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22/05/2021 O caminho que leva à regência - Revista Continente

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EDIÇÃO #245
MAIO 21

REPORTAGEM

O CAMINHO QUE LEVA À REGÊNCIA


Área prestigiosa da atividade musical, a formação de maestros é recente e surgiu da especialização desse campo
e do desmembramento das funções de compositores, instrumentistas e regentes

TEXTO CAMILA FRESCA


01 DE JULHO DE 2020

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22/05/2021 O caminho que leva à regência - Revista Continente
A jovem regente Maíra Ferreira (à dir.) em atuação
IMAGEM DIVULGAÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed. 235 | julho de 2020]

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No final do século XIX, eram frequentes as turnês de companhias de ópera europeias pela América
do Sul. Em 1886, uma delas ensaiava no Rio de Janeiro para apresentações de Aida, de Giuseppe
Verdi. O compositor brasileiro Leopoldo Miguez, maestro contratado para as récitas, entrou em
conflito com os músicos, que exigiam sua saída. Sem acordo e sem encontrar um bom substituto às
vésperas da estreia, a orquestra sugeriu que um de seus membros assumisse a batuta.

O violoncelista Arturo Toscanini (1867-1957), então com 19 anos, subiu ao pódio de improviso e
comandou de cor a obra, recebendo aclamação do público. O músico regeu outros 18 títulos até o
final da turnê, e o incidente no Rio garantiu ao mundo musical o surgimento daquele que é
considerado por alguns o maior maestro do século XX.

Toscanini regeu até os 87 anos e era conhecido por seu perfeccionismo e domínio das obras que
dirigia, e por ser extremamente exigente com os músicos. Em mais de seis décadas de atuação, foi
diretor do Teatro alla Scala de Milão, do Metropolitan Opera de Nova York, do Festival de Salzburg
e da Filarmônica de Nova York.

A escola de regência de Arturo Toscanini foi a cadeira de instrumentista da orquestra, onde pôde
conhecer o repertório e trabalhar diretamente com compositores como Verdi, Puccini e
Leoncavallo. Era um maestro temido e centralizador, um perfil que está francamente em desuso no
século XXI, embora seja um típico representante da regência no século XX. Toscanini, aliás, ajudou
a forjar o perfil autocrático e heroico que o crítico britânico Norman Lebrecht explorou em seu
livro O mito do maestro.

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O violoncelista Arturo Toscanini (1867-1957)


forjou-se maestro no palco. Imagem: Reprodução

Atualmente, a regência é uma das áreas mais prestigiosas da atividade musical. A formação
musical voltada especificamente para a atuação como maestro, no entanto, é bastante recente e
reflete a progressiva especialização pela qual toda atividade musical passou, processo em que
foram se desmembrando as funções de compositor, instrumentista e regente. Para entendermos
como se chegou a essa configuração, é necessário recuar no tempo até o estabelecimento da função
do maestro.

Se a história da música de concerto pode ser contada ao longo de, ao menos, cinco séculos, a efetiva
existência de maestros, da forma como os conhecemos hoje, é bem mais recente. Ela data de
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meados do século XIX – ou seja, apenas algumas décadas antes da improvisada estreia de
Toscanini.

No início do século XV, as performances do coro da Capela Sistina, no Vaticano, eram


sincronizadas batendo-se um rolo de papel para manter uma pulsação fixa que fosse audível a todos
os cantores. Mestre do barroco francês, Jean-Baptiste Lully trabalhou a maior parte da vida na
corte de Luís XIV. Em janeiro de 1687, conduzia um Te Deum marcando o tempo com um grande
bastão que batia no chão. Num descuido, uma das batidas atingiu seu próprio pé, causando uma
ferida que gangrenou e o levou à morte.

Além do rolo de papel e do bastão – utilizados estritamente para marcar o tempo – na época de
Bach e Haendel (do final do século XVII a meados do XVIII), existia a figura do mestre de capela, a
quem cabia escrever música para ocasiões determinadas – casamentos, funerais, festas religiosas –
bem como organizar a apresentação e participar dela como intérprete, ao mesmo tempo em que
liderava o grupo a partir de seu instrumento – o órgão ou o cravo. Era, portanto, a figura do
compositor-intérprete.

