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Disciplina: Filosofia Teorética II

Curso: Filosofia

PAPER 2
O problema da Teodiceia – antecedentes filosóficos

Teodiceia é um vocábulo criado por um dos grandes filósofos e polímatas* do século XVII,
Gottfried Wilhelm Leibniz, que não se conformava com a solução gnóstica para a existência do mal e
do sofrimento no mundo. Para os gnósticos, não existe “problema da teodiceia”, pois o mundo é mal
e tampouco o seu criador é bom.

a) Gnose e compreensão negativa do cosmos


De acordo com os gnósticos, havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de Unidade.
Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um mito
gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias –
espíritos inferiores – que terminariam, estes sim, por criar o mundo. Assim, o desprezo dos gnósticos
era pelo kosmos do Demiurgo. Cultivavam, pois, a ideia de um deus imanente (o Anthropos), ideia que
foi incorporada pelos alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza).
Para Carpócrates (gnóstico do século II d.C.), as almas humanas seriam anteriores à produção
do mundo, tendo vivido, portanto, no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência
da teoria platônica das formas puras). As entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam
engendrado o primeiro arconte e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do
Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu
amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege
todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de
significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a
Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e
a Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam
os arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que
Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-
se e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.
Por esse mito – das centelhas de luz (espírito) presas na matéria – se configuraria a possibilidade do
Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas
derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o
espírito do homem…
Assim é que alguns de nós são uma partícula desta luz, necessitando descobrir a unidade divina
e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda, ao local onde feminino e masculino eram um só
no Absoluto. Desse modo, admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja
uma nova imagem do Homem, aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto
quanto o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Mas somente os homens pneumáticos
poderiam ser salvos, libertando-se deste mundo decaído, acessando o segredo (o conhecimento
secreto/gnose), pois os hyléticos (materiais) estão fadados a viver no nível da matéria degenerada,
enquanto os psíquicos se deixam levar pelas paixões e só alçam a esfera do anímico. Mas os
pneumáticos são capazes de alçar o mundo espiritual propriamente dito. O gnóstico Marcião, que
organizou o primeiro cânon bíblico por volta de 150 d.C., só admitia o Evangelho de Lucas e dez
epístolas paulinas, rejeitando em bloco todo o AT, por ser expressão do Deus criador – em
contraposição a Jesus Cristo e seu Pai amoroso no NT.

b) O problema da Teodiceia
O termo teodiceia é composto por duas palavras gregas: theos – que significa Deus; e dikaios
– que significa justiça. Teodiceia, assim, refere-se ao problema de como Deus pode ser “justo” ou
“probo”** considerando-se o fato de que há tanto sofrimento no mundo que ele criou e do qual é
supostamente soberano (EHRMAN, 2008, p.17). Este problema envolve três afirmações que parecem
ser verdadeiras, todavia, sendo verdadeiras cada uma parece contradizer a outra:

Deus é todo-poderoso.
Deus é todo amor.
Há sofrimento.

Ora: “se Deus é todo-poderoso, então é capaz de fazer o que quiser (e, portanto, pode eliminar
o sofrimento). Se ele é todo amor, então obviamente quer o melhor para as pessoas (e, portanto, não
quer que elas sofram). E ainda assim as pessoas sofrem. Como explicar isso?” (EHRMAN, 2008, p.17).
A teodiceia, que é um problema racional, filosófico, torna-se ainda mais difícil para as religiões
monoteístas, que creem em Deus todo-poderoso, especialmente para o cristianismo que desde os
primeiros séculos considerou-se “verdadeira filosofia” (vera philosophia). Outra forma de apresentar
o “problema da teodiceia” é a partir dos questionamentos do filósofo grego Epicuro, há cerca de 2.500
anos:

As velhas perguntas de Epicuro ainda não foram respondidas:


Deus quer impedir o mal, mas não consegue? Então ele é impotente.
Ele é capaz, mas não quer? Então ele é maléovo.
Ele é capaz e quer? Donde, então, o mal?

De acordo com Ehrman, diante do problema da teodiceia, a solução mais popular apresentada
no Ocidente é o argumento sobre a existência do livre-arbítrio. Segundo esse ponto de vista, sem o
livre-arbítrio dado por Deus seríamos como que “robôs” simplesmente fazendo aquilo para o que
fomos programados. Mas, assim como o livre-arbítrio possibilita que façamos o bem, também
possibilita que executemos o mal, causando dor e sofrimento. Hitler, guerras, o holocausto, tudo isso
pode ser explicado com base no livre-arbítrio. Mas como explicar a seca? Como explicar um furacão
que destrói Nova Orleans? Ou um tsunami que mata centenas de milhares da noite para o dia? A
maioria das pessoas que acredita no livre-arbítrio dado por Deus também acredita na vida após a morte.
Supostamente as pessoas no mundo após a morte ainda terão livre-arbítrio (senão elas seriam “robôs”,
certo?). Como explicar, racionalmente, que no paraíso as pessoas saberão exercer o livre-arbítrio
eternamente, se não sabem como exercê-lo na Terra? Ademais, se Deus de vez em quando interfere na
história para reagir às decisões ruins tomadas por algumas pessoas (como na destruição do exército
egípcio que perseguiu os israelitas no êxodo), por que não intervém mais vezes (ou o tempo todo)? O
que o impede de realizar este “bem”? No final, a resposta racional para todas estas perguntas é
controversa e relativa, e a última palavra que permanece é: mistério. (EHRMAN, 2008, p.20-21)

Vocabulário
* Sujeito que conhece muitas ciências
** De caráter íntegro, reto

Para posterior aprofundamento:


EHRMAN, Bart D. O problema com Deus. As respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

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