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DIREITO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE – 1º CRÉDITO – PROF.

MARCOS BANDEIRA

Referências: AMIN, Andréa Rodrigues. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e
práticos. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
a) IDADE ANTIGA
Nas antigas civilizações, os laços familiares eram estabelecidos pelo culto à religião e não pelas relações afetivas ou
consanguíneas.
Os filhos mantinham-se sob a autoridade paterna enquanto vivessem na casa do pai, independentemente da
menoridade, já que àquela época não se distinguiam maiores e menores. Filhos não eram sujeitos de direitos, mas
sim objeto de relações jurídicas, sobre os quais o pai exercia um direito de proprietário. Assim, era-lhe conferido o
poder de decidir, inclusive, sobre a vida e a morte dos seus descendentes.
Os gregos mantinham vivas apenas crianças saudáveis e fortes. Em Esparta, cidade grega famosa por seus guerreiros,
o pai transferia para um tribunal do Estado o poder sobre a vida e a criação dos filhos, com o objetivo de preparar
novos guerreiros. As crianças eram, portanto, “patrimônio” do Estado. No Oriente, era comum o sacrifício religioso
de crianças, em razão de sua pureza.
A exceção ficava a cargo dos hebreus, que proibiam o aborto ou o sacrifício dos filhos, apesar de permitirem a venda
destes como escravos. Os direitos sucessórios limitavam-se ao primogênito e desde que fosse do sexo masculino.
Em um segundo momento, alguns povos indiretamente procuraram resguardar interesses da população
infantojuvenil. Mais uma vez foi importante a contribuição romana, que distinguiu menores impúberes e púberes,
muito próxima das incapacidades absoluta e relativa de nosso tempo.

b) IDADE MÉDIA
O Cristianismo trouxe uma grande contribuição para o início do reconhecimento de direitos para as crianças:
defendeu o direito à dignidade para todos, inclusive para os menores.
Como reflexo, atenuou a severidade de tratamento na relação pai e filho, pregando, contudo, o dever de respeito,
aplicação prática do quarto mandamento do catolicismo: “honrar pai e mãe”.
Por meio de diversos concílios, a Igreja foi outorgando certa proteção aos menores, prevendo e aplicando penas
corporais e espirituais para os pais que abandonavam ou expunham os filhos. Em contrapartida, os filhos nascidos
fora do manto sagrado do matrimônio (um dos sete sacramentos do catolicismo) eram discriminados, pois
indiretamente atentavam contra a instituição sagrada, àquela época única forma de se constituir família, base de toda
sociedade.

