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Relato de Experiência
RESUMO | INTRODUÇÃO: As atividades práticas durante a gradu- ABSTRACT | INTRODUCTION: Pratical activities during graduation
ação são oportunidades para os estudantes lidarem com sujeitos are opportunities for students to deal with real subjects. When
reais. Quando tais atividades ocorrem no âmbito do Sistema Único such activities occur within the scope of the Unified Health System,
de Saúde, principalmente, na atenção primária, é oferecido ao es- especially in primary care, the student is offered the notion of
tudante a noção de pluralismo sociocultural. OBJETIVO: Discutir a sociocultural pluralism. OBJECTIVE: Discuss the importance of
importância das Visitas Domiciliares enquanto atividade docente- Home Visits as a teaching-assistance activity, identifying the
-assistencial, identificando os benefícios, as potencialidades e os benefits, potential and challenges of this tool. METHODOLOGY:
desafios dessa ferramenta. METODOLOGIA: Trata-se de um rela- This is an experience report about the pratice of Home Visits in
to de experiência sobre a prática das Visitas Domiciliares num con- a pedagogical context, in a Psychology Internship. RESULTS AND
texto pedagógico, em um Internato de Psicologia. RESULTADOS E DISCUSSIONS: The boarding school in pimary health care happens
DISCUSSÕES: O internato em atenção primária à saúde acontece in the Complexo Comunitário Vida Plena, located in Pau da Lima,
no Complexo Comunitário Vida Plena, localizado em Pau da Lima, a peripheral neighborhood of Salvador. In this health unit, the
bairro periférico de Salvador. Nessa unidade de saúde, o protocolo protocol for home visits is based on the following steps: Planning,
para visita domiciliar consiste em Planejamento, Visita, Supervisão Visiting, Supervising and Writing the Report. Planning is carried
e Confecção do relatório. O planejamento é realizado através da out by Reading the medical record. This reading, providing prior
leitura do prontuário. Tal leitura proporciona o contato prévio com contact with the Family and enable to set specific goals for the
a família e a possibilita a confecção de objetivos específicos para visit. During the visit, it was necessary to deal with emotional and
visita. Durante a visita, é necessário lidar com o tempo emocional chronological time, bond without judgment, attentive listening,
e cronológico, vínculo sem julgamento, escuta atenta, interferên- interface from family and neighbors, vulnerability and social risk,
cia dos familiares e vizinhos, vulnerabilidade e risco social, educa- health education and, above all, psychological issues of users.
ção em saúde e, sobretudo, questões psicológicas dos usuários. A Supervision was understood as a moment of facilitation and
supervisão, compreendida como um momento de facilitação e su- support us, having been developed our criticality and matured
porte aos estudantes, desenvolveu nossa criticidade e amadureceu the theory-pratice correlation. In the preparation of report, