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FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE LICENCIATURA EM DIREITO
José Ussene
1. Contextualização
A violência doméstica é um fenómeno complexo e multifacetado que permeia todas as
camadas da sociedade, transcende fronteiras geográficas e culturais, e representa uma das
violações mais graves dos direitos humanos fundamentais. No cerne dessa problemática
encontra-se a intersecção entre questões sociais, psicológicas, jurídicas e de saúde, tornando-se
um desafio significativo para indivíduos, comunidades e governos em todo o mundo.
Desde tempos imemoriais, a violência doméstica tem sido uma realidade presente nas
relações familiares, mas apenas nas últimas décadas tem sido reconhecida e abordada como
uma questão de relevância pública e política. Historicamente, as relações familiares eram
consideradas como domínio privado, fora do alcance das intervenções governamentais, o que
contribuiu para a perpetuação do silêncio e da impunidade em torno desses casos.
No entanto, a crescente conscientização sobre os efeitos devastadores da violência
doméstica, tanto para as vítimas directas quanto para a sociedade como um todo, tem levado a
uma mudança gradual de paradigma. Actualmente, a violência doméstica é reconhecida como
um problema de saúde pública, uma violação dos direitos humanos e uma questão social que
requer uma resposta abrangente e multifacetada.
No contexto específico do impacto da violência doméstica no desenvolvimento
psicológico das crianças, as evidências científicas são claras e alarmantes. Estudos indicam que
crianças expostas à violência doméstica enfrentam uma variedade de consequências negativas
em seu desenvolvimento psicológico, emocional e social. Essas crianças têm maior
probabilidade de apresentar problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão, transtorno
de estresse pós-traumático e dificuldades no relacionamento interpessoal.
Além disso, a exposição à violência doméstica durante a infância está associada a uma
série de resultados adversos a longo prazo, incluindo maior risco de envolvimento em
comportamentos de risco, como abuso de substâncias, delinquência juvenil e perpetuação do
ciclo da violência nas gerações futuras. Portanto, é fundamental compreender os mecanismos
pelos quais a violência doméstica afecta o desenvolvimento psicológico das crianças e
implementar estratégias eficazes de prevenção e intervenção.
No âmbito jurídico e social, a protecção das crianças vítimas de violência doméstica é
uma prioridade fundamental. No entanto, apesar dos avanços significativos nas leis e políticas
de protecção da infância, existem lacunas e desafios persistentes na implementação eficaz
dessas medidas. Questões como subnotificação, falta de recursos adequados, estigmatização
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das vítimas e impunidade dos agressores continuam a representar obstáculos significativos para
a promoção de ambientes seguros e saudáveis para todas as crianças.
Diante desse cenário complexo e multifacetado, é crucial realizar uma análise
aprofundada do impacto da violência doméstica no desenvolvimento psicológico das crianças,
considerando não apenas os aspectos individuais, mas também os contextos sociais, culturais e
jurídicos que moldam essa realidade. Somente por meio de uma abordagem integrada e
colaborativa, envolvendo profissionais de diferentes áreas, legisladores, organizações da
sociedade civil e comunidades, poderemos avançar na construção de sociedades mais justas,
igualitárias e livres da violência doméstica.
2. Problematização
Como a violência doméstica afecta o desenvolvimento psicológico e emocional das
crianças envolvidas? Quais são as principais consequências a curto e longo prazo desse tipo de
exposição? Como as leis e políticas actuais abordam a protecção das crianças vítimas de
violência doméstica? Quais são os desafios enfrentados pelos sistemas jurídicos e sociais na
prevenção e intervenção em casos de violência doméstica envolvendo crianças?
3. Hipóteses
H1: O ambiente jurídico e social desempenha um papel crucial na protecção e apoio às crianças
vítimas de violência doméstica.
H0: O ambiente jurídico e social não tem impacto significativo na protecção e apoio às crianças
vítimas de violência doméstica.
4. Questões de partida
1. Quais são os factores de risco e protecção que influenciam o impacto da violência
doméstica no desenvolvimento psicológico das crianças?
2. Quais são as lacunas nas leis e políticas existentes relacionadas à protecção das crianças
contra a violência doméstica e como podem ser abordadas de forma eficaz?
3. Objectivos
3.1. Geral
Investigar o impacto da violência doméstica no desenvolvimento psicológico das
crianças e analisar as implicações sociais e jurídicas dessa problemática.
3.2.Específicos
• Identificar os principais tipos de violência doméstica e suas consequências para o bem-
estar psicológico das crianças.
