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UNIDADE 3 – AS METODOLOGIAS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA/LÍNGUA

SEGUNDA/LÍNGUA MATERNA

3.1 – Língua estrangeira/ língua segunda

O que é uma língua segunda?


Antes de mais nada, é preciso criticar um erro muito corrente, mesmo da
literatura especializada, que consiste em confundir “ Língua segunda” com
“Língua estrangeira”. Muitos autores falam indiferentemente de uma ou de
outra e escrevem indiferentemente “Língua segunda ou “Língua estrangeira”.
Tudo se passa como se as duas expressões fossem sinónimas e
recobrissem exactamente a mesma realidade conceptual. Com efeito, não é
nada disso. A diferença é uma nuance que diz respeito, não à natureza das
línguas em presença, mas ao ponto-de-vista a partir do qual elas são
consideradas.
Este ponto-de-vista pode ser sociológico ou psicológico. Situa-se
fora do campo da linguística em sentido restrito, tradicional, isto é, enquanto
estudo interno da linguagem. Mas como se trata da língua, eu falaria de
duas abordagens diferentes: a sociolinguística e a psicolinguística. Uma e
outra fazem parte do que se chama agora macrolinguística, entendida como
o estudo completo da língua, nos seus diversos aspectos ao mesmo tempo
sociais e individuais, internos e externos.
Assim, a expressão ”Língua estrangeira” resultou da terminologia
da sociolinguística e designa uma língua diferente daquela que é falada
pelos membros de uma comunidade linguística. Por extensão, num país
geralmente plurilingue, esta expressão engloba toda a língua que não
pertence ao património cultural do Estado-nação, independentemente do
facto de a língua em questão ser ou não ser praticada pelos cidadãos deste
Estado. Neste sentido muito preciso, “Língua estrangeira” opõe-se
directamente a “Língua nacional”, quer esta seja ou não maioritária.
Ao contrário, “Língua segunda” pertence ao vocabulário da
psicolinguística e designa, num indivíduo pelo menos bilingue, a língua
adquirida imediatamente depois da língua materna, definida como língua
primeira (L1). Trata-se já não de uma comunidade linguística, mas sim de
um sujeito falante de duas, três ou mais línguas. Neste caso, a língua (L2) é
efectivamente a segunda por ordem de aquisição e, muitas vezes também, a
segunda por ordem de domínio, depois da língua materna e, eventualmente,
antes de outras línguas. (L3, L4…Ln).
A Língua segunda é, quase sempre, a língua veicular, nacional ou
estrangeira. É uma língua de contacto e meio de comunicação mais fácil
com o meio extra familiar: na rua, no mercado e nos locais de distracção, e
ainda na escola, na fábrica e no escritório. Ela é, sobretudo, útil nas relações
puramente orais; pode servir também de língua de cultura nacional ou
regional, por exemplo, como língua de ensino, de informação, de
administração, de justiça, etc. Dada a sua utilidade prática, apoiada
eventualmente por um estatuto oficial, e pela sua ligação frequente com a
vida urbana, a língua segunda possui muitas vezes um grande prestígio
social: ela é a língua da cidadania, da modernidade da promoção social a
vários níveis e da abertura para o mundo.
Segundo os indivíduos e a situação linguística dos Estados (monolinguísmo
ou plurilinguísmo) a prática das línguas pode apresentar múltiplas facetas.
Um plurilinguísmo excessivo ao nível de estado favorece repentinamente a
prática de uma ou de várias línguas como línguas segundas, quer estas
sejam nacionais ou internacionais. As situações variam igualmente segundo
o que se constata na cidade ou no campo. É frequente que no campo a
língua segunda mais praticada seja uma língua nacional de grande
expansão. Ao contrário, na cidade onde a maior parte das pessoas já pratica
uma língua nacional de grande expansão como língua materna, a língua
segunda mais empregada é ou uma outra língua nacional de grande
extensão, ou, quase sempre uma língua internacional. Esta pode beneficiar,
em particular, nos países outrora sob dominação estrangeira, de um estatuto
social privilegiado. É actualmente o caso da quase totalidade dos Estados
Africanos.

3.2 – O ensino das Línguas segundas em Africa


O que concorre para que uma língua seja largamente utilizada como
língua segunda não é em primeiro lugar o seu estatuto jurídico, mesmo que
este incontestavelmente favoreça tal prática, mas sim o seu estatuto
sociológico. O estatuto jurídico é um acto oficial que pode influenciar as
atitudes e os comportamentos das pessoas sem necessariamente modificar
de maneira radical a prática da linguagem quotidiana. Esta é uma resposta
original às necessidades específicas dos locutores, que não podem ser
prescritas por nenhum acto oficial.
Quando se examina do ponto de vista sociológico a situação linguística
da maior parte dos países africanos (exceptuando os estados insulares ) vê-
se facilmente que são as línguas nacionais maioritárias e não as
línguas oficiais, as que são mais largamente utilizadas, quer como
línguas maternas, quer como línguas segundas. O fenómeno urbano,
mesmo que se vá intensificando é minoritário e não modifica a
situação. Numa estratificação linguística tipo piramidal, as línguas
africanas de grande expansão ocupam uma posição jurídica
intermediária entre as línguas oficiais e as línguas étnicas e uma
posição social dominante: elas são as mais massivamente praticadas,
com maior frequência e intensidade. Há muitos exemplos que ilustram
esta constatação.
No Senegal, onde existem uma dezena de línguas étnicas face à
língua francesa (língua oficial), Wolof, língua veicular é a língua
segunda da maioria dos senegaleses. Encontra-se uma situação
semelhante na República Centro-Africana com o Sango, como língua
segunda principal. No Ruanda e no Burundi, onde a situação
linguística é relativamente homogénea, a língua nacional passou a
língua oficial como o francês, mas a maior parte dos ruandeses e dos
burundeses pratica imediatamente depois da língua nacional oficial e
muitas vezes mesmo antes de aprenderem o francês, o Kiswahili,
língua veicular de toda a região oriental. A Nigéria é um exemplo de
país altamente plurilingue: 394 línguas face ao Inglês (língua oficial);
quatro destas línguas nacionais servem, cada uma numa área
geográfica determinada, de línguas segundas (ao lado da sua função
de línguas maternas) para a maior parte dos nigerianos: o Yoruba, o
Hausa, o Igbo e o Fulfude. É pouco mais ou menos o que acontece na
Zaire com o Lingala, o Kiswahili, o Kikoongo e o Ciluba.
Tudo o que acaba de ser dito descreve evidentemente a situação
mais característica; porém existe uma pluralidade e uma importante
diversidade de situações individuais e comunitárias. Várias situações
são possíveis. Uma língua segunda para um indivíduo pode ser língua
primeira, ou língua terceira para outro indivíduo.
Pode acontecer que a língua materna dos pais seja desconhecida
dos filhos e que a língua primeira destes últimos seja a língua segunda
de seus pais. Podem mesmo encontrar-se casos em que a língua
primeira é uma língua estrangeira e em que a língua nacional é a
língua segunda. Esta situação extrema e aberrante, na verdade muito
minoritária, é aquela que conhecem certas crianças nascidas no
estrangeiro, cujos pais não praticam a mesma língua nacional (por
exemplo em casais mistos) ou não comunicam com os seus filhos a
não ser em língua estrangeira, isto é, a língua nacional do país onde
residem. Tais casos existem actualmente em quase todas as grandes
cidades africanas, em meio burguês mais ou menos voltado para o
exterior.
Nas comunidades insulares (Seychelles, reunião, Cabo –Verde,
etc) os habitantes de origem muito diversa, em geral perderam a
língua dos seus antepassados e adaptaram como língua materna uma
língua de mistura de base europeia: um pidgin ou um crioulo e uma
língua segunda, a língua-europeia – mãe (Inglês, Francês ou
Português. Nos Camarões, que é um dos países africanos onde o
plurilinguísmo atingiu o mais elevado grau (contam-se mais de 200
línguas que pertencem pelos menos a três famílias diferentes),
produziu-se um fenómeno absolutamente estranho: na ausência de
uma qualquer nacional maioritária, foi uma língua de mistura, o pidgin
inglês que se tornou a língua segunda da maioria dos camaroneses
anglófonos ou francófonos. Observa-se uma situação análoga no Cote
d’Ivoire: por um lado, com o francês popular ivoiriense, o pidgin com
base no francês, e por outro lado, com o jula, língua veicular de origem
mandique, duas línguas veiculares de origem estrangeira (europeia
para o FPI e africana para o jula). Parece que ambas entraram agora
num processo muito activo de crioulização, tornando-se línguas
principais (quer dizer maternas) para um número crescente de jovens
citadinos nascidos em Abidjan.
Fenómenos deste tipo não são naturais em África, mas encontram-
se numerosos exemplos no mundo, como um dos vestígios de
dominação estrangeira, ou simplesmente como resposta original à
necessidade imperiosa de intercompreensão entre os membros de
uma mesma comunidade nacional ou regional. Línguas como o
Kiswahili, o Lingala ou o Kikoongo veicular nasceram desta maneira,
muito antes da colonização.
O ponto fulcral de uma língua segunda é um indivíduo plurilingue.
A maioria dos africanos escolarizados, os originários do campo em
maior número do que os citadinos, é plurilingue e praticam, pois, uma
língua segunda; os monolingues constituem uma excepção.
As línguas segundas em Africa (essencialmente as línguas
nacionais) têm uma função simbólica importante e beneficiam de certo
prestígio social. Devido ao papel importante que elas têm de
desempenhar no processo educativo como em outros sectores
importantes da vida nacional, parece evidente que um cuidado
particular deva ser posto na sua didáctica específica.

