
por eles, nem por mim, nem por ninguém.

Basta de tanto mal. Basta!

E é esse tipo de conforto que Dominic me traz. Na minha ausência, ele não
faltará. Muito pelo contrário. Tenho confiança plena no caráter dele para
acreditar que Dominic cuidará do que amo por lealdade a mim. O príncipe até
pode ficar com raiva, por conta do que vou fazer, mas se tem alguém que irá
compreender os meus motivos para libertar Aurora, esse alguém é ele que
ameaçou trancar no seu palácio uma pessoa que mal conhecia para evitar que
aquela perversidade acontecesse com ela.

Se ao menos usar o Orientador fosse possível... Tenho que ser discreta ao


mapear o palácio, porque Tina me observa de perto feito um predador avaliando
a sua presa. Um passo meu em falso e a Guerreira detona todos os meus planos.
Mais do que qualquer um, ela não pode saber acerca da verdade que está por
detrás da lenda, menos ainda que o meu noivado está com os dias contados.

Desço as escadas em passadas rápidas até o calabouço onde Oclan foi


detido. O cheiro pútrido é intenso, mas azar do meu nariz. Esse obstáculo é
muito pouco para me fazer voltar para um ambiente menos hostil e infinitamente
mais confortável.

Quando passo por alguns soldados do BOP, simplesmente ergo o queixo e


empino o nariz ao ordenar que abram a passagem para mim. Quando um faz
menção de abrir a boca para argumentar algo, lanço um olhar mortal e ele fecha-
a no mesmo segundo.

Logo meu acesso é liberado e um deles sobe as escadas por onde vim.
Aposto que para avisar algum superior da minha presença na prisão. Mas quero
ver quem é que vai ter a audácia de negar minha permanência aqui. Duvido que
será o Rei. No momento, temos muitas divergências e sei que esta não é mais
uma batalha contra o Dominic e eu que ele irá querer entrar.

Passo por entre as celas à procura do Oclan, sem dar atenção aos
prisioneiros moribundos que tem aos montes. É impossível não comparar que o
forte em que a Magnólia me prendeu parece uma mansão em relação à masmorra
de Pedralhos.

Encontro o Oclan sentado no fundo, com as costas contra a parede, a


cabeça inclinada para cima e os olhos fechados.

— Este não é um lugar para alguém como você, princesa — Oclan diz sem
sequer abrir os olhos.

— Estou começando a pensar que você tem fetiche por prisões, Oclan.

Ele me encara com os olhos brilhando de zombaria.

— Fetiche?

— Ah, cale a boca. Eu trouxe baralho.

Ele ergue as sobrancelhas enquanto me observa sentar perto da grade, no


chão imundo do corredor entre as celas. Não tenho problema algum com isso.
Vesti meu antigo conjunto de Guerreira preparada para encontrar as piores
condições mesmo.

— Vamos, seu molenga. Está com medo de jogar contra mim porque sabe
que nisso aqui — indico as cartas que embaralho com maestria — dou uma surra
em você?

Oclan sorri e me dou conta de que é a primeira vez que testemunho isso
acontecer. Logo seu corpo imenso para uma cela tão pequena desaba à minha
frente, colado à grade que nos separa.
— Nós dois sabemos muito bem quem é que fica surrado após os nossos
embates físicos.

— Ow. Ow. Ow. — Distribuo as cartas entre nós dois. — Ele provoca feito
uma garotinha.

— Fale menos e jogue mais, princesa.

— Seu pedido é uma ordem, capitão.

Jogamos para valer, como se nossas vidas estivessem em perigo, mas com
vários comentários debochados da minha parte e palavrões de marinheiros
proferidos com muita intensidade da dele. Oclan descontraído é um máximo!

Nossa jogatina atrai a atenção de outros prisioneiros largados aqui para


morrer, principalmente do que está atrás de mim que revela minha carta em bom
tom para o meu oponente.

— Se você dedurar a minha mão de novo, mando cortarem sua cabeça —


digo entredentes, me corroendo de ódio por ter perdido a rodada anterior por
causa do fofoqueiro desdentado.

— Você jamais faria isso — Oclan debocha em voz baixa para que apenas
eu o ouça.

— Mas ele não precisa saber que me falta esse tipo de coragem.

— Maldade, você quis dizer. — Paro de observar minhas cartas e o encaro


com o cenho franzido. — Mandar degolar alguém por perder um jogo de cartas é
um nível de maldade que você não tem.

— Está certo. Gasto minha maldade em outras questões.

Oclan baixa as cartas e começo a reclamar por ele as embaralhar no monte.


— Pare com isso! Essa mão não está nem na metade.

— Isabelle, o fato de que fiquei preso com você no forte de Lufstar, onde
comi uma comida contaminada com uma substância que me fez falar a respeito
da minha intimidade, não é o mesmo que você conhecer os meus segredos por
minha decisão. Não confunda as coisas entre nós.

— Você acha que estou com pena e por essa razão vim até aqui?

— No mínimo, sendo solidária à situação em que me encontro.

— O que não é o mesmo que dizer que você não sente alívio por alguém se
compadecer. Mesmo que tenha sido obrigado a falar a respeito de algo que, de
outra maneira, teria ido para o túmulo com você. — Coloco minhas cartas no
monte também e Oclan solta um chiado de frustração. — Não se preocupe,
Guerreiro. Não vou trazer à tona as coisas que me disse, porque também sinto
vontade de matar o homem que você foi tanto quanto você sente. O seu conflito
interno é o mesmo que o meu. Mas consigo separar a pessoa que você foi da
pessoa que você é, porque o homem à minha frente se arrependeu. A questão é,
você consegue?

Oclan me encara por tanto tempo que penso que não vai dizer mais nada,
então realmente fico surpresa quando ele volta a falar.

— Por causa dele você me escolheu. A sua intenção era dar um jeito
naquele mal que cometi contra aquela criança e a forma que encontrou foi me
oferecer a oportunidade de me redimir dos meus pecados.

— Que nada. — Balanço uma mão no ar, desfazendo de brincadeira do que


ele está insinuando. — Você mesmo acabou de dizer que minha maior falha é
não conseguir matar a sangue frio. É só por isso que você tá aqui para contar
história.
Em vez de sorrir, Oclan repuxa a boca para o lado em desaprovação e me
encara sério.

Fico sem graça da minha tentativa vexatória de desviar de um assunto sério


usando o humor. Ele percebe e então pega as cartas de volta, embaralhando-as e
distribuindo novamente.

Voltamos a jogar de forma descontraída, porém intensa, porque somos


maus perdedores.
— Por causa dele você me escolheu. A sua intenção era dar um jeito
naquele mal que cometi contra aquela criança e a forma que encontrou foi me
oferecer a oportunidade de me redimir dos meus pecados.

São as primeiras palavras que ouço assim que toco os pés no calabouço em
que fui informado, por um dos meus soldados de confiança, que a Isabelle veio
fazer uma visita ao Oclan.

Com o coração martelando forte no peito, dobro o corredor e dispenso os


soldados curiosos com um aceno de mão. Eles voltam a subir as escadas para
retornarem ao posto deles e me deixa sozinho, mas não completamente. Logo
adiante Isabelle está sentada no corredor imundo da prisão, ao que parece,
jogando carteado com Oclan.

O que vejo é tão absurdo, que pisco várias vezes para ter certeza de que
não estou delirando. No entanto, não estou. Isabelle, que recentemente ascendeu
ao título de princesa, está mesmo sentada no chão jogando cartas com um
prisioneiro.
Não sei se há alguém que aflora em mim sentimentos tão ruins quanto
Oclan o faz só de estarmos presente no mesmo ambiente. Quanto a ela, Belle é
dona de todas as lembranças quentes e boas que carrego no peito. É por causa
dela que me aproximo para conseguir ouvir o que eles estão dizendo com mais
clareza, uma vez que perdi a resposta dela quando dispersei os soldados.

Fico estático no meu esconderijo ao observá-los. Eles não me notam, tanto


porque consigo andar na surdina sem chamar atenção, se assim o quero, quanto
por estarem entretidos na jogatina.

Oclan para de forma abrupta de proferir palavrões. Reteso os ombros à


espera de que revele onde estou escondido, uma vez que penso que ele me
descobriu. No entanto, nada acontece. Ele apenas observa-a com suavidade.

— Cansei de perder, menina. — Isabelle solta uma risada debochada e os


olhos dele brilham com um afeto que nunca vi e que, portanto, me assombra. —
Seja honesta dessa vez. O que veio fazer aqui? São os pesadelos ou a insônia
outra vez?

Solto um suspiro demorado ao descobrir que Isabelle sofre de pesadelos e


insônia. Além disso, o que me estarrece ainda mais é perceber que, dentre todas
as pessoas que a acompanham, é ao Oclan que ela recorre.

Fico ainda mais atônito quando Isabelle não devolve com uma resposta
engraçadinha. Ela deixa o baralho de lado e abraça as pernas, apoiando o queixo
sobre os joelhos. Tão vulnerável que quase me entrego ao sentir o impulso de ir
até ela. No entanto, me controlo e mantenho a posição.

— Uma vez jurei a mim mesma que, se te encontrasse algum dia, te


mataria. — Oclan faz uma careta como se ela estivesse falando besteira, mas não
está.
Meu coração martela forte no peito porque sei que é verdade. Foi para mim
que ela disse com fulgor que mataria o Oclan se um dia o conhecesse quando
revelei uma pequena parcela do que ele fazia comigo na infância.

— Estou falando sério quando digo que não consigo matar, a não ser em
legítima defesa. Não que eu conseguiria te matar mesmo que eu quisesse, porque
nós dois sabemos que eu não conseguiria...

— Você não precisa se explicar a mim, princesa.

— Não. Eu não te devo mesmo explicações. — Ela ergue a vista e o encara


com firmeza. — Mas vou te contar, porque o seu ponto está correto, mas não
completamente. Foi pensando no bem dele que te dei aquela oportunidade. Não
no seu ou no meu, mas única e exclusivamente no bem do Áquila.

Engulo em seco. Dada a nossa atual situação, duvido que ela


compartilharia esse segredo comigo. No entanto, não sou impelido a preservar a
privacidade dela, porque quero saber.

Infernos! Quero ouvir essa conversa agora mais do que nunca.

Isabelle respira fundo e o encara fundo nos olhos.

— Mas acabou sendo bom para mim e para você, essa aliança. — Oclan
assente de forma rígida. — É estranho que eu te veja como uma figura paterna?
— Meu antigo carrasco fica lívido enquanto fecho os dedos ao redor do punho.
— Sei da sua capacidade. Você quase me matou quando te libertei da prisão.
Acontece que você é o único que me respeita sem restrições. Se preciso que me
encare como uma princesa, sou recebida como princesa. Se preciso ser sua
aprendiz, sou uma aprendiz. Mas se preciso ser só eu, você me trata como só
mais uma pessoa. — Isabelle olha para as mãos em seu colo. — Todos querem
ou esperam algo de mim. Que assuma a linhagem perdida. Que me case. Que
volte para o meu mundo... — Pisco por um segundo mais longo. — Não importa
o que seja. Alguém sempre quer me dizer o que fazer sem antes olhar para mim e
me perguntar o que eu quero. Você não. Por isso passei a te enxergar como um
lembrete para não sucumbir à pressão do que é esperado de mim. Para lutar até
que todos respeitem quem sou. Exatamente como meu pai era comigo. Embora
tenha certeza de que, se ele tivesse descoberto sobre meus roubos, não teria
ficado contente de jeito nenhum, perante os olhos dele eu não ficaria manchada.
Meu pai chamaria a minha atenção, me daria conselhos, me colocaria de castigo,
mas me acolheria para que eu não me sentisse menor do que ele ou os meus
irmãos. Ele me faria sentir vergonha dos meus erros, sim, mas me rejeitar porque
errei? Nunca. — Isabelle respira fundo. — De forma sutil, você me aconselha e
me passa a sensação de que minhas escolhas não importam, assim como era com
o meu pai. Posso ser princesa, rainha, aprendiz ou só amiga dependendo de quem
preciso ser no momento.

Um silêncio denso recai nas masmorras. Respiro de forma errática


enquanto Isabelle guarda as cartas de forma afoita no bolso do casaco. Oclan
estende o braço entre as grades e segura a mão dela, paralisando-a no lugar.

— Sabe qual é a sua maior virtude, menina?

— Kaká uma vez me disse que é a minha espontaneidade.

Discordo. É a coragem dela. Isabelle é a pessoa mais destemida que já


conheci em toda a minha vida. Às vezes beira até mesmo a insanidade. Portanto,
um dos meus maiores desafios, quando era o treinador dela em Fayrehal, era
ensiná-la a controlar os impulsos para agir de forma intencional. Nem sempre
obtive êxito, uma vez que, além de corajosa ela também é muito teimosa.

Sorrio ao relembrar daqueles tempos.

— Não, menina. — Oclan interrompe meus pensamentos. — Sua maior


virtude é a sua coragem. Matar não requer coragem. Sacrificar seus próprios
desejos, paixões e, o mais difícil de todos, o orgulho, isso sim é ter coragem.
Acredito que tenho três vezes a sua idade e sabe o que mais vi na minha vida? —
Isabelle balança a cabeça para os lados. Ela não sabe, mas eu sei. Sou mais velho
do que ela poucos anos, mas experienciei situações semelhantes às do Oclan,
portanto sei do que ele está falando. — Homens pegando em espadas em nome
da honra. Sabe quantos vi largando-a não por covardia para salvar a própria pele,
mas para renunciar ao orgulho ao se dar conta de que cometeu um erro de
julgamento?

— Não eu — Isabelle diz com firmeza e até mesmo chega um pouco para
trás.

Sorrio, porque sim, é algo que ela faria. Afinal, Isabelle teve a audácia de
pedir que a anunciassem como “A Ladra do Outro Mundo” para o Rei. E agora
entendo que não foi para afrontá-lo. A Isabelle reconheceu um erro do passado a
fim de tirar o poder de alguém usar isso contra ela.

— Não sou melhor do que vocês, Oclan. Muito pelo contrário. Até posso
confessar os meus erros, ferindo o meu orgulho no processo, mas isso não faz de
mim melhor do que ninguém, entenda isso.

— Isso te diferencia. — Isabelle nega com a cabeça com veemência e faz


menção de se levantar, mas Oclan se adianta. — Temo que todos te usaram para
benefício próprio, inclusive eu. Quando você apareceu na minha cela, e
bravamente lutou contra mim sabendo que as chances de sobreviver eram
pequenas, mas se agarrou a oportunidade de proteger o seu bem mais valioso,
enxerguei uma oportunidade e te jurei lealdade pela ousadia de me dizer que
estava me dando uma chance de me redimir. — Ele se cala abruptamente e ela
paralisa no lugar, assim como eu. Até mesmo respirar fica difícil.

— Mas você disse que era um discurso de uma garota tola.

— Eu era um homem se aproveitando da boa vontade de uma garota tola


que foi me oferecer redenção por causa dos sentimentos intensos que nutre pelo
meu filho.

Reteso cada músculo do corpo. O que ele quis dizer com filho? Por um
acaso Oclan foi espancado até o delírio e não fui informado? No entanto, Isabelle
não demostra surpresa ao ouvi-lo se referir a mim como filho. Não entendo, uma
vez que ela sabe muito bem que o ódio do Oclan por mim nasceu principalmente
da morte do filho dele, cuja identidade fui obrigado a usurpar. Até mesmo o
nome que hoje carrego é da criança dele. Não o meu de batismo.

— Nossa aliança começou com segundas intenções, mas permaneço para


sempre por lealdade. Se o seu orgulho fosse mais importante, eu teria sido usado
para o seu propósito e então descartado. Em outras palavras, eu estaria morto.
Helena estaria morta. Tina tem dificuldade em entender os seus sentimentos, mas
eu não, uma vez que estive em posição semelhante à da Helena. Eu feri uma
pessoa que você ama. Ela feriu outra pessoa que você ama. Dois crimes de
semelhante crueldade. No entanto, estamos vivos.

— Não. Não. Não. — Ela fica em pé em um salto. — Perdoar a Helena?


Nunca. Ela vai pagar por ter matado o Felipe! Quanto a você, consigo separar o
carrasco que foi para o Áquila do homem que é hoje. E não é por conta de
comida contaminada que te fez vomitar os seus segredos nos meus ouvidos, mas
principalmente do que sempre vi no seu olhar...

— Pare agora mesmo! — Oclan fica de pé em um salto e se afasta das


grades.

— Agora é a sua vez de me ouvir, Guerreiro — ela diz com os dedos


cerrados ao punho. — Eu vi o seu arrependimento desde o primeiro momento. Vi
o amor que sente por aquela criança. O desejo de que ele fosse seu filho
verdadeiro, mas ter isso negado ao sofrer ameaças que tornaria a vida dele um
terror ainda pior. Se não fosse por você, o Rei teria encontrado alguém
insanamente mais cruel. O que te falta é coragem, Oclan, para confessar a si
mesmo o que sente sem medo de que isso se volte contra você uma vez mais.

Se não estou entendendo errado, Isabelle encontrou uma forma de reparar


um erro do passado sem ferir ninguém no processo. Oclan agarrou a
oportunidade ao se aliar a ela, se arrependeu dos atos perversos dele e confessou
que me enxerga como um filho. Parece um conto para criança dormir! No
entanto, não muda absolutamente nada para mim, uma vez que não tenho
carência afetiva por ele.

Em um dado ponto, matei a esperança de que um dia Oclan me visse como


filho. Assim como desisti de esperar qualquer coisa do Rei como sendo um ato
paternal. Funciona bem ter matado a figura dos dois na minha cabeça de criança.
De todos os meus pais, para ser mais preciso. Oclan, o Rei, a Rainha e a minha
antiga ama.

Entendo os anseios da Isabelle, e confesso que sou capaz de compreender


os atos do Oclan. Acredito que posso até mesmo perdoá-lo se ele quiser, mas
nunca serei capaz de fazer parte da vida dele.

Do Rei, suporto por ser uma questão de obrigação de um homem em uma


posição hierárquica superior à minha. Quando coloco assim, a convivência se
torna tolerável. No entanto, só sou capaz de lidar com os meus deveres, jamais
no âmbito sentimental. Este meu lado está morto.

— Suba para o seu trono e me deixe em paz, princesa.

— Já fui, mau perdedor. Mas não prometo voltar amanhã, porque amanhã
você não estará mais aqui.

Não quero que Oclan saiba que escutei a conversa deles, então percorro o
caminho de onde vim de forma silenciosa, porém rápido. Paro ao alcançar o
térreo à espera da Isabelle.
No que diz respeito a ela, muda tudo e quero que saiba que ouvi cada
palavra do que foi dito.

Deles, não quero nenhuma gota de afeição. Meus sentimentos estão


realmente mortos. No entanto, dela? Quero um lago inteiro, porque sou um
homem sedento por ela e nada vai me fazer desistir da mulher que amo.

Não vai ser um noivado por interesse político que me afastará. Nem as
mentiras que ela profere na minha cara ou, pior, um beijo doloroso de assistir.

Por pouco não fiz besteira ao ver o Dominic roubar um beijo dela. Até fui
na direção deles na intenção de interromper, o que teria sido catastrófico. Socar a
cara do príncipe do Reino do Norte poderia deflagrar uma guerra, no entanto,
sequer levei em consideração as consequências. A sorte de todos os reinos é que
a Guerreira Tina foi mais rápida do que eu e os separou.

Mesmo corroído de ciúmes, fui capaz de ver o alívio no rosto da Isabelle


pela interrupção. Assim como fui capaz de notar o prazer do Dominic pelo ato.
Ele ainda não sabe, por sinal, nem ela, mas aquele beijo foi o último que eles
tiveram. Vou conquistar essa mulher de novo. Será por escolha da Isabelle que
nenhum outro par de lábios irá tocar o dela que não seja o meu.

Quando a mulher em questão atravessa o umbral da porta da escadaria que


leva a prisão, ela dá um pulo de susto ao me ver.

— Á-Áquila. — Isabelle espalma uma mão sobre o peito.

Como um predador, me aproximo dela de forma lenta e deliberada. Como


uma corsa, ela dá um passo para trás com os olhos arregalados até não ter espaço
para se afastar, uma vez que suas costas encontram a parede. Apoio um
antebraço ao lado da cabeça dela e inclino o rosto para baixo em direção da
minha Belle.
— Doce inferno! Depois de todo esse tempo, e dos rumos opostos que os
nossos caminhos seguiram, você ainda me ama sim.

O ar fica preso em seus pulmões. Desfiro um olhar desafiador. Isabelle dá


um passo para o lado. Espalmo a outra mão e prendo-a entre meus braços.

Não permito que ela escape de mim. No que depender de mim não irá
acontecer nunca mais.
Sem saída, Isabelle aperta as mãos no centro do peito. Talvez o gesto seja
para esconder a respiração irregular. Ela percebe que estou tomando nota de
todos seus sinais de nervosismo exalando e apruma os ombros, me encarando de
queixo erguido.

— Espera aí. Você estava me espionando?

— Estava.

— Que falta de educação, Áquila! — Ela dá um tapa no meu ombro com o


olhar faiscando. — Primeiro aquela reação infantil de me despir com os olhos na
frente de todo mundo. Uma atitude que não tem nada a ver com você. Agora essa
falta de respeito. Estou começando a achar que não te conheço mais.

— Creio que te faltam espelhos para que se veja. É impossível não encarar
seu corpo pecaminoso nesses vestidos sedutores que agora você vive usando.
Menos ainda o seu rosto que... Infernos, Belle. Você está linda de uma maneira
desconcertante.

— Pare. — Ela espalma as mãos nos meus ombros e tenta se desvencilhar,


no entanto não com muito afinco.
Resisto ao mesmo tempo em que procuro por seus olhos até que volte a
olhar para mim. Quando consigo o que quero, encaro-a com profundidade.
Observo de perto todas as mudanças em sua expressão, descrença, dúvida,
timidez e então exultação.

— Linda. — Abro um sorriso e ela sorri em reação.

Pelos deuses! Amo essa mulher com cada fibra do meu ser.

Ouço o som de passos vindo em nossa direção. Ela não. Envolvo sua
cintura e a puxo para um corredor vazio e escuro. Logo desço meus lábios sobre
os dela e devoro a boca doce que sonho diariamente. Tomo todos os gemidos de
surpresa feminino que logo se transformam em gemidos de prazer.

Aperto as mãos na cintura fina e colo suas curvas suaves ao meu corpo
rígido. Meus lábios, sedentos pelo sabor açucarado dos lábios dela, não
permitem nem mesmo que ela recupere o fôlego. O medo de que me afaste dita
os meus passos, então não deixo que Isabelle pense no que estamos fazendo.
Devoro-a como se quisesse absorver toda a sua essência e guardá-la dentro de
mim para que esteja comigo para onde quer que eu vá até a eternidade.

As mãos dela estão agarradas em um aperto doloroso em minha nuca.


Isabelle me devora com a mesma fome que tenho por ela. Seu desespero é o
mesmo que o meu. As chamas que a incendeiam são as mesmas que me
consomem. O desejo que sente é o mesmo que me faz perder o juízo.

— Ai, meu Deus! Perdi a cabeça no sentido figurado e posso perdê-la no


literal — ela resmunga ao se afastar para sorver um pouco de ar. Uma risada
rouca arranha minha garganta.

Noto seus lábios inchados e rosados. Esfrego o polegar sobre eles,


apreciando-os de outra forma.

— Maldição! Como senti sua falta, Belle — sussurro, embriagado por ela.
Volto a beijá-la e Isabelle corresponde com ainda mais avidez. No entanto,
sou tomado pela confusão ao sentir algo úmido e quente tocar minhas bochechas.
Ergo as mãos e deslizo as pontas dos dedos no rosto dela. Percebo que se trata de
lágrimas.

Assustado, afasto-me apenas o suficiente para limpá-las.

Isabelle raramente chora, e isso só acontece quando ela perde


completamente o controle sobre as emoções. Meu coração galopa ferozmente no
peito com essa percepção.

— Belle...

— Eu te odeio. — Ela soluça. — Sei que já te disse isso algumas vezes e


que era mentira, mas nesse momento eu realmente te odeio, Áquila.

Um peso afunda em meu estômago e fico gelado das pontas dos dedos até
meu último fio de cabelo. Isabelle parece sincera, o que por sua vez acaba
comigo.

— Belle, eu não te traí, meu amor. — Deslizo os nós dos dedos pela pele
suave do seu rosto. — É isso que está te chateando em relação a mim?

Acaricio-a e ela fecha os olhos. Poucos segundos se passam e então as


lágrimas cessam, a respiração dela normaliza e as mãos me afastam para enxugar
o rosto por conta própria.

Quando volta a me olhar, é como se o nosso beijo nunca tivesse


acontecido.

— Por Deus, Áquila! Não consigo resistir a você quando deveria me dar ao
respeito em primeiro lugar. Por favor, use a sua tão estimada honra e faça esse
favor para mim. Não me encurrale mais.
— Rakar atentou contra a minha vida. Em vez de fugir, tentei ir até a Ilha
do Comércio atrás de você. — Minhas palavras a paralisam no lugar e seus
olhos, desolados, travam nos meus.

A mudança de atitude revela que uma parte dela duvidava de mim.


Observo seu peito subir e descer de forma intensa. A dor dela é palpável. Seu
dilema rasteja sob a minha pele.

Puxo seu braço para que volte a ficar frente a frente a mim e pouso uma
mão no pescoço dela, sentindo sua pulsação. De certa forma, senti-la me
tranquiliza. Acredito que o contrário também acontece, uma vez que Isabelle não
reluta, menos ainda demonstra desejo de se afastar do meu toque.

Na verdade, não é ódio. Nunca foi. Isabelle sente é medo ao perceber que o
amor que nutre por mim é tão intenso que enfraquece o seu propósito.

— Heloise me contou, mas quero saber de você. O que aconteceu? — Sua


voz soa tão baixa que mais faço leitura labial do que de fato ouço suas palavras.

— Rakar tramou contra a minha vida. Máximus descobriu e convenceu


alguns dos meus homens a me tirarem à força do palácio. Lutei contra, porque eu
não me importava com nada, a não ser chegar até você. No entanto, fui
nocauteado e colocado inconsciente dentro de uma diligência que me levou para
a minha casa. No fim daquele mesmo dia, recebi a notícia do que tinha
acontecido na Ilha do Comércio naquela manhã e eu soube que você não viria ao
meu encontro. — Ela engole em seco, mas não desvia o olhar. Minha voz treme,
no entanto, sigo adiante. — O Rei colocou a Helena sob a proteção dele para que
eu não fizesse nada contra ela em retaliação pelo que te tomou. Quanto ao
Máximus, ele confessou a participação dele naquela ilha e foi punido por não ter
seguido a minha ordem de te proteger com a própria vida. Por ter me salvado do
Rakar, decidi que cortá-lo do grupo dos meus soldados fosse o suficiente e
permiti que ele voltasse para Pedralhos em uma posição inferior. Ele está se
esforçando para reconquistar a minha confiança, por essa razão veio me informar
da sua chegada ao Palácio naquele dia em que nos esbarramos acidentalmente.
Para o meu azar, Helena também precisou vir até mim para me informar sobre
um assunto urgente da Guarda Real. — Solto um suspiro longo. — Sei que falhei
com você, Belle, mas nunca traí a nossa aliança. Também não estou associado a
nenhum dos dois de qualquer maneira. — Ela olha por cima dos meus ombros.
Deslizo o polegar por sobre seu lábio inferior e tenho sua atenção de volta.

— Nunca acreditei que você tivesse me traído e estou aliviada por


Máximus ter agido por suas costas e te protegido do louco do seu irmão. Quanto
a ele ser cortado do seu grupo de soldados, acredito que tenha sido uma sábia
decisão, embora eu precise dizer que Máximus não atentou contra mim. Mas me
ameaçou para protegê-la, o que compreendo.

— Compreende? — Reteso cada músculo do corpo.

— Se as nossas posições se invertessem naquele dia, você no lugar dele


teria feito pior.

— Teria.

Pensei em várias reações vindas dela. A mais recorrente em minha mente,


era a dúvida quanto a veracidade das minhas palavras ou a acusação de que sou
culpado pela morte do Felipe. No entanto, nunca imaginei que ela sentiria alívio,
ainda mais instantes depois de se irritar comigo por me amar.

— Mas na posição da Helena eu não teria feito aquilo. Eu teria lutado para
salvar as minhas irmãs, não para matar o irmão dela.

— Quando conseguirmos a liberdade das suas irmãs será possível


fazermos algo a respeito. Vem cá. — Puxo-a para o calor dos meus braços. —
Sinto muito pelo Felipe, meu amor.
Isabelle assente e agarra as duas mãos na minha camisa. Aperto-a ainda
mais contra o meu peito. Ela solta um suspiro longo, como se estivesse retendo
toda a dor do luto durante os últimos anos e, enfim, encontrou um modo de dar
vazão a ela. Beijo o topo da sua cabeça.

Talvez nos meus braços ela tenha se esquecido do Dominic. No entanto, eu


não me esqueço um segundo sequer do noivado deles.

— Na nossa dança, você me disse que era um noivado político. — Isabelle


se afasta abruptamente dos meus braços. — O que eu testemunhei no baile...

— Fui pega desprevenida porque foi a primeira vez que ele... — Ela
respira fundo. — Foi a primeira vez que ele me beijou. Porém, vou ser sincera,
Áquila. Estou tentando, juro que estou tentando arrancar esse amor que sinto por
você do meu peito ou, no mínimo, abafá-lo. Mas todas as vezes que penso que
consigo, basta um maldito “Belle” saindo dos seus lábios e pronto, tudo pelo
qual lutei vai por ralo abaixo. Você me destrói de todas as maneiras possíveis e,
como a imbecil que sou, recebo a minha ruína com um sorriso pateta no rosto. O
meu coração é seu e não me dá poder de escolha quando o assunto são os meus
sentimentos. Tem ideia do quão terrível é isso?

Solto um imenso suspiro de alívio. Como suspeitei, a Isabelle não parecia


nada envolvida naquele beijo. Odeio o que testemunhei, mas não posso mudar a
forma como a situação se desenrolou no passado. O que está em meu alcance é
reverter o meu quadro com a Belle.

Encosto a testa contra a dela. Beijo seus lábios delicadamente uma, duas,
três vezes. Nossos olhos abertos e sempre conectados. Suspeito que até mesmo o
ritmo dos nossos corações é o mesmo.

— Pare de lutar contra mim. Sou seu e você é minha. Não para possuirmos
um ao outro e sim para nos amarmos. Nunca quis ser cuidado por ninguém, no
entanto... inferno sangrento se não acabei de descobrir a sensação maravilhosa
do que é ter você se preocupando comigo! Desejo cuidar de você e...

— Áquila, não me entenda errado. — Ela me corta antes que eu vá mais


longe e faça promessas que tenho toda a intenção de cumprir. — Eu me preocupo
sim com você e o meu amor é tão intenso que beira o ridículo. O meu coração é
descontrolado, mas as minhas escolhas continuam no meu controle, portanto,
nada vai mudar entre nós dois. Esse nosso encontro não planejado não é um
recomeço. Sinto muito se te confundi, mas eu também fiquei confusa quando
você apareceu no meu caminho tão de repente.

Suas palavras arrancam toda fagulha de esperança que acendeu em meu


peito nos últimos minutos. Fico mudo enquanto observo a tristeza se acentuar em
seu rosto à medida que me dou conta do que está querendo me dizer.

Quando nos encontramos na minha residência, eu devia ter cumprido a


ameaça que fiz ao irmão dela e fugido com a Isabelle para longe. Bem longe.
Aquela era a última oportunidade que a vida estava me dando de escolher a
mulher que amo acima do meu senso de dever.

Infernos! Ela teria me escolhido ali. Eu sabia disso. No entanto, agora está
me rejeitando para sempre e, diferente de quando proferiu mais cedo que me
odiava, agora está dizendo a verdade. Apesar de me amar, ela não irá me
escolher.

— Se eu tivesse...

Seus dedos envolvem com delicadeza o meu pulso para me afastar dela.
Para suavizar a rejeição, Isabelle desce a mão e cruza os dedos aos meus.

— Nossas escolhas nos trouxeram até aqui, portanto a realidade que temos
que enfrentar é essa — Isabelle sussurra, tão arrasada quanto eu. Seguro sua mão
contra meu peito e ela engole em seco ao sentir as batidas errantes do meu
coração, mas me encara decidida. — Várias vezes pensei que se você acordasse e
me escolhesse, tudo seria diferente. Agora é tarde demais e nunca saberemos.

— Isabelle, não vou lutar para te afastar como você me acusou que fiz das
outras vezes. Reconheço meu erro quando me convenci de que o certo a se fazer
era te levar em segurança para o outro mundo e te deixar lá sem mim. No
entanto, percebi que ficar longe de você é um destino inconcebível. O que estou
tentando te dizer é que eu teria ido atrás de você. — Os olhos dela ficam do
tamanho da lua. — Teria, Belle. Esse é o segredo que reluto em revelar até
mesmo para mim. Eu desistiria de tudo para viver com você, mesmo que fosse
em um mundo que, pelas coisas que você me contava, parecia uma realidade
assustadora para alguém como eu.

— Por favor, Áquila. Eu aceitei o que temos, e o que temos é isso. — A


voz dela soa quebrada, tão angustiada que eu sentiria pena, se ela não estivesse
arrasando comigo.

— Onde está aquela garota obstinada que corre para os braços do desafio
ao invés de fugir? — Alterno o olhar entre seus olhos.

— Aprendeu qual desafio aceitar e qual declarar causa perdida.

— Você crê que somos uma causa perdida. É esse o motivo que te impede
de ficar comigo, mesmo me amando?

Ela não responde, mas não precisa. O simples fato de desviar o olhar,
brilhando com novas lágrimas não derramadas, diz tudo. Me afasto e entreabro
os lábios enquanto a encaro sem acreditar no que está acontecendo.

— Eu te perdi — sussurro.

— Eu também tenho um segredo que reluto em revelar até mesmo para


mim. Quer saber qual é?
— Não — digo de prontidão e ela abre um sorriso triste.

— Sou egoísta e, secretamente, desejo ser para sempre o único amor da sua
vida. Mas estamos fadados ao fracasso, Áquila. Mesmo que me doa, o certo da
minha parte é pedir para que siga com a sua vida adiante sem esperar por mim.
Encontre outra — ela faz uma careta, mas se obriga a dizer mesmo que a
incomode.

— Não — digo com tanta ferocidade que ela até mesmo se assusta. Dou
um passo em sua direção e assomo meu corpo sobre o dela. Quase encosto
nossos lábios. — Não. Não. Não.

— Pare com isso.

— Pare você! — Meu peito sobe e desce de forma pesada enquanto a


encaro fundo nos olhos. — Você não dita o que devo fazer. As suas escolhas
pertencem a você. As minhas, pertencem a mim. Respeite isso, Isabelle.

— Mas eu respeito...

— Serei mais claro. Não aceito que me diga para traçar um destino que não
tenha você para facilitar a forma como se sente por ter traçado um destino que
não me tenha. Se vai me rejeitar, me rejeite sabendo que te escolho até o fim.
Também não vou revidar ao ficar com outra. Não sou esse tipo de homem.
Portanto, você será a única de nós dois a infringir tal sofrimento. Não espere de
mim a cortesia de te oferecer o mesmo em retorno porque não há em mim
qualquer disposição de atenuar a dor que sente por me machucar ao te machucar
de volta. Lide com as consequências das suas próprias escolhas, Isabelle.

Uma lágrima escapa de seus olhos. Ela engole em seco e me encara com
desamparo. Quanto a mim, respiro de forma errática.

Mantenho minhas mãos para mim e não alivio a dor que sei que está
sentindo, porque é a mesma que está me condenando a viver até o meu último
suspiro. A conheço bem o suficiente para saber que Isabelle está no inferno por
ser a razão do meu sofrimento. Se ela pudesse escolher sei que inverteria as
nossas posições em um suspiro. Dói muito mais nela prejudicar alguém do que
ser a prejudicada.

— Áquila... — ela chama o meu nome em desespero entre um suspiro


fraco. Outra lágrima cai e Isabelle limpa o rosto no segundo imediato.

— Basta que você volte para mim que nenhum de nós dois iremos sofrer.

— Você não entende? — Ela sussurra em aflição. — Mesmo em condições


normais, seria absurdo ficarmos juntos. Além de ter uma aliança a honrar com
outro homem, e uma rainha importante, também não tenho qualquer interesse em
ficar à mercê do Rei que mantém as minhas irmãs cativas ao me casar com o
herdeiro dele. — Abro a boca para revidar. Isabelle é mais rápida e me silencia.
— Mas, diante as atuais circunstâncias, eu não posso de forma alguma, a menos
que queira que você me odeie ao invés de apenas se ressentir de mim.

— Um momento. O que infernos está acontecendo que não tomei


conhecimento? — Demando e Isabelle desvia o olhar.

Os segundos se arrastam enquanto espero por uma resposta que nunca


vem.

Ouço passos vindos na direção do corredor que estamos. Isabelle parece


não notar. Isto é, até que seu olhar paralisa em um ponto atrás das minhas costas.
Ela espalma as mãos nos meus ombros e me afasta com delicadeza para o lado.

— Dominic. — Reteso à menção ao nome dele. — Eu estava voltando de


uma visita à cela do Oclan quando o Áquila... — Isabelle para de falar
repentinamente, provavelmente sem saber como me explicar.

Viro de frente para ele. Embora sejamos primos, Dominic e eu mal nos
conhecemos, então ele não sente dificuldades em me lançar um olhar
atravessado. Eu menos ainda em revidar, embora meu problema não seja com
ele.

Meu problema está me escondendo algo e tem nome e forma de mulher. A


mesma que está parada desamparada entre nós dois. No entanto, não nego que
sou o problema do Dominic, porque sou.

Ele desvia o olhar para ela por breves segundos e então volta a me olhar de
forma mortal. Minhas defesas já estão no devido lugar. Isso e nada teria o mesmo
efeito em mim.

— Quando o Áquila... ? — ele pergunta a ela incapaz de parar de me


encarar.

— Estávamos tratando de assuntos pessoais. Aliás, Dominic, acho justo


que tome conhecimento de que Isabelle e eu ainda temos muitas pendências para
resolvermos.

O clima fica ainda mais tenso entre nós três. Dominic range os dentes e
aprumo ainda mais os ombros.

— Não da minha parte. — Isabelle me lança um olhar atravessado. — O


passado está no devido lugar e estou completamente imersa nos meus deveres
para que o futuro deste reino... deste mundo, seja melhor. Você disse que não iria
facilitar para mim, mas foi o que acabou de fazer, Áquila. — Ela me olha com
uma fúria quase palpável antes de se virar para ele. — Perdão, Dominic.

Isabelle passa por ele e caminha apressada para se distanciar de nós dois.
Dominic não gasta fôlego comigo. Ele me dá as costas e vai atrás dela.

O pior não é vê-lo fazer algo que eu gostaria de fazer, no entanto não
posso. É o fato de que ao alcançá-la, ele pergunta algo a ela que assente com a
cabeça em resposta. Dominic estende o braço. Isabelle hesita por um segundo,
porém aceita em seguida.
Sou obrigado a lidar com as consequências dos meus atos. Vê-los partir
juntos é um deles.

Terei a Isabelle segura, o que eu queria. Terei o meu reino seguro, o que eu
também queria. Terei a minha cabeça sobre meu pescoço, o que também queria.
No entanto será ao custo de perdê-la para outro homem.

Inferno sangrento!
Dominic come em silêncio ao meu lado e não me esforço para preencher o
ambiente com conversas aleatórias. Felizmente, estamos jantando apenas na
presença um do outro, uma vez que não recebemos nenhum convite da família
Real desde que chegamos. Nunca senti tanto alívio diante a afronta deles.

— Estou satisfeita. — Mal termino de falar e um criado retira meu prato


ainda cheio. — Vou me deitar mais cedo.

— Eu te acompanho. — Dominic faz menção de se levantar e logo o prato


dele também é retirado.

— Não precisa — me apresso em dizer. — Você está visivelmente


esgotado.

Além de ter ficado calado durante todo o jantar, e feito discretas caretas de
dor, o que suponho se tratar de dor de cabeça, Dominic está com olheiras
profundas. Há dias ele sai e entra em reuniões com o Rei e nada acontece, apenas
o esgota.

— Faço questão, Isabelle.


Assinto, porque não vou levantar objeção. Se é ele quem está cansado e
quem insiste em me acompanhar, eu é que não vou criar caso.

De braços dados, caminhamos em silêncio até os meus aposentos.

— Você não vai me perguntar se consegui um acordo para as suas irmãs?

Sou pega desprevenida com a pergunta e, portanto, fico muda. Não sei
como responder a isso.

Cada impulso que tenho sempre ao vê-lo é o de perguntar o que aconteceu


na reunião. Se ele teve algum avanço no que diz respeito às minhas irmãs e
Oclan. Até onde sei, o Rei os manipula para nunca discutir esses assuntos.
Segundo o Dominic, ele sempre traz alguma política urgente que precisa ser
acertada entre Yerus e o Reino do Norte.

Mas, por causa do meu encontro sem querer ontem com o Áquila, hoje não
perguntei nada ao Dominic.

— Você pode me perguntar o que quiser.

— Mas não sei se devo — respondo em um sussurro.

— Sou homem, Isabelle.

— Nunca disse que não o fosse. — Dessa vez, o encaro nos olhos.

— O que quero dizer é que sou maduro o suficiente para arcar com as
consequências das minhas escolhas. Quero que fique claro que você não está me
obrigando a nada. Eu escolhi e continuo escolhendo o nosso noivado, por isso
essas reuniões não terminam nunca. Se você passar a me encarar como um pobre
coitado, então aí sim me ressentirei da nossa aliança.

Não acho que Dominic deveria me absolver. Ele me encontrou com o


Áquila e eu estava errada. Completamente. Por isso nem me justifiquei. Se
nossas posições se invertessem, eu ficaria muito chateada com ele e levaria para
o lado pessoal, mesmo que fosse uma aliança política. Porém, ao que tudo indica,
o mesmo não acontece com ele.

Talvez o meu conceito de comprometimento seja diferente do dele.


Quando levo em consideração algumas situações estranhas que já vi aqui, sou
levada a crer que talvez Dominic queira ter uma amante. Isto é...

— Você tem uma amante te esperando no Norte?

Nunca o vi tão bravo ao me desferir um olhar atravessado. Ele até mesmo


para de andar de tão ofendido que fica com a minha pergunta honesta.

Por um instante, penso que irá me passar um sermão. Como estou


acostumada a tirar as pessoas do sério, detecto com facilidade quando alguém
está prestes a explodir comigo. Certamente tirei o Dominic, a pessoa mais calma
que já conheci em toda a minha vida, do eixo dele.

Eu já estava chateada comigo mesma por conta das minhas atitudes de


ontem. Agora estou péssima diante a minha capacidade de irritar até mesmo o
Dominic.

Acontece que eu não consegui me afastar do Áquila quando ele disse


coisas que o meu coração queria tanto ouvir ao me manter presa entre o corpo
dele e a parede. Eu estava com a guarda baixa e fui incapaz de afastá-lo. O pior
de tudo é que não apenas permiti que me beijasse como o beijei de volta.

É por isso que não me justifiquei ao Dominic. Ele não precisa saber nada
disso, uma vez que não vou permitir que se repita. Já basta o mal que o causei ao
me encontrar daquela forma e, aparentemente, piorei ainda mais com essa
pergunta estúpida.

Ao invés de me dar uma má resposta, Dominic volta a pegar o meu braço,


de acordo com as boas maneiras, e anda de forma mais apressada até entrarmos
no meu quarto.

Assim que ele fecha a porta atrás de si, e se volta para mim, percebo duas
coisas ao mesmo tempo. Dominic não está mais descontrolado, mas está distante,
tanto é que parou a vários passos de mim.

— Não teremos esse tipo de união — ele diz olhando fundo nos meus
olhos. — Não me peça para que o aceite como seu amante, porque não darei
permissão, Isabelle.

— Não! — Me adianto rápido, quase desesperada. — Eu só... Não sei o


que pensar. Já me disseram que esses casamentos arranjados não passam de
meras formalidades. Então liguei os pontos de que Ruan era um cortesão de um
bordel famoso de Salavinder, que atendia apenas a nobreza. Ao não me culpar
por ontem, quando eu claramente estava errada, pensei que talvez tenha uma
mulher te esperando lá no Norte. O que agora percebo ter sido uma afronta
gravíssima, uma vez que você é muito íntegro para propor alguém em casamento
se há outra na sua vida.

Pronto. Falei. Meu estômago até revira tamanha vergonha que sinto diante
dele. Baixo a cabeça, querendo me esconder. Porque ele é íntegro. Eu não. Foi
por isso que chorei ontem quando o Áquila me beijou. Notei a minha
incapacidade de agir corretamente. Pior que isso. Notei o alívio que senti nos
braços do Áquila mesmo estando comprometida com outro.

Eu não mato a sangue frio, mas sou uma traidora. Descobrir isso me
machuca tanto!

Vejo as botas do Dominic quando ele se aproxima de mim. Logo seus


dedos delgados tocam meu queixo e ergue minha cabeça. Seu olhar é terno.

— Não tem ninguém me esperando no Norte. Quanto a ontem, você


deixou claro, desde o primeiro dia em que nos conhecemos, que havia questões
mal resolvidas com ele. Porém, mesmo sabendo que não teria seu coração,
continuei te cortejando porque sei o que eu quero. — Ele engole em seco. —
Acabou, Isabelle?

Meu coração martela feroz no peito ao entender ao que se refere. Por um


segundo fugaz, penso no Áquila e a dor ameaça sangrar no meu peito, mas a
engulo enquanto assinto para o Dominic. Áquila e eu acabamos.

Dominic não abre um sorriso. Nem mesmo parece contente com a minha
resposta não verbal. Creio que ele nota que não estou bem, uma vez que desvia o
olhar do meu e encara o quarto às minhas costas.

— O que você quis dizer com as reuniões nunca terminarem porque você
continua escolhendo o nosso noivado?

Dominic respira fundo e dá um passo para trás. Ele para perto da porta e
coloca as duas mãos nos bolsos da frente da calça.

— Todos os acordos que o Rei oferece nos prejudica. Por isso ainda não
saímos desse impasse. Creio que levará um tempo até que eu consiga um
encontro com as suas irmãs.

— Oclan sequer foi discutido, correto?

— A situação dele seria fácil de resolver, se o Rei não colocasse sempre


como último tópico a ser discutido. Por falta de tempo, e capacidade mental de
estender a já longa reunião, não discutimos este assunto. — Solto um suspiro
derrotado. — Vou conseguir resolver tudo, Isabelle. Apenas confie em mim.

— Eu confio — digo com sinceridade, mesmo sabendo que jamais poderei


pedir para que ele faça o mesmo comigo em retorno. Para começo de conversa,
eu mesma não confio em mim. Porém, mesmo o decepcionando, Dominic não
cansa de depositar a fé dele em mim. Fico intrigada ao pensar nisso. — Dominic,
por que você quer tanto se casar comigo?
— Pensei que já tivéssemos discutido isso lá em Lufstar.

— Por favor, eu preciso saber a sua verdade. Uma vez você me disse que
acredita que o amor é uma escolha. Mesmo assim, insiste em se casar com uma
mulher que deixou claro que não acredita no mesmo porque não tem controle
sobre o próprio coração.

Ele me avalia em silêncio por alguns segundos. Espero que perceba que
não vou deixar a questão de lado e que não aceito nada além da completa
sinceridade dele.

— Quando criança, me ensinaram que a minha escolha seria limitada.


Embora isso soasse como algo terrível, sempre acreditei que fosse possível
encontrar a felicidade, uma vez que vi acontecer com os meus pais. O casamento
deles foi arranjado por meus avós. Entretanto, apesar das circunstâncias nada
românticas, os dois tornaram o relacionamento verdadeiro ao escolher amar um
ao outro daquele dia em diante. Foi uma decisão que mudou completamente o
destino deles. Não encontrei essa felicidade em mais nenhum casamento dos
monarcas. O Rei de Yerus e a minha tia se detestam. Tia Magnólia chorou de
alívio quando o consorte dela morreu... O que mais tenho são casos desastrosos
de uniões arranjadas.

— Exceto os seus pais.

— Exceto eles. — Dominic assente. — Quando chegou ao Norte os boatos


de uma garota obstinada, eu fiquei curioso para conhecê-la, mesmo sabendo que
jamais poderia dar em nada, uma vez que ela não era da monarquia. Porém, essa
mesma garota reclamou uma linhagem há muito perdida. — Dominic me encara
fundo nos olhos. — Eu vi a minha chance. Existia uma pessoa que me agradava
e me agarrei a ela não por ter minhas escolhas limitadas, mas porque mesmo que
não existisse essa limitação, eu ainda iria querer conhecê-la. Saí do Norte e fui
para Lufstar sem nem mesmo precisar pensar. E eu sei, Isabelle, que você me
disse que ainda não pode me dar o seu coração, mas em questão de poucos dias
conquistei a sua lealdade e amizade. Comecei com nada e já tenho as duas,
portanto, não me importo muito com o nosso começo. Isto é, desde que
queiramos o mesmo. Por isso te escolhi e continuarei escolhendo. Finalmente
aplaquei a sua insegurança? — Dominic pergunta de uma forma vulnerável.
Imagino o quanto deve ter custado a ele se abrir comigo a este ponto.

Quando o questionei sobre as razões de me pedir em casamento, eu sabia


que Dominic não estava me dando os verdadeiros motivos para ir até Lufstar me
conhecer. Sabia que havia algo por trás de “corrigir um erro do passado” e “ter
herdeiros”. Acontece que na época pensei que fosse um desejo oculto ruim.
Quão errada eu estava!

Agora sim sei qual é a verdade e, embora seja um motivo nobre, me sinto
péssima. Antes Dominic estivesse me passando a perna, porque não vou partir o
coração dele. Eu vou destruir as esperanças daquele rapaz que via os pais e
sonhava conquistar o mesmo.

Fico tão mal que a minha vontade é terminar esse noivado agora mesmo.
Mas então penso na Hortense presa em um feitiço que a atormenta há séculos e
controlo o meu instinto de apenas reagir de acordo com as minhas emoções.
Mais do que qualquer coisa, eu preciso salvá-la.

— Isabelle? — Dominic me chama com apreensão. — Eu não quis te


assustar com a sinceridade dos meus sentimentos, por isso não te contei...

Me aproximo dele e seguro suas mãos entre as minhas.

— Só me prometa uma coisa — Ele assente. — Nunca perca as


esperanças. Você deve isso àquele garoto esperto que escolheu ser como os pais.

— O seu pedido é dispensável. Tenho um compromisso a cumprir comigo


mesmo.
— Ótimo. — Solto um imenso suspiro de alívio e finalmente sorrio.

— Entretanto, o que o seu pedido está implicando? É do seu desejo


terminar o nosso noivado para ficar com ele agora que o reencontrou?

Meu sorriso desaparece e me afasto dele.

— Eu não posso ficar com ele. Eu já sabia disso quando aceitei o seu
pedido de casamento e essa compreensão apenas se solidificou ainda mais. —
Sou cuidadosa com a escolha de palavras. Dominic parece perceber que usei
“posso” ao invés de “quero” porque solta um suspiro.

— Não importa o começo. Não importa mesmo — ele diz mais para si
mesmo do que para mim.

Estou cansada de ver o mal que causo a ele. Cansada de ver o Dominic
com dor de cabeça e olheiras profundas porque o Rei dificulta a vida dele por
minha causa. Também não aguento mais não ser capaz de contar doces mentiras
para ele. Coisas como: esqueci o Áquila. O meu coração não pertence ao
Guerreiro. E sou capaz sim de dá-lo a você.

— Quero te mostrar algo — digo de supetão e Dominic volta a atenção


para mim. — Confie em mim nessa.

— Eu confio em você.

Não deveria. Mesmo assim, pego a mão dele e o puxo para fora do meu
quarto. Os nossos guardas nos acompanham enquanto arrasto o Dominic para a
área externa do palácio.

— O que está pensando em fazer comigo, princesa? — Ele me pergunta


com um traço de diversão na voz.

Respiro aliviada. Ele ainda nem viu o que quero mostrá-lo e já se distraiu
dos imensos problemas que nos cercam. Aumento o passo em resposta.
Hoje à tarde, consegui ir um pouco mais longe na minha exploração do
Palácio de Pedralhos em busca da Hortense. Tina ficou presa em uma reunião
com a guarda enquanto Dominic ficou preso na com o Rei.