• Avaliar a eficácia das políticas e intervenções existentes na protecção das crianças
contra a violência doméstica.
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5. Revisão de Literatura
5.1. Definição e Tipologia da Violência Doméstica
A violência doméstica é um fenómeno complexo que engloba uma variedade de
comportamentos abusivos, geralmente perpetrados por um membro da família contra outro.
Segundo a American Psychological Association (APA, 2020), a violência doméstica é definida
como "um padrão de comportamento abusivo em um relacionamento íntimo usado por uma das
partes para ganhar ou manter poder e controle sobre a outra parte" (p. 25). Esses
comportamentos podem incluir abuso físico, psicológico, sexual, emocional, bem como
controle financeiro e coerção.
Estudos demonstraram que a violência doméstica pode ter consequências graves e
duradouras para as vítimas, incluindo trauma psicológico, problemas de saúde mental,
dificuldades de relacionamento e até mesmo morte. A tipologia da violência doméstica varia de
acordo com a natureza e a gravidade dos comportamentos abusivos, mas é importante
reconhecer que todas as formas de violência doméstica são prejudiciais e inaceitáveis.
5.2. Teorias e Modelos Explicativos
Diversas teorias têm sido propostas para explicar os factores subjacentes à violência
doméstica e seus efeitos sobre as vítimas. Uma das teorias mais influentes é o Modelo de
Controle Social, desenvolvido por Johnson (2008), que sugere que a violência doméstica ocorre
como resultado da busca do agressor pelo controle sobre o parceiro. Segundo esse modelo, a
violência é usada como uma estratégia para manter ou restaurar o poder e o controle sobre a
vítima, especialmente em situações de ameaça percebida ao controle do agressor.
Além disso, a Teoria do Ciclo da Violência, proposta por Walker (1979), sugere que a
violência doméstica ocorre em um ciclo repetitivo de três fases: acumulação de tensão, explosão
violenta e fase de lua de mel. Essa teoria ajuda a explicar por que muitas vítimas permanecem
em relacionamentos abusivos, apesar dos episódios de violência.
5.3. Impacto no Desenvolvimento Psicológico
A exposição à violência doméstica durante a infância pode ter um impacto significativo no
desenvolvimento psicológico das crianças. Estudos têm demonstrado que crianças expostas à
violência doméstica têm maior probabilidade de desenvolver uma variedade de problemas
psicológicos, incluindo ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT),
problemas de comportamento e dificuldades de relacionamento (Hughes et al., 2015).
De acordo com Graham-Bermann e Perkins (2010), o trauma resultante da exposição à
violência doméstica pode afectar negativamente o desenvolvimento emocional e cognitivo das
crianças, bem como sua auto-estima e senso de segurança. Além disso, as crianças podem
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internalizar o comportamento abusivo como uma forma normal de relacionamento, o que pode
influenciar seus padrões de relacionamento na vida adulta.
5.4. Factores de Risco e Protecção
A literatura identificou uma série de factores de risco que aumentam a vulnerabilidade
das crianças à violência doméstica e seus efeitos adversos. Entre esses factores estão a
gravidade e a frequência da violência, a presença de conflitos conjugais, abuso de substâncias,
problemas financeiros e a falta de apoio social (Appel & Holden, 1998).
No entanto, também é importante reconhecer os factores de protecção que podem
mitigar os efeitos negativos da exposição à violência doméstica. Segundo Masten (2001),
factores como um ambiente familiar estável, apoio emocional de adultos significativos, acesso
a recursos sociais e serviços de apoio, e habilidades de enfrentamento adaptativas podem ajudar
as crianças a desenvolver resiliência diante de situações adversas.
5.5. Intervenções e Tratamentos
Uma variedade de intervenções e tratamentos tem sido desenvolvida para ajudar
crianças expostas à violência doméstica a lidar com os efeitos traumáticos da experiência. A
terapia cognitivo-comportamental (TCC) é uma abordagem amplamente utilizada que visa
ajudar as crianças a identificar e desafiar pensamentos negativos, aprender habilidades de
enfrentamento e processar emocionalmente o trauma (Cohen et al., 2012).
Além disso, programas de intervenção em grupo, terapia familiar e terapia de jogo
também têm sido eficazes na redução dos sintomas de estresse pós-traumático e outros
problemas de saúde mental em crianças expostas à violência doméstica (Kolko et al., 2009).
