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SEGUNDA/LÍNGUA MATERNA
Um pouco de história
É assim que os professores de línguas, que não têm - nem podem ter - da linguística, dos seus
avanços e das suas limitações um conhecimento muito profundo, que não têm podido
acompanhar as polémicas em torno das teorias da aprendizagem das línguas, sentem actual-
mente um certo vazio na sua formação e nas suas convicções teóricas que conduzem
inevitavelmente a um sentimento de insegurança na sua prática pedagógica.
É por isso que o momento presente é um momento não de incerteza, mas sem certezas, sem
verdades absolutas e inabaláveis, é um tempo de reflexão e de análise que permita evitar os
erros do passado e perspectivar o futuro com confiança.
As alterações significativas que se produzem com o MD não afectam aquela relação. De facto,
o professor continua a ocupar o centro do processo de ensino. A língua de comunicação já não
é a língua materna, mas antes a língua que se ensina. O ensino reveste-se de um carácter mais
prático. Mas a imagem que nos fica do professor deste período é a de um verdadeiro actor
capaz de recriar no espaço da aula todas as situações que lhe permitam utilizar a maior
variedade de elementos linguísticos. Os retratos do professor desta escola não raro configuram
o caricatural: para empregar a expressão "parti uma perna", aparece na aula com a perna
envolvida em gesso… A contrapartida deste dinamismo teatral do professor é o papel de
espectador passivo reservado ao aluno.
Nos MAV é o método que adquire o papel de relevo antes de desempenhado pelo professor.
Por método entende-se aqui, como já vimos, o manual elaborado de acordo com os dados
fornecidos pela linguística, pela psicolinguística, etc., logo com uma dosagem e uma
progressão rigorosas dos elementos linguísticos. Desde que bem utilizado, o método seria, só
por si, a garantia da eficácia. O professor não é mais do que o executante de um programa
previamente estabelecido, standardizado e materializado nos célebres momentos da aula de
língua: a. controlo dos conhecimentos anteriormente adquiridos; b. estudo de novos elementos
linguísticos: b. 1. apresentação; b.2. reemprego; b.3. apropriação; b.4. fixação, etc. Tudo isto
rigorosamente cronometrado e invariavelmente repetido, lição após lição. A iniciativa do
aluno, mais uma vez, era extremamente limitada. Para ele, as palavras de ordem eram imitar,
repetir. Criar, pensar, eram termos banidos da aula de língua, pelo menos durante as primeiras
etapas da aprendizagem e até bastante tarde.
O momento actual veio colocar, finalmente, o sujeito que aprende no centro do processo de
ensino e aprendizagem. Não é por acaso que se fala mais de aprendizagem e menos de ensino.
Trata-se de dar uma maior autonomia e uma maior participação àquele que aprende, quer na
definição de objectivos e de conteúdos quer na organização de trabalho. Ao professor compete
o papel de dinamizador e de facilitador da aprendizagem. A didáctica das línguas aponta hoje
para a individualização do ensino, para usar um termo que já não é novo no domínio da
pedagogia, mas que foi bastante ignorado em favor de um ensino de massas ainda que as
necessidades e objectivos fossem consideravelmente diversificados.
Para esta nova orientação contribuiu decisivamente o aparecimento de um público novo que
atingiu proporções enormes nas últimas décadas. Trata-se dos adultos, de que se salientam os
turistas, os indivíduos que procuram uma formação técnica e profissional em país estrangeiro,
e, sobretudo, os emigrantes. O fenómeno migratório é uma característica do momento presente
que marca de forma decisiva a história do ensino das línguas.
Se, por um lado, a sociolinguística focaliza o sujeito falante como elemento preponderante no
processo de comunicação, o aparecimento desta nova clientela obriga a repensar o ensino das línguas
em função de novas necessidades, interesses e objectivos. Os adultos não aceitam os métodos e os
conteúdos da escola. Recusam as situações artificiais de comunicação concebidas para crianças e
adolescentes. Repudiam o modelo uniforme e inexpressivo da linguagem dos textos pedagógicos.
Reclamam um ensino que responda, de imediato aos seus problemas concretos.