c) O DIREITO BRASILEIRO
No Brasil colônia, as Ordenações do Reino tiveram larga aplicação. Mantinha-se o respeito ao pai como autoridade
máxima no seio familiar. Contudo, em relação aos índios que aqui viviam e cujos costumes eram de todo próprio,
havia uma inversão de valores. Dada a dificuldade que os jesuítas encontraram para catequizar os índios adultos e
percebendo que era muito mais simples educarem as crianças, utilizaram-nas como forma de atingir os pais. Em
outras palavras, os filhos passaram a educar e adequar os pais à nova ordem moral.
Para resguardo da autoridade parental, ao pai era assegurado o direito de castigar o filho como forma de educá-lo,
excluindo-se a ilicitude da conduta paterna se no “exercício desse mister” o filho viesse a falecer ou sofresse lesão.
Vigentes as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal era alcançada aos 7 anos de idade. Dos 7 aos 17 anos, o
tratamento era similar ao do adulto com certa atenuação na aplicação da pena. Dos 17 aos 21 anos de idade, eram
considerados jovens adultos e, portanto, já poderiam sofrer a pena de morte natural (por enforcamento). A exceção
era o crime de falsificação de moeda, para o qual se autorizava a pena de morte natural para maiores de 14 anos.
Houve uma pequena alteração do quadro com o Código Penal do Império, de 1830, que introduziu o exame da
capacidade de discernimento para aplicação da pena. Menores de 14 anos eram inimputáveis. Contudo, se houvesse
discernimento para os compreendidos na faixa dos 7 aos 14 anos, poderiam ser encaminhados para casas de correção,
onde poderiam permanecer até os 17 anos de idade.
Em paralelo, no campo não infracional, o Estado agia por meio da Igreja. Já em 1551 foi fundada a primeira casa de
recolhimento de crianças do Brasil, gerida pelos jesuítas que buscavam isolar crianças índias e negras da má
influência dos pais, com seus costumes “bárbaros”. Consolidava-se o início da política de recolhimento.
No século XVIII, aumenta a preocupação do Estado com órfãos e expostos, pois era prática comum o abandono de
crianças (crianças ilegítimas e filhos de escravos, principalmente) nas portas das igrejas, conventos, residências ou
mesmo pelas ruas. Como solução, importa-se da Europa a Roda dos Expostos, mantida pelas Santas Casas de
Misericórdia.
Casas de recolhimento são inauguradas em 1906, dividindo-se em escolas de prevenção, destinadas a educar menores
em abandono, escolas de reforma e colônias correcionais9, cujo objetivo era regenerar menores em conflito com a
lei.
A influência externa e as discussões internas levaram à construção de uma Doutrina do Direito do Menor, fundada
no binômio carência delinquência. Era a fase da criminalização da infância pobre. Havia uma consciência geral de
que o Estado teria o dever de proteger os menores mesmo que suprimindo suas garantias. Delineava-se, assim, a
Doutrina da Situação Irregular.
Em um inevitável desenrolar dos fatos, em 1926 foi publicado o Decreto n. 5.083, primeiro Código de Menores do
Brasil que cuidava dos infantes expostos e menores abandonados. Cerca de um ano depois, em 12 de outubro de
1927, veio a ser substituído pelo Decreto n. 17.943-A, mais conhecido como Código Mello Mattos. De acordo com
a nova lei, caberia ao Juiz de Menores decidir-lhes o destino.
A família, independentemente da situação econômica, tinha o dever de suprir adequadamente as necessidades básicas
das crianças e dos jovens, de acordo com o modelo idealizado pelo Estado. Medidas assistenciais e preventivas foram
previstas com o objetivo de minimizar a infância de rua.
Já no campo infracional, crianças e adolescentes até 14 anos eram objeto de medidas punitivas com finalidade
educacional. Já os jovens, entre 14 e 18 anos, eram passíveis de punição, mas com responsabilidade atenuada.
Foi uma lei que uniu justiça e assistência, união necessária para que o Juiz de Menores exercesse toda sua autoridade
centralizadora, controladora e protecionista sobre a infância pobre, potencialmente perigosa. Estava construída a
categoria Menor, conceito estigmatizante que acompanharia crianças e adolescentes até a Lei n. 8.069/90.
A Constituição da República do Brasil de 1937, permeável às lutas pelos direitos humanos, buscou, além do aspecto
jurídico, ampliar o horizonte social da infância e juventude, bem como dos setores mais carentes da população.
A tutela da infância, nesse momento histórico, caracterizava-se pelo regime de internações com quebra dos vínculos
familiares, substituídos por vínculos institucionais. A preocupação era correcional e não afetiva.
No final dos anos 1960 e começo da década de 1970 iniciam-se debates para reforma ou criação de uma legislação
menorista. Em 10 de outubro de 1979 foi publicada a Lei n. 6.697, novo Código de Menores, que, sem pretender
surpreender ou verdadeiramente inovar, consolidou a doutrina da Situação Irregular.
Durante todo esse período, a cultura da internação, para carentes ou delinquentes, foi a tônica. A segregação era vista,
na maioria dos casos, como única solução.