Concomitantemente, na Ópera de Paris, a posição do maestro recaiu sobre o spalla (o violino


principal de uma orquestra), que combinava sua função de primeiro violino com a de manter o
conjunto tocando unido. Durante todo esse tempo, contudo, o regente era entendido como um dos
integrantes do conjunto, que desempenhava um papel-chave – o de garantir que todos tocassem
juntos. A ideia de liderar era secundária e a de impor sua concepção artística praticamente
inexistia.

Há controvérsias sobre quem teria sido o primeiro músico a utilizar uma batuta: talvez Louis Spohr
(1784-1859), em 10 de abril de 1820, quando conduzia sua segunda sinfonia com a Sociedade
Filarmônica de Londres; ou ainda Carl Maria von Weber (1786-1826), na estreia de sua ópera
Euryanthe, em Viena, em 1823.

A batuta oferecia uma vantagem dupla sobre os métodos precedentes: eliminava o barulho causado
pelo rolo de papel ou o bastão (com o passar do tempo, esse barulho foi considerado uma intrusão
inadmissível durante a performance) e, além disso, ao ser manuseada de pé à frente do conjunto,
era visível mesmo aos músicos que não se sentavam nas primeiras fileiras.

Porém, mais do que resolver aspectos práticos, a batuta simbolizou a progressiva introdução de
questões que se tornariam centrais na forma de se fazer música no século XIX. Weber, por exemplo,
defendia a ideia de que o regente tinha um papel mais importante a desempenhar do que manter
todos tocando juntos: cabia a ele fazer a música expressar emoção, manipulando suavemente o
andamento. O compositor, no entanto, estava à frente de seu tempo, pois falava num momento em
que as orquestras mal prestavam atenção aos maestros.

O século XIX criou um novo tipo de músico: o compositor-regente, como o próprio Carl Maria von
Weber e, posteriormente, Hector Berlioz, Felix Mendelssohn e Richard Wagner. Os sucessores de
Weber, pouco a pouco, assumiram o controle total da performance e trouxeram para o trabalho do
regente um ponto de vista criativo individual.

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Hector Berlioz foi pioneiro em utilizar a grade


completa de uma partitura. Imagem: Reprodução

Mais do que isso: quando os regentes conseguiram se estabelecer como líderes de uma
performance, eles foram responsáveis por moldar a forma como concebemos os concertos ao vivo
até hoje. Mendelssohn, por exemplo, conseguiu reabilitar a música de Bach, então considerada
antiquada e acadêmica – o que por extensão levaria progressivamente as salas de concerto a
apresentarem cada vez menos música contemporânea. Já o francês Hector Berlioz foi um dos
primeiros a utilizar a grade completa de uma partitura (contendo todos os instrumentos); também
introduziu os ensaios de naipes (ou seja, ensaios separados para percussão, cordas, sopros e
metais) e era bastante severo com as mínimas flutuações de afinação. Richard Wagner, por sua vez,
conseguiu impor o que Weber tentara – as sutis oscilações de tempo que davam à interpretação de
uma obra um caráter bastante pessoal. Wagner foi o grande responsável por moldar o papel do
maestro como aquele que impõe sua própria visão de uma peça a sua execução. Berlioz e Wagner,
aliás, escreveram os dois primeiros ensaios dedicados à arte da regência.

Outro compositor que marcou o nascimento dos grandes regentes e ajudou a moldar a forma atual
dos concertos foi Gustav Mahler. Ao assumir a Ópera de Viena, em 1897, Mahler passou a proibir a
entrada após o início do espetáculo, bem como o aplauso nas pausas entre os movimentos de uma
obra. Foi ainda fundamental para fixar a disposição dos músicos da orquestra como a conhecemos,
e também foi dele a ideia de diminuir a luz da plateia durante uma apresentação.

Foi assim, rearranjando as performances orquestrais e tornando-se um elo fundamental entre


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compositor, intérprete e público, que os maestros adquiriram estatura e prestígio inigualáveis


entre os músicos.

FORMAÇÃO EM REGÊNCIA
Junto à crescente importância desses profissionais, surgiram, no início do século XX, os primeiros
cursos destinados a formar regentes. O Conservatório de Paris instituiu suas classes de direção
orquestral em 1914. No Brasil, o mais antigo curso de regência está na Escola de Música da UFRJ e
existe desde 1931, tendo como primeiro professor o maestro Walter Burle-Marx.