Deste modo, as novas orientações assentam, antes de mais, na diversidade heterogeneidade dos
públicos visados e na sua individualidade, de facto, de cada sujeito que aprende. Desde as aptidões e
inteligência às expectativas, necessidades e motivações, desde as blocagens e handicaps ao estatuto
social, desde o meio à situação económica, etc., tudo são factores que condicionam a aprendizagem e
reclamam a sua diversificação. Como admitir os métodos pré-fabricados sem conhecer os mesmos
conteúdos, a mesma metodologia, o mesmo ritmo para crianças e adolescentes em situação escola,
adultos que aprendem uma língua estrangeira por razões de ordem socioprofissional ou ainda para
emigrantes cuja sobrevivência depende da aprendizagem da língua do país onde trabalham? Em
síntese, podemos dizer que a didáctica actual se pauta pelas seguintes orientações:
1 - Análise e definição dos vários tipos de públicos que recorrem à aprendizagem das línguas:
adultos – turistas, indivíduos que procuram uma formação socioprofissional em país estrangeiro,
emigrantes jovens que iniciam o estudo de uma língua na Universidade; crianças e adolescentes que
estudam uma ou mais línguas no âmbito da instituição escolar, etc.
2 - Análise das necessidades concretas de cada um destes grupos.
3 - Definição de objectivos que respondam a essas necessidades.
4 - Organização do ensino em função das necessidades e dos objectivos do sujeito que aprende.
Ao contrário do que aconteceu em períodos anteriores, não se trata, portanto, de encontrar um método
que se aplique em todas as situações de aprendizagem e indeferencialmente para qualquer dos
públicos visados, antes se procura tomar como ponto de partida a individualidade do sujeito que
aprende, as suas necessidades concretas, os seus objectivos específicos, as circunstâncias que
condicionam a sua aprendizagem. Finalmente, a didáctica das línguas coloca o sujeito que aprende no
centro do processo educativo.
A didáctica das línguas não pode ignorar estes problemas. A sua reflexão leva-nos
a perguntar qual será mais importante para a eficácia da comunicação: a correcção
gramatical ou o conhecimento das regras psicológicas, sociais e culturais que
condicionam os tipos de discurso?
A didáctica actual, centrando a aprendizagem sobre o sujeito que aprende, leva em
linha de conta a diversidade e heterogeneidade não só das clientelas mas também das
situações de aprendizagem. Quer os objectivos a longo prazo quer os objectivos
parciais de cada etapa, de aprendizagem são definidos não em função de conteúdos ou
de programas, mas em termos de funções e de situações de comunicação, de noções, de
comportamentos a adquirir.
Não o se trata, portanto, de armazenar conhecimentos linguísticos em si e por si -
gramática, vocabulário, etc. -, mas de aprender a desempenhar certas tarefas que envol-
vem comportamentos linguísticos: saber falar ao telefone, saber enviar um telegrama,
saber agradecer, censurar, recusar, etc. Trata-se, enfim, de dar àquele que aprende os
meios indispensáveis para responder a tal ou tal situação de comunicação que esteja nos
seus projectos de vida ou de trabalho e que ele próprio define como objectivos a atingir.
Deste modo, a progressão é definida de acordo com o público visado, as suas
necessidades e interesses, e é suceptível de ser alterada em qualquer momento.
A pedagogia dos MAV assentava numa progressão constituída por etapas ou níveis de
aprendizagem que eram passagens obrigatórias: 1° grau, 2° grau, nível 1, nível 2
correspondem a conteúdos e estratégias que não se confundem nem podem inverter-se.
Actualmente reina um certo cepticismo quanto à rigidez de tal progressão. Sem excluir a
hipótese ou as possíveis vantagens de um tronco comum, levantam-se muitas dúvidas,
quer quanto à sua necessidade quer quanto ao seu conteúdo e dimensões. Ganha terreno
a hipótese de um sistema de ensino por unidades capitalizáveis, sem qualquer ordem
preestabelecida, a utilizar de acordo com as necessidades ou interesses daqueles que
aprendem. As experiências dos próximos anos dirão qual a melhor via para atingir a
competência mínima de comunicação numa língua estrangeira: a via de um tronco
comum a estabelecer de acordo com critérios ainda não definidos, ou a utilização de
unidades capitalizáveis logo desde a iniciação, sem outra ordem com prioridade que não
seja a ditada pelo sujeito que aprende.
Por meu lado, quanto aos adultos que aprendem em país estrangeiro, não antevejo qualquer
impedimento em começar por uma unidade como "ir ao mercado", "transportes", etc. Há
razões de sobrevivência que obrigam a ir direito às necessidades mais urgentes.
