Você está na página 1de 4

Escola não é quartel; pobreza

não é fatalidade nem doença


A adesão à disciplina militar não é voluntária, sendo imposta pelo medo e pela
submissão a uma autoridade de caráter arbitrário e não democrático

Por Madalena Guasco Peixoto

A pobreza, no Brasil, é produzida pela enorme concentração de renda, pelos privilégios de


uma classe dominante, pela frágil República e pela negação histórica sistemática de
construir um Estado democrático e de direitos. Essa realidade só se agrava com a
impossibilidade de um desenvolvimento com alta produtividade, com nossa dependência
histórica das grandes potências e com a exacerbação absurda da ação do mercado financeiro
nos rumos do país, hoje presente em todos os campos, inclusive na educação.
A história da educação brasileira faz parte desse panorama mais geral e não pode ser
analisada de forma isolada. No Brasil, a luta pelo direito à educação pública, universal e de
qualidade ainda não foi vencida, apesar dos 130 anos da República. Para as classes
dominantes o que foi feito é suficiente, mas é preciso dizer que os avanços nesse campo se
deveram à luta da sociedade civil organizada e não à compreensão política dessa classe; se
não houvesse luta ou resistência, a situação da educação brasileira seria muito pior.

Os problemas da pobreza interferem na escola pública não pela dificuldade de


aprendizagem dos mais pobres, como tivemos a infelicidade de ler em artigo publicado pelo
agora presidente do maior banco público do Brasil, mas pela falta de direitos, falta de
emprego, falta de políticas públicas. Os jovens brasileiros filhos da maioria da população
sofrem com a falta de oportunidade e de cuidados básicos. As dificuldades familiares são
produto disso, o aumento da criminalidade é produto disso, e esses males interferem na
educação.

Leia Também:
Opinião: a pobreza não pode nos tirar o direito de sonhar

Outro fator que amplia os obstáculos da escola pública é a disputa histórica entre o público e
o privado no Brasil. No país, a educação privada não é um direito de escolha democrática. Ao
contrário, em toda nossa história, o privado atuou pela privatização da educação e por seus
interesses e impediu que as políticas públicas fossem implementadas no sentido de
universalizar o acesso à educação pública, melhorar sua qualidade e colocá-la como um
direito universal, e não como uma escola para os pobres e para os trabalhadores mais
humildes.

Alguns de nossos vizinhos da América Latina deram à educação pública esse patamar
universal e de qualidade. Embora sejam países bem menores que o Brasil, entenderam o
princípio republicano do direito à educação de qualidade, bem como compreenderam que
um projeto de desenvolvimento democrático e soberano necessita da ação consciente do
Estado na melhoria da qualidade da educação para todos, com ampliação de investimentos
nessa área.

Leia Também:
A quem interessa o fracasso da educação brasileira?

No Brasil, depois de muita luta, o Plano Nacional de Educação (PNE) deliberou a aplicação,
em dez anos, de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação. Na época da aprovação
do PNE, em 2014, a aplicação era de 5,8 %; hoje, não só a Emenda Constitucional (EC) 95
congelou as verbas a serem aplicadas em educação por 20 anos, como o total aplicado caiu
para 5%, muito aquém do necessário para melhorar a infraestrutura, o material didático, a
inclusão digital, as condições de ensino e o atendimento integral aos estudantes.

No país, as dificuldades da educação pública passam ainda pela desvalorização dos


professores, o que tende a piorar com a precarização do trabalho prevista na reforma
trabalhista já em vigor e na reforma da previdência e nova reforma trabalhista já
anunciadas. O mercado quer o lucro e não a melhoria da economia, por isso opta pela
precarização do trabalho e pela retirada dos direitos, inclusive o direito à educação. Na
verdade, trata-se de uma desgraça anunciada: vamos aumentar a pobreza e a miséria ao
mesmo tempo que impediremos que a escola pública brasileira melhore sua qualidade.

Leia Também:
Cinco aspectos políticos e econômicos que ameaçam os professores

Entretanto, visando a deturpar completamente a realidade, vende-se a ideia de que a escola


pública está com problemas porque não há disciplina e porque a violência, externa e interna,
tem sido frequente. Nada se diz das péssimas condições de trabalho, da falta de
infraestrutura e das salas superlotadas.

Em vez disso, depois de deturpar a realidade, coloca-se como solução a militarização das
escolas através de convênio com a Policia Militar. Os produtores dessa falsa ideia relacionam
os problemas vividos pela escola com a falta de disciplina, tratando as crianças e jovens da
escola pública como “menores” potencialmente problemáticos e vulneráveis que, se não
foram colocados sob a rigidez militar, estarão perdidos. Com isso, não se atacam as
dificuldades reais da escola e da comunidade do entorno.

Leia Também:
Militarização do ensino fere a Constituição

Um dos motivos pelos quais a disciplina militar como saída é enganosa é o fato de que a
adesão a ela não é voluntária, sendo imposta pelo medo e pela submissão a uma autoridade
de caráter arbitrário e não democrático. É a ideia do respeito a regras sem possibilidade de
construção coletiva dessas regras; é o respeito ao “superior” sem possibilidade de
questionamento — não é assim que ocorre nos quartéis? É a cabeça e os olhos baixos, a
submissão de nossas crianças a autoridades, diga-se de passagem, muito questionáveis.
As notícias mostram que, mesmo depois da Constituição Cidadã, a questão dos direitos
humanos é menosprezada na formação de policiais e agora, com o retrocesso que estamos
vivendo, pior será. As notícias dos jornais, as pesquisas e os dados divulgados por órgãos de
defesa dos direitos humanos nacionais e internacionais evidenciam que a corporação,
principalmente na periferia, tem revelado racismo e desrespeito aos direitos mais
fundamentais (basta pegar também os dados da própria Corregedoria da Política Militar nos
diferentes estados).

É claro que a escola necessita de disciplina e também de convivência sadia e propícia à


aprendizagem, que é sua essência. Disciplina, contudo, tem que ser aquela consentida e
compreendida, ao passo que a aprendizagem tem que ser livre, prazerosa e advinda de uma
sadia relação professor-aluno.

Escola também necessita, sim, de segurança, mas o Brasil conhece muitas experiências
vitoriosas nesse campo, quando se tinha, por exemplo, nos estados, a guarda civil
especializada em segurança escolar. Tais experiências, todavia, foram totalmente encerradas
pela incompreensão de política pública de segurança na escola.

O convênio que a Polícia Militar está realizando com algumas secretarias estaduais possui,
por um lado, o objetivo claro de fortalecer a política da repressão como método de
formação, já que os policiais militares nada entendem de educação escolar.

Por outro, ele transfere a verba da educação para a Polícia Militar ao invés de melhorar, com
verbas próprias, os problemas da segurança pública nos estados, que também são muito
graves.

Infelizmente, vivemos um momento de sérias dificuldades no campo educacional. Basta ver


o que, no epicentro do Ministério de Educação, estão disputas que nada têm a ver com
ensino; uma disputa de poder entre grupo de conservadores que nada entendem de
educação. É um ministério como órgão de Estado sendo dirigido pelo Twitter por um falso
guru. Desse quadro, boas soluções, lamentavelmente, não hão de vir.

Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos


Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee e diretora da Faculdade de Educação
da PUC-SP

Você também pode gostar