d) O PERÍODO PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1988


A nova ordem rompeu, assim, com o já consolidado modelo da situação irregular e adotou a doutrina da proteção
integral.
No caminho da ruptura, merece destaque a atuação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), resultado do 1º Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, realizado em 1984, cujo objetivo era
discutir e sensibilizar a sociedade para a questão das crianças e adolescentes rotulados como “menores abandonados”
ou “meninos de rua”.
Coroando a revolução constitucional que colocou o Brasil no seleto rol das nações mais avançadas na defesa dos
interesses infantojuvenis, para as quais crianças e jovens são sujeitos de direito, titulares de direitos fundamentais,
foi adotado o sistema garantista da doutrina da proteção integral. Objetivando regulamentar e implementar o novo
sistema, foi promulgada a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, de autoria do Senador Ronan Tito e relatório da
Deputada Rita Camata, que incorporou em seu texto os compromissos expostos na Convenção Sobre os Direitos da
Criança, de 20 de novembro de 1989, da qual o Brasil é signatário.
O Estatuto da Criança e do Adolescente resultou da articulação de três vertentes: o movimento social, os agentes do
campo jurídico e as políticas públicas.
Trata-se de um verdadeiro microssistema que cuida de todo o arcabouço necessário para efetivar o ditame
constitucional de ampla tutela do público infantojuvenil. É norma especial com extenso campo de abrangência,
enumerando regras processuais, instituindo tipos penais, estabelecendo normas de direito administrativo, princípios
de interpretação, política legislativa, em suma, todo o instrumental necessário e indispensável para efetivar a norma
constitucional.
Implanta-se a Doutrina da Proteção Integral, com caráter de política pública. Crianças e adolescentes deixam de ser
objeto de proteção assistencial e passam a titulares de direitos subjetivos. Para assegurá-los é estabelecido um sistema
de garantia de direitos, que se materializa no Município, a quem cabe estabelecer a política de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente, por meio do Conselho Municipal de Direito da Criança e do Adolescente
(CMDCA), bem como, numa cogestão com a sociedade civil, executá-la.

2. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL


Podemos entender que a doutrina da proteção integral é formada por um conjunto de enunciados lógicos, que
exprimem um valor ético maior, organizada por meio de normas interdependentes que reconhecem criança e
adolescente como sujeitos de direito. A doutrina da proteção integral encontra-se insculpida no art. 227 da Carta
Constitucional de 1988, em uma perfeita integração com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Regulamentando e buscando dar efetividade à norma constitucional, foi promulgado o Estatuto da Criança e do
Adolescente, microssistema aberto de regras e princípios, fundado em três pilares básicos: 1) criança e adolescente
são sujeitos de direito; 2) afirmação de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, e, portanto, sujeito a
uma legislação especial; 3) prioridade absoluta na garantia de seus direitos fundamentais

a) DOCUMENTOS INTERNACIONAIS
O primeiro documento internacional que expôs a preocupação em se reconhecer direitos a crianças e adolescentes foi
a Declaração dos Direitos da Criança de Genebra, em 1924, promovida pela Liga das Nações. Contudo, foi a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela ONU em 1959, o grande marco no reconhecimento de
crianças como sujeitos de direitos, carecedoras de proteção e cuidados especiais.
A ONU, atenta aos avanços e anseios sociais, mormente no plano dos direitos fundamentais, reconheceu que a
atualização do documento se fazia necessária. Em 1979 montou um grupo de trabalho com o objetivo de preparar o
texto da Convenção dos Direitos da Criança, aprovado em novembro de 1989 pela Resolução n. 32.
Pela primeira vez, foi adotada a doutrina da proteção integral fundada em três pilares: 1) reconhecimento da peculiar
condição da criança e jovem como pessoa em desenvolvimento, titular de proteção especial; 2) crianças e jovens têm
direito à convivência familiar; 3) as Nações subscritoras obrigam-se a assegurar os direitos insculpidos na Convenção
com absoluta prioridade.
Outro importante documento internacional, com relevância na área de prevenção do crime e do tratamento
delinquencial são as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, mais
conhecidas como Regras de Beijing. Apresentam orientações preventivas, com destaque para proteção social dos
jovens, assim como orientações para atuação da justiça delinquencial aplicada a menores, com destaque para a defesa
e resguardo dos direitos fundamentais e garantias processuais.