Não posso usar o Orientador se quero ser discreta. Então vi no meu quarto
a direção que ele me apontou e decidi ir para os jardins. Uma vez lá, encontrei
um labirinto verde, um templo do lado oposto e uma pequena floresta. Tive que
escolher um caminho. Na verdade, miados agudos escolheram o caminho para
mim. E é por isso que estou arrastando o Dominic para lá.

— Isabelle, para onde está me levando? — Dominic agora parece


preocupado. Até mesmo os guardas ficam mais atentos aos arredores ao
ultrapassarmos o labirinto verde.

— Estamos quase lá. — Aperto sua mão para tranquilizá-lo. — Ali.


Naquela árvore.

— Não vejo nada.

— Vem. Está do outro lado, porque os escondi.

Solto a mão dele e percorro a curta distância que resta em uma pequena
corrida. Dominic me acompanha de perto e para de súbito quando me abaixo.

— Pelos céus! — Ele exala baixinho em admiração.

Levanto-me segurando um filhotinho da ninhada de gatinhos que encontrei


acidentalmente. Os pelos do gatuno são macios e brancos feito algodão. Os olhos
são cor de mel, o meu favorito dentre todos.

— Aqui. Pegue. Se essa coisinha linda não for capaz de te alegrar, não sei
mais o que seria.

— Você seria — Dominic diz antes de pegar o gatinho do meu colo e


ignoro, deliberadamente, o flerte descarado dele.
A expressão no rosto do príncipe se transforma completamente. Seus olhos
brilham de emoção enquanto seus dedos acariciam de leve o bichano que
ronronara contra o seu peito.

— Own! É tão fofinho. — Me aproximo deles e esfrego a cabecinha. —


Fiquei com medo de levar para dentro do palácio. Acho que estou acostumada a
ter tudo que amo arrancado de mim e não quis arriscar. Pensei que fosse melhor
cuidar de longe até que eles sejam capazes de se virarem por conta própria. —
Dominic desvia a atenção para mim. — Não quero pegar amor, mas esse é o meu
favorito!

— Leve. É seu. Ninguém irá tomá-lo de você. Te dou a minha palavra. —


Ele faz menção de me entregar o gatuno de volta.

— Não posso. — Dou um passo para trás e até mesmo balanço a cabeça.

— Querida...

— Não vou pegar nenhum, Dominic!

— Então eu pego este para mim. E vamos encontrar um lar para os outros.
— Ele coloca o gatinho de volta no ninho. — Alguém em mente que possa
querer filhotinhos de gatos?

— Hanna.

— A nossa prisioneira?

— Ela é uma criança. Certamente gostará de ter um gatinho, uma vez que
está triste desde que se separou da Heloise. — Solto um suspiro de pena da
garotinha. Infelizmente, não há muito o que a gente possa fazer. Ficar com a
Hanna significa proteger as minhas irmãs que o Rei reluta em soltar. — Tami
talvez também queira.

— Então está feito. Os três já possuem um lar. O nosso e o das meninas.


— O seu. — O corrijo.

Em passos lentos, como se não quisesse me assustar, Dominic se aproxima


de mim. Observo-o com cautela, temerosa do que ele tem em mente. Ele para
quando as pontas de suas botas praticamente tocam as pontas das minhas
sandálias.

O príncipe estende a mão e brinca com uma mecha solta do meu penteado.
Meu coração começa a bater de forma errática e a vontade de sair correndo surge
no meu peito. Porém, fico parada no lugar. Mas, ao relancear do olhar dele sobre
os meus lábios, me coloco em ação.

Em um ato que pega a nós dois de surpresa, envolvo meus braços ao redor
do pescoço dele e o abraço apertado. A única forma tranquila que encontro de
desviar a atenção do que sei que ele estava prestes a fazer. Não posso rejeitar
abertamente um beijo do meu noivo e desejo menos ainda magoá-lo com uma
rejeição. Abraçá-lo funciona bem.

Ele aperta os braços ao redor da minha cintura e toma um pouco mais de


liberdade ao enterrar a cabeça na curvatura do meu pescoço. Desesperada,
procuro por qualquer assunto que não sejam gatinhos fofinhos e crianças
prisioneiras. Preciso de algo que não nos sensibilize. Para ontem!

— Seu coração está disparado, minha querida. — Dominic sussurra no


meu ouvido e até mesmo desliza a ponta do nariz na pele sensível do meu
pescoço. — Seu cheiro é tão gostoso.

— É... hmmm... — Espalmo as mãos nos ombros dele e me afasto devagar.


— Então, ouvi dizer que amanhã um nobre programou atividades de lazer na ilha
dele. Eu gostaria de ir.

Mentira. Eu não tinha o menor interesse em ir, mas foi a única coisa que
cruzou a minha mente para me tirar dessa situação embaraçosa em que me enfiei
por conta própria. Será que um dia os meus impulsos não me colocarão em
enrascadas?

Dominic sorri ao notar a forma deliberada em que me distanciei dele com


um assunto completamente fora de contexto.

— Isso tudo é medo de me amar, Isabelle? — Fico perdida, sem saber


como reagir, menos ainda o que dizer. Ele ri e segura a minha mão, entrelaçando
os nossos dedos ao me guiar de volta para o palácio. Mas não sem antes mandar
que os guardas peguem os gatinhos. — Um descanso desses acordos exaustivos
com o Rei será muito bem-vindo. Entretanto, isso significa perder um dia de
negociação da liberdade das suas irmãs.

— Tudo bem. Elas estão seguras por ora. Além do mais, talvez com a
mente descansada surja uma ideia melhor para tratar com o Rei na próxima
negociação.

— Se é assim, então vamos nos divertir amanhã.

Assinto com um entusiasmo forçado. Vou perder também um dia de


exploração. Mas era isso ou me meter em uma baita enrascada.
As mulheres se espalham em grupos dispersos pelo imenso gramado, que
cerca a mansão situada em uma ilha inteira particular. Encontro um ou outro
homem entre elas conversando, mas a maioria deles está participando das
atividades a céu aberto. A que está em curso agora é uma corrida a cavalo.

Não entendo por que nenhuma delas se inscreveu para participar. Depois
de passar tanto tempo sobre o lombo de um cavalo nas minhas fugas do passado,
posso afirmar que não é algo que desperta o meu interesse, mas eu teria ido se
não fosse por conta do meu vestido.

Outra vez me arrependo de tê-lo escolhido para hoje, mas era a minha
última opção antes de começar a repetir as roupas. A primeira vez que me
ressenti da minha decisão foi quando Dominic me viu. Ele ficou mudo e não
disse nada.

Eu disse, diversas vezes a mim mesma, que não me importava de passar


vergonha com o meu vestido branco que possui um decote profundo nas costas,
com alças de pequenas pérolas traçadas em um “x”. É justo no quadril, mas abre
aos poucos ao longo das pernas para dar mobilidade até se arrastar em uma
pequena cauda.
Embora ele não tenha falado nada, assim que entramos na diligência,
Dominic pegou a minha mão do meu colo e colocou sobre o dele e não me
deixou soltar nem para coçar o nariz! Com isso, percebi que ele está se sentindo
mais à vontade e desinibido para me tocar, mas foi a primeira vez que me
segurou, ouso pensar, de forma possessiva. Fiquei quieta sem saber como reagir
diante a situação inusitada e engoli o desconforto uma vez mais quando
descemos na tal ilha.

Todas as mulheres, incluindo a Rainha, me olharam como se me


medissem. Não foi legal, mas não foi nada que me abalasse como estou ao
perceber que vou deixar de participar de um tanto de atividade divertida por
conta do meu vestido branco.

A minha escolha foi infeliz, mas há uma porção de mulheres que estão de
vestidos possíveis de montar.

— Por que nenhuma de vocês se inscreveu para a corrida? — pergunto


para uma nobre ao me aproximar da mesa em que ela se serve. Pego uma taça
com um líquido rosado e ela se engasga com o bolinho que comia. — Desculpa.
— Dou batidinha nas costas dela. — Não quis te assustar.

— A-Alteza... — ela arregala os olhos castanhos lacrimosos, por conta do


acesso de tosse.

— Aqui. Bebe isso. — Estendo a ela a minha taça depois de dar outras
batidinhas em suas costas, que não funcionam. A mulher de pele marrom claro, e
finos traços do rosto, bebe em goles pequenos até passar. — Dá próxima, faço
um som avisando a minha aproximação.

— Perdão por isso, Alteza. — Ela sorri e noto o quanto é linda.

— Então, por que nenhuma de vocês se inscreveu, lady...

— Myra — ela se apressa em dizer.


— Prazer, Isabelle. — Sorrio para a lady Myra, que faz uma breve
curvatura. Ergo uma sobrancelha quando ela fica me olhando como se tivesse
perdido algo em mim.

— Perdão. — Ela balança a cabeça para os lados como se recobrasse os


sentidos. — Tradição, imagino.

— Tradição de deixar os homens com a parte divertida enquanto as


mulheres ficam presas em fofocas? Que chato!

— Temos uma aparência a zelar. — Lady Myra encolhe os ombros.

— Montar a cavalo não irá borrar o seu batom. E, diferente do meu, o seu
vestido é completamente possível de montar.

— Eu teria medo.

— Hmm... — Pego uma outra taça, já que ela ficou com a minha, e dou
um gole no líquido saboroso. — Qual a próxima atividade?

— Arco e flecha. Quem acertar o maior número de alvos, vence.

— Dessa eu posso participar. — Abro um sorriso e ela arregala os olhos.

— Vossa Alteza irá participar?

— É claro que vou! Por que eu não iria?

— E não tem medo de ficar com as mãos calejadas?

— Humpf! Duvido ficarem mais do que já são. — Sem conseguir se


conter, ela baixa o olhar para as minhas mãos. Ao perceber que notei a direção
do seu olhar, ela fica sem graça. Estendo a mão para ela avaliar. — Não ligo nem
um pouco.
— São discretos. — Ela desliza os dedos sobre meus calinhos que
diminuíram com a minha falta de treinos. — Mesmo assim, o príncipe não se
importa?

— Se ele achar ruim, o problema é dele, não meu. — Dou de ombros. —


Eu que não iria deixar de treinar por medo de um homem não gostar das minhas
mãos. E óbvio que não vou deixar de me divertir pelo mesmo motivo.

Ela me avalia dos pés à cabeça. Diferente das outras observações que
peguei na minha direção, a dela é contemplativa e não ameaçadora.

— É por isso que o príncipe se encantou e nunca mais quis saber de outra
dama. — Busco com o olhar pelo Dominic, que está socializando em algum
lugar por aí. — Não me refiro a este príncipe e sim àquele.

Lady Myra aponta discretamente na direção do grupo dos homens que


descem dos cavalos e voltam para a festa. Áquila está sério, mas um nobre
estampa um sorriso ao dar batidinhas no ombro dele. Não preciso nem perguntar
para saber que ele venceu a corrida, embora não comemore a vitória.

Nossos olhares se encontram e minha boca resseca. Quanto a ele, um


sorriso preenche seus lábios e o seu olhar, faiscando de emoção, desce
languidamente pelo meu corpo.

— Preciso ir. — Afoita, coloco a taça de volta na mesa. — Vou... Ali... Me


inscrever. Isso! Não sei para quem dou o meu nome. Vou procurar.

Lady Myra volta a atenção do Áquila para mim e posso jurar que vejo
trespassar no seu rosto um misto de tristeza.

— Claro, Alteza.

Saio apressada antes que o Áquila faça qualquer movimento em minha


direção. Fujo das vistas dele enquanto realmente procuro saber das próximas
atividades para me inscrever.

O senhor, responsável pelo torneio, não faz uma expressão muito contente
quando mando colocar o meu nome para a disputa do arco e flecha. Pelo menos
ele é esperto e não discute comigo.

— E eu aqui pensando em te pedir para torcer por mim quando você está
tramando competir comigo. — Me sobressalto com a aproximação do Dominic.

— Seremos adversários, príncipe — brinco.

— Apenas neste cenário. Mesmo assim, depois de mim, irei torcer por
você.

— Desculpa, mas não vou torcer por você não. Sou altamente competitiva.
Dou um braço para não entrar em uma briga e um corpo inteiro para não sair de
uma depois que entro.

Ele solta uma risada, provavelmente achando que sou espirituosa. Mas
falei sério e se o Oclan estivesse aqui saberia disso. Só não sou uma pior
adversária em competições do que ele, que já deixou de falar comigo por levar
uma sova em jogos de baralho.

O sorteio dos nomes é feito para tirar a ordem dos participantes e o nome
do Áquila sai primeiro do que o meu. Lanço um olhar para ele que revida com
um sorriso discreto.

Dois nomes depois e é o meu o anunciado. Ouço murmúrios de espanto


vindos da plateia, mas o Guerreiro não demonstra surpresa. Outros nomes são
anunciados e então o Dominic.

Os competidores se reúnem perto do juiz que explica as regras. Serão três


rodadas de eliminação. Na última, o mata a mata entre o primeiro colocado e o
segundo da segunda rodada. Evito olhar para o Áquila quando ouço isso. Nem
por um segundo pensei que me sentiria nervosa, mas fico ao perceber que sinto
uma necessidade tremenda de provar algo a ele. Acho que por ser ele a razão por
eu saber segurar um arco e flecha para começo de conversa.

Na primeira rodada, Áquila acerta o centro de todos os alvos. Os


participantes que foram antes dele ficam arrasados e os que vão depois
temerosos, inclusive eu.

Não acerto todos os centros como ele, mas também não erro nenhum alvo.
Isso me garante participar da segunda rodada. Dominic também tem um
desempenho melhor do que o meu e termina a primeira partida bem colocado.

Na segunda rodada, novamente Áquila acerta todos os alvos com uma


precisão e velocidade ainda mais desconcertante. Um coro feminino é ouvido
quando o Guerreiro se afasta para dar lugar ao próximo participante. Lanço um
olhar por sobre o ombro e noto o aglomerado de fãs que se formou por causa
dele.

Fala sério! Reviro os olhos.

Abstraio dele com seu barulhento fã clube feminino e me concentro na


competição. A vez do Dominic chega e o observo com aflição. Preciso que
Dominic vá mal para que eu me classifique para a última rodada. Mesmo
sabendo disso, não consigo torcer contra como faria se fosse com o Oclan.

Depois do Áquila, Dominic é o que se sai melhor. Além disso, os


competidores que vão entre ele e eu, não tem um desempenho nada digno de
nota.

Áquila cruza o olhar com o meu quando o nobre que me antecede caminha
para o último alvo.

— Você consegue. — O Guerreiro movimenta os lábios para que eu faça


leitura labial, me encorajando. Assinto, grata pelo apoio.
Áquila e Oclan me treinaram para que eu fosse tão boa quanto eles.
Respiro fundo e me posiciono em frente ao meu primeiro alvo.

Esvazio a mente e automaticamente é como se todos os sons fossem


abafados. O arco, a flecha e eu nos tornamos apenas um. Sem hesitar, nem me
delongar demais, solto a corda e a primeira flecha acerta o alvo com a ponta
colada à flecha do Áquila.

Minha torcida não é tão grande quanto a do Guerreiro, mas ouço algumas
vibrações de comemoração. Como fui ensinada, não me deixo entrar na onda e
ser levada por essa euforia. Com a mesma concentração, parto para o outro alvo.
Nos dois últimos, não acerto o centro, mas chego próximo de acertar.

Áquila me dá uma piscadela quando fico em segundo lugar e sorrio mesmo


sabendo que as minhas chances de ganhar dele na última rodada são nulas.

— Não me deixe vencer. — Movimento os lábios para que ele faça leitura
labial como fez comigo.

— Eu sempre ganho.

Reviro os olhos ao entender do que está falando, e não é da partida. Áquila


está reafirmando que irá vencer a minha teimosia, como me ameaçou no baile.

Um toque no meu ombro me faz pular de susto e quebrar o meu contato


visual com o Guerreiro.

— Você me fez comer lama. Que afronta! — Dominic aproxima os lábios


do meu ouvido e sussurra com a voz carregada de diversão.

Os silvos rápidos de flechas sendo disparadas me separa dele. Em questão


de segundos, Áquila acerta todos os alvos. Nada contente com uma óbvia vitória,
o Guerreiro sai para que eu faça os meus arremessos.
Também nada contente ao ganhar o segundo lugar depois de atirar todas as
minhas flechas, volto para a festa em busca de uma bebida refrescante. Paro a
taça no meio do caminho até os lábios quando um corpo masculino glorioso
encosta na lateral da mesa, perto demais do meu lado esquerdo.

— Você bem que poderia facilitar e parar de lutar contra o inevitável. No


entanto, quando é mesmo que você facilitou para mim, Belle? Está na cara o seu
esforço para não afastar o seu noivo em público quando ele te toca. Eu sei que é
porque o que você sente é vontade de que seja outro homem te tocando. — A fim
de pensar em uma boa resposta para dá-lo, dou um gole considerável no líquido
rosado. Acho que para provar um ponto, Áquila toca de leve a pele desnuda da
minha cintura e reteso cada músculo do corpo. — Está gostoso?

— Áquila! — Arregalo os olhos e quase engasgo como a lady Myra mais


cedo quando me aproximei dela feito um assaltante.

— A bebida, Belle. O que pensou que eu me referia? — Ele abre um


sorriso de lado.

Descubro o que fazer e é sair sem dar nenhuma resposta que o Guerreiro
provocador merece. Acontece que ele me conhece bem demais e age mais rápido
ao estender o outro braço por minhas costas até pegar uma taça do meu outro
lado. Claro que seria mais prático estender o braço pela mesa, à minha frente,
mas dessa forma seu peitoral não resfolegaria nas minhas costas nuas.

Ele leva a taça aos lábios, com um brilho de diversão nos olhos ao me ver
muda diante a ousadia dele. Um segundo depois e Dominic ocupa o meu lado em
que o Áquila acabou de pegar a bebida.

— Áquila. — Dominic o cumprimenta em um aceno brusco.

— Dominic. — O Guerreiro também revida de forma hostil, sem qualquer


traço de diversão que exibia a apenas poucos segundos.
— O bom de vocês dois serem primos é que não falta pontos de partida
para se conhecerem melhor. Com licença. — Deixo minha bebida para lá e
seguro a saia do vestido para sair o mais rápido possível de perto dos dois.

E pensar que tudo o que fiz até hoje foi para me defender. Mesmo assim,
caí nessa arapuca, como se diz o Áquila, dos infernos!

— Creio que o ego de Vossa Alteza esteja muito bem alimentado ao ter
dois belos homens disputando a vossa atenção.

Aperto os dedos contra os punhos, pronta para dar uma má resposta na


mulher encrenqueira que não sabe do que está falando. Viro de frente para dizer
umas poucas e boas e me calo subitamente ao perceber que é a Rainha.

— Majestade. — Faço um cumprimento formal rápido. — Lamento


decepcioná-la, mas meu ego não sente nenhuma satisfação quando tudo o que
penso são nas minhas duas irmãs feitas reféns neste reino.

Sustento seu olhar austero. É nítido a animosidade que ela sente em relação
a mim. Como se eu me importasse, uma vez que também não vou muito com a
cara dela.

— Sente-se comigo, Viajante.

Ela não espera por uma resposta. A Rainha simplesmente me dá as costas e


conta que a seguirei. Faço isso não por querer e sim por me ver sem opção.

Assumo a poltrona mais distante na área da Rainha. A princípio, fico


contente por ter todas as damas de companhia dela entre nós e mais algumas
nobres, que imagino serem próximas da monarca. Dentre elas estão Heloise, a
mãe e lady Myra.

— Não irei admitir que Vossa Alteza coloque o meu filho contra o meu
sobrinho. Se não parar agora mesmo de brincar com os sentimentos de dois
homens, enfeitiçados pelo charme de uma mulher ardilosa, serei obrigada a
intervir.

— Perdão? — A encaro reprimindo a vontade de soltar uma risada jocosa


enquanto todas as outras mulheres caem em um silêncio tenso ao nos observarem
com apreensão.

— Sei que foi possível me ouvir com clareza. Não entrarei nem mesmo na
questão de se tratar de um conflito que pode evoluir em uma disputa entre o
Reino do Norte e Yerus. Áquila precisa de uma dama ao lado dele, não alguém
do seu tipo. — De forma discreta, a Rainha lança um olhar por sobre a xícara
para a mulher gentil que conheci mais cedo. — Alguém como a primeira dama
que o meu filho escolheu para dançar assim que ascendeu ao título de príncipe.

Lady Myra abre um sorriso discreto que desaparece quando nota o meu
olhar avaliativo sobre si. Ela até mesmo baixa a cabeça. Então foi mesmo tristeza
o que vi quando ela olhou do Áquila para mim. Lady Myra está apaixonada por
ele.

Ao longe, observo o Áquila desviar de três mulheres que tentam cercá-lo.

Como não liguei os pontos antes? Áquila é altamente cobiçado pelas


nobres de Yerus. Algo me diz que foi assim desde que ele voltou para o palácio,
depois da nossa primeira separação em Salavinder, porque duvido que seja efeito
do boato de que o Rei fez dele o próximo na linha de sucessão ao trono. Também
não acredito que seja porque o Rakar está fora do mercado matrimonial, uma vez
que em breve irá se casar com a irmã do Dominic.

Ótimo! Simplesmente ótimo! Será mais fácil para ele me esquecer assim
que eu me for, uma vez que opção não faltará.

— Quando se trata do bem-estar do meu filho, irei o mais longe possível.


— A Rainha me desperta dos meus devaneios. — Esteja avisada, Viajante.
— O filho que Vossa Majestade deu como morto quando ele mais precisou
da proteção de uma mãe? É a este filho que se refere?

Até mesmo o som de um alfinete caindo seria capaz de se ouvir enquanto


nos medimos, uma vez que a nossa plateia cai em um silêncio tenso. Quanto a
Rainha, é nítido que alcancei o ápice do ódio que sente por mim. O que ela não
sabe é que não chega nem perto do que eu sinto em relação a ela desde o dia em
que o Áquila me contou sobre o passado dele e isso quando não éramos nada um
do outro.

— Não que eu te deva qualquer satisfação do que faço da minha vida, mas
tudo o que fiz até hoje foi procurar meios de me defender, visando também a
liberdade das minhas irmãs, prisioneiras do vosso reino. Sei que não me pediu,
mas lhe darei um conselho. Antes de apontar um dedo na minha direção, lembre-
se do mal que causou de forma deliberada ao próprio filho e a indiferença com
que trata o sobrinho. Dominic e eu estamos noivos e essa conversa é uma afronta
a ele e a mim ao insinuar que estou usando artimanhas para seduzir outro
homem!

— Escreva o que vou te dizer. Os seus dias de princesa estão contados,


garota. — A Rainha crispa os lábios e até mesmo inclina o tronco para frente.

— Nisso concordamos, Majestade. — Os olhos dela faíscam,


provavelmente pensando que me refiro que logo assumirei a posição de rainha.
Não podia ter errado mais! — Com sua licença, há um assunto que preciso
discutir com urgência com uma mulher como a Heloise. O tipo que não se
intimida e procura meios de defender a família mesmo em solo inimigo.

— Como ousa me afrontar no meu território, sua insolente?! Eu vou...

— O que foi que uma vez eu te disse, Heloise? — pergunto para a garota
sem desviar o olhar da monarca ao interrompê-la de forma impertinente.
— Não comece uma guerra se não estiver disposta a ir até o final? — A
voz da Heloise quase não passa de um sussurro ao perguntar ao invés de afirmar.
Assim que ela termina de falar, a mãe dela a repreende e a ordena não se
envolver.

— Por favor, Vossa Majestade, termine a ameaça que começou a me fazer.


— Inclino o queixo e desafio a monarca.

Os dois soldados cobrindo a segurança da tenda dela, dão um passo para


frente, em uma ameaça. Volto o olhar deles para ela e ergo uma sobrancelha.
Com uma veia saltando da testa, ela faz um gesto para eles se afastarem.

— Eu me lembrarei deste dia e declaro perante todas essas testemunhas


que jamais perdoarei essa sua afronta!

— Não estou, nem nunca estarei, à procura do vosso perdão. — Paro em


frente a Heloise, sentada ao lado da mãe. Agoniada, a loira mais velha entreolha
entre a Rainha e eu, provavelmente ponderando se mantém a filha no lugar ou se
permite que venha comigo. — Heloise, a decisão é sua. Não olhe em busca do
consentimento da sua mãe se quiser saber novidades sobre a Hanna.

A garota não olha para ninguém enquanto fica em pé no mesmo segundo.

— Com licença, Vossa Majestade. — Visivelmente trêmula, ela faz uma


breve mesura.

Para facilitar, trespasso meu braço ao dela e nos guiamos para fora da área
da Rainha. Sei que é para poucos enfrentar uma mulher como a Rainha e
reconheço a coragem da Heloise por se levantar e me acompanhar.

— Se ela se voltar contra você, quero que venha imediatamente até mim.
Eu mesma vou lidar com aquela megera. Magnólia me ensinou como combatê-
los sem perder a cabeça em uma guilhotina.
— Obrigada? — A garota me pergunta abobalhada.

Respiro fundo a fim de me recompor. Controlo a raiva que sinto de toda a


família do Áquila e aperto a mão gelada da Heloise contra o meu antebraço.

— Quero mesmo te atualizar sobre a sua irmã. Ela me fez prometer que
viria pessoalmente falar com você.

— Vossa Alteza está tratando diretamente com a Hanna?

— É claro que estou! Ela é uma garotinha que foi separada da irmã. Ontem
mesmo fui com o Dominic levar um filhote de gatinho para que ela esquecesse
um pouco a falta que sente da família. Hanna ficou muito feliz.

Heloise para de caminhar e aperta meu braço em um pedido para que eu


faça o mesmo. Volto o olhar para ela e noto seus olhos rasos d’água.

— Vou pedir ao meu pai para proporcionarmos o mesmo conforto para as


suas irmãs.

— Agradeço, porque não gosto de lidar com o seu pai. Ele me lembra
muito a sua... Enfim.

— É o mínimo que posso fazer. Se precisar de algo mais, é só me pedir que


darei um jeito de conseguir.

— Você é capaz de persuadir o seu pai?

— Como ninguém! — Heloise abre um sorriso enorme em resposta.

— Então eu que te agradeço. Vamos tratar diretamente sobre essas


questões. Você e eu.

Despeço-me da Heloise para poder lamber as minhas próprias feridas sem


ninguém por perto. Entro na mansão e encontro uma biblioteca confortável para
ficar sozinha.
— Aposto no meu príncipe. — O soldado do Áquila joga uma moeda de
prata no ar.

O soldado do Dominic e eu trocamos um olhar e então o encaramos com


cara de poucos amigos.

— É claro que não vamos apostar contra o maior Guerreiro dos últimos
tempos — o soldado do Dominic blasfema.

— Maior Guerreiro dos últimos tempos?! — Feito um coice de cavalo,


volto o olhar na direção dele. — Quem foi o imbecil que inventou isso?

— Ela sente inveja do seu príncipe. — O soldado do Dominic aponta o


polegar na minha direção. Estou pronta para dar um murro forte no ombro dele,
que é esperto e se afasta enquanto lança uma moeda de ouro no ar. — Uma
moeda de ouro que o meu príncipe fica em segundo lugar.

— Há! Aposto duas na minha princesa. — Cruzo os braços e abro um


sorriso satisfeita.
— Aposto até cinco nela! — O soldado do Áquila, o grande apostador, fica
eufórico. Lanço a ele um olhar indagador. — Ela foi treinada pelo maior
Guerreiro dos últimos tempos. É claro que vai levar essa.

Volto a discutir a alegação mais falsa que existe enquanto a minha previsão
e a dele não erra. Isabelle fica em segundo lugar na competição de arco e flecha
da festa mais insuportável que já fui obrigada a cobrir a retaguarda dela.

Céus! Tenho certeza de que todas as pessoas mais fúteis de todos os reinos
estão concentradas nesta ilha. O tédio, de observá-los enquanto ficamos ao
longe, fazendo a segurança das nossas respectivas realezas, estava beirando a
insanidade.

O pior é que nem o nosso serviço temos como fazer, uma vez que há
guardas cobrindo a ilha de ameaças externas e não podemos nos juntar a eles.
Também não podemos circular no meio dos nobres. O que nos restou foi
ficarmos parados a uma distância observando Isabelle, Dominic e o Áquila.
Desnecessário, uma vez que se algum desses nobres fúteis forem idiotas de
atentarem contra qualquer um deles, eles conseguem lidar com a ameaça antes
que qualquer um de nós três dê dez passos na direção deles.

O soldado do Dominic e eu nos damos bem, uma vez que já servimos


várias vezes juntos. Quanto ao do Áquila, ele se aproximou para não ficar
sobrando e veio com essa de apostas.

Acho que o meu companheiro de missão e eu pensamos o mesmo:


enquanto a Isabelle, Dominic e Áquila estiverem em paz, não tem por que a
gente se voltar um contra o outro. Porém, se qualquer coisa mudar entre eles,
instantaneamente nos transformaremos em inimigos.

Apreensivos, nós três observamos o Áquila se aproximar da Isabelle. Um


pouco distante, porém atento aos seus arredores, Dominic nota o mesmo que nós.
Automaticamente, abrimos um espaço entre a gente, já prevendo o pior.
Os dois príncipes e a princesa ficam juntos, com vários pares de olhos
sobre eles, incluindo os da Rainha. Porém, eles parecem não notar nada do que
acontece na festa. Por um instante, penso que a situação vai ficar séria. Até que a
Isabelle segura a barra do vestido e larga os dois sozinhos.

— Eles vão brigar. — O soldado do Dominic exala.

Não desvio a atenção para ninguém, uma vez que estou altamente
preocupada com a aproximação da Rainha da Isabelle.

— Alerta falso. — O soldado do Áquila volta a relaxar e até mesmo se


aproxima de nós novamente. — Mas aquilo sim é preocupante, Guerreira.

— Eu sei. — Fico atenta à Isabelle ao acompanhar a Rainha até a tenda


dela.

— Não gosto nada disso. — Enrugo o nariz e fico absurdamente atenta. —


Ei! Pare de respirar no meu pescoço. — Dou um safanão no soldado do Dominic
ao ficar em cima de mim e me atrapalhar.

— Se acontecer algo, também devo ir até ela. — Ele se justifica.

— Somos três então. — O soldado do Áquila flanqueia meu outro lado


livre.

— Não me interessa a ordem que os dois receberam. Não se metam no


meu caminho. — Dou um passo para frente e me afasto deles.

Nós três prendemos a respiração ao notar que a situação parece ficar


altamente crítica. Os homens da rainha dão um passo à frente e no mesmo
segundo faço menção de correr na direção da Isabelle. Dois pares de mãos
agarram ambos os meus pulsos e me puxam para trás.

— Ainda não! A Isabelle precisa dar o sinal. — O soldado do Dominic me


repreende.
Faço menção de me livrar do aperto dos dois imbecis, mas o soldado do
Áquila é mais rápido e me dá uma chave de braço quando quase consigo.

— Guerreira indisciplinada dos demônios! Bem que fui avisado da sua


cabeça quente. Nós não podemos interferir até eles darem qualquer sinal.

Antes que eu grite nas fuças dos dois soldados mais incompetentes com
quem já fui pareada, a Isabelle sai da tenda de cabeça erguida com a Heloise de
braços dado a ela.

— Viu só? Esquentadinha! — O soldado do Áquila me solta seguido do


soldado do Dominic. — Você precisa aprender a confiar na pessoa para quem
serve.

— Olhe aqui, seu insolente saído direto das labaredas do inferno! Só não
esfrego agora mesmo a cara dos dois na terra, porque tenho que ir atrás dela.

— Eu não vi nenhum olhar na nossa direção te chamando para segui-la. —


O soldado do Dominic cruza os braços na altura do peito.

— Cuide do seu príncipe que da Isabelle cuido eu.

— Além de indisciplinada é grudenta! Tenho dó da princesa. — O soldado


do Áquila exala e o do Dominic ri.

Ergo as mãos no ar e mostro os dois dedos médios para eles enquanto vou
na direção da mansão em que vi a Isabelle desaparecer.

Com a bunda na beirada do assento, a cabeça jogada de forma displicente


sobre o encosto e um dos braços cruzados sobre os olhos, encontro a Isabelle
esparramada em um dos sofás da biblioteca. Uma posição nada majestosa.
— Isabelle! Isso são modos? Imagina se qualquer outra pessoa que não
seja eu entre aqui e te encontre desse jeito?

— Um minuto. — A voz dela sai baixa.

— Um minuto para quê?

— É o tempo que você levou ao me ver escapar e vir atrás de mim.

Por um segundo, penso em dar uma resposta atravessada a ela, porque é


minha obrigação protegê-la, quer ela goste, quer não. Mas paro. Isabelle não me
parece bem.

— Você está passando mal? A Rainha fez algo? Tentei intervir quando
ela...

— Ainda bem que você teve o bom senso de não interferir ou a situação
teria ficado realmente séria — Isabelle diz sem qualquer traço de emoção na voz.

— Claro — concordo mesmo sabendo que se não fosse pelos soldados do


Áquila e do Dominic, eu a teria prejudicado sem querer. Fico me sentindo mal
por perceber que eles tinham um ponto válido. Eu não confio nela.

A justificativa que me dou é que a Isabelle não é nada como as pessoas que
eles protegem. Dominic é o tipo que evita o caos por meio de uma pena, tinta e
papel. Áquila é do tipo que guerreia para acabar com o caos quando ele se
instaura. Isabelle é o tipo que cria o caos. Não dá para comparar. A minha
missão é infinitamente mais desafiante do que a de qualquer soldado de outra
pessoa da realeza.

Fico desarmada ao ver a Isabelle visivelmente mal. Mesmo sabendo que é


altamente perigoso, preciso dar um voto de confiança a ela. Então, sem tocar
mais no assunto, sento-me ao seu lado e imito sua posição relaxada.
— Obrigada. — Ela sussurra ainda sem me olhar, uma vez que continua
com o braço sobre os olhos. — Você não tem ideia do quanto eu gostaria de
viver esses últimos dias um pouco mais livre. Parece bobagem, mas me sentar
assim me trouxe um certo tipo de conforto.

Viro a cabeça para ficar com o rosto virado de frente para o perfil dela.

— Últimos dias? — Franzo o cenho. — O que isso significa?

— Últimos dias em Yerus. — Percebo o cuidado com que ela escolhe cada
palavra.

— Por que no Norte você não vai ter liberdade? — Os segundos se


arrastam enquanto fico sem uma resposta. — Isa, o que está aconte...

— Acho que o Kaká iria adorar essa biblioteca. — Ela me interrompe ao


baixar o braço e relancear um olhar para as prateleiras abarrotadas de livros.

Carlos Eduardo era um rato de biblioteca. Não uma, nem duas vezes, tive
que arrancá-lo das bibliotecas de Lufstar. Ele sempre estudava sobre todas as
monarquias, principalmente a linhagem da Isabelle. Porém, desde que chegamos
em Yerus, nunca mais o vi com um livro na mão que fosse.

— Hã... Imagino que no passado sim, mas ele parou de ir às bibliotecas. —


Sento direito no sofá e a encaro de cima, que não me olha de volta, uma vez que
encara o nada. — Ainda bem que tocamos neste assunto, porque já faz tempo
que queria te perguntar sobre a missão dele. Você pediu ao Carlos Eduardo para
pesquisar sobre a lenda dos seus antepassados, não é mesmo? Ele parou porque
encontrou algo?

Isabelle fica dura ao meu lado. Acho que até mesmo para de respirar.

— Não acredito que o meu irmão traiu a minha confiança e te contou sobre
essa missão. — Pela primeira vez desde em que entrei aqui, ela me lança um
olhar, e um cortante ainda por cima.

— Ele não me contou — me apresso em dizer para não colocá-lo em


apuros. — Mas é óbvio que eu iria descobrir. É a minha missão saber das coisas
que te envolvem.

— Por isso você está aqui, quase sentada em cima de mim.

— Não vou pedir desculpas, Isabelle. Você sabe muito bem que não pode
ficar sozinha.

— Às vezes eu só preciso de um tempo para respirar, Tina. Você não ouviu


as coisas horríveis que a Rainha me disse. Aquela naja me acusou de ser uma
sedutora de quinta categoria que está colocando o Áquila contra o Dominic, e
isso na frente de todas aquelas mulheres! Ainda insinuou que estou causando
atrito entre dois reinos por ego! Precisei me afastar para assimilar que desafiei
uma Rainha no próprio território dela quando me deixei ser levada por meus
impulsos de me defender.

— Ela fez o quê?! — Minha mente fica branca e o meu sangue ferve. —
Isso não pode ficar assim. Eles te perseguem desde o seu nascimento, tentam te
matar, sequestram as suas irmãs, e ainda por cima te acusam de criar
instabilidade entre dois reinos quando você finalmente compreendeu a situação e
procurou um príncipe com meios de te defender quando tudo o que o príncipe
deles fez foi te machucar igualzinho a eles? Ninguém daquela família presta! —
exalo, revoltada.

— O Áquila não é como eles, Tina. — Ela franze o cenho com raiva para
mim. — E ele não me machucou.

— Discutível para a primeira e mentira para a segunda. Não uma, nem


duas vezes, o Áquila escolheu lutar pelo reino dele ao invés de ficar ao seu lado
como eu fiquei.
— Nem sempre você ficou ao meu lado. — Abro a boca escandalizada e
Isabelle se adianta. — Eu não me importo com os nossos erros do passado. Você,
Áquila e eu erramos tentando acertar. Isso é o que importa. Mas eu quero saber
por que você o odeia tanto.

— Eu não o odeio, apenas não o tolero.

— E por que não?

— Você foi treinada pelo mesmo Guerreiro que treinou o meu pelotão? Ah,
não. Esqueci que o treino de vocês envolvia beijos.

— Me deixe em paz, Tina.

Algo na voz dela causa um aperto estranho no meu estômago. Mágoa. Fui
longe demais e a magoei para valer.

— Perdão, Isa. É que a prepotência dele me irrita e você sempre o defende.

— Nunca vi o Áquila se vangloriar dos feitos dele, Tina.

Solto uma risada amarga.

— Viu só? Você sempre o defende! — A acuso e espero que Isabelle


revide com raiva, ao invés, seu rosto fica sereno.

— Já parou para pensar que talvez o problema que você acha que tem com
ele, na verdade, é um problema interno seu?

Aperto os olhos para ela e meus lábios viram uma linha fina e rígida.

— Isabelle, já te pedi desculpas e não quero continuar nesse assunto ou


vamos brigar feio. A minha percepção dele é completamente diferente da sua.
Podemos concordar nisso.
— Vamos mesmo deixar esse assunto para lá. Estou exausta. — Ela solta
um suspiro profundo e cruza os braços na altura do peito.

Observo as pontas das minhas botas lamacentas em contraste com as


sandálias de tirinhas e saltos finos dela. Prefiro morrer a estar no lugar da
Isabelle. Não me admira ela ter se jogado sem cerimônia no sofá depois de ter
aturado a naja da Rainha e ainda por cima sobre essas coisas o tempo todo.

— Acho que o Dominic precisa saber o que aconteceu com a Rainha. —


Sugiro com cuidado.

— Dominic está feliz. Deixe-o aproveitar a festa.

— E quem se preocupa com a sua felicidade, Isabelle? — Bato a ponta da


minha bota na sola da sandália dela. — Quem se preocupa com o seu bem-estar?
Eu vejo o que ninguém parece enxergar. Há algo te consumindo viva! — Seus
olhos se enchem de lágrimas, mas ela não me encara mais. — O que está
acontecendo? É por causa dos dois que estão em cima de você como abelhas
sobrevoam o mel? Eu posso chutar a bunda deles. Príncipes ou não!

Sem que eu espere, Isabelle tomba a cabeça no meu ombro e sou obrigada
a recostar no sofá. Ela segura a minha mão entre as dela em seu colo.

— Estamos juntas agora e já sinto saudades de você, sua Guerreira bruta.

— Ah, pelos deuses! O que foi que o imbecil do Carlos Eduardo te disse?
— Ela dá de ombros. — Vou matá-lo por ter enchido os seus ouvidos! Não sei se
ele te contou tudo, mas vou repetir palavra por palavra do que eu disse a ele. Eu
não vou largar a sua Guarda para ficar com ele.

— Ah, bom — ela responde, incerta.

— Não vou te abandonar, Isabelle. — Reforço. — O seu irmão precisa


aceitar que o meu dever tem infinitamente mais importância para mim.
— Entendi. E desde quando vocês dois estão juntos?

— Nós não estamos juntos! Vou socar a cara dele por me atravessar ao ir
correndo te encher de mentiras.

— Coitado. Deixe o Kaká quieto. Ele é bonzinho.

— Ele é um palerma, é o que você quer dizer.

— Ele merece ser feliz. Além disso, fico aliviada por saber que o meu
irmão tem alguém como você na vida dele. E ele entende sim que cumprir com o
seu dever é importante. Então não é uma questão de escolha entre ser a minha
soldada ou a namorada do meu irmão. Você pode ser os dois.

Isabelle ergue a cabeça para sorrir para mim. Sorriso esse que não reflete
em seus olhos.

Paro um instante para analisar a nossa conversa inteira e fico confusa.


Tenho para mim que tomei algumas coisas não ditas como verdade. Porém não
tenho como saber exatamente onde vacilei e em que ponto exato a Isabelle me
manipulou.

Respiro fundo ao relembrar que a astúcia da Isabelle é o meu maior


adversário. É por isso que não posso baixar a guarda com ela e dar um voto de
confiança. Isabelle é uma ladra ludibriadora, pelos deuses!

— Isa, você está absurdamente melancólica. Não pode ser só esse embate
com a Rainha que te deixou assim. O que está me escondendo?

— Por que eu tenho que esconder algo, Tina? Não conseguir livrar minhas
irmãs dos domínios de um Rei manipulador, ter um dos meus soldados mais fiéis
preso e, ainda por cima, dormir sob o mesmo teto que abriga a assassina do meu
irmão não são motivos suficientes para me entristecer?

— Claro que sim, mas...


— Mas o quê?

— Tenho essa sensação estranha de que você está chegando a um limite.


Não me pergunte qual limite nem como sei disso. O que posso te afirmar é que
estou te assistindo ser consumida viva e estou ficando assustada, sem a menor
pista contra o que tenho que te defender!

Ela volta a cabeça para o meu ombro a fim de esconder a expressão de


mim. O silêncio se estende e sei que entrei em um caminho muito delicado.
Isabelle vem me trancando de fora da vida dela a algum tempo.

Parece que ficou no século passado a última vez que tivemos uma conversa
de amigas. Como sinto falta disso, tenho medo de assustá-la e que se feche outra
vez. Mas preciso sondar o que está acontecendo para saber como agir.

— Os pesadelos continuam, é isso? — pergunto com cuidado, morrendo de


medo de tocar no nome do Felipe e a Isabelle disparar a chorar. Não sei lidar
com lágrimas. Fico desesperada. Se acontecer, serei obrigada a sair correndo em
busca da ajuda do Dominic. Maldição! Sou capaz de ir até mesmo atrás do
Áquila para assumir a mais infeliz das missões. — Posso procurar um láudano
mais forte para que te ajude a dormir...

— Obrigada. — Ela aperta a minha mão.

— Não entendi. Quer que eu te arrume o láudano?

— Não. Obrigada por se preocupar comigo.

Ela me surpreende ao passar o braço ao redor da minha cintura e me


abraçar apertado de lado. Revido com vários resmungos, mas ela me vence pelo
cansaço e passo um braço de volta por cima do tronco dela.

— Você é minha ladra favorita. É claro que eu me preocupo.

— Amiga. Sou sua amiga favorita.


— Semântica, Isabelle — resmungo.
Acordo empapada de suor e me contorcendo inteira. Respiro pesadamente
e nem preciso tocar minhas bochechas para saber que estão molhadas de
lágrimas.

Os pesadelos tinham parado desde que Kaká e eu conversamos sobre o


Felipe. Culpo a conversa que tive com a Tina nesta tarde.

Fiquei tentada a contar tudo para ela na esperança de que me salvasse. Mas
então quem salvaria a Hortense? Como se eu já não estivesse me desmanchando
em um desespero interno, ela me perguntou se os pesadelos tinham voltado e
automaticamente revivi a morte do Felipe.

— Belle, você está bem?

Sinto um gelo percorrer minha espinha dorsal e, abruptamente, abro os


olhos a tempo de ver o Áquila se levantar da poltrona e dar passos decididos até
mim. Quando ele se aproxima o suficiente para ser possível notar que estou
assustada feito o inferno com sua presença no meu quarto, no meio da
madrugada, ele para.
Sento-me ereta, mas não sem antes puxar o lençol para me manter coberta.
Enxugo o rosto enquanto Áquila se esforça para manter o olhar no lugar certo.
Pelo menos ele está se esforçando, já é muito comparado com a observação
descarada que fez quando estávamos rodeados de pessoas. Duas vezes!

— Passou?

— Passou o quê? — Pisco várias vezes na tentativa de recobrar os


sentidos.

— O susto.

— Não estou acostumada a ter meu quarto invadido na calada da noite. —


Entro na defensiva.

Quando ele era meu treinador, já me chamou a atenção por muito menos.
Ser pego com a guarda baixa, mesmo enquanto dorme, é praticamente
considerado um crime para o Áquila. Mas Tina estava certa, ultimamente estou
mesmo muito cansada, então apaguei feito uma pedra e nem precisei do Oclan
acabar comigo em um treino para que isso acontecesse.

— Só porque é você quem se acostumou a invadir quartos na calada da


noite.

Ele alivia meu desconforto ao trazer luz para o dia em que invadi a torre
dele no meio da noite. Fico perdida naquelas doces recordações.

Áquila provavelmente nota que estou suscetível a ele ao trazer luz para um
momento bom do nosso passado, porque volta a se aproximar até se sentar na
beirada da cama.

O Guerreiro ergue o braço em uma menção de me tocar, mas então seu


olhar encontra com o meu e seu movimento paralisa no ar, sem encostar um dedo
sequer em mim.
— Estou preocupado com você, Belle. Esses pesadelos, quer me contar do
que se tratam?

Meu Deus! Como eu gostaria de me jogar nos braços dele na esperança de


que me trouxesse o mínimo de conforto possível. Mas não é apenas o Felipe. É
principalmente a Hortense e o Áquila não dividiria o fardo comigo. Ele me
impediria de sequer ficar aqui em Yerus e então o tormento daquela pobre alma
continuaria eternamente.

Além dessa questão grave, há também Dominic. Eu prometi a ele que as


coisas entre o Áquila e eu terminaram. Não vou cometer o mesmo erro duas
vezes. Então finjo ser forte na esperança de mascarar a vulnerabilidade que sinto.

— O que você está fazendo no meu quarto, Áquila?

— Vim para te levar até as suas irmãs. Estou ciente dos planos do Rei e ele
não pretende te deixar vê-las tão cedo.

Pisco lentamente, atônita. Por essa eu não esperava. O Áquila querendo me


ajudar, mesmo depois da forma como o estou afastando deliberadamente.

Relembro das minhas suspeitas das indiretas que o Rei vem jogando aqui e
ali. Aquele ardiloso está tentando dar a entender que tudo que o Áquila fez por
mim, na verdade, eram ordens vindas dele.

— Por um acaso esses planos têm a ver com você? — Aperto os olhos.

— Me envolvem, sim. — Áquila pigarreia, desconfortável.

— O Rei não quer que esse encontro ocorra a pedido do Borys. Menos
ainda do Dominic. — O Guerreiro se mantém calado, porque raramente se
explica, mas não precisa. Sei que estou certa. — Ele quer que ocorra por meio
dele ou, melhor, por meio de você.
— Não vim a mando dele. Inclusive, este encontro terá que ser mantido em
segredo.

— Mantido em segredo dele porque não quer que eu acredite quando o Rei
dá a entender que a sua aproximação de mim foi cumprindo ordens dele. Se ele
souber, irá usar esse encontro, que está tentando me arrumar com as minhas
irmãs, para os fins dele. — O Guerreiro sela os lábios e simplesmente me encara.

Áquila não vai se justificar, mas sei que estou certa. Assim como sei que o
Rei está usando o nome dele em mentiras.

— Não que você esteja preocupado no que penso, mas não acredito nele
nem por um segundo. Aquele homem odioso pode mentir o quanto for com o seu
nome que não caio nessa. — Um leve arquear de sobrancelha é a resposta que
preciso de que o Guerreiro ficou surpreso. — Eu estava lá, Áquila, quando você
estava a ponto de ficar louco por me amar sabendo que eu era a maior ameaça ao
reinado do seu Rei. A sua luta de descobrir o que fazer, se seguia o seu coração
ou a sua honra, foi uma das maiores dores que já enfrentei na vida. E você sabe
disso, porque me viu colapsar no seu colo e aquilo não aconteceu apenas por
causa da descoberta de que os meus irmãos não eram meus irmãos de sangue.

— Se durante todo esse tempo você acreditou em mim, por que está me
rejeitando? Pensei que fosse esse o motivo para continuar o escolhendo ao invés
de voltar para mim. — Desvio o olhar e engulo o nó na garganta. Áquila segura
as minhas mãos e as aperta. — Você o ama? — Ele pergunta em um esforço
tremendo.

— Esse tipo de amor só tem espaço para um. Pelo menos, para mim é
assim.

— Então é o quê? É medo de que o Rei te faça mais mal do que já fez? Se
for, posso te assegurar que o meu valor neste cenário mudou drasticamente desde
o nosso encontro no meu palacete. Atualmente, sou capaz de te oferecer bem
mais do que o Dominic. Você estará sob a minha proteção. Para sempre.
Ninguém poderá te tocar. E não precisa me prometer nada em troca.

Dominic é cativante e uma das pessoas mais fáceis de se amar que já


encontrei. Se eu não soubesse o que o futuro me reserva, nós teríamos chance de
termos um casamento como os pais dele. Isto é, se eu nunca tivesse conhecido o
Áquila. Porém, diante da minha realidade, estou com o Dominic por lealdade e
rejeito o Áquila por amor, uma vez que não vou ficar com ninguém, mas vou
cumprir com a minha palavra até onde for possível.

Fico em pé e dou as costas ao Guerreiro, encerrando o assunto. Faço


menção de pegar um manto escuro com capuz, que está mais perto dele do que
de mim. Áquila é mais rápido, o alcançando primeiro ao mesmo tempo em que
indica que não irá insistir na questão. Pelo menos, por ora.

Ele também fica em pé e vem até mim, me ajudando a me vestir, comigo


virada de frente para um espelho de corpo inteiro. Quando o manto se ajusta em
meus ombros, ele desprende meus cabelos das costas. Nossos olhares se
encontram no reflexo.

— Então você é capaz de se ver — Áquila diz com ternura ao deslizar um


dedo sobre o meu rosto, dando a entender que estou bonita.

Desvio o olhar e fecho o manto com firmeza enquanto dou um passo para
o lado, me distanciando um pouco do calor agradável que seu corpo emana.

— O que você espera em troca de me levar até as minhas irmãs? —


Relanceio um olhar furtivo para a cama.

— Eu te puniria só por ousar pensar uma coisa dessas a meu respeito. —


Áquila fica possuído de raiva e dá um passo para frente, assomando sobre mim.
Não recuo, apenas o encaro de queixo erguido. De leve, ele desliza o polegar por
meu maxilar. — Ainda não esqueci da pergunta que te fiz e que estou sem
resposta. No entanto, vou te deixar vencer essa por enquanto.

— Se a sua intenção é a de me conquistar aos poucos ao promover um


encontro entre as minhas irmãs e eu, ou coisas do tipo, porque nutre a esperança
de que assim eu volte para você, preciso te dizer que não irá acontecer. — Solto
um suspiro longo. — Compreendo se isso mudar a sua decisão de me levar até
elas.

Ele não move nem um milímetro do lugar. Em um silêncio tenso e


carregado, ele me avalia com atenção.

— Isabelle, sua única chance de ver as suas irmãs está em mim. —


Enrijeço a postura. — Não vou usar isso a fim de obter vantagem. Não tenho
apenas a intenção de te levar até elas, como também estou à procura de um meio
de te entregá-las sem te prejudicar. Basta que venha comigo.

— Ir com você é demonstrar que não confio na aliança que tenho com o
Dominic e eu confio que ele está mesmo tentando libertá-las nessas reuniões.

— Dominic não vai aceitar os termos do Rei e o Rei não vai aceitar as
contrapropostas dele.

— O que o Rei está exigindo?

— Não é o meu lugar de fala. — Áquila empertiga os ombros. — Decida-


se. Quando acontecer a troca de turnos das sentinelas, não será mais possível
entrarmos no quarto delas.

Ele parece decidido e nenhuma objeção que levanto o abala. Respiro fundo
e o encaro com firmeza.