O desaparecimento do manual
O principal defeito dos livros de textos resulta, geralmente, de uma linguagem artificial
e de uma temática infantil e escolar. Aí se incluem os textos extraídos de revistas como
Passe-Partout, Quoi de neuf?, Feu vert - ressalvando um ou outro aspecto de
interesse - como algumas colecções de textos fabricados expressamente para o ensino
das línguas. Esta literatura artificial, atípica, "pasteurizada", não só não facilita a
aprendizagem como a limita consideravelmente. Aos textos fabricados preferem-se
hoje os documentos autênticos, isto é, produzidos sem qualquer intenção pedagógica.
São documentos com vida, actuais, que dizem respeito e despertam o interesse àqueles
que aprendem. Ao escolher um livro, o professor deverá portanto, recusar o artificial e
garantir a maior variedade, diversidade e autenticidade.
À criança que aprende a língua materna não precisa que lhe expliquem que há artigos,
substantivos, adjectivos, verbos, etc; que a frase tem sujeito, predicado e
complementos. O mesmo se passa com os emigrantes, que acabam por compreender e
falar uma língua estrangeira ao fim de um certo tempo de exposição à língua. De onde
se conclui que para aprender uma língua não é indispensável nem a utilização de uma
metalinguagem gramatical nem a explicitação de regras sobre o seu funcionamento.
O problema que se põe à didáctica das línguas é o de saber qual a estratégia mais
eficaz: a pura exposição à língua e à sua prática – ouvir, falar, ler, escrever; ou fazer
acompanha essa exposição e essa prática da metalinguagem e da explicitação das
regras? Qual o papel da língua materna no processo de aprendizagem de uma língua
estrangeira?
Teoricamente, o erro não tem lugar nos MAV. O isolamento máximo da língua a
ensinar, quer nos manuais quer em fita magnética, a prática exclusiva das formas
correctas - audição, repetição - através de um trabalho minuciosamente programado e
que exclui a utilização livre e espontânea da língua, conduziriam fatalmente à aquisi-
ção de hábitos e comportamentos linguísticos que seriam a reprodução fiel dos modelos
praticados. O aparecimento do erro teria de provir de uma falha no processo, de um
vício que era necessário impedir. O próprio facto de se considerar como uma doença,
como uma praga, supõe da parte do professor uma atitude punitiva, geradora de inibi-
ções da parte do aluno, sempre tentado a esconder as suas deficiências, em vez de
livremente as manifestar e tentar superar.
Os estudos dos últimos anos permitiram concluir que o erro não é apenas inevitável, ele
pode ser também da maior utilidade no plano pedagógico. Actualmente não se considera
um desvio, mas antes um índice de aprendizagem de um sistema transitório. De facto,
ele pode ser a prova de que a aprendizagem se processa nos moldes mais correctos e
eficazes quando a criança usa formas como fazi, trazi, isso prova que os seus
mecanismos mentais funcionam lindamente aplicando por analogia a mesma regra que
lhe permite utilizar comi, dormi, senti, ouvi. O mesmo se passa com o estudante de
francês quando emprega formas como vous disez, por analogia com vous aimez, vous
parlez, etc. Num e noutro caso já se atingiu um estádio de aprendizagem que permite a
criação linguística de acordo com regras de funcionamento da língua, mas ainda não se
atingiu o estádio que lhes permitirá discernir as restrições à aplicação dessas regras. Por
outras palavras, a aprendizagem faz-se por estádios sucessivos de estruturação do já
adquirido e a cada um desses estádios corresponde um sistema intermediário, ou
competência intermediária, que se define por oposição à competência definitiva, que é a
que se aproxima da do falante indígena.
Vista a esta luz, a análise dos erros pode dar-nos indicações preciosas, quer sobre a
evolução da aprendizagem quer sobre as insuficiências dos modelos descritivos. Quanto
ao primeiro aspecto, é a análise dos erros, mormente numa perspectiva individual e
longitudinal, que permitira melhorar a aprendizagem, no sentido de uma melhor ade-
quação dos objectivos imediatos, da progressão, do ritmo, à situação e às necessidades
do sujeito que aprende. No segundo caso, a análise dos erros permitirá a elaboração de
gramáticas pedagógicas que façam ressaltar o que não foi correctamente descrito.