A Didáctica das línguas segundas


O ensino das línguas segundas coloca os pedagogos um grande
problema, o da metodologia. Há uma didáctica das línguas segundas
diferente da didáctica geral das línguas estrangeiras? Em caso
afirmativo, quais seriam os princípios metodológicos? Põem-se
questões difíceis às quais actualmente nenhuma teoria conseguiu dar
respostas definitivas.
Se uma didáctica específica parece concebível em teoria, na
prática nenhuma diferença importante parece existir na estratégia
pedagógica. Com as diferenças que se estabeleçam, trata-se nos dois
casos de uma didáctica de línguas não maternas. As nuances
prendem-se a um certo número de factores como o grau de
parentesco entre a s línguas, a distância cultural entre os locutores
respectivos, a utilidade prática da língua segunda, o seu carácter
veicular, o facto de ela já ser, ou não, pelo aluno, etc.
Deve reter-se o seguinte facto:
As línguas segundas de origem nacional não podem ser ensinadas
da mesma forma que as línguas segundas de origem estrangeira. Um
jovem angolano cuja língua materna é o Kikoongo e que aprende o
Kimbundu (ou cokwe), uma língua segunda, não encontra as mesmas
dificuldades que encontra na aprendizagem de uma língua europeia ou
de uma língua asiática. No primeiro caso, vários factores facilitam esta
aprendizagem e complicam-na no segundo.
Primeiramente existe o grau de parentesco entre as línguas em
presença: o Kikoongo e o Kimbundu pertencem ambas à mesma
família das línguas bantu: as semelhanças são numerosas não
somente no plano vocabular, como também no plano da pronúncia e
da gramática. Todos estes factores linguísticos constituem “zonas de
convivência” e permitem economias consideráveis, tanto no processo
de aquisição (do ponto-de-vista do que aprende) como do ensino (o do
ponto-de-vista do pedagogo). Entre o Kikoongo e as línguas europeias
ou asiáticas todas as diferenças (lexicais, fonológicas e gramaticais)
criam tantos obstáculos que não se ultrapassam facilmente.
Em seguida, existe a proximidade ou a distância cultural entre o
universo da língua materna e o da língua segunda a adquirir: o facto
de pertencer e de se referir a um mesmo sistema de pensamento e de
crenças, compartilhar a mesma civilização material e modo de vida, de
comungar as mesmas tradições e valores simbólicos, cria
incontestavelmente pontes que facilitam a passagem de um modo de
expressão linguística para outro. As línguas bantu, como a maioria das
línguas africanas, utilizam-se essencialmente a nível da oralidade.
Este é também um traço cultural largamente partilhado. Por toda a
parte, a tradição da escrita está em vias de se criar nestas línguas,
assentando num modelo alfabético: o alfabeto latino que transcreve a
maioria das línguas europeias. A este respeito, para retomar o
exemplo acima citado, o Kimbundu está mais próximo do Kikoongo do
que do Chinês, cuja escrita se baseia num modelo ideográfico.
Um outro elemento que facilita a aprendizagem de uma língua,
reside no factor motivação, o qual se encontra justificado pela
utilização que se pretende fazer da língua segunda. Com efeito, pode-
se aprender uma língua por várias razões. Conforme, se se aprende
uma língua com um fim puramente instrumental (por exemplo,
simplesmente para compreender mensagens escritas nessa língua,
que é frequentemente o caso da actividade científica), ou pelo
contrário, se a aprendizagem da língua visa um fim essencialmente
funcional (com o desejo de compreender e falar activamente a nova
língua), a motivação e o entusiasmo serão muito diferentes e os
resultados também. De uma maneira geral, aprende-se sempre mais
facilmente uma língua se ela é verdadeiramente útil na vida quotidiana
e/ou profissional.
A utilidade prática é reforçada quando a língua a aprender serve,
por exemplo, como língua veicular no ensino, na informação, na
administração, ou ainda se ela facilita o acesso a um certo número de
bens culturais, por exemplo, a música ou outras distracções para as
quais a língua em questão serve de suporte. Assim, muitos
melómanos aprendem o Lingala, com o fim de compreenderem a
música zairense e congolesa moderna. Enfim, laste, but not least, isto
é, em último lugar, mas de menos importância, há prática de uma
língua segunda que um aluno pode adquirir antes mesmo da sua
entrada para a escola. É o caso frequente, tanto na cidade como no
campo, quando a língua segunda é a língua veicular maioritária no
meio. É evidente que se esta se torna veículo ou matéria de ensino, a
sua aprendizagem seria nitidamente menos árdua do que a de uma
língua estrangeira pura.
O exemplo da criança angolana de língua materna Kikoongo que
aprende o Kimbundu ou o Chinês levaria forçosamente a dois casos
extremos. Claro está que entre esses casos extremos se situa uma
pluralidade de situações intermediárias. Em teoria, linguisticamente
falando, é mais fácil para esta criança aprender o Kimbundu ou uma
outra língua bantu do que o português; (língua oficial do país) do que o
francês (língua estrangeira); se ela conhece o português é mais fácil
aprender o francês, língua românica) do que o Chinês, etc.
Uma questão que preocupa todos os pedagogos é a de
saber qual a idade mais conveniente para se introduzir o ensino de
uma língua segunda. Teoricamente pode aprender-se uma nova língua
em qualquer idade. Na prática, as opiniões divergem. Uns pensam que
é preciso introduzir a língua segunda o mais tarde possível. Parece ser
ainda preciso fazer uma distinção entre uma língua segunda de origem
nacional e uma língua segunda de origem estrangeira. É bem evidente
que a língua nacional é a língua do ambiente e se, além disso, a
criança a pratica já antes da sua entrada na escola juntamente com a
sua língua materna, a aprendizagem desta língua segunda pode ser
iniciada muito cedo; ela pode mesmo, em lugar da língua materna, ser
utilizada como veículo de ensino. Os inconvenientes serão psicológica
e pedagogicamente menores do que quando se recorre
prematuramente a uma língua estrangeira, como veículo de ensino
nos primeiros anos de escolarização. Ao contrário, e todas as
experiências o confirmam, não se obtêm os melhores resultados no
ensino de uma língua estrangeira, senão quando este é baseado na
sólida aquisição de uma língua que a criança já domina.
O objectivo que visa qualquer metodologia moderna no ensino
de uma língua segunda é atingir o mais rapidamente possível o que se
chama competência de comunicação (levar os que aprendem a falar
correctamente a língua segunda), visando uma melhor inserção
escolar ou profissional. Se se tem em conta os factores linguísticos,
sociológicos e psicológicos que foram enumerados anteriormente
(parentesco das línguas, proximidade cultural, veicularidade das da
língua segunda, prática efectiva desta, antes da escolarização) admitir-
se-á que um tal objectivo é mais facilmente atingido com uma língua
nacional do que com uma língua estrangeira. Aqui trata-se de um
público que é constituído na maioria por principiantes, ou falsos
principiantes, enquanto no primeiro caso se trata de não principiantes,
ou falsos principiantes.
Entre os princípios gerais em que se baseia uma metodologia
que visa a competência de comunicação, antes de mais existe a ideia
de que é preciso colocar no centro de toda a preocupação o próprio
sujeito de aprendizagem, quer dizer, o que aprende, com as suas
necessidades reais de comunicação. Insiste-se igualmente muito,
contrariamente aos métodos ditos directos, sobre a necessidade de
integrar a língua primeira (ou materna) no processo de aprendizagem
da língua segunda. Neste caso, o método quer-se essencialmente
activo: considera-se que o melhor meio de fazer adquirir a
competência comunicativa é o de colocar aquele que aprende nas
situações mais variadas e mais funcionais, levando-o a falar, isto é, à
prática efectiva da língua segunda. Enfim, existe constantemente a
preocupação da interdisciplinaridade: para ensinar a língua a uma
criança, sobretudo se esta é uma língua segunda, não basta conhecer
a língua, é preciso também e talvez primeiro conhecer a criança, as
suas necessidades, o seu meio sócio-cultural, etc. Qual é, neste
processo, o papel da linguística, como ciência da linguagem? Qual é a
contribuição que ela dá à didáctica das línguas em geral e à didáctica
das línguas segundas em particular?

Contribuição da linguística à didáctica das línguas segundas

Durante decénios, a linguística exerceu sobre a pedagogia das


línguas uma espécie de monopólio conceptual, uma autoridade
intelectual incontestada. Vulgarmente pensava-se que para ensinar
uma língua, ninguém estava mais bem preparado do que um linguista.
Este monopólio que os linguistas nunca reclamaram, é hoje posto em
causa. O recurso à interdisciplinaridade, de que recentemente se
descobriram os benefícios, não é, na realidade, senão uma maneira de
quererem libertar-se desta autoridade tutelar, abrindo caminho para
outros conflitos de influência, principalmente entre a sociolinguística, a
psicolinguística, a pragmática, a análise de discurso e outras
disciplinas auxiliares da didáctica das línguas.
Mas poderão libertar-se verdadeiramente da autoridade da
linguística numa estratégia didáctica, cujo objecto é a língua?
Reflectindo, percebe-se que os desenvolvimentos mais recentes
neste domínio, não são, na realidade, senão repetições mais ou
menos hábeis dos princípios fundamentais que a linguística geral
proclama desde há muito tempo. É por isso que em vez de
contribuições, se deveria antes falar de aquisições da linguística no
domínio da didáctica das línguas.
Quais são esses princípios fundamentais e quais são as suas
implicações pedagógicas?
1º - Que a língua é um sistema e não um aglomerado de
palavras ou de formas gramaticais: é um conjunto estruturado, cuja
unidade é constituída pela soma de todas as diferenças que opõem as
partes umas às outras.
Consequência pedagógica
Em didáctica das línguas maternas, não são as unidades
isoladas (sons, palavras, segmentos de frases) que é preciso ensinar,
mas conjuntos completos (frases, enunciados), tais como se
encontram na língua autêntica.
2º - Que as línguas são sistemas originais e autónomos, mesmo
se certas estruturas (lexicais, fonológicas ou gramaticais) podem ser
comparáveis de uma língua para outra.
Consequência pedagógica
Não se deve ensinar uma língua comparando-a com outra; não
existem correspondências sistemáticas termo por termo; é preciso
evitar a tradução palavra por palavra.
3º - Que a língua é um fenómeno social, cuja primeira função é a
comunicação. Esta comunicação é, por natureza, primeiramente oral,
podendo ser, por efeitos de cultura, fixada por meio da escrita. A
língua é feita para falar e não se fala sozinho, nem para não dizer
nada, salvo em casos de neurose ou delírio ( o que não significa de
forma alguma que o monólogo seja sempre um caso patológico, nem
que o solilóquio seja sempre um caso de doença).
A língua é feita para se contactar alguém, dialogar, dar
informações ou ordens, causar impressões, eventualmente pressionar,
etc.
Consequência pedagógica
O objectivo de todo o ensino da língua, e em particular o da língua
segunda, deve ser o de levar o que aprende a adquirir uma
competência de comunicação, antes mesmo de considerar uma
competência linguística, que é uma actividade reservada ao
especialista da língua, isto é, ao linguista: é preciso primeiro ensinar a
falar a língua, em seguida ensinar a compreender as estruturas desta
língua.
Eis esboçados em grandes traços alguns dos problemas sobre o
ensino das línguas segundas em África.
As línguas segundas, quer sejam de origem nacional ou
estrangeira, desempenham em África um papel extremamente
importante. Para a maioria dos cidadãos, são as línguas segundas de
origem nacional que asseguram as funções preponderantes na vida
quotidiana. Até ao momento, a pedagogia deste tipo de línguas não foi
objecto de nenhuma reflexão em profundidade; quando se fala cada
vez mais da integração das línguas nacionais nos sistemas escolares,
quer como disciplina, quer como veiculo para um certo número de
outras disciplinas, convém referir que devido ao plurilinguismo, por
vezes muito elevado, são as grandes línguas (falando
quantitativamente: número de locutores, extensão de território,
diversidade das funções exercidas) que serão primeiramente
referenciadas. Não se conseguirá uma verdadeira integração, a não
ser estabelecendo-a sobre bases sólidas, apoiadas por acções de
promoção social dos indivíduos, graças à prática das línguas
nacionais, quer seja na escola, na administração ou não importa em
que sector público. Em todo este processo, o papel que pode
desempenhar a linguística, enquanto ciência da linguagem, é sem
dúvida modesto, mas insubstituível: o de estabelecer a acção
pedagógica sobre sólidas certezas científicas.