— Não quero ficar em dívida com mais ninguém.

— Aceite ou recuse, Isabelle. — O Guerreiro me dá um ultimato.


Recordo da vez em que me fez escolher entre direita e esquerda. Eu não
escolhi nenhum dos dois e o Áquila tomou a decisão por mim. Por pouco reverti
a situação.

Dessa vez, tenho minhas dúvidas de que eu conseguiria reverter caso fique
em silêncio. Se eu não disser nada, desconfio que ele me dará as costas e
perderei essa oportunidade para sempre.
O guarda do Dominic não está em seu lugar e as sentinelas do palácio
fazem vista grossa enquanto atravessamos as penumbras do corredor até uma
passagem secreta atrás de uma tapeçaria. Então é assim que o Áquila invade o
meu quarto. Malandro.

O Guerreiro fica em um silêncio tenso e desconfortável enquanto me guia


por entre o emaranhado apertado da passagem secreta. Além disso, as paredes de
pedras são bem frias, mas não reclamo das adversidades.

Ele para de andar e me lança um olhar por sobre um dos ombros. Fico
apreensiva ao entender a mensagem para que eu me prepare.

Apenas alguns metros de distância me separam das minhas irmãs. De


repente, um medo me invade e não tenho condições de dar os próximos passos.
Elas podem me acusar, e estariam cobertas de razão. Minhas mãos ficam geladas
e começo a tremer.

Coloco minha mão sobre a do Áquila e o impeço de abrir a porta.

— Não posso. — Engulo em seco.


— Você vai entrar. — Ele usa o tom autoritário que tantas vezes funcionou
comigo, mas balanço a cabeça para os lados com veemência.

— Me leve de volta. — Imploro e ele abre a porta de uma só vez.

Fico estática no lugar enquanto assimilo duas camas. Uma delas está vazia
enquanto a outra acomoda duas pessoas de forma apertada. Quero dar as costas e
voltar correndo pelo caminho que fizemos, mas jamais encontraria meu quarto
sem a ajuda do Áquila.

— Isabelle, você não passou por todas aquelas dificuldades para desistir
agora. Eu te treinei melhor do que isso. Engula o nervosismo e entre.

— Por que você está fazendo isso? — Aperto minhas mãos na frente do
corpo, tremendo da cabeça aos pés enquanto o Áquila praticamente me arrasta
para ficar na frente dele.

Por trás de mim, seu hálito quente aproxima do meu ouvido.

— Porque o que sinto por você não depende das suas atitudes e sim de
mim. — Ele afasta com delicadeza os cabelos do meu ombro, resfolegando de
leve as pontas dos dedos no meu pescoço.

As palavras dele me confortam um pouco. Até mesmo me distraem. Mas


perco a chance de responder ao notar que uma delas escutou a nossa
movimentação e se sentou na cama, virando a cabeça na direção de onde estamos
parados.

Ludmila me encara com os olhos arregalados e meu pavor volta com força.
Só penso em fugir. Porém o Áquila firma as duas mãos nos meus ombros e me
mantém presa no lugar.

Minha irmã pisca várias vezes, desorientada, provavelmente tentando


assimilar a situação. Três segundos depois, que para mim parecem a eternidade,
ela atira as pernas para fora da cama e corre para mim.

Estendo os braços e ela se choca contra o meu peito em um abraço


apertado.

Minha aflição desaparece quando Ludmila começa a convulsionar em


meus braços, molhando meu colo, onde sua cabeça está repousada. É um instinto
deixar minhas dores de lado para tratar as feridas dela. Se eu estava com o joelho
ralado, ardendo e sangrando, sufocava minha dor se o mesmo tivesse acontecido
com a doce Lud.

Minha irmã sempre foi delicada como uma flor e sempre puxei para mim a
missão de proteger o jardim onde ela estava plantada, mesmo que eu fosse mais
nova do que ela.

— Me perdoe, Lud. — A embalo quando sentamos no chão. Passo meus


dedos por seu lindo rosto e seco suas lágrimas. Seu olhar carrega uma dor intensa
na mesma medida em que estampa alívio.

Não sei exatamente pelo que peço perdão. O fato de ter roubado o
Orientador e por consequência ter colocado um alvo nas costas dos meus irmãos.
Ou por não ter conseguido vir antes. Ou por não ter conseguido proteger o
Felipe. E quando penso nele, minha dor beira o insuportável.

Será que a minha irmã sabe o que aconteceu? Será que terei que contar a
ela como fracassei naquele dia? Não há nenhum treinamento que tenha me
preparado para contar que o nosso irmão morreu por minha causa.

Rebeca acorda e corre para se juntar a nós. Diferente da Ludmila, ela grita
e chora bem alto.

— Acalma-se, Beca. — Deixo Ludmila de lado para segurar os braços


finos da Rebeca. — Eu sei, pequena. Também sinto essa dor, mas não grita.
Ninguém pode saber que estou aqui.
Rebeca não está mais tão pequena assim, mas ela sempre será a nossa
caçula. Acho que nunca conseguirei vê-la de forma diferente.

Ela assente e respira fundo várias vezes para se recompor. Procuro


rapidamente pelo Áquila com medo de ter feito algum estrago a ponto de ter que
sair daqui correndo, algo que estou certa de que não conseguirei fazer. A melhor
decisão que já tomei em toda a minha vida foi aceitar a oferta dele.

Áquila pode me pedir o que quiser depois disso que darei a ele. Mas
duvido que me pedirá algo em troca. Ele simplesmente desejou fazer isso por
mim.

O Guerreiro está com uma expressão desolada no rosto, algo que nunca vi
antes. Em nenhum momento, desde em que os nossos caminhos se cruzaram,
Áquila ficou tão sem vida. Nem mesmo quando dizemos adeus um ao outro após
o nosso primeiro beijo, sabendo que nunca mais nos veríamos, ele ficou dessa
forma.

Arqueio uma sobrancelha preocupada com ele. Áquila percebe minha


pergunta não verbalizada e faz um sinal para me tranquilizar de que está tudo
bem. Volto a atenção para as minhas irmãs.

Ludmila está mais calma, percebo pela sua respiração que voltou a ficar
controlada. Rebeca ainda parece imersa em uma dor tão profunda que é como se
fosse física.

Em silêncio, a abraço. Subo a mão por suas costas e beijo o topo da sua
cabeça enquanto procuro com o olhar pela Ludmila. Tenho medo de que se tirar
os meus olhos das minhas irmãs elas irão desaparecer.

— Vou tirar vocês daqui. — Minha irmã engole em seco e desvia o olhar.
— O que foi? — Ela não diz nada e apenas encara o lado oposto do quarto. —
Lud?
— Ela não pode falar. — Rebeca sussurra no meu colo e a afasto.

— Como assim a Lud não pode falar, Beca? — Preocupada, encaro minha
irmã mais nova.

Escuto o Áquila se movimentar atrás de mim. Olho por sobre o ombro para
ele e, se é possível, seus ombros alcançam o ápice da tensão.

— Do que ela está falando? — O pergunto em tom acusatório.

— Belle... — Áquila começa, mas para de repente como se não soubesse


explicar sem causar grandes estragos.

Todos os sinais de alerta soam em minha cabeça. Seguro o braço da


Ludmila em uma tentativa de chamar sua atenção de volta para mim. Não sabia
que um simples olhar fosse capaz de fazer com que o meu mundo inteiro
desabasse, mas é o que acontece quando a minha irmã me lança um olhar
temeroso.

Quando elas foram feitas reféns, passado um tempo, surgiram boatos de


que a Ludmila tinha sido feito cortesã. Felipe e eu ficamos desesperados na
época e mandamos o Mestre Ponda para tentar um acordo com o Rei. Não deu
certo, mas nos tranquilizamos porque os espiões dos rebeldes nos garantiram, na
época, que isso não tinha acontecido. Até o Kaká, depois que voltou da base dos
rebeldes, nos reforçou o mesmo, que era uma jogada para me atrair.

Porém Ruan era um cortesão e teve a voz arrancada. Agora Ludmila está
sem voz.

— Não! — Retiro Rebeca do meu colo e fico em pé em um salto.


Atravesso o quarto, porque, de repente, ficar perto delas é sinônimo de carregar
uma culpa terrível.
— Ela pode falar sim — Áquila diz com uma firmeza que beira a
brusquidão. — Ludmila, da Isabelle você não precisa esconder. Pelos deuses!

— O-Obrigada, Alteza — minha irmã gagueja e pigarreia, como se falar a


incomodasse.

Confusa, alterno o olhar entre o Áquila e a Ludmila. Não entendo o que


está acontecendo. Ludmila fingiu não falar para mim? Que merda?

— Por que você tem que esconder sua voz? — Franzo o cenho e Ludmila
encolhe os ombros. — Por Deus, Ludmila! O que foi que eles fizeram?

— Eu impedi, Isabelle — Áquila se apressa em dizer.

— Fica na sua. Não perguntei a você. — Aponto o dedo em riste para ele.
— Ludmila. O. Que. Aconteceu? — pergunto entredentes.

— O outro príncipe entrou no quarto e tentou... — minha irmã aperta os


dedos das mãos no colo, altamente nervosa.

Não preciso ouvir mais nada para entender o que aconteceu. Aquele
crápula do Rakar vai me pagar por essa. Ele tentou mesmo transformar a minha
irmã em cortesã. Pelo visto, de todas as formas possíveis, porque Ludmila estava
escondendo a voz. Canalha!

Ando resoluta em direção à porta principal.

— Não, Isa. Ele não conseguiu, porque o Áquila... — Ludmila começa a


explicar ao perceber o que estou pensando.

Em poucas passadas, o Guerreiro atravessa o quarto e se coloca em meu


caminho.

— Ninguém a violou! Você tem a minha palavra de que a protegi durante


todo esse tempo. Inclusive, forneci poções que impediram que retirassem a voz
dela quando tentaram. Ela está escondendo a voz para que o Rakar não descubra
que não conseguiu e tente atingi-la novamente de qualquer outra forma. É para a
proteção dela ele pensar que conseguiu feri-la até que suma de Pedralhos depois
desse maldito casamento!

— Proteção? — pergunto de forma azeda em um sibilo. — Rakar tentou


transformar a minha irmã em cortesã e era pra ela ter perdido a voz!

— Mas não perdi, Isa. É isso que o príncipe está dizendo. Ele está nos
protegendo desde o início. — Ludmila sai em defesa do Áquila.

Os ignoro e volto a atenção para a Rebeca.

— Beca, e com você? Alguém tentou algo?

Áquila fica tenso e sei que está a um passo de vociferar bem nas minhas
fuças que estou extrapolando os limites, mas não estou nem aí para o que ele
pensa.

— Não, Isa. — Minha irmã balança a cabeça para os lados. — Os guardas


são bons e eles sempre me dizem que o príncipe não vai deixar que nada de ruim
aconteça com a gente. É o senhor o príncipe bom, não é? Eu me lembro quando
levava comida pra gente na prisão.

Solto uma risada sem humor. Áquila bom por visitá-la na prisão. Eu teria
cuspido na cara dele se fosse eu no lugar delas! É isso que qualquer um deles
merecia receber. Só uma criança mesmo para atribuir a ele essa característica,
ainda por cima sob tais condições.

Acho que ele fica ofendido com a minha reação, porque para de acenar em
concordância para a Rebeca e me encara bem chateado. O encaro de volta com
determinação. Esqueço até mesmo que minhas irmãs estão no mesmo aposento
que nós dois.
— Isso acaba hoje — digo com tanta veemência que se existisse um pingo
de sangue Drakar em minhas veias, era capaz de afastá-lo apenas com a força das
minhas palavras.

— Você precisa passar por mim para fazer a besteira que acredito que está
pensando em fazer.

Dou um passo para o lado e ele coloca o corpo na frente para me impedir
de sair. Abro um sorriso zombeteiro.

Não venho treinando com Oclan à toa. Não quebrei vários ossos, nem fui
parar na terra do inconsciente várias vezes, para nada. O Guerreiro não tem ideia
de que seu treinador foi tão inclemente comigo quanto foi com ele.

Talvez por não estar esperando minha reação, Áquila fica surpreso
quando uso meu cotovelo para acertar seu antebraço a fim de abrir passagem.
Por breves segundos, ele se contorce de dor, mas não perde muito tempo
tentando assimilar o que está acontecendo e parte para me conter novamente.

Mas eu já esperava que, se ele ficasse surpreso, duraria frações de


segundos. Quando tenta me impedir, o ataco com tudo.

Rebeca grita assustada quando ele consegue se esquivar e me agarra por


trás em um abraço de jiboia, prendendo meus braços e me imobilizando.

— Está tudo bem, Beca. Não chore — digo entre arfadas.

Ela assente, assustada, e até mesmo Ludmila fica com os olhos


arregalados, mas ambas nos assistem com um misto de surpresa, medo e
expectativa de quem levará a melhor.

Piso no pé do Áquila ao mesmo tempo em que jogo a cabeça para trás com
força para acertá-lo. Ele se esquiva da cabeçada, mas leva o pisão de revirar os
olhos. Não que eu veja se isso aconteceu, mas seu braço perde uma fração da
força, o suficiente para que eu consiga empregar força contrária e sair do aperto
dele.

Ele agarra meu manto e me puxa com força para trás. Sou arremessada
contra a parede e dói, mas não tanto quanto era nos treinamentos, então não é
nada que surte um efeito capaz de me derrubar.

— Pare, Isabelle! — Áquila vocifera. — Não quero te machucar, mas se


você insistir em sair deste quarto, te apago. Está me ouvindo?

Não respondo e quando ele percebe que estou bem longe do alcance de ser
chamada de volta a razão, pragueja antes de lançar um golpe que, se pegasse,
certamente me apagaria imediatamente. Mas seguro seu braço e giro o corpo
para evitar o golpe.

Surpreso, Áquila me encara. Ele sabe que antes eu jamais teria conseguido
me livrar e então passa a me olhar por sob outro prisma. Eu estaria tão ferrada se
não viesse treinando religiosamente durante todo esse tempo, porque o Áquila
para de se segurar e agora solta toda a força em cima de mim.

Abaixo um instante antes dele me golpear. Com o cotovelo, bato na parte


detrás do seu joelho e sua perna fraqueja. Ele me puxa para cima pelos cabelos e
a cor âmbar brilha furiosamente.

— Pare...

Dou uma joelhada no centro das suas pernas e ele revira os olhos,
afrouxando o aperto nos meus cabelos. Me desvencilho sabendo que tenho
segundos para conseguir abrir a porta. Nem ouso sair, porque o Áquila não
levará tanto tempo assim para ficar em pé, mesmo que seja enxergando estrelas.

Encho o pulmão e grito o suficiente para acordar até mesmo os mortos.

— Eu vou me entregar ao Rei!


Áquila até tapa minha boca, mas é tarde demais. As duas sentinelas
vigiando o quarto das minhas irmãs estavam fazendo vista grossa para os sons da
nossa visita, mas as duas que chegam na extremidade do corredor, ao que tudo
indica, não pertencem a ele.

— Maldição! — O Guerreiro pragueja ao fechar a porta com força. —


Você tem ideia do que acabou de fazer, Isabelle?

— Fuja. — Viro de frente a ele e o encaro com bastante seriedade. — Vá


embora agora, por favor. Não vou mencionar o seu nome.

— Não sou covarde.

— Áquila — seguro suas mãos e percebo que estou gelada —, vou ser
baixa o suficiente para pedir em nome dos seus sentimentos por mim. Vá
embora!

— Inferno sangrento, Isabelle! Não vou fugir. — Ele trinca os dentes ao


respirar pesadamente.

Nos encaramos com afinco. Tudo o que o Áquila faz é cruzar os braços à
espera de que as sentinelas alcancem o quarto, ao invés de usar esse curto espaço
de tempo para fugir pela passagem secreta por onde entramos.

— Teimoso — resmungo.

Áquila me desfere um olhar matador e então solta um longo suspiro


cansado.

— Sempre soube que você tinha me condenado naquela maldita dança!

Não sei do que ele está falando, mas não tenho tempo de perguntar ao que
se refere, porque os guardas nos alcançam.
Eles não têm nenhum problema de me informar a violação que estou
cometendo ao entrar no quarto das prisioneiras no meio da madrugada. Também
sou contida por conta disso. No Áquila, eles não encostam um dedo.

— Vai ficar tudo bem. — Garanto às minhas irmãs antes de ser arrastada.

Não tenho chance de ver a reação delas, mas espero que acreditem em
mim, mesmo que eu não saiba se estou dizendo a verdade. Talvez tudo piore,
embora eu espere sinceramente que não.

Áquila segue ao meu lado mancando enquanto somos guiados pelo


palácio. Meus pés estão doendo, meus lábios estão inchados, e minha cabeça está
rodando, tudo créditos dele. Porém não reclamo. Minhas dores são os menores
dos meus problemas no momento.

Sou jogada para dentro de uma sala e não me incomodo com isso, muito
menos me comovo com o Áquila repreendendo os guardas pela forma como
estão me tratando. Ele parece prestes a esmurrá-los, mas os guardas saem antes
que grandes estragos sejam feitos e ficamos sozinhos.

O Guerreiro sequer consegue olhar na minha direção, tamanha a raiva que


o domina. Imagino que nem sermões irei ganhar. São mesmo dispensáveis,
porque... do que adianta?

Áquila se senta com cuidado em uma poltrona e aperta com força os


cabelos entre os dedos. É perigoso ele ficar sem seus lindos fios. Eu diria algo
para confortá-lo, porque estou disposta a lutar para que não seja punido, mas não
estou a fim de gastar energia à toa.

O tempo passa e nada acontece. Começo a ficar ansiosa, até me lembrar de


uma das lições da Magnólia e perceber que é uma estratégia do Rei. Volto a
relaxar, ou o mais próximo disso possível.
— De todas as suas atitudes estúpidas, desde em que os nossos caminhos
se cruzaram, essa foi de longe a pior, Isabelle. — Áquila quebra o silêncio tenso
que se instaurou entre nós dois.

— Obrigada. — Cruzo as pernas e descanso o queixo na palma da mão,


cujo cotovelo apoio no braço da poltrona.

— Nem de longe foi um elogio.

— Não se preocupe. Sou eu quem irá sofrer as consequências, não você.


Vou me certificar disso antes de fazer qualquer coisa.

Áquila se vira para mim com brusquidão e puxa a mão em que apoio a
cabeça. Me desequilibro e reclamo ao me sentar ereta de novo. Ele nem pisca.

— Você acha que estou preocupado com o meu destino? — Seus olhos
âmbar me fitam com urgência. — Você não entende a dimensão do seu
significado para mim? No dia em que Oclan matou a minha ama, bem diante os
meus olhos, a fim de matar a minha humanidade com ela, eu escolhi deixar de
lado as emoções comuns em homens para me tornar a besta que você já viu de
perto. Vivi durante anos sem um peso sequer na consciência quanto às vidas que
eu tirava. Tudo o que eu enxergava era o meu dever. Até você cruzar o meu
caminho. Você se opunha às menores das regras, infernos!

Áquila passa as mãos pelos cabelos, desorientado. Fico mal, mas não a
ponto de dizer qualquer coisa e com isso incentivá-lo a continuar. Desnecessário,
porque ele continua ao perceber o meu silêncio e suaviza a expressão.

— Se eu te pedisse para fazer uma escolha simples entre direita e esquerda,


você se recusava a escolher. Se eu escolhesse por você, você escolhia o
contrário. Aquilo me tirava do sério e tantas vezes quis te punir para valer por
sua insubordinação, Isabelle. No entanto, aquilo também mexia comigo de uma
maneira agradável, porque são nesses momentos em que sinto a intensidade do
calor que emana da sua alma. Você teima com intensidade. Você ama com
intensidade. Você briga com intensidade. E você nunca desiste. Por que infernos
você está desistindo justo agora?

Desvio o olhar. Essa conversa quase me faz arrepender da escolha que fiz,
porque significa abrir mão de tudo... dele e não posso fraquejar. Preciso libertar a
Hortense e a cada segundo que passo ao lado do Áquila, é um segundo a mais em
que penso em gritar por ajuda ou, pior, desistir.

Áquila não me ameaçaria trancar no palácio e jogar as chaves fora, como o


Dominic fez. Áquila me levaria para bem longe com ele e nunca mais ninguém
iria sequer saber da minha existência. Eu não veria ninguém e ninguém me veria
nunca mais!

— Olhe para mim! — ele exige e atendo a sua ordem. — Você sorriu para
mim, e me fez sorrir de volta. Você me beijou, e me fez beijar você de volta.
Você me entregou o seu coração, e me fez entregar o meu para você de volta.
Você me amou, Isabelle, e me fez te amar de volta. Consegue perceber o que fez
comigo?

Fico em silêncio, porque, sinceramente, não sei como responder. O destino


do Áquila será tão miserável quanto o meu. Eu vou morrer e ele será condenado
a viver sem mim. É isso o que nos aguarda no futuro.

Seu olhar percorre meu rosto como se memorizasse minhas feições.


Engulo em seco, porque mal sabe ele que o nosso tempo está correndo.

— Você devolveu a minha humanidade, Belle. — Ele desliza o polegar


pelo meu lábio inferior e fecha os olhos antes de se afastar com brusquidão. Pego
a mão dele de volta e seguro em um aperto firme entre as minhas.

— Áquila, eu sinto muito quando te fizer sofrer ainda mais. — Minha voz
custa a sair, porque a emoção está me soterrando. — Quero que saiba que é
simplesmente porque eu não tenho opção.

O Guerreiro me encara, confuso. Sinto vontade de me estapear, porque a


última coisa que preciso é dele suspeitando ainda mais de mim. Mas eu preciso
que ele se lembre dessa nossa conversa e me perdoe no futuro próximo.

Mesmo que quisesse perguntar do que exatamente estou falando, Áquila


não tem chance, porque a porta da sala finalmente é aberta. Viro para trás e o
desespero me inunda ao ver quem entrou.
Dominic parece transtornado e tudo piora quando seu olhar recai para o
Áquila ao meu lado e então para as minhas mãos segurando a dele. Solto-a
rápido.

— Isabelle — Dominic ignora o Áquila, que aperta os olhos com força ao


ouvir o som da voz dele. — Você pode me explicar o que está acontecendo?

— Vosso pai gostaria de saber o mesmo, Alteza. — O braço direito do Rei


aponta na entrada no encalço do Dominic.

Não espero nem mesmo que o Áquila tenha tempo de respirar e disparo a
falar na frente dele.

— Áquila está prestes a mentir, por isso me seguiu e fez o favor de sentar a
bunda nessa poltrona, se recusando a ir embora.

O Guerreiro se vira para mim com brusquidão enquanto Dominic tomba a


cabeça de lado, sem entender o que estou dizendo. Quanto ao Conselheiro do
Rei, ele ergue uma sobrancelha, desconfiando de mim.
— Fui atrás da Helena. — Dominic fecha os olhos por alguns segundos a
mais, porque se tem algo que todos temiam é que eu perdesse a cabeça e fosse
atrás dela. Até mesmo o ar de desconfiança do Conselheiro do Rei desaparece,
então pigarreio e continuo, já que está funcionando. — Um guarda me descobriu,
mas percebeu que perderia a briga e que Helena estava correndo risco. Então ele
me ofereceu, como última forma de salvá-la, me levar até as minhas irmãs.
Aceitei e o segui. Assim que pisei no quarto delas, ele saiu para avisar ao Áquila,
porque era um dos soldados dele. E aqui estamos nós. Áquila está prestes a negar
a minha história ao Rei, por causa dessas besteiras de honra que ele tem.

— Impressionante. — O Guerreiro me encara como se tivesse surgido


braços na minha cabeça. — Só você mesma para criar uma história tão
mirabolante como essa sob tais condições e em tão pouco tempo.

— É a verdade. — Alterno o olhar entre o Dominic e o Conselheiro. — O


Áquila é inocente. De qualquer forma, estou disposta a me entregar ao Rei em
troca da liberdade das minhas irmãs.

— Sob o meu cadáver! — Dominic diz de forma categórica.

— Nunca pensei que diria isso, mas agradeço se conseguir livrá-la deste
incidente. — Áquila me ignora de forma deliberada e fixa a atenção no Dominic,
ao que tudo indica, com as esperanças renovadas.

— Ela é a minha noiva. — O príncipe o desfere um olhar frio. — Ninguém


encostará um dedo nela, a menos que queira declarar guerra contra o meu reino.

— Acabou essa história de reféns. — Intervenho e todos voltam a atenção


para mim. Áquila parece prestes a sair na porrada comigo, de novo. — Estou
disposta a me entregar em troca da liberdade delas e ponto final.

— Ele não vai aceitar, Isabelle, porque se isso acontecer, irei declarar
guerra — Dominic diz de forma irrevogável. — Venha. — Ele me estende a
mão. — Você está descabelada. Parece que uma cavalaria passou por cima de
você.

— Vá, Isabelle. — Áquila ordena quando me vê parada no lugar.

— Eu não vou! Cansei dessa enrolação do Rei e não saio daqui até libertar
as minhas irmãs.

— Você precisa ficar decente para a reunião do acordo. — Dominic me


surpreende. — Estamos discutindo a um par de horas sobre vocês e sua presença
é requisitada.

Fico em pé querendo ter esperanças no que está me dizendo ao mesmo


tempo em que tenho receios de que não passe de um truque para me amansar.

— Vocês estão mesmo discutindo a soltura delas e, além disso, vão me


deixar participar?

— Sou eu quem está do seu lado, Isa. — Ele segura minha mão.

— É melhor ir se arrumar e tratar os hematomas, Alteza. — O braço


direito do Rei se volta para o Áquila. — A sua presença também foi requisitada.

Eu deveria ficar aliviada pelo desenrolar dos fatos, mas... por que tenho a
sensação de que as coisas estão prestes a mudar drasticamente? Não vou
comemorar antes da hora, porque, com o Rei, uma vitória nunca é, de fato, uma
vitória.

Depois de um banho rápido, um emplastro para os meus recém


machucados, e um vestido novo, volto a me encontrar com o Dominic.
Ele parece apreensivo e, à medida que nos aproximamos da sala de
reunião, seu nervosismo intensifica.

— Dominic — aperto seu braço e o faço parar antes de chegarmos perto


dos guardas. — Quero te contar a verdade, mas preciso que me prometa que não
fará nada contra ele. O Áquila só quis que eu visse as meninas.

— É desnecessário essa preocupação. O Rei não o punirá de forma


alguma. Porém quero que me diga por que a minha noiva estava com vestes de
dormir ao lado dele.

Controlo a vontade de jogar a cabeça para trás e praguejar. Olho no fundo


dos olhos do Dominic, que está visivelmente machucado com essa situação.

— Ele invadiu o meu quarto para me oferecer me levar até as minhas


irmãs. Tentei recusar por medo de parecer que eu não tinha confiança na sua
capacidade de me entregar o que me prometeu, mas na hora a vontade de
reencontrar as meninas foi mais forte e não me arrependo disso. Depois que as
vi, Áquila e eu brigamos porque descobri que houve uma tentativa de tirar a voz
da Ludmila, além do Rakar ter tentado violar a minha irmã. Foi então que cansei
de esperar que essa situação se resolvesse de forma pacífica e resolvi tomar as
rédeas dessa negociação pela liberdade delas. Peço desculpas se te prejudiquei,
mas não vou me desculpar por lutar por elas. Eu não fiz nada errado. Não agi por
suas costas. As coisas simplesmente aconteceram de forma abrupta e tive que
pensar rápido. Entre tudo e todos, escolhi as minhas irmãs. — Termino meu
discurso respirando fundo e ele aperta minha mão de volta em seu antebraço.

— Acredito na sua sinceridade, Isa. — Solto um suspiro de alívio. —


Entretanto, tenho um pedido para te fazer. — Assinto. — Fique do meu lado,
aconteça o que acontecer.

Não respondo de imediato, porque não sei o que será dito lá dentro. Não
sei quais serão os termos do Rei. Existem condições que não irei aceitar e é por
isso que fico em silêncio.

— Ao menos confie em mim? — A vulnerabilidade dele esmaga o meu


coração.

— Sempre, Dominic — digo com sinceridade. Dominic é uma das poucas


pessoas que conheci neste lugar em quem confio sem medo.

Ele respira fundo e volta a guiar os nossos passos. Os guardas nos dão
passagem e fico surpresa ao notar que apenas o Rei e o Áquila nos aguardam no
interior do aposento.

Não sei por que, mas pensei que haveria mais pessoas. Talvez o Rakar.
Mas acho bom que eles tenham tido o bom senso de manter aquele escroto longe
de mim, porque eu certamente perderia as estribeiras e avançaria com tudo nele.

— Há mais alguém para chegar? — pergunto justamente para me preparar,


caso a ausência do Rakar trate de um atraso.

— Não — o Rei responde. — Sente-se, Isabelle. — Ele indica a cadeira do


outro lado da mesa, a que fica de frente a ele. Dominic e Áquila ficam em pé.
Dominic ao meu lado e Áquila ao lado do Rei.

— Como já foi discutido com o seu noivo — pela visão periférica noto
Dominic apertar os dedos —, os termos da soltura das minhas prisioneiras é o
filho de vocês.

— Perdão? — Pisco lentamente, pensando que ouvi errado ou sou burra e


não entendi nada mesmo.

O Rei abre um sorriso frio. Áquila cruza os braços às costas e evita o meu
olhar. Quanto ao Dominic...

— Os termos são um absurdo! — Ele espalma ambas as mãos na mesa e


debruça o tronco ao encarar o Rei com as narinas infladas. — Um casamento
entre os nossos descendentes é algo com que podemos concordar, mas entregar o
nosso herdeiro? Nunca ouvi tamanha afronta em toda a minha vida!

É a primeira vez que o vejo tão fora de si. Agora sou capaz de entender de
onde vem seu cansaço após essas infindáveis reuniões. Se ele se comporta assim
em todas elas, faz todo sentido que fique esgotado ao fim do dia.

— Mas eu não estou... — paro de falar, envergonhada demais para tratar


desse assunto tão íntimo em uma mesa com três homens.

— É um tratado que ele quer que assinemos. — Dominic se volta para


mim.

— Ah. E o que exatamente tem neste tratado?

O Rei desliza por sobre a mesa um pergaminho na minha direção. Encaro o


papel, receosa de encostar nele. Cravo meu olhar no do Rei e espero que
explique por conta própria qual é a maquinação. Há maus desígnios por detrás
deste acordo, além do já óbvio, com toda a certeza.

O silêncio se estende, mas não faço qualquer menção de me mover do


lugar. O encaro até que seus lábios formem um sorriso lânguido, como se
aprovasse a minha insubordinação.

— Caso o primogênito de vocês seja uma menina, ela deverá se casar com
o futuro herdeiro de Yerus. — Relanceio um olhar para o Áquila. — Exatamente,
Viajante. Filho dele.

— E se o nosso primogênito for um menino?

O sorriso perverso se alarga em seu rosto.

— Ele deverá ser mandado para cá a fim de crescer em contato com a


nossa futura geração.
Ou seja, ser um produto deles. Crescer sob os costumes deles. Acontece
que Rakar foi criado por este perverso e Áquila entregue para sofrer abusos
físicos e mentais de um Guerreiro, outrora, inclemente. Mas isso não vem ao
caso agora. O que importa é que ele quer conquistar o Norte através dos meus
supostos futuros filhos com o Dominic.

— Com quantos anos será feito o casamento, caso seja uma menina?

Dominic arfa e Áquila me encara com os olhos arregalados. Ambos


pensam que estou considerando essa ideia absurda. Quanto ao Rei, ele me encara
de uma forma que ouso julgar ser orgulho. Estremeço inteira por despertar
justamente esse sentimento dele em relação a mim.

— Assim que a garota deixar a puberdade, deverá ser mandada para Yerus.

— Se eu assinar aqui, tenho minhas irmãs libertas?

— Se Vossa Alteza e Dominic assinarem, sim.

Então é isso o que está por detrás. Caso algo aconteça, e eu não puder ser a
mulher que irá gerar essas crianças, ainda assim Dominic estará preso a este
tratado.

Enfim me movimento e faço menção de pegar o pergaminho. Dominic


espalma a mão em cima dele, me impedindo de seguir adiante.

— Isabelle... — ele me encara com súplica.

Sei que Dominic deixou propositalmente de fora os termos do Rei, porque


sabia que eu nunca, nem em um milhão de anos, concordaria com esse absurdo,
mesmo que fosse para salvar as minhas irmãs.

Primeiro que, se eu fosse mesmo dar seguimento ao nosso noivado, jamais


condenaria meus futuros filhos a este destino. Inconcebível! Segundo que,
mesmo que meu propósito tenha alterado e meu objetivo tenha se transformado
em libertar a Hortense, me condenando em seguida, jamais concordaria em
condenar os futuros filhos do Dominic.

— Eu confio em você. Confie em mim também, Dominic.

Ele engole em seco e retira a mão. Pego o pergaminho e encaro o Rei com
intensidade. Rasgo o papel ao meio. Mesmo que o som quebre o silêncio, não é
capaz de encobrir o suspiro de choque que Dominic exala.

Rasgo mais uma vez e outra. E outra. E outra. Pego os picadinhos, fico em
pé e lanço-os na lareira.

— Bem, Alteza. Então vamos tratar da sua punição ao violar as leis de


Yerus ao invadir o quarto das minhas prisioneiras e a ameaça que fez a minha
Rainha. — De forma displicente, o Rei recosta na cadeira.

— Você ameaçou a Rainha? — Áquila me encara com os olhos


arregalados e os lábios entreabertos. — Maldição dos infernos, Isabelle!

Não tão diferente do estado de colapso em que o Áquila se encontra,


Dominic me encara com os olhos arregalados.

— Como assim, Isabelle?!

Ignoro os dois e me concentro na única ameaça nesta sala, o dragão


ardiloso que observa a nossa comoção com bastante interesse.

— Eu não a ameacei, Vossa Majestade — digo em um sibilo. — Apenas


evitei que ela me ameaçasse depois de fazer falsas acusações a meu respeito e eu
fosse obrigada a me defender da forma apropriada.

— É a sua palavra contra a dela. — Relaxado, ele cruza os braços na altura


do peito.
— Há testemunhas que podem atestar que estou falando a verdade. —
Trinco os dentes e aperto os dedos nos punhos.

— Dê-me um nome de qualquer nobre que deporia contra a Rainha, por


favor.

Áquila e Dominic ficam tensos enquanto o silêncio se arrasta entre nós


dois. Ele me pegou nessa. Ninguém irá depor contra a Rainha. Nem mesmo
Heloise, que acredita ter uma dívida comigo, será insana a ponto de testemunhar
a meu favor. Isto é, se para começo de conversa a mãe dela permitisse.

Desesperada, procuro pelo apoio do Áquila.

— Eu não a ameacei! — Minha voz soa estridente até mesmo para os


meus próprios ouvidos, tamanho o nervoso que sinto daquela naja sanguinolenta
que o pariu e do pai perverso dele.

O Guerreiro assente de forma rápida e então se volta para o Rei, relaxado


como se a nossa discussão não fosse altamente tensa e pudesse me fazer perder a
cabeça, nada figurado e sim literal!

— Irei retirar o meu nome da linha de sucessão ao trono se Vossa


Majestade não perdoar quaisquer que sejam os crimes imputados à Isabelle.

— Então Yerus terá como futuro rei o seu irmão.

— Não importa quem seja o rei de Yerus, irei declarar guerra se Vossa
Majestade ousar punir a minha noiva por visitar as irmãs e procurar meios de se
defender de falsas acusações. — Dominic se intromete na discussão.

Afasto-me para o canto e os observo com a mente fervilhando de opções


para sair dessa. Ao mesmo tempo em que sinto alívio pelo Áquila e Dominic
tomarem o meu partido, sem nem ao menos saberem exatamente o que aconteceu
entre a Rainha e eu, sei que não servirá de nada.
Tenho certeza de que tudo o que esse homem odioso fez foi cruzar os
braços e esperar os menores dos meus deslizes. Ele tramou para que
chegássemos a este ponto. Caímos todos nas armadilhas dele. E eu facilitei para
ele sem querer.

— Não há por que entrarmos em guerra, Dominic. Os meus termos são


simples. — Volto a prestar atenção na discussão ao ouvir a voz do Rei. — O
trono do Reino do Norte e de Lufstar serão seus. Ao assumir um, terá de
renunciar ao outro. Sabemos qual será a sua escolha e qual trono ficará sem um
regente adequado. Lufstar faz fronteira com o meu reino e há anos é do meu
interesse conquistá-lo. Assine um tratado para que aquelas terras sejam
incorporadas a Yerus assim que a rainha Magnólia passar dessa para uma melhor
e todas as afrontas da Viajante serão perdoadas. No entanto, as irmãs dela
continuarão minhas reféns, uma vez que a soltura delas trata-se de outra
negociação.

Três cenários terríveis para me punir através dos dois, é o que parece.
Áquila deixar a linha de sucessão e Rakar assumir o trono. Ou uma guerra ser
deflagrada. Ou o Reino do Norte perder Lufstar. Porém, não é o desejo dele
seguir em frente com nada disso e ele sabe que não precisará, porque eu jamais
permitiria que qualquer um dos dois fosse punido por me defender.

Nossos olhares se cruzam. O sorriso discreto no canto dos lábios do Rei


me diz que ele sabe que percebi todas as jogadas dele e o que espera que eu faça
em seguida. Não sinto prazer algum em desvendar os segredos de uma mente tão
ardilosa quanto a dele. Na verdade, fico preocupada comigo mesma, porque não
sei o que isso diz a meu respeito, mas compreendo a forma dele de pensar sem
qualquer dificuldade.

É inegável que essa briga não é do Dominic nem do Áquila. É minha e do


dragão ardiloso sentado de forma displicente na cadeira e lançando olhares
furtivos na minha direção.
Tenho medo de olhar para o Dominic, porque não estou apenas prestes a
trair os meus aliados. Estou prestes a magoá-lo de uma forma que temo ser
irreversível. E nada me dói mais do que isso. Mas há interesses maiores do que
os dele e inclusive os meus.

Sei que vou fazer exatamente o que o Rei espera que eu faça. Ele não criou
toda aquela mentira em cima dos feitos do Áquila à toa. Nem redigiu um tratado
impossível de ser aceito pelo meu noivo por mero capricho. Cada passo que deu,
foi para me encurralar até não me restar outra opção a não ser me curvar perante
a vontade dele.

Sei que vou dificultar a minha missão de salvar a Hortense, e se eu for


bem-sucedida, vou ferir os sentimentos do Áquila terrivelmente. Além disso,
corro sérios riscos da Magnólia me declarar inimiga. Dominic também. Portanto,
ficarei desprotegida nas terras dos meus inimigos.

Oclan continua preso e Tina, Kaká e eu somos insuficientes para lidar com
os perigos que me cercam neste palácio, onde pessoas como a Rainha, Rakar e
Helena possuem poder. Além disso, ficarei à disposição do Rei, sendo obrigada a
acatar os caprichos dele, uma vez que não terei ninguém forte por detrás de mim.

Não terei nenhum rei, rainha, príncipe ou princesa de outro reinado que
possa usar seus interesses políticos em meu benefício, em minha proteção. Nem
mesmo os rebeldes. Quanto a população que me apoia, no máximo pode se
revoltar caso eu seja morta. Mas daí será tarde demais para mim.

Além disso, o Reino do Norte não terá nenhum tipo de vantagem a mais,
uma vez que irá perder o último descendente dos Tupper que os apoia. Quanto ao
Guerreiro, perderá o trunfo de um dia se voltar contra o Rei ao ameaçar abdicar
do seu direito ao trono.

Acontece que eu sei o mesmo que o Rei. Uma aliança entre os Salonsk e o
Reino do Norte não apaziguará os ânimos da tensão que existe de que uma
guerra pode ser deflagrada a qualquer momento. A aliança entre o último Tupper
e qualquer herdeiro dos Salonsk, sim. Portanto, Rakar jamais será rei, uma vez
que vai se casar com uma princesa do Reino do Norte. Quanto ao que o Rei está
armando para o Áquila... bem, o Guerreiro jamais poderá fugir do destino de
virar rei com essa jogada do pai dele a qual irei me curvar. Não enquanto
respirar.

Encaro o Áquila. Ele me encara de volta e franze o cenho.

Engulo em seco e me rendo. Desisto de tudo pelo qual trabalhei


arduamente para conquistar nos últimos dois anos. Vou virar uma presa do pai
dele, que abre um sorriso de orelha a orelha ao perceber a decisão que tomei
antes mesmo que eu diga qualquer coisa. Sinto nojo dele, então me concentro no
Guerreiro e apenas nele.

— Case-se comigo.
Dominic deixa a sala tempestivamente. Quanto ao Áquila, ele me lança um
olhar que arrepia até mesmo os cabelos da minha nuca. Eu não o deixei com
raiva. Eu o deixei colérico! E nunca, em toda a nossa história, Áquila me olhou
da forma como está me olhando agora.

— Uma maldita jogada política. É por essa razão que você deseja se casar
comigo, Isabelle?

Fico paralisada, sem saber o que dizer. Na verdade, tenho ótimas


explicações para dar a mim mesma e a ele, mas não é nenhuma que eu gostaria
que o Rei me ouvisse dizer, então me mantenho muda.

Com os dedos cerrados nos punhos, o Guerreiro nos dá as costas ao


perceber que me manterei em silêncio. Ele refaz o mesmo caminho que Dominic
seguiu, mas diferente do príncipe, que saiu transtornado de raiva, porém
silenciosamente, o Guerreiro bate a porta com tanta força que, por um momento
fugaz, penso que as dobradiças já eram.

Volto a atenção para o Rei, que noto me observar com bastante interesse.
Desconfio que durante todo esse tempo seus olhos sempre estiveram em mim.
Meu coração bate tão rápido que a sensação que tenho é a de que estou prestes a
cuspi-lo pela boca. Porém, graças a todos os ensinamentos da Magnólia, no
exterior exalo calma, controle e confiança.

— Exijo que minhas irmãs fiquem sob o meu domínio imediatamente.

— Termos aceitos. — O Rei abre um sorriso que me dá calafrios ao


estender outro pergaminho na minha direção, já com a proposta de um
casamento entre o Áquila e eu redigida.

Leio atentamente para ver se há alguma armadilha, além da óbvia de me


ter sob o domínio dele. Como consigo entender a mente ardilosa do Rei, não
espero nada de diferente, então sei exatamente o que procurar. Porém, não há
nada além da proposta de casamento seguida da exigência de que seja realizado
após o casamento Real em cursor.

Por um segundo, penso que é apenas isso, mas então percebo que a falta de
exigências por si só é uma armadilha.

O Rei não pede nada além porque não pretende me manter por perto por
muito tempo. Aposto que a ideia é me deixar viva apenas o suficiente para
aplacar os ânimos de uma possível guerra e então ele lidará comigo novamente.

Ótimo! Meu tempo de vida, que já era curto, acaba de ser reduzido pela
metade. Terei que achar a maldita localização da Hortense o quanto antes, se
quiser libertá-la ao mesmo passo em que diminuo a duração das mãos dessa
serpente inescrupulosa ao redor do meu pescoço.

— Como Vossa Alteza pode ver, meus termos são poucos e estão
explicados aí de forma minuciosa. Porém, estou disposto a gastar minhas horas
para tratarmos linha por linha, caso seja do seu desejo. — Ergo a vista para ele,
que abre ainda mais o sorriso ao notar a minha insatisfação de virar um fantoche
em suas mãos. Estendo o pergaminho de volta.
— Quero a Rainha, Helena e Rakar longe de mim e das pessoas que
vieram comigo.

— O Áquila causaria o inferno nas nossas vidas se fosse diferente.

Ele está concordando fácil demais e isso, mais do que qualquer outra
atitude, me aterroriza! Não é um palpite e sim uma certeza. Assim que eu deixar
de representar uma ameaça de guerra, ele irá me matar. Acontece que antes disso
pretendo partir dessa para melhor, já que é a única opção que me resta ao libertar
a alma da Hortense. A minha alma é que não irá assumir o lugar da dela! Nem a
pau!

Como um assalto, penso em tirar proveito da situação. Essa é a minha


chance de punir a Helena para que ela pague por ter tirado a vida do Felipe.
Enxoto para um canto da minha mente os constantes avisos da Magnólia para
que eu tomasse cuidado com a minha sede de vingança.

— Também desejo que Helena seja punida por ter tirado a vida do meu
irmão.

— Negado. — Uma única palavra, mas a força com que ele profere e a
rapidez, deixam claro que ele não irá se explicar e menos ainda está aberto para
negociação. O Rei me encara de forma fria. — Mais alguma exigência, Viajante?
— O tom de voz dele gela a minha nuca.

Imediatamente penso na lenda e sei, no íntimo do meu ser, que essa


pergunta é um teste para medir o meu conhecimento acerca do passado. As
palmas das minhas mãos chegam coçar da vontade tremenda que sinto de
perguntar qualquer coisa sobre a Hortense, mas me calo. Ele não pode desconfiar
nem por um segundo que estou ciente de que a minha antepassada está presa em
uma magia obscura, ou não verei o dia nascer amanhã.
— Isso é tudo — respondo de modo firme a fim de espanar qualquer
suspeita que ele possa ter em relação a mim.

— Eu diria que basta assinar na última linha, porém nossas duas


testemunhas acabaram de sair porta afora.

No mesmo segundo, saio do meu lugar para atravessar o gabinete. O Rei


franze a testa, mas sem perder o traço de interesse misturado a diversão com que
me observa.

— Tina! — grito ao abrir a porta com violência.

A Guerreira me encara em sinal de alerta. Ela descola as costas da parede e


vem até mim com os ombros tensos.

— Pois não?

— Você e o Conselheiro do Rei. — Aponto com a cabeça para o homem


que nos assiste com interesse mais adiante na antessala. — Entrem
imediatamente.

Volto para o interior, deixando a porta aberta. Em instantes, os dois


atravessam o umbral para se juntar a mim e ao Rei. Tina me lança um olhar
indagador, com medo de se aproximar ainda mais. Ignoro a titubeação dela e
pego a pena.

— Feche a porta — ordeno a ela antes de me voltar para o Conselheiro do


Rei. — Vocês serão as nossas testemunhas. Assine no campo correspondente. —
Estendo a pena para o homem, que lança um olhar indagador para o monarca,
que por sua vez faz um gesto discreto de aprovação com a mão.

Os dois assinam e então eu. Com furor, entrego tudo de volta para o Rei.
Por último a assinatura dele preenche o papel, selando o nosso acordo.

— Muito bem, Viajante...


Não fico a tempo de ouvir o resto. Com o mesmo furor que mordeu a
bunda do Dominic e do Áquila, também deixo a presença dele. Sequer relanceio
um olhar para trás, mas sinto a presença da Tina seguindo em meu encalço.

— Se te ajuda, o Áquila foi para a direita e o Dominic para a esquerda — a


Guerreira diz ao provavelmente notar a minha dúvida de qual direção tomar.

Sempre que ele se sente mal, o contato com a natureza o ajuda. Dessa vez,
fui a responsável pelo mal-estar dele. Acho que nunca serei capaz de amenizar o
ódio que provavelmente o domina, mas preciso fazer alguma coisa por respeito a
tudo o que ele já fez por mim.

Atravesso o jardim em passadas rápidas para me aproximar dele, que está


sentado sobre a relva verde. Quando paro ao seu lado, ele cerra as mãos em
punhos e sua respiração fica mais pesada ao me notar.

— Você me humilhou, Isabelle — ele professa em um sibilo, encarando o


lago à nossa frente.

— Perdão, Dominic.

De uma só vez, o príncipe fica de pé e se aproxima tanto de mim que


nossas respirações se misturam.

— Perdão, Dominic? — As narinas dele inflam. — É isso o que tem para


me dizer? Você me usou, Isabelle! Não só a mim, mas à minha tia também, que
vestiu e educou uma garota que era uma ninguém.

As palavras dele esmiúçam meu coração, mas eu mereço. Mereço a fúria


do Dominic.
— Eu sei — sussurro.

— Você sabe? — Ele se aproxima tanto que, por um segundo, penso que
irá segurar meus braços e me chacoalhar, mas Dominic não encosta um dedo
sequer em mim. — Eu te considerei uma amiga, Isabelle. E antes que diga
qualquer coisa, sim, seria do meu benefício me casar com a última descendente
dos Tupper, mas não foi por questões políticas que saí do Norte para ir até
Lufstar te encontrar. Eu fui porque você precisava de ajuda e eu precisava te
conhecer na esperança de que talvez você pudesse me querer como um parceiro.
Não uma união fria. Um parceiro. Mas o que você fez desde o instante em que
pisamos neste palácio? — Ele respira fundo e engulo em seco. — Como o
imbecil que sou, continuei te dando a minha lealdade na esperança de que você
me desse a sua em troca, mas veja o que eu ganhei!

— Foi justamente por conta da lealdade que tenho por você que recusei
aquele acordo. — O interrompo em um rompante. — Eu não podia concordar
com aquelas exigências, Dominic. Ele queria os seus herdeiros a todo custo!

Dominic solta uma risada sem humor e desvia a atenção para o chão. Ele
fita o nada por alguns instantes. Quanto a mim, fico paralisada com o coração
lutando forte contra o meu peito.

— Fui paciente por entender que não fiz parte do seu passado e que, para
fazer parte do seu futuro, as questões pendentes que você tinha com o Áquila
precisavam ser encerradas. Em momento algum me senti traído. Nem mesmo ao
te encontrar hoje de manhã com roupas de dormir sentada ao lado dele. Você
ainda não era minha, a não ser no título. — Encolho os ombros. — Porém o que
você acabou de fazer na frente do Rei? — Ele aponta furioso na direção do
palácio. — Você pisou em cima de tudo o que tanto a minha tia, quanto eu,
fizemos por você visando benefício próprio! — Dominic termina gritando.
— Sei que parece que fui egoísta, mas não pensei em mim — respondo
com calma a fim de aplacar a fúria dele. — Eu pensei em você...

— Pare, Isabelle. — Dominic me encara com os olhos faiscando e o


maxilar trincado. — Seja corajosa e aja de forma autêntica no seu desvio de
caráter.

Nem penso no que faço, apenas reajo. Desfiro um tapa no rosto dele, que
me encara com os olhos arregalados ao levar a mão para a pele. Imagino que a
bochecha dele deve estar ardendo absurdamente, porque não medi força.

— Eu fiz por você, seu imbecil! — Agora sou eu quem grita ao cerrar os
punhos ao lado do corpo. — O Rei não quer o meu primogênito. Ele quer o
primogênito do Norte para enfraquecer o seu reinado e estava disposto a ir até a
última instância para usar a minha condição desfavorável com Yerus para tirar
vantagem de você, o futuro rei daquele reino. Ele não ia sossegar em ter o seu
herdeiro, não meu, mas seu — aperto o indicador contra o peito dele —, ou me
tirar de você a qualquer custo para que eu me casasse com o Áquila. Aquele
dragão traiçoeiro não iria permitir, sob hipótese alguma, que o futuro rei do
Norte fosse mais forte do que ele e deixou isso claro ao usar Lufstar como
punição por algo que era minha culpa! Como se todo esse absurdo não bastasse,
eu te conheço bem o suficiente para juntar os pontos e ter certeza absoluta de que
todas aquelas malditas reuniões, eram você ganhando tempo enquanto ponderava
se abria mão do seu primogênito por minha causa ou não! — Dou um passo para
frente e sou eu quem o encara com as narinas dilatadas. — Me odeie, Dominic.
Me transforme em inimiga, mas nunca me peça para aceitar que o seu futuro
filho seja condenado por minha causa ou que Lufstar caia nas mãos daquele
cretino. Eu gosto de você, caramba!

A culpa é minha por ter me colocado nessa situação miserável, mesmo


assim, a mágoa se apodera de mim. Faço menção de passar por ele para não
demonstrar a vulnerabilidade que sinto em cada fibra do meu ser. Dominic
segura meu pulso para me manter no lugar.

— Isa... — ele me chama de mansinho, mas não o encaro.

O príncipe aperta com mais força, mas me recuso a olhá-lo. Eu mereço, sei
que mereço tudo o que Dominic jogou para cima de mim, mas estou magoada ao
extremo com ele. Ter meus defeitos jogados na minha cara por quem não dou a
mínima é uma coisa. Ser acusada por uma pessoa com quem me importo
horrores é outra completamente diferente. E isso dói!

— Isa, eu não sei o que pensar. — Ele me solta e enterra as mãos nos
cabelos. — Você o ama e...

O encaro de uma só vez.

