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5o da Constituição e sua
eficácia
Sumário
1. Introdução. 2. A situação constitucional
atual na América Latina. 3. As incongruências
do novo § 3o do art. 5o da Constituição de 1988.
4. Em que momento do processo de celebração
de tratados tem lugar o novo § 3o do art. 5o da
Constituição? 5. Hierarquia constitucional dos
tratados de direitos humanos independente-
mente da entrada em vigor da Emenda no 45/
2004. 6. Aplicação imediata dos tratados de di-
reitos humanos independentemente da regra
do novo § 3o do art. 5 o da Constituição. 7. Con-
clusão.
1. Introdução
A promulgação da Constituição brasi-
leira de 1988 foi, sem dúvida, um marco sig-
nificativo para o início do processo de rede-
mocratização do Estado brasileiro e de ins-
titucionalização dos direitos humanos no
país. Mas se é certo que a promulgação do
texto constitucional significou a abertura do
nosso sistema jurídico para essa chamada
nova ordem estabelecida a partir de então,
também não é menos certo que todo esse
Valerio de Oliveira Mazzuoli é Mestre em processo desenvolveu-se concomitantemen-
Direito Internacional pela Faculdade de Direi- te à cada vez mais intensa ratificação, pelo
to da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Brasil, de inúmeros tratados internacionais
Professor Honorário da Faculdade de Direito e globais e regionais protetivos dos direitos
Ciências Políticas da Universidade de Huánuco da pessoa humana, os quais perfazem uma
(Peru). Professor de Direito Internacional
imensa gama de normas diretamente apli-
Público e Direitos Humanos no Instituto de En-
sino Jurídico Professor Luiz Flávio Gomes cáveis pelo Judiciário e que agregam vários
(IELF), em São Paulo, e de Direito Constitucio- novos direitos e garantias àqueles já cons-
nal Internacional nos cursos de Especialização tantes do nosso ordenamento jurídico inter-
da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). no.
Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 93
Atualmente, no Brasil, já se encontram A Constituição de 1988, dentro desse
ratificados e em pleno vigor praticamente contexto internacional marcadamente hu-
todos os tratados internacionais significati- manizante e protetivo, erigiu a dignidade
vos sobre direitos humanos pertencentes ao da pessoa humana (art. 1 o, inc. III) e a preva-
sistema global, de que são exemplos a Con- lência dos direitos humanos (art. 4 o, inc. II)
venção para a Prevenção e a Repressão do a princípios fundamentais da República
Crime de Genocídio (1948), a Convenção Federativa do Brasil. Este último passou a
Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), ser, inclusive, princípio pelo qual o Brasil
o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados deve-se reger no cenário internacional. A
(1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Carta de 1988, dessa forma, instituiu no país
Civis e Políticos (1966), o Protocolo Faculta- novos princípios jurídicos que conferem
tivo Relativo ao Pacto Internacional sobre suporte axiológico a todo o sistema norma-
Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto In- tivo brasileiro e que devem ser sempre leva-
ternacional dos Direitos Econômicos, Soci- dos em conta quando se trata de interpretar
ais e Culturais (1966), a Convenção Interna- quaisquer normas do ordenamento jurídico
cional sobre a Eliminação de Todas as For- pátrio.