Ngalasso Mwatha Musanji


Professor Universitário na Universidade de
Bordéus
3.4 - DIDÁCTICA DAS LÍNGUAS ESTRANGEIRAS/LÍNGUAS SEGUNDAS

Um pouco de história

As estratégias de ensino e de aprendizagem das línguas estrangeiras variam consideravelmente no


tempo e no espaço. Historicamente, poderíamos resumir a quatro as etapas fundamentais da sua
evolução: o método tradicional, o método directo, os métodos audiovisuais e o momento actual, este
genericamente caracterizado pela ausência de método.
O método tradicional (MT), também conhecido por método da gramática e tradução, consistia
fundamentalmente em manusear o dicionário e em decorar as regras da gramatica. Numa altura em que
o turismo e as viagens estavam longe de conhecer o incremento das últimas décadas, o ensino das
línguas estrangeiras visava em especial o acesso à cultura, à literatura, a obras de especialidade, e
destinava-se exclusivamente às elites privilegiadas nos planos económicos, social e cultural. Se os
objectivos excluiam a prática da língua falada, nada mais natural do que tomar como material didáctico
privilegiado o texto escrito, em especial o texto literário.
O método directo (MD) surge, em meados do século XIX, como reacção aos objectivos do MT e como
resposta às novas exigências da sociedade. Contra a prática exclusiva da língua escrita, o MD salienta a
necessidade de dedicar uma atenção prioritária à expressão oral e preconiza o desenvolvimento
harmonioso das quatro capacidades, skills, e pela mesma ordem que integram o esquema de
aprendizagem da criança na língua materna: ouvir, falar, ler e escrever.
A divulgação do MD, ligada às teorias e método da chamada escola activa, ganha maiores dimensões
com o início do século XX e não podemos dissociá-la do dinamismo e da movimentação da nova
burguesia industrial e comercial. A aprendizagem das línguas estrangeiras não é mais um luxo de
ociosos, mas antes uma resposta às novas condições de mercado e de intercâmbio na comunidade
internacional.
Os métodos audiovisuais (MAV) nascem, por volta de 1960, como uma alternativa pretensamente
científica para o ensino das línguas, num momento em que a sociedade de consumo se desenvolve a um
ritmo acelerado.
São três os suportes fundamentais dos MAV: uma teoria linguística, uma teoria psicolinguística e um
apoio tecnológico altamente sofisticado.

O desenvolvimento e a divulgação da linguística estruturalista, a descrição das principais línguas de


expansão internacional - francês, inglês, russo, espanhol, alemão - a selecção e graduação de
vocabulários de base, assentes em critérios de frequência, disponibilidades e repartição, explicam e
fundamentam a elaboração de métodos ou manuais em que o conteúdo e a progressão dos elementos
linguísticos são prévia e rigorosamente definidos.

As teorias de comportamento de B. F. Skinner, inspiradas nas suas experiências no campo da psicologia


animal são o fundamento lógico dos MAV. A técnica do condicionamento operante, a técnica do
reforço e a sistematização das técnicas de repetição e de substituição surgem como componentes
fundamentais no processo de aquisição das línguas, integrando uma teoria sobre a aprendizagem
também ela “científica” porque fundada nos dados da experiência.
O aperfeiçoamento, cada vez mais apurado, das técnicas da imagem e do som e o alargamento
no mercado de consumo de aparelhos como o gravador, gira-discos, os projectores de filmes e
de diapositivos, etc., trouxeram aos MAV a sua componente espectacular, a mais susceptível
de deslumbrar os sentidos.
Não admira, portanto, que seja de verdadeira euforia o estado de espírito de muitos professores
de línguas dos anos 60. A descoberta da linguística, a aliança entre linguistas e professores de
línguas, rompendo com uma tradição ancestral em que mutuamente se ignoram, as novas
orientações e uma maior consciência quanto ao processo de aquisição das línguas, sem
esquecer o apoio tecnológico, tudo concorreu para trazer aos professores de línguas mais
devotos pela inovação metodológica uma tranquilidade de espírito e uma segurança que nunca
tinham conhecido antes. O ensino das línguas tinha, finalmente, atingido a fase "científica",
estava assegurada, de futuro, a máxima eficácia.
Contudo, esta euforia não foi muito duradoira. Não foi sem uma certa frustração que se
analisaram os resultados da utilização dos MAV, e, se é certo que houve sempre descrentes e
inadaptados, tantas vezes a sentirem-se minimizados relativamente ao endeusamento da
máquina, não é menos certo que mesmo os adeptos mais fervorosos acabaram por reconhecer
o seu fracasso.

É assim que os professores de línguas, que não têm - nem podem ter - da linguística, dos seus
avanços e das suas limitações um conhecimento muito profundo, que não têm podido
acompanhar as polémicas em torno das teorias da aprendizagem das línguas, sentem actual-
mente um certo vazio na sua formação e nas suas convicções teóricas que conduzem
inevitavelmente a um sentimento de insegurança na sua prática pedagógica.

É por isso que o momento presente é um momento não de incerteza, mas sem certezas, sem
verdades absolutas e inabaláveis, é um tempo de reflexão e de análise que permita evitar os
erros do passado e perspectivar o futuro com confiança.

Tendências actuais da didáctica das línguas

O Ensino centrado sobre o aluno

Todo o processo de ensino ou de aprendizagem implica, normalmente, três variáveis ou


componentes essenciais: o aluno, o professor e o método. Qualquer deles pode assumir um
papel preponderante relativamente aos outros, como pode facilmente constatar-se numa
retrospectiva histórica da didáctica em geral e da didáctica das línguas em particular.

No MT é o professor que centraliza todo o processo de ensino. Identificando-se como


princípio do magister dixit, o professor de línguas, ensinando sobre a língua, e não a própria
língua, assumia plenamente o seu papel de "catedrático", já que os "catedráticos" nunca foram,
infelizmente, um exclusivo da Universidade. Ao mestre competia falar, perguntar, mandar; ao
aluno ouvir, responder, cumprir. A autoridade institucional do professor e a obediência dócil
do aluno são as duas faces da relação pedagógica.

As alterações significativas que se produzem com o MD não afectam aquela relação. De facto,
o professor continua a ocupar o centro do processo de ensino. A língua de comunicação já não
é a língua materna, mas antes a língua que se ensina. O ensino reveste-se de um carácter mais
prático. Mas a imagem que nos fica do professor deste período é a de um verdadeiro actor
capaz de recriar no espaço da aula todas as situações que lhe permitam utilizar a maior
variedade de elementos linguísticos. Os retratos do professor desta escola não raro configuram
o caricatural: para empregar a expressão "parti uma perna", aparece na aula com a perna
envolvida em gesso… A contrapartida deste dinamismo teatral do professor é o papel de
espectador passivo reservado ao aluno.

Nos MAV é o método que adquire o papel de relevo antes de desempenhado pelo professor.
Por método entende-se aqui, como já vimos, o manual elaborado de acordo com os dados
fornecidos pela linguística, pela psicolinguística, etc., logo com uma dosagem e uma
progressão rigorosas dos elementos linguísticos. Desde que bem utilizado, o método seria, só
por si, a garantia da eficácia. O professor não é mais do que o executante de um programa
previamente estabelecido, standardizado e materializado nos célebres momentos da aula de
língua: a. controlo dos conhecimentos anteriormente adquiridos; b. estudo de novos elementos
linguísticos: b. 1. apresentação; b.2. reemprego; b.3. apropriação; b.4. fixação, etc. Tudo isto
rigorosamente cronometrado e invariavelmente repetido, lição após lição. A iniciativa do
aluno, mais uma vez, era extremamente limitada. Para ele, as palavras de ordem eram imitar,
repetir. Criar, pensar, eram termos banidos da aula de língua, pelo menos durante as primeiras
etapas da aprendizagem e até bastante tarde.

O momento actual veio colocar, finalmente, o sujeito que aprende no centro do processo de
ensino e aprendizagem. Não é por acaso que se fala mais de aprendizagem e menos de ensino.
Trata-se de dar uma maior autonomia e uma maior participação àquele que aprende, quer na
definição de objectivos e de conteúdos quer na organização de trabalho. Ao professor compete
o papel de dinamizador e de facilitador da aprendizagem. A didáctica das línguas aponta hoje
para a individualização do ensino, para usar um termo que já não é novo no domínio da
pedagogia, mas que foi bastante ignorado em favor de um ensino de massas ainda que as
necessidades e objectivos fossem consideravelmente diversificados.

Para esta nova orientação contribuiu decisivamente o aparecimento de um público novo que
atingiu proporções enormes nas últimas décadas. Trata-se dos adultos, de que se salientam os
turistas, os indivíduos que procuram uma formação técnica e profissional em país estrangeiro,
e, sobretudo, os emigrantes. O fenómeno migratório é uma característica do momento presente
que marca de forma decisiva a história do ensino das línguas.
Se, por um lado, a sociolinguística focaliza o sujeito falante como elemento preponderante no
processo de comunicação, o aparecimento desta nova clientela obriga a repensar o ensino das línguas
em função de novas necessidades, interesses e objectivos. Os adultos não aceitam os métodos e os
conteúdos da escola. Recusam as situações artificiais de comunicação concebidas para crianças e
adolescentes. Repudiam o modelo uniforme e inexpressivo da linguagem dos textos pedagógicos.
Reclamam um ensino que responda, de imediato aos seus problemas concretos.
Deste modo, as novas orientações assentam, antes de mais, na diversidade heterogeneidade dos
públicos visados e na sua individualidade, de facto, de cada sujeito que aprende. Desde as aptidões e
inteligência às expectativas, necessidades e motivações, desde as blocagens e handicaps ao estatuto
social, desde o meio à situação económica, etc., tudo são factores que condicionam a aprendizagem e
reclamam a sua diversificação. Como admitir os métodos pré-fabricados sem conhecer os mesmos
conteúdos, a mesma metodologia, o mesmo ritmo para crianças e adolescentes em situação escola,
adultos que aprendem uma língua estrangeira por razões de ordem socioprofissional ou ainda para
emigrantes cuja sobrevivência depende da aprendizagem da língua do país onde trabalham? Em
síntese, podemos dizer que a didáctica actual se pauta pelas seguintes orientações:
1 - Análise e definição dos vários tipos de públicos que recorrem à aprendizagem das línguas:
adultos – turistas, indivíduos que procuram uma formação socioprofissional em país estrangeiro,
emigrantes jovens que iniciam o estudo de uma língua na Universidade; crianças e adolescentes que
estudam uma ou mais línguas no âmbito da instituição escolar, etc.
2 - Análise das necessidades concretas de cada um destes grupos.
3 - Definição de objectivos que respondam a essas necessidades.
4 - Organização do ensino em função das necessidades e dos objectivos do sujeito que aprende.

Ao contrário do que aconteceu em períodos anteriores, não se trata, portanto, de encontrar um método
que se aplique em todas as situações de aprendizagem e indeferencialmente para qualquer dos
públicos visados, antes se procura tomar como ponto de partida a individualidade do sujeito que
aprende, as suas necessidades concretas, os seus objectivos específicos, as circunstâncias que
condicionam a sua aprendizagem. Finalmente, a didáctica das línguas coloca o sujeito que aprende no
centro do processo educativo.