— Eu não sou covarde! Me coloquei em uma posição vulnerável no solo


dos meus inimigos. Acabei com todas as minhas alianças e, pior, os transformei
em inimigos em questão de segundos. Mas só porque estou condenada, não quer
dizer que vou arrastar inocentes comigo nessa. Você é livre para pensar o que
quiser a meu respeito, só que preciso te dizer que me entristece perceber que
justo você pensa tão baixo de mim. Com relação a amar ao Áquila, sempre
deixei claro que é algo que não sou capaz de controlar, então nunca te prometi
meu coração, mas te dei a minha amizade. — O encaro fundo nos olhos. — Você
não tem ideia do que sou capaz de fazer pelas pessoas com quem me importo.
Dentre elas, você está facilmente no topo.

Dominic alterna o olhar entre os meus olhos, provavelmente medindo as


minhas palavras e tentando encontrar a mentira. Fico ainda mais magoada e faço
menção de sair outra vez. Ele aperta de leve os dedos ao redor do meu pulso de
novo para me impedir de me mover.
— O que quis dizer com estar condenada? — O tom de voz dele é
exigente, o mesmo que já o vi usar com seus subordinados.

— Nada — respondo rápido.

— Isabelle...

— Dominic, terminamos? Sou sua inimiga declarada a partir de agora ou o


quê?

— Você também não tem noção do que sou capaz de fazer por quem prezo.
Mesmo destroçando minhas esperanças, e pisando nos meus sentimentos, você
continua no meu topo de pessoas prediletas, Isabelle.

Duramente, nos encaramos por alguns segundos. Embora as palavras dele


supostamente sejam agradáveis, elas carregam um significado a mais. Sou a
primeira a ceder à pressão e desviar os olhos para um ponto atrás dos ombros
dele.

Estou com um medo enorme de que o Dominic revele para mais alguém
que sei o que está acontecendo com a Hortense. Enquanto somos apenas eu, ele e
o Kaká detendo essa informação, é fácil dar seguimento ao meu plano. Mas se
Tina ou, pior, o Áquila descobrir...

— Você está me ameaçando de uma forma fofa? — pergunto ainda sem


encará-lo.

Ele solta uma risada sem querer, o que alivia a tensão entre nós dois.

— Talvez, princesa. A partir de agora não trato mais nenhuma questão do


meu reino com o Rei ou qualquer filho dele. — Entreabro os lábios e ele sorri de
forma a iluminar seus olhos. — Exatamente. Só aceito discutir as questões da
aliança que o reino do Norte tem com Yerus se for com você, a futura rainha
deles, portanto, eles deverão te reconhecer como princesa e te coroar.
Pisco tantas vezes que tenho medo de ter desenvolvido um tique nervoso.

Dominic acaba de me manter protegida ao mesmo tempo em que ferrou


comigo. O Rei terá dificuldades em atentar contra a minha vida, porém eu terei
dificuldades em libertar a Hortense, uma vez que a estabilidade de um reino cairá
em minhas mãos e não posso morrer como uma simples mortal. Não que eu
quisesse esse destino, o de morrer tão nova, é só que caiu nas minhas mãos essa
terrível missão e não tenho como fechar os olhos e fingir que não sei o horror
que está acontecendo com a minha antepassada há milênios!

— M-mas... — me calo e ordeno os pensamentos. Seguro as mãos dele e


respiro fundo. — Me ouça. Eu sei que o Áquila foi criado para ser um Guerreiro,
mas ele será um bom rei...

Dominic me ignora deliberadamente e até mesmo solta as mãos do aperto


das minhas.

— Tenho certeza de que a minha tia irá concordar comigo e solicitará uma
aliança com Yerus através de você em retorno por ter te ajudado no passado.
Lufstar e Yerus, enfim, terão a tão sonhada conciliação.

— Magnólia irá me transformar em inimiga por rejeitar o pretendente dela


depois de tudo o que ela fez por mim. Era esse o nosso acordo, portanto, tenho
uma dívida com ela e acabo de sambar em cima dessa dívida.

— Não sei o que quis dizer com “sambar”, mas temo que não, Isabelle. O
melhor cenário para a minha tia é ter um acordo com um monarca de Yerus.
Bem, ela terá com a futura rainha deles, portanto, creio que a dívida será quitada,
uma vez que você se afeiçoou a ela.

Minhas bochechas esquentam, porque declarar que gosto da Magnólia é


quase o mesmo que declarar que sou masoquista. Mas eu gosto daquela megera,
não nego.
— Agora sou eu quem não sabe o que pensar. Quem dirá o que dizer.

Contemplo o vazio. Dominic entrelaça os dedos aos meus e o encaro de


volta.

— Pense em uma forma de me perdoar por explodir com você e te chamar


de covarde.

— Você tinha todo o direito de se ressentir de mim depois daquela minha


jogada política. Por falar nisso, sou eu quem precisa conquistar o seu perdão. —
Deslizo as pontas dos dedos por sobre o local onde dei um tapa nele.

Dominic me puxa para um abraço. Respiro fundo e envolvo meus braços


ao redor dos ombros dele. Ele beija a lateral da minha cabeça e me aperta de
encontro ao seu peito rígido.

— Amigos? — Ele sussurra no meu ouvido.

Apenas assinto, porque estou em estado de choque. Ele se afasta e abre


uma pequena distância entre a gente.

— O meu desejo é que você tivesse me conhecido primeiro porque então


seríamos nós dois.

Sorrio, mas fico em silêncio, porque... não. O que sinto pelo Áquila não é
uma questão de ordem de quem veio primeiro. Ele poderia ter sido o último a
cruzar o meu caminho que mesmo assim meu coração seria dele.

Mesmo que o Áquila não me quisesse — e agora corro sérios riscos de que
me rejeite para valer — ainda assim eu iria me apaixonar por ele. É
simplesmente uma força inevitável que não adianta lutar contra.

E é por causa do Guerreiro que atravesso o palácio de extremidade a


extremidade. Entro na parte sem glamour, onde o Áquila fica, e sinto um peso
afundar na boca do meu estômago.
Diferente de como foi com o Dominic, com o Áquila sim me falta coragem
para ficar frente a frente.

Não sei se o Guerreiro irá querer conversar comigo, então, em vez de


invadir o quarto dele, como fiz uma vez no passado, paro ao fim da passarela e
me sento na mureta de frente para o gramado que cerca a torre dele.

Está inteiramente nas mãos do Áquila. Não nas minhas. Se ele me rejeitar,
vai doer, mas vou entender. Será merecido. Mas se ele me quiser... sempre fui
dele, não importa as circunstâncias.

Depois de um tempo, o Áquila aparece distraído na sacada do quarto. A


distração dele dura pouco, porque logo seus olhos cravam nos meus e fazem meu
coração perder uma batida.

O Guerreiro me dá as costas e volta para dentro.

Acho que ganhei minha resposta. Ele me odeia por rejeitá-lo vez após vez
para, no fim, cair na trama do pai dele. Se os nossos papéis se invertessem, eu
também ficaria magoada por querer ficar com ele por amor e ele só aceitar ficar
comigo por causa de fins políticos.

Eu não o perdoaria e não acho que o Áquila deveria me perdoar, mesmo


que doa até os meus ossos confessar isso a mim mesma.
Bato com força a porta do meu quarto atrás de mim.

Agora sim entendo o dilema que a Isabelle enfrentou em relação a nós dois
no passado. Até então, só fui capaz de nutrir apenas um tipo de sentimento por
ela. No entanto, depois de ser rejeitado não uma, mas diversas vezes, para
naquela maldita reunião ouvi-la me pedir em casamento por questões políticas?

Quero arrancar com os dentes o que sinto por ela do meu peito! Quero me
livrar desse maldito sentimento que intoxica meu coração e me faz renunciar à
minha honra como se eu fosse um tolo apaixonado! Maldito que sou!

Pela primeira vez tenho vontade de voltar a ser a besta que sempre fui até a
Isabelle cruzar o meu caminho. Não existia essa questão de sentir. Tudo que eu
tinha eram necessidades e satisfazê-las me bastava.

Porém, desde o dia em que aquela garota insolente apareceu na minha


vida, passei a ansiar por mais vindo dela e agora virei um peão tanto no tabuleiro
do Rei quanto no do dela. Maldita seja!
Ando de um lado para o outro no meu quarto e chego à conclusão de que
preciso descarregar esse acúmulo de raiva. Sei que treinar irá resolver a questão,
mas tenho medo de começar e voltar, de fato, a ser a besta que eu era. É uma
linha muito tênue e não quero dar sorte ao azar. Se eu desligar a minha
humanidade, sei que será um caminho sem volta e não creio que estou preparado
para isso. Pelo menos ainda não.

Puxo a gola da camisa para frente. Preciso de ar e de alívio da pressão


sobre os meus pulmões. Até mesmo sigo para a sacada pensando em uma forma
de dar vazão para esse acúmulo de energia ruim. Um segundo depois e meu olhar
é atraído para a Isabelle lá embaixo, sentada na última mureta da passarela com
os pés sobre o meu gramado.

Paro de pensar em qualquer coisa quando nossos olhares se encontram.


Minha mente simplesmente fica branca e tudo o que enxergo é ela, a mulher que
domina os meus sentidos.

Dou as costas a ela e volto para o quarto. Hesito por um segundo, no


entanto resolvo por descer de dois em dois degraus as escadas em caracol. Em
instantes, alcanço o gramado e, ao menor do meu vislumbre, Isabelle para de
encarar as mãos, que aperta nervosamente em seu colo, para me encarar
mordiscando o lábio inferior, um sinal da apreensão que a domina.

— O que veio fazer aqui, Isabelle? — pergunto ríspido e à distância. Até


mesmo aperto os punhos ao lado do corpo.

Embora nitidamente temorosa, ela não desvia o olhar do meu. Ela


simplesmente engole em seco e respira fundo.

— Sei que a minha atitude foi horrível... Fazer aquela jogada política logo
depois de tudo o que você me disse mais cedo... Depois de tudo o que fez por
mim. Você cuidou das minhas irmãs e sei que pode parecer que te menosprezei.
Acredite em mim, eu valorizo cada pequeno gesto seu. — Ela prensa os lábios
em aflição à espera de uma resposta. Fico em silêncio. Seus ombros desabam,
mas seus olhos nem por um segundo desviam dos meus. — Independentemente
de qualquer coisa, Áquila, preciso deixar claro que, desde que me apaixonei por
você, descobri que se não for para ser você, não será mais ninguém. Não há
outro homem. Nunca ouve. O meu coração não vale muita coisa também, mas é
seu. — Isabelle me encara fundo nos olhos. Ela sequer pisca, porque quer que eu
acredite em cada palavra que me diz.

— Maldito inferno sangrento! — praguejo e então ando na direção dela.


Isabelle também se levanta e vem até mim. Ambos aumentamos a velocidade das
nossas passadas e, no meio do gramado, nossos corpos colidem.

Ela é minha e eu sou dela. É isso o que a trouxe de volta, mais uma vez.

Sem nenhum esforço, ergo-a do chão e levanto seu vestido para que
envolva as pernas ao redor da minha cintura com facilidade. Suas coxas me
apertam em um agarre firme enquanto as mãos pequenas dela molduram meu
rosto e seus lábios cálidos descem de encontro aos meus. Espalmo as mãos no
traseiro dela e puxo-a para que se agarre ainda mais em mim, firmando seu peso
completamente.

— Eu amo você com cada fibra do meu ser, Guerreiro — ela sussurra
contra a minha boca como se quisesse que eu bebesse cada sílaba.

As palavras dela até me geram um certo tipo de conforto, mas ainda estou
carregado de uma raiva abrasadora, cuja responsável por isso é a mulher
agarrada a mim. O Rei tramou para que a Isabelle fosse minha no papel e ela
aceitou cair nos planos dele.

Por conta disso, estou furioso e preciso descarregar essa fúria de qualquer
forma. Acontece que, agora que a Isabelle apareceu na minha frente, sei que não
será com treinamentos castigando meu corpo, correndo o risco de voltar a ser a
besta que eu era. Isabelle vai descobrir o que significa ser minha no papel e no
quarto, porque é assim que escolho extravasar esse acúmulo de energia. Também
não dou a mínima se ela ainda tiver pouca experiência na cama.

Sou um homem beirando a selvageria e ela é a tola que surgiu bem no


meio do meu descontrole.

Volto para dentro da minha torre e subo as escadas até o meu quarto. As
coxas dela apertam a minha cintura o tempo todo, talvez porque a Isabelle pense
que será como foi da última vez em que nos deitamos. Ela está enganada e, assim
que entramos, mostro isso ao descê-la para o chão e imediatamente a prensá-la
com o meu corpo rígido contra a porta fechada.

Levo as mãos até a gola da minha camisa e a retiro por cima. Isabelle arfa
de leve quando meu peitoral fica nu, exposto à sua frente.

Com dedos firmes, nada trêmula, nada apreensiva, ela percorre cada sulco
e elevação do meu corpo. Faço menção de agarrar seus pulsos e impedi-la de me
tocar. No entanto, paro ao toque das pontas dos seus dedos dedilhando meu
abdômen, exatamente onde uma vez esteve uma cicatriz que conquistei em
Salavinder e que agora não existe mais.

— Como? — Ela ergue a cabeça para me encarar nos olhos, sem parar de
me tocar.

Não respondo, porque me ocupo em devorar seus lábios suculentos.


Isabelle solta um gemido baixo e imagino que agora não há mais nenhuma
questão que queira discutir comigo rondando sua cabeça, uma vez que ela agarra
com força os cabelos da minha nuca enquanto me puxa para baixo, colando suas
curvas femininas e agradáveis ao meu corpo bruto.

Prenso-a dessa vez contra a parede, sem permitir qualquer espaço entre os
nossos corpos dominados pela luxúria. Comecei querendo apenas extravasar a
raiva que sinto dela, no entanto a Isabelle conseguiu somar a isso uma
embriaguez do desejo que sinto por ela há anos.

Remexo o quadril para que sinta minha ereção e perceba o quanto estou
pronto para reivindicá-la para mim de uma vez por todas. Ela arfa gostoso na
minha boca em resposta, o que por sua vez me ensandece. Percorro minhas mãos
calejadas pela pele macia com toque de pêssego dela até encontrar a peça íntima
que a envolve.

Isabelle se contorce quando alcanço a barra da costura fina e o toque macio


de suas mãos em meus ombros me contém de seguir adiante.

— Áquila. Espera. — Solto um grunhido rouco e com muito esforço


consigo parar de devorar seus lábios e de esfrangalhar a peça íntima que a
reveste. — Vim até aqui para me explicar, caso você não estivesse com muita
raiva de mim e quisesse me ouvir...

— Eu não estou com muita raiva — corto-a.

— Não? — Ela perde o rumo.

— Eu estou furioso com você! E não quero uma maldita explicação agora.
O que quero é me enterrar fundo em você e te mostrar o que o seu pedido
implica.

Isabelle arregala os olhos, o que por sua vez me faz ter certeza de que
continua inexperiente. Aposto a minha honra que a única vez em que ela se
deitou com um homem, esse homem era eu e isso há um tempo considerável.

Em outras circunstâncias, essa descoberta seria o suficiente para me fazer


ir devagar para não assustá-la, mas não hoje. Hoje o maldito eixo do meu mundo
foi virado de ponta cabeça por ela.
— Você se refere ao pedido de casa... — Afasto o pano para o lado e toco a
intimidade úmida dela. — Ah! — Isabelle tomba a cabeça para trás e solta um
gemido que enrijece ainda mais o meu membro, que clama pelo corpo dela.

Toco-a não na intenção de proporcionar qualquer tipo de alívio para o


corpo dela e sim para medir se está pronta para me receber. Mesmo muito
lubrificada, custo para introduzir um dedo em sua entrada. Percebo que não
tenho como começar do jeito que eu gostaria. A Isabelle não vai conseguir me
receber de primeira como desejo ser recebido.

Retiro a mão de debaixo do vestido e Isabelle solta um protesto


involuntário beirando a lamúria. Não pensei que ela seria capaz desse feito, mas
sorrio diante sua sinceridade e beijo delicadamente seus lábios aveludados.

— Comece primeiro, Belle.

Afasto-me dela e ela me encara com os lábios entreabertos e os olhos


pesados de prazer.

— Hã?

Dou as costas a ela e juro que sou capaz de sentir o peso do seu olhar me
acompanhando a cada passo que dou. Sento-me no sofá e abro as pernas.

Isabelle ainda está parada me observando com desejo escorrendo de suas


feições. No entanto, ela também está terrivelmente confusa. Abro um sorriso de
lado e dou uma batidinha na minha perna, um chamado claro para que se
aproxime.

Sem nem pensar, Isabelle sai do seu estado de inércia e caminha até mim.
Ela para em pé à minha frente sem saber o que fazer em seguida. Agarro sua
cintura fina para que se aproxime ainda mais do meu colo.
— Aquela posição dá certo. — Minha voz arranha minha garganta
enquanto meus olhos, pesados de prazer, cativam os dela.

Uma vez a Isabelle estava sentada no meu colo e tentou me seduzir ao


perguntar se era possível nos satisfazer naquela posição. Mesmo requerendo
muito esforço da minha parte, percebi que não era momento para aquilo e a
afastei. No entanto, agora finalmente chegou o dia de mostrá-la que sim, é
possível nessa posição e é o que faremos.

Subo minhas mãos calejadas de antigas batalhas pela pele macia e


imaculada de suas pernas e a saboreio com o toque. O tempo todo Isabelle me
assiste com um desejo que quase chega a ser palpável. As pontas dos meus dedos
encontram novamente o pano fino da peça íntima por debaixo do seu vestido.
Isabelle arfa e então mordisca o lábio inferior. Os olhos dela me imploram por
mais.

Deslizo a peça lentamente para baixo e ela permite com facilidade que eu a
retire. Ela até mesmo me ajuda a livrá-la da peça ao erguer uma perna e então a
outra. Isabelle leva as mãos aos botões do vestido e faz menção de desabotoá-lo.
Seguro seus pulsos no lugar e a impeço de seguir adiante.

— Não — digo firme e ela assente.

Isabelle para de tentar qualquer coisa e simplesmente me permite assumir o


controle completo da situação. Guio-a para que se sente em mim com as pernas
abertas e ela faz tudo com docilidade.

Tomo alguns segundos para observar a minha deusa sensual sentada ainda
de vestido sobre o meu colo. Aperto os dedos contra as palmas das minhas mãos
para controlar a urgência de tomá-la de forma abrupta e, ao invés, ajeito a saia do
seu vestido ao nosso redor.
Estou a um fio de me entregar a selvageria que luta para me dominar, então
vê-la nua não é uma opção. Isabelle não está pronta para me receber dessa forma.

Espalmo as mãos em seu traseiro e a puxo para mais perto para senti-la,
por enquanto, apenas por sobre o pano da minha calça. Ela perde completamente
a mansidão, uma vez que seus lábios molhados descem ao encontro da pele
quente do meu pescoço e distribuem beijos sensuais que me colocam em um
completo estado de agonia.

Isabelle me devora com a mesma fome que sinto por ela, no entanto sei
que comigo será completamente diferente da forma como acontece com ela,
então luto contra a libertação do meu eu selvagem. Sempre quando assumo a
besta, fico fora de controle. No campo de batalha, mato sem qualquer pingo de
misericórdia. Na cama, sei que esse meu lado irá machucá-la, então me seguro
até que ela fique pronta.

Alheia acerca da minha luta interna para segurar a minha besta no lugar,
Isabelle suga a pele do meu pescoço e então mordisca o meu ombro. Paro de
pensar em qualquer coisa e, em reação, enterro os dedos em sua cintura delgada.
Remexo o quadril dela sobre o meu membro rígido em busca do alívio dela para
que eu possa assumir completamente o maldito controle dessa nossa situação
angustiante.

Isabelle volta a boca para a minha, mordisca meu lábio inferior e o puxa de
leve.

— Confessa, Guerreiro. Desde o dia em que perguntei se essa posição dava


certo, você vem fantasiando com esse momento entre nós. — Os olhos dela
brilham de prazer e diversão.

— Com uma frequência enervante — confesso.


Isabelle abre um sorriso convencido e então volta a me beijar. Solto um
rugido do fundo do meu âmago e agarro com força os cabelos da sua nuca para
trazê-la ainda mais para perto.

Não desejo apenas me enterrar nela. Desejo me fundir a Isabelle de tal


forma que ela jamais irá se esquecer deste dia.

Capturo seus lábios com ainda mais força e, por muito pouco, não solto a
minha fera sobre ela. Recobro uma parcela miserável do meu autocontrole e
afasto-a de leve. A encaro fundo nos olhos e com tanta seriedade que o misto de
diversão dela evapora completamente. Creio que finalmente a Isabelle se deu
conta de que está brincando com uma fera que está há um passo de virar aquele
monstro que uma vez a fez vomitar até as tripas depois de uma luta.

— Áquila, os seus olhos... — ela sussurra. — Eles estão duros como no dia
em que...

— Isabelle, estou a um fio de perder a sanidade. — Alerto-a com tremenda


dificuldade, uma vez que meus sentimentos selvagens estão à flor da pele.

— O que devo fazer? — Sua voz soa firme. Nada de hesitação ou


fraqueza. Isabelle também se mantém firmemente no lugar, sem se mover um
milímetro que seja do meu colo.

Maldita seja essa garota inconsequente que não foge nem diante de um
evidente perigo!

— Vou te dizer o que vai acontecer se você ficar aqui. — Ela assente com
um misto de apreensão, mas também com muito desejo. — Você vai ditar o ritmo
no início. Assim que encontrar o seu alívio, estará pronta para me receber da
forma como desejo que me receba. A partir daí o controle será todo meu. Todo.
Meu. — Friso para deixar claro essa parte.
A resposta que recebo é um gemido feminino tão sensual que minha ereção
enrijece ainda mais de uma forma que beira o insuportável.

Embora evidentemente inexperiente, Isabelle não tem melindres. Sua mão


adentra a saia do vestido ao nosso redor e então a minha calça. Seus dedos tocam
a pele quente do meu membro rígido enquanto ela me assiste o tempo todo
medindo de perto a minha reação.

Mordisco seu lábio inferior em resposta de que até agora está tudo bem.
Ainda sou eu. Logo fico livre e ela posiciona a abertura úmida sobre a minha
ponta inchada.

O problema dessa nossa junção é que a Isabelle é absurdamente atraída


pelo perigo e eu sou o próprio perigo. No entanto, se ela me quer de qualquer
forma, então estou mais do que pronto para me soltar sobre ela assim que for
possível.

— Aos poucos, você consegue me tomar por inteiro. — Deposito um beijo


sereno ao pé do seu ouvido, roço os dentes na pele quente de desejo do pescoço
dela e então distribuo lambidas provocantes no colo do seu peito.

O tempo todo luto contra a besta para deixar a Isabelle o mais pronta o
possível e isso é todo o incentivo que ela precisa para seguir adiante. Logo a
deusa sensual da minha Belle desce movimentando languidamente os quadris,
me fazendo prensar os olhos com força enquanto solto um grunhido alto diante o
delírio que é estar enterrado em seu corpo com suas paredes internas me
apertando de uma maneira insanamente prazerosa.

— Céus! — Jogo a cabeça para trás e repouso no encosto do sofá,


desfrutando da sensualidade que é tê-la apertando meu membro inchado, que
duplicou de tamanho dentro dela.
Engulo em seco, o que me rende uma lambida sensual no meu pomo de
adão. Isabelle me cavalga, ganhando cada vez mais confiança nos seus
movimentos. Nem por um segundo ela retira as mãos e a boca de qualquer parte
que seja do meu corpo. Em contrapartida, também não paro de apertar minhas
mãos contra suas coxas macias.

— Você sempre pragueja com infernos — sua voz rouca, carregada de


luxúria e confiança no que está fazendo comigo, me arrepia da cabeça aos pés.

— Você está me levando ao paraíso — respondo, tonto de prazer.

Não sei se é algo no meu comentário, ou se tem relação com o fato de que
estamos embriagados de desejo acumulado, ou se a consciência de que agora ela
é minha e eu sou dela de forma definitiva. O que posso afirmar com certeza é
que a nossa conexão supera a carnalidade, atingindo algo transcendental. E é
com ela nos conduzindo.

A respiração dela fica ainda mais entrecortada e seu ritmo acelerado.


Rasgo o decote do seu vestido e capturo um dos seus seios, que saltam
lindamente para fora, com a minha boca. Revezo-me entre eles, os apreciando
com meus lábios, língua e dentes enquanto a Isabelle remexe os quadris ainda
mais ensandecida. É essa a junção prazerosa que a faz gritar o meu nome
enquanto seu corpo se desfaz mole em cima do meu.

Isabelle para de se movimentar e noto como sua respiração está


entrecortada. Ela pousa a testa contra a minha, sem mexer um músculo que seja
para desfazer a conexão dos nossos corpos, e respira o mesmo ar que o meu.

— Terminou? — ingenuamente ela pergunta.

— Meu amor, agora que vou começar com você.

Ela arregala os olhos temerosa, no entanto mordisca o lábio inferior


demonstrando desejo.
Chego à conclusão de que a Isabelle não tinha, e ouso dizer que ainda não
tem, a menor noção de onde estava se metendo ao escolher ficar no meu quarto.
No entanto, agora ela vai descobrir.

Retiro-a de cima do meu colo e a guio para a cama. Isabelle faz menção se
deitar de costas, no entanto não permito que siga adiante e puxo de leve seu
braço.

— Não. Agora será do meu jeito.

Ela engole em seco e posso jurar que até mesmo o ar que nos cerca está
mais tenso. No entanto, Isabelle para no lugar e se mantém quieta ao me assistir
despi-la até que fique completamente nua diante de mim. Ao som do seu vestido
caindo ao nosso redor, ela me lança um olhar ansioso por debaixo dos cílios
espessos, um pedido claro por orientação.

— Deite-se de bruços na beirada da cama. Pés no chão.

Suas pupilas dilatam, provavelmente ao notar que agora a besta assumiu o


controle. No entanto, nem por um segundo ela hesita em acatar a ordem.

Finalmente pego as rédeas de volta e controlo o ritmo do nosso desejo.


Isabelle está mais do que pronta para receber o meu lado selvagem, que anseia se
derramar dentro dela.
Posso afirmar, de forma absoluta, que eu achava o que poderia acontecer
se eu continuasse na torre do Áquila. Como fui ingênua! Foi prepotência assumir
que eu seria capaz de lidar com a besta interior dele.

O Guerreiro finalmente — finalmente! — deita-se de costas na cama ao


meu lado. Acho que preciso de um ano para me recuperar dessa sessão de... acho
que prazer.

Sou muito inexperiente, o que por sua vez me deixa sem parâmetros, mas
acho que a forma como ficamos, quando o Áquila assumiu o controle
completamente, foi bem animalesco. A comparação tosca que consigo fazer é
como se o meu corpo fosse um bife suculento dando bobeira para um leão voraz.
Mas eu gostei de ser o jantar dele.

Porém, se o Guerreiro fizer miséria com o meu corpo novamente, me


dando prazer de uma forma que esfrangalha com a minha mente, acredito que ele
irá me destruir. Então, se o Áquila vier para cima de mim daqui a um minuto —
de novo! — vou empurrá-lo e sair correndo da torre dele gritando por socorro.

Ele está me olhando com cara de desejo outra vez. Ah, não!
Penso em fingir que dormi, mas é óbvio que fechar os olhos de supetão e
forçar uma respiração mais calma não vai ajudar a minha causa. Desesperada,
procuro por outra forma de distração.

Uma conversa. Isso. Preciso iniciar uma conversa, porque se ele quiser, eu
quero, mas posso morrer, então melhor não. Em um mês meu sistema nervoso
volta a funcionar perfeitamente e então será possível outra sessão de... prazer?

— O que aconteceu com as suas cicatrizes?

Toco propositalmente em um assunto sensível. Da primeira vez em que


ficamos juntos, onde o Áquila tirou a minha virgindade, ele ficou visivelmente
apreensivo por causa das marcas em seu corpo. Acho que ele sentiu medo de que
elas me causassem aversão. Besteira. O corpo desse homem é perfeito com ou
sem cicatrizes.

Ele para de fazer a carícia com as pontas dos dedos na musculatura da


minha perna. Internamente, solto um resmungo por ter conseguido com que o
Áquila parasse, porque eu sou louca por ele e quero mais, mesmo sabendo que é
um completo perigo.

— Existem láudanos que renovam a pele. Também é possível remover


tatuagens. — Ele apoia o cotovelo na cama, a cabeça na mão, e fica meio deitado
sobre mim.

— Eu te proíbo, Áquila! — Deslizo o dedo pela tatuagem na parte interna


do bíceps dele. — Não gostei nem de você ter tirado as cicatrizes. Elas contavam
uma história e...

— E? — O Guerreiro abre um sorriso de lado ao perceber a minha


resistência em complementar a frase.

E eu amo qualquer parte dele, desde as mais lindas até as mais feias, mas
não quero tocar nesse assunto. Posso ser inexperiente na cama com um homem,
mas não sou iludida de acreditar que isso que fizemos dispensa uma conversa
para resolvermos as nossas pendências.

Talvez o Guerreiro pense que sim, pelo menos por ora, e por isso ainda não
levantou o assunto. Acontece que, para mim, não termos essa conversa é a
melhor coisa que pode me acontecer, uma vez que tenho algo que quero
continuar escondendo dele.

Pensando bem, foi uma péssima ideia tentar distraí-lo com uma conversa.

— Só não tire mais nada — digo e logo em seguida fecho os olhos. Fingir
dormir era a melhor estratégia e a aplico agora.

Os lábios dele tocam serenamente a ruguinha que sei que surgiu na minha
testa por causa do frenesi dos meus pensamentos. Simples assim, Áquila
consegue me distrair do medo que sinto de uma conversa entre nós e volto a abrir
meus olhos, porque sei que é o que ele espera que eu faça.

— Compreendido, minha senhora — ele beija o canto da minha boca —,


minha princesa — recebo outro beijo no outro canto —, minha futura rainha —
ele pousa a testa contra a minha e me encara fundo nos olhos —, minha Belle. —
Áquila pronuncia o apelido que me deu como se o saboreasse.

— Esse Belle... — Beijo seus lábios com avidez.

Recobro um fio de sanidade e paro antes que as coisas esquentem de novo.


Inverto nossas posições na cama e deito-me sobre o corpo dele, que mais se
parece com a obra-prima de um artesão habilidoso. Respiro fundo, pensando que
o distraí, portanto, agora vamos descansar.

Quando quase pego no sono, sinto a parte íntima dele ganhar vida de novo.

— Você está cutucando a minha barriga — resmungo, sonolenta.


Áquila inverte nossas posições, se encaixando entre as minhas pernas, me
soterrando com o peso gostoso do seu corpo musculoso. Ele diminui ainda mais
o espaço entre nós e então sua ereção cutuca a minha entrada.

Imediatamente recordo da nossa primeira vez. Foi nessa posição que o meu
Áquila me amou. Quanto a hoje, até então, os nossos corpos foram apenas um
meio para termos prazer.

Lembro também que, naquela época, eu gostei de ter dado a ele a minha
virgindade. Não foi tão doloroso quanto pensei que seria. Mas nada — nada
mesmo! — se compara ao que foi esse homem animalesco hoje do início até...
não sei se ele chegou ao fim.

— Agora estou “cutucando” o lugar certo?

Sinto vontade de rir ao ouvi-lo imitar o meu jeito de falar, mas quando ele
se remexe, o que faço mesmo é soltar um gemido misturado a lamúria.

— Deus! E eu aqui jurando que sairia correndo pedindo por socorro —


murmuro para mim mesma.

— O que isso significa? — Ele para de se movimentar. Totalmente.

— Você é insaciável, Guerreiro! E, como a inconsequente que sou, pensei


que eu daria conta. Só que estou abalada, tentando entender o que foi essa
experiência que tivemos.

Áquila franze o cenho e me encara com seriedade. Preocupado, ele desliza


os dedos por sobre o meu rosto.

— Eu te machuquei, Belle?

— Não.

— Te assustei então?
— Digamos que foi uma surpresa assustadoramente prazerosa.

— Isso é bom ou ruim?

— Posso me acostumar. Acho que uma semana é suficiente para você


pegar o controle de novo.

— Não sei se as suas respostas estão me satisfazendo.

— Mas, acredite, eu estou atordoadamente satisfeita.

— Não gostei das suas respostas ambíguas e quero deixar uma nova
impressão em você. Prometo que meus ânimos acalmaram, portanto vou ser
romântico dessa vez.

Deus! Consigo de novo, certo?

Não tenho chances de pensar a respeito, porque o meu Áquila, não aquela
fera descontrolada, beija os meus lábios languidamente. Ele introduz a língua na
minha boca e me saboreia como se eu fosse um manjar dos deuses.

Arfo quando a mão calejada dele toca a pele sensível do meu seio desnudo.
É uma das sensações mais sensuais que já vivenciei, ter as partes brutas dele
tocando as minhas sensíveis.

Sem pressa, ele desliza pelo meu corpo, distribuindo uma trilha de beijos
com os lábios e a língua pelo caminho. O gesto em si é sensual, mas a forma
como o Áquila faz é mais do que isso. Seus toques em mim são de reverência.
Não sinto como se fosse um corpo para ele obter e dar prazer, mas sim que ele
me enxerga no meu corpo, eu, Isabelle, e então o venera.

Nenhum toque é desperdiçado. Cada um transmite uma mensagem que ele


deseja gravar em mim. Áquila me ama.
Somente agora sou capaz de compreender o que significa fazer amor. É
isso o que ele está fazendo comigo, ouso pensar, pela primeira vez. E nem
penetração houve ainda, porque ele não está com pressa.

Não estamos consumidos pela chama da paixão. Ela já foi saciada pelo
meu lado inconsequente e o lado perigoso dele. As nossas partes que reivindicam
o controle, e ditam os nossos toques e reações, é a pureza dos nossos sentimentos
mais íntimos que nenhuma situação, ou condição, foi capaz de quebrar até hoje.

Compreendo, de forma ainda mais clara, que amo esse homem e que ele
me ama. Nossos corpos expressam isso um ao outro, em uma comunicação
própria ao nos apalparmos e beijarmos apreciando cada pequeno gesto, o que por
sua vez gera um prazer ímpar.

Seguro o rosto do meu Áquila entre as minhas mãos e o encaro com tanto
amor e carinho que sei ser impossível ele não sentir a minha veneração de volta.

— Eu gosto de todas as formas que você fez comigo, mas essa em


particular... — sussurro contra seus lábios e é tudo o que ele precisava ouvir para
sua ereção não apenas tocar a minha entrada de forma provocante, mas entrar um
pouquinho em mim, aflorando um êxtase sem medida em cada célula do meu
corpo.

— Céus! Você já está pronta para me receber por inteiro mais uma vez.

— Parece que sim.

Ele encosta a testa no meu ombro e em resposta beijo a lateral da sua


cabeça. Áquila desliza mais um pouco para dentro de mim e então seu hálito
quente aquece meu ouvido.

— Vou continuar devagar, amor. Prometo.


O rosto dele paira sobre o meu e seus dedos buscam por uma mecha do
meu cabelo, que ele afasta com carinho da minha testa.

— Eu gosto disso — sussurro ao acariciar com os nós dos dedos a lateral


do rosto dele. Nossos olhares conectados. O âmbar dos seus olhos me
embriagando com o amor dele que derrama sobre mim e vice-versa.

— Do que você gosta? — Ele arremete devagar, sem parar de me encarar.


Também não fecho os olhos. — Disso? — Ele sai e entra lentamente, acertando
um ponto interno que me deixa com uma vontade absurda de fechar os olhos e
murmurar coisas sem sentido, mas me concentro na cor âmbar como se ela fosse
uma âncora para a minha alma.

— Disso. E dessa conexão. E de te ouvir me chamar de “amor”, porque


você também é o meu amor.

Seus lábios encontram os meus, mas ele não fecha os olhos. Também não
fecho os meus. Jamais imaginei que Áquila e eu pudéssemos ter um momento
tão... dócil e romântico. Mas é assim que me sinto nos braços dele e aposto que o
inverso também é verdadeiro.

Áquila retarda o nosso prazer, que demanda ser liberto, ao entrar e sair de
dentro de mim repetidas vezes com uma languidez de ensandecer uma mulher.
Nunca perdemos o contato visual. Nossos lábios também não se afastam nem por
um milímetro que seja da pele um do outro.

Não verbalizo mais nada, mas o amo com tudo o que há em mim e recebo
seu amor com tudo o que há nele. Sem ressalvas. Quero tudo. As partes boas e
ruins da personalidade dele. E entrego tudo também. As partes boas e ruins de
quem sou.

— Meu amor. Minha Belle — ele sussurra contra os meus lábios.


— Meu amor. Meu Áquila — sussurro de volta e então o prazer me
encontra.

Nossos mundos explodem ao mesmo tempo em um caleidoscópio e ao som


da melodia dos meus gemidos misturados aos grunhidos masculinos mais
sensuais existentes.

— Preciso de um banho — múrmuro meio grogue enquanto fico em pé,


porque também preciso dormir. Só que o banho é essencial!

— Vamos juntos.

— Nem vem. — Pulo para me afastar do toque dele e aponto o dedo em


riste em sua direção. — Você fica aí. Só me fale onde é o banheiro, ou o cômodo
de banho, como vocês chamam por aqui.

Ele me ouve? Não. Claro que não!

Nu, Áquila também fica em pé e envolve os braços ao redor da minha


cintura, me abraçando por trás. Ele estende a mão e pega um frasco sobre a
pequena cômoda ao lado da cama.

— Beba dois goles.

— O que é? — pergunto antes de pegar o frasco.

Áquila esfrega o nariz no meu pescoço, pouco se importando se estou toda


melecada tanto do meu suor, quanto do dele. O que posso dizer é que foi o
treinamento mais intenso que já tivemos de todos os tempos e não sei se foi sorte
ou azar nós dois termos uma boa resistência física.

— Algo necessário a você depois de toda essa atividade na cama.


— Só na cama? — Sorrio e dou as duas goladas que ele me instruiu,
imaginando se tratar de algum contraceptivo.

— Vamos. — Ele dá um tapinha na minha bunda depois que volto o frasco


para o lugar dele. — Ou prefere que eu te carregue?

— Eu não me oporia — murmuro para mim mesma, mas ele me ouve,


porque mal fecho a boca e um de seus braços passa por debaixo das minhas
pernas, me suspendendo no ar. Enlaço seu pescoço e beijo a ponta do seu nariz
com ternura. Áquila mordisca meu maxilar em resposta. Ele me desce quando
entramos no que, para eles, é uma espécie de chuveiro.

Não é água encanada. A única coisa que entendi da explicação do Kaká,


que ficou bobo com o sistema deles de distribuição de água, é que o transporte
dela não é feito por tubulações como a gente tinha na nossa casa. O “chuveiro”
de Pedralhos é parecido com uma espécie de pequena cachoeira.

Outra coisa que também chocou o meu irmão, e que pouco entendi, é que
há regulagem da temperatura porque eles detêm o conhecimento de condução da
energia térmica, mas desconhecem a energia elétrica, por isso não há aparelhos
eletrônicos. Segundo o meu irmão, com o que eles já têm, seria possível
construir um meio de obter energia elétrica.

Foi tudo o que entendi sobre uma pequena parcela do conhecimento de


física do Palácio de Pedralhos sem fazer questão alguma. Faço mais o estilo que
desfruta de um bom banho quente com o meu Guerreiro e é isso.

— Onde você prefere que sejam os nossos aposentos? Aqui, nesta torre
antiga, ou na parte mais nobre do palácio?

Deixo o sabão cair no chão. Entro em desespero por ter baixado a guarda e
não pensado em uma forma de fugir de perguntas como essa. Caramba! Eu só
pensei em como esconder os meus planos dele em uma possível conversa de
acerto de contas.

A pergunta do Áquila implica que, para ele, sexo foi mesmo um acerto de
contas e nada de conversa. Bem, fui pega desprevenida, porque eu não esperava
mesmo por essa.

— Belle, é completamente possível uma reforma, se não te agrada a


construção arcaica. E você não me ofende se não gostar da ideia de ficarmos
nesta torre. Sou indiferente a essas questões, por isso não me importei quando fui
alocado aqui e continuo simplesmente por uma questão de hábito.

— É interessante a questão da privacidade — respondo o que acredito ser


neutro e volto o sabão para o lugar dele.

— E quanto a decoração?

— Um verde muito fechado e em excesso. Cortinas. Tapetes. Tapeçarias.


Roupas de cama... Isso escurece muito o seu quarto. — Fico assustada com a
minha capacidade de agir de forma dissimulada, mas nem gaguejo, embora não
consiga olhar nos olhos dele.

— Que cor você gosta mais?

Respiro fundo. Sei que estou entrando em um caminho muito, muito


perigoso. Fantasiar um futuro ao lado do Áquila pode me fazer desistir do meu
propósito e, por consequência, colocar tudo a perder. Então não faço isso, mas
relembro dos sonhos da garota pobre que uma vez eu fui.

— Eu tinha uma colega na escola que não morava na favela e sim em uma
região um pouco mais nobre da cidade. Certo dia, ela me convidou para passar
uma tarde na casa dela e fiquei bem impressionada com o branco. Tapete branco.
Cortinas brancas... A gente nunca teria aquilo e pensei como seria legal, porque a
casa dela parecia mais iluminada. Fayrehal também me despertava essa
sensação. Ah, e na casa dessa minha colega, também tinha um cheirinho.

— Cheirinho?

— Um perfume de ambiente. Eu achava bem legal esse conjunto de cor,


luminosidade e cheiro.

— Branco, luz e perfume. — Ele espalma uma mão molhada no meu rosto
e beija meus lábios delicadamente. — É o que teremos.

Meu coração aperta e me falta ar nos pulmões. Acho que meus olhos se
enchem de lágrimas, porque estão ardendo absurdamente.

— Belle? O que foi?

Esconder da Tina é uma coisa. Mentir para o Dominic outra. Mas o


Áquila? A minha capacidade de dissimular com ele não dá muito certo. A culpa
que me domina é terrível! Essa questão de noivado com ele é um risco tremendo,
mas tenho que tentar algo para afastar qualquer tipo de suspeita que o Áquila
possa vir a ter.

— Nada. É só que as minhas irmãs já foram soltas e ainda não as encontrei


de novo. — Uso algo que ele com certeza irá acreditar que me sensibiliza.

Não sei se ele está caindo, então sorrio e passo meus braços por sobre seus
ombros, unindo meus pulsos atrás da cabeça dele.

— Eu precisava vir ver se um certo Guerreiro estava com raiva de mim e


acontece que ele estava com muitaaaaa raiva. Por causa disso, ele tomou uma
boa parte do meu dia até se acalmar e voltar a ficar de bem comigo... Quer dizer,
estamos bem? — pergunto na esperança de que ele diga que sim e não insista em
termos uma conversa. Não quero me sentir mais culpada do que me sinto agora e
mentir para ele me assombrará.
Áquila envolve minha cintura e me puxa até ter meu corpo colado ao dele.

— Finalmente estamos do mesmo lado e queremos o mesmo?

— Desde o dia em que você acertou uma flecha na minha orelha. —


Brinco, porque duvido que se ele soubesse do que eu sei, ficaria do meu lado na
questão.

— Mentirosa. Naquela época você não me suportava.

— Mas o meu inconsciente já sabia das coisas, porque eu sonhava todos os


dias com o engraçadinho que me tirava do sério.

— Sonhava, é? — Ele abre um sorriso que ilumina seus olhos.

— Está certo que no começo eles eram vingativos, mas todos os dias você
estava presente neles. Em um dado momento as coisas mudaram e desde então
passei a sonhar acordada com você.

— Como é mesmo uma palavra que você me ensinou uma vez? — Ele
para um segundo, puxando na memória. — Malandra? — Assinto, sorrindo. —
Malandrinha.

Nós dois rimos, mas paro subitamente. Respiro fundo e deixo a gracinha
de lado para ficar séria.

— Não foi fácil ficar separada de você, Áquila.

— Para mim também não, Belle. — Ele desliza o dedo na lateral do meu
rosto. — Vou pedir para trazerem algo para comermos, Tantur para recuperarmos
a energia, e um novo vestido para você. Então irei te acompanhar até a outra
parte do palácio, porque estamos bem.

— Soa como um ótimo plano. — Abro um sorriso imenso.


Ele dá passos em minha direção até que eu seja obrigada a ficar com as
costas pregadas contra a parede molhada.

— Não. Isso não. A não ser que você queira me carregar no colo pelo resto
do dia.

— Soa como um ótimo plano.

E então os lábios vorazes do meu Guerreiro devoram os meus e ele me faz


dele mais uma vez.
Sei que preciso confiar nas decisões da Isabelle, mas... Maldição! Ela torna
a minha tarefa muito difícil com essa atitude de desfazer a única aliança que
temos, ainda por cima justo em solo inimigo. Se isso não fosse ruim o bastante,
creio que as chances desse antigo aliado se tornar um inimigo são enormes.

Depois do acordo entre a Isabelle e o Rei, onde ela me intimou a ser uma
das testemunhas, não consigo evitar olhar o tempo todo para os lados à espera de
que algum guarda de Yerus me leve para fazer companhia ao meu amigo nas
masmorras.

Pelos deuses! Oclan foi preso mesmo quando contávamos com a proteção
do Dominic!

Ela vai ficar furiosa comigo se eu confrontá-la, é verdade. Também aprendi


o meu lugar e que não devo demandar explicações dela, pelo menos não às vistas
de alguém. O que me conforta é saber que a Isabelle é sagaz e, embora suas
atitudes me gerem insegurança na maior parte do tempo, ela nunca falhou até o
presente momento.
É justamente seu histórico de decisões malucas, porém assertivas, que não
estou desesperada, mas estou apreensiva.

Parte de mim tenta se convencer de que a Isabelle não tomou essa atitude
por questões egoístas, pensando apenas nas irmãs dela e, principalmente, para
ficar com o Áquila, mas... Maldição cabeluda! Já faz horas que ela deixou todas
as atividades em suspenso para ficar enfurnada na torre dele.

Pelos deuses! As irmãs dela já estão sob o nosso domínio e ainda nem sinal
das fuças da Isabelle.

Não sou a única apreensiva com essas questões. Até mesmo o Carlos
Eduardo parece inseguro. Como ultimamente passei a conhecê-lo muito bem,
consigo identificar o esforço que faz para não transparecer nervosismo para suas
irmãs recém-libertas.

A questão é que estou absurdamente austera com essas garotas. O Carlos


Eduardo até me apresentou a elas com evidente entusiasmo, que desapareceu à
medida que notou minha apatia.

Certo ou errado, eu as culpo pela instabilidade que estamos vivenciando.


Se não fosse por elas, ainda teríamos Dominic e eu não ficaria com os nervos à
flor da pele.

O tempo todo penso em diversos cenários pitorescos e em como eu agiria


para minimizar a punição que os soldados de Yerus podem aplicar sobre todos
nós. Se ao menos eu tivesse o Oclan junto comigo nessa...

— Kaká? — Ludmila ergue as vistas para ele. A mão dela para de deslizar
suavemente sobre os cabelos da menor, que acabou de pegar no sono em seu
colo.

Ele sai de perto da janela ao lado da que estou, também vigiando o pátio na
esperança de qualquer vislumbre da Isabelle, e se senta perto da irmã. Meu
estômago fervilha ao ver a cara de tolo com que ele olha para ela. Viro de costas
para não vê-los juntos e me concentro lá fora, preparada para notar qualquer
vestígio da Isa.

— Agora você pode me contar o que aconteceu com o Felipe? — Ludmila


pergunta com a voz embargada.

— Se sacrificou para garantir a segurança de vocês — respondo em um


tom azedo sem sequer relancear um olhar para trás.

— Tina! — Carlos Eduardo me repreende com brusquidão no mesmo


instante.

Viro de frente e os encaro de forma austera. Ele segura as mãos dela em


seu colo como se fossem joias preciosas. Quanto a irmã dele, ela está com os
olhos úmidos que imagino ser devido a minha resposta sem melindres.

— Eu disse alguma mentira? O que a Isabelle e o Felipe mais fizeram


foram sacrifícios por vocês. Todos vocês. — Friso para que o Carlos Eduardo
entenda que me refiro a ele também.

— Comigo tudo bem, mas não admito essa sua grosseria com elas ou...

— Ou o quê, Carlos Eduardo? — Trinco os dentes. — Nós não vivemos


em um conto de fadas, maldição! Se durante todos esses anos em que ela foi
prisioneira aqui em Pedralhos ainda não tiver descoberto isso, é melhor que
descubra logo, porque aqui cabeças rolam, literalmente.

Os olhos dele me incineram. Carlos Eduardo até faz menção de rebater,


mas Ludmila segura as mãos dele com gentileza e as aperta.

— Ela está certa, meu irmão. — A garota me lança um olhar doce que só
serve para fomentar ainda mais a raiva que controla o meu sistema. — O que
aconteceu, Guerreira Tina?
— Você vai preferir a versão floreada do seu irmão. A única coisa que vou
te alertar é quanto o seguinte, não toque no assunto “Felipe” com a Isabelle. Nós
atravessamos o inferno com ela se deteriorando em culpa. E eu sei que até hoje a
Isa se responsabiliza pelo que aconteceu a ele. E... — Respiro fundo. — Só
pergunte ao Carlos Eduardo o que você precisa saber a respeito do irmão de
vocês, mas poupe a Isabelle.

— Você é uma grande amiga para a minha irmã. — A garota sorri


gentilmente e viro as costas, voltando a encarar o pátio e sem respondê-la.

— Se você puder dizer a Isa que não a culpa, seria bom, Lud — Carlos
Eduardo diz. — Foram mesmo tempos sombrios e se eu, que sou
emocionalmente estável, ainda não me recuperei totalmente, pode apostar que a
Isabelle também não.

— Eu não culpo nenhum de vocês.

O silêncio cai repentinamente sobre o quarto. Ouço um farfalhar e vejo,


pelo reflexo do vidro da janela, Ludmila se aproximar do Carlos e envolver os
braços ao redor dos seus ombros, que por sua vez repousa a cabeça no peito dela.
Desvio o olhar rápido e encaro o vazio.

Começo a me sentir mal pelo meu jeito troglodita de ser. Muito diferente
dela, um dia o culpei por achá-lo covarde. Mesmo que tudo tenha mudado entre
nós, não sei se consigo ser um conforto para ele como ela está se mostrando ser.

— Tem espaço para mais um nesse abraço?

Levo um susto e viro na direção da voz. Isabelle está parada no umbral da


porta. Ela encara os dois com os olhos brilhantes e isso me deixa mal. Porém,
sinto o similar a ser esmurrada na boca do estômago quando a Isabelle cai nos
braços da Ludmila.
A garota, que é tudo o que não sou, nem nunca serei, segura a cabeça da
Isa entre as mãos e beija com amor ambas as bochechas dela que, por sua vez, se
permite ser vulnerável. Essa demonstração de afeto entre elas me dói tanto que
fico até mesmo sem ar.

— Conheço a sensação. — Pela segunda vez, em um curto espaço de


tempo, me assusto.

Aprumo os ombros e endureço o olhar para o surdino do Áquila, que se


aproximou de mim feito um predador.

— Acredito que sim, já que Dominic e ela combinavam e formavam um


lindo par. Você devia vomitar quando não tinha ninguém por perto, por conta do
ciúme que era fácil notar que sentia ao vê-los juntos. — Abro um sorriso cruel.

— Refiro-me à sensação de perceber que não é capaz de ser como eles. —


Inabalável, Áquila revida. — De acreditar que pessoas como nós não merecem
receber esse tipo de afeto. E não merecemos mesmo, Guerreira Tina. No entanto,
irei te advertir para engolir essa inveja que a corrói. Recomponha-se e não
estrague o momento que os quatro tanto necessitam.

Ergo o queixo e o encaro com os olhos faiscando. Áquila sustenta com


perfeição seu ar de superioridade que sempre teve em relação a mim.

— Não sei o que a Isabelle vê em você. Toda essa sua arrogância e


prepotência...

— Observações a meu respeito advindas do ressentimento decorrente da


inveja que sente por não ser uma soldada mais competente do que eu. —
Calmamente, ele revida.

Cerro os punhos e minha respiração acelera.

— Você não é o melhor soldado.


— Nunca declarei que o fosse. As pessoas que me atribuíram tal adjetivo.

— Seu patife arrogante — resmungo entredentes e ele aperta os olhos no


mesmo segundo. Querendo ou não, ele é um príncipe e afrontá-lo é de uma
audácia tremenda até mesmo para mim, mas não consegui me conter.

— Ei! — Isabelle chama a nossa atenção. — Tudo bem aí com vocês dois?

— Argh! — Passo tempestivamente por ele.