A análise dos erros, das frases, e dos sistemas intermediários, estão na base de uma nova
estratégia de aquisição das línguas estrangeiras. Essa estratégia parte dos erros e
produções dos alunos, aceita esses erros como meio de reflexão do sistema da língua e
apela para a sua capacidade de correcção e autocorrecção. O professor, assumindo o seu
papel de facilitador da aprendizagem, como facilmente se depreende, terá agora perante
o erro não uma atitude de censura ou de punição, mas antes de análise construtiva de
que extraíra, sem dúvida, indicações preciosas para o seu trabalho.
A gramática contrastiva
Até há pouco tempo, considerava-se que a maioria dos erros na aquisição de uma
língua estrangeira se devia a interferências da língua materna. Preconizava-se, por
isso, uma comparação sistemática das estruturas das duas línguas, o que permitia, por
um lado, insistir numa pedagogia das diferenças e, por outro, adoptar uma estratégia
de antecipação que permitisse dotar os alunos dos meios linguísticos adequados antes
que a interferência funcionasse.
A análise dos erros permitiu situar a gramática contrastiva numa perspectiva
diferente e reduzi-la a proporções bastante mais modestas do que aquelas que
assumiu no quadro da pedagogia audiovisual. De facto, verificou-se que as crianças
que aprendem a sua língua materna dão os mesmos erros que os indivíduos que a
aprendem como língua estrangeira; verificou-se igualmente que estrangeiros de
várias nacionalidades, logo possuindo línguas maternas diversas, dão os mesmos
erros quando aprendem uma língua estrangeira comum; o que nos permite concluir
que a interferência se verifica tanto no plano intralinguístico como interlinguístico.
A gramática contrastiva ou diferencial que assenta em pressupostos linguísticos e
psicolinguísticos muito discutidos e em parte ultrapassados, e que surge com o
objectivo preciso de prever, explicar e prevenir os erros provocados pela
interferência da língua materna, deixou, deste modo, de estar no centro das
preocupações da didáctica das línguas. Por um lado, a influência da língua materna
não é tão geradora de erros como se pensava; por outro lado, as novas teorias sobre o
erro vão no sentido não de o excomungar e de o evitar mas antes de o considerar
como inevitável e necessário, finalmente, considera-se hoje que o processo de
aprendizagem vai passando por etapas sucessivas de estruturação dos conhecimentos
de que o erro é uma passagem obrigatória. Sendo assim, que lugar e que papel ficam
para a linguística contrastiva?
Actividades
1- Elaboração de um glossário.
2- Leitura do texto “ O erro”.
3.5 – O ensino da língua materna
A Língua Materna
Quando olhei para o tema que me foi proposto para este painel, falar da língua
materna, como lugar amado, na construção de uma cidade intercultural,
lembrei-me de quando era miúda e de como gostava que me propusessem
temas para fazer redacções na minha língua materna. E gostava, por uma
razão simples. É que essa língua fazia de tal modo parte de mim, que me
deixava todo o tempo do mundo para pensar, para sair dos espaços exíguos e
fechados da minha cidade de então. Será que a língua materna é um lugar
amado? Pensei. Quando nascemos, nascemos fadados para a linguagem.
Trazemos connosco uma faculdade inata que nos permite adquirir uma ou mais
línguas num curto espaço de tempo, desde que em contacto com elas. Com
menos de três anos já uma criança diz:
3
Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (ILTEC): http://www.iltec.pt/divling/index.html . 3 V.
http://www.feralchildren.com/en/showchild.php?ch=genie
4 Cf. http://www.iteachilearn.com/cummins/ 4
talvez 5 In Understanding cultures through their key words. Oxford: Oxford
University Press. 6 Tradução minha. 7 In « Le croisement des cultures».
Todorov, T. (ed) Le Croisement des cultures. Paris : Hérissey à Évreux :5-26. 8
Tradução minha. 5 possamos ainda, de vez em quando, descansar a angústia
ou a tristeza no nosso diálogo interior. Pegue-se agora numa criança, na sua
ingénua e total disponibilidade e mostremos-lhe que a sua língua, que ainda
cresce com ela, não serve para nada. Amputemos-lhe uma mão. Façamo-la
sentir que a palavra vôvô, pepé, papai, abuelito está tão longe e inacessível
quanto ele, o seu cabelo tão bom de enrolar e as suas estórias ao fim do dia.