Competência linguística e competência de comunicação

Ao abordar algumas orientações da sociolinguística, chamou-se a atenção para alguns


aspectos que convém relembrar. No plano científico referiu-se a mudança de
perspectivas que levou a estudar a parole de preferência à langue, insistiu-se na
na importância atribuída ao sujeito falante, pôs-se em relevo a importância e o
significado das variedades ligústicas e dos vários tipos de discurso. No plano
pedagógico, recusou-se o artificialismo de certa "literatura" utilizada na aprendizagem
das línguas, viu-se a necessidade de relacionar os códigos linguísticos com os códigos
sociais e culturais que lhes estão associados, concluiu-se pela impossibilidade de
adquirir uma língua com eficácia se a aprendizagem não assentar em situações
concretas de comunicação. Trata-se agora de ver as consequências práticas e de
concretizar estas questões.
Para falar uma língua não basta conhecer um determinado código linguístico ou,
usando a terminologia actual, a competência linguística não garante, só por si a
competência de comunicação. Isto é válido para a língua materna e muito mais para
uma língua estrangeira.
É de todos conhecido o facto de que alguns indivíduos sofrem de inibições que os
impedem de estabelecer uma conversa: o aluno que se envergonha do professor ou dos
colegas, o funcionário que evita os superiores, operário que não se aproxima do patrão,
o marido que foge aos contactos com os colegas da esposa, o misantropo que se isola,
mesmo entre os companheiros de trabalho. Todos estes indivíduos possuem uma
competência linguística mas não possuem a competência de comunicação, nestes casos
devido a blocagens de ordem psicológica de etiologia diversa.
Por outro lado, como já vimos anteriormente, a utilização de um determinado código
linguístico requer o conhecimento e a adequação dos códigos sociais e culturais que
condicionam essa utilização. A competência de comunicação implica, como é evidente,
a competência linguística mas não se fica por aí. Exige também o conhecimento prático
das regras psicológicas, culturais e sociais que determinam o tipo de discurso num
determinado quadro social.
Um emigrante que, em França, se dirija ao guichet de uma estação do correio e
interpele a funcionária com um “Ça va”? corre o risco de não ser atendido com a
melhor simpatia. Do mesmo modo se for chamado à Policia cumprimentar o chefe com
um cordial “Salut”. Porquê?
Compreenderemos melhor se analisarmos o esquema proposto por Eddy Roulet (3);

Um locutor comete um acto perante um numa em referência e em reacção

L acto C interlocutor L situação c aR a um acto C


De acordo com o seu autor, estas seriam as variáveis que influenciam o acto de fala e
determinam a escolha dos elementos linguísticos. Sendo assim, o emigrante atrás
referido, para ir ao correio ou à polícia, teria. de ter em conta o seu estatuto social
relativamente à funcionária e ao chefe da esquadra, as funções de que estes estão
investidos, as idades relativas, o sexo, as situações em que se realizou a comunicação,
etc. Ora a cordialidade e a intimidade inerentes ao “Ça va”? e ao “Salut” parecem
não convir nem aos estatutos sociais nem às situações de comunicação referidas.
Ninguém fala com os filhos do mesmo modo que fala com os superiores ou com os
colegas de trabalho. Da mesma maneira que não utilizamos a mesma linguagem para
agradecer ao condutor que parou antes da passadeira para nos deixar atravessar
calmamente ou invectivar um outro que, surgindo da esquerda, atravessa o carro à
frente do nosso sem qualquer respeito pelas regras de trânsito. A competência de
comunicação passa pelo conhecimento dos vários tipos de discurso e das
circunstâncias que determinam a sua utilização. Não se trata apenas de aprender
determinadas formas linguísticas, trata-se de adquirir comportamentos que
compreendem não apenas os códigos linguísticos mas também códigos culturais e
sociais que presidem aos actos de comunicação. A competência de comunicação não
se define em termos de conhecimentos linguísticos mas de uma forma funcional.
Define-se em relação ao que permite fazer, às tarefas que permitem executar, às
funções que permite cumprir.
Outro aspecto ainda é o que resulta de um certo tipo de análise linguística ou
gramatical que não leva em conta as intenções enunciativas dos interlocutores.
Consideremos a frase “Podes dar-me um copo de água”? Quer a estrutura da frase
quer o ponto de interrogação levam a considerá-la como uma pergunta. Admitamos
que esta frase se responde com um posso ou com um sim. A sua verdadeira intenção
enunciativa seria frustrada porque, de facto, não se trata de uma pergunta mas de um
pedido. A intenção do locutor é pedir um copo de água, e não perguntar se lho
podem dar. Esse pedido poderia ser formulado de várias outras maneiras:
1. Dá-me um copo de água.
2. Tenho tanta sede.
3. O bacalhau estava muito salgado.
4. Hoje não há água que me tire a sede, etc,

A didáctica das línguas não pode ignorar estes problemas. A sua reflexão leva-nos
a perguntar qual será mais importante para a eficácia da comunicação: a correcção
gramatical ou o conhecimento das regras psicológicas, sociais e culturais que
condicionam os tipos de discurso?
A didáctica actual, centrando a aprendizagem sobre o sujeito que aprende, leva em
linha de conta a diversidade e heterogeneidade não só das clientelas mas também das
situações de aprendizagem. Quer os objectivos a longo prazo quer os objectivos
parciais de cada etapa, de aprendizagem são definidos não em função de conteúdos ou
de programas, mas em termos de funções e de situações de comunicação, de noções, de
comportamentos a adquirir.
Não o se trata, portanto, de armazenar conhecimentos linguísticos em si e por si -
gramática, vocabulário, etc. -, mas de aprender a desempenhar certas tarefas que envol-
vem comportamentos linguísticos: saber falar ao telefone, saber enviar um telegrama,
saber agradecer, censurar, recusar, etc. Trata-se, enfim, de dar àquele que aprende os
meios indispensáveis para responder a tal ou tal situação de comunicação que esteja nos
seus projectos de vida ou de trabalho e que ele próprio define como objectivos a atingir.
Deste modo, a progressão é definida de acordo com o público visado, as suas
necessidades e interesses, e é suceptível de ser alterada em qualquer momento.
A pedagogia dos MAV assentava numa progressão constituída por etapas ou níveis de
aprendizagem que eram passagens obrigatórias: 1° grau, 2° grau, nível 1, nível 2
correspondem a conteúdos e estratégias que não se confundem nem podem inverter-se.
Actualmente reina um certo cepticismo quanto à rigidez de tal progressão. Sem excluir a
hipótese ou as possíveis vantagens de um tronco comum, levantam-se muitas dúvidas,
quer quanto à sua necessidade quer quanto ao seu conteúdo e dimensões. Ganha terreno
a hipótese de um sistema de ensino por unidades capitalizáveis, sem qualquer ordem
preestabelecida, a utilizar de acordo com as necessidades ou interesses daqueles que
aprendem. As experiências dos próximos anos dirão qual a melhor via para atingir a
competência mínima de comunicação numa língua estrangeira: a via de um tronco
comum a estabelecer de acordo com critérios ainda não definidos, ou a utilização de
unidades capitalizáveis logo desde a iniciação, sem outra ordem com prioridade que não
seja a ditada pelo sujeito que aprende.
Por meu lado, quanto aos adultos que aprendem em país estrangeiro, não antevejo qualquer
impedimento em começar por uma unidade como "ir ao mercado", "transportes", etc. Há
razões de sobrevivência que obrigam a ir direito às necessidades mais urgentes.
O desaparecimento do manual

Naturalmente, esta estratégia é incompatível com a existência de um manual ou


método, tal como definidos anteriormente. Se aquele que aprende participa na defini-
ção de objectivos e na escolha dos materiais, se o programa pode ser revisto e alterado
em qualquer momento da aprendizagem, nenhum manual pode corresponder a estas
exigências.
Sendo a indústria e o comércio do livro um motor permanente da renovação e da
concorrência no mercado "pedagógico", não tardarão a surgir dossiers ou módulos
correspondentes a unidades de aprendizagem, elaborados em função dos públicos mais
representativos e do levantamento das suas necessidades, interesses e motivações.
Deste modo, poderemos vir a ter uma espécie de ensino por medida, em regime de
self-service, tendo em conta que a relação pedagógica tenderá a alterar-se
significativamente, no sentido de o sujeito que aprende ser o principal promotor da
aprendizagem, embora com o apoio e orientação indispensáveis do professor.

Textos fabricados ou documentos autênticos

Entretanto, o professor terá de trabalhar com os materiais ao seu alcance. Inclusive os


livros de textos existentes no mercado, de um modo geral pobres e desactualizados.
Mas poderá evitar muitos dos seus inconvenientes se estiver atento a alguns problemas
da maior importância.
A primeira opção que se lhe oferece é a da sua adopção ou não. É perfeitamente
possível trabalhar sem livro desde que o professor tenha a disponibilidade suficiente
para recorrer a outros elementos, sem dúvida mais atraentes e eficazes - texto
radiofónico, entrevista, canção, artigo de imprensa, jogos diversos, etc. - e supere as
crónicas dificuldades de papel. O professor obrigado a optar por um livro de texto
procurará com a moderação quando for possível, isto é, recorrerá a ele só quando não
dispuser de materiais mais atraentes.

O principal defeito dos livros de textos resulta, geralmente, de uma linguagem artificial
e de uma temática infantil e escolar. Aí se incluem os textos extraídos de revistas como
Passe-Partout, Quoi de neuf?, Feu vert - ressalvando um ou outro aspecto de
interesse - como algumas colecções de textos fabricados expressamente para o ensino
das línguas. Esta literatura artificial, atípica, "pasteurizada", não só não facilita a
aprendizagem como a limita consideravelmente. Aos textos fabricados preferem-se
hoje os documentos autênticos, isto é, produzidos sem qualquer intenção pedagógica.
São documentos com vida, actuais, que dizem respeito e despertam o interesse àqueles
que aprendem. Ao escolher um livro, o professor deverá portanto, recusar o artificial e
garantir a maior variedade, diversidade e autenticidade.

Na utilização do livro de textos e de outros materiais, não se perderão de vista as


variedades linguísticas e o significado, as funções da linguagem, as intenções
enunciativas, enfim, todas as variáveis do acto de comunicação atrás referidas, como
condição necessária para a compreensão e utilização dos vários tipos de discurso de
acordo com as situações e as circunstâncias da comunicação. Uma boa utilização de
um livro mau poderá superar alguns dos seus defeitos, sobretudo se o professor estiver
à altura de definir correctamente os objectivos da aprendizagem.

A aquisição da gramática de uma língua estrangeira condicionamento ou


reflexão?

Têm sido por vezes contraditórias as opiniões manifestadas por especialistas no


domínio da didáctica das línguas acerca da utilidade e da necessidade da gramática no
processo de aprendizagem. Isso resulta em grande parte do facto de não se definir o
âmbito do próprio termo gramática, já que ele pode ser utilizado com várias acepções.
Pode decorar-se um compêndio de gramática de uma língua e não ser capaz de a falar.
Trata-se, neste caso, de um saber teórico, de um saber acerca da língua sem saber a
própria língua. Por outro lado, pode saber-se falar uma língua sem a menor
consciência das regras que presidem ao seu funcionamento. É o caso do analfabeto
que fala correctamente a própria língua e nunca ouviu falar de gramática, de
concordâncias, de paradigmas, etc. Ele possui um saber prático, um saber fazer que
exclui o conhecimento da organização interna do instrumento que sabe utilizar – a
língua – sem a menor consciência das regras que explicam o seu funcionamento.

À criança que aprende a língua materna não precisa que lhe expliquem que há artigos,
substantivos, adjectivos, verbos, etc; que a frase tem sujeito, predicado e
complementos. O mesmo se passa com os emigrantes, que acabam por compreender e
falar uma língua estrangeira ao fim de um certo tempo de exposição à língua. De onde
se conclui que para aprender uma língua não é indispensável nem a utilização de uma
metalinguagem gramatical nem a explicitação de regras sobre o seu funcionamento.

O problema que se põe à didáctica das línguas é o de saber qual a estratégia mais
eficaz: a pura exposição à língua e à sua prática – ouvir, falar, ler, escrever; ou fazer
acompanha essa exposição e essa prática da metalinguagem e da explicitação das
regras? Qual o papel da língua materna no processo de aprendizagem de uma língua
estrangeira?

Os MAV recusavam a metalinguagem e em geral a explicitação de regras. Como já


vimos ao analisar a psicologia behaviorista de Skinner, a gramática adquiria-se através
da repetição mecanicista de estruturas, pela manipulação de frases, que conduziam à
aquisição de hábitos e de comportamentos que não necessitavam de passar pela
reflexão consciente, que não requeriam um processo de elaboração ou estruturação
mental. O recurso à língua materna era não só inútil mas até prejudicial, por facilitar
as interferências na língua estrangeira. Os manuais de gramática caíram em desuso
porque todo o trabalho, na aula ou em casa, era rigorosamente determinado pelo
professor. Os exercícios estruturais eram o remédio para tudo e ninguém se atrevia,
por exemplo, a recomendar o estudo dos paradigmas - verbais, pronominais, etc.
Hoje vemos todo este programa de uma forma bastante crítica. As estratégias de
aprendizagem são actualmente diferentes de acordo com a diversidade dos objectivos
e das situações de aprendizagem, a idade, o local (país estrangeiro ou não), o facto de
o sujeito que aprende já conhecer ou não uma metalinguagem gramatical. Parece que
seria tão absurdo obrigar um pedreiro português, analfabeto, trabalhador em França, a
aprender toda a terminologia gramatical para aperfeiçoar o seu francês como desprezar
os conhecimentos gramaticais do estudante que, em Portugal, aprende a língua
francesa. Sem pensar que a metalinguagem gramatical é indispensável, reconhece-se
que seria um desperdício considerável não a utilizar se os sujeitos que aprendem já a
conhecem na língua materna.
A repetição continua a ter um papel importante, mas inserida num processo de reflexão
e explicitação do funcionamento da língua. Em vez da utilização repetitiva e
condicionada da língua, procura hoje incentivar-se, desde o início da aprendizagem, a
produção livre de enunciados. A autonomia daquele que aprende traduz-se no esforço
pessoal e numa maior utilização de instrumentos de trabalho anteriormente
menosprezados, como o dicionário e a gramática. A língua materna, longe de ser
considerada um elemento de perturbação, é antes tida como um apoio indispensável.
Por paradoxal que pareça a afirmação, é graças ao conhecimento da língua materna que
é possível aprender uma língua estrangeira. De facto, é esse conhecimento que torna
possível a estruturação .do pensamento, que permite a apreensão do mundo interior e
exterior ao indivíduo, que constitui o substracto ou o suporte para a aquisição de todo o
conhecimento, nomeadamente outra língua. Enfim, a estratégia actual para a aquisição
da gramática de uma língua estrangeira assenta, antes do mais no reconhecimento de
que essa aquisição passa por um processo consciente e reflectido, como condição prévia
ou, pelo menos, como apoio inestimável à estruturação e sistematização do
conhecimento da língua estrangeira e à capacidade da sua utilização prática de forma
espontânea.

A análise dos erros

Teoricamente, o erro não tem lugar nos MAV. O isolamento máximo da língua a
ensinar, quer nos manuais quer em fita magnética, a prática exclusiva das formas
correctas - audição, repetição - através de um trabalho minuciosamente programado e
que exclui a utilização livre e espontânea da língua, conduziriam fatalmente à aquisi-
ção de hábitos e comportamentos linguísticos que seriam a reprodução fiel dos modelos
praticados. O aparecimento do erro teria de provir de uma falha no processo, de um
vício que era necessário impedir. O próprio facto de se considerar como uma doença,
como uma praga, supõe da parte do professor uma atitude punitiva, geradora de inibi-
ções da parte do aluno, sempre tentado a esconder as suas deficiências, em vez de
livremente as manifestar e tentar superar.
Os estudos dos últimos anos permitiram concluir que o erro não é apenas inevitável, ele
pode ser também da maior utilidade no plano pedagógico. Actualmente não se considera
um desvio, mas antes um índice de aprendizagem de um sistema transitório. De facto,
ele pode ser a prova de que a aprendizagem se processa nos moldes mais correctos e
eficazes quando a criança usa formas como fazi, trazi, isso prova que os seus
mecanismos mentais funcionam lindamente aplicando por analogia a mesma regra que
lhe permite utilizar comi, dormi, senti, ouvi. O mesmo se passa com o estudante de
francês quando emprega formas como vous disez, por analogia com vous aimez, vous
parlez, etc. Num e noutro caso já se atingiu um estádio de aprendizagem que permite a
criação linguística de acordo com regras de funcionamento da língua, mas ainda não se
atingiu o estádio que lhes permitirá discernir as restrições à aplicação dessas regras. Por
outras palavras, a aprendizagem faz-se por estádios sucessivos de estruturação do já
adquirido e a cada um desses estádios corresponde um sistema intermediário, ou
competência intermediária, que se define por oposição à competência definitiva, que é a
que se aproxima da do falante indígena.
Vista a esta luz, a análise dos erros pode dar-nos indicações preciosas, quer sobre a
evolução da aprendizagem quer sobre as insuficiências dos modelos descritivos. Quanto
ao primeiro aspecto, é a análise dos erros, mormente numa perspectiva individual e
longitudinal, que permitira melhorar a aprendizagem, no sentido de uma melhor ade-
quação dos objectivos imediatos, da progressão, do ritmo, à situação e às necessidades
do sujeito que aprende. No segundo caso, a análise dos erros permitirá a elaboração de
gramáticas pedagógicas que façam ressaltar o que não foi correctamente descrito.
A análise dos erros, das frases, e dos sistemas intermediários, estão na base de uma nova
estratégia de aquisição das línguas estrangeiras. Essa estratégia parte dos erros e
produções dos alunos, aceita esses erros como meio de reflexão do sistema da língua e
apela para a sua capacidade de correcção e autocorrecção. O professor, assumindo o seu
papel de facilitador da aprendizagem, como facilmente se depreende, terá agora perante
o erro não uma atitude de censura ou de punição, mas antes de análise construtiva de
que extraíra, sem dúvida, indicações preciosas para o seu trabalho.

A gramática contrastiva

Até há pouco tempo, considerava-se que a maioria dos erros na aquisição de uma
língua estrangeira se devia a interferências da língua materna. Preconizava-se, por
isso, uma comparação sistemática das estruturas das duas línguas, o que permitia, por
um lado, insistir numa pedagogia das diferenças e, por outro, adoptar uma estratégia
de antecipação que permitisse dotar os alunos dos meios linguísticos adequados antes
que a interferência funcionasse.
A análise dos erros permitiu situar a gramática contrastiva numa perspectiva
diferente e reduzi-la a proporções bastante mais modestas do que aquelas que
assumiu no quadro da pedagogia audiovisual. De facto, verificou-se que as crianças
que aprendem a sua língua materna dão os mesmos erros que os indivíduos que a
aprendem como língua estrangeira; verificou-se igualmente que estrangeiros de
várias nacionalidades, logo possuindo línguas maternas diversas, dão os mesmos
erros quando aprendem uma língua estrangeira comum; o que nos permite concluir
que a interferência se verifica tanto no plano intralinguístico como interlinguístico.
A gramática contrastiva ou diferencial que assenta em pressupostos linguísticos e
psicolinguísticos muito discutidos e em parte ultrapassados, e que surge com o
objectivo preciso de prever, explicar e prevenir os erros provocados pela
interferência da língua materna, deixou, deste modo, de estar no centro das
preocupações da didáctica das línguas. Por um lado, a influência da língua materna
não é tão geradora de erros como se pensava; por outro lado, as novas teorias sobre o
erro vão no sentido não de o excomungar e de o evitar mas antes de o considerar
como inevitável e necessário, finalmente, considera-se hoje que o processo de
aprendizagem vai passando por etapas sucessivas de estruturação dos conhecimentos
de que o erro é uma passagem obrigatória. Sendo assim, que lugar e que papel ficam
para a linguística contrastiva?

Abordagem globalista ou diferenciada


A abordagem global é conhecida quer como método de leitura quer como método de
ensino das línguas e define-se como uma estratégia que privilegia as unidades extensas
ou conjuntos estruturados antes de os decompor nas unidades sucessivamente menores
que os constituem frase, palavra, sílaba, letra. O método global opõe-se ao método
analítico. Não é, porém, neste sentido que hoje se fala da abordagem global ou
globalista e diferenciada na didáctica das línguas.
Como é sabido, o conhecimento de uma língua comporta capacidades diferentes, as
capacidades de compreensão (oral e escrita). Cada uma delas influencia, naturalmente,
as outras, na medida em que o desenvolvimento de uma se reflecte nas restantes -
transfert de competência. A verdade, porém é que se trata de capacidades distintas, que
põem em jogo mecanismos - mentais neurofisiológicos - diferentes.
As capacidades de compreensão desenvolvem-se com muito maior facilidade do que as
de expressão. É perfeitamente possível compreender uma língua sem a conseguir falar.
Mas não é possível falá-la sem a compreender. Todos podemos verificar, aliás, que
alguns dos nossos alunos compreendem perfeitamente o professor, quer um texto
gravado, quer um texto escrito, e dificilmente proferem uma frase ou uma palavra. Isso
pode resultar de um certo desequilíbrio na aprendizagem, mas traduz uma situação que
é comum a todos os falantes de uma língua: o conhecimento passivo é muito mais
vasto do que o conhecimento activo.
Enquanto a abordagem globalista estabelecia uma mesma progressão para as várias
capacidades, defende-se hoje uma abordagem diferenciada das capacidades de
compreensão e das capacidades de expressão. São múltiplas as razões favoráveis a
esta estratégia. De um ponto de vista psicolinguístico, as operações de
descodificação levantam problemas diferentes das de codificação; no plano lin-
guístico, há dificuldades de expressão que não existem ou existem em muito menor
grau em compreensão: é muito difícil atingir performances correctas na utilização de
son, ses, leur, leurs, ao passo que a sua compreensão não oferece dúvidas; no plano
pedagógico, as necessidades dos alunos levam à definição de objectivos que não são
os mesmos em compreensão e em expressão. De acordo com esses objectivos, a
planificação de um curso deverá prever actividades diferenciadas para as várias
capacidades a desenvolver. Uma consciência clara destes problemas levará muitos
professores, por exemplo, a falar menos nas aulas e a deixar falar os alunos, por
forma a estabelecer um menor equilíbrio entre a compreensão e a expressão. De
facto, se os professores de línguas se habituassem a cronometrar o seu tempo de
palavra e o de cada um dos seus alunos, talvez se dessem conta das razões que levam
estes a compreender com facilidade e a falar pouco e mal.

Baptista, José Afonso (S/D). Diddáctica das Línguas Estrangeiras. Forma.


Algueirão.