A formação profissional de um regente é um processo complexo, que demanda tempo e


investimento: além de excelente educação musical (incluindo domínio sólido de algum
instrumento e noções gerais de todos os instrumentos de uma orquestra), conhecimento amplo do
repertório e das diferentes estéticas de cada período, um regente em formação precisa de um
elemento primordial: uma orquestra que sirva de laboratório, de espaço para seu treinamento.

O curso de regência nasceu ligado ao de composição. O bacharelado em Composição e Regência,


usualmente com seis anos de duração, é algo que está sendo revisto apenas em tempos recentes.
Para o maestro Lutero Rodrigues, professor do curso de Regência Orquestral da Unesp, essa
estrutura tem suas raízes na própria organização da música de concerto até o século XIX e parte da
crença de que, para ser maestro, “era preciso ser músico primeiro”. Nesse sentido, a composição
seria a melhor maneira de se aprofundar na matéria musical. “A composição seria um estudo
aprofundado da música, enquanto a regência seria uma forma prática, uma aplicação desse
estudo”, explica. “Bruno Walter (famoso maestro alemão) estudou composição e se tornou regente,
da mesma forma que Alberto Nepomuceno regeu a Filarmônica de Berlim na conclusão do curso de
Composição. Associar a regência à composição é uma tradição antiga que foi mantida em muitos
países. Só pouco a pouco é que o estudo da regência foi ganhando vida própria.”

No caso específico da Unesp, o desmembramento entre as áreas aconteceu com uma reforma
curricular finalizada em 2008 e que não apenas dotou a regência de um curso próprio, com cinco
anos de duração, como ainda a subdividiu em duas áreas: orquestral e coral. É durante o curso que
os alunos têm a oportunidade de escolher a área.

Vindos dos estados de São Paulo e do Amazonas, Maíra Ferreira e Hilo Carriel são dois jovens
regentes que ilustram a formação e os desafios da área no Brasil.

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Lutero Rodrigues, professor do curso de Regência Orquestral


da Unesp. Imagem: Divulgação

Natural de Itacoatiara, Hilo iniciou os estudos musicais numa igreja pentecostal em Manaus, aos
seis anos de idade. Aos 12 começou a estudar piano e seguiu tocando teclado nos cultos da igreja.
“A escolha do curso superior foi incentivada pela minha professora. Ela sugeriu que eu estudasse
regência, pois eu poderia continuar tocando piano e teria uma visão mais ampla da música.” Ele
seguiu o conselho e cursou bacharelado na Universidade do Estado do Amazonas. Concluído o
curso em 2011 e “já fascinado pelo mundo da regência”, Hilo sabia que precisava continuar se
aperfeiçoando.

“Em 2012, fiz um módulo de pós-graduação em regência de grupos vocais e instrumentais com


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ênfase na música do século XX com o maestro Eduardo Lopes, no Conservatório Brasileiro de


Música, no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que saí de Manaus para estudar regência”, conta.

O passo seguinte foi se preparar para o processo seletivo do Festival de Campos do Jordão, em
2014. Hilo foi selecionado como bolsista, e sua participação gerou o convite para reger a estreia da
Suíte Caymmi, homenagem ao centenário de Dorival Caymmi escrita por Dori Caymmi para a
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Nos anos seguintes, aproveitou todas as
iniciativas existentes para o aperfeiçoamento de um maestro no Brasil, como o workshop de
regência da Filarmônica de Goiás; o seminário de regência da Orquestra Experimental de
Repertório; e o Laboratório de Regência da Filarmônica de Minas Gerais. Finalmente, entre 2017 e
2019, cursou mestrado em Regência, no Peabody Conservatory da Universidade Johns Hopkins, na
classe de Marin Alsop.

Nascida em Botucatu, no interior de São Paulo, Maíra Ferreira sempre teve no pai, músico de
bandas populares, seu maior incentivador. Aos cinco anos, começou a estudar piano e, aos nove,
ingressou no Conservatório de Tatuí, importante polo de formação musical no interior do estado
mantido pelo governo. “Meu pai quis dar aos filhos a oportunidade que ele não teve de estudar
música seriamente”, explica ela.