b) DA SITUAÇÃO IRREGULAR À PROTEÇÃO INTEGRAL


A doutrina da situação irregular que ocupou o cenário jurídico infantojuvenil por quase um século era restrita.
Limitava-se a tratar daqueles que se enquadravam no modelo predefinido de situação irregular, estabelecido no art.
2º do Código de Menores.
Compreendia o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, em razão da
falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; as vítimas de maus-tratos; os que estavam em perigo moral por se
encontrarem em ambientes ou atividades contrárias aos bons costumes; o autor de infração penal e ainda todos os
menores que apresentassem “desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária”.
Aqui se apresentava o campo de atuação do Juiz de Menores, restrito ao binômio carência-delinquência. Todas as
demais questões que envolvessem crianças e adolescentes deveriam ser discutidas na Vara de Família e regidas pelo
Código Civil.
Apesar das diversas medidas de assistência e proteção previstas pela lei para regularizar a situação dos menores, a
prática era de uma atuação segregatória na qual, normalmente, estes eram levados para internatos ou, no caso de
infratores, institutos de detenção mantidos pela Febem. Inexistia preocupação em manter vínculos familiares, até
porque a família ou a falta dela era considerada a causa da situação irregular.
Em resumo, a situação irregular era uma doutrina não universal, restrita, de forma quase absoluta, a um limitado
público infantojuvenil.
A doutrina da proteção integral, por outro lado, rompe o padrão preestabelecido e absorve os valores insculpidos na
Convenção dos Direitos da Criança. Pela primeira vez, crianças e adolescentes titularizam direitos fundamentais,
como qualquer ser humano. Passamos assim a ter um Direito da Criança e do Adolescente, em substituição ao Direito
do Menor, amplo, abrangente, universal e, principalmente, exigível.
A responsabilidade em assegurar o respeito a esses direitos foi diluída solidariamente entre família, sociedade e
Estado, em uma perfeita cogestão e corresponsabilidade.
Com o fim de garantir efetividade à doutrina da proteção integral, a nova lei previu um conjunto de medidas
governamentais aos três entes federativos, por meio de políticas sociais básicas, políticas e programas de assistência
social, serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos e
abuso, e proteção jurídico-social por entidades da sociedade civil.
Ao Juiz coube a função que lhe é própria: julgar. A atuação ex officio não se encontra elencada nos arts. 148 e 149
da legislação estatutária, mas apenas as restritas à função judicante e normativa. Agora é a própria sociedade por
meio do Conselho Tutelar que atua, diretamente, na proteção de suas crianças e jovens, encaminhando à autoridade
judiciária os casos de sua competência e ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa
ou penal contra os direitos da criança ou adolescente.

3. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE


Três são os princípios gerais e orientadores de todo o ECA: 1) princípio da prioridade absoluta; 2) princípio do
superior interesse; 3) princípio da municipalização.
a) PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA
Trata-se de princípio constitucional estabelecido pelo art. 227 da Lei Maior, com previsão no art. 4º e no art. 100,
parágrafo único, II, da Lei n. 8.069/90. Ressalte-se que a Lei n. 13.257/2016, ao tratar da prioridade absoluta, impôs
ao Estado o dever de estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às suas
especificidades, visando a garantir seu desenvolvimento integral.
Estabelece primazia em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesse. Seja no campo judicial,
extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantojuvenil deve preponderar.
Assim, se o administrador precisar decidir entre a construção de uma creche e de um abrigo para idosos, pois ambos
são necessários, obrigatoriamente terá de optar pela primeira. Isso porque o princípio da prioridade para os idosos é
infraconstitucional, estabelecido no art. 3º da Lei n. 10.741/2003, enquanto a prioridade em favor de crianças é
constitucionalmente assegurada, integrante da doutrina da proteção integral.
Leva em conta a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a criança e o adolescente possuem uma fragilidade
peculiar de pessoa em formação, correndo mais riscos que um adulto, por exemplo. A prioridade deve ser assegurada
por todos: família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público.
Buscando efetivar o princípio da prioridade absoluta, a lei previu um rol mínimo de preceitos a serem seguidos
buscando tornar real o texto constitucional.
A primazia de receber proteção e socorro, em quaisquer circunstâncias, assegurada a crianças e adolescentes, é a
primeira garantia de prioridade estabelecida no parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8.069/90.
Havendo uma situação em que haja possibilidade de atender a um adulto ou crianças e adolescentes, em idêntica
situação de urgência, a opção deverá recair sobre estes últimos.
Na prestação de serviços públicos e de relevância pública, crianças e jovens também gozam de primazia. Assim, em
uma fila para transplante de órgão, havendo uma criança e um adulto nas mesmas condições, sem que se possa
precisar quem corre maior risco de morte, os médicos deverão atender em primeiro lugar a criança.
Resta claro o caráter preventivo da doutrina da proteção integral em buscar políticas públicas voltadas para a criança,
para o adolescente e para a família, sem as quais o texto legal será letra morta, não alcançando efetividade social.
Na elaboração do projeto de lei orçamentária, deverá ser destinada dentro dos recursos disponíveis prioridade para
promoção dos interesses infantojuvenis, cabendo ao Ministério Público e demais agentes responsáveis em assegurar
o respeito à doutrina da proteção integral fiscalizar o cumprimento da lei e contribuir na sua elaboração.