Não sou capaz de ficar um segundo a mais na presença deles. Sendo muito
honesta comigo mesma, a minha vontade é de pegar a Isabelle e o Carlos
Eduardo pelo braço e tirá-los do alcance de todos eles.

— O que aconteceu? — Ouço a Isa perguntar enquanto saio a passadas


rápidas do quarto.

— Coloquei a sua soldada no devido lugar dela — Áquila responde no alto


da sua imponência de babaca.

Ando de um lado para o outro no corredor, concentrando na minha


respiração a fim de me acalmar e abafando as vozes do Áquila e da Isa vindas lá
de dentro.

Essa minha explosão do nada é ridícula até mesmo para mim. Em minha
defesa, nunca me senti tão possessiva assim. Tami, Carlos Eduardo e Isabelle me
afloram esse sentimento. A sensação que tenho é que se eu não agarrá-los,
alguém os tirará de mim e ficarei sozinha.

Nunca confessei a ninguém o meu maior medo na vida, mas eu tenho


verdadeiro pânico de ficar sozinha, sem ninguém no mundo, porque... quem é
que me aguenta? Só os meus pais e os três é que até hoje demostraram
competência para lidar com a minha personalidade agressiva. Mais do que isso.
Eles gostam de mim apesar do meu jeito de ser.
— O que está acontecendo? — Carlos Eduardo pergunta de forma firme ao
cruzar o meu caminho no corredor.

— O que está acontecendo? — Repito em um sibilo. — Tudo está


desmoronando sobre as nossas cabeças enquanto vocês ficam agindo como se
estivesse tudo bem. Não está tudo bem!

— Não é isso. — Ele cruza os braços na altura do peito. — Você está


agindo de uma forma escrota com a Ludmila sendo que ela está se esforçando ao
máximo para te conquistar. E isso desde o primeiro instante em que vocês duas
foram apresentadas uma à outra.

— Eu a odeio! — Confesso com toda a sinceridade que há em mim e logo


me arrependo. A decepção no semblante dele faz coisas esquisitas com o meu
estômago.

— Você odeia a minha irmã? O ser mais doce que já conheci e que você
nunca viu na vida até hoje? Qual é a porra do seu problema, Tina?!

— Tina? — Isabelle se intromete ao me chamar, mas estou paralisada ante


o olhar machucado do Carlos Eduardo. Minha amiga toca meu pulso com
delicadeza e me obriga a desviar a atenção do irmão dela. — Eu te amo. Você
nunca vai perder espaço na minha vida, nem mesmo grau de importância. O
retorno das meninas não significa um fim no relacionamento que nós duas
construímos ao longo da nossa jornada. Eu cresci com elas como irmã e, ao
longo do caminho, te escolhi para também ser uma irmã para mim. Não é uma
questão de sangue. Trata-se de escolher quem amar e eu amo você no nível de
irmandade.

Não assinto, mas a Isabelle percebe que essa reafirmação da minha


importância na vida dela era tudo o que eu precisava ouvir, porque me puxa para
um abraço apertado.
— Uma parte de você sempre estará comigo para onde quer que eu vá, sua
Guerreira bruta. — Ela beija meu rosto com ternura e então procura em meu
olhar uma afirmação de que estou bem. Acho que ela percebe que atingiu o seu
propósito de me acalmar, porque Isabelle volta para dentro do quarto.

Ela mal libera o caminho e o Carlos Eduardo envolve os braços ao redor da


minha cintura, me puxando para um abraço apertado. Não tenho chances nem de
soltar um suspiro de surpresa que seja, porque ele me beija, tirando todo o meu
ar.

— Corro sérios riscos de apanhar por ter um ataque de romantismo, já que


você odeia melação, mas você precisa saber de duas coisas. — Ele me encara
fundo nos olhos e o máximo que consigo fazer é não oferecer resistência, como
de costume. — Eu te amo e não vou voltar para o outro mundo por sua causa.
Quero ficar aqui com você. Agora vou desaparecer da sua vista até você
processar essas informações. Não te quero vociferando que vai chutar a minha
bunda até que eu atravesse o primeiro portal que existir.

E é o que eu faria mesmo, se ele não saísse correndo para o quarto depois
de me atacar com essas palavras carinhosas.

Ainda no meu estado de torpor, por conta do comportamento inesperado


tanto da Isa quanto do Carlos, Tami aponta no início do corredor. Nossos olhares
se encontram e ela abre um sorriso hesitante. Diferente dos dois, Tami foi
alguém que afastei muitas vezes e, por conta disso, desenvolveu sérios receios
em relação a mim. Compreensível.

Querendo corrigir esse erro do passado, sei que a surpreendo ao recebê-la


com um abraço. Não consigo replicar o que a Isabelle me deu, mas dado o meu
jeito de ser, é o mais manso que consigo ser com a minha irmã.

— O que acha de amanhã começarmos o treinamento dos Guerreiros de


Fayrehal? — pergunto o que há tempos estou hesitando em fazer. Tami cresceu e
alcançou a idade que eu tinha quando comecei a treinar com seriedade. Se os
nossos pais estivessem vivos, certamente é o caminho que eles gostariam que ela
seguisse.

Minha irmã se afasta e me encara com os olhos brilhantes de empolgação.

— Você está se oferecendo para me treinar?

— Se você quiser. — Dou de ombros como se não fosse nada demais.

— É claro que quero! — Ela quase pula no lugar. — Foi por isso que a Isa
mandou me chamar? Ela te pediu para começar a me treinar?

— Não. — Balanço a cabeça para os lados. — Eu não sabia que a Isa tinha
mandado te chamar e ela não sabe que estou me oferecendo para te ensinar.

O sorriso brilhante que Tami abre ilumina cada célula de escuridão que
existe no meu peito. Ela não precisa dizer que me ama como a Isa e o Carlos
disseram. Minha irmã e eu nos entendemos nessa comunicação não verbal.

Ainda sorrindo, ela olha para a porta do quarto.

— Não vai entrar?

— Preciso visitar o Oclan na prisão. — Mentira. Preciso processar o que o


Carlos Eduardo me disse e pensar em como reagir. — Mas entra. A Isa deve
estar te esperando.

Tami assente e até começa a entrar, mas para e volta com tudo para mim.
Minha irmã me abraça apertado e cantarola baixinho no meu ouvido uma canção
que a nossa mãe costumava cantar.

Maldição jogada por todos os deuses existentes! Eu vou chorar.


Ao perceber que estou a um passo de derramar lágrimas feito uma
garotinha tola, afasto os ombros da minha irmã, que solta uma risada de pura
diversão antes de me largar no corredor.

— Olha só quem chegou! — Ouço a Isa dizer toda alegre. — Minha


parceira de crime favorita.

Ouço vários sons de beijos e imagino que seja a Isa afogando a Tami de
baba. Ela sempre teve uma ligação especial com a minha irmã. Isso costumava
me enfurecer na época de Fayrehal, mas superei.

— Ah, meu Deus! Seu cabelo é tão lindo quanto o da sua irmã. Ouvi falar
muito das suas travessuras com a Isa em Fayrehal e estava doida para te
conhecer, doce Tami. — Ouço a Ludmila dizer e, depois dessa, decido parar de
ficar à espreita e dar o fora o quanto antes ou posso adoecer.

A princípio, visitar o Oclan era apenas uma desculpa para a minha irmã,
porém decido ir mesmo ao encontro daquela besta. Preciso de um pouco do lado
sombrio da vida. Nada melhor do que as masmorras para equilibrar essa dose
açucarada que foi derramada sobre a minha cabeça nos últimos minutos sem que
eu pedisse!

— Que cara de idiota é essa? Por um acaso você engoliu unicórnios? —


São as primeiras perguntas que o Oclan faz ao me ver.

— Teve uma expressão que a Isa me ensinou uma vez e que serve muito
bem para você. — Ele ergue uma sobrancelha, prevendo o pior. — Me mira, mas
me erra, Oclan! — Aproximo-me das grades e escoro o ombro em uma delas. —
Vim aqui para te atualizar dos últimos acontecimentos. A questão é a seguinte, se
a gente não planejar a sua fuga, corro sérios riscos de virar sua companheira de
cela.

O Guerreiro fica sério no mesmo segundo e respiro aliviada por, enfim,


tratar de assuntos vitais.

— O que aconteceu?

— O que aconteceu é que você vai querer chutar a minha bunda, mas estou
falando sério e pouco me importo com a sua reação. A Isabelle teve umas
decisões duvidosas e precisamos conversar sobre isso para entendermos, juntos,
o que está acontecendo. — No mesmo instante, o Guerreiro fecha o semblante e
se afasta das grades, me dando as costas completamente. — Oclan, ela desfez o
noivado com o Dominic e aceitou se casar com o Áquila em troca da liberdade
das irmãs.

— O que será preciso para que você aprenda que na nossa posição nós não
questionamos? Se a Isabelle quisesse fazer de você uma conselheira é o que ela
teria feito! Porém, o conselheiro dela é o irmão. Aceite este fato de uma vez por
todas, Guerreira, e pare de perturbar a minha paz.

Ele se senta no fim da cela. Só porque está preso é que sua atitude é essa.
Se a situação fosse diferente, ele já teria esfregado a minha cara na lama e me
dado uma surra.

Cruzo os braços na altura do peito. O bom dele estar preso é que não tem
como fugir de mim e naturalmente me aproveito disso.

— E o que você me diz dela ter feito um acordo com o Rei para ter as
irmãs de volta, mas sequer tratou a sua soltura?

Oclan desarma completamente. Não sorrio, porque não considero uma


vitória. Tem algo errado. É isso o que estava me deixando apreensiva. Agora
percebo que não era o fato da Isabelle ter desaparecido por horas e sim porque
sinto um clima estranho.

— Como você obteve esse conhecimento?

— Fui uma das testemunhas desse acordo e não tinha uma única linha te
mencionando.

Ele fita o vazio, provavelmente tomando tempo para ordenar os


pensamentos, assim como eu.

— Ela deve ter um motivo forte e não é o nosso dever...

— Questionar, já ouvi. — Descolo o ombro das grades e o encaro de forma


firme. — Não sei você, Guerreiro, mas eu me lembro muito bem que, a última
vez em que a Isabelle escapou de você, ela só não morreu porque o Felipe era um
alvo mais fácil.

Oclan prende o ar e finalmente me leva a sério, porque volta a se


aproximar de mim. Até mesmo eu fico nervosa ao me dar conta dessa verdade.

— O que mais você sabe?

— O mais concreto que tenho é esse acordo aí. O resto advém de


observações, como um belo dia que a Isabelle conseguiu se livrar do guarda que
escalei para fazer a proteção dela e foi parar em uma parte totalmente aleatória
do palácio. Sabe o que ela fez para me distrair dessa questão? — Ele ergue uma
sobrancelha, querendo investigar essa situação tanto quanto eu. — Colocou um
maldito felino nos meus braços e manipulou para que a conversa girasse apenas
em torno dessa ninhada que ela encontrou por um acaso, palavras dela.

— Cuidado, Guerreira. Você está acusando a princesa, para quem jurou


lealdade, de ser uma manipuladora.
— É o que a Isabelle é! — solto, enfurecida. Ele faz menção de revidar,
mas não dou brecha, porque finalmente enxergo o óbvio. — A Isabelle quer que
você fique fora do caminho propositalmente e desconfio que dará um jeito de se
livrar de mim também.

— Essa é uma acusação muito séria.

— Eu sei! — Aperto os dedos nos punhos e trinco os dentes. — Estou te


falando, Oclan, o meu faro é bom e todas as vezes que o ignorei, coisas ruins
aconteceram. A Isabelle está nos escondendo algo porque não quer que a gente a
impeça.

— A impeça de quê?

— Exatamente!

Oclan me encara e o encaro de volta. Nós dois ficamos perdidos em nossos


próprios pensamentos. Pelo menos ele está me levando a sério.

— Fique atenta a todos os passos dela e me mantenha atualizado.

— Não precisava nem pedir. — Esfrego as palmas das mãos no rosto. —


Agora o que nos resta é esperar o próximo passo dela. Enquanto isso, vou puxar
na memória tudo de estranho que percebi envolvendo a Isabelle nos últimos
tempos. Acredite, tem muita coisa!
À medida em que os dias passam, o alvoroço em Pedralhos intensifica.
Mais e mais convidados enchem o palácio para o casamento Real e a euforia
preenche todo o reino.

De forma proposital, o Rei estendeu os dias de celebrações e adiou mais


uma vez a data do enlace para um tempo mais adiante. Essa tomada de decisão
foi uma onde todos nós concordamos de forma unânime, Rakar, a noiva,
Dominic, Áquila e eu, mas por razões distintas.

Os dois primeiros porque estão tão ansiosos para se casarem quanto


desejam serem jogados amarrados em alto mar. Quanto ao Dominic, Áquila e eu,
é por uma questão de querermos dispersar qualquer atenção que possamos
receber do noivado desfeito e o novo arranjo. Inclusive, não houve qualquer
comunicado quanto a qualquer um deles.

Embora Dominic e eu não compareçamos a mais nenhum evento juntos,


Áquila e eu também mantemos o nosso envolvimento o mais discreto possível.
Apenas os mais íntimos sabem das novas circunstâncias.
Foi uma ordem do Rei, cujo intuito é que a fofoca errada não se espalhe,
portanto, ele preencheu a agenda do Palácio com várias e várias festividades. Do
contrário, se a sequência abrupta dessa mudança de noivado cai na boca do povo,
eu posso ser rejeitada pela nobreza, população e... todo mundo — não que ele
ligue. Mas o Dominic, que representa o Reino do Norte, pode ser envergonhado
perante... todo mundo. Quanto ao Áquila, que representa Yerus, pode fortalecer a
má ideia que a linhagem dele tem perante... todo mundo.

As questões políticas são mantidas apenas na monarquia enquanto o


restante da população — nobres e plebeus — apenas ocupam a mente com a
celebração do casamento Real. Então, quando o grande dia chega, as pessoas não
podiam estar mais embriagadas de entusiasmo do que estão, graças ao ardil Rei.

Áquila volta de forma sorrateira para a torre dele antes do sol raiar. Mal
fico sozinha nos meus aposentos e Tina surge vinda de lugar nenhum. Com ela
praticamente cheirando o meu cangote, me arrumo para ir ao encontro da
Ludmila.

Não sei o que aconteceu com a Guerreira, mas ultimamente ela não larga
do meu pé!

Uso o comportamento controlador e perseguidor dela como desculpa por


ter parado de procurar pela Hortense. Assim como também me convenço de que
o palácio está muito cheio e que, portanto, preciso esperar o casamento passar
para agir.

A verdade é que a principal razão para que eu evite pensar na Hortense se


deve ao Guerreiro, que todas as noites divide a minha cama. Passei a inclusive
fantasiar um futuro ao lado dele.

Áquila volta e meia toca no assunto de como será quando o casamento


Real de hoje passar para finalmente assumirmos publicamente que estamos
noivos. O que eu faço? Não desvio mais da questão. Pior de tudo, eu me permito
sonhar com os preparativos do nosso casamento em um futuro não muito
distante. Isso é o mesmo que cavar a minha cova com as próprias mãos, não
tenho dúvidas, mas não consigo evitar.

Com Tina em meu encalço, entro na sala de costura, onde a minha irmã
passa horas enfurnada.

Um belo dia, Ludmila fez boas observações acerca do vestido que eu


vestia. Perguntei se ela gostaria de planejar minhas roupas, uma vez que a minha
irmã tem um olhar crítico para essas coisas. Ela nem precisou responder, porque
os olhos dela brilharam tanto que no mesmo segundo decidi que eu não vestiria
mais nada que não fosse feito por suas mãos.

Ludmila ficou tão, mas tão feliz, que andei nas nuvens pela semana toda.
Ter sido a responsável por aquela alegria genuína, depois das minhas atitudes
terem atraído tanta desgraça sobre a vida dos meus irmãos, foi uma cura que nem
mesmo eu sabia que precisava.

Carlos Eduardo já tinha se tornado uma espécie de conselheiro, uma vez


que sempre pesquisa sobre as monarquias e me instrui. Ludmila agora é a minha
fada madrinha, que desenha vestidos que mesclam os estilos do nosso mundo
com a moda de Yerus. Quanto a Rebeca, ela ficou carne e unha da Tami e agora
as duas treinam juntas.

Nos dois primeiros dias, as garotas foram treinadas pela Tina, mas eu
percebi que a Guerreira não estava muito feliz com aquela nova obrigação.
Morrendo de medo do temperamento dela, comentei, como quem não quer nada,
que o Áquila me ofereceu um dos seus soldados para tirar um tempo e treinar as
duas. Esperei que Tina me desse uma patada, afinal, ela detesta o Áquila a troco
de nada, mas fui surpreendida ante a aceitação instantânea dela.

Hoje entendo o que a motivou. A minha soldada mais leal decidiu focalizar
seus olhos de águia em mim.
Quanto ao Áquila...

Deus! Nunca pensei que seria tão bom, mas estar com ele diariamente sem
culpa, sem honra, sem dever no meio do nosso caminho é... Me faltam palavras
para definir! O que posso dizer é que nunca estive tão nublada de felicidade
quanto nessas últimas semanas, o que por sua vez pausou a minha busca pelo
Palácio tornando, assim, dispensável essa preocupação toda da Tina.

— Voxê extá atraxada — Ludmila diz com três alfinetes prensados entre
os lábios quando entro em seu ateliê.

Tina se desloca para um canto, pronta para passar horas da sua vida me
vigiando. Só não tenho mais pena da situação dela, porque a minha também é
terrível.

— Por um acaso, alguém é pontual para uma sessão de tortura? — Provoco


a Lud.

— Não comece com as suas reclamações, Isabelle. Deus sabe que estou
estressada hoje! — Minha irmã dá batidinhas na minha bunda até que eu suba
em uma pequena plataforma circular. — Você é minha até o casamento.

Resmungo ante a ideia de passar horas parada em pé, sendo espetada por
agulhas por todo o corpo, ter meus cabelos puxados e várias coisas passadas no
meu rosto. Um glamour maravilhoso!

— Sabe, as horas passariam mais rápido se você parasse de fazer jogo duro
comigo e me contasse como o Áquila passou de ser seu treinador para ser seu
namorado.

Minhas bochechas esquentam. Há dias que a Ludmila tenta arrancar de


mim a minha história com o Áquila. Sempre dou a ela um apanhado geral de
tudo o que aconteceu entre nós dois.
— Já disse. Ele arremessou uma flecha na minha orelha. No outro dia, eu o
distraí em um treinamento e ele foi ferido nas costas por conta disso. Depois
daquilo, o Mestre Ponda perguntou quem queria ser meu treinador e ele se
ofereceu. Depois disso ele tentou me jogar de um precipício e passei a sonhar
diariamente em cortar os cabelos dele...

— Ai, meu Deus! Como você mata o romantismo, Isa!

Dou de ombros e recebo um tapa na bunda junto a uma repreensão por me


movimentar.

— A gente se detestava, Lud. O que posso fazer?

— Você pode me contar quando passou a ser amor.

— Não sei. Talvez da parte dele tenha acontecido quando me pegou


nadando pelada no lago da fenda da montanha?

— O quê?! — Sobressaltada, minha irmã deixa cair uma caixa cheia de


alfinetes. Dou risada da reação dela e levo outro tapa na bunda como repreensão.
— Pare de inventar essas histórias mirabolantes na intenção de me fazer parar de
perguntar.

— Não inventei. — Meu rosto pega fogo e, com vergonha das duas, lanço
um olhar para onde a Tina ficou de guarda, mas noto que a Guerreira deixou o
seu posto.

Imagino que, ou ela percebeu que não tenho como fugir do ateliê, ou
finalmente passou a confiar que não vou cometer nenhuma loucura se me perder
de vista. Talvez seja um pouco dos dois misturado com uma imensa dose do
ciúme que ela sente da Ludmila.

— Ele te flagrou mesmo? — Ludmila puxa a manga do meu vestido,


reivindicando a minha atenção de volta para ela.
— Aham. — Nervosa, entrelaço e desentrelaço meus dedos na frente do
meu colo.

— E vocês ainda se odiavam? — Assinto, porque agora não sou capaz nem
de resmungar. — Se estou sentindo vergonha por você só de ouvir, faço ideia
você na hora. Você afundou no lago para se esconder, aposto.

— As águas eram translucidas. — Até mesmo as pontas das minhas


orelhas queimam.

Minha irmã cai em uma gargalhada que aposto doer a barriga dela. A
encaro sem paciência e estendo o indicador. Ela lança um olhar para o meu dedo
e então ergue uma sobrancelha, sem entender.

— Puxa. — Com receios, Ludmila o puxa de leve. — Há-Há-Há. Morri de


rir — digo com sarcasmo e, dessa vez, levo um beliscão. — Au! Essa doeu.

Depois das várias horas de tortura com a minha irmã me espetando e


tentando arrancar a minha história com o Áquila, fico pronta para o casamento.

O tecido que a Ludmila usou na confecção do vestido é cor vinho, fino,


brilhoso e diáfano, mas há bordados distribuídos nos lugares certos para tampar o
que não deve ser mostrado. Ela também costurou ao longo dele pequeninas
pedras brilhantes.

O vestido é longo, tem um corte reto no busto e mangas compridas. Na


parte da frente, ele desce justo, mas nos quadris e na parte de trás, minha irmã
concentrou o volume da peça. Por sua vez, esse efeito suaviza a sensualidade
frontal, o tornando elegante, fluido e majestoso.

No cabelo, ela mandou que uma das suas criadas — ou colegas de


trabalho, como ela prefere chamar — fizesse um coque simples, mas altivo. O
penteado destaca a tiara que o Áquila me presenteou. O brilho dela, somado ao
brilho espalhado de forma harmoniosa por todo o vestido, resulta em um visual
digno de uma princesa.

— Uau, Isa! — Lud se afasta e contempla o resultado do seu árduo


trabalho. Há dias ela está enfurnada nessas quatro paredes trabalhando no projeto
do meu vestido para o casamento Real. — Queria muito ter uma máquina
fotográfica para tirar uma foto sua. Você está...

— Divina.

Nós duas nos sobressaltamos e, pelo reflexo do espelho, vejo Dominic


parado na entrada do ateliê.

— Vossa Alteza. — Ludmila faz uma breve curvatura e ele faz um gesto de
reconhecimento.

— No Reino do Norte há um pintor de retratos que basta um vislumbre


para ser capaz de retratar com fidelidade o modelo.

— Memória fotográfica — digo e aponto com a cabeça para a minha irmã


ao meu lado. — A Lud também tem.

— Acho fascinante. — Dominic sorri para ela, que por sua vez fica com o
rosto inteiro manchado de rosa.

Lanço um olhar indagador para a minha irmã. Ela desvia a atenção como
se quisesse esconder suas feições.

Acontece que a Lud nem precisa falar nada. A timidez dela diante o
príncipe diz tudo o que preciso saber. Sei que a Ludmila nunca irá confessar para
mim, pelo menos não por ora, uma vez que até recentemente Dominic era o meu
noivo, mas, pelo visto, ela se sente atraída por ele.

Se a Ludmila me confessasse isso, eu a tranquilizaria de que é normal.


Dominic é charmoso e, portanto, encanta com facilidade. Além do mais, é do
meu desejo que ele seja feliz. Assim como desejo o mesmo para a minha família.

— A Lud também é capaz de descrever com precisão essas imagens. Se ela


encontrasse esse artista, ele seria capaz de pintar o retrato mesmo assim.

Minha irmã me lança um olhar fulminante sem se preocupar em disfarçar.


Agora ela sabe que eu sei do interesse que sente por ele.

— Senhorita Ludmila...

— Apenas Ludmila, Alteza. E perdoe a minha irmã. A Isabelle está sendo


apenas espirituosa, como de costume. Ela tem mania de enxergar coisa onde não
tem nada.

Ambos me encaram. Ludmila com o cenho franzido para me repreender e


Dominic com um sorriso fácil nos lábios.

Ele é mais esperto do que eu, não tenho dúvidas. Isso significa que
percebemos o mesmo. Além do mais, sei que o Dominic já está até acostumado
em despertar esse sentimento nas mulheres. Eu mesma presenciei de perto
diversas situações similares a essa.

— De qualquer forma, Ludmila, o convite está feito para que conheça o


meu pintor de retratos.

Minha irmã assente, praticamente virando mingau no chão.

Lanço um olhar a ela como se dissesse: agora quem está sentindo vergonha
de quem, hein?

Dominic pigarreia para chamar a nossa atenção e o clima de descontração


evapora. Ele até tenta disfarçar e abrir de novo o sorriso ao me encarar, mas seus
olhos entregam o pesar que parece afligi-lo.

— Isabelle... — ele sussurra.


— Dominic. — Prenso os lábios.

— Posso ter um pouquinho do seu tempo, princesa?

Minha irmã pega os retalhos de pano e sai apressada do ateliê, mas com
um sorriso imenso no rosto e os olhos brilhando depois de avaliar uma vez mais
o seu trabalho.

Dominic se aproxima de mim e me estende a mão para me ajudar a descer


da plataforma.

— Obrigada.

— Não por isso. — Ele sorri de uma forma que me deixa mal.

Algo que nunca nos aconteceu antes, acontece. Ficamos sem jeito um com
o outro. Dominic parece não saber o que fazer com as mãos. Quanto a mim, fico
sem saber para onde olhar, então observo a vista da janela.

— O dia está lindo...

— Você tinha razão...

Nós dois falamos ao mesmo tempo. Ele solta uma risada nervosa. Eu não,
porque fiquei preocupada.

— No que eu tinha razão? — pergunto, temendo a resposta.

— O amor não é tão frio e racional quanto eu imaginava. Agora sou capaz
de reconhecer que nem sempre há uma escolha. Pode acontecer do nosso coração
ser mais rápido e decidir por nós.

— Mas eu também acredito que você tinha razão. — Ele arqueia as


sobrancelhas, surpreso com a minha resposta. — Acho completamente possível
escolher amar uma pessoa e ter um vínculo tão forte quanto se fosse do outro
jeito.

— Sei o que está tentando me dizer, Isa. Até mesmo sei o que você tentou
fazer agora a pouco comigo e com a sua irmã. Porém, com relação a sinceridade,
ainda sustento a minha forma de pensar. Prefiro a rejeição clara a uma situação
enganosa.

— Eu não estou mentindo, nem manipulando. Foi apenas uma ideia que
me ocorreu.

— Sei o que te moveu, princesa.

— Não acho que você saiba, príncipe — respondo com um desconforto na


boca do estômago.

Durante esses dias em que o reino ficou imerso em uma bolha de


festividade, evitei comparecer a todos os eventos em que sabia que o Dominic
estaria presente. Agi assim pensando nele, que provavelmente não queria me ver.
Totalmente compreensível. Também gostei da ordem do Rei, de manter sigilo
acerca do novo acordo comigo, não apenas por ser conveniente para mim e para
o Áquila, mas principalmente pensando no bem-estar do Dominic.

— Difícil é ter o coração partido ou, pior, ser a razão de um coração


partido. — O príncipe repete as palavras que um dia eu disse a ele. Fecho os
olhos por alguns segundos a mais, me sentindo terrivelmente culpada. — Eu não
quero que você se sinta mal, Isa. Também agradeço o espaço que me deu durante
esses dias, porém vim até aqui para te dizer que não quero que você me evite
mais. Também estou de acordo com o anúncio do nosso rompimento e do seu
noivado com o Áquila. — Ele envolve os dedos ao redor do meu pulso com
delicadeza. — A escolha é individual e eu assumo completamente a
responsabilidade de todas as minhas decisões, conscientes ou não. Se possível,
quando eu voltar para o Norte, quero encontrar uma forma de mantermos as
relações entre nós dois amigáveis.

— Ah, claro — digo ao perceber que ele está deixando implícito que
manter a nossa relação amigável significa manter a boa relação entre os dois
reinos. — Posso te fazer uma pergunta pessoal? — Ele me analisa por alguns
segundos, mas por fim assente. — Precisa ser da realeza?

Dominic solta um longo suspiro, como se não tivesse ficado satisfeito com
a minha pergunta. Mas o que ele pensou que eu perguntaria?

— As pessoas resistiriam se assim não fosse. Portanto, o risco de que ela e


os nossos filhos sejam rejeitados ou, pior, caçados, é o suficiente para me
impedir de considerar tal destino.

Seguro suas mãos entre as minhas e o encaro de forma séria.

— Dominic, Yerus estará com você independentemente de quem for a sua


esposa. Posso obrigar o Áquila a me garantir isso. Além do mais, Lufstar
também está em seu poder.

Ele aperta minhas mãos de volta com delicadeza.

— Acontece, Isa, que eu não quero.

No mesmo segundo, desfaço o toque das nossas mãos e dou um passo para
trás, a fim de abrir um pouco de distância entre nós.

— Você precisará de herdeiros.

— Magnólia não teve filhos.

Solto uma risada involuntária e ele também ri sem querer. Magnólia não é
parâmetro. Ela é fora do comum e ambos sabemos disso. O bom é que trazê-la
para a conversa suaviza o clima entre nós.
— Espero que o convite para a minha irmã tenha sido sério, porque se ela
quiser mesmo tirar umas férias no Norte, não sou eu quem irá criar empecilhos.

— Dei a minha palavra a ela, com ou sem artimanhas da sua parte.


Ludmila é bem-vinda para vir comigo para o Norte após o casamento para
conhecer o artista e ficar pelo tempo que você quiser que ela fique.

— Que ela quiser ficar. — O corrijo. — E imagino que a Rebeca também


irá com a Lud.

— Quantas você quiser.

— Quem sabe o seu reino aceite que a futura rainha deles tenha uma
ligação de parentesco com a última da linhagem dos Tupper?

— Vem. — Dominic me estende o braço. — Quero te apresentar à minha


irmã antes do casamento. Pode ser que seja impossível após a cerimônia. — Ele
muda o curso da conversa na cara dura.

Duas coisas a respeito da irmã do Dominic: ela antipatiza comigo


instantaneamente e não há a menor possibilidade de que o Rakar consiga lidar
com a bruaca.

Se um dia pensei que a Magnólia fosse megera, está na hora de rever os


meus conceitos. A irmã do Dominic sim condiz com a definição dessa palavra.
Se bem que talvez jararaca caiba melhor. O lado bom é que espero que a
condenação do Rakar venha pelas mãos dela. Creio que na primeira semana de
casados, ela já terá sido capaz de envenenar a comida dele.

Dominic fica mortificado ao meu lado quando a irmã me rebaixa mais do


que o mosquito do coco do cavalo do bandido. Ele intervém e a repreende com
firmeza. Por sua vez, ela não dá a mínima e se concentra em mim ao dizer, de
uma forma rebuscada, que só uma imbecil rejeitaria o seu irmão.

Concordo e não concordo com ela. Eu não sou imbecil e todos os meus
motivos para terminar o meu noivado com ele são válidos. Porém, Dominic
realmente merece uma mulher que corresponda a altura do ser humano que ele é.
Só aconteceu dessa mulher não ser eu, nem dele ser o homem que amo.

A garota fica ainda mais fora de controle ao notar que não caio na dela.
Provavelmente, ela esperava que eu revidasse suas afrontas, mesmo que de
forma educada como Magnólia me ensinou, o que não faço.

Tomada por uma fúria incontrolável, a irmã do Dominic desce do salto —


literalmente — e arremessa a sandália na direção da minha testa. Só por conta
dos meus reflexos bem treinados, sou capaz de desviar a tempo.

Depois dessa, Dominic para de tentar levar lucidez para a irmã


descontrolada, me puxa pelo braço e saímos correndo dos aposentos dela.

— Perdão, Isabelle. Não há justificativas para o comportamento dela. Se


eu soubesse que a minha irmã reagiria dessa forma, jamais teria insistido nesse
encontro.

— Tudo bem — digo e ele não se convence. — Dominic, a sua irmã quis
te proteger e, colocando meus sentimentos de lado, posso definir a atitude dela
como boa.

— Boa? — ele repete sem acreditar no que está ouvindo.

— Sim. Você, mais do que qualquer um, merece alguém que tome seu
partido com unhas e dentes sem nem pensar. Além do mais, ela vai acabar com o
Rakar, me livrando de fazer algo a respeito daquele escroto. Até prefiro que a
condenação dele venha pelas mãos dela. Acredito que a sua irmã será maléfica
de um jeito que anos passarão e jamais serei capaz de bolar algo similar.
— Caso ela não fuja assim que a cerimônia terminar, você quer dizer.

— Vou garantir que ele esteja amarrado na diligência que ela usar na fuga.

— Céus! A minha irmã é terrível. — Ele esfrega as pontas dos dedos na


testa.

— Magnólia deve nutrir um orgulho tremendo da sobrinha.

— Você não imagina o quanto.

Ele sorri e eu também. Se tem alguém que é capaz de entender a graça da


situação, somos nós dois, que fomos treinados pela Magnólia.

— Belle? — Áquila nos surpreende ao apontar no corredor.

Instantaneamente, Dominic para de sorrir, voltando a ficar com a postura


rígida de príncipe.

— Ei. — Sorrio para o Guerreiro. — Fui conhecer a... — Engulo rápido a


piadinha que ofenderia aos dois. Seria algo como: a megera que será a ruína do
seu irmão. Não pegaria bem trazer luz para o fato de que os dois tem um ponto
em comum: os irmãos deles são criaturas horríveis e se merecem! — A noiva
antes do casamento — digo, por fim.

Áquila não sorri e lança um olhar para o Dominic. Os dois se medem o


tempo que o Guerreiro leva até ficar posicionado atrás de mim.

— Dominic.

— Áquila.

O cumprimento deles é conforme as etiquetas mandam, mas o clima é


tenso. Sem saber o que fazer, fico aliviada por Dominic ser o mais sábio de nós
três e ser o primeiro a lidar com a situação.
— Agradeço a sua disposição para conhecer a minha irmã e te peço
novamente perdão pelo comportamento dela. — Assinto e Dominic se vira para
o Áquila. — Eu disse para a Isabelle e gostaria de te dizer pessoalmente, Áquila,
que dou a vocês o meu consentimento para anunciarem o noivado de vocês sem
qualquer tipo de represália do Reino do Norte.

— Nós não precisamos de nenhum aval.

Lanço um olhar repreendedor para o Guerreiro, mas ele não me nota, uma
vez que está com a concentração inteira no Dominic.

— Creio que me precipitei e ainda seja cedo para tentarmos manter uma
boa relação pelo bem dos nossos reinos. — Dominic abre um sorriso forçado. —
De qualquer forma, vejo vocês no templo. Até mais.

Em silêncio, observo o Áquila acompanhar com o olhar cada passo do


Dominic até que o som dos saltos dos sapatos dele desapareça.

— Guerreiro? — chamo com firmeza e, enfim, ele faz contato visual


comigo. — Pare com isso. Nunca teve espaço para mais ninguém desde você e já
te falei isso. Foi um noivado...

— Político, você me disse.

— Assim como o seu com a Helena. Só que no meu caso ainda teve o
agravante que, além de você e ela terem tido um passado, nós nos deitamos pela
primeira vez sem que eu soubesse daquele noivado. Então eu não me senti da
mesma forma como você se sente. Foi bem pior.

— Pior? É nítido que você se importa com ele, Isabelle. Quanto a Helena e
eu, da minha parte posso atestar que sinto antipatia por ela. E não se engane,
Helena passou a me detestar tanto quanto a detesto.
— Eu me importo com ele como amigo. — Áquila faz menção de revidar,
mas o interrompo. — O que eu sentia pela Helena e você sente pelo Dominic é
até justificável. Porém, depois de ter experimentado na pele o nível doentio, onde
uma pessoa mata por ciúmes, passei a abominar esse sentimento! Eu te dou a
minha palavra que a minha preocupação com o Dominic é a mesma que sinto
pela Lud, Rebeca, Kaká, Tina e Tami. Nunca, em qualquer ponto do meu
noivado político com ele, cheguei perto de sentir o que sinto por você. Só te resta
uma opção, Guerreiro, confiar na minha palavra quanto a isso.

— Eu confio, Belle. E sinto muito pelo que ela te tomou. — Ele desliza o
polegar pelo meu rosto.

Desvio o olhar, porque a raiva que sinto da Helena, por ter matado o meu
irmão por puro ciúme do Áquila, ainda existe e me corrói. Tudo piora pelo
simples fato do Rei ter me negado que ela fosse punida pelo que me fez. Porém,
sei que a culpa não é do Áquila, tanto quanto não é minha, mas é um assunto
delicado entre nós dois e acho que sempre será.

— Vamos? — pergunto com raiva.

Áquila enlaça a minha cintura e cola o corpo ao meu.

— Você está magnífica. É possível te beijar sem manchar essa cor nos seus
lábios?

— Não. — Luto contra o sorriso bobo que teima em aparecer mesmo com
raiva dele. Espalmo as mãos no seu peitoral esculpido, tentando me afastar, mas
ele me aperta ainda mais. — Áquila, se controle.

— Impossível. Já que posso te beijar aqui — ele beija meu pescoço. — E


aqui — ele beija o colo do meu peito. — E...
Por culpa do Áquila, somos os últimos a chegar antes da entrada da noiva.
Quando ocupamos os nossos assentos marcados, uma escuridão repentina recai
sobre o templo.

Eu até poderia pensar se tratar de algum truque previsto na cerimônia, se


não fosse pelo fato de todos os rostos dos convidados estarem estáticos, como se
tivessem parado no tempo. Também tem o fato de três figuras não humanas se
posicionarem à minha frente.

— Laghertia — arfo.

— Isabelle Tupper Beauharnais. Enfim nos encontramos outra vez,


querida. — A princesa dos Drakars abre um sorriso que me dá calafrios na nuca.
Baixo os olhos para as minhas mãos e movo os dedos lentamente. Noto
que, diferente das últimas vezes em que nos encontramos, detenho
completamente o domínio sobre o meu corpo.

— Você está acordada.

Volto a atenção para a princesa dos Drakars que, pela primeira vez, vem ao
meu encontro ostentando uma coroa prata sobre seus lindos cabelos. Mas logo
desvio o olhar para os dois seres que estão cada um de ambos os seus lados.

À sua direita está um Drakar assustadoramente deslumbrante, assim como


Laghertia o é. Todas as peças de roupas dele são pretas e a única parte de pele
que é visível é a do rosto. Todo o restante está encoberto por um manto comprido
que se arrasta até o chão, luvas de couro nas mãos, botas de cano longo por sobre
as calças e uma blusa que cobre até mesmo o seu pescoço. No topo dos fios
negros dos seus cabelos, há uma coroa simples cor grafite. Apenas um aro em
volta da sua cabeça.

Encontro seus olhos de obsidiana e ele não faz uma expressão que seja,
mas arrepio inteira. O Drakar não sorri. Não pisca. Não faz nada. Mas sinto, em
cada célula do meu corpo, que ele é terrivelmente perigoso. Talvez, o ser mais
poderoso com quem já cruzei caminho.

Um objeto no centro do seu peito desperta a minha atenção e é inevitável


não ficar obcecada com o artefato redondo com três círculos internos contendo
setas. Em um dos círculos há apenas números; no outro, letras; e no terceiro, uma
junção de números e letras.

Volto a olhar em seus olhos e, de novo, não há qualquer alteração em sua


expressão. Mas então um inclinar tão leve de queixo, que até mesmo penso ter
imaginado, responde à minha pergunta velada. Ele é o autor do Orientador, e
também o responsável por ter parado o tempo, o que torna possível esse encontro
no meio de um templo lotado de pessoas congeladas em seus lugares como se
fossem estátuas.

Um leve movimento na minha visão periférica desperta a minha atenção e,


com assombro, assisto ao pássaro gigante, de olhos vermelhos, transfigurar o
bico em um nariz, boca, olhos e, por fim, rosto de um Drakar. O corpo de ave, do
tamanho de dois cavalos, passa a formar um corpo ereto sobre duas pernas,
tronco reto e dois braços.

Diferente do outro Drakar, que transmite uma ameaça velada, a dele é mais
agressiva. Até mesmo o sorriso que abre ante a minha observação é uma
provocação para que eu sinta mesmo medo dele. Não sinto, mesmo que ele tenha
a largura dos ombros duas vezes maior do que a do Drakar vestido de negro, este
me intimida infinitamente mais. Ele também é o mais alto dos três, ostenta uma
coroa dourada e sem ornamentos e possui feições violentamente atraentes.

Percebo que beleza estonteante é um traço dos Drakars. Imagino que seja
como um feitiço sedutor cujo objetivo é atrair a presa para a condenação.
Portanto, tomo cuidado com o exterior perfeito dos três.
— Os senhores estão usufruindo da energia dos príncipes, rainhas e reis
que aqui estão para usar magia contra nós?

Laghertia arqueia as sobrancelhas, surpresa com a minha pergunta e


provavelmente com os meus bons modos. As coroas indicam que os três
possuem título de nobreza. Depois de passar uma temporada com a Magnólia,
seria impossível tratar a Laghertia da forma como costumava ser.

Quanto ao uso da magia deles, para aparecerem aqui desta forma, lembro
de como foi todos os encontros que tive com a Laghertia.

Na fenda da montanha, só tinha a minha presença, então tudo o que


Laghertia podia fazer era com que a sua voz chegasse até mim. Em Salavinder,
estávamos o Áquila, eu e Ruan, dois descendestes de uma família Real e um
mestiço que possui sangue Drakar e humano. Foi assim que ela conseguiu levar
aquele torrencial para salvar a minha vida. Na Floresta Negra, ela se materializou
por ser o antigo lar dos Drakars, portanto, onde ainda há resquícios do poder do
povo deles. Lá, ela tinha mais força.

A segunda vez em que a princesa apareceu na forma física para mim, foi
usando a força de um templo. Já para o meu irmão, Laghertia apareceu apenas
em sonho, porque só tinha a força do Dominic e da minha. É assim que ela é
capaz de manifestar poder, através da energia de outros seres ou templos
sagrados.

Eu não tinha pensado que um casamento da monarquia teria uma energia


tão abundante que seria capaz de permitir que não apenas um Drakar aparecesse
e exercesse seus poderes sobre nós, mas três de uma só vez! Afinal de contas,
príncipes, princesas, reis e rainhas estão reunidos em um enorme templo sagrado.
Como o Carlos Eduardo uma vez me disse, esses títulos estão no topo da
hierarquia, portanto, confere poder a quem os sustenta.
— Pelo visto, Vossa Alteza compreendeu um pouco mais acerca do nosso
povo durante este tempo em que mantivemos distância e a como tratar pessoas
da realeza. — Plácida, Laghertia aponta.

— Compreender que os senhores sugam a energia de pessoas como eu para


aparecer? — Alterno o olhar entre os três. — Sim, compreendi, princesa.

— Não só de pessoas com o título semelhante ao seu.

— De mestiços e templos sagrados como este. — Aponto ao meu redor.

— Não seria o suficiente. — Laghertia entrelaça os dedos à frente do colo.

Fico em silêncio e ela simplesmente aguarda até que eu compreenda o que


está insinuando.

— Aurora — sibilo.

— Alma atormentada que Vossa Alteza ignora deliberadamente.

— Ela está aqui?

— Ele projetou o Orientador para a finalidade de mostrar à linhagem dela a


sua localização. — Laghertia aponta a cabeça na direção do Drakar vestido todo
de preto, que por sua vez assente em reconhecimento. — Assim como a Espada
Viva, que uma vez te dei, tem um papel importante a desempenhar nessa missão.

— Os Drakars não podem me contar a localização dela nem nada que


envolve a lenda. Os senhores precisam usar subterfúgios para que eu a encontre e
descubra o que fazer por conta própria.

— O antepassado dele — Laghertia lança um olhar na direção do Rei —


foi um homem brilhantemente perverso e encontrou um meio para que os seus
feitos passassem adiante para os seus descendentes.
— Então as minhas suspeitas estavam corretas e o Rei faz mesmo uso de
magia obscura — digo mais para mim do que para eles. Mesmo assim, Laghertia
assente. Minha alma agita. — A magia dele é passada através do trono?

— Temo que este não seja o ponto principal da questão.

— Temo que esta resposta seja importante para mim e, se não houver
cooperação da parte dos senhores, não haverá da minha.

Os dois Drakars, ladeando a princesa, se agitam, porém de formas


diferentes. O primeiro, reconheço o desconforto através da escuridão que
intensifica no recinto. O segundo, trava as mãos nos punhos e trinca o maxilar.

— Eu os alertei que ela era uma criaturinha teimosa, insolente e


inconsequente, portanto não se ofendam com facilidade. É o intuito dela. —
Laghertia rosna aos dois e então se volta para mim exalando uma tranquilidade
de alguém que já aprendeu a lidar comigo. — Sim, Isabelle. Os Salonsk passam
o conhecimento da magia obscura que detêm apenas quando o herdeiro assume o
trono.

Isso significa que o Áquila é mesmo ignorante com relação as questões da


lenda. De certa forma, fico aliviada com essa descoberta, porque ele não
participa desses planos terríveis do pai dele contra alguém da minha linhagem.
Porém, estou aterrorizada, porque isso significa que se ele vier mesmo a assumir
o trono do pai, irá herdar bem mais do que o poder de governar Yerus. Áquila irá
herdar a magia obscura da sua linhagem.

De forma pragmática, penso que algo não faz sentido. Se a magia obscura
dos Salonsk mantém os Drakars longe deste mundo, então por que os três estão
aqui exercendo com facilidade os poderes deles?

— Por que a magia do Rei não é capaz de te deter agora?


Laghertia abre um sorriso como se essa fosse a pergunta que gostaria de
ouvir desde o início.

— A magia dele não possui a mesma força quando há a presença de uma


outra Viajante — ela me encara fundo nos olhos — do mesmo sangue da Aurora
e em meio a todos os elementos que já foram apontados por Vossa Alteza.

Faço uma varredura rápida por todo o templo. Tami é o destaque no coral,
responsável por produzir as ricas melodias para as entradas da realeza. Em uma
das duas plataformas mais altas, dispostas nas laterais do edifício, Ludmila,
Rebeca e Carlos Eduardo estão sentados nas cadeiras nas fileiras mais ao fundo.
E sei que lá fora, junto aos guardas, está a Tina.

Quanto à frente do templo, onde será realizado o matrimônio, do lado


pertencente a noiva, está Dominic. A expressão congelada em seu rosto é serena,
fazendo com que o meu estômago revire ainda mais. Já sentado na parte
correspondente ao noivo, Áquila foi congelado segurando discretamente a minha
mão, e isso faz com que o meu coração aperte de tal forma que beira o
insuportável.

— É a mim que os senhores querem. Por favor, não os machuque. —


Encaro Laghertia e sinto o peso do olhar dos três sobre mim.

— Nós não te queremos, Isabelle. O que desejamos é a liberdade da alma


da Aurora.

— Para que este mundo perca a proteção contra os Drakars e seja


desolado. Ou seja, se os três não atentarem contra todas essas pessoas que aqui
estão para participar de um casamento, atentarão no futuro. Não sou imbecil,
Laghertia. Creio que já deixei isso claro na nossa última conversa.

Um silêncio denso recai sobre o recinto. A princesa dos Drakars dá um


passo na minha direção e engulo em seco, mas ergo o queixo e a encaro a poucos
metros de distância de mim.

— O meu povo deseja o fim do tormento daquela pobre alma e viemos até
aqui te oferecer a proteção que falhamos com Aurora, mas que conseguimos com
o filho dela.

— Os Drakars o esconderam no outro mundo. — Não é uma pergunta, é


uma afirmação para a suspeita que eu nutria. A minha mãe de sangue e eu
nascemos lá, portanto o filho da Aurora viveu e teve herdeiros lá, não aqui.

— Na sua mente reside a ideia de que terá que se sacrificar assim que
libertar Aurora para que não seja a sua alma a tomar o lugar da dela e,
compreensivelmente, teme perder a vida ainda tão jovem. Mas a sua resistência é
recente e se deve ao fato do medo de perder o futuro que os dois estão
fantasiando juntos, portanto, ele é o que está te atrasando. — Laghertia lança um
olhar para a mão do Áquila sobre a minha. — No entanto, Isabelle, os tempos
mudaram e nós podemos te oferecer esse futuro neste mundo. Nós a
protegeremos, portanto, nenhum homem aprisionará a sua alma como aconteceu
com a Aurora.

O Drakar de preto faz um movimento sutil de assentimento e então cravo


meus olhos aos intensos dele. Ele não diz, mas sinto vindo dele a reafirmação do
que Laghertia está dizendo.

— Ninguém te tocará ou aos seus descendentes — o Drakar metamorfo


diz.

A alma da Aurora liberta e a minha vida, e a dos meus futuros


descendentes, também garantida. Em troca, um mundo inteiro ficará
desprotegido dos Drakars.

Fico em silêncio enquanto a minha mente fervilha pensando nos terríveis


destinos. Fato é, ambos são horríveis. Qualquer escolha que eu faça, o resultado
será ruim.

— A sua linhagem é inocente e foi injustamente condenada por conta das


ambições da linhagem dele, o homem a quem constantemente Vossa Alteza se
volta. — Ela aponta a cabeça para o Áquila em uma acusação clara.

— Longe de mim concordar e me conformar com o que foi feito aos meus
antepassados! Então não tente me ludibriar quando eu bem sei que tenho que
escolher entre dois destinos ruins. Hortense sofreu duas vezes. Uma ao ser
raptada pelos antigos povos deste mundo e mantida aqui para assumir o lugar da
Aurora, a rainha morta. A outra ao ter a alma condenada para que estas terras
tivessem prosperidade sem a presença dos Drakars, raça com que aqueles
homens viviam constantemente em guerra. O que eu consigo discernir, em meio
a essa crueldade que Hortense sofreu, é que todos os que atentaram contra ela
estão mortos há milênios e serão os descendentes deles que sofrerão as
consequências. Acontece que, dentre eles, há alguns que amo profundamente.
Além do mais, até mesmo a minha família está entre os novos habitantes deste
mundo!

— Parece que apenas um lado da história está sendo levado em


consideração. Isabelle...

— Por favor, Laghertia. — Ergo uma mão e a silencio. — Não me tome


mais por uma imbecil romântica que é capaz de acreditar que os Drakars saíram
deste mundo porque o amor acabou. — Enrugo o nariz ao fazer referência do
motivo que ela me deu na nossa última conversa para que os Drakars tenham
deixado este mundo. — Eu não caio nessa depois de um Guerreiro cruel declarar
abertamente o amor que sente por mim, ou de um príncipe sair do seu palácio em
busca de um casamento por amor sem nunca ter visto a pretendente. Tenho
vários outros exemplos para dar, mas a questão é que não vou acreditar que os
atos perversos daqueles homens do passado estavam ligados à falta do amor
neste mundo. Vocês foram expulsos.
— É verdade — o metamorfo se manifesta e tanto Laghertia, quanto eu,
ficamos surpresas com a intromissão dele. — Nós fomos expulsos por conta da
busca gananciosa daqueles homens em obter mais poder e, portanto, conquistar
essa falsa prosperidade que Vossa Alteza mesma apontou se tratar de ter sido
obtida às custas da condenação da Hortense.

Ergo uma sobrancelha e o encaro com curiosidade. Não me escapa que o


Drakar não disse Aurora e sim Hortense. Será que ele a conheceu pessoalmente
naquela época? Pouquíssimas vezes vi alguém, que não seja eu ou o meu irmão,
se referir à Hortense ao invés de Aurora. Seja lá qual for o caso, isso não
importa.

— Não há como saber o que aconteceu. As versões dos fatos são


distorcidas porque não há imparcialidade. Os livros foram escritos por aqueles
homens que, obviamente, se pintam como bons, como as vítimas da ganância
dos Drakars. Por sua vez, vocês, Drakars, se colocam como inocentes, vítimas
daqueles homens gananciosos. A única pessoa cuja inocência posso declarar é a
da Hortense! — Termino professando em voz alta.

— Inocente essa que Vossa Alteza permite que continue sendo torturada,
mesmo após ter conquistado a liberdade das suas irmãs, o motivo inicial que te
fez ignorar a lenda — o Drakar sombrio diz baixo com sua voz de barítono.

Nossos olhares travam. Eu não fraquejo ante a sua acusação velada. Ele
também não se intimida ante o meu olhar frio.

— Eu nem mesmo era nascida quando tudo aconteceu, portanto, a culpa


não é minha, Drakar.

— Mas Vossa Alteza é a única que pode salvá-la, portanto, a


responsabilidade é sua, princesa.
Nós dois nos medimos uma vez mais. Inclino o queixo. Ele arqueia uma
sobrancelha.

— Nós podemos te matar agora mes... — o metamorfo se revolta e começa


a me ameaçar, mas para de falar quando volto a minha atenção com tudo para
ele.

— E então a alma da Hortense estará eternamente condenada, uma vez que


sou a última da linhagem dela.