Isso passa, dirão alguns. Breve se adaptarão à nova casa de uma língua só. E
o que não fica, ou fica, quando isso passar? Onde, quando e sob que forma irá
rebentar a raiva, a angústia, a inibição? Quantos pensamentos ficarão por dizer
e até por pensar? É aqui que temos de agir. Para construir a cidade aberta (a
que não é exígua nem fechada, como a minha cidade da infância) temos de
abrir espaço para dar futuro às memórias e ao saber (que, afinal, nem ocupa
lugar…). Há que encurtar as distâncias com os afectos. Mas não basta. As
línguas maternas, na pessoa das pessoas que as falam têm de ser defendidas.
E penso aqui em todas as línguas: orais e gestuais. Não andamos nós a
defender a língua portuguesa pelo mundo? Quero acreditar que o que nos
move, nessa luta, seja acima de tudo a defesa dos nossos falantes e de todos
aqueles que quiseram embarcar connosco, de motu próprio, no mesmo lugar
amado… Tratando-se de língua materna, trata-se de uma questão biológica e
não só social. Mais uma razão, pois, para socialmente agirmos. Como defender
então as nossas línguas, essas que ocupam hoje, em Portugal, quer
queiramos, quer não, o seu espaço na comunidade multifacetada em que
todos, 6 portugueses e não portugueses – desculpem o pessimismo ─ nos
últimos tempos tentamos sobreviver? Antes de mais, um pequeno reparo.
Sendo nós dotados de uma faculdade inata que, em condições normais, nos
permite adquirir qualquer língua ou conjunto de línguas; sabendo que a escolha
que nos foi dada de um certa língua, entre as 6 ou 7 mil que se falam no
mundo, é obra do acaso que nos fez nascer ou viver num certo lugar, pareceria
óbvio que todas as línguas são equivalentes, no sentido em que todas
cumprem os requisitos exigidos pelo bioprograma linguístico da espécie. Mas
não é. Infelizmente, para muitos, entre os quais se vêm contando alguns
responsáveis políticos, as línguas são hierarquizáveis, como o estatuto social,
as posses de cada um ou as carruagens dos comboios. Defender as línguas
maternas exige, pois, antes de mais, educação, muita educação9 . Temos de
investigar, divulgar, aprender e ensinar coisas tão simples e tão complexas
como o que é saber uma língua, qual a importância da língua materna e do
bilinguismo precoce no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos e no seu
bem-estar social, como é que as línguas reforçam a identidade, tanto do
indivíduo como do grupo, como é que o multilinguismo comunitário assumido e
valorizado, reforça a empatia e a capacidade de comunicar e de aprender com
os outros, alargando os conhecimentos e melhorando comportamentos, etc.
etc. Isso poderemos discutir no debate, com a certeza de que são muitas as
vantagens de acarinhar as línguas maternas: vantagens cognitivas, sociais,
culturais e linguísticas. Por agora, já que falamos de educação e que estamos
num Encontro promovido pela Associação de Professores de Educação
Intercultural, não resisto a uma pequena palavra sobre a defesa das línguas
maternas na Escola. 9 Citar Eduardo de Sá, sobre a difícil tarefa que os
primeiros filhos têm de educar os pais no desbravar da sua nova situação- 7
Como dizia eu, na apresentação pública do projecto Diversidade linguística na
Escola Portuguesa, a escola é o lugar “onde a sociedade desemboca na sua
forma mais desarmada e crua”. Direi também que é o lugar onde se tece a
trama invisível e imprevisível da sociedade presente e futura. Olhemos, pois,
para a escola e para a sua diversidade de dialectos, variedades sociais,
línguas; formas de estar, de pensar e de aprender; memórias, saberes e
desejos. É muito difícil para um professor gerir toda esta diversidade (de ordem
cultural, linguística e idiossincrática), diversidade tantas vezes silenciosa, que
ele sabe existir mas cujos contornos nem sempre tem tempo para investigar e
iluminar no contexto de aula, potenciando os lados bons e tentando mudar os
maus. Porque nem tudo o que é diverso é bom. À nossa escola, como à nossa
sociedade, chegaram, vindos com outras culturas, alguns valores,
comportamentos e formas de pensar que não podemos deixar de questionar,
para bem de todos. Penso, nomeadamente, em ideias e práticas punitivas da
mulher… Repare-se que digo questionar e não ignorar, esconder ou maltratar.