b) PRINCIPIO DO INTERESSE SUPERIOR OU DO MELHOR INTERESSE


Sua origem histórica está no instituto protetivo do parens patrie do direito anglo-saxônico, pelo qual o Estado
outorgava para si a guarda dos indivíduos juridicamente limitados – menores e loucos.
Com sua importância reconhecida, o best interest foi adotado pela comunidade internacional na Declaração dos
Direitos da Criança, em 1959. Por esse motivo já se encontrava presente no art. 5º do Código de Menores, ainda que
sob a égide da doutrina da situação irregular.
Agora, com a adoção da doutrina da proteção integral, a aplicação do referido princípio ganhou amplitude, aplicando-
se a todo público infantojuvenil, inclusive e principalmente nos litígios de natureza familiar.
Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das
necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para
elaboração de futuras regras.
Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do
interesse superior, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens.
Interesse superior ou melhor interesse não é o que o Julgador ou aplicador da lei entende que é melhor para a criança,
mas sim o que objetivamente atende à sua dignidade como pessoa em desenvolvimento, aos seus direitos
fundamentais em maior grau possível.
À guisa de exemplo, vamos pensar em uma criança que está em risco, vivendo pelas ruas de uma grande cidade,
dormindo ao relento, consumindo drogas, sujeita a todo tipo de violência. Acolhê-la e retirá-la das ruas, mesmo contra
sua vontade imediata, é atender ao princípio do interesse superior. Com o acolhimento, busca-se assegurar o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao respeito como pessoa, à sua dignidade, a despeito de não se atender,
naquele momento, ao seu direito de liberdade de ir, vir e permanecer, onde assim o desejar.
Importante frisar que não se está diante de um salvo-conduto para, com fundamento no best interest, ignorar a lei. O
julgador não está autorizado, por exemplo, a afastar princípios como o do contraditório ou do devido processo legal,
justificando seu agir no interesse superior do menor.
Princípio do interesse superior é, pois, o norte que orienta todos aqueles que se defrontam com as exigências naturais
da infância e juventude. Materializá-lo é dever de todos.

c) PRINCÍPIO DA MUNICIPALIZAÇÃO
É princípio prioritário na concretização da política de atendimento estabelecida no ECA.
A Constituição da República descentralizou e ampliou a política assistencial. Disciplinou a atribuição concorrente
dos entes da federação, resguardando para a União competência para dispor sobre as normas gerais e coordenação
de programas assistenciais.
O legislador constituinte reservou a execução dos programas de política assistencial à esfera estadual e municipal,
bem como a entidades beneficentes e de assistência social.
A relevância do Poder Público local na legislação estatutária é facilmente verificável. O art. 88 elenca as diretrizes
da política de atendimento determinando sua municipalização, criação de conselhos municipais dos direitos da
criança, criação e manutenção de programas de atendimento com observância da descentralização político-
administrativa.
A Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que constituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(Sinase), conferiu aos Municípios o dever de formular, instituir, coordenar e manter o Sistema Municipal de
Atendimento Socioeducativo, criando e mantendo programas de atendimento para execução das medidas em meio
aberto.
Contudo, mostra-se indispensável tornar a municipalização real, exigindo que cada município instale seus conselhos
– sendo essencial, nesse aspecto, a atuação do Ministério Público –, fiscalizando a elaboração da lei orçamentária,
para que seja assegurada a prioridade nos programas sociais e a destinação de recursos para programações, culturais,
esportivas e de lazer, voltadas para a infância e juventude (art. 59), estabelecendo convênios e parcerias com o terceiro
setor.
A despeito da regra geral da municipalização do atendimento, é certo que Estado e União são solidários ao Município
na tutela e resguardo dos direitos infantojuvenis.

4. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


No que tange a crianças e adolescentes, o legislador constituinte particularizou dentre os direitos fundamentais
aqueles que se mostram indispensáveis à formação do indivíduo ainda em desenvolvimento, elencando-os no caput
do art. 227. São eles: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar.

a) ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ECA


O art. 2º da Lei n. 8.069/90 considera criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre
12 e 18 anos de idade incompletos. Por exceção e apenas nos casos expressos na lei especial, permite-se sua aplicação
a pessoas entre 18 e 21 anos de idade.
Na fixação do âmbito de aplicação do ECA, levou-se em conta o critério biológico – objetivo, igualitário e mais
seguro. Estudos demonstram que a formação do cérebro se completa apenas com o alcance da vida adulta.
A emancipação, instituto pelo qual o menor atinge a capacidade civil por concessão dos pais, no exercício do poder
familiar a eles conferido por lei, ou em hipóteses previamente elencadas na lei como causas emancipatórias (art. 5º,
parágrafo único, II a V, do Código Civil), não altera o quadro acima retratado.
Assim, seus efeitos no âmbito infantojuvenil restringem-se às hipóteses pertinentes ao poder familiar, à guarda ou
que dependam de autorização dos pais, em razão do exercício do poder familiar, ora extinto.
Direitos fundamentais e normas de garantia à formação do adolescente até o alcance de sua maturidade fisiológica
continuam aplicáveis ao menor emancipado.

b) DIREITO À VIDA
Trata-se de direito fundamental homogêneo considerado como o mais elementar e absoluto dos direitos, pois
indispensável para o exercício de todos os demais.
Exemplificando de forma singela, se um adolescente estiver à beira da morte, deve-se buscar, minimamente,
assegurar os recursos para tentar mantê-lo vivo, ou se inevitável a morte precoce, que, ao menos, seja digna, com
tratamento e apoio.

c) DIREITO À SAÚDE
Trata-se de direito fundamental homogêneo, mas com certo grau de especificidade em relação à saúde adulta.
No sistema de garantias do ECA cabe à família, comunidade e Poder Público assegurar esse direito fundamental
estreitamente vinculado ao direito à vida.
Cabe aos pais, como dever inerente ao poder familiar, cuidar do bem-estar físico e mental dos filhos, levando-os
regularmente ao médico, principalmente na primeira infância, fase em que a saúde é mais frágil e inspira maiores
cuidados, manter a vacinação em dia e, principalmente, se manter atentos aos filhos.
Mas a garantia da saúde não envolve apenas cuidados médicos. A saúde pela alimentação é uma realidade. Promover
uma nutrição adequada significa prevenir doenças decorrentes de desnutrição, carência de algum nutriente ou
obesidade infantil, hoje, um dos grandes males da infância.
Se a família não reúne condições de alimentar adequadamente a prole – muitas vezes numerosa –, cabe ao Poder
Público elaborar políticas sociais executáveis por meio de programas de alavancagem social garantidores de renda
mínima.