5.6. Legislação e Políticas de Protecção Infantil
A protecção das crianças contra a violência doméstica é uma prioridade fundamental em
muitos países ao redor do mundo. A Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC) das Nações
Unidas, adoptada em 1989, estabelece o direito de todas as crianças à protecção contra todas as
formas de violência, incluindo a violência doméstica (UNICEF, 1989).
No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) representa um marco na protecção
das mulheres e crianças contra a violência doméstica, estabelecendo medidas de prevenção,
punição e assistência às vítimas. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
promulgado em 1990, estabelece direitos e garantias fundamentais para todas as crianças
5.7. Desafios e Lacunas na Implementação de Políticas
A implementação eficaz de políticas de proteção infantil contra a violência doméstica
enfrenta diversos desafios e lacunas, como indicado por pesquisas recentes (Smith et al., 2018).
Um dos principais obstáculos é a subnotificação dos casos de violência, o que dificulta a
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6. Conclusão
A violência doméstica é um fenómeno complexo que afecta milhões de crianças em todo
o mundo, deixando cicatrizes profundas em seu desenvolvimento psicológico, emocional e
social. Nesta revisão de literatura, exploramos diversas facetas desse problema, desde sua
definição e tipologia até seus efeitos no longo prazo e as intervenções disponíveis.
A definição abrangente da violência doméstica, conforme definida pela American
Psychological Association, destaca a natureza insidiosa desse fenómeno, que pode assumir
várias formas, incluindo abuso físico, psicológico, sexual e emocional. Compreender essas
diferentes formas de violência é fundamental para implementar estratégias eficazes de
prevenção e intervenção.
As teorias explicativas, como o Modelo de Controle Social e a Teoria do Ciclo da
Violência, fornecem insights valiosos sobre os factores subjacentes à violência doméstica e os
padrões de comportamento que perpetuam esse ciclo de abuso. No entanto, é importante
reconhecer que cada caso é único e requer uma abordagem individualizada para intervenção.
O impacto da violência doméstica no desenvolvimento psicológico das crianças é
profundo e duradouro. Estudos têm mostrado que a exposição à violência doméstica está
associada a uma série de problemas de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão, transtorno
de estresse pós-traumático e dificuldades de relacionamento. Esses efeitos podem perdurar até
a vida adulta, destacando a importância de intervenções precoces e abrangentes.
Os factores de risco e protecção desempenham um papel crucial na determinação do
impacto da violência doméstica nas crianças. Identificar e mitigar esses factores pode ajudar a
promover resiliência e recuperação em crianças expostas à violência doméstica.
Embora haja uma variedade de intervenções e tratamentos disponíveis, é necessário um
esforço coordenado e multidisciplinar para fornecer o apoio necessário às vítimas de violência
doméstica. Isso inclui não apenas intervenções terapêuticas, mas também medidas de protecção
legal e políticas de prevenção abrangentes.
Em última análise, a protecção das crianças contra a violência doméstica exige um
compromisso contínuo da sociedade como um todo. É imperativo que governos, instituições,
profissionais de saúde, educadores e comunidades se unam para enfrentar esse problema de
forma eficaz, garantindo um ambiente seguro e saudável para todas as crianças crescerem e
prosperarem. Somente através de uma abordagem colaborativa e baseada em evidências
podemos esperar fazer progressos significativos na prevenção e redução da violência doméstica
e seus impactos devastadores.
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7. Referencias bibliográficas.
American Psychological Association. (2020). Violence in the family: A resource for healthcare
providers. American Psychological Association.
Anderson, D. K., & Saunders, D. G. (2003). Leaving an abusive partner: An empirical review
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Cohen, J. A., Mannarino, A. P., & Deblinger, E. (2012). Treating trauma and traumatic grief in
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Graham-Bermann, S. A., & Perkins, S. C. (2010). Effects of early exposure and lifetime
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Guedes, A., Fonseca, A., Soares, J. P., & Matos, M. (2019). Domestic violence and children: A
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Hughes, K., Bellis, M. A., Jones, L., Wood, S., Bates, G., Eckley, L., ... & Officer, A. (2015).
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Johnson, M. P. (2008). A typology of domestic violence: Intimate terrorism, violent resistance,
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Kolko, D. J., Baumann, B. L., & Caldwell, N. (2009). Child abuse victims' involvement in
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Masten, A. S. (2001). Ordinary magic: Resilience processes in development. American
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UNICEF. (1989). Convention on the Rights of the Child. United Nations.
Walker, L. E. (1979). The battered woman. Harper & Row.