Ao terminar o conservatório, Maíra iniciou o curso de Piano da Unicamp, ao mesmo tempo em que
passou a dar aulas como voluntária num projeto social de sua cidade. “Um dia, estava passando e vi
professoras ensaiando um coro de crianças bem-desafinado. Me ofereci para ajudar no piano, deu
certo e me perguntaram se eu não queria montar um coral. Foi assim que descobri a profissão”,
revela. Maíra estava no segundo ano da graduação e, aos poucos, passou a fazer as matérias eletivas
do curso de regência junto com o de piano. “Acabei cursando uma modalidade combinada e me
formei em Piano e Regência.”

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Guilherme Mannis, regente titular da Orquestra Sinfônica de Sergipe.


Imagem: Kristina Gonçalves/Divulgação

Seu primeiro emprego profissional foi com os coros infantil e juvenil do Instituto Baccarelli, um dos
mais importantes projetos de inclusão social por meio da música do Brasil, sediado na favela de
Heliópolis, em São Paulo. Com os grupos, participou de um encontro de corais em Indianápolis, nos
Estados Unidos, onde conheceu Henry Leck, reputado professor e maestro da área coral. Voltou
para fazer um curso de verão e decidiu que queria cursar mestrado em Regência Coral sob sua
orientação, o que ocorreu entre 2013 e 2016, na Butler University. “Consegui uma bolsa de estudos
por ser pianista, já que havia muita necessidade de pianistas correpetidores (os que acompanham
ensaios de corais e cantores). O que também foi ótimo para meu aprendizado, pois atuava com os
grupos corais, em ensaios de ópera, orquestra e aulas de canto. Tudo isso enquanto observava
diferentes regentes trabalhando. Foi uma experiência muito rica.”

Maíra e Hilo têm idades próximas (33 e 29 anos, respectivamente), além de experiência de estudos
parecida. Também compartilham opiniões similares sobre aspectos de sua formação e atuação
profissional. Para ambos, a maior dificuldade de um estudante de regência está na falta da prática
em frente a uma orquestra – são poucos os cursos que dispõem de uma orquestra laboratório na
qual os alunos possam treinar.

Esse aspecto é, de longe, o mais mencionado por toda a categoria. Guilherme Mannis, regente
titular da Orquestra Sinfônica de Sergipe há 14 anos, assumiu o posto com 26 anos de idade, depois
de formar-se em Regência pela Unesp e, segundo ele, participar de “todos os festivais e cursos

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possíveis”, no Brasil e no exterior. Aperfeiçoou-se ainda com os maestros John Neschling e Isaac
Karabtchevsky. “Os cursos de regência, em sua maioria, são desestruturados e não consideram a
prática de regência como veículo fundamental para a formação”, afirma. “Posso assegurar que
muitos cursos universitários brasileiros e estrangeiros, de graduação e pós-graduação, inclusive,
oferecem possibilidades mínimas de prática aos maestros aprendizes.”

De fato, essa falta de prática da qual se ressentem os brasileiros também foi um problema na
formação da italiana Valentina Peleggi – jovem regente que participou como estudante do Festival
de Campos do Jordão, em 2014, chegou a titular do Coro da Osesp e regente em residência da
orquestra – tanto na Itália, onde iniciou os estudos, quanto na Inglaterra, onde cursou mestrado na
Royal Academy of Music. “Eu compensava assistindo a todos os ensaios que podia. Aprendi como
um regente pode modificar a sonoridade de uma orquestra, observava o que ele pedia, como pedia.
No intervalo, muitas vezes ia tirar dúvidas com os maestros. Ao mesmo tempo, montei uma
orquestra com os colegas estudantes para praticar. Foi importante para mim, porque naqueles
momentos eu podia experimentar com eles o que assistia nos ensaios.”

VIDA PROFISSIONAL
Se a formação estudantil é concluída com uma lacuna na prática orquestral, o início da vida
profissional não facilita a situação. Desde o início, um jovem regente precisa passar por uma
espécie de funil, já que há muito mais profissionais do que postos disponíveis. Para Lutero
Rodrigues, o estabelecimento profissional de um regente passa por, no mínimo, dois estágios.
“Recém-saído da universidade, o jovem vai trabalhar em instituições ligadas ao ensino, como
projetos sociais, orquestras semiprofissionais etc. É uma prática que possibilita um contato
intensivo com uma orquestra ou coral, algo que ele não teve na universidade e que, por isso, é
fundamental”, acredita. “Mais tarde, chega-se ao segundo estágio, o daqueles que conseguem ser
regentes dos grupos profissionais. Apenas alguns é que chegarão lá”, completa.