mas de Discriminação Racial (1965), a Con- Dentro dessa mesma trilha, que come-
venção sobre a Eliminação de Todas as For- çou a ser demarcada desde a Segunda Guer-
mas de Discriminação Contra a Mulher ra Mundial, em decorrência dos horrores e
(1979), o Protocolo Facultativo à Convenção atrocidades cometidos pela Alemanha Na-
sobre a Eliminação de Todas as Formas de zista no período sombrio do Holocausto, a
Discriminação Contra a Mulher (1999), a Constituição brasileira de 1988 deu um pas-
Convenção Contra a Tortura e Outros Tra- so extraordinário rumo a abertura do nosso
tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou sistema jurídico ao sistema internacional de
Degradantes (1984), a Convenção sobre os proteção dos direitos humanos, quando, no
Direitos da Criança (1989) e ainda o Estatu- § 2 o do seu art. 5 o, deixou bem estatuído que:
to de Roma do Tribunal Penal Internacio- “Os direitos e garantias expressos
nal (1998). nesta Constituição não excluem ou-
No que tange ao sistema interamericano tros decorrentes do regime e dos prin-
de direitos humanos, o Brasil também já é cípios por ela adotados, ou dos trata-
parte de praticamente todos os tratados exis- dos internacionais em que a República
tentes, como a Convenção Americana sobre Federativa do Brasil seja parte”. (grifo
Direitos Humanos (1969), o Protocolo Adi- nosso)
cional à Convenção Americana sobre Direi- Com base nesse dispositivo, que segue a
tos Humanos em Matéria de Direitos Eco- tendência do constitucionalismo contempo-
nômicos, Sociais e Culturais (1988), o Proto- râneo, sempre defendemos que os tratados
colo à Convenção Americana sobre Direitos internacionais de direitos humanos ratifi-
Humanos Referente à Abolição da Pena de cados pelo Brasil têm índole e nível consti-
Morte (1990), a Convenção Interamericana tucionais, além de aplicação imediata, não
para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a podendo ser revogados por lei ordinária
Convenção Interamericana para Prevenir, posterior. E a nossa interpretação sempre
Punir e Erradicar a Violência contra a Mu- foi a seguinte: se a Constituição estabelece
lher (1994), a Convenção Interamericana que os direitos e garantias nela elencados
sobre Tráfico Internacional de Menores “não excluem” outros provenientes dos tra-
(1994) e a Convenção Interamericana para tados internacionais em que a República
a Eliminação de Todas as Formas de Discri- Federativa do Brasil seja parte, é porque ela
minação Contra as Pessoas Portadoras de própria está a autorizar que esses direitos e
Deficiência (1999). garantias internacionais constantes dos tra-
tuição, a exemplo dos elencados nos inci- gresso dos tratados internacionais de pro-
sos I ao LXXVIII do seu art. 5o, bem como teção dos direitos humanos no mesmo grau
outros fora do rol de direitos mas dentro da hierárquico das normas constitucionais, e
Constituição, como a garantia da anteriori- não em outro âmbito de hierarquia normati-
dade tributária, prevista no art. 150, III, b, do va. Portanto, segundo sempre defendemos,
Texto Magno; b) direitos e garantias implíci- o fato de esses direitos se encontrarem em
tos, subentendidos nas regras de garantias, tratados internacionais jamais impediu a
bem como os decorrentes do regime e dos sua caracterização como direitos de status
princípios pela Constituição adotados, e c) constitucional4.
direitos e garantias inscritos nos tratados in- Ainda em sede doutrinária, também não
ternacionais em que a República Federativa faltaram vozes que, dando um passo mais
do Brasil seja parte2. além do nosso, defenderam cientificamente
A Carta de 1988, com a disposição do § o status supraconstitucional dos tratados de
2 o do seu art. 5 o, de forma inédita, passou a proteção dos direitos humanos, levando-se
reconhecer claramente, no que tange ao seu em conta toda a principiologia internacio-
sistema de direitos e garantias, uma dupla nal marcada pela força expansiva dos di-
fonte normativa: a) aquela advinda do direito reitos humanos e pela sua caracterização
interno (direitos expressos e implícitos n a como normas de jus cogens internacional5.
Constituição, estes últimos decorrentes do Em sede jurisprudencial, entretanto, a
regime e dos princípios por ela adotados), e; matéria nunca foi pacífica em nosso país,
b) aquela outra advinda do direito interna- tendo o Supremo Tribunal Federal tido a
cional (decorrente dos tratados internacionais oportunidade de, em mais de uma ocasião,
de direitos humanos em que a República analisar o assunto, não tendo chegado a
Federativa do Brasil seja parte). De forma uma solução uniforme e tampouco satisfa-
expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos trata- tória6.
dos internacionais de proteção dos direitos Em virtude das controvérsias doutriná-
humanos devidamente ratificados pelo Es- rias e jurisprudenciais existentes até então
tado brasileiro a condição de fonte do siste- no Brasil, e com o intuito de pôr fim às dis-
ma constitucional de proteção de direitos. É cussões relativas à hierarquia dos tratados