d) DIREITO À LIBERDADE
É normalmente traduzido como o direito de ir e vir. Mas não é só. A liberdade preconizada no art. 16 do Estatuto da
Criança e do Adolescente é mais ampla. Consequência natural da adoção do princípio fundamental da dignidade da
pessoa, compreende o direito à autodeterminação, à busca pela construção de sua identidade, valendo-se do direito à
liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso, liberdade para brincar, praticar esportes, divertir-se,
participar da vida em família, na sociedade e vida política, assim como buscar refúgio, auxílio e orientação. Em suma,
liberdade para ser.
Caberá aos pais, família e comunidade fiscalizar o exercício desse direito concedido pró-criança e adolescente e não
em seu desfavor.
Cabe ao CMDCA formular políticas públicas de acolhimento e ao Poder Público executá-las de forma eficaz, não se
limitando a recolher o público infantojuvenil de rua, mas também apoiá-lo, compreendê-lo, identificar as causas que
motivaram o enfrentamento dos perigos das ruas, não se esquecendo de cuidar da família, sem a qual todo o trabalho
realizado acabará por se mostrar inócuo.
A liberdade de opinião e a de expressão são complementares: a opinião é passiva e a expressão é ativa. Opinar é
formar o convencimento, expressar é externá-lo.
Assim, crianças e jovens têm o direito de ser informados e, portanto, aos pais, parentes, comunidade, profissionais
de educação, médicos, enfim, todos os que fazem parte do cotidiano infantojuvenil, é incumbido o correlato dever de
informar.
Crença e cultos religiosos livres também estão compreendidos no direito à liberdade. Os pais, no cumprimento do
dever de educar, devem oferecer aos filhos educação formal e moral, formação religiosa.
A liberdade de brincar, praticar esportes e se divertir, com respeito à sua peculiar condição de pessoa em
desenvolvimento, é liberdade de ser criança e adolescente. Os esportes são importantes para o desenvolvimento
motor, físico e integração social de crianças e jovens. Atividades lúdicas, como brincar e se divertir, integram e
permitem experiências que se refletem no amadurecimento paulatino da criança e do adolescente.

e) DIREITO AO RESPEITO E À DIGNIDADE


A Lei n. 13.010/2014, popularmente conhecida como “Lei Menino Bernardo” ou “Lei da Palmada”, alterou a redação
do art. 18 do ECA, para assegurar à criança e ao adolescente o direito de ser criado e educado sem o uso de castigo
físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção.
O paradigma da proteção integral, sistematicamente, está consolidado, mas culturalmente ainda há muito a fazer. O
estigma do menor como objeto de proteção parece conceder o direito de tratar a criança e o adolescente como bem
se entender, sem enxergá-los como pessoas, carecedoras de tratamento digno e resguardo à sua integridade física,
psíquica e intelectual.
Nessa toada, não basta assegurar o direito à educação positiva, sem o uso da violência ou tratamento cruel ou
degradante como instrumento de ensino e cuidado. Indispensável que crianças e adolescentes tenham o direito de
serem tratadas como o que são: pessoas ainda em desenvolvimento.

f) DIREITO À EDUCAÇÃO
O processo educacional visa à integral formação da criança e do adolescente, buscando seu desenvolvimento, seu
preparo para o pleno exercício da cidadania e para ingresso no mercado de trabalho (art. 205 da CF).
Educação é direito de todos, sem distinção. Assegurá-lo é dever dos pais, por meio da matrícula dos filhos na rede
de ensino; dever da sociedade, fiscalizando os casos de evasão ou de não ingresso na escola por meio do Conselho
Tutelar, dos profissionais de educação ou qualquer outro meio e principalmente, dever do Poder Público, mantendo
uma oferta de vagas que permita o livre e irrestrito acesso à educação.
Pessoas com deficiência são titulares do direito fundamental à educação em todos os níveis do sistema educacional,
de forma a alcançar o máximo de desenvolvimento. O poder público deve assegurar, criar, desenvolver, implementar,
incentivar, acompanhar e avaliar o sistema educacional inclusivo.
Nessa toada, evitando-se ações que possam estimular a exclusão do estudante que apresenta alguma deficiência,
principalmente cognitiva, é vedado às instituições privadas de ensino, de qualquer nível e modalidade, cobrar valores
adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento das determinações
estabelecidas no art. 28 da referida lei.