Porque o questionar implica diálogo e exposição das diferenças e nessa
exposição estamos todos no mesmo barco, sujeitos à mesma observação e
aos mesmos processos de mudança. E no entanto, não há uma única razão
sequer para classificarmos negativamente as línguas maternas alheias. Uma
língua não é boa nem má. É. Por outro lado, se trazer à superfície a cultura
silenciosa dos nossos alunos é tarefa difícil e por vezes melindrosa, não há
nada mais fácil e simples que deixar falar uma língua. Ao deixá-la falar,
deixamos também falar, em parte, a cultura que transporta. Se a escutarmos e
quisermos compreender, mesmo através da tradução, ou de simples
descrições gramaticais e dicionários que o mundo da informação global nos
põe hoje tão 8 rapidamente à disposição, estamos ao mesmo tempo a entender
(e a ajudar os nossos alunos a entender) o modo como cada língua interfere na
aprendizagem da língua portuguesa. Saberemos, por exemplo, que as crianças
que falam mandarim terão tendência a despojar os verbos das suas flexões
verbais, já que elas são inexistentes na sua língua materna, ou que as vogais
nasais serão difíceis de pronunciar, para um aluno ucraniano que não as tem
no seu sistema fonológico… Com isto, ajudá-los-emos, também, a controlar de
forma mais autónoma e rápida o processo de aprendizagem do próprio
português, ao mesmo tempo que lhes damos um sinal claro e apaziguador de
que está tudo bem: de que a sua língua não está esquecida, pelo contrário, é
valorizada por todos, de que as suas falhas em português não decorrem de
uma incapacidade linguística que os coloca num patamar abaixo dos alunos
portugueses e, além disso, de que eles estão onde nós esperamos: no
caminho, não no ponto de chegada. Quando chegarem ficarão mais fortes,
porque mais sabedores: terão pelo menos duas línguas. Poderão agora dizer-
me: isso é muito bonito, mas como fazê-lo, em tempo útil, com aulas de quase
trinta alunos, com um programa extensíssimo para cumprir, com a espada dos
exames sobre nós, sem materiais, sem formação específica? A sabedoria
popular tem muitos ditos sobre a palavra poder, como sempre contraditórios,
ou não fosse a sabedoria e a realidade múltipla e contraditória… Vejamos dois:
quem faz aquilo que pode a mais não é obrigado; querer é poder. Ambos
legítimos, ambos aplicáveis a este caso. Por um lado, são as pequeninas
coisas que fazem mover ou retardar o mundo. Deixar que uma criança fale da
sua língua, mostrar-lhe que não tem de perder o seu passado, nem esquecer a
sua identidade para viver connosco e ser bem sucedida, é uma dessas
pequeninas coisas. 9 Por outro lado, se tivermos investigado, se tivermos
estudado a matéria, se tivermos compreendido, até pelo conhecimento das
experiências alheias, as vantagens da preservação das línguas maternas e do
seu desenvolvimento a par do desenvolvimento de outras línguas, como a
nossa, provavelmente teremos de querer, de lutar por isso. E isso tem muitas
dimensões, que vão da procura de mediadores linguísticos, até à introdução de
aulas de língua ou até mesmo ao ensino bilingue, que implique igualmente as
crianças de língua materna portuguesa, pois também merecem. Tudo no tempo
certo, que é o tempo próprio para cada situação. Uma coisa sabemos: ser
bilingue aumenta a capacidade de abstracção e de reflexão linguística, torna o
pensamento ─ porque capaz de processar a informação através de duas
línguas diferentes ─, mais flexível e ágil. Por outro lado, a consolidação da
língua materna, na escola, facilita a aprendizagem de novas línguas,
favorecendo a transferência de capacidades e de conhecimentos adquiridos
em cada uma delas. Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem, dizem
alguns. A pessoa que só sabe uma língua não sabe verdadeiramente essa
língua, dizia Goethe. Também para José Agualusa10 , ao contrário do que
sugere o mito de Babel, […] é mais fácil à humanidade alcançar Deus, isto é, o
entendimento do mundo, falando muitas línguas do que comunicando numa
única. Há realidades, sentimentos, certos prodígios e mistérios, que só podem
ser expressos numa determinada língua. Se essa língua se perde, o Homem
fica inevitavelmente mais longe do entendimento. Cada uma destas vozes,
variando, amplifica o mesmo tema.
Dulce Pereira
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa ILTEC
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