Hilo Carriel acredita que a maior dificuldade para um profissional recém-formado no Brasil é a falta
de concursos para jovens regentes e a ausência da posição de maestro assistente. “Os cargos de
assistentes, quando existem, são, na verdade, de regentes associados”.

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Hilo Carriel começou seus estudos musicais aos seis anos, no Amazonas.
Imagem: G B Robertson/Divulgação

O pequeno número de conjuntos orquestrais e corais, e sua concentração nos grandes centros, são
outro desafio. “O Brasil segue com um infeliz panorama: dentre as 27 unidades federativas, 12
simplesmente não possuem orquestra estadual”, afirma Mannis. “Pouquíssimas universidades têm
orquestra, diferentemente de países semelhantes a nós, como o México e a Argentina. Jovens
seguem buscando grandes oportunidades nos saturados centros artísticos, enquanto outras
localidades seguem absolutamente à mercê de ações culturais fundamentais”, completa.

“Acho que, no Brasil, a situação é cruel”, afirma Maíra Ferreira, ao comparar o campo de trabalho
de um jovem regente no país com o dos colegas com os quais cursou o mestrado. “Uma amiga virou
ministra de música numa igreja. Tem estrutura para trabalhar, rege coros infantis, adultos, música
de casamento etc. Outro colega trabalha numa escola regendo grupos – orquestra, banda e coral –,
tem um bom salário e está super satisfeito.” Ainda segundo ela, “todos os meus colegas dos EUA
passaram por uma seleção. Já aqui é preciso ter a sorte de alguém ter visto e gostado do seu
trabalho, pois tudo acontece por indicação”.

ALTERNATIVAS DE FORMAÇÃO
Algumas iniciativas de nosso meio musical foram pensadas para aprimorar a formação de jovens
regentes, bem como suprir a tão mencionada falta de experiência prática com uma orquestra. Uma
delas é o Laboratório de Regência da Filarmônica de Minas Gerais, criado pelo maestro Fabio
Mechetti e que realiza, neste 2020, sua 12ª edição. Ele explica que a ideia nunca foi a de oferecer
embasamento técnico para reforçar ou suprir aquilo que já deveria ter sido aprendido num curso
superior. A proposta é dar aos jovens regentes a oportunidade de trabalhar com uma orquestra
profissional de alto nível na preparação e realização de um concerto.

“O que se observa em boa parte dos jovens regentes brasileiros é a dificuldade, primeiramente, de
comunicar gestualmente as suas intenções, ‘escutar’ o que está acontecendo e saber direcionar
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seus comentários ou seus próprios gestos a fim de alcançar o objetivo final”, esclarece Mechetti.
Além disso, “a própria convivência entre jovens mais ou menos da mesma idade, dividindo
experiências semelhantes, num espírito de diálogo com músicos da orquestra e, logicamente,
comigo, mostra-se um instrumento valioso que esses regentes têm em suas vidas”.

Outra ação nesse sentido é a classe de Regência da Academia da Osesp, criada por iniciativa da
maestrina Marin Alsop em 2016. Também aqui, o foco são alunos já formados. Durante um ano de
curso, eles têm três tipos de atividades: aulas de técnica de regência (com Wagner Polistchuk,
trombonista e maestro) e disciplinas teórico-musicais; masterclasses com maestros convidados; e
prática de regência com a Osesp, grupos de câmara da Academia e orquestras convidadas.

O maestro Fabio Mechetti (centro) coordena o Laboratório de Regência da


Filarmônica de Minas Gerais. Imagem: Bruno Brandão/Divulgação

“Comparado aos cursos tradicionais universitários, podemos dizer que a imersão no ambiente de
excelência técnica e musical da Osesp é transformadora”, afirma Rogério Zaghi, coordenador dos
programas educacionais da Fundação Osesp. Regularmente, os alunos preparam uma ou mais
peças para apresentar em masterclasses de maestros convidados da temporada da Osesp (ao longo
do ano, eles se apresentarão a ao menos oito maestros diferentes).

Já na conclusão do curso, todos têm a oportunidade de reger um concerto na Sala São Paulo com
um grupo convidado, geralmente a Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, parceira do projeto.
Segundo Zaghi, “além de todas as atividades, os alunos também acompanham toda a temporada da
Osesp (cerca de 32 semanas), assistindo a ensaios e concertos. Trata-se de uma oportunidade única
na América Latina, e talvez haja poucas similares no mundo”.