— Podemos matar os seus amados, a começar por ele. — O brutamontes


lança um olhar para o Áquila. — É até conveniente, uma vez que evitaremos a
ascensão de um outro Salonsk ao poder e então a magia obscura acaba.

Sei o que ele está tentando fazer. O metamorfo quer encontrar brechas para
me atemorizar, coisa que não aconteceu por eu me ver diante de três seres com
tanto poder que um piscar de olhos e estou morta. Como Laghertia os alertou,
sou teimosa, insolente e continuo inconsequente no que diz respeito a mim.

— Se assim fosse, os três não perderiam tempo conversando comigo.


Portanto, imagino que se o Áquila e o Rakar morrem, o trono passa adiante para
o próximo da linha de sucessão e ele herdará essa magia que mantém a maldição
contra os Drakars. Em outras palavras, a alma da Hortense continuará presa e
atormentada.

— Nós podemos...

— Basta! — O Drakar de negro vocifera de tal forma que por um instante


penso que os vidros do templo irão se estilhaçar. Até confiro para ver se nada
quebrou. O metamorfo se contrai inteiro e até mesmo Laghertia se encolhe. —
Nós não somos inimigos dos Tupper e o propósito dessa conversa é justamente
mostrar isso a ela. Se eu ouvir uma ameaça a mais que seja para a Viajante, não
justificarei mais os ânimos exaltados pela dor que sei que sente pela Hortense e a
teimosia da única descendente dela em fazer o que é certo. Hortense se foi há
milênios — ele diz com firmeza, como se quisesse que suas palavras o
penetrassem. — O que nos resta é libertar a alma dela.

— Creio, Isabelle — Laghertia toma as rédeas da situação novamente —,


que já há embasamento o suficiente para a tomada de uma decisão. Reforço que
não há necessidade de atentar contra a sua própria vida ao libertar a Aurora.
Lembre-se do Orientador e da Espada Viva. — Dito isso, uma escuridão recai
sobre o ressinto.

Quando a luz volta, o tempo corre normalmente e não há mais qualquer


sinal dos três.

Os sons abruptos de suspiros de espanto, choro de criança e cochichos,


incomodam os meus ouvidos, mas nada se compara com o incômodo que sinto
na barriga.

— Belle? — Áquila aperta com força a minha mão. Atordoada, encontro


com o seu olhar. — Tive a mesma sensação estranha de quando entramos na
Floresta Negra. Você está bem?

Não. Estou tremendo da cabeça aos pés. Até tento disfarçar os sinais do
meu corpo, assim como camuflo os meus sentimentos. Mas Áquila é bem
treinado e certamente nota minhas mãos geladas e meu corpo trêmulo. Além,
claro, a minha falta de resposta.

— Belle, meu amor...

— Está tudo bem.

— Não está tudo bem — ele diz, ríspido. — O que acabou de acontecer
aqui?

— Nada.
— Isabelle...

— Eu estou bem! — grito, o que por sua vez atrai a atenção de várias
pessoas.

Meu olhar cruza com o do Dominic e ele franze o cenho em preocupação.


Faço um sinal com a cabeça de que está tudo bem. Assim como o Áquila, ele não
se convence. Não é problema meu.

Ignoro os olhares de preocupação na minha direção e é bem quando noto o


Rei lançar um olhar preocupado para um corredor mais adiante. Tão rápido
quanto um tiro, desvio o olhar para que ele não perceba que o vi olhar para uma
porta tão camuflada que se não fosse por ele, eu jamais teria notado.

Aposto a minha vida que ela me levará até a Hortense, ou a Aurora deles.

Encaro o Áquila com uma expressão que tenho certeza demonstrar o meu
repentino pavor, porque ele aperta a minha mão com força em reação. O
Guerreiro até abre a boca para me questionar uma vez mais, mas a fecha quando
me levanto junto aos convidados ao ouvir a voz da Tami cantar à capella uma
música digna de um casamento Real.

Precisamos entrar nos personagens de príncipe e princesa, por isso sou


salva, ou condenada, depende do ponto de vista em que se olha, ao não ser
pressionada uma vez mais por ele.

Solto sua mão e, chafurdando em medo, assisto, sem de fato ver, a princesa
jararaca entrar para se casar com o príncipe vil.

Eu odeio a escolha que estou prestes a fazer, mas não há mais para onde
correr. A alma da Hortense precisa ser libertada e não confio nos Drakars tanto
quanto não confio no Rei.
Depois do casamento, os recém-casados partem para uma viagem e nunca
mais ouvimos falar de nenhum deles. Fico mais tranquila ao saber que o Rakar
não está mais por perto, portanto, um inimigo a menos para ter de lidar. Mas a
minha tranquilidade desvanece gradativamente, porque poucos dias depois,
assisto um confiante Carlos Eduardo também deixar o palácio.

Assim como ele, também achei uma sábia decisão a da Isabelle de ordenar
que os portais para o outro mundo fossem destruídos, uma vez que os irmãos
dela manifestaram o desejo de continuarem morando aqui.

Pode ser catastrófico repetir os erros do passado ao misturar ambas as


realidades mais do que já foi misturado. Afinal de contas, deve existir uma razão
para que antes não houvesse comunicação entre os mundos e quando os nossos
antepassados burlaram este equilíbrio, ao abrir os portais, se deu o início de uma
desordem.

Respeitar as leis naturais é algo que concordo com a Isabelle. Nós não
somos capazes de mensurar a dimensão do que pode acontecer se algo alterar
este equilíbrio uma vez mais, como a tecnologia deles entrar aqui, ou o nosso
conhecimento sobre as curas entrar lá.
Portanto, é por uma medida preventiva que o Carlos Eduardo deixa o
palácio com um grupo de eruditas e soldados de alta capacidade. Os
conhecimentos dele, somado aos dos sábios do palácio, que convém de alguns
deles também serem mestiços, portanto, manuseiam a magia, é o que colocará
um fim na possibilidade de acontecer um novo desiquilíbrio entre as cópias.

Porém, a minha preocupação começa no dia seguinte a partida dele ao


assistir Ludmila e Rebeca também deixarem o palácio sob a alegação da Isabelle
de se tratar de “férias”. Segundo ela, as meninas ficaram reféns durante três anos
nestas terras, então seria bom para a recuperação delas que elas fossem para o
Norte com o Dominic, uma pessoa em quem a Isa confia de olhos fechados.
Além disso, a Isabelle me convenceu de que seria bom para a minha irmã ir com
a Rebeca, uma vez que as duas se tornaram grandes amigas.

A princípio, fui contra e disse a ela que Tami tinha o dever de se tornar
uma Guerreira, como manda a tradição da nossa família. Fui vista como
intransigente ao não aceitar que a minha irmã estudasse arte. Depois de uma
argumentação da Isabelle, que me deixou envergonhada, aceitei que o Norte
seria o lugar para as realizações dos sonhos da Tami, uma vez que lá a arte é
mais difundida do que no nosso reino. Então, quando a minha irmã me confessou
seu desejo de ir, permiti.

Tudo está sendo muito bem executado, com justificativas tão perfeitas que
nem mesmo eu desconfiaria de nada. Isto é, se eu não tivesse acabado de vir de
uma visita ao Oclan e a gente se desse conta de que ele continua preso e a
Isabelle nada fez até hoje para soltá-lo. Ele, como sempre, me pediu apenas para
ficar atenta aos passos dela.

Não há como eu ficar atrás da Isabelle o dia todo! É necessário que outros
soldados assumam a minha posição, mas eu confio neles e passei a confiar nela
de novo. Exceto que fui mais esperta dessa vez.
Depois da conversa que Oclan e eu tivemos, em que ficou acordado que eu
vigiaria a Isabelle de perto, relembrei de uma conversa muito estranha que tive
com ela em uma festa numa ilha de um dos nobres. Para mim, ficou claro que a
conversa inteira foi manipulada, portanto, mantive atenção no que havia de mais
importante de tudo o que aconteceu naquele dia.

Isabelle estava deprimida e não era apenas pela discussão com a Rainha,
uma vez que aquela tristeza dela eu já tinha percebido antes daquele dia em
questão. Outra coisa que gravei na memória foi que, ao tocar no assunto de que o
Carlos Eduardo recebeu a missão de pesquisar sobre a lenda, Isabelle ficou
furiosa, achando que ele tinha me revelado algo. E, o mais agravante de tudo, no
começo da conversa ela disse que queria aproveitar os últimos dias de liberdade
e, depois que o assunto rodou, ela disse que sentiria saudades de mim.

Foi assim que o humor dela passou a ser o meu maior objeto de atenção!
Bem mais do que o paradeiro dela, uma vez que as excursões sem sentido pelo
palácio acabaram junto ao noivado dela com o Áquila. Acontece que desde então
a Isabelle só demonstra felicidade.

A questão é a seguinte, antes desse noivado, a Isabelle ficava melancólica,


deu a entender que estava com os dias de “liberdade” contados, dava o perdido
na guarda responsável por sua segurança e disse que sentiria saudades de mim.
Depois do casamento Real, as pessoas com que ela se importa desapareceram um
a um e hoje, depois da despedida das irmãs, ela não parecia deprimida e sim
ansiosa.

Perco o passo e dou meia volta. Eu estava indo para os meus aposentos me
recolher para descansar, mas preciso encontrar a Isabelle por desencargo de
consciência.

Chego na torre do Áquila — desde que o noivado deles foi proclamado,


eles ficam na torre dele — e descubro que nenhum dos dois está aqui. Os
soldados não sabem me dizer o paradeiro da Isabelle, mas quanto ao do Áquila,
descubro que ele está no gabinete Real.

É um péssimo, péssimo, péssimo, sinal, mas não me permito entrar em


desespero. Eles, Áquila, Isabelle e Dominic, gastam muito tempo com questões
políticas, o que por sua vez torna normal o Áquila estar em seu gabinete e não
em seus aposentos, mesmo perto do entardecer. Quanto a Isabelle, ela pode
estar... Maldição! Não sei onde ela pode estar!

Perco o passo ao ter um pensamento muito ruim invadindo a minha mente.


O Áquila é um Guerreiro. Eu sou uma Guerreira. Hoje todas as pessoas que a
Isabelle ama e que são fracas deixaram o palácio.

Com passos firmes, vou em busca do Áquila. Ele ainda está no palácio e se
a Isabelle não se livrou justo dele, forte ou não, isso quer dizer que tudo pode
não passar de uma infeliz coincidência.

Alcanço a parte glamorosa do palácio e a urgência gruda na minha pele


como um emplastro pegajoso. Rosno para o soldado fazendo a vigilância do
Áquila para que peça permissão para que eu seja aceita em sua presença. Quer eu
goste, quer não, Áquila é a minha melhor fonte no que diz respeito a Isabelle. Ele
com certeza sabe onde ela está e vou ficar tranquila ao descobrir que está tudo
bem.

— Vossa Alteza, a soldada da princesa está solicitando uma reunião — da


antessala, o ouço dizer.

— Ela veio à mando da Isabelle?

— Não, senhor. Ela veio por conta própria.

— Estou ocupado.
Ocupado. Ocupado a minha bunda! Eu vou chutar as bolas desse patife
ordinário, mas começo empurrando os soldados da porta e forçando a minha
passagem para entrar no gabinete.

Áquila ergue as vistas e me encara com repreensão.

Eu odiava aquele ar de superioridade que ele ostentava nos Guerreiros de


Fayrehal e odeio ainda mais a sua presunção de que é o mais importante até
mesmo no que diz respeito às minhas amizades.

Quando treinávamos juntos, eu sentia verdadeiro asco ao ver os nossos


superiores designando, aos poucos, todas as atividades importantes para que ele
liderasse. Quando o Áquila subiu de patente, e passou a ser o treinador do meu
pelotão, fiquei tão furiosa que por pouco não taquei fogo na minha casa. Foi um
dos dias mais injustos de toda a minha vida!

Mas passou e então a Isabelle entrou em jogo e a minha aversão a ele só


cresceu. Eu não a suportava. Ele também não se dava muito bem com ela. Me
dói dizer, mas temos muitos pontos em comum. Isabelle definitivamente é o que
mais odeio ter em comum com ele.

Áquila e eu somos solitários. Nós não demonstramos sentimentos e


considerávamos uma grande tolice as relações humanas afetivas. Isabelle veio e
derrubou as nossas resistências. Ela o tornou humano e me tornou mais
vulnerável. Ela fez dele seu amante e fez de mim sua melhor amiga. Duas
pessoas com personalidades parecidas, fortes e que se detestam orbitando ao
redor dela.

Eu até me esforçaria para engoli-lo, se ele não usasse essa honra para se
enaltecer e não ficasse dando a entender que é o de maior importância em tudo.
Guerreiros, Yerus, realeza, Isabelle... Eu não suporto esse homem! E parece que
fui condenada a eternamente provar a ele que sou melhor sim.
— Onde está a Isabelle? — pergunto entredentes.

— Refira-se a mim como Vossa Alteza. — Ele me corrige com seriedade.

— Não tenho tempo para essas besteiras. Preciso saber o paradeiro dela. É
uma questão urgente, Guerreiro.

Penso que o Áquila virá com aqueles sermões maçantes de hierarquia,


respeito e tratamento adequado, os quais é tão arraigado, mas me surpreendo
quando, pela primeira vez, o vejo deixar de lado os protocolos. Provavelmente
foi uma boa ideia trazer seu senso de soldado ao chamá-lo de Guerreiro.

— Quando nos separamos mais cedo, ela disse que iria às masmorras.

Solto uma risada sem humor e começo a andar de um lado para o outro.
Agora sim estou desesperada.

— Masmorras. — Repito ao balançar a cabeça para os lados.

— O que está acontecendo, soldada?

— Há dias que ela não dá as caras nas masmorras, Vossa Alteza!

Ao que tudo indica, o surpreendo, porque Áquila fica em pé e toda a sua


postura muda. Ele deixa de ser príncipe para ser... bem, alguém prestes a arrancar
o meu couro e me comer viva.

— Como assim há dias que ela não aparece nas masmorras? — Ele
praticamente cospe as palavras, como se a culpa fosse minha. Ele é mestre em
me fazer sentir assim, incompetente, como se sempre estivesse falhando, porque
o Áquila nunca erra. Nunca! Eu, por outro lado...

— Maldição jogada por todos os deuses! Estamos ferrados e ainda nem sei
como ou por quê. — Praguejo, mas ele não perde tempo com o meu desespero.
— O que infernos está acontecendo? Já faz alguns dias que a Isabelle
desaparece alegando fazer visitas ao Oclan e não há qualquer sinal de que isso
não seja verdade.

— Bem, para mim, é fácil enxergar que ela encontrou uma forma de
manipular a todos nós nessa questão.

— Manipulou a você, a chefe da guarda dela e os seus soldados, porque os


seus relatórios que recebo corroboram com o que ela me diz. — Encolho os
ombros. Não sei como a Isabelle conseguiu alterar os relatórios que mando para
o Áquila, mas não duvido da capacidade dela. — De qualquer forma, isso não
vem ao caso agora. Talvez a Isabelle esteja com o...

— Carlos Eduardo? — Sugiro e ele franze a testa. — Ludmila ou Rebeca


ou Tami? — A cada pergunta, mais inquieto como eu, ele fica. — Não percebeu
ainda? Ela se livrou dos mais fracos. Garantiu a segurança das pessoas que ama e
bem longe daqui, ainda por cima. Tenho para mim que a Isabelle só não se livrou
de você e de mim ou porque ainda não descobriu como ou porque nos considera
fortes. Qualquer que seja o motivo dela, uma coisa é clara, algo ruim está prestes
a acontecer porque ela desapareceu!

— Inferno sangrento e maldito! Como isso aconteceu, Guerreira Tina?! —


Áquila esbraveja. — Vou mandar agora mesmo que os meus soldados me tragam
informações do paradeiro dela e assim que a encontrarmos vou colocar outra
pessoa na posição de chefe da maldita guarda da Isabelle. — Ele abre com força
a porta do gabinete para ordenar aos seus soldados o que me disse.

— Você acha que já não fiz isso?! Eles não sabem onde ela está. Ninguém
sabe! E não se engane, Guerreiro. Se a Isabelle consegue despistar ao Oclan,
você e a mim, juntos, ela é capaz de enganar qualquer soldado!

Algo que me assusta feito a morte, acontece. Assisto ao Guerreiro mais


lendário ficar sem chão, bem na minha frente. Roo a unha, pensando em algum
lugar, qualquer lugar, que a Isabelle poderia ir. Sair feito uma barata tonta
procurando-a por aí pode ser o nosso fim. Preciso pensar antes de partir atrás
dela.

— Há algum lugar que você desconfia que ela possa ter ido? — Não sinto
satisfação da pergunta vulnerável do Áquila. Sinto desespero, assim como ele.

— Minhas apostas de lugares prováveis, seria onde a família dela ou Tami


estivessem. Talvez Dominic para discutir alguma questão política, mas ele foi
embora — respondo.

— Dominic ainda está no palácio, no entanto, assim como todo o restante


do reino, Isabelle também acha que ele já foi.

— Heloise. Minha última tentativa seria ela.

— Heloise? — Ele franze o cenho. — Irmã da Helena?

Balanço a cabeça para os lados e ando de um lado para o outro.

— É muito remoto...

Ele não me ouve, porque sai de novo para ordenar que um soldado vá em
busca da Heloise imediatamente.

— O que você sabe sobre a Aurora? — pergunto ao ficarmos a sós outra


vez. — Há muito tempo, a Isabelle deu uma missão ao Carlos Eduardo para que
ele descobrisse mais coisas a respeito da lenda.

— Não entendo a relevância disso no momento, no entanto, sei o mesmo


que você, Guerreira.

— O que sei são aquelas histórias que o Mestre Ponda contava na Festa da
Aurora em Fayrehal, Guerreiro. E a relevância é que creio que esses sumiços da
Isabelle podem ter ligação com essa lenda.
— Infernos! Só sei o que o anão contava a todos nós em Fayrehal.

Volto a andar de um lado para o outro e um dos soldados de confiança do


Áquila reporta que ainda não acharam a Isabelle, nem a Heloise. O Guerreiro se
vira para mim, pronto para me falar algo, que acredito ser ordens para que eu vá
procurar em algum lugar específico, mas o interrompo. Não creio que a Isabelle
e a Heloise estejam juntas e não vou desperdiçar esse precioso tempo indo atrás
de falsas pistas.

— Você disse que o Dominic ainda está aqui. — Áquila franze o cenho e
então assente, levando o meu raciocínio em consideração. Um certo tipo de
satisfação invade o meu peito. Ele nunca demonstrou interesse no meu modo de
pensar. — Onde?

— Ela não está com ele.

— Mas ele sabe o que há com ela.

— Você está insinuando que a Isabelle me esconderia algo que


compartilharia com ele?

— Não estou insinuando. Estou afirmando. A Isabelle te escondeu algo


que confidenciou ao Dominic. — Áquila fica em silêncio e me encara de um
jeito que me deixa tensa. — Olha, se serve de consolo, ela escondeu de mim
também. Temos mais esse ponto em comum — resmungo em um muxoxo.

— Como você pode afirmar com tanta convicção?

Essa seria uma grande oportunidade para tripudiar em cima das


inseguranças que sei que ele deve estar sentindo. Porém, embora o Áquila me
fizesse ficar ciente dos meus erros, ele nunca tripudiou em cima das minhas
limitações. Por respeito, também não faço isso.
— Você não notou nada de estranho na Isabelle?

— Muitas coisas aconteciam simultaneamente. No entanto, desde o


casamento, percebi uma melancolia nela quando pensava que eu não estava
atento a ela. Pensei que fosse uma recaída do luto.

— Não. O luto foi uma coisa. Essa melancolia é outra. — Áquila faz um
sinal com a mão para que eu me explique melhor. — No luto, o que posso dizer é
que a Isabelle entrou em um modo de autodestruição. Mas quando chegamos a
Lufstar, ela passou a ter um propósito com a rainha Magnólia. Se preparar para a
chegada do Dominic foi bom, mas nada se compara a quando ele chegou. —
Lanço um olhar temeroso ao Áquila para ver como está recebendo. Ele apenas
cruza as mãos nas costas, sem externar nada do que está sentindo ante a minha
revelação.

— Continue, soldada — ele demanda.

Embasbacada, o encaro por alguns segundos. Se as nossas posições se


invertessem, eu é que não iria querer saber do Carlos Eduardo feliz ao lado de
outra, independente de noivado político ou não. Não sei do que o Áquila é feito,
mas não é da minha conta, portanto, atendo a sua ordem.

— Não vou te poupar então. Os dois ficaram amigos e o Dominic nos


devolveu a Isa. Ela voltou a sorrir, a ter aquelas ideias malucas e a ser a Isa como
a gente conhece. Foram meses muito tranquilos e felizes, o que me fez imaginar
que... — pigarreio e mudo o rumo da conversa, porque seria algo em torno de:
“me fez imaginar que Dominic era uma benção dos deuses mandado para se
casar com a Isa”. Foi isso o que pensei na época. — Enfim. O luto foi superado e
até mesmo os pesadelos dela acabaram. Mas um dia, na viagem de navio de
volta, a Isabelle mudou.

— Mudou como?
— Ela não saía da cabine e não conversava com ninguém, com exceção do
Dominic. Mas não foi só ela. O Carlos Eduardo voltou a agir da mesma forma
que agia quando estava sofrendo o luto pelo Felipe. É assim que sei que alguma
coisa aconteceu naquela viagem e que as únicas pessoas que sabem o que foi são
Dominic e Carlos Eduardo. Então veio Pedralhos. Isabelle ficou terrivelmente
balançada ao te reencontrar e o envolvimento entre vocês dois demandava muito
dela. Ao mesmo tempo, também vieram outras questões sérias para ela ter que
lidar e que, portanto, a distraíam. Até mesmo eu me esqueci daquela situação no
navio, mas... — paro de falar e engulo em seco.

— Mas o quê?

— Às vezes ela parava e voltava a ter aquele semblante triste que teve
naquela viagem. Acontecia toda vez que ela olhava sorrateiramente para o
Orientador; depois de algumas excursões pelo palácio sem sentido; e quando ela
se sentia cansada dos deveres de princesa. — O encaro com firmeza. — Entendo
a sua resistência em procurar o Dominic, mas ele sabe de algo que nós dois não
sabemos e talvez tenha a ver com a lenda.

— Venha comigo. — Áquila demanda e o acompanho um passo atrás. —


Ao meu lado, Guerreira Tina.

Meu peito quase explode de orgulho, tamanho o sentimento de conquista


que se apodera de mim. Ele está me enxergando como uma igual, finalmente. E
eu mereço. Mereço mesmo. Como dizia o Felipe: é isso aí, porra!

Porém deixo a empolgação, mais do que justificável, de lado e volto a ficar


séria, me concentrando em encontrar a Isabelle.
Em questão de horas, passei de me sentir o homem mais felizardo de todos
para me sentir o mais desesperado de todos.

Como eu desconfiaria que a Isabelle estava me escondendo algo justo


hoje? De manhã, fui acordado com ela distribuindo beijos suaves por todo o meu
rosto para em seguida ter seus braços ao redor do meu tronco me apertando em
um abraço forte. Fui inundado por seu amor, que agora desconfio ter se tratado
de uma maldita despedida.

Quando ela trespassou uma perna sobre o meu quadril, a girei na cama e
fiquei por cima enquanto me encaixava entre suas lindas pernas e fazia amor
com ela. Pensei que seus olhos brilhavam de emoção, porque, para mim, foi
como se os nossos corações tivessem se fundido em um. No entanto, agora
desconfio que aquele brilho eram lágrimas contidas, porque ao terminarmos, a
Isabelle me deu as costas e entrou no quarto de banho.

Ela estava se escondendo! E eu pensando que ela só precisava de um


momento sozinha para assimilar a intensidade do que compartilhamos na cama.
A Guerreira Tina ficou cheia de melindres ao me contar a respeito do
passado da Isabelle com o Dominic. A questão é que, parte de mim, odeia ouvir
sobre o tempo em que eles eram noivos. No entanto, a outra parte não dá a
mínima, uma vez que estou seguro dos sentimentos dela por mim.

A Isabelle foi honesta comigo em relação a tudo o que aconteceu entre os


dois. É assim que sei que nunca houve nada nem de longe parecido com o que
nós dois sempre tivemos.

Diante tudo o que ela me contou que aconteceu, a única conclusão que
cheguei é que o Dominic seria um tolo se não tivesse se apaixonado por ela.
Como posso culpá-lo por não ser imbecil? Então, por ele, o máximo que eu
poderia sentir seria pena. No entanto, não o sinto, porque seria o mesmo que
lamentar sua condição de não tê-la ao seu lado, o que é impossível, porque o
único sentimento que sou capaz de sentir é satisfação porque ela está comigo. Ou
estava comigo, porque ela desapareceu. Essa é a fonte do meu tormento.

Os meus soldados, por quem passo, fazem sinal de que ainda não a
encontraram e o nó no meu peito intensifica ainda mais.

Não quero que os soldados do Rei descubram sobre esta busca. Eu não
confio no Rei. Não confio em quase ninguém. No entanto, no que diz respeito à
Isabelle, na Guerreira Tina eu confio, uma vez que o ponto dela foi válido.

A Isabelle foi capaz de despistar a mim, a ela e ao Oclan, de uma só vez.


Acontece que, de nós três, foi justamente a Guerreira quem detectou primeiro
que havia algo errado. Por essa razão, a manterei ao meu lado até encontrarmos a
Isabelle. Também é por conta da Guerreira que faço algo que jamais pensei que
faria, vou atrás do Dominic.

A notícia de que a irmã dele fugiu e largou o Rakar logo depois da


cerimônia de casamento, chegou agora a pouco. Por isso ele não desceu com o
resto da sua comitiva para embarcar no navio ancorado na Ilha do Comércio.
A princípio, Dominic exigiu tratar os assuntos que dizem respeito à aliança
entre o Reino do Norte e Yerus apenas com a Isabelle. No entanto, já faz algum
tempo que a Isabelle faz o possível para se eximir dessa tarefa alegando falta de
aptidão para tal. De certa maneira, ela está correta. Isabelle ainda não recebeu
instrução para essa função, no entanto, sei que a ideia dela, que está por detrás, é
que ela não seja um recurso ao Dominic e sim eu.

Além disso, durante esses últimos dias, a Isabelle estava completamente


ocupada lidando com a missão de destruir os portais — um pedido dela que
todos nós, inclusive o Rei, concordamos de que seria o melhor a se fazer. No
caso do Rei, não há mais qualquer interesse nos portais, uma vez que a única
pessoa que era importante para ele, ele acredita que já está sob seu poder. Quais
são as razões do Dominic, não sei dizer. As minhas são as mesmas da Isabelle. O
risco é muito alto ao lidar com alterações no equilíbrio natural.

Se todas essas razões ainda não fossem o suficiente para o Dominic desistir
da insistência em tratar as questões do reino dele apenas com a Isabelle, há o
interesse do Norte de não correr o risco de vazar o acontecido. Por isso a pressa
para resolver a situação independente de com quem seja.

O ato da irmã do Dominic colocou o reino deles em uma situação muito


delicada com o nosso, embora eu saiba muito bem que o Rei irá usar o que ela
fez como pretexto para mandar o Rakar para um lugar distante. Já faz algum
tempo que era o desejo dele esconder o Rakar e tirá-lo todo o poder.

No entanto, a história que será contada para todo o restante do mundo é a


de que o casal viverá feliz em algum lugar quando, na verdade, a noiva fugiu e
Rakar foi exilado.

Assim que avisto o soldado pessoal do Dominic, ordeno para que vá em


busca dele na sala de reuniões. Não vou correr o risco de atrair a atenção do Rei
ou do Rakar. Se o assunto que eles estão tratando exige sigilo, o meu é questão
de vida ou morte.

Dominic enrijece a postura assim que entra na sala em que estamos apenas
a Guerreira Tina e eu o aguardando.

— Aconteceu algo? — Ele alterna o olhar entre nós dois e então reage
como se desse falta de algo ou de alguém. — A Isabelle está bem?

Ignoro a preocupação dele e dou um passo à frente, demandando sua


atenção inteira.

— O que você sabe sobre a lenda? — Exijo e ele enrijece a postura.

— Você ordenou que me tirassem de uma reunião urgente para discutir


uma lenda, Áquila?

Cerro os dedos no punho, a um passo de perder as estribeiras com ele. É


bem neste momento que a Guerreira Tina toca meu ombro e me puxa para trás,
assumindo o controle da situação.

— A Isabelle desapareceu. — Ele perde toda a cor do rosto. — Conte-nos


o que aconteceu na embarcação que nos trouxe a Pedralhos.

— Pelos deuses! — Ele pragueja para si mesmo.

— Onde ela está? — Seguro as lapelas do casaco dele e o chacoalho.

— Se há alguém capaz de saber onde ela está, esse alguém é Vossa Alteza,
portanto, retire essas mãos imundas do sangue de inocentes de mim. — Dominic
ordena, porém não o largo. Além disso, fico ainda mais fulo por ele me acusar de
saber onde a Isabelle está quando cada vez mais penso no pior acontecendo a ela.

A Guerreira Tina bate nos meus braços e me arrasta para trás, abrindo um
espaço considerável entre o Dominic e eu.
— Seu canalha! Eu não tenho a menor pista de onde ela está! — Rosno
para o Dominic e só não avanço sobre ele de novo, porque a Guerreira Tina se
posiciona na minha frente para me bloquear.

— Acalmem-se! — Tina vocifera, mas não damos atenção a ela.

— É claro que tem. — Dominic ajeita o casaco e me lança um olhar


furioso. — Seus antepassados aprisionaram a Aurora, então apenas vocês, os
Salonsk, e o Orientador são capazes de saber a localização dela.

— Por que a Isabelle decidiu ir atrás da maldita lenda sozinha? Eu teria ido
atrás da Aurora com ela. — Para a minha surpresa, a Guerreira Tina faz a mesma
pergunta que eu faria se estivesse em melhores condições. No entanto, estou
gastando cada energia do meu corpo para me manter no lugar e não descer os
punhos sobre o nariz perfeito do príncipe do Norte.

— Não. Não teria, soldada — Dominic diz.

— O que infernos você sabe que não está nos contando? — Trinco os
dentes e o encaro com frieza, pronto para acabar com a pequena distância entre
nós e agarrar o casaco dele para fazer bem mais do que apenas sacudi-lo.

Que os deuses me ajudem, mas vou mandar um príncipe para o inferno


muito em breve e me condenar no processo.

— Como você não sabe, Áquila?

— Ele é um Guerreiro! — Tina toma o meu partido e rosna para o príncipe


ela mesma. — Pelo visto, nós não recebemos as mesmas informações que
príncipes recebem acerca da maldita lenda!

— Vocês, os Salonsk — Dominic me aponta o dedo em riste —, usaram


magia obscura para aprisionar a alma da Aurora em um feitiço a fim de usar a
energia dela para que os Drakars fossem expulsos das nossas terras.
Um silêncio denso recai sobre o recinto. Cada fibra do meu ser paralisa. A
Guerreira Tina me lança um olhar apavorado. Ergo a cabeça para cima e engulo
em seco.

Pelos deuses! Que não seja o que estou pensando.

— A alma da Aurora está sendo atormentada no além e a Isabelle é a única


que pode salvá-la, correndo o risco de ter que se sacrificar em seguida para que
não seja a alma dela aprisionada em uma magia obscura? — Tina pergunta
lentamente o que não tenho coragem sequer de pensar, então fecho os olhos com
força.

— Sim. — Dominic responde temoroso.

— Ela descobriu essas coisas e, além de você não ter compartilhado com
ninguém as descobertas dela, também permitiu que a Isabelle escondesse isso de
mim? Do Oclan? Do Áquila? — Tina continua perguntando o que eu gostaria de
perguntar, porém estou ocupado me controlando para não matar o Dominic e
acabar com as nossas chances de encontrar a Isabelle. Só porque ele ainda é útil,
é que está respirando.

— É uma teoria que temos na nossa família e que a Isabelle também


chegou à mesma conclusão. Quem sabe o que realmente aconteceu, são os
Salonsk, que mantém esse absurdo em segredo. De qualquer forma, teorias
devem ser mantidas em sigilo, uma vez que guerras já foram declaradas por
muito menos.

— Que os deuses me ajudem ou vou ser condenada à guilhotina! — A


Guerreira Tina exala e então lança um olhar mortal para o Dominic. — Eu
sempre tomei o seu partido e torcia por você, mas como você pôde manter isso
em segredo e não fazer nada a respeito? Simplesmente ficar parado?
— O que eu poderia fazer, soldada? — Dominic se exalta. — Sequestrá-la
e aprisioná-la em um calabouço?

— Sim! — Intervenho, exasperado. Se eu soubesse dessa teoria acerca da


maldita lenda, ninguém nunca mais colocaria um olhar sequer sobre a Isabelle.
Nós dois desapareceríamos da história sem deixar vestígios, assim como
aconteceu com o Telok I e seu descendente. — Reze para todos os deuses
existentes para que consigamos encontrá-la a tempo, porque se for tarde demais,
nós dois morreremos. Você sob a minha espada e eu como punição por ter
degolado um príncipe.

Saio tempestivamente da sala e logo os dois seguem em meu encalço.

— Para onde você vai? — Tina me pergunta.

— Procurar uma tumba de não sei quantos milênios nas criptas.

— É obvio que ela não está nas criptas dos seus antepassados — Dominic
diz.

Paro de andar e o encaro com os dedos cerrados nos punhos e os dentes


trincando.

— Algum palpite melhor, príncipe? — pergunto com desdém.

Ele solta um suspiro e olha para os lados, sem qualquer tipo de


perspectiva.

— Príncipe Áquila? — Ouço uma voz feminina vindo do pátio me chamar


à distância.

Simplesmente volto a andar e ignoro tudo e a todos.

A última coisa que preciso no momento é ter essas damas afetadas se


intrometendo no meu caminho como de costume. No entanto, a Guerreira Tina
bate nas minhas costas em um sinal para que eu pare. Viro o rosto em sua direção
e solto um rosnado.

— É a Heloise. — Ela explica rapidamente.

De uma só vez, volto-me na direção de onde veio a voz. A irmã da Helena


atravessa a grande extensão do pátio praticamente correndo. Ela para a minha
frente ao nos alcançar e não consegue sequer falar, uma vez que está
praticamente sem fôlego.

Seu peito sobe e desce com tanta violência que, por um momento, penso
que irá cair dura no chão. O que não é nenhum absurdo, uma vez que já vi damas
desmaiarem incontáveis vezes.

— Vomita logo o que tem para nos dizer, Heloise — Tina diz entredentes.

Os olhos azuis da garota cravam nos meus.

— Helena — ela diz entre arfadas.

Sou totalmente contra violência a uma dama, então faço uma anotação
mental de mandar prenderem a Heloise por me atrasar ao vir falar da Helena
quando a vida da Isabelle está em perigo. A Guerreira Tina não pensa como eu,
porque aperta os ombros da garota e parece querer puni-la de imediato.

— Você vai me pagar caro por...

— Isa... — Heloise arfa e Tina a solta no mesmo segundo. Até mesmo


Dominic e eu paramos de andar e voltamos correndo para perto da garota.

— O que tem a Isabelle? — Demando.

— Helena. Armada. Seguiu. Isa.

— Seguiu para onde? — Praticamente cuspo a pergunta.


A garota se encolhe toda, o que me apavora. Se ela desmaiar justo agora,
estaremos condenados.

— Respira. — Ordeno com firmeza e ela assente.

— São esses malditos vestidos. — Tina pragueja e então afrouxa os laços


nas costas da garota, que volta a ter uma cor nas bochechas.

— Templo. Onde foi realizado o casamento. — Heloise exala e todos nós


saímos em disparada. No entanto, ninguém é páreo para mim, porque ninguém
tem tanto a perder quanto eu.
Nunca me apoiei tanto nas minhas habilidades de ladra quanto nos últimos
dias. Foi insano tramar um destino seguro para os meus irmãos, vigiar o templo
sem ser vista pelos soldados do Rei, mentir para o Áquila e driblar a Tina, tudo
ao mesmo tempo!
O mais desafiante foi assistir, sem ser notada, aos soldados responsáveis
por reportar ao Rei qualquer atividade suspeita perto do templo. Acontece que o
monarca é esperto demais para rodear o local de vigilantes, uma vez que isso
levantaria suspeitas.
Então, foi um desafio descobrir o disfarce deles, o turno e quais são os
pontos fracos da vigília. Foi tão difícil encontrar um meio de passar por eles sem
ser notada, que cheguei à conclusão de que se eu não tivesse sido uma ladra no
meu mundo, jamais conseguiria ultrapassar essa barreira. Mas não só fui uma
ladra, como também fui a melhor!
Solto um suspiro de alívio ao, enfim, parar em frente à porta estreita e
baixa para onde o Rei olhava durante o casamento Real. Retiro o Orientador para
ter certeza de que estou no lugar certo. A seta aponta diretamente para a frente.
Com cuidado, adentro o recinto, que me recebe com um breu. Seguro o
Orientador em uma palma enquanto com a outra apalpo a parede de pedra fria,
revestida de algo que suponho ser musgo, uma vez que não enxergo nada. A
Espada Viva está bem presa no cinto de armas ao redor da minha cintura.
Devagar, desço as escadas, sem perder o contato dos meus dedos nas
pedras. Ficar completamente cega, me assusta, mas não a ponto de me fazer
voltar atrás na minha decisão.
Não tenho a menor confiança no que estou fazendo e, a cada passo que dou
para adentrar ainda mais a escuridão, a dúvida me acompanha. Pela primeira vez
na minha vida, temo que a coragem vá me faltar. O que me faz seguir em frente é
que o Drakar horripilante tinha razão. É minha responsabilidade dar fim ao que
está acontecendo à Hortense.
Ao longe, ouço o som ritmado de goteiras caindo sobre o que suponho ser
uma poça. É tudo o que me acompanha a cada passo que dou.
Depois de um tempo descendo, desconfio que as escadas acabam ao notar
que o chão está revestido de água, uma vez que a barra do meu vestido logo fica
úmida. Mas a camada é pequena, porque não sinto contato direto dela com a
minha pele e meus sapatos continuam secos por dentro.
Dou passos maiores, confiante de que não há mais nenhum desnível pela
frente. Alguns metros percorrendo o que presumo ser um corredor, noto uma
claridade baixa, quase opaca, mais à frente.
Não apresso o passo agora que tenho certeza de que realmente estou em
um corredor, mas meu coração acelera. Chego mais perto do fim do túnel e
minhas vistas ajustam diante da claridade do ambiente circular se estendendo à
minha frente.
Noto que o chão está mesmo coberto por uma fina camada d’água como
suspeitei. Também noto as várias colunas e arcos ornamentais dispersos por
todos os lados. O teto é formado por várias abóbadas e no centro dele há uma
cúpula de vidro, permitindo a entrada da luz do fim do dia, que ilumina o que
descubro ser uma cripta.
É desnecessário, mas pego o Orientador e ele aponta para o monumento
feito de mármore preto com apenas um símbolo sobre a superfície. Uma imensa
estrela de seis pontas, traçada em uma linha contínua ao invés de dois triângulos
sobrepostos, adorna o imenso túmulo.
Segundo os desenhos que o Kaká me mostrou, de símbolos de estrelas,
reconheço que se trata de um hexagrama unicursal. Se eu tinha dúvidas de que a
situação era ruim, essa é a prova definitiva que me faltava para reconhecer que o
que fizeram com a Hortense é algo terrível!
O medo me invade e sou dominada pela vontade tremenda de voltar
correndo pelo caminho que vim e deixar as coisas como estão, sem correr o risco
de me envolver com nada disso. Também me convenço de que não tenho como
adentrar muito, uma vez que, ao redor de onde está o túmulo, há uma queda
circular que o deixa ilhado. Eu teria que encontrar uma forma de descer e escalar
a fissura para chegar até ele.
Um som às minhas costas me sobressalta. Sinto as batidas do meu coração
nos meus ouvidos e meu pulmão comprime de tal forma que fico sem ar. Meus
pelinhos dos braços também estão todos arrepiados e penso que se estou com
medo só de ficar nesse lugar horripilante, faço ideia o sofrimento da alma da
Hortense.
Não posso ser covarde justo agora. Não cheguei até aqui para desistir dela!
Aperto meus dedos trêmulos nos punhos e dou mais um passo para perto
da queda. Então, outro, outro e outro, até ser impossível avançar mais. Ergo às
vistas da fenda para o túmulo ilhado, ponderando se um salto é possível
trespassar à distância de onde estou até ele.
Uma cortina de luz negra, vindo do abismo da fissura, cerca todo o círculo
até tapar tudo, inclusive o teto onde está localizada a cúpula responsável por
deixar que os últimos raios de sol adentrem na cripta.
Desmaio.
— Isabelle Beauharnais. — Ouço uma voz melodiosa me chamar ao plano
de fundo. Um toque frio no meu queixo me faz abrir as pálpebras e encontro um
par de olhos castanhos parecidos com os meus me avaliando de perto. — Você
também carrega o olhar duro como faca dos Beauharnais.
— Hortense? — Engulo em seco.
Ela assente enquanto sento-me no chão, tentando entender o que está
acontecendo. Olho ao meu redor e não vejo nada a não ser um ambiente cinza e,
parada à minha frente, uma mulher que parece ter saído diretamente de um
quadro de pintura a óleo.
— Onde estamos?
— Isso não vem ao caso agora. — Ela procura pelas minhas mãos e então
as aperta. — Vá embora e não olhe para trás.
— Mas a sua alma...
— Você tem muito a perder, Isabelle. Vou te mostrar para que acredite em
mim e não teime comigo.
O toque frio do seu dedo contra a minha testa é a última coisa que sinto
antes de desmaiar outra vez.

— Pelos céus, Isabelle! Você é a responsável por eu amar perdidamente


uma menina banguela, rosa e gorducha — Áquila diz com suavidade.
Abro os olhos devagar e o meu Guerreiro coloca um pacotinho sobre os
meus braços.
Mesmo atordoada com a mudança abrupta de cenário, noto que estou
deitada em uma cama de dossel enorme. Meu cabelo está grudado na testa e
minha camisola encharcada de suor.
Embora tudo seja confuso, perco o ar diante do serzinho em meus braços
de olhos âmbar me encarando com devoção. Ela se remexe e solta uns
barulhinhos mais gostosos do que o badalar de delicados sininhos. Até mesmo o
cheirinho dela tem uma ligação direta com o meu coração
— Você não pode se ressentir comigo por conta disso, Belle. Céus, ela é o
ser mais angelical em que já pus os meus olhos!
Abro um sorriso tonto e pisco para o Áquila.
— Qual o nome dela?
— Já disse que não vou mais opinar nessa questão.
— Opinar nessa questão? — Desvio os olhos da bebê, dona dos
barulhinhos mais agradáveis que já ouvi em toda a minha vida, para o homem se
sentando na cama ao meu lado com cuidado.
— Não depois que fui ameaçado de ser trancado do lado de fora da nossa
torre por gostar de todas as suas sugestões.
Olho do bebê para ele e então de volta para o bebê.
— É um sonho? — sussurro ao deslizar um dedo sobre as bochechas
rosadas.
— Se for, não me acorde. — A bebê se remexe no meu colo como se
procurasse por algo. — Acho que você tem que alimentá-la, meu amor.
Ao ouvir essa sugestão, sinto meus peitos inchados, explodindo para
liberar o leite contido neles.
— É. Acho que você tem ra...
— Belle?
Desmaio.
Me debato com violência, tentando acordar do sonho, ou pesadelo, porque
é aterrorizante a sensação de ter aquele bebê arrancado dos meus braços!
Abro os olhos e a pintura a óleo viva, do que presumo ser a Hortense, entra
em foco aos poucos.
— Onde ela está? — grito ao me sentar de forma abrupta no chão.
— Agora acredita em mim quando digo que você tem tudo a perder?
Meu coração é esmagado como se um elefante se sentasse sobre ele.
— Não foi real? — pergunto temendo a resposta.
— Vejamos se agora será real o suficiente.
Outro toque gelado na minha testa e caio dentro de uma visão mais uma
vez.

— Mamãe, eu não gosto de ser princesa. Eu gosto de nadar no lago. —


Uma garotinha, de cara emburrada e olhos âmbar, me encara fazendo beicinho ao
cruzar os bracinhos na altura do peito.
— Compartilho do mesmo sentimento. — Abro um sorriso ao me agachar
e ficar à altura dela, nivelando os nossos olhos.
Ela é tão linda! Parece uma bonequinha de porcelana viva e me lembra
muito o Áquila. Exceto os cabelos e o nariz, eles são idênticos aos meus.
— Isabelle! — Ouço o Áquila me repreender e, quando olho para cima, o
noto em pé, parado ao meu lado. — Ela é a única herdeira disso aqui. — Áquila
aponta para o Palácio de Pedralhos ao nosso redor. Até sigo a direção dos seus
dedos, mas fico perdida na sensação de que ela não será a única por muito
tempo. Não sei como sei disso, mas sei. — Como você espera que ela seja uma
boa rainha se não receber a educação correta? Nós não queremos que os erros do
passado se repitam.
— Mas, papai! — O beicinho da garotinha treme.
Mesmo confusa com a enxurrada de emoções me inundando por conta
dessas visões que parecem tão reais, sou capaz de raciocinar que ele está certo,
mas preciso acalmar a doce menininha. Assumo o controle da situação mesmo
sem saber quem é essa versão de mim e se eu deveria falar algo por ela.
— Vamos fazer do jeito do papai primeiro e depois nós duas brincamos no
lago. Tudo bem?
A cabecinha de cabelos castanhos se volta para mim com rapidez.
— Promete que vai brincar comigo dessa vez, mamãe?
— Prometo, meu amorzinho.
A garotinha se joga contra os meus braços e caio no chão ao sentir uma
forte vertigem.
— Isabelle! — Ouço o desespero na voz do Áquila e até mesmo sinto o
toque de suas mãos nos meus braços para me amparar, mas apago de novo.

— Já chega! — Berro ao acordar me debatendo contra o chão cinza e frio.


— Pare de criar essas coisas na minha cabeça, Hortense! Ou seja lá quem ou o
que você é!
Engatinho de costas para trás, com medo de ser tocada de novo e ter
emoções profundas e intensas, que nunca tive contato antes, me assolando.
— Criar? — A suposta Hortense dá passos na minha direção, o que por sua
vez me assusta. — Estou te mostrando o futuro, princesa.
— Uma possibilidade do futuro. — Ela abre a boca para rebater, mas me
adianto. — Laghertia uma vez deixou escapar que a minha mãe de sangue
desistiu de libertar a alma da Hortense porque teve uma visão de mim. Você fez o
mesmo com ela, não fez? Você induziu o que queria que a minha mãe visse para
que me escolhesse! Quem é você?! — Berro a plenos pulmões ao ser inundada
por um medo terrível, porque, na minha cabeça, a Hortense verdadeira jamais me
convenceria de desistir de salvar a alma dela, não importa o que eu possa perder
em troca.
— Eu salvei a vida da sua mãe e a sua. — A pintura viva da Hortense
rebate calmamente.
— A minha mãe foi compelida a escolher o futuro que eu existia, mas isso
não pôs fim ao mal. Pelo contrário. Meus pais morreram. Fui perseguida. Minhas
irmãs foram feitas reféns. Meu irmão morreu! — grito e noto que estou
chorando. Respiro fundo e recupero o controle das minhas emoções. — Você
pode me mostrar o que quiser, mas adianto que não importa. O mal precisa
acabar e aquele futuro não é seguro para aquela menina!
— Menina essa que já está no seu ventre.
— O-o quê? — Engasgo e ela abre um sorriso condescendente.
— Diferente de como foi com a sua mãe, você ainda não tinha sido
concebida. Mas a sua filha, fruto da sua união com o Áquila, sim.
— Ó, Deus! — Enterro a cabeça entre as mãos. Tudo menos isso!
Essa... coisa poderia ter me mostrado ainda mais falsos futuros que eu não
desistiria. Mas só de sugerir que já carrego aquela menina, sou inundada pela
vontade de deixar a Hortense para lá.
Ao pensar assim, paro e reflito que é exatamente o que ela pretende com
esse papo.
— Isso é mentira. — Ergo as vistas e encaro o que quer que seja se
tentando passar pela Hortense. — Você quer me persuadir a não libertar a alma
da Hortense.
— É o que acha que estou fazendo, princesa? — Ela abre um sorriso
cínico.
— Sim. E você não é a Hortense. Pare de se passar por ela que sei muito
bem que você é a magia obscura que aprisionou a alma dela.
— Isso importa, Isabelle?
Fico em pé e olho para os lados em busca de algo que me faça acordar de
verdade desse feitiço, pesadelo, ou sei lá o quê. Não encontro nada, apenas o
vazio cinza que nos cerca.
Frustrada, me belisco na esperança de que isso funcione.
Nada acontece.
— Argh! Como saio daqui?
Distraída, não noto a aproximação dela até que seja tarde demais. Um
toque de dedos gélidos na minha testa e desabo no chão.

Tenho uma vontade insana de gritar, mas o que faço mesmo é soltar um
gemido misturado de prazer com lamúria diante a minha impotência de controlar
o que está acontecendo comigo.
— Te machuquei, Belle?
Arregalo os olhos ao som da voz do Áquila.
Eu me lembro de tudo. Lembro de passar por isso. Da preocupação dele.
Do prazer. Da conversa... Percebo que dessa vez fui jogada para o passado.
Especificamente em um momento íntimo que compartilhei ontem com o Áquila.
— Ou te assustei de prazer de novo?
Nego com a cabeça, confusa demais para entender como estou aqui
vivendo isso como se fosse pela primeira vez ao mesmo tempo em que sei que já
passei por isso. Na mesma intensidade em que quero sentir essas sensações de
prazer de novo, também luto para focar no que está acontecendo de anormal a
fim de manter a lucidez.
— Áquila... — solto uma lamúria baixa que tanto pode ser de confusão
quanto de prazer. Ele entende como sendo a segunda porque baixa o rosto para
abocanhar os meus seios desnudos e me incitar com a boca.
— Seus seios estão mais fartos do que de costume. Suas curvas também
estão mais acentuadas. — As mãos dele apertam o meu quadril. — O que você
está fazendo de diferente?
— Nada — respondo absurdamente atordoada diante as sensações de
prazer dominando o meu corpo, as perguntas para as quais eu não tenho uma
resposta e o déjá-vu mais real que já experienciei.
— Seja lá o que você está fazendo, não pare. O seu corpo está um
verdadeiro deleite.
— Áquila, eu... Ah! — Prenso os olhos com força e... Merda!