g) DIREITO À CULTURA, ESPORTE E LAZER


O ECA, fundado na doutrina da proteção integral, assegurou a crianças e jovens não apenas direitos considerados
imprescindíveis ao ser humano como vida, saúde, educação, mas ainda aqueles que, de certa forma, são vistos como
secundários ou até supérfluos por nossa sociedade, mas que exercem importante papel no desenvolvimento da criança
e do adolescente.
A cultura estimula o pensamento de maneira diversa da educação formal. Os espetáculos culturais – música, dança,
cinema – permitem que crianças e jovens tenham contato com padrões de comportamento, valores, crenças,
socialmente difundidos, por meio de outro canal.
O esporte desenvolve as habilidades motoras, socializa e pode ser o início da vida profissional da criança e do
adolescente. É comum ouvirmos histórias, principalmente de jogadores de futebol, que depois de privações na
infância hoje têm reconhecimento profissional. Além disso, a prática esportiva é atual aliada da saúde. O exercício
estimula o bom colesterol, melhora a capacidade cardiorrespiratória, diminui a obesidade quando aliada a uma
alimentação racional.
Criança e adolescente têm direito de brincar e de se divertir, e até de não fazer nada. O lazer envolve entretenimento,
diversão, importantes ingredientes para a felicidade, antídoto da depressão. Na escola é obrigatório o recesso,
chamado recreio, momento de descontração, no qual os alunos descansam a mente e se inter-relacionam. Em casa, a
família deve reservar algum tempo para que a criança brinque e possa de fato ser criança, afastando o adulto em
miniatura exigido pela sociedade moderna.
O Estado deve assegurar o acesso à cultura, esporte e lazer por meio da construção de praças, instalação de lonas
culturais, de teatros populares, promoção de shows abertos ao público, construção de complexos ou simples ginásios
poliesportivos. A família deve buscar, de acordo com sua classe social, ofertar às suas crianças e jovens a
possibilidade de frequentar teatros, shows, assistir a filmes ou, simplesmente, brincar. A própria escola tem
importante papel na promoção desses direitos, sendo comum passeios a museus ou formação de grupos de teatro
pelos próprios alunos.

h) DIREITO À PROFISSIONALIZAÇÃO E À PROTEÇÃO NO TRABALHO


A profissionalização integra o processo de formação do adolescente e, por isso, lhe é assegurada. Contudo, sua
peculiar condição de pessoa em desenvolvimento exige um regime especial de trabalho, com direitos e restrições.
A Constituição Federal de 1988, mantendo a tradição brasileira e a tendência mundial, fixava a idade mínima de
trabalho para o adolescente em 14 anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 12 anos de idade. Com a
Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, que alterou o inciso XXXIII do art. 7º, foi proibido o
trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição
de aprendiz, a partir de 14 anos.
Em linha de princípio, a vedação ao trabalho infantil tem a finalidade de evitar desgastes indesejados e prejudiciais
à formação e à necessidade de escolarização do menor, guardando harmonia com a doutrina da proteção integral.
O trabalho noturno (entre 22 e 5 horas)177, perigoso, insalubre ou penoso, realizado em locais prejudiciais à sua
formação e desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, são proibidos.
O art. 405, § 3º, da CLT dispõe sobre locais de trabalho considerados prejudiciais à moralidade do adolescente. À
guisa de exemplo, citamos teatros de revista, cinemas, boates, cassinos, cabarés, dancings, circos, venda de bebidas
alcoólicas etc. Contudo o Juiz da Infância e Juventude poderá conceder autorização para o adolescente trabalhar ou
apenas participar de espetáculos, circos, cinemas e afins, desde que não se mostre prejudicial à sua formação moral
(art. 406 da CLT).
A legislação especial também condiciona à autorização do Juiz da Infância e Juventude o trabalho exercido nas ruas,
praças e outros logradouros. Caberá à autoridade judicial verificar se a ocupação é indispensável à subsistência do
adolescente ou família e se não sofrerá prejuízo quanto à sua formação moral (art. 405, § 2º, da CLT).
Não se admitirá atividade profissional realizada em horários e locais que não permitam a frequência à escola. O
direito à educação é indisponível e poderá ser complementado pela atividade profissional, mas não o contrário.

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