MULHERES NA REGÊNCIA
Ligia Amadio é um dos mais importantes nomes da regência brasileira. Com carreira internacional,
esteve à frente de grandes conjuntos e, atualmente, é titular da Orquestra Filarmônica de
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Montevidéu. Além disso, é das pouquíssimas regentes brasileiras do sexo feminino a ter
conseguido desenvolver uma carreira de destaque num campo em que o predomínio masculino é
avassalador.

Ela conta que deu aulas de regência no Festival de Música de Brasília e, em 2016, ministrou um
curso particular em sua casa para um grupo de regentes. “Nesse curso pude realizar aquilo que eu
idealizo para um curso de regência, ao menos no que diz respeito à especificidade de nossa atuação
profissional, justamente dando atenção a alguns temas que não são observados nas universidades e
nos diversos cursos”, afirma. Entre esses temas, estariam a “problemática enfrentada pelo regente
na prática da profissão, incluindo a liderança e psicologia; como abordar e estudar uma partitura;
análise das partituras tendo em vista a interpretação, história da música e da cultura; estudo da
biografia e das interpretações dos grandes regentes da história”.

Para ela, a falta de prática orquestral é apenas uma entre as lacunas da formação tradicional. “Claro
que os estudantes de regência também se ressentem da falta de prática e oportunidade de trabalhar
com grupos musicais, como coros e orquestras. Mas, acredito que uma parte importante da
responsabilidade de sua formação só pode ser realizada pelo próprio estudante interessado:
estudar profundamente os textos musicais, seus autores e a cultura de sua época e assistir a
ensaios de regentes experimentados.”

Ligia Amadio, titular da Orquestra Filarmônica de Montevidéu.


Imagem: Lucía Martinez/Divulgação

A brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) foi uma das primeiras mulheres, mesmo em termos
internacionais, a subir ao pódio de uma orquestra, ainda na segunda metade do século XIX, no Rio
de Janeiro. O fato de existir uma mulher regente quase ao mesmo tempo em que a atividade se
profissionalizava, no entanto, não significou uma equidade de oportunidades. Uma pesquisa de
2016 da League of American Orchestras apontou que, nas orquestras norte-americanas, a
proporção de mulheres no pódio é de uma para cada quatro homens (ou seja, apenas 20% do total
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dos concertos são comandados por mulheres). Já a proporção de mulheres regentes que também
atuam como diretoras musicais de conjuntos é de apenas uma para cada 10 homens (menos de 10%
do total).

As razões para esse desequilíbrio são históricas: sempre houve grande resistência à entrada de
mulheres nas orquestras, mesmo como instrumentistas (há menos de 40 anos, as filarmônicas de
Berlim e Viena não aceitavam mulheres em suas fileiras). O fato de a regência ser uma área mais
concorrida, prestigiada e uma posição de comando só agrava a situação.

Lutero Rodrigues informa que, na Unesp, há praticamente um equilíbrio no número de homens e


mulheres que entram na universidade para cursar Regência. No entanto, no momento da formatura,
os homens sempre são maioria. Rogério Zaghi, por sua vez, afirma que, desde que a classe de
regência da Academia da Osesp foi instituída, pouco menos de 25% de mulheres passaram pelo
curso. Fatores diversos desestimulam as jovens a escolher a carreira de regente, e todo tipo de
dificuldade faz com que elas desistam mais do que eles, ao longo do caminho.

Ainda assim, conforme nota Ligia Amadio, “o meio da regência para as jovens maestrinas de hoje é
infinitamente mais aberto e receptivo do que aquele que as regentes de minha geração tiveram que
enfrentar; e nem falar sobre as épocas anteriores”. E completa: “Creio que minha geração
conseguiu abrir as portas e consolidar o respeito e a receptividade para as futuras regentes. Sinto-
me realizada por fazer parte desse momento e ver as enormes transformações que estão sendo
possíveis. A partir de agora, a mulher que tenha vocação para a regência poderá exercê-la com
naturalidade, sem ser vista como uma exceção ou uma anomalia”.