— O passado e o futuro são mesmo tão inexistentes quanto dizem? —


Hortense, ou a magia na forma da minha antepassada, pergunta. — O único
tempo real é mesmo o presente?
— O passado não existe mais — respondo de imediato, me recuperando
mais rápido dessas viagens entre um tempo e outro. — E o futuro pode ou não
acontecer — resmungo sem força no meu propósito.
O problema é que me lembro que, ao me despedir da Ludmila mais cedo,
ela apontou que os meus vestidos precisavam de ajustes, uma vez que os meus
seios pareciam maiores. O jeito como ela disse isso, foi como se soubesse de
algo que eu nem desconfiava.
— Não me pareceu que o passado não exista mais, princesa. — A visão da
Hortense abre um sorriso sarcástico.
— Como você sabe o que aconteceu? Você estava lá? — Sinto um calafrio
só de pensar nessa possibilidade.
— Tenho acesso apenas à sua mente.
— Não encosta mais em mim! — Fico em pé de novo e, dessa vez, abro
uma distância significativa entre nós duas.
— Pelo que vi na sua mente, também é inegável que o seu ciclo está
atrasado.
— Bom, para o seu azar, ou sorte da Hortense, os Drakars me procuraram
e, depois dessa, tudo me leva a crer que eles são os bonzinhos da história. Vou
confiar neles.
A viva pintura a óleo na forma da minha antepassada se transforma em
uma massa de fumaça negra.
— Bom, para o seu azar, você está presa comigo. — A voz de mulher se
transforma em ondas sonoras de vibrações assustadoras.
Antes que a massa de fumaça negra perceba o que pretendo fazer e me
impeça de agir, arranco a Espada Viva e faço um corte profundo na palma da
minha mão.
Os Drakars insistiram para que eu mantivesse o Orientador e a Espada
Viva comigo, mesmo depois de garantir que eu não precisava sacrificar a minha
vida ao libertar a alma da Hortense. A conclusão que cheguei é que mesmo assim
haveria a necessidade de derramamento de sangue. Afinal, não é o sangue que
carrega a energia que torna capaz os Drakars e os mestiços de manejarem a
magia?
A massa de fumaça avança sobre mim, mas antes de me tocar, ela perde a
força e um grito animalesco ruge contra os meus tímpanos.
Tapo os ouvidos ao mesmo tempo em que o ambiente cinza ao meu redor
desvanece de uma só vez.
Sou tomada por um súbito tormento causado pela magia obscura lutando
contra a força da minha própria alma. Ajoelho e espalmo as palmas das mãos
sobre o chão molhado da cripta escondida no interior do templo. A água lava o
meu sangue e o leva diretamente para as profundezas da fenda.
O pouco que adentra a fissura é o suficiente para que a magia invista
contra mim de tal forma que sinto até mesmo os meus ossos estremecerem.
Mantenho as mãos firmes contra o chão para que o líquido carmesim escoe cada
vez mais do corte e se misture com a água, que desagua no abismo.
Penso quanto mais sangue será preciso ser derramado bem quando um raio
corta os vidros da cúpula, estilhaçando-a em milhões de pedacinhos, e incidindo
diretamente sobre o túmulo de mármore preto. A luz branca, intensa e profunda,
racha ao meio os traços que formavam a estrela e destroça o mármore,
transformando-o em pó.
Pequenas bolinhas de partículas peroladas sobem do centro, onde uma vez
havia um túmulo, e voam, de forma ordenada, na direção do céu.
Solto um suspiro profundo ao notar que o meu sangue, derramado de boa
vontade, libertou a alma da Hortense que foi atormentada por milênios.
Está feito, porém o meu futuro ainda está em jogo.
Toco o meu ventre e fecho os olhos.
Laghertia, que você não seja uma cadela mentirosa e cumpra com a sua
promessa, porque eu preciso daquele futuro.
Tento me erguer, mas sou prensada de volta contra o chão. O baque não é
tão forte, mas é o suficiente para que as minhas costas batam no piso e a água
que o cobre esparrama para todos os lados. Imediatamente, levo as mãos para a
minha barriga e faço uma prece silenciosa para que esse tombo não prejudique o
bebê que talvez eu esteja carregando.
— Enfim chegou a sua hora, vadia. — Helena sustenta um punhal acima
da cabeça com a ponta apontada para o meu coração.
Surpresa com ela abruptamente em cima de mim, minha mente vira uma
massa branca enquanto meus olhos ficam reféns do brilho prateado do metal frio.
Não sou capaz de pensar em nada, mas cada célula do meu corpo sente o gosto
amargo do arrependimento da escolha que acabei de fazer.
Não precisei sacrificar a minha vida para libertar a Hortense, mas, ao que
tudo indica, a morte me encontrou mesmo assim. O que atormenta o meu espírito
é saber que aquela linda menina de olhos âmbar das visões, será condenada junto
a mim.
Desejo ardentemente voltar no tempo e tomar a mesma decisão que a
minha mãe tomou.
Uma lágrima me escapa, porque é tarde demais e nos amaldiçoei ao
escolher o futuro em que a alma da Hortense está liberta.
Nem mesmo a sombra do príncipe Áquila é vista. A Guerreira Tina até
tenta manter o mesmo ritmo que o dele, mas não é páreo para ele. O príncipe
Dominic segue mais à frente e sou a última do grupo seguindo em direção ao
templo.
O desespero dos três é tão grande que creio que ninguém notou que estou
no encalço deles. É o que penso, mas não o que acontece. Assim que alcanço a
entrada do templo, o príncipe do Norte barra o meu caminho.
— No casamento, vi o interesse da Isabelle por uma porta escondida no
corredor da lateral direita — Dominic diz entre arfadas de ar. Ele faz uma pausa
e percebo que os sons de espadas se chocando lá dentro são assustadores. —
Quem quer que esteja lá dentro, só vai enxergar o Áquila, a Tina e eu. Eles não
vão te notar. Salve a Isabelle, Heloise. Vou cuidar dele.
Cuidar de quem? É o que quero perguntar, mas o príncipe encara um ponto
atrás de mim ao desembainhar a própria espada. Alarmada, sigo a direção do seu
olhar e noto o Rei se aproximando rapidamente de onde estamos.
Como o príncipe foi capaz de perceber todos os riscos de uma só vez?
Dominic sequer entrou no templo para dizer que não serei notada. Além do mais,
como ele espera que eu salve a Isabelle? Ele perdeu o juízo?
Há dias que venho observando o interesse da Helena no trajeto da Isabelle.
Quando vi a minha irmã segurar com força um punhal e mudar completamente o
curso dela para seguir na direção do templo, imaginei do que se tratava.
O meu palpite é que ela foi atrás da Isabelle, mas por medo de que eles não
me levassem a sério, deixei de lado de que se tratava de um palpite. Além do
mais, não segui a minha irmã porque tenho plena consciência de que não tenho
condições de impedi-la.
Nos últimos dias, até tentei dissuadi-la da ideia de ferir a Isabelle na
intenção de fazer com que enxergasse a princesa sob a mesma perspectiva que a
minha. Afinal de contas, é do nosso interesse ficarmos bem com a monarquia.
Helena nunca me deu ouvidos e não sou suicida de ir atrás da minha irmã por
conta própria quando a mesma está focada em uma missão.
Já vi a Helena lutar e ela é simplesmente cruel! Porém, ela não se equipara
ao Áquila, por esse motivo optei por não segui-la para ir atrás dele. O ex amante
da minha irmã é o único com a capacidade de impedi-la de cometer um crime
terrível.
Mas então vem o príncipe Dominic e ordena que eu salve a Isabelle? Ele...
— Corre, Heloise! — Dominic agarra o meu braço e me puxa junto dele
para dentro do templo.
De forma abrupta, retorno dos meus devaneios e faço como ele ordena sem
pensar no que estou fazendo. Corro para a lateral enquanto o príncipe é atacado
por um dos soldados que acompanhavam o Rei, o primeiro do grupo deles a
alcançar o templo.
O príncipe tem mesmo uma percepção acurada do ambiente à sua volta
porque, de fato, toda a concentração do embate está em um raio ao redor do
Áquila e da Tina, que guerreiam bravamente em uma sincronia mortal contra
soldados descaracterizados, e do Dominic, que se afasta do reforço do Rei que
adentra o templo. Quanto a mim, ninguém me nota. Mesmo assim, minhas
pernas ficam bambas ao me esgueirar entre as sombras para seguir em direção à
tal porta.
Relanceio um olhar por sobre um dos ombros a tempo de ver o Rei
adentrar o templo e se juntar ao combate. Eu não esperava que o monarca fosse
guerrilhar, porém, ele não perde tempo e vai além. O Rei ordena que os soldados,
que chegaram junto dele, partam para cima do Áquila e da Tina enquanto o
próprio corre na direção do Dominic.
Paraliso no lugar ao notar a surpresa do príncipe do Norte. Ele perde
segundos preciosos ao observar o Rei com uma expressão que suponho ser
ponderação. Fico confusa diante a sua falta de reação, mas então compreendo
que se ele matar o Rei nas terras dele, o príncipe irá perder a cabeça em seguida.
Mas se ficar parado, irá perder a cabeça aqui e agora.
A bravura dele me inspira. Se o príncipe está disposto a sacrificar tanto, o
que resta para mim?
Com medo de atrair qualquer tipo de atenção, desvio o olhar rápido do
embate injusto entre o Rei e Dominic, em que este acaba de ter o futuro
condenado, e me concentro em passar despercebida no corredor próximo à
parede. Com o coração lutando para sair pela boca, alcanço a tal porta. Entro sem
ter coragem de olhar para trás para checar se alguém me notou ou, pior, se um
dos nossos já morreu.

Basta que os meus pés pisem no templo para que seis soldados, disfarçados
de homens santos, voltem a atenção para mim de uma só vez. Um segundo é o
tempo que levo para descobrir o disfarce deles. Eles percebem que descubro a
verdadeira identidade deles, porque levo a mão ao cabo da minha espada. Em um
piscar de olhos, a Guerreira Tina se junta a mim, com a espada firmemente em
mãos, e eles caem matando sobre nós dois.
Os soldados descaracterizados não nos dão nem chance de respirar, por
isso estou certo de que acertamos o paradeiro da Isabelle e que ela está aqui em
algum lugar. O que não sei é em que condições a encontrarei. No entanto, nutro
esperanças de que a sorte esteja do meu lado, uma vez que não há sinal de
qualquer embate anterior e todos os falsos homens santos parecem surpresos com
a nossa aparição.
Cobrindo bravamente a minha retaguarda, a Guerreira Tina segue os meus
comandos de guerrilha. Ordeno para que deixe apenas um deles vivo, uma vez
que precisamos descobrir o paradeiro da Isabelle e esses homens têm a resposta,
uma vez que estão protegendo algo. É lá onde a encontraremos.
O que eu não esperava, é que esses homens conseguiriam chamar reforços.
E não qualquer tipo de reforço e sim os homens do Rei com o próprio monarca
junto.
A Guerreira Tina perde o passo com a aparição deles no templo e quase é
nocauteada por conta disso.
— Fique atenta, soldada! — Puxo a camisa dela com força pela gola para
evitar que um dos falsos homens santos, ainda de pé, a acerte.
— Ele é meu. — A Guerreira aponta o queixo na direção do mezanino
acima das nossas cabeças.
Um relancear rápido para o alto e noto o Máximus vindo de lá e correndo
na nossa direção.
Inferno sangrento! Eu devia ter matado o Máximus ao invés de ter
oferecido perdão a ele e permitido que continuasse nos soldados do BOP desde
então!
Deixo de lado o meu erro para me concentrar na luta. A situação está
crítica e não há como combater todas as ameaças vindo de todos os lados e ainda
assim deixar os falsos homens santos vivos. Qualquer um que se aproximar de
mim, precisa morrer ou eu morro e tudo estará perdido para sempre.
Degolo o que eu estava lutando contra. Antes a minha intenção era a de
poupar a vida dele pelo tempo suficiente de descobrir o paradeiro da Isabelle.
Agora não mais.
Não tenho chances de lamentar a nossa falta de recursos — ele era o
último dos soldados disfarçados a morrer —, uma vez que o Máximus se
aproxima de nós pelo mezanino; os soldados do Rei nos cercam em todas as
direções e o monarca em pessoa avança sobre o Dominic, que paralisa no lugar.
Por que o maldito está parado? Ele vai morrer, infernos!
Um vulto desperta a minha atenção e noto, pela visão periférica, um ser
mirrado de cabelos loiro se esgueirar pelas sombras até chegar em uma porta
escondida no fim do templo.
Heloise.
Um dos homens do Rei avança sobre mim e, sem nem pensar a respeito,
enfio a espada em sua barriga. O homem arfa, no entanto, pouco me importo
com o seu último suspiro de vida, uma vez que a minha mente deduz que Tina e
eu estamos atraindo a atenção de todos os soldados; Heloise provavelmente
descobriu o paradeiro da Isabelle e foi atrás dela; e o Dominic irá morrer em
questão de segundos se ninguém for socorrê-lo.
Tomo uma decisão e confio que a Guerreira Tina é capaz de lutar sozinha
até a morte por um tempo razoável. Como ela pediu, deixo o Máximus para ela,
e todos os outros também.
— Áquila! — A Guerreira arfa em surpresa ao me ver afastar do combate.
— Eu não consigo lidar sozinha com todos eles de uma só vez!
— A Heloise foi atrás da... — não preciso terminar de falar, ela
compreende e se posiciona de uma forma que o meu caminho fica livre.
— Eu te ajudo, soldada. — Ouço a voz arfante do Máximus às minhas
costas.
Tina resmunga algo e os sons de mais espadas se chocando aumenta.
Ignoro-os e lanço um olhar da porta em que a Heloise desapareceu e então para o
Rei e o Dominic lutando de uma forma nada justa, já que o príncipe guerrilha
pior do que um garoto aprendendo a sustentar uma espada de madeira. Chego até
mesmo a pensar que ele está fazendo isso de propósito, porque não é possível
que alguém na posição dele lute dessa forma deplorável.
Um soldado avança sobre mim e antes que eu tenha a chance de fazer algo
a respeito, uma espada se impõe entre nós dois. Ergo as vistas e encaro o
Máximus, a mão que sustenta o metal frio.
— Eu e a Guerreira dos infernos damos conta de todos eles. Você é o único
aqui que pode salvar o príncipe sem nos condenar a uma maldita guerra.
Maldição! Ele tem razão.
Se o Dominic morre, o Reino do Norte declarará guerra contra Yerus. No
entanto, se o Rei morre pelas mãos do príncipe, será o meu reino que irá me
pressionar para declarar guerra contra o Reino do Norte.
Mudo meu trajeto para livrar o Dominic e o Rei da morte — assim evito
uma guerra — na certeza de que sou capaz de em seguida correr para ultrapassar
a Heloise e ir atrás da Isabelle eu mesmo. Corro na direção dos dois homens da
realeza, no entanto, chego tarde demais.
Os dois estão próximos um do outro a ponto de ser confundido com um
abraço. No entanto, sei do que se trata. Um deles enfiou a espada no outro.
De onde estou, não sou capaz de ver quem está a um fio de distância do
além e quem ainda está firmemente no mundo dos vivos. Se o Rei, ou se o
príncipe.
Meu coração martela diante a possibilidade de enfrentar uma guerra vinda
do Reino do Norte. Virar rei também não é algo que me agrade, no entanto, é a
nossa única chance de evitar uma guerra. Eu só preciso que o maldito do
Dominic tenha sido homem o suficiente para fazer o que precisava ser feito.
Não nutro esperanças, uma vez que é o olhar dele que se assemelha ao de
uma corça abatida ao erguer as vistas para mim.

A escuridão me abraça por todos os lados e paraliso, em pânico. Tenho


receios de seguir adiante, de ficar aqui parada ou de voltar para o interior do
templo. Qualquer escolha me parece terrível!
Ouço o som assustador de gritos de guerra e tomo uma decisão ruim. Dou
um passo que me faz rolar escada abaixo.
Meus joelhos e palmas das mãos ardem do que imagino serem ralados que
acabo de adquirir. Fico em pé mais por nojo de ficar deitada em uma água, que
não consigo ver a cor, do que qualquer outra coisa. A vontade de voltar
intensifica e a única coisa que me impede são os sons de metal contra metal
aumentando de volume atrás de mim.
Quero tanto voltar para lá quanto quero seguir em frente e fracassar com a
Isabelle e ser punida por isso. Afinal de contas, recebi uma ordem de um
príncipe.
Acontece que não tenho condição alguma de impedir a Helena e sei que a
minha irmã está há anos calculando matar a Isabelle. Ela não será chamada à voz
da razão com palavras. Se não funcionou antes, por que funcionaria justo agora?
Ou seja, se eu voltar, corro o risco de morrer. Só que seguir adiante
também soa como uma condenação!
Pelos deuses! Por que o príncipe tinha que ordenar justo a mim? Eu sou
uma dama, não uma soldada!
Ouço um estrondo vindo lá da frente seguido de uma luz intensa que me
cega por alguns instantes. Com isso, algo no meu coração me diz que a decisão
acaba de ser tomada por mim. Eu tenho que ir até lá, é a única coisa que sei
dessa situação terrível em que me encontro. Afinal, a Isabelle me salvou duas
vezes. Uma ao não me condenar, quando atentei contra a vida dela, e outra ao me
resgatar daquele antro de perversidade da Ilha do Comércio.
A luminosidade desvanece aos poucos, mas o tempo é suficiente para que
eu seja capaz de enxergar, por breves segundos, o caminho que preciso percorrer.
Noto que não há mais escadas no meu caminho, então seguro as saias do
meu vestido e corro. Paro abruptamente diante da entrada de um local com uma
arquitetura estranha, um centro circular ilhado e então a Isa caída com a Helena
sobre ela.
Minha irmã ergue as mãos por cima da cabeça, apertando com força um
punhal.
— Enfim chegou a sua hora, vadia. — Helena desce a arma em direção ao
coração da Isabelle e não penso no que estou fazendo, apenas entro em ação.
Corro e me jogo sobre a Isabelle como se fosse um manto protetor. O ar
escapa dos meus lábios e a última coisa que sinto é a apunhalada que recebo nas
costas.
Um tipo diferente de luz me cega e então me carrega para longe da dor
excruciante, que se alastra por cada célula do meu corpo.
Sem saber de onde a Heloise surge, não tenho tempo de sequer mover um
dedo quando a garota se joga sobre mim com tudo. O que mais me assusta não é
ela ter aparecido do nada, nem ter sido soterrada pelo peso de pena do seu corpo,
mas sim o último suspiro que deixa seus lábios e que sopram um calor quente
sobre o meu rosto frio.
— Heloise! — Helena grita em desespero.
Seguro o rosto da garota de olhos azuis vítreos para mantê-la no lugar.
Não tenho nem chances de começar a entender o que está acontecendo,
porque logo dedos finos agarram os ombros da garota e ela é retirada com
brusquidão de cima de mim.
Atônita, me sento no chão molhado. Helena embala o pequeno corpo da
irmã enquanto lágrimas intensas mancham o seu rosto. Pisco várias vezes
notando a quantidade absurda de sangue que se mistura na poça de água no chão,
escoando na fenda ao redor de onde uma vez existiu um túmulo de mármore
preto.
— O que foi que você fez, Heloise? Responda! — Helena aperta a irmã
ainda mais contra o peito e tudo o que sou capaz de sentir é pena.
Nem uma gota de satisfação, menos ainda a sensação enganosa de prazer
por ser vingada. Não. Sinto pena da Helena, porque já estive em sua posição e
conheço, na minha própria pele, o que é querer trocar de lugar com um irmão
que morre em seus braços.
Mas a situação dela é mil vezes pior do que a minha, porque eu ainda tinha
o conforto de despejar a minha raiva sobre outra pessoa. No caso, a assassina do
meu irmão, ela. Quanto a Helena, ela assassinou a própria irmã.
Sei que eu não conseguiria conviver comigo mesma se nossas posições se
invertessem. Pelo visto, nem ela, porque convulsiona sobre o corpo da Heloise, o
que só piora o ferimento da garota.
Uma única vez cometi o erro de associar a Heloise à Helena e a odiar por
isso. Mas foi apenas no meu luto e, quando passou, foi fácil desassociar uma da
outra.
Depois de salvar a Heloise, quando ordenei que ela fosse jogada para fora
do navio, me enxerguei nela e me afeiçoei secretamente àquela garota. A
situação não era favorável para nós duas, mas creio que, no nosso íntimo, existia
um respeito mútuo, ou ela não teria se jogado na frente de uma arma para salvar
a minha vida.
Impelida pelo pesar de perder a corajosa garota, me aproximo de onde as
duas estão. Toco o ombro frio da Heloise na tentativa de livrar o aperto da
Helena.
— Ela se foi, Helena — sussurro.
— Você não sabe do que está falando, Isabelle! — Em um instinto protetor,
Helena agarra ainda mais o corpo sem vida da Heloise contra o seu.
Duas forças opostas guerreiam no meu íntimo. Metade de mim sabe que é
perigoso continuar sozinha aqui com a Guerreira, que já tentou me matar uma
porção de vezes, matou o meu irmão e agora matou a própria irmã. Mas
justamente por causa deste último, a outra parte de mim sabe que Helena está no
olho do furacão chamado tormento.
O rosto pálido da Heloise me faz tomar uma decisão. Por ela, permaneço.
— Você está piorando o ferimento.
— O-o quê? — Desorientada, Helena afasta o corpo da Heloise de leve e,
ao ver a própria adaga fincada nas costas da irmã, o desespero dela atinge o
ápice.
Helena perde completamente a noção da realidade e fica completamente
sem rumo.
— Eu cuido dela para você — digo de mansinho ao segurar com cuidado o
braço mole da Heloise.
Os olhos azuis piscina da Helena fixam-se aos meus.
— Você pode salvá-la? — Sua voz rouca é quase indetectável, mas não
preciso de muito para entender. Uma vez eu já me enchi de falsas esperanças e
sei que, deixá-las ir, soa como um fim terrível demais para ser aceito.
— Eu sinto muito — digo baixinho, porque sinto mesmo. Meu peito está
prensado como se um elefante estivesse sentado em cima do meu coração.
Helena baixa os olhos para o colo em que aos poucos fica vazio à medida
que retiro Heloise com cuidado do seu agarre desesperado. Quando os fios loiros
caem sobre meus braços, uma lágrima me escapa, mas nada se compara ao
pranteio da Guerreira.
Se existe algum ser que um dia já achei digno de pena, esse ser é ela.
Nunca vi ninguém se sentir tão miserável quanto Helena parece estar se sentindo
e tenho medo de que ela tenha um surto de furor e atente contra a minha vida ou
contra a própria vida.
Relanceio um olhar para a Espada Viva caída há poucos passos de nós e
para a adaga ainda fincada na Heloise. São as únicas armas disponíveis por perto.
Eu não tenho mais forças para lutar. O encontro com a magia obscura me
exauriu e a quantidade de sangue que perdi só piorou ainda mais o meu estado.
Inclusive, a minha mão continua sangrando. Então, é com muito custo que
seguro o corpo sem vida da Heloise ao meu lado.
Observo o túnel sabendo que tenho apenas duas opções. Gastar o resto da
minha energia para tirar a nós duas daqui — afinal, Heloise merece o meu
esforço depois do que fez por mim; ou deixar o corpo dela para trás e gastar o
meu último resquício de força para correr a fim de eliminar qualquer chance da
Helena perceber que está sozinha comigo sendo que sou um alvo absurdamente
fácil.

Um som estrondoso de um raio caindo em algum ponto do templo retumba


contra as paredes. Não me distraio com o barulho, então assisto de perto a
situação mais sobrenatural que já presenciei. O Rei vira pó bem diante dos meus
olhos.
As espadas se chocando umas contra as outras param imediatamente.
Rostos atordoados desviam a atenção ora para o Dominic, parado em pé
segurando o cabo de um punhal, cuja ponta está virada para si mesmo, como se
tentasse impedir que o metal atravessasse as suas vísceras, ora para mim.
O príncipe do Norte fixa os olhos de corça nos meus.
— Eu não fiz nada. Eu só... — ele gagueja e volta a olhar para o monte de
pó aos seus pés. — Evitei ser morto, creio eu — ele sussurra.
Um a um, os soldados do Rei, que lutavam contra todos nós, jogam as
espadas no chão e dobram um joelho na minha direção, abaixando o rosto. Meu
olhar cruza com o da Guerreira Tina, que assiste a tudo com verdadeiro
assombro, assim como eu.
Máximus é o primeiro a tomar uma atitude diante a situação anormal.
— Eu assumo a liderança de remover os corpos e... — ele franze o cenho
para o montinho de areia em frente ao Dominic — seja lá o que sobrou do Rei.
Devo prender o príncipe do Norte?
— Não. Ele não fez nada. Sequer levantou a espada para o Rei. — Não
digo como se fosse apenas uma absolvição. É também uma repreensão pelo
maldito ter ficado parado. — Eu testemunhei a situação inteira. — Reforço e só
então Dominic parece voltar a respirar.
Dou as costas para todos e sigo na direção da porta em que vi a Heloise
desaparecer. A Guerreira Tina corre para me ultrapassar e faço menção de
repreendê-la.
— Devo ir na frente para me certificar de que também não há nenhum
perigo para vocês dois. Vocês são da realeza — ela rapidamente se adianta e
aponta para mim e para o Dominic seguindo ao meu encalço.
Estou pronto para ignorá-la, porque pouco me importo com esses malditos
protocolos da monarquia. Preciso encontrar a Isabelle e nada nem ninguém irá
me impedir. No entanto, a Guerreira toma a dianteira e é a primeira a enfrentar o
breu que se esconde do outro lado. Ela também é a única que cai, porque, ao
ouvir o grito dela, paraliso no primeiro degrau.
— Maldição dos infernos! — Tina pragueja. — Tem uma escada aqui
nessa merda.
— Quantos degraus? — Dominic levanta a voz para perguntá-la.
— Não tive tempo de contar enquanto rolava escada abaixo, príncipe —
ela rosna.
— Perdão, soldada.
Abstraio dos dois, uma vez que o meu foco continua em encontrar a
Isabelle. Porém, alertado pela Guerreira quanto as escadas, consigo evitar cair,
mesmo que o meu ritmo seja acelerado.
Ultrapasso a Tina caída sem nem pensar em ajudá-la a se reerguer.
Dominic não. Ele para e a ampara. No entanto, não é ele quem ainda tem tudo a
perder. Sou eu.
Sequer tomo nota do corredor escuro que atravesso em passadas largas. Só
volto a assimilar as coisas ao meu redor ao pousar os olhos sobre a Isabelle.
Finalmente meus pulmões voltam a se encher de ar e respiro normalmente.
O suspiro de alívio que solto ao ver o Áquila vai ficar para sempre
marcado na minha memória. Tina e Dominic surgem atrás dele tão desgrenhados
e maltrapilhos quanto o Guerreiro.
— Belle — ele suspira ao acelerar o passo na minha direção.
— A Heloise, Áquila — digo com a voz embargada e os olhos rasos
d’água.
Só então ele nota o corpo sem vida que custo a segurar e para
abruptamente no lugar. Áquila desvia a atenção para a Helena fora de si de tanto
chorar, a água vermelha, por conta da quantidade absurda de sangue que foi
derramado, e a Espada Viva ensanguentada caída a poucos passos de nós.
— Ela te feriu? — O Guerreiro trinca o maxilar.
— Eu a seguro para você. — Dominic pega o corpo da Heloise e, aliviada,
deixo que ele a tome de mim.
— Isabelle, ela te feriu? — Tina reforça a pergunta do Áquila, também
com o maxilar trincado.
— Ela matou a Heloise — digo mansamente e os dois me encaram com os
olhos apertados.
— Mas esse sangue todo não é só dela, princesa. — Dominic aponta para a
minha mão ainda sangrando.
— Infernos! — Áquila finalmente sai do seu estado de inquisidor para
retirar a camisa e envolvê-la ao redor da minha mão a fim de estancar o sangue.
Aproveito a aproximação dele para repousar contra o seu corpo maciço e
usar da sua força para continuar em pé.
— Pelos deuses, Isabelle. Não sei se quero te abraçar até que seu corpo se
funda ao meu ou se quero gritar com você por ter mantido esse segredo absurdo
de mim. — Áquila aperta os braços ao meu redor em um abraço quase doloroso
de tão intenso.
— O primeiro, por favor — sussurro contra o seu peitoral. — Estou
exausta para qualquer outra coisa.
Ele passa um braço por debaixo das minhas pernas e me ergue com
facilidade do chão.
— Acho que consigo andar devagar. Você está visivelmente cansado de
alguma luta.
— Não se preocupe. Não sou tão incompetente assim. — Incompetente?
Quero perguntar o que ele quer dizer com isso, mas ele se vira para a Tina com o
semblante gélido e me calo. — A elimine, soldada.
— Não! — grito ao entender a ordem dele para a Tina. — Chega de morte!
Não suporto mais alimentar esses sentimentos ruins que tanto nutri ao longo dos
últimos anos pela Helena por ter tirado a vida do Felipe. Todo esse mal precisa
acabar e acaba agora.
Não há como mudar o passado. Felipe se foi e vou carregar, para sempre, a
dor de perdê-lo para a morte. Assim como carregarei o sacrifício da Heloise para
me salvar. Além do mais, a Hortense está liberta. O que me resta é a esperança
de que os Drakars sejam assustadores, mas não sejam ruins.
Acredito que as chances estão a meu favor. Afinal de contas, Laghertia
tentou mesmo proteger a Hortense para que ela não fosse aprisionada nessa
maldição e, ao não conseguir, salvou a vida do filho dela e do Telok I. Além do
mais, a princesa dos Drakars nunca atentou contra a minha vida e, até onde sei,
nem contra a vida da minha mãe de sangue.
Não há como eu ter certeza quanto a nada. Só o tempo dirá se fiz certo ao
escolher salvar a alma da Hortense e, em consequência, acabar com a proteção
que esse mundo contava contra os Drakars. Por ora, me convenço de que cortar o
mal pela raiz foi o certo a se fazer. Afinal de contas, acabo de ver, com meus
próprios olhos, que aplacar a sede de vingança só gera mais atrocidades.
Helena matou Heloise tentando me matar. O ódio dela foi completamente
descarregado na própria irmã. Não há destino mais cruel do que conviver com o
peso dessa culpa.
Tina lança um olhar da Helena, ainda dobrada no chão, se acabando de
chorar, para mim e então para o Áquila.
— Perdão, mas estou sob o comando dela — Tina diz ao Áquila como se
não aprovasse a minha ordem e lamentasse não poder ir contra a minha vontade,
uma vez que claramente é a favor da decisão dele.
— Por favor, se vocês se importam mesmo com o meu estado emocional e
não querem me ver mais abalada depois de tudo o que já me aconteceu desde em
que apareci no mundo de vocês, não façam nenhum mal contra a Helena. —
Áquila e Tina me encaram, impassíveis. — Por favor.
— Vamos sair daqui. — Dominic aponta para o corredor e então indica o
corpo da Heloise em seus braços. — Ela parece leve, porém está pesada.
Tina sai em busca da Espada Viva e então vai na direção da Helena. Com o
coração na mão, a assisto segurar o braço da loira e a reerguer do chão. A
Guerreira sustenta o peso dela sobre o próprio ombro e a ajuda a andar.
Áquila me assiste de perto, então não perde o suspiro de alívio que solto
diante a atitude da Tina.
— Áquila...
— Depois, Isabelle.
Isabelle. Ele está absurdamente bravo comigo, então fico calada e apenas
recosto no seu peitoral enquanto o Guerreiro me tira da sinistra cripta. Ao
emergimos de volta para a superfície do templo, Máximus nos intercepta, o que
por sua vez me surpreende.
— Aqui estão os restos mortais — ele pigarreia ao segurar uma urna —
quer dizer, pó do Rei.
Franzo o cenho ao perceber os rastros de luta no templo. Não tenho a
menor pista do que aconteceu durante o tempo em que passei na cripta. Estou
absurdamente confusa de ver o Máximus aqui junto a outros soldados. Desde que
cheguei em Pedralhos, eu só o vi uma única vez e foi no fatídico encontro que
Tina, Oclan e eu tivemos com ele, Helena e o Áquila. Depois daquilo, nunca
mais vi o Máximus. Nem mesmo sabia que ele continuava servindo no BOP.
— Vossa Majestade, o que devemos fazer com a urna? — Um outro
soldado pergunta para o Áquila.
— Vossa Majestade? — Franzo o cenho e os braços do Guerreiro ficam
rígidos ao meu redor.
— Inferno sangrento! Virei mesmo rei.
A última coisa que consigo assimilar, é o príncipe-guerreiro praguejar isso,
porque logo em seguida a escuridão volta a aparecer para me abraçar de novo.
Me esforço para ficar firme e impedi-la de se aproximar de mim.
Em vão.
Desmaio, mas dessa vez não vejo nada.
Acordo na cama de dossel do quarto em que fui alocada no palácio. Franzo
o cenho ao estranhar acordar aqui, uma vez que já faz alguns dias que estou
dormindo na torre do Áquila.

Tento me sentar, mas é pedir demais. Acho que até mesmo erguer o braço
demanda muito esforço do meu corpo.

Ouço um farfalhar e viro a cabeça na direção do som. Noto o par de olhos


âmbar mais incrível que existe me observando intensamente. Áquila está sentado
na poltrona ao meu lado com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos unidas
na altura da boca.

Fico morta de receios, apreensão... não sei bem o que sinto. A forma como
ele está me olhando está mexendo negativamente comigo. Mesmo assim, me
esforço para abrir um sorriso amigável.

— Ei. — Minha garganta arranha e pigarreio para afastar o desconforto.


Nisso, tenho um ataque de tosse.
Áquila se levanta para me servir água e me ajuda a me sentar na cama.
Com cautela, pego o copo de suas mãos e dou pequenas goladas, o observando
com apreensão o tempo todo.

— Eu dormi muito?

— Três dias seguidos. — Ele responde de forma sucinta e fria.

— Três dias?! — Arregalo os olhos.

— O curandeiro garantiu que não há nada errado com você. O seu corpo só
precisava de mais tempo para recuperar as forças.

— Ah — exalo. — E por que estou aqui?

— Por que não estaria?

— Você está com raiva de mim. — Aponto o óbvio.

— Não acho que seja raiva o que estou sentindo.

— Tudo bem. Estou preparada. Pode gritar comigo. — Seguro o copo


entre as mãos repousadas no meu colo e o encaro tentando transmitir uma
confiança que estou longe de sentir.

— Gritar com você. — Ele solta uma risada amarga. — Isabelle, passei do
ponto de acreditar que gritar com você adianta para alguma coisa.

Áquila volta a se sentar na poltrona e encara o vazio. Os segundos se


arrastam e ele não parece fazer questão alguma de preencher o silêncio. Isso,
mais do que qualquer outra coisa, me deixa nervosa.

— Não vai falar nada? — pergunto e ele me lança um olhar, que logo
desvia para a janela.
Coloco o copo na mesinha ao meu lado e solto um suspiro cansado. Prefiro
um milhão de vezes o Áquila brigar comigo do que me oferecer tratamento de
silêncio. Esse vazio entre nós dois me deixa inquieta.

— O que você me dava para tomar depois que a gente se deitava?

Obtenho sucesso com essa pergunta inesperada, porque ele franze o cenho
estranhando o assunto, mas pelo menos mantém o olhar em mim. Considero um
avanço no tratamento de gelo que estou recebendo.

— Relaxante muscular para aliviar qualquer desconforto que você viesse a


sentir. — Solto uma risada da minha suposição idiota. — O que pensou que
fosse?

— Contraceptivo. — Sorrio, iludida de que está tudo bem, o que não está,
porque o clima entre nós dois decai bem uns dez graus.

— Por que eu teria contraceptivo feminino no meu quarto, uma vez que
você e eu estávamos separados e definitivamente eu não esperava a sua visita na
minha torre tão cedo?

O sorriso some do meu rosto e imagino que a minha cor também, porque
sinto como se a minha pressão despencasse aos meus pés.

— E-eu... — pigarreio. — Não sei. Não pensei muito afundo...

— Compreendo. — Áquila se levanta da poltrona.

— Áquila, eu não pensei no que aquilo implicaria. Eu só...

— Só o quê? — Engulo em seco enquanto o olhar dele me lança facas. —


Pensou que eu não falava sério ao dizer que te amava e que te queria de volta e,
ao invés, me satisfazia com outras mulheres porque qualquer uma serve?
— Eu não pensei em nada disso! Você está colocando palavras na minha
boca e isso é injusto. — Me defendo.

— Eu estou sendo injusto com você, Isabelle? — Áquila pergunta em uma


calma fria que arrepia os cabelos da minha nuca. Preferia um milhão de vezes
que ele gritasse comigo. — Por um acaso fui eu quem não acreditou na
sinceridade dos seus sentimentos por mim e, ao invés, supus que você se deitava
com outros homens? Que se deitava com o Dominic? E fiquei bem com isso?

— Nunca me deitei com ele e nem com qualquer outro homem que não
fosse você!

— Sei disso. — A réplica sincera e calma dele me deixa pior do que se ele
duvidasse da minha palavra, porque isso implica que o Áquila confia em mim
quando eu não confio nele, o que não é verdade.

— Eu confio em você. — O encaro fundo nos olhos e digo com toda a


sinceridade que existe no meu ser.

— Confia tanto que me manipulou e escondeu algo absurdo que afetava a


vida de todos nós, não apenas a sua, mas de todos nós, acreditando ser uma
maldita heroína solitária, cujo único propósito é se sacrificar para resolver uma
situação crítica?

— Se eu tivesse contado, vocês teriam me impedido e a alma da Hortense


estaria até hoje sendo atormentada sabe-se lá onde! — grito. — Você teria
herdado a magia obscura do seu pai e seria você a carregar o pagamento que ela
exige quando morresse. Os nossos filhos...

— Que filhos? — Ele me interrompe com veemência. — Você não teria


sobrevivido a tempo de carregar um filho meu.

Engulo em seco ao compreender que revelar que posso estar carregando


um filho dele neste exato segundo, me faria perdê-lo para sempre. Tenho medo
de que o Áquila não me perdoe nunca por ter tomado a decisão de acabar com a
maldição sabendo que eu poderia estar grávida dele.

— Sim, eu teria te impedido de ir atrás de libertar a alma da Hortense


sozinha. — A voz dele me desperta dos meus pensamentos. — No entanto, o fato
de você ter um ponto válido não te torna certa e definitivamente não te absolve
dos seus erros. Essa é uma questão muito grave que envolve o meu reino inteiro
e certamente eu tomaria um tempo para ver como resolvê-la.

— O que você quer que eu diga, Áquila? — A minha pergunta é petulante,


porque ele está me fazendo me sentir uma completa incompetente. Como se tudo
o que eu fizesse fosse errado. Absolutamente tudo!

O olhar que ele me desfere aniquila qualquer fagulha de ousadia que surgiu
no meu peito. Na verdade, sou tomada por um desespero maluco. Até mesmo as
pontas dos meus dedos ficam geladas.

— Quero que me diga que da última vez que nos deitamos, você não se
despediu de mim me deixando acreditar que era outra coisa. Quero que me dê
cada maldito motivo que te levou a aceitar se casar comigo. Quero que me
convença que eu não me enganei em relação a você durante todo esse tempo.
Quero uma reafirmação de que essa Isabelle, que estou olhando agora, ainda
carrega o mínimo que seja da Isabelle que conheci em Fayrehal e por quem me
apaixonei. Quero estar enxergando tudo errado, porque, Isabelle, estou dominado
pelo sentimento de que não te conheço mais, que não tenho a mínima ideia de
quem é essa mulher à minha frente.

Uma sequência de lágrimas silenciosas cai dos meus olhos. Não consigo
evitá-las tanto quanto não consigo erguer a mão para limpá-las.

Eu vou perdê-lo. Puta merda! Depois de tudo o que enfrentamos, vou


perder o Áquila justo agora que finalmente estamos juntos. E será por conta das
minhas decisões, como ele acusou, solitárias.
Tremo inteira e sei que vou gaguejar feito uma criancinha aprendendo a
falar, então fico em silêncio, ganhando tempo para me explicar de uma forma
que eu não o perca no processo.

Ele ergue o rosto para o teto e respira fundo. Meu coração bate tão forte
que me desconcentro inteira e perco o fio da meada da minha explicação. Minha
mente simplesmente vira... nada.

— Receba as minhas honras pelo seu grande feito. — Ele me dá as costas e


caminha na direção da porta.

Cada pedacinho miserável do meu corpo fica gélido e o efeito no meu


estômago é como se eu estivesse em uma queda livre sem fim.

Isso não pode estar acontecendo. Eu não posso perder o Áquila. Ele não.
Por Deus!

— Áquila! Espera! — Com muito esforço, consigo sair da cama e ir até


ele. Não sei de onde arranco forças, talvez do meu desespero, mas consigo
interditar o caminho dele e segurar com força as suas mãos entre as minhas. —
Por favor, me escuta — digo com a voz embargada e noto como estou tremendo
e gelada. Ele não revida o aperto e isso me mata por dentro. Novas lágrimas
escorrem teimosamente pelo meu rosto e o Áquila simplesmente me encara, nada
comovido. — E-eu... — minha garganta fecha e fica difícil falar.

— O Rei morreu e vou assumir o trono pelo tempo que levar até que a sua
linhagem seja reconhecida e aceita por todo o reino. Você será coroada como a
última descendente dos Tupper...

— Por favor. — Engasgo e choro copiosamente. Áquila retira as mãos do


meu aperto.

— Uma vez coroada, quero que me diga se prefere que Yerus te dê alguma
terra para você e sua família, ou se prefere que eu renuncie ao trono para que
você o assuma e então eu me recolho para a minha propriedade.

— Você está me largando? — Solto um soluço e me abraço, sentindo um


frio e um vazio profundo.

— Não era o que você queria?

— Eu só queria salvar a Hortense! — berro a plenos pulmões.

— E se despediu de mim por quê, Isabelle? Hmm? — Até abro a boca para
me defender, mas ele me corta. — Provavelmente porque pretendia se sacrificar
logo em seguida para que não fosse a sua alma a tomar o lugar da alma da
Hortense?

— Entre morrer e a minha alma tomar o lugar da Hortense, eu preferia


mesmo morrer. — Assim que a última palavra sai dos meus lábios, percebo que
digo a coisa errada.

— Acho melhor você assumir o trono, uma vez que é a única de nós dois
capaz de tomar as decisões corretas. Sou um maldito incompetente que não
saberia o que fazer diante o cenário em que você sobreviveria. Imagine lidar com
um reino! Não vou nem entrar no mérito da questão de que uma vida ao meu
lado é completamente descartável e que você só aceitou se casar comigo porque
sabia que não viveria por muito tempo. — Balanço a cabeça para os lados,
tentando negar o que a minha voz não me ajuda a dizer. — Ao menos quando eu
pensava que, se fosse preciso me sacrificar para que você ficasse segura no outro
mundo, nós dois não tínhamos nenhum vínculo, menos ainda intenção de
estabelecermos um. Inclusive, esse foi o maior motivo para que eu resistisse me
aproximar de você. Eu não queria te fazer sofrer ao criar um vínculo forte
comigo, portanto, você não era minha noiva e eu não te ouvia planejar o futuro
ao meu lado sabendo que eu não estava disposto a viver para tanto.
— Mas eu te rejeitei várias vezes quando voltei para Pedralhos justamente
por esse motivo!

— E aceitou se casar comigo por quê?! — A pergunta dele me quebra ao


meio. Fico completamente desarmada.

Não sou capaz de ver o Áquila me deixar, então fecho os olhos para não o
assistir sair do meu quarto... da minha vida, ao não conseguir responder uma
simples pergunta.