Actividades
1- Elaboração de um glossário.
2- Leitura do texto “ O erro”.
3.5 – O ensino da língua materna

Construir a Cidade Intercultural


Painel: Lugares Amados - espaços culturais e pertenças linguísticas
V Encontro da APEDI Universidade Católica Lisboa, 13 de Julho de 2007-07-04 A
Língua Mate

A Língua Materna

Quando olhei para o tema que me foi proposto para este painel, falar da língua
materna, como lugar amado, na construção de uma cidade intercultural,
lembrei-me de quando era miúda e de como gostava que me propusessem
temas para fazer redacções na minha língua materna. E gostava, por uma
razão simples. É que essa língua fazia de tal modo parte de mim, que me
deixava todo o tempo do mundo para pensar, para sair dos espaços exíguos e
fechados da minha cidade de então. Será que a língua materna é um lugar
amado? Pensei. Quando nascemos, nascemos fadados para a linguagem.
Trazemos connosco uma faculdade inata que nos permite adquirir uma ou mais
línguas num curto espaço de tempo, desde que em contacto com elas. Com
menos de três anos já uma criança diz:

Eu vou pondo os livros


Não é esse que eu quero, quer’ o CD do bicharoco
A Joana é que não sabe nadar
Parece uma girafa mas não é
Olha uma troutineta…
Fui pescar um peixe mas não apanhei nenhum peixe, o peixe fugiu…
Quero mais uma vez… por favor! 1

Quanto tempo levará um adulto, ou um aluno, nas nossas aulas, a produzir,


com igual à vontade e fluência, numa língua estranha, expressões do mesmo
tipo, tão complexas sintáctica como pragmaticamente e com um vocabulário
tão diversificado? Lembro aqui algumas frases de um jovem chinês a
frequentar o 6.º ano de escolaridade, em Portugal:
O cão já ver uma gato. Ele para comer gato. Os pássaros do mãe já vem para
casa.2
As línguas maternas são as que adquirimos na primeira infância e que vão
crescendo connosco até ao limite imposto pelo bioprograma linguístico da
nossa espécie. Depois desse período, a partir de uma idade que para alguns
estudiosos será os seis anos, para outros pode ir até aos doze, as línguas que
adquirimos em contexto natural ou que aprendemos formalmente podem até
ser produzidas com fluência, mas não com o automatismo da língua-mãe. Se
nesses primeiros tempos, por alguma razão, retiramos à criança a possibilidade
de ouvir uma língua e de a produzir em contextos naturais, a sua capacidade
não se desenvolve e, mesmo que mais tarde venha a estar em contacto com
uma língua, o conhecimento que dela possa ter nunca atingirá o mesmo nível
de complexidade do da criança que a adquire desde o berço. São sobejamente
1
Frases produzidas por uma menina de 2 anos e 9 meses.
2 Expressões recolhidas no âmbito do Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (ILTEC):
http://www.iltec.pt/divling/index.html . 3 V. http://www.feralchildren.com/en/showchild.php?ch=genie
conhecidos os casos das crianças-lobo ou de crianças como a “Genie”3 , que
foi sequestrada pelo pai até aos treze anos, na Califórnia, e cuja linguagem foi
severamente afectada, a ponto de, após quase dois anos de reabilitação, ainda
só produzir frases como Applesauce buy store, “molho de maçã comprar loja”,
para traduzir a eventual ideia de é preciso molho de maçã ou temos de
comprar molho de maçã na loja. Se, durante a fase de maturação do órgão
mental que é a linguagem a criança perder o contacto com a sua língua
materna, esta também não se desenvolverá como esperado, ou sofrerá mesmo
um retrocesso. Como afirma James Cummins, especialista de educação
linguística em contexto multilingue e multicultural, no seu artigo Bilingual
children's mother tongue: why is it important for education?4 “as línguas
maternas das crianças são frágeis e facilmente perdidas nos primeiros anos da
escola”. Sobretudo em situações de imigração, se as crianças não estiverem
em contacto regular com a língua, na família e no bairro, embora sejam
capazes de a entender, dois ou três anos depois de entrarem para a escola,
podem já ter perdido a capacidade de a usar. Diria, pois, que a língua-mãe,
numa primeira instância, enquanto saber, não é propriamente um lugar amado,
porque não pode ser encarada como um objecto directo. É antes um sujeito:
está no nosso cérebro, somos nós. Aceitamo-la como aceitamos o respirar ou o
sorrir. Ao contrário do que acontece mais tarde, em que o adolescente e o
adulto podem oferecer resistência, consciente ou inconscientemente, à
aprendizagem de outras línguas, por razões que atribuímos genericamente à
ausência de motivações ou a uma rejeição activa do outro, na fase de
aquisição da língua materna, existe uma ingénua e total disponibilidade da
criança para receber, processar e interiorizar os dados linguísticos que a
rodeiam, quaisquer que eles sejam. Venham eles de uma ou mais línguas ou
dialectos, sejam eles muito ou pouco abundantes.
A consciência da língua como objecto de afecto (de sentimentos positivos ou
negativos) só surge depois, quando a cultura, a sociedade e as circunstâncias
da vida permitem ou impõem uma distanciação. Quando nos afastamos dela ou
quando nos afastam dela. Como diria a linguista polaca Anna Wierzbicka
(1997:20)5 a propósito da cultura, só conseguimos descobrir a identidade
especial da nossa própria cultura (por muito heterogénea que seja) no
momento em que tivermos uma relação íntima e profunda com outra cultura e
em que cada um de nós por ela for desafiado, ao ponto de desenvolver um
novo sentimento de si. 6 Ou, citando Todorov (1986:20)7 , A identidade nasce
da (tomada de consciência) da diferença8 Todos sentimos já, quando viajamos
há demasiado tempo por um país estrangeiro, o enorme desejo de voltar à
nossa língua materna: para descansar, dizemos, sem ter de pensar para falar e
podendo pensar falando. Daí a metáfora dos lugares, tantas vezes associada
às línguas: elas são casa, pátria, refúgio. São talvez, para quem gosta de
cidades, a sua cidade. Mas há razões menos nobres para ter de amar uma
língua. É quando nos obrigam a distanciar-nos dela. É quando nos obrigam a
emigrar para outra cidade com a promessa de não voltarmos nunca mais à
nossa. Quando nos dão como futuro ir apagando as memórias. Façamos um
exercício. Imaginemo-nos sozinhos num país distante, rodeados de vozes
diferentes e incompreensíveis, sem amarras nem certeza de regresso. Adultos,

3
Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (ILTEC): http://www.iltec.pt/divling/index.html . 3 V.
http://www.feralchildren.com/en/showchild.php?ch=genie
4 Cf. http://www.iteachilearn.com/cummins/ 4
talvez 5 In Understanding cultures through their key words. Oxford: Oxford
University Press. 6 Tradução minha. 7 In « Le croisement des cultures».
Todorov, T. (ed) Le Croisement des cultures. Paris : Hérissey à Évreux :5-26. 8
Tradução minha. 5 possamos ainda, de vez em quando, descansar a angústia
ou a tristeza no nosso diálogo interior. Pegue-se agora numa criança, na sua
ingénua e total disponibilidade e mostremos-lhe que a sua língua, que ainda
cresce com ela, não serve para nada. Amputemos-lhe uma mão. Façamo-la
sentir que a palavra vôvô, pepé, papai, abuelito está tão longe e inacessível
quanto ele, o seu cabelo tão bom de enrolar e as suas estórias ao fim do dia.
Isso passa, dirão alguns. Breve se adaptarão à nova casa de uma língua só. E
o que não fica, ou fica, quando isso passar? Onde, quando e sob que forma irá
rebentar a raiva, a angústia, a inibição? Quantos pensamentos ficarão por dizer
e até por pensar? É aqui que temos de agir. Para construir a cidade aberta (a
que não é exígua nem fechada, como a minha cidade da infância) temos de
abrir espaço para dar futuro às memórias e ao saber (que, afinal, nem ocupa
lugar…). Há que encurtar as distâncias com os afectos. Mas não basta. As
línguas maternas, na pessoa das pessoas que as falam têm de ser defendidas.
E penso aqui em todas as línguas: orais e gestuais. Não andamos nós a
defender a língua portuguesa pelo mundo? Quero acreditar que o que nos
move, nessa luta, seja acima de tudo a defesa dos nossos falantes e de todos
aqueles que quiseram embarcar connosco, de motu próprio, no mesmo lugar
amado… Tratando-se de língua materna, trata-se de uma questão biológica e
não só social. Mais uma razão, pois, para socialmente agirmos. Como defender
então as nossas línguas, essas que ocupam hoje, em Portugal, quer
queiramos, quer não, o seu espaço na comunidade multifacetada em que
todos, 6 portugueses e não portugueses – desculpem o pessimismo ─ nos
últimos tempos tentamos sobreviver? Antes de mais, um pequeno reparo.
Sendo nós dotados de uma faculdade inata que, em condições normais, nos
permite adquirir qualquer língua ou conjunto de línguas; sabendo que a escolha
que nos foi dada de um certa língua, entre as 6 ou 7 mil que se falam no
mundo, é obra do acaso que nos fez nascer ou viver num certo lugar, pareceria
óbvio que todas as línguas são equivalentes, no sentido em que todas
cumprem os requisitos exigidos pelo bioprograma linguístico da espécie. Mas
não é. Infelizmente, para muitos, entre os quais se vêm contando alguns
responsáveis políticos, as línguas são hierarquizáveis, como o estatuto social,
as posses de cada um ou as carruagens dos comboios. Defender as línguas
maternas exige, pois, antes de mais, educação, muita educação9 . Temos de
investigar, divulgar, aprender e ensinar coisas tão simples e tão complexas
como o que é saber uma língua, qual a importância da língua materna e do
bilinguismo precoce no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos e no seu
bem-estar social, como é que as línguas reforçam a identidade, tanto do
indivíduo como do grupo, como é que o multilinguismo comunitário assumido e
valorizado, reforça a empatia e a capacidade de comunicar e de aprender com
os outros, alargando os conhecimentos e melhorando comportamentos, etc.
etc. Isso poderemos discutir no debate, com a certeza de que são muitas as
vantagens de acarinhar as línguas maternas: vantagens cognitivas, sociais,
culturais e linguísticas. Por agora, já que falamos de educação e que estamos
num Encontro promovido pela Associação de Professores de Educação
Intercultural, não resisto a uma pequena palavra sobre a defesa das línguas
maternas na Escola. 9 Citar Eduardo de Sá, sobre a difícil tarefa que os
primeiros filhos têm de educar os pais no desbravar da sua nova situação- 7
Como dizia eu, na apresentação pública do projecto Diversidade linguística na
Escola Portuguesa, a escola é o lugar “onde a sociedade desemboca na sua
forma mais desarmada e crua”. Direi também que é o lugar onde se tece a
trama invisível e imprevisível da sociedade presente e futura. Olhemos, pois,
para a escola e para a sua diversidade de dialectos, variedades sociais,
línguas; formas de estar, de pensar e de aprender; memórias, saberes e
desejos. É muito difícil para um professor gerir toda esta diversidade (de ordem
cultural, linguística e idiossincrática), diversidade tantas vezes silenciosa, que
ele sabe existir mas cujos contornos nem sempre tem tempo para investigar e
iluminar no contexto de aula, potenciando os lados bons e tentando mudar os
maus. Porque nem tudo o que é diverso é bom. À nossa escola, como à nossa
sociedade, chegaram, vindos com outras culturas, alguns valores,
comportamentos e formas de pensar que não podemos deixar de questionar,
para bem de todos. Penso, nomeadamente, em ideias e práticas punitivas da
mulher… Repare-se que digo questionar e não ignorar, esconder ou maltratar.
Porque o questionar implica diálogo e exposição das diferenças e nessa
exposição estamos todos no mesmo barco, sujeitos à mesma observação e
aos mesmos processos de mudança. E no entanto, não há uma única razão
sequer para classificarmos negativamente as línguas maternas alheias. Uma
língua não é boa nem má. É. Por outro lado, se trazer à superfície a cultura
silenciosa dos nossos alunos é tarefa difícil e por vezes melindrosa, não há
nada mais fácil e simples que deixar falar uma língua. Ao deixá-la falar,
deixamos também falar, em parte, a cultura que transporta. Se a escutarmos e
quisermos compreender, mesmo através da tradução, ou de simples
descrições gramaticais e dicionários que o mundo da informação global nos
põe hoje tão 8 rapidamente à disposição, estamos ao mesmo tempo a entender
(e a ajudar os nossos alunos a entender) o modo como cada língua interfere na
aprendizagem da língua portuguesa. Saberemos, por exemplo, que as crianças
que falam mandarim terão tendência a despojar os verbos das suas flexões
verbais, já que elas são inexistentes na sua língua materna, ou que as vogais
nasais serão difíceis de pronunciar, para um aluno ucraniano que não as tem
no seu sistema fonológico… Com isto, ajudá-los-emos, também, a controlar de
forma mais autónoma e rápida o processo de aprendizagem do próprio
português, ao mesmo tempo que lhes damos um sinal claro e apaziguador de
que está tudo bem: de que a sua língua não está esquecida, pelo contrário, é
valorizada por todos, de que as suas falhas em português não decorrem de
uma incapacidade linguística que os coloca num patamar abaixo dos alunos
portugueses e, além disso, de que eles estão onde nós esperamos: no
caminho, não no ponto de chegada. Quando chegarem ficarão mais fortes,
porque mais sabedores: terão pelo menos duas línguas. Poderão agora dizer-
me: isso é muito bonito, mas como fazê-lo, em tempo útil, com aulas de quase
trinta alunos, com um programa extensíssimo para cumprir, com a espada dos
exames sobre nós, sem materiais, sem formação específica? A sabedoria
popular tem muitos ditos sobre a palavra poder, como sempre contraditórios,
ou não fosse a sabedoria e a realidade múltipla e contraditória… Vejamos dois:
quem faz aquilo que pode a mais não é obrigado; querer é poder. Ambos
legítimos, ambos aplicáveis a este caso. Por um lado, são as pequeninas
coisas que fazem mover ou retardar o mundo. Deixar que uma criança fale da
sua língua, mostrar-lhe que não tem de perder o seu passado, nem esquecer a
sua identidade para viver connosco e ser bem sucedida, é uma dessas
pequeninas coisas. 9 Por outro lado, se tivermos investigado, se tivermos
estudado a matéria, se tivermos compreendido, até pelo conhecimento das
experiências alheias, as vantagens da preservação das línguas maternas e do
seu desenvolvimento a par do desenvolvimento de outras línguas, como a
nossa, provavelmente teremos de querer, de lutar por isso. E isso tem muitas
dimensões, que vão da procura de mediadores linguísticos, até à introdução de
aulas de língua ou até mesmo ao ensino bilingue, que implique igualmente as
crianças de língua materna portuguesa, pois também merecem. Tudo no tempo
certo, que é o tempo próprio para cada situação. Uma coisa sabemos: ser
bilingue aumenta a capacidade de abstracção e de reflexão linguística, torna o
pensamento ─ porque capaz de processar a informação através de duas
línguas diferentes ─, mais flexível e ágil. Por outro lado, a consolidação da
língua materna, na escola, facilita a aprendizagem de novas línguas,
favorecendo a transferência de capacidades e de conhecimentos adquiridos
em cada uma delas. Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem, dizem
alguns. A pessoa que só sabe uma língua não sabe verdadeiramente essa
língua, dizia Goethe. Também para José Agualusa10 , ao contrário do que
sugere o mito de Babel, […] é mais fácil à humanidade alcançar Deus, isto é, o
entendimento do mundo, falando muitas línguas do que comunicando numa
única. Há realidades, sentimentos, certos prodígios e mistérios, que só podem
ser expressos numa determinada língua. Se essa língua se perde, o Homem
fica inevitavelmente mais longe do entendimento. Cada uma destas vozes,
variando, amplifica o mesmo tema.