DESAFIOS E SONHOS
Conseguir uma formação em regência com a devida experiência prática é, portanto, um desafio
para os jovens músicos. Estabelecer-se profissionalmente é igualmente desafiador. Valentina
Peleggi acredita que os jovens regentes devem ir atrás de novas oportunidades. “Temos que ser
propositivos. Descobri que é muito difícil alguém chegar lhe oferecendo um trabalho ou um posto.
Você precisa criar relações profissionais e projetos, além de estar sempre estudando.” Valentina foi
recém-nomeada diretora musical da Orquestra Sinfônica de Richmond (EUA), além de ter sido
escolhida como jovem regente visitante da English National Opera de Londres, por meio do
programa Mackerras Fellowship.

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Valentina Peleggi foi recém-nomeada diretora musical da Orquestra Sinfônica


de Richmond (EUA). Imagem: Divulgação

Já durante o mestrado nos Estados Unidos, Hilo Carriel pôde trabalhar intensamente como
regente, com grupos de música contemporânea, dirigindo pequenas óperas, regendo a Peabody
Symphony Orchestra e o Peabody Singers, além da Sinfônica de Baltimore. Mais recentemente, ele
foi selecionado para integrar o grupo de regentes assistentes do maestro venezuelano Gustavo
Dudamel, na Orquestra Filarmônica de Los Angeles, dentro do Dudamel Fellows Program, que tem
como objetivo dar oportunidade a jovens e promissores regentes de todo o mundo. Hilo regeu as
quatro últimas apresentações da Filarmônica de Los Angeles antes da paralisação das atividades
decorrente da pandemia da Covid-19.

“Posso dizer que estou onde nunca imaginaria estar. Trabalhar nessa temporada com a Filarmônica
de Los Angeles é definitivamente um marco em minha ainda bastante curta carreira”, afirma ele.
Sobre o futuro, Hilo afirma que seu sonho “é chegar em um ponto da minha carreira em que eu
tenha recursos suficientes para estabelecer polos de cultura e serviços humanitários no Amazonas.
É uma terra de talentos inacreditáveis, que definitivamente merecem mais investimento.
Individualmente, gostaria de conhecer o mundo como regente convidado de orquestras e corais”.

Hilo considera que um momento-chave em sua carreira foi ter participado do Festival de Campos
do Jordão e conhecido Marin Alsop, “que foi a pessoa que mais acreditou no meu potencial e não
mediu esforços para me ajudar em minha trajetória”. Da mesma forma, Maíra Ferreira também
considera que um momento crucial em sua carreira foi quando conheceu a maestrina Naomi
Munakata (uma das regentes corais mais importantes do Brasil, que faleceu recentemente em
decorrência da Covid-19).

“Quando a vi pela primeira vez, quase morri, era um ídolo para mim”, relembra Maíra. O ano era
2016, Naomi estava assumindo o Coral Paulistano, do Theatro Municipal de São Paulo, e decidira
dar oportunidades a jovens regentes. Maíra foi a primeira, mas o estágio inicial de três meses como
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assistente do coro foi se estendendo, até que ela acabou efetivada no posto. “Apesar da minha
experiência anterior, eu não sabia o que era trabalhar num coro profissional, que ensaia todos os
dias.

Meu maior medo era não saber o que corrigir num grupo desse nível. Naomi, percebendo minha
insegurança no início, foi me orientando, dizendo o que esperava que eu fizesse. Aos poucos, fui
ficando mais à vontade e ganhando sua confiança.”

Maíra, que segue como assistente do Coral Paulistano, é ainda regente do Coro Adulto da Escola
Municipal de Música de São Paulo e do Coral Avançado do Instituto Baccarelli. Ela diz ter muito
claro que quer seguir trabalhando com grupos corais. “Tenho um lado de professora, e um regente
coral tem algo de professor, mesmo num grupo de profissional. Além disso, num coro, a construção
do som está muito mais na mão do regente do que numa orquestra.”

Aos 37 anos e assumindo seu primeiro posto como titular de orquestra, Valentina Peleggi diz que
nunca pensou em planos para a carreira e que gosta de olhar para o percurso. “Gosto de pensar que
a trajetória é uma construção. Então, esse novo cargo é mais um passo. Penso em objetivos a longo
prazo, mas nunca em torno de lugares, de chegar em tal orquestra, ou mesmo executar determinado
repertório. Meu objetivo é buscar a qualidade, como artista e como pessoa. Fora isso, espero estar
aberta a todo tipo de oportunidade, e poder escolher o que quero abraçar.”

CAMILA FRESCA, jornalista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela ECA-USP, colabora com
veículos como Revista Concerto e Folha de S.Paulo.

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