Ouço a porta se fechar ao meu lado e me sento no chão. Enterro a cabeça


entre os meus braços e extravaso em lágrimas toda a dor que sangra e dilacera o
meu coração.
— Isa? — Tina toca o meu braço de leve para chamar a minha atenção e
enterro a cabeça no meu colo ainda mais.
— Me deixe sozinha.
Ela suspira fundo antes de se sentar ao meu lado. Mesmo sabendo que meu
rosto está uma lambança de lágrimas e meleca, não o limpo e a encaro com raiva.
— Todos vocês me odeiam, então vou tornar as coisas mais fáceis para que
saiam da minha vida sem dor na consciência. Vai embora, Tina!
Ela passa um braço ao redor dos meus ombros e me puxa para que eu me
deite no seu colo. Cansada de lutar, simplesmente me apoio nela enquanto meus
ombros chacoalham intensamente com o choro que não consigo evitar.
— Ele me largou.
— Ele está machucado.
— Eu não fiz por mal! — Esfrego as palmas das mãos nas bochechas e me
limpo com raiva para encará-la. — Muito pelo contrário. Eu estava pensando no
bem de todo mundo...
— Isa, não vou conseguir te confortar se a gente conversar sobre essa
maldita lenda. Eu não senti o mesmo baque que o Áquila sentiu, mas isso não
significa que não compartilho de algumas das dores dele.
— Vai embora. — Me afasto dela e Tina me encara com os olhos
arregalados. — É uma ordem!
— Caramba, Isabelle! Você está tornando fácil a gente se afastar de você.
— Então vai. A porta é logo ali.
Tina me lança um olhar absurdamente furioso.
— Sabe, se você ao menos se colocasse no nosso lugar, entenderia que o
nosso ressentimento pelo que você fez é completamente justificável.
— Como se vocês quisessem me ouvir pedir desculpas para aplacar esse
ressentimento que sentem de mim.
— Não estou te vendo pedir perdão.
— Porque não estou vendo acolhimento quando confessar os meus erros!
Só estou recebendo punição vindo de todos vocês. Então me perdoe, Tina, se
prefiro me resguardar de ser pisoteada por um erro que cometi e que me
arrependi no segundo seguinte. Me deixe em paz. Não vou falar de novo.
Tina e eu nos encaramos por uns bons segundos. Ela respira fundo, o
tempo todo sem desviar o olhar do meu.
— Você é a pessoa mais egoísta que conheço. Não sei por que ainda me
dou o trabalho. — A Guerreira me dá as costas e bate a porta sem deixar brecha
para que eu diga qualquer coisa em resposta.
Vou para a sacada e me sento em uma das poltronas. Encaro os jardins do
palácio sem de fato nada ver. Lágrimas silenciosas escorrem das pontas dos meus
olhos e nublam a minha visão.
Três toques baixinhos na porta do meu quarto me faz apertar ainda mais as
pálpebras, fazendo com que as lágrimas caiam com força. Agora é o Dominic
que veio extravasar a raiva que sentem de mim pelo o que os fiz passar.
Não respondo de propósito. Ele não respeita as etiquetas e entra sem
permissão também de propósito.
Ele ocupa a poltrona ao meu lado e segura meu maxilar com delicadeza até
me fazer ficar com o rosto de frente para o dele. Nossos olhares se encontram e
espero que o Dominic me repreenda, diga que sou imbecil, que está magoado
comigo, que tenho síndrome de heroína... o diabo a quatro. Mas ele me
surpreende ao segurar os meus pulsos e me puxar para um abraço apertado.
Não caio nessa duas vezes. Tina também tentou me confortar se segurando
para não brigar comigo. Então fico paralisada enquanto Dominic me aperta
contra o seu peito mais, mais e mais.
— Tire as armaduras, princesa. Não vim até aqui para te repreender. Você
não é mais criança, embora devo confessar que está parecendo um bebê chorão
horripilante. — Solto uma risada engasgada, mesmo que não tenha uma gota de
felicidade em mim. — Aí está a Isa que conheço.
— Você não está com raiva de mim? — Murmuro contra o peito dele.
— Eu vou te afastar se demonstrar ressentimento de você?
— Provavelmente.
— Então não. Passou. Te dou a minha palavra. — Respiro fundo e me
afasto dos braços dele. Dominic retira um lenço do casaco, bordado com o
brasão do reino dele, e limpo o meu rosto.
— Obrigada. — Ele abre um sorriso reconfortador que espelho com
dificuldade. Seguro o lenço do Dominic entre as minhas mãos. — Você está
bem?
— Ainda não me recuperei do baita susto que começou quando fui retirado
às pressas de uma reunião pelo Áquila e a Guerreira Tina. — Ele faz uma careta
dramática. — Sabia que também levei um sermão terrível da sua soldada,
enumerando as suas tomadas de decisões espirituosas passadas, o que por sua
vez corroborava para que ela estivesse certa e eu errado ao tomar a decisão de
manter silêncio a respeito da lenda? Pois é, princesa. Devo confessar que me
senti um palerma e passei a te enxergar por outro viés. Também perdi um pouco
a confiança nas suas tomadas de decisões — ele diz de forma bem-humorada.
— Só um pouco?
— Completamente. Porém, não acredito que estou em posição de te julgar.
É apenas o seu jeito de ser. — Dominic cruza os braços na altura do peito e as
pernas na dos tornozelos ao relaxar na poltrona ao meu lado.
— Que você não aprova.
— Correndo o risco de soar repetitivo, vou reforçar que você não é criança
para que eu aprove ou desaprove a sua conduta. Apenas não confio mais
inteiramente em algumas questões que te envolvem. Espero que não se ressinta
de mim se no futuro eu não mantiver um segredo como aquele. — Dominic abre
um sorriso fácil.
— Manter segredo de quem? — pergunto com a voz embargada e desvio
rápido os olhos dos dele. Não sou capaz de reter a lágrima que me escapa e a
limpo com raiva com o lenço que ele me emprestou.
Dominic muda a postura na poltrona e sai do seu estado relaxado para ficar
virado de frente para mim.
— Isa, se não fosse pela Heloise do começo ao fim, você teria morrido —
ele diz de mansinho como se estivesse lidando com um filhotinho de animal
ferido. Assinto, porque pelo menos ele está aqui se esforçando para me
reconfortar, mas não consigo mais encará-lo. — Se ela não tivesse corrido para
contar ao Áquila que viu a Helena te seguir, nós não teríamos chegado a tempo
no templo. Se ela não tivesse nos seguido, seria impossível que qualquer um de
nós, Áquila, Tina ou eu, entrássemos naquela passagem secreta. Nós éramos
como bandeiras hasteadas, o que por sua vez fez com que todos os soldados só
enxergassem a nós. Porém, a Heloise era invisível e conseguiu chegar até você.
Ela fez bem mais que isso. Ela se jogou entre você e uma lâmina.
— Estou me sentindo tão culpada pela morte dela — digo com a voz
completamente embargada e lágrimas gordas e quentes mancham o meu rosto de
novo.
— Shh... — Dominic me puxa para os seus braços e me embala. — Não
deve ter sido fácil ver um sacrifício tão de perto assim. Eu me lembro de como
você ficou na execução em Lufstar.
— Pela segunda vez, uma pessoa morreu nos meus braços e eu não pude
fazer nada! Então não tem comparação a execução do Koli com o que foi sentir o
último suspiro da Heloise contra o meu rosto. Eu não aguento mais perder
alguém assim!
— Imagino que foi mesmo difícil, querida. — Dominic desliza a mão pelo
meu cabelo, me confortando. — Também não está fácil aceitarmos que falhamos
não só com você, mas com os nossos reinos, com o nosso mundo inteiro. —
Sento-me de forma ereta na minha poltrona e ergo uma sobrancelha. — Hortense
até podia ser a sua antepassada, mas só porque você é a única que pode manejar
o Orientador, isso de forma alguma te conferia responsabilidade total. A
responsabilidade também era nossa. Principalmente minha, que sabia da magia
obscura por detrás da lenda e ignorei essa questão.
— Eu te absolvo da sua culpa.
— E eu da sua. — Dominic abre um sorriso complacente. Desvio o olhar e
encaro o vazio.
— Não sei o que fazer agora — exalo com dificuldades, retendo as
emoções que lutam para serem extravasadas. Só de imaginar ter que aprender a
viver sem o Áquila, dói tanto que nem gosto de cogitar esse cenário.
Dominic respira fundo e volta a cruzar os braços na altura do peito, mas
nada relaxado como anteriormente.
— Acredite, Isabelle, a minha parte egoísta gostaria de tirar proveito dessa
situação mal resolvida entre você e o Áquila.
— O que está querendo me dizer com isso? — Franzo o cenho e ele solta
um suspiro longo.
— Estou dizendo que eu gostaria de te persuadir para que viesse comigo
para o Norte. — Paraliso cada músculo do meu corpo sem saber como reagir sem
ofendê-lo. Dominic abre um sorriso apenas com os lábios. — A sua mera reação
me obriga a tomar a atitude contrária. E correta, creio eu — ele murmura para si
mesmo.
— Que atitude?
— Defendê-lo.
— Não faça isso, por favor. — Rejeito com veemência, mas ele me ignora
completamente.
— Não creio que o problema dele com você seja meramente uma questão
de culpa, como a que eu senti por ter ficado inerte em relação à lenda. Se nós
dois ainda estivéssemos noivos, e não fosse só por questões políticas e sim real,
provavelmente eu não estaria aqui agora. Se eu estivesse no lugar dele, também
me doeria perceber que não sou importante o suficiente quando, do contrário,
você me completaria por inteiro.
— Perdão, Dominic. Não sei se a sua analogia é impessoal e você me
pegou em um momento em que estou afundando nos meus sentimentos. O que
quero dizer é que não sei como reagir da forma correta. Provavelmente o
apropriado seria cortar essa conversa antes de nos chatearmos um com o outro.
— Nesse cenário que eu trouxe, estou apenas me colocando no lugar dele,
portanto, estou falando como o Áquila se sente no momento, Isabelle. Estou
sendo o mais isento possível que consigo ser.
— E pra que isso? Por que você quer que eu compreenda o lado dele?
— Porque, por um golpe do destino, não estou na posição dele. Se fosse
comigo, eu gostaria que alguém te fizesse enxergar sob o meu ponto de vista.
Para o meu imenso azar, só restou a mim para assumir essa tarefa e te fazer
enxergar sob o ponto de vista dele.
Respiro fundo e volto a encarar os jardins. Não acho que seja uma boa
ideia discutir a minha relação com o Áquila justamente com o Dominic. Mas ele
tem razão. Não me sobrou mais ninguém e ele parece disposto a insistir no
assunto até que eu me abra.
— Por um erro é injusto ele assumir que está em desvantagem... que a
contrapartida é defasada. Em outras palavras, que ele me ama mais do que eu o
amo. — Desabafo e é como se um peso enorme fosse retirado dos meus ombros.
— Acho que não, Isa. — Abro a boca para me defender e o Dominic se
adianta. — Acredite, se tem alguém que sabe que se você não o amasse da
mesma forma e intensidade com que ele te ama, você não estaria com ele, esse
alguém sou eu. Você ainda seria a minha noiva. Nós dois nos casaríamos e você
finalmente poderia se sentir livre para me amar sem culpa. Mas existe o Áquila e
esse futuro se tornou impossível por causa dele. De qualquer forma, isso não está
em discussão no momento. O que quero te fazer compreender é que ele não está
enxergando esse amor que você nutre por ele. E não quero mais falar disso,
porque ultrapassei o que consigo suportar dessa situação.
— Queria poder me desculpar, mas não posso. Foi você quem insistiu
nesse assunto.
— Eu sei. — Ele resmunga feito uma criança birrenta.
— Te pedir perdão por amá-lo não seria justo com ninguém, Dominic.
— Eu sei, Isabelle. O que...
— Minha vez agora. — O corto e ele assente. — O que posso te dizer, com
toda a sinceridade que existe em mim, é que torço para que você encontre a
mulher mais sortuda que irá te amar com todo o coração dela. Você não merece
nada menos do que alguém que te ame de forma arrebatadora e por completo.
— Não preciso ser reconfortado, Isabelle. Estou bem com a situação entre
nós dois e te garanto que você nunca irá me ouvir ser leviano ao não enxergar
valor em te ter como amiga, alguém que me oferece a lealdade completa.
— O contrário também é verdadeiro.
— Assunto encerrado — Dominic diz de forma enfática.
Solto um suspiro bem mais calma depois dessa conversa e ele volta a se
sentar de forma relaxada na poltrona, não demonstrando qualquer intenção de se
levantar e me deixar sozinha.
— Como o Rei morreu? — Quebro o silêncio.
— Pelos deuses, Isa! Nem sei o que aconteceu. Ele desintegrou no ar.
— Desintegrou? Virou partículas? Desapareceu em uma fumaça tipo um
mágico? — Arregalo os olhos a cada pergunta em que ele assente.
— Sim, virou pó. — Dominic encara os jardins como se revivesse aquele
episódio que parece ter sido traumático. — O Rei só tinha olhos para mim e não
se cansava de investir para me matar, não importava o quanto eu tentasse fugir.
Em um dado momento, pensei que ele conseguiria o que pretendia. — Dominic
me lança um olhar angustiado. — Sou péssimo em guerrilha, princesa. —
Assinto, assustada. — Enfim, ele parou de repente e petrifiquei no lugar ao
assisti-lo virar pó. Fiquei com medo de ser acusado de tê-lo matado e soltei na
mesma hora a espada que eu empunhava com o único objetivo de me manter
vivo. Veja bem, Isa. Não importa o quanto eu tenha relações amigáveis com este
reino, não há como Yerus e o Reino do Norte viverem em paz se eu, um príncipe,
assassinar o rei na própria terra deles.
— Imagino o seu pavor. — Ele assente, grato. — Quanto ao Rei
desintegrar no ar, é porque a magia obscura exige um preço. Quando libertei a
alma da Hortense, o preço a se pagar foi a vitalidade dele.
— Compreendo. Bom, enfim. No mesmo segundo em que ele desintegrou,
todos os soldados, que lutavam para nos matar, simplesmente largaram as
espadas no chão e encararam o Áquila. Nós três ficamos atônitos com a parada
abrupta na luta, mas tínhamos preocupações maiores.
— Salvar a inconsequente. A que tem síndrome de heroína. A que toma as
decisões sozinha e não pensa no outro. — Reviro os olhos.
— É você quem está falando. — Dominic ergue as duas mãos no ar e dou
um tapa no braço dele. Ele ri. Eu também.
— Quantos morreram?
— Dos que vale contar, apenas a Heloise e, claro, a vítima, Hortense. —
Aperto os lábios e Dominic pigarreia. — Áquila e eu concordamos em Yerus e o
Reino do Norte construírem, em conjunto, um memorial em homenagem a
Heloise, Hortense e o Felipe.
— Felipe? — Engulo em seco para diminuir o desconforto do nó que se
formou de novo na minha garganta.
— Seu irmão foi um herói que lutou ao seu lado, a Viajante. De forma
indireta, ele contribuiu para a quebra da magia obscura. — Abro um sorriso.
Dessa vez, genuíno. — O memorial será construído em cima daquele terrível
local que abrigava a cripta. Vou pedir para que os arquitetos não meçam esforços
até transformarem aquele espaço em algo belo e digno dos três.
— Você e o Áquila estão trabalhando em conjunto nessa questão?
— Entre várias outras. Surpreendente, não? — Dominic me lança um olhar
divertido. — Bem, concordamos que é o mínimo que podemos fazer. Será uma
homenagem ao sacrifício de pessoas cujos feitos precisam ser eternizados. No
entanto, a história contada para o restante da população, para justificar esse
memorial, será outra. O segredo do que acontecia à Hortense morrerá comigo,
você, Áquila, Tina e Helena, para que não comece uma caçada à sua alma.
— Não quero que a Helena morra — digo com veemência. — Não desejo
puni-la. Ela está enfrentando um castigo terrível!
— Ela não está sã, Isa. Então não se preocupe. Helena manterá segredo
não porque a silenciaremos e sim porque lhe falta capacidade mental para ser
coerente.
— Coitada. — Exalo.
Dominic se abstém de comentar, mas sei que ele nutre sentimentos
semelhantes ao da Tina e do Áquila. Creio que sou a única a me compadecer do
sofrimento dela. Afinal de contas, também fui a única a perder um irmão nos
meus braços. Só que no caso dela foi infinitamente pior do que foi para mim.
— Você acha que os Drakars irão nos atacar? — Dominic me puxa dos
meus pensamentos.
— Acho que não, mas certeza eu não tenho. Talvez eles voltem. Talvez
eles tenham seguido com a vida deles em outro plano existencial e não desejem
voltar para cá. De qualquer forma, não há como ter certeza quanto a nada.
Apenas o tempo irá nos dizer.
— Também creio que se eles fossem nos atacar, já o teriam feito. Afinal, o
que eles mais tiveram foi tempo para planejar uma guerra e não há momento
mais propício do que se não este. Com o Rei morto, Yerus se dividiu. — Ergo
uma sobrancelha. — Alguns nobres, de grande influência, apoiam o Rakar, que
por sua vez foi exilado pelo Rei depois de ter sido largado pela minha irmã, mas
essa questão é sigilosa e apenas nós, a monarquia, sabemos o que aconteceu.
Então existem especulações feitas, por homens sórdidos, de que o Áquila e eu
nos unimos para eliminar o Rakar.
— O Áquila está lidando sozinho com tudo isso. — Não pergunto, afirmo.
Dominic dá de ombros.
— É isso que significa herdar um trono.
— Deus! Preciso me recuperar rápido e encontrar uma forma de oferecer
uma ajuda que ele não quer aceitar.
— Se concentre primeiro na sua recuperação. Você ficou dias desacordada.
Enquanto isso, o meu apoio é do Áquila e, embora eu tenha que voltar para o
Reino do Norte em breve, não vou embora até que ele seja coroado rei.
— Não tenho como te agradecer por isso, Dominic.
— Não tem que agradecer nada. É totalmente do meu interesse que o
Áquila seja rei e é necessário que tenhamos um relacionamento, no mínimo,
neutro. — Assinto e Dominic dá batidinhas na minha mão. — Por falar nisso,
tenho uma reunião com ele agora.
Dominic fica em pé e faz menção de ir embora, mas para e então apalpa o
casaco como se procurasse por algo.
— Ah, já ia me esquecendo. — Ele retira duas cartas de um dos bolsos. —
Chegou agora a pouco para você e vim aqui com a missão de te entregá-las, mas
a sua cara de bebê chorão me fez esquecê-las completamente. — Franzo o cenho
e ele sorri. — Um dos selos é da minha tia. — O príncipe prensa os dentes e faz
uma careta que revido.
Dominic deposita um beijo na minha testa e então me deixa sozinha para
ler as minhas correspondências.
Leio primeiro a carta do Ruan, com quem continuei mantendo contado
através de correspondências depois que saí de Lufstar. Ele apenas me assegura de
que os rebeldes, que foram conosco no navio para lá e que ficaram com o Ruan,
estão levando uma vida tranquila e agradável.
Com cautela, Ruan também manifesta o desejo deles de não voltar para
Yerus e continuar em Lufstar. Ele até mesmo menciona que a rainha Magnólia
ofereceu serviços e terras para eles e que estão todos felizes com o lar que
construíram.
Fico contente em saber que estão todos bem e obviamente irei responder
que desejo o melhor para eles. Se eles querem continuar em Lufstar, e a rainha
Magnólia está de acordo com isso, então que assim seja.
Pego a segunda carta e quebro o selo. Respiro fundo em preparação para
receber a bomba de que a Magnólia me declara uma inimiga e que, portanto, vou
precisar fugir para o outro mundo antes que o Kaká feche todos os portais ao
lado do grupo de eruditas que possui alguns mestiços entre eles. Com o auxílio
de pesquisas em livros antigos, cérebros de gênios e detentores de magia, eles
pretendem findar com todas as passagens e pode ser que já seja tarde demais
para uma fuga.
Minha distinta tutelada,
Foi com grande pesar que li acerca da ruptura do vosso noivado com o
meu precioso sobrinho. Sempre suspeitei, e os subsequentes fatos atestaram, que
Vossa Alteza não foi dotada de um bom julgamento pelo Celestial. No entanto,
quem sou eu para me atrever a buscar razão nos desígnios do coração? Longe
de mim, minha cara.
Repasse para o seu novo noivo as minhas palavras, onde deixo aqui
registrado que o meu presente para Yerus é a princesa para a qual me
subscrevo. Lufstar não presenteia o príncipe com joias ou tapeçarias. Nós o
agraciamos com uma futura rainha digna do reinado de sua futura majestade.
Não gostei do vosso tom na última carta, tutelada. Estou certa de que as
minhas aparências enganam e somente por isso vou tomar como um elogio à
minha pessoa as palavras que me escreveu. Porém, me encontro obrigada a
esclarecer os fatos.
Embora inimaginável, o meu corpo cobrou o preço dos longos anos com
uma terrível artrite. Por este motivo, alego de antemão que não poderei
comparecer ao vosso casamento ou coroação quando as datas dos mesmos
forem marcadas.
No entanto, Lufstar apoia a linhagem dos Tupper e, até o meu último
suspiro, minha cara Isabelle, o apoio desta rainha que vos escreve estará
contigo.
Saudações,
Magnólia II
Abro um sorriso e aperto a carta contra o peito. É recíproco. A Magnólia se
afeiçoou a mim tanto quanto me afeiçoei a ela.
Ao perceber que tenho pessoas que me amam e que se importam comigo,
sinto as minhas energias renovadas para ir conquistar o perdão de um certo
Guerreiro.
Um dos soldados pessoais do Áquila, que faz a proteção dele, me informa
que o Guerreiro já se retirou para os seus aposentos. Agradeço, mesmo não tendo
perguntado, e sigo em frente. Noto uma troca de olhar dele com as sentinelas
cobrindo a segurança da torre do Áquila, mas ninguém me impede de subir as
escadas.
Cogitei entrar pela sacada, a entrada que usei há muito tempo para invadir
a torre dele quando eu estava aliada aos rebeldes, justamente com medo dele ter
retirado o meu acesso. Não parece ser o caso, mas também não me parece que o
Áquila está esperando que eu vá aparecer.
Preferi arriscar entrar pela parte principal — doeria muito se eu fosse
barrada pelos soldados dele —, mas em vista do meu longo repouso na cama,
não quis abusar da sorte. Subir a torre dele exigiria muito esforço e não acho que
eu esteja em condições físicas para isso.
Abro a porta devagar e observo rapidamente as cortinas se movimentando
por conta da corrente de ar entrando pelas janelas. Elas não são mais verdes e
sim brancas por minha causa. Até uma hora atrás, isso me deixaria mal — ter
contato com uma prova do quanto machuquei o Áquila. Ele entrou de cabeça no
nosso noivado. Acontece que eu também entrei e é isso que quero deixar claro.
Não vou usar nenhum subterfúgio como, por exemplo, a possibilidade de
que eu esteja esperando um filho dele. Ou contar a ele sobre o futuro que vi na
cripta. Primeiro que parte de mim quer desesperadamente que aquilo tenha sido
verdade, mas a parte que trabalha com a razão não me permite tomar aquilo
como certeza. Só acredito vendo.
Além do mais, mesmo que eu tivesse provas concretas de que aquilo irá
mesmo acontecer, jamais as usaria para ter o Áquila de volta. Se ele não me
perdoar por mim, não por um senso de obrigação, dever, honra ou qualquer coisa
do tipo, nós terminamos aqui.
Aproximo-me lentamente da cama dele. O Áquila está deitado de costas
para onde estou. O lençol cobre até a sua cintura e ele está sem camisa, porque o
Áquila não dorme com muita coisa. Roupas são acessórios dispensáveis nessa
hora para ele.
Deito-me no lugar que costumava ser meu. A respiração dele para por
apenas um segundo, mas o suficiente para eu perceber que ele acordou e que
sabe que estou aqui.
Aproximo os lábios do seu ouvido.
— Se quer fingir que está dormindo para não ter que me encarar nos olhos,
te concedo isso, mas você vai ter que me ouvir até o fim.
Espero uma resposta, uma reação, qualquer coisa. Ele não se move do
lugar. Isso não me abala, porque não depende do Áquila. Depende de mim. Se
ele não puder me perdoar e voltar a me amar como era antes, o problema é dele.
Da minha parte, o que posso dizer é que o amo igual, se não mais do que antes.
— Só vou dizer isso uma vez, Áquila. Você não vai me ouvir pedir perdão
de novo. Eu reconheço que errei quando decidi que, para salvar a Hortense, eu
precisava manter segredo de você e me sacrificar em seguida. Eu reconheço
ainda mais que a forma como ficamos noivos não foi o que você merecia. Na
verdade, não só você, mas nenhum de nós dois merecia como foi feito aquele
arranjo. O nosso amor vale bem mais do que uniões políticas. Infinitamente
mais. Então te peço perdão por ter entrado no jogo do Rei e aceitado me casar
com você sabendo o que eu mantinha em segredo e quais eram as minhas
expectativas do futuro. O que você ainda não sabe é que bastou ficar noiva de
você para que eu desistisse de salvar a Hortense. — Ele abre os olhos, mas não
faz contato visual comigo. — A cada dia ao seu lado, menos eu me importava
com ela. Criei mil e uma desculpas para não ir atrás dela, porque tudo o que eu
queria, tudo o que eu conseguia pensar, era no que nós dois tínhamos e o que
poderíamos ter. Eu não queria abrir mão de você, ainda mais porque eu estava
vivendo o sonho que jamais pensei um dia viver. Então quando Laghertia e mais
dois Drakars apareceram para mim, no casamento do Rakar com a princesa do
Norte...
Ele se vira e me encara, o que por sua vez me silencia. Afasto uma mecha
do meu cabelo que cai sobre o rosto dele e os nossos olhares se encontram.
— Três Drakars apareceram para você no casamento?
— Sim. E não vou aceitar você brigar comigo por manter segredo disso
também quando estou contando agora. A sua função é ficar calado e me ouvir até
o final e então só você vai falar e eu ouvir. Beleza? — Ele assente. — Os
Drakars apontaram que eu já tinha as minhas irmãs em segurança, mas estava
fechando os olhos para a monstruosidade que acontecia com a Hortense de forma
deliberada. Eles apontaram que uma das razões era porque, compreensivelmente,
eu temia me sacrificar, mas era principalmente porque eu não queria te perder,
não queria perder um futuro ao seu lado. Então eles ofereceram proteger a mim e
aos nossos descendentes de qualquer homem que se atrevesse a fazer comigo ou
com os nossos filhos o que fizeram com a Hortense. Eles me garantiram que o
Telok I e o filho dele foram eles quem protegeram no outro mundo, mas que
seria possível fazer o mesmo comigo e com os nossos futuros filhos. Só que
aqui.
— E você acreditou neles?
— Eles me assustaram um pouco, porque eles são assustadores. — Deslizo
a ponta dos dedos sobre o braço dele. — Mas nessa questão de proteger a mim e
aos nossos futuros filhos, sim, acredito neles. Eles construíram o Orientador e a
Espada Viva para somente quem possui o sangue dos Tupper correndo em suas
veias pudesse tomar posse desses objetos. Para mim, essas são provas de que eles
protegeram mesmo o Telok I e o filho dele. Além disso, eles também me
contaram que a magia que aprisionava a alma da Hortense, cobrava um preço do
Salonsk que assentasse no trono. Você era o herdeiro do Rei, portanto, a
maldição precisava ser quebrada antes que você herdasse qualquer coisa do seu
pai. Foi por isso que voltei a procurar pela Hortense, uma vez que estava aliviada
por saber que se o plano A, B, C ou D desse errado, eu teria o E, ou seja, ir
cobrar os Drakars.
— Plano A, B, C, D? — Ele ergue uma sobrancelha.
— Áquila com Yerus. Tina e Oclan. Dominic com o Reino do Norte e
“Fodeu. Se vire, Isabelle”.
— Isabelle...
— O quê? Eu achei engraçado. — Ele franze o cenho e dou um tapinha no
ombro dele. — Foi brincadeira. Não tinha nada desses planos. — Solto um
suspiro e volto a ficar séria. — Certo ou errado, Áquila, eu tinha certeza de que
todos vocês me impediriam de salvá-la. Então concordo que pode ter soado
como uma falta de confiança da minha parte em você enquanto eu contava com a
proteção dos Drakars, seres de índole, no mínimo, duvidosa. Quanto ao que você
me acusou de ter sido uma despedida premeditada, foi apenas o medo de que
tudo desse errado falando mais alto e eu me munindo de uma lembrança forte o
suficiente de nós dois juntos que me fizesse lutar ainda mais para que tudo desse
certo.
Coloco uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e o encaro fundo nos
olhos.
— Eu te peço perdão, mas não vou fazer promessas, nem nada do tipo. As
chances de que eu as quebre é grande e não quero ter um relacionamento
baseado em algo frágil quanto promessas de uma pessoa cheia de defeitos, que
vive metendo os braços pelas pernas.
Ele coloca a mão livre sobre a minha quando paro de falar de forma
abrupta e o silêncio se infiltra entre nós.
— Agora é a minha vez?
— Não, porque eu menti. Não vou ouvir nada além da sua resposta para a
minha pergunta.
— Qual pergunta?
— Você consegue me perdoar para se casar comigo por amor ou você não
é capaz de aceitar os meus erros e vou ter que obrigar a Magnólia a me adotar?
— Você é capaz de cogitar morar com a Magnólia?
— Eu gosto dela. — Dou de ombros. — E só quero ouvir a sua resposta,
porque não vou me justificar mais, nem voltar nessa questão e, dependendo do
que você me disser, vou fazer o possível e o impossível para ficar fora do seu
caminho. — Engulo o nó na garganta e pisco repetidas vezes para aliviar a
ardência nos meus olhos.
Ele se vira e logo estou com o coração lutando contra o peito e o corpo de
aço revestido por seda dele projetado sobre o meu, me prensando contra o
colchão macio.
— Aceito o seu pedido de perdão, mas o de casamento, pela segunda vez,
não. — Meus ombros desmoronam e ele abre um sorriso imenso. — Típico de
você tomar frente em tudo. Até em pedido de casamento, no entanto, dessa vez
essa honra deve e será minha. — Áquila deposita um beijo na ponta do meu
nariz.
— Estou confusa. Estamos bem ou não? — Minha voz soa instável até
mesmo para mim.
— Você irá me ouvir agora. — Assinto de mansinho. — Eu não duvido da
sua competência de lidar com situações de alto risco, Belle. O que eu sinto no
meu espírito é que devo te proteger. Custe o que custar. Então não é uma questão
de competência, porque nós dois sabemos que você tem treinamento. Pelo seu
Deus! Eu te treinei! — Mesmo nervosa e com o coração lutando para sair pela
boca, não consigo evitar sorrir. — A questão é que a minha alma responde com
honra para com você de um modo que você é o meu tesouro, a minha
companheira, a qual protegerei e defenderei mesmo que você teime comigo.
Consegue compreender o que estou te dizendo? — Assinto. — Eu fui duro e frio
com você na última conversa que tivemos e te peço perdão pelo meu
comportamento. Assim que saí do seu quarto, fiquei terrivelmente mal, porque
percebi que devo ser rígido com os meus soldados e implacável em um campo de
batalha, no entanto, com você preciso ser bondoso, gentil e protetor. Você me
perdoa também?
— Claro que perdoo.
Áquila afasta a minha franja da testa e então molda o meu rosto com uma
mão enquanto me abraça pela cintura com o outro braço. Seu corpo em cima do
meu. Seus olhos fixos aos meus.
— Acima de honrar o meu reino, irei honrar a minha companheira,
portanto a minha honra é sua. Os meus braços irão lutar por você antes de lutar
por qualquer causa, portanto, a minha força é sua. O meu coração escolhe criar
um laço com o seu, portanto, o meu amor é seu. Serei coroado rei de Yerus, no
entanto aceito somente se você for coroada a minha rainha e não apenas no
título. Assumir o trono é a missão mais assustadora com que me deparei em toda
a minha vida e não há ninguém mais em quem eu confie para estar ao meu lado
nesse desafio senão você. O que quero dizer, Isabelle Tupper Beauharnais, é que
independente de títulos, condições ou missões, estou aqui para você. Sempre. E
preciso saber se você aceita ser a minha companheira, esposa e rainha.
Deslizo os dedos suavemente na lateral do rosto dele até entrelaçá-los nos
fios de cabelo da sua nuca. Eu amo esse homem. Como não amá-lo?
— Diga-me a data e o local da cerimônia que estarei lá, Guerreiro —
sussurro com a voz embargada de tamanha emoção. — Eu te amo tanto!
Ele sorri um sorriso lindo que logo é desfeito, porque capturo os lábios
dele com os meus.
Tina e eu fizemos as pazes. Para ela, só dei uma opção. Ou me perdoava ou
me perdoava. Foi a primeira vez que abusei do meu título. Ela ficou carrancuda
por uma semana, mas, por fim, me perdoou por vontade própria.
Quanto ao Áquila, ele mandou um decreto para que as tropas nos Países
Baixos voltassem para as fronteiras, uma vez que após o acordo de paz selado
entre Yerus e Lufstar, outros reinos dos Países Baixos declararam a intenção de
manter uma aliança com o nosso reinado.
Ter o apoio do Dominic, mesmo que lá do Norte, foi imprescindível. Ele
voltou para o Reino do Norte com as minhas irmãs e Tami, logo após a coroação
do Áquila, mas em breve Dominic as acompanhará na volta a fim de participar
da celebração da minha coroação.
Apesar da animosidade recíproca que a Rainha e eu sentimos em relação
uma à outra, eu jamais pediria ao Áquila para se livrar dela. Quer ele tenha um
laço afetivo com ela, quer não, a Rainha é mãe dele. Por respeito ao grau de
parentesco deles, eu estava disposta a relevar a presença dela no palácio, mas não
precisou.
Ela apoiou o Áquila na reivindicação ao trono com tal frieza, mesmo ao
ouvir a versão editada que contamos a respeito da morte do Rei, que, para mim,
soou como se a Rainha fosse apática em relação à morte do marido. Ela até
mesmo reforçou, perante os nobres, que o Rakar não estava apto para disputar o
título de rei, uma vez que o nome dele já não fazia mais parte da linha de
sucessão.
Mas, apesar desse apoio incondicional ao filho que renegou no passado, ela
preferiu se retirar para a sua ilha particular. Creio que foi devido a falta de
reconhecimento do Áquila em relação ao grau de parentesco deles. Para ele, ela é
apenas a Rainha anterior. Para ela, creio que ele é mais do que apenas o novo rei.
Talvez a jogada dela tenha sido na esperança de um dia reconquistá-lo. Ou talvez
ela esteja, finalmente, agindo como uma mãe. Não sei. Só o tempo dirá.
Quanto aos rebeldes, eles declararam apoio ao novo reinado de Yerus
quando baixei um decreto para acabar com a caçada aos mestiços, que possuem
resquícios de sangue Drakar. Aliás, durante esse último mês, não houve qualquer
sinal deles, o que por sua vez consolida a minha crença de que a história do
Mestre Ponda, acerca dos Drakars, é a verdadeira, ao invés da história que o meu
irmão ouviu e me escreveu para me contar.
Na trajetória para selar os portais, o Carlos Eduardo se deparou com
diferentes versões, desde as mais fantasiosas até as mais coerentes. A que ele
declarou acreditar, e por consequência fez questão de me contar, é a de que os
Drakars eram homens comuns.
Segundo a teoria que o meu irmão me relatou, os homens do reinado do
Telok I, que buscaram conhecimento para abrir os portais a fim de encontrar a
rainha para substituir a Aurora — a primeira rainha falecida —, seguiram os
vestígios de homens ainda mais antigos do que eles, homens esses que se
depararam com a magia e se transformaram nos Drakars. Inicialmente, eles eram
todos homens comuns que, ao entrarem em contato com essa fonte suspeita de
magia, tiveram uma evolução, ou mutação, de acordo com o meu irmão.
Ao se depararem com aquela nova realidade, surgiu o desejo de que toda a
raça humana evoluísse como eles, isso, por sua vez, deu início a uma guerra
constante entre os homens que não queriam mudar e abominavam os tais
mutantes. Os Drakars perseguiram os homens para levar a magia até eles e por
sua vez os homens perseguiram os Drakars para acabar com a magia.
Então, depois de longos períodos de guerra após guerra, um Salonsk
decidiu usar fogo para acabar com o fogo. Foi na época em que houve a
descoberta dos portais para o meu mundo, onde a Hortense foi trazida de lá.
Telok I recusou veementemente a ideia, uma vez que amava muito a Hortense, a
cópia da Aurora, e jamais a condenaria àquele destino cruel. Ao tentar impedir,
houve um ataque contra ele e o filho. Os Drakars se uniram aos Tupper a fim de
protegê-los, mas, obviamente, eles perderam.
Hortense, que na época tinha sido obrigada a usurpar o lugar da Aurora, foi
aprisionada na magia obscura e os Drakars expulsos do mundo. Então veio o que
os reinados subsequentes intitularam como “Tempos de Paz”.
Prefiro a versão que o Mestre Ponda uma vez me contou. Segundo ele, os
Drakars são outros tipos de seres na escala celestial. É a versão que me dá mais
tranquilidade, porque a do meu irmão implica que acabei com esse “Tempos de
Paz”. Inclusive, foi o que eu disse a ele em resposta, assim como em seguida
contei que fui incapaz de dissuadir a Guerreira da decisão dela.
O Carlos Eduardo quer que a Tina se junte a ele no restante da missão dele
de selar os portais, uma vez que já não corro mais nenhum risco. Ela, por sua
vez, é teimosa feito um jumento empacado no lugar e ainda está me monitorando
de perto.
Não adiantou apontar que o Rakar e a Helena foram exilados. Ele foi para
uma ilha, cuja existência praticamente ninguém conhece. Quanto a noiva fujona
dele, Dominic deu a entender que ela está em algum lugar do Norte. Onde,
exatamente, é um mistério.
Já a Helena, ela foi para um dos Países Baixos, o menor e mais tranquilo
dentre eles. Lá ela foi acolhida por pessoas bondosas dispostas a tratarem da
saúde mental dela. Foi graças a essa medida que o Borys declarou apoio ao
Áquila e a mim. Vários nobres foram influenciados e o seguiram.
Máximus foi realocado em uma patente maior nos soldados do Áquila, o
que achei merecido. Ele é, sem sombra de dúvidas, o homem mais fiel que o
Áquila tem o servindo.
Também apontei para a Tina, na tentativa de convencê-la a ir atrás do meu
irmão, que a lenda acabou e que o Rei morreu. Portanto, não há mais nenhum
risco contra a minha vida. Mas ela simplesmente não arreda o pé.
Oclan, por sua vez, foi liberto da prisão injusta e declarou o desejo de me
servir de outra forma. Confesso que não gostei. Sei que não foi ressentimento,
uma vez que a primeira coisa que ele fez foi me dar uma bronca por me esgueirar
dele de novo. A segunda foi me puxar para um abraço e confessar que estava
aliviado por eu estar viva. A terceira foi deixar claro que, enquanto o Áquila
estiver vivo, não há melhor segurança para mim do que se não ao seu lado, o que
significava que o Oclan não poderia ficar.
Até quis insistir no contrário, mas bastou olhar para o Áquila ao longe para
perceber que a escolha era real. Eu não poderia submetê-lo a conviver
diariamente com o Oclan, que por sua vez também deixou claro que gostaria de
me servir em outro lugar.
Eu disse brincando que ele tinha fetiche por prisões, mas o próprio
manifestou o desejo de lidar com os exilados políticos, Rakar, Helena e...
— Mestre Ponda! — Franzo a testa em surpresa quando o anão entra após
requisitar uma reunião comigo.
— Vossa Majestade.
— Ainda Alteza. — O corrijo com um sorriso sincero.
Áquila e eu ainda não nos casamos e a minha coroação será após a
cerimônia da nossa união.
— De ladra a futura rainha — o anão diz em tom solene.
Indico a cadeira à minha frente e ele se senta com graciosidade.
— Então o senhor escapou tanto de tubarões quanto dos seus inimigos,
uma vez mais.
— É o que parece, minha cara.
Ele fica em silêncio, me observando com minúcia.
— A que devo esta formidável reunião?
— Vim pedir por um perdão Real.
Abro um sorriso imenso ao perceber que os nossos papéis se inverteram.
Agora é o Mestre Ponda quem recorre a mim, não contrário.
— Concedido.
Ele pisca várias vezes e me encara com os lábios entreabertos, sem
acreditar no que ouviu. Alargo o sorriso e inclino a cabeça para o lado, o
desafiando a questionar. Como o homem astuto que é, Mestre Ponda faz uma
breve curvatura, agradece e se despede. Quando ele está prestes a sair pela porta,
o paraliso.
— O senhor será o cônsul de Yerus em Lufstar — digo de forma
despreocupada ao voltar a assinar os documentos sobre a minha mesa.
O silêncio se estende e ergo as vistas. O anão está com os olhos
arregalados e me encarando com horror.
— Magnólia jamais me aceitará, princesa!
— Ah, ela aceitará, uma vez que será o senhor nas terras dela, não o
contrário.
Faço uma pausa à espera de que assimile o que estou oferecendo. Ele pode
tanto recusar, e ser um exilado político, quanto aceitar a tarefa espinhosa que
estou jogando em seu colo.
— Desde que aquela megera trate comigo sob as leis de Yerus, aceito. Será
uma honra servir o meu reino.
— Acredito que se há alguém com condições para lidar com a Magnólia,
esse alguém é o senhor. E vice-versa. — Mestre Ponda estufa o peito, orgulhoso
do elogio, que não foi bem um elogio. — Enfim. Oclan o visitará de tempos em
tempos para ser os meus olhos, mas duvido que a Magnólia não vá me mandar
cartas minuciosas sobre todos os feitos do senhor.
— O contrário também acontecerá! — O anão declara de forma inflada,
como se fosse uma competição entre os dois para ver qual é o maior delator
dentre eles. Ele percebe o meu contentamento diante a situação e então se
recompõe e aperta os olhos para mim. — Uma jogada de mestre, minha cara
Isabelle.
Assinto, recebendo o elogio e então ele se vai. Seguida dele, também deixo
a sala de reuniões para me recolher para os meus aposentos.
Noto uma luz bruxuleante vinda da sacada e paraliso na entrada do quarto
que o Áquila e eu dividimos. Ele tinha bem mais assuntos do que eu para
resolver, então não faz muito sentido ter chegado antes de mim. Cautelosa, sigo
até lá apenas para ser surpreendida pelo cenário, e o meu Guerreiro vestido a
caráter para um baile.
Há várias luzinhas, similares às que iluminavam o chão de Fayrehal,
dispersas sobre a mureta da nossa varanda particular. O efeito gerado é como se
tivessem sido distribuídos pisca-piscas sem fios que possuem uma luminosidade
mais próxima a que uma vela produz.
— Por que isso tudo? — pergunto, mordendo o lábio inferior a fim de
conter a histeria que me assalta.
— Quero te mostrar algo. — Áquila me estende a mão e a seguro sem
hesitar.
— Estou aqui — respondo, ávida para que me mostre logo seja lá o que
está tramando.
— Sempre impaciente. — Ele passa um braço ao redor da minha cintura
até colar os nossos corpos.
O encaro na expectativa de receber um beijo, mas nada acontece.
— Vai me beijar ou o quê?
— Ou o quê. — Seus olhos brilham de divertimento. — Imagine uma
canção cantada pelas estrelas. — Assinto e ergo as vistas para o céu salpicado de
pontos prateados luminosos.
— Provavelmente seria uma das mais belas. — Suspiro.
— E será nossa — Áquila sussurra rouco ao pé do meu ouvido.
Ele desliza o nariz pelo meu rosto até resfolegar contra o meu nariz e então
abre um sorriso. Mas não qualquer sorriso e sim aquele que um dia me intoxicou
e me conquistou enquanto eu dançava entre os foliões de Fayrehal, na celebração
da Festa da Aurora, que agora não é livre apenas por uma única noite ao ano,
mas para sempre.
— Dance comigo ao som da nossa canção de estrelas, Belle.
Aceito de imediato, mesmo sabendo que o Áquila é um péssimo dançarino.
Mas sou surpreendida quando ele me gira enquanto nossos passos seguem em
uma sincronia insana ao som da melodia das estrelas, que ambos apenas
podemos ouvir em nossas imaginações.
Quando ele me puxa de volta para perto, deslizo uma mão por sobre sua
nuca, o acariciando de leve. Repouso a outra sobre o seu ombro largo.
— Você aprendeu a dançar — sussurro, seguindo o ritmo que os passos
dele criam.
— Faltava-me o incentivo necessário para aprender. Agora não mais. —
Mordo o lábio inferior e o lanço um olhar carregando tanto amor que tenho
certeza de que o Áquila é capaz de recebê-lo em cada célula do seu corpo. —
Agora posso dançar com você todas as noites ao som das estrelas, Belle.
Desço a minha mão do seu pescoço em busca de uma das suas mãos. Ele
franze o cenho, mas sem perder o ritmo ou um passo que seja. Mesmo confuso,
Áquila me permite guiá-lo até ter toda a sua mão espalmada sobre a minha
barriga.
— Também tenho uma surpresa para você. Em breve teremos uma
herdeira.
Ele para de dançar e me encara fundo nos olhos.
— Você disse herdeira? — Assinto com um sorriso pateta pregado nos
lábios. — Menina? — Assinto, ainda sorrindo. — Outra Isabelle? — Paraliso
diante o tom de desespero na voz dele. — O que eu fiz contra os deuses? — Paro
de sorrir imediatamente.
Áquila solta uma risada daquelas de doer a barriga ao ver a minha cara de
quem não gostou do que ouviu.
— Isso não foi engraçado — resmungo.
Logo seus braços envolvem a minha cintura e ele me tira do chão. Áquila
me gira no ar com um sorriso que não desmancha nem quando seus lábios tocam
os meus, repetidas vezes.
— E pensar que um dia imaginamos que estávamos condenados por
termos os nossos mundos nos separando. Essa é apenas mais uma ponte que veio
para nos mostrar o contrário e nos unir, Belle — ele sussurra contra os meus
lábios, me apertando forte no calor dos seus braços. Simplesmente me derreto
com a sinceridade e tenacidade com que ele diz tais coisas.
Desde que libertei a Hortense, pela primeira vez, sinto confiança de que o
futuro que visualizei ao lado do Áquila irá sim se concretizar.
Como ele disse, teremos mais uma ponte de ligação. Seremos pais da
herdeira de dois mundos.
Fim
Sentada sobre uma pedra chata, na divisa entre as suas terras e a Floresta
Branca, ela observava os seres de beleza atordoante. Era um costume que nasceu
há tanto tempo que era incapaz de se lembrar do primeiro dia em que passou a ir
até ali e gastar horas do seu dia imaginando como seria ser um deles.

Ela se lembrava da timidez do início, uma vez que seus traços humanos
não eram distintos nem mesmo entre as meninas humanas com quem brincava.
Portanto, aqueles seres a intimidavam por possuírem tamanha perfeição e a
simples ideia de ser descoberta por eles a aterrorizava. Mas um belo dia, um
deles a pegou em flagrante. Na época, ele era criança, assim como ela, o que era
raro entre eles.

O medo logo foi substituído por um laço forte de amizade. O sentimento


inferior que nutria, em vista dos seus cabelos castanhos cor de terra contra os de
obsidiana com toque de pluma dele, aos poucos perdeu o apelo. Em um dado
momento, não havia mais distinção entre eles. Havia apenas as brincadeiras, as
risadas, as brigas e reconciliações.

Foi impossível manter em segredo a importância que um adquiriu na vida


do outro ao longo dos anos e inevitavelmente os pais de ambos descobriu aquela
amizade. No início, eles tentaram afastá-los, mas em questão de poucos dias
ficou claro que era uma missão inútil.

A mãe dela não teve opção se não compreender que nem todos os Drakars
eram ruins. Entre eles, existiam aqueles que eram horríveis — como os homens
temiam e que causavam caos —, mas os que moravam na Floresta Branca não
eram assim.
O pai dele notou o mesmo em relação aos homens. Existiam aqueles que
eram ruins, mas os que moravam na proximidade das terras dele, eram seres
pacíficos.

Assim, ficou estabelecido que nenhum dos pais se oporia à amizade entre
os filhos. Desde então, as idas dela até aquela pedra eram tranquilas. Mas não
naquele dia.

Naquele dia a garota humana, que caminhava para o início da puberdade,


notou que havia algo diferente no ar. A começar que um príncipe e um rei
humano estavam na Floresta Branca com os três príncipes Drakars, o de negro
— pai do seu amigo —, a princesa de uma beleza sombria, e o metamorfo.

Apreensiva, ela procurou com os olhos por seu amigo, que ao longo dos
anos da amizade entre eles, mais estonteante ficava. Agora ele já era bem mais
alto do que ela.

A garota o encontrou perto do pai dele.

Como se tivesse sido atraído pelo seu olhar, o garoto Drakar a olhou de
volta. Imediatamente ela notou o medo espelhado neles e passou a sentir o
mesmo, embora não soubesse explicar como ou por quê.

Ele se afastou do pai e começou a caminhar na direção dela, mesmo que a


distância entre eles fosse enorme.

Gritos desviaram a atenção da humana, que se surpreendeu, porque aquele


povoado era tão pacífico e calmo! Ela não entendia por que eles estavam
agitados e atribulados. Descobriu que o seu medo era oriundo disso, a mudança
súbita no comportamento deles.

Espantada, a garota viu a gentileza ser substituída por egoísmo. Uma mãe,
que vira diversas vezes no passado tratar com carinho todas as poucas crianças
que existiam ali, agarrou o braço da filha com desespero e a arrastou em direção
a uma embarcação no rio. A Drakar sequer notou os três pequenos Drakars
desorientados, que ficaram para trás clamando pelos pais. Ela esperou e esperou,
no entanto, não viu ninguém indo naquela direção para socorrê-los.

Portas batendo com agressividade despertou a atenção dela. Ao longe,


assistiu a dois deles, adultos, fêmea e macho, discutirem de um jeito assustador.
Eles gritavam um para o outro palavras agressivas. Ela imaginou que se tratava
de uma divergência de ideias. Parecia que um deles queria correr para a
embarcação enquanto era tempo e o outro queria permanecer na floresta.

Outra briga mais intensa a estarreceu. Aquela parecia ser por conta de
alimentos. Ambos brigavam por um pedaço de pão quando as trouxas já estavam
carregadas de todo tipo de comida.

Porém, o que mais a chocou, foi um outro deles que escondeu todas as
plantas medicinais no raio ao seu redor sem se importar com um grupo de
família por perto que procurava por apenas uma planta em específico. Ao que
parecia, um deles estava em idade avançada e precisava de forças para chegar até
a embarcação.

Lembrou-se do amigo e procurou por ele em meio àquele caos. A garota


humana não sabia o que fazer, mas queria ajudá-lo da forma como pudesse. No
entanto, o garoto Drakar havia desaparecido.

Caminhou pela pedra e cogitou descer a encosta. Ergueu as vistas e foi


quando seus olhos encontraram com os do pai dele.

Mesmo de longe, ela foi capaz de perceber o desespero dele ao olhar para o
lado e não encontrar o filho. O príncipe dos Drakars de negro voltou a olhá-la e
notou o que havia acontecido. Naquele instante, ela pensou que aquele ser, a
quem ela respeitava, mas nutria um certo tipo de temor, iria lançar algum tipo de
magia e matá-la.
Petrificada no lugar, tudo o que a garota foi capaz de fazer foi entreabrir os
lábios à espera do seu fim. A princesa dos Drakars, a de uma beleza sombria,
agarrou o braço do príncipe vestido todo de preto e a conexão do olhar deles foi
quebrada.

Tão longe, não foi capaz de escutar o que a Drakar dizia, mas conseguiu
fazer leitura labial.

— Entregue o Orientador e vamos embora. — A princesa apontou para o


príncipe humano, conhecido por ter olhos de faca, assim como a mãe dele, a que
ela ouviu dizer vir do outro mundo.

O príncipe Drakar pareceu dizer algo em resposta, mas a garota não sabia
dizer o que poderia ser, porque, de onde estava, não era possível ver os seus
lábios. Porém, viu a princesa, de uma beleza sombria, apertar os dedos no
antebraço do Drakar, fincando as garras na camisa de linho.

— Não há tempo! O seu filho está perdido! A sua única chance de voltar a
vê-lo um dia será se ele encontrar a Aurora. — A princesa apontou com a cabeça
para o príncipe humano, que parecia alarmado e, portanto, chegou para mais
perto do pai, o rei humano, que não parecia tão diferente do estado dele.

A garota humana não entendia o que estava acontecendo, mas percebeu


que era importante encontrar o amigo o quanto antes. Ela voltou a procurá-lo, na
esperança de levá-lo de volta para o pai dele.

— O que está fazendo aqui?! — Um dos seus amigos da aldeia, um anão


de uma antiga linhagem, puxou o braço dela. — Não ouviu o alerta quanto a
praga que se aproxima?

Com seus olhos grandes e o coração martelando forte contra o peito, ela o
encarou fundo nos olhos.

— A praga já não está aqui?


O anão parou um momento para refletir. Ele observou o caos entre aqueles
seres pacíficos e que agora brigavam para entrar na embarcação enquanto tantos
outros se perdiam no meio do caminho.

— Não sei dizer se seremos afetados, mas vim até aqui te buscar, porque
pode ser que eles se voltem contra nós.

— Então vá você para um lugar seguro. Eu preciso achar o meu amigo.

Ela não ficou para ver o que o anão decidiria. Não ficaria ali parada. Se o
seu melhor amigo corria perigo, então precisava salvá-lo.

Mal deu dois passos quando uma escuridão repentina caiu sobre a Floresta
Branca. As buzinas do navio se perderam entre os gritos de histeria e sons de
corridas desesperadas.

Ela não conseguia enxergar nem mesmo um palmo à sua frente!

Um terror repentino tomou conta de todo o seu corpo, que por sua vez
paralisou no lugar. O negrume, semelhante ao da noite, obstruiu os raios de sol
daquela manhã.

O rasgo de um clarão cortou o céu fora a fora. Ela imaginou ter se tratado
de uma estrela cadente, mas não tinha como ter certeza. Aproveitou do clarão
para procurar pelo amigo e foi quando finalmente o encontrou paralisado de
medo perto do lugar em que ela estava.

Desceu correndo ao encontro do garoto Drakar. Seus dedos apertaram a


mão dele, que desviou a atenção do céu para ela. Quanto a ela, buscou pelo pai
dele com o olhar, que sabia estar desesperado em busca do filho.

O encontrou dentro do navio, que já estava em movimento. No entanto,


aquele príncipe temível dos Drakars, parecia desesperado para sair da
embarcação.
Era impossível. A velocidade com que a embarcação se movia, era
sobrenatural. Em um último apelo, ele a lançou um olhar suplicante.

— Seu filho vai ficar bem — ela disse, mesmo sabendo que o Drakar não
poderia escutá-la, mas tinha esperanças de que lesse a determinação em sua
expressão.

— Vocês fizeram isso conosco! — Um dos vários Drakars por perto,


apontou o dedo em riste em sua direção. — Vocês nos arrancaram a nossa
vitalidade e nos condenou a morrermos como vocês, tolos humanos!

Ela não sabia o que aquilo significava, porque ela mesmo não tinha feito
nada. Porém, percebeu que a floresta, outrora de uma beleza indescritível, se
tornou um pesadelo vívido.

As árvores ficaram secas. A grama opaca. Quanto a um lindo lago que


havia ali perto, se transformou em um pântano bolorento.

Seu coração bateu forte no peito ao compreender que eles estavam


acusando-a de ser responsável por aquilo, quando ela mesma não sabia o que
tinha acontecido. No entanto, percebeu que não era a única humana ali e que
logo eles convergiriam a fúria que sentiam no príncipe e rei humano largados
para trás.

O rei logo notou o perigo e correu agarrado com o príncipe à sua mão. Os
dedos da mão livre dele tocaram o tronco da única árvore que ainda ostentava
folhas e os dois desapareceram como que em um passe de mágica.

— Precisamos sair daqui antes que eles se voltem contra você. — Seu
amigo segurou sua mão e a puxou de volta para a encosta.

Assustada, deixou que o garoto Drakar a guiasse. Até que os dois pararam
ao mesmo tempo ao escutarem o som de uma cavalaria pesada se aproximando.
Homens, vestidos como se estivessem indo para a guerra, rodearam
aqueles que não conseguiram fugir. Pela primeira vez, ela viu um Drakar morrer
ao ser atravessado por uma espada. A garota nem mesmo sabia que aquilo era
possível!

Com assombro, os dois garotos, humana e Drakar, ficaram paralisados no


lugar.

— Por que eles estão fazendo isso? — Ela percebeu que chorava, mas não
se preocupou em limpar as lágrimas que molhavam o seu rosto.

— Não é seguro que você fique aqui. Veja, o meu povo também está
matando os homens. — Ele apontou para aqueles que perceberam o ataque e
começaram a revidar com o que ainda restava de magia.

Ela voltou a acompanhá-lo morro acima, mas puxou o braço dele para trás
com força. Os dois quase caíram do barranco.

— E se o meu povoado atentar contra você? Não podemos ir para a minha


casa! Não é seguro.

— Também não podemos ficar!

— Por que você não foi com o seu pai? Por que teve que vir até mim? —
Ela gritou para ele, furiosa com o fato dele ter se colocado em perigo por
besteira.

— Eu não pensei no que estava fazendo! Só senti que precisava me


encontrar com você.

— E acabou preso aqui e me condenou junto! — O garoto Drakar fechou a


cara, mas humana o ignorou. — Não podemos ficar e não podemos voltar para a
minha casa. Eu vi nos olhos do seu pai que, se ele pudesse, teria se voltado
contra mim quando percebeu que você havia sumido. Minha mãe pode se voltar
contra você também se formos até lá.

— O meu pai jamais faria algo assim com você. — O garoto a repreendeu,
ofendido. — Ele não é mau. Ele é do bem.

— Eu também considero a minha mãe e o meu povo do bem, mas acho


arriscado irmos até lá em vista disso aqui. — Ela apontou para o sangue se
espalhando e rapidamente manchando a Floresta Branca.

— Tudo bem. Então seremos apenas nós dois até que o príncipe humano
volte. Meu pai disse que iríamos para outro lugar pelo tempo que o príncipe
levasse para voltar.

— E se o meu príncipe nunca mais voltar?

Ele alternou o olhar entre os olhos dela.

— Eu nos condenei, não foi? — A garota preferiu não apontar o óbvio,


mas a sua expressão falava por si própria. — Eu não devia ter ido contra as
ordens do meu pai justo hoje. Agora eu posso morrer? — O olhar
desesperançado que ele a lançou cortou o coração dela em mil pedacinhos.

Como uma humana, ela já tinha se acostumado com a ideia de um dia


morrer, mas aquilo era novo para ele. Até então, ela nunca tinha ouvido falar da
morte de um Drakar, mas os dois estavam testemunhando de perto uma batalha
que dizimava os que ficaram para trás, mas os Drakars restante também matavam
vários humanos no processo.

Ela apertou a mão dele.

— Morreremos juntos, mas não sem antes vivermos também juntos.

Com as esperanças renovadas com a simples afirmação dela, o garoto


aceitou a oferta e assumiu a liderança. Ele a guiou para o único lugar que
considerava seguro.

Como prometido, os dois ficaram juntos e assistiram, de longe, aos avôs,


pais e irmãos mais velhos dela morrerem, porque sempre consideraram um risco
se aproximarem dos homens. Eles também viram de perto crianças que não eram
completamente como ela, nem completamente como ele, nascerem, crescerem,
se darem em casamento e terem filhos, assim como eles o fizeram.

Os dois também se casaram e tiveram filhos que era um pouco de cada,


mas a vitalidade não ficou nem mesmo no Drakar sangue puro. Todos eles foram
atingidos pelo efeito do tempo e envelheceram como os homens envelheciam.

Porém, o que eles nunca viram, foi o príncipe humano voltar. Mas uma vez
por ano uma estrela passou a cortar o céu sempre na mesma data. Isso os enchia
de esperança, embora não soubessem bem dizer o porquê. Talvez um dia alguém
voltasse e desfizesse aquele mal, mas não se preocupavam com isso. Estavam
mais concentrados em serem felizes juntos.
E eis que cheguei na parte mais difícil! Em primeiro lugar, não posso
deixar de agradecer ao meu Pai. Afinal, é graças a Ele que foi possível essa obra
existir. Ele proporcionou os meios, a criatividade e a vontade em mim para que
A Herdeira ganhasse vida. Sem Ele, eu nada seria. A Cristo Jesus toda honra e
glória.

O meu marido também merece um destaque especial por ser a pessoa que
está comigo há anos e sempre ser o meu maior apoiador. Está certo que as
chances dele ler até mesmo os agradecimentos são poucas (rsrs), mas ele sempre
me ouve com paciência e isso é tudo para mim! Ele é uma pessoa fundamental e
faz parte dessa jornada para que essa trilogia deixasse de viver apenas na minha
mente e fizesse parte de cada leitor de A Ladra de Dois Mundos. Obrigada por
seu apoio, gauto! Te amo.

Em seguida, minhas fiéis parceiras que estão comigo praticamente desde o


meu primeiro livro lançado: Juh (betinha querida), Carol (minha leal primuxa!),
Bebela (amiga e primeira leitora) e Nat (dona dos melhores surtos e madrinha de
todos os meus mocinhos). Nat Franco com a diagramação, sempre pronta para
trabalhar nas minhas obras, Sara Vertuan com essas capas incríveis que fizeram
jus ao conteúdo da obra e a Cami que fez o mapa que foi só o sucesso, também
merecem um agradecimento especial.

Quanto aos leitores que não me conheciam, mas tiveram contato com A
Ladra de Dois Mundos, leram e me mandaram mensagem no Instagram, preciso
deixar claro o quanto vocês foram importantes para a finalização dessa trilogia!
Cada mensagem que recebi foi um incentivo para que encarasse essa missão com
seriedade e fechasse a história da Isa e do Áquila. Para quem me mandou
mensagem, quer fosse no direct ou apenas uma pergunta simples de “quando sai
o terceiro livro?” em alguma publicação do feed, o meu muito obrigada!

Vocês não têm ideia de como o apoio que recebi, durante esses anos de
criação do universo de A Ladra de Dois Mundos, foi importante para que eu
continuasse firme nessa jornada de autora independe, portanto, um salve para
todos os apoiadores de autores brasileiros. Até a próxima!

Ps: deixe uma avaliação, mesmo que não seja escrita. Faz toda a diferença
;)
Mylena Aladim cresceu em Minas Gerais em uma casa cheia. Influenciada
pela avó, desde pequena ela devora livros. As leituras obrigatórias do colégio
nunca foram obrigatórias, principalmente se fosse um romance ou uma aventura.
Qualquer heroína que seja forte, rouba dela cinco estrelas. Além disso, ela vai do
Rock barulhento ao MPB em um piscar de olhos. Mylena mora atualmente em
Brasília com o marido e um Jack Russel, que dão a ela uma verdadeira aventura
todos os dias.

Instagram: Mylena Aladim (@mylenaaladimautora) • Fotos e vídeos do


Instagram
Série Cores das Estações, romance para jovem adulto.

Hazel a Cor do Outono - (Cores das Estações #1)

Violeta a Cor do Verão - (Cores das Estações #2)

Turquesa a Cor do Inverno - (Cores das Estações #3)

Pink a Cor da Primavera- (Cores das Estações 4#)

Um conto rapidinho de ler

As Leis do Acaso: Um Conto de Amor

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