10 In A minha pátria é uma viagem:


http://www.google.com/search?client=firefoxa&rls=org.mozilla%3Apt-
BR%3Aofficial&channel=s&hl=ptBR&q=A+minha+p%C3%A1tria+%C3%A9+um
a+viagem&lr=&btnG=Pesquisa+Google 10 São metáforas, é verdade, e por
isso dizem muito. Deixemos que as metáforas povoem o nosso mundo, a
nossa escola e a nossa mente, se quisermos construir essa cidade de
interacções em que todos chegaremos ao mesmo por palavras diferentes.

Dulce Pereira
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa ILTEC

ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA MATERNA

1.1 - OS CONTORNOS DO PROBLEMA

O ensino-aprendizagem da língua materna em contexto escolar constitui, em si, um


empreendimento complexo e não isento de contradições. Analisemos algumas.

A primeira prende-se com o facto de, no início da escolaridade, o aluno possuir já um


conhecimento substancial da sua língua, adquirido em meio natural. Se é certo que
esse conhecimento varia segundo factores diversos, biopsicológicos e socioculturais,
em geral considera-se que, à entrada na escola, a criança já «conhece os sons da
língua e respectivas regras de combinação, os paradigmas flexionais regulares, as
regras produtivas de formação de palavras, a 5 generalidade dos padrões de formação
de frases simples, coordenadas e de muitos tipos de subordinadas...»1 . Desenha-se
assim, desde logo, um problema difícil de ultrapassar: como constituir um saber novo,
a adquirir pela criança aprendente, num domínio em que os recursos de que dispõe –
o seu saber linguístico – se lhe afiguram como naturalmente suficientes?2 Ou, de
outro modo, como instituir a língua que o aluno funcionalmente conhece, ainda que
de modo instável, em objecto de estudo? Como desenvolver nele a atitude de
distanciação crítica e o domínio das metodologias e dos instrumentos que lhe
permitam alargar e aprofundar esse conhecimento, transformando-o e
transformando-se, ao longo de tal processo? Que significa, pois, para o aluno,
aprender a sua língua em contexto escolar? Se esta questão assume a sua máxima
acuidade no início da escolaridade – e não se restringe, obviamente, à problemática da
aquisição de um novo medium, isto é, da leitura e da escrita – ela continuará a colocar-
se, com toda a pertinência, durante o período abrangido pela escolaridade obrigatória,
já que se verificam descontinuidades e insuficiências de desempenho com que a
escola terá, necessariamente, de se ir defrontando, quer ao nível da expressão oral
quer do processo de alfabetização e do exercício subsequente da leitura e da escrita.
Em estreita relação com o ponto anterior surge o da definição, fixação e utilização, por
professores e alunos, de um referenciai de ensino-aprendizagem, um quadro
orientador da intervenção pedagógica (nela incluídas as práticas de definição de
objectivos e de avaliação). Sendo a língua um fenómeno de natureza supra-individual,
institucional, balanceado entre o obrigatório, a «norma», e o possível, a «variação»,
segundo que modelos e critérios assume a escola a sua vocação padronizadora? E que
lugar ou que estatuto reserva ela ao saber linguístico do aluno? Com frequência e
numa atitude exclusivamente prescritiva, entende-se que aprender a língua – isto é,
adoptar novos padrões de desempenho – implica, no essencial, que o aluno proceda à
substituição das estruturas e modos de expressão que lhe são familiares por outros,
mais conformes ao modelo que a escola lhe propõe. Grosso modo, esta posição
pressupõe que, para se estar de posse de um saber, se 1 Cf., M. R. Delgado – Martins,
Perspectiva Teórica e Cognitiva, Encontro sobre os Novos Programas de Português,
(1991:4). Note-se que, para além do domínio de mecanismos sintácticos, esse
conhecimento também se estrutura no plano semântico-pragmático, a partir das
aquisições de lexemas, ou conceitos, e das combinatórias dos mesmos em proposições
e esquemas (cf. 106 – II Parte). 2 Essa consciência resulta, é óbvio, do facto de o
domínio adquirido da língua satisfazer as suas necessidades comunicativas, enquanto
falante. Daí a importância do processo de ensinoaprendizagem como meio de criação
intencional e controlada de novas necessidades. 6 tem de anular outro, que o que foge
à «norma» é, invariavelmente, «erro» a banir e que esse «erro» está sempre, por
princípio, do lado do aluno... Esta questão agudiza-se, quando não existe sequer
coerência entre os referenciais propostos no processo de ensino-aprendizagem, nas
várias disciplinas curriculares, e os que são utilizados nas práticas de avaliação, sendo
vulgar que o aluno seja orientado, em termos de conhecimentos e capacidades
visados, segundo um dado modelo e avaliado segundo outro. Num pólo oposto,
começa também a ser corrente encarar o ensino da língua materna numa atitude de
denegação de tais pontos de vista, como se fosse possível, numa pedagogia da língua
consistente e credível, ignorar uma das suas vertentes básicas, a sua feição
padronizadora e normativa. Factores de contradição são também manifestamente
visíveis no plano das relações entre os padrões linguísticos adoptados pela instituição
escolar e os que outras agências socializadoras, como os meios de comunicação social,
lhe oferecem, enquanto modelo(s) linguístico-comunicativo(s). Embora tal problema
ultrapasse o âmbito deste livro, não deve passar aqui sem referência, uma vez que a
relação citada constitui um nó essencial na rede de sistemas que asseguram, pela via
da língua e da comunicação, a modelagem cultural da sociedade. Uma outra
contradição instalada na instituição escolar prende-se com a transversalidade do saber
linguístico, na sua condição de suporte, funcional e estruturalmente integrado nos
restantes saberes. Com efeito se, em princípio, a aprendizagem da língua materna é a
intenção que orienta toda a organização das actividades desenvolvidas na aula da
respectiva disciplina, é um facto que o aluno é, a todo o momento, exposto e
confrontado, nas diversas áreas/ /disciplinas do currículo, com situações de
comunicação que, embora não de modo sistemático, lhe proporcionam diversificadas
aquisições e aprendizagens de índole linguística. Também é certo, contudo, que nem
sempre assiste à intervenção dos docentes, fora do contexto da aula de língua
materna, uma intencionalidade dirigida para o plano linguístico-discursivo e que,
mesmo existindo, tal intencionalidade é coerente e concertada. Frequentemente,
fazem-se «diagnósticos de situação» – quase sempre de carácter apocalíptico – sobre
as aptidões linguísticas dos alunos e alienam-se oportunidades de aprendizagem
relevante, quer no plano dos saberes referenciais – (os chamados «conhecimentos do
mundo») que dispõem, no alargamento vocabular, de uma fonte essencial –, quer ao
nível das relações lógico-semânticas e lógicodiscursivas (como, por exemplo, as
relações de causa-efeito, condição-consequência ou as que configuram a
temporalidade), quer mesmo no que respeita ao domínio do discurso, e de modelos
específicos de escrita, instrumentos de recolha e tratamento 7 de informação (como a
elaboração de fichas e outras formas de registo, a consulta de dicionários, glossários,
enciclopédias, índices de vários tipos, etc.). É sabido que essa alienação não acontece
por acaso: quanto mais o saber é dado ao aluno na forma de um discurso acabado,
abstractizante, menos ele participa da sua construção e menos se apropria dos
instrumentos linguísticos que lhe permitem transformar os dados sensoriais da sua
experiência concreta em pensamento conceptual – a organização do saber, no espaço
pedagógico, anda a par com os modelos de comunicação que o regulam. Desse modo,
a ignorância mútua por parte dos docentes dos objectivos/conteúdos específicos de
cada disciplina, longe de estimular, dificulta ou quase impede que, no aluno, se
desenvolvam processos de transferência e recorrência de conhecimentos e
metodologias, bem como a detecção de semelhanças, diferenças,
complementaridades, paralelismos ou homologias, passíveis de serem estabelecidos
entre os conhecimentos e a reflexão linguística e as restantes áreas e objectos de
saber. Observe-se, no entanto que, qualquer que tenha sido o investimento feito na
vertente linguística da construção dos conhecimentos específicos, essa vertente não
pode, em última análise, ser escamoteada, quanto mais não seja porque o processo de
avaliação a faz emergir. Em síntese, ainda que nas diversas frentes curriculares se não
promova, em consciência, a aprendizagem da língua materna, em todas elas se
proporcionam situações de aprendizagem e, em todas elas, inevitavelmente, se
avaliam – em paralelo com outros saberes e, por vezes, quase em absoluto – os
conhecimentos e as aptidões linguísticas dos alunos. São reconhecidas as implicações
deste fenómeno na problemática do insucesso escolar; de um outro ângulo, são
também conhecidos estudos que, no domínio da avaliação escolar, visam o
aperfeiçoamento de técnicas e instrumentos, no sentido de se reduzir o efeito
aleatório do factor linguístico na apreciação do rendimento dos alunos. No entanto, no
essencial, esta questão permanece incontornável, o que acentua a necessidade de se
reforçarem todas as frentes de ensino-aprendizagem da língua, nomeadamente as que
se podem desenvolver numa perspectiva transdisciplinar.

1.2 MULTIDIMENSIONALIDADE E ESPECIFICIDADE DO SABER LINGUÍSTICO


As contradições expostas, inerentes ao sistema de ensino ou a formas de conceber a
intervenção pedagógica na área da língua materna, obrigam a colocar duas
interrogações de base: Que consciência possuem, ensinantes e aprendentes, do que é
e de como se adquire o domínio de uma língua? De que modo o sistema de ensino
potencia essa realidade? Toda a reflexão que o desenvolvimento da Linguística,
enquanto ciência, veio proporcionar, ao longo do séc. XX, não obstante alguns
equívocos e distorções verificados na passagem de saberes do campo científico para o
campo pedagógicodidáctico, tem permitido pôr em evidência a multidimensionalidade
do fenómeno linguístico, enquanto fim e objecto de estudo. No contexto pedagógico
algumas dessas dimensões foram, durante largas décadas, privilegiadas – o caso da
componente morfológica, dominante no chamado «ensino tradicional» ou da
componente sintáctica, especialmente visada no ensino fundado no estruturalismo
post-saussuriano –, em detrimento de outras abertamente negligenciadas. Na
actualidade e por força do alargamento de perspectivas processado no campo da D, L.,
fruto do seu cruzamento com diversas ciências da linguagem e disciplinas afins (da
Linguística – Sócio e Psico – à Psicologia Cognitiva) começa a ser consensual que só
uma concepção multidimensional e integradora do ensinoaprendizagem da língua
poderá restituir-lhe o seu papel eminentemente formativo, elevando-a à verdadeira
condição de matriz do pensamento e da acção no plano individual, social e cultural.
Assim, se a língua é sistema e código – realidade anterior e exterior ao indivíduo,
aparentemente redutível aos planos/subsistemas: • fonológico, relativo aos
mecanismos de identificação/produção de unidades correspondentes a classes de
sons específicos (os fonemas); • morfo-sintáctico ou gramatical, em que se procura
captar as relações entre forma, estrutura e função, na determinação de princípios e
regras de selecção/organização a que obedecem as unidades significantes da língua
(do morfema à frase); • léxico-semântico, no qual se pretende o estudo das
significações e a análise dos mecanismos e das regras que assistem à sua produção e
transformação; a língua é também praxis, acção actualizadora – simultaneamente
instauradora e transgressora – do referido sistema, no plano das relações
intersubjectivas. Daí o 9 relevo conferido, na actualidade, às dimensões ou níveis que
decorrem não á do sistema mas do uso, a saber: • pragmático e sociocomunicativo,
que se ocupa dos diferentes actos e estratégias que a língua permite concretizar e das
consequentes transformações operadas no quadro interlocutivo; • discursivo-textual
que, tomando o discurso – e a sua realidade material, o texto – como uma produção
socialmente situada, visa dar conta dos constrangimentos linguísticos e
extralinguísticos que o sobredeterminam e configuram. Na perspectiva do ensino-
aprendizagem, a abertura e variedade de enfoques sobre o fenómeno linguístico, bem
como a diversidade de instrumentos de análise disponíveis têm, em si, tanto de
promissor quanto de arriscado, já que, sem a conveniente filtragem pedagógica de tal
aparelho teórico, se aumentam exponencialmente as probabilidades de se transformar
num processo formalizado e desvitalizado o que deverá ser um contacto com a língua
enquanto «forma de vida»3 . Para que tal perversão se não verifique, ter-se-á de ter
presente que todos os níveis enunciados resultam de um esforço de conceptualização
linearizante de uma realidade que os integra em simultâneo. Ou seja, ter-se-á de
respeitar a especificidade do saber linguístico nas suas dimensões básicas,
representativa e comunicativa, tendo presente que a aquisição da gramaticalidade
constitui um tópico instrumental do desenvolvimento da linguagem, só plenamente
atingido quando articulado a contextos e práticas comunicativas bem definidos, cuja
vivência, segundo J. Fonseca, «fornecerá a matização e a reorganização da gramática já
interiorizada, que é com certeza uma gramática da língua mas não menos uma
gramática da comunicação-interacção» (1987:76). Só uma D. L. M. fundada nessa
especificidade poderá avivar em docentes e alunos, perante a multiplicidade dos
fenómenos e dos métodos de observação/reflexão, a consciência da importância da
língua como construtora dos mecanismos da identidade e da relação interindividual,
como modelizadora de mundos no plano do real ou do imaginário, como território
simbólico onde, afinal, se geram, enraízam e renovam a cultura e a memória das
comunidades e das nações.

1.3 O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO


Expressão recuperada de L. Wittgenstein por J. Fonseca, no artigo «Ensino da língua
materna como pedagogia dos discursos», separata da revista Diacrítica (1988 – 89:63).
10 Aludiu-se, no ponto 1 deste livro, ao conhecimento que o aluno possui da sua
língua no momento de iniciar o percurso de escolarização e à controvérsia que, então,
se estabelece sobre o papel e a função da escola face a esse capital linguístico.
Interessa agora referir que esse conhecimento, interiorizado por processos ditos
«naturais», por oposição aos «institucionais», da responsabilidade da escola,
corresponde a uma apropriação funcional da língua e tem por características ser: •
intuitivo; • subconsciente, implícito (é um saber «como» e não um saber «sobre»); •
assistemático e instável; • mais orientado para o produção de sentido do que para a
forma; • socialmente marcado (porque resultante das múltiplas interacções em que o
falante se vê envolvido desde que nasce). Para designar o tipo de fenómenos que
garantem essa apropriação – conhecimento que releva tanto das características inatas
da espécie e do indivíduo, em particular, quanto do adquirido pela via da exposição ao
meio linguístico, nos processos de socialização – diversos autores propõem o termo
«aquisição», por oposição a «aprendizagem». A aprendizagem, assim, caracteriza-se
por ser um conhecimento: • reflexivo; • consciente e explícito; • sistematizado; •
orientado para as relações forma-sentido; • tendente, pela via da regularização e da
padronização, ao exercício do controle normativo da produção verbal. Entre os autores
referidos destaca-se S. D. Krashen4 , cujo modelo, de base psicolinguística, estabelece,
em termos dicotómicos, a oposição aquisição/aprendizagem, processos distintos
mediante os quais se processará a apropriação da língua pelo falante. Embora ambas
possam ocorrer e coexistir nos dois contextos citados – natural e institucional –,
segundo o mesmo autor, a aprendizagem terá um papel menor, por referência ao
primado conferido à aquisição, quase não havendo qualquer espécie de interacção
entre elas: o que resulta da aprendizagem – empreendida em contexto natural ou
institucional, – nunca será da natureza do adquirido e não terá sobre ele qualquer
efeito. Permitirá, apenas, e pela activação do 4 As teorias de S. D. Krashen estão
patentes nas suas obras, citadas na bibliografia deste livro. 11 dispositivo de controle
consciente – a que Krashen atribui a designação de monitor – a formulação de juízos
avaliativos sobre o grau de conformidade das produções à norma escolar (sobretudo
no domínio da escrita). Do modelo de Krashen e das proposições que sustenta
decorrem algumas implicações para o plano didáctico, sobretudo pelo retomar da
controversa questão das relações entre as «abordagens naturais» e o ensino da
«gramática explícita». Daí que, a propósito do tópico «apropriação», seja oportuno
desenvolver algumas observações esclarecedoras do posicionamento que, nesta obra,
se assume sobre a mesma matéria. Se não é possível, ainda, dispor de uma teoria que
permita explicar como os dados da aprendizagem interagem com os da aquisição,
parece cada vez mais justa a afirmação de H. Besse-R. Porquier de que um modelo que
pressuponha em absoluto tal dicotomia «... não corresponde, ou corresponde mal, à
experiência trivial que se pode ter de uma língua materna ou estrangeira.» (1986:77).
Com efeito, no comum das situações de comunicação, qualquer falante necessita de
empreender, a pretexto dos mais variados aspectos dos códigos em jogo, uma
actividade clarificadora e negociadora das formas-sentido produzidas, a qual, embora
latente e imediata, com frequência se explicita e torna consciente, passando à
categoria das actividades «meta» (linguísticas, discursivas, etc.). Ainda que suscitada
num meio natural e numa situação de aquisição, essa actividade estará mais próxima
da aprendizagem, sendo certo também que, acima de tudo, porá em evidência o
quanto, na realidade, são difíceis de estabelecer os limites entre uma e outra. Limites
que, aliás, o progressivo domínio da língua vai ajudando a esbater, já que nela própria
se inscrevem um léxico e diversos dispositivos gramaticais e textuais de índole
metalinguística (de que fazem parte verbos como «explicar», «traduzir»; expressões
como «quer dizer», «isto é», «ou seja»; termos como «palavra», «frase», «texto»,
etc.). Por conseguinte, o transporte para a D. L. desta oposição, originária da
Psicolinguística, tem alguma razão de ser – permite pôr em relevo as diferenças
fundamentais entre os contextos escolar e extra-escolar e a vocação dominante de
cada um deles. Torna-se redutora, contudo, quando invocada para justificar uma
pedagogia exclusivamente centrada na aquisição que seria, afinal, um contra-senso já
que, num esforço de «autenticidade», teria de negar a condição de jogo, fingimento,
simulação, inerentes a uma parte considerável das práticas pedagógicas que, pela sua
intencionalidade e características peculiares, são «não naturais». Considera-se,
portanto, que o processo de apropriação linguística envolve, na sua complexidade,
aquisição e aprendizagem e que a diferença entre estas não 12 reside tanto na
natureza das actividades realizadas mas no grau em que as mesmas são desenvolvidas:
actividade operativa ou procedimental (dominante no processo de aquisição);
actividade reflexivo-declarativa (emergente no processo de aprendizagem). Assim
sendo, e no pressuposto da sua mútua implicação, é função de sistema escolar e, mais
especificamente, da aula de Português, de acordo com E I. Fonseca, garantir que «a
aquisição e o aperfeiçoamento das várias competências inerentes à prática da língua
se processem no espaço-aula com características que se diferenciem das que tem a
aquisição não programada dessas competências no âmbito da prática habitual e
quotidiana da língua. Por outras palavras: a aula de língua materna não é «mais um»
lugar em que se realiza a actividade linguística, é um espaço específico de
consciencialização e treino intencional dessa actividade.» (1992:226). Para tanto, terá
de suscitar e organizar situações, propor actividades, disponibilizar recursos que
proporcionem uma apropriação mais eficaz, não apenas orientada para os usos
funcionais da palavra, na satisfação das necessidades comunicativas imediatas, mas
para a consciência e fruição integral da língua.

DIDÁCTICA DO PORTUGUÊS - FUNDAMENTOS E METODOLOGIA. Emília


Amor, Colecção Educação Hoje, Texto Editora, 6.ª Edição, Fevereiro 2001

Actividades

1- Leitura e recensão crítica do artigo “ A língua Materna”.


2- Leitura e resumo do capítulo “ Ensino-Aprendizagem da Língua
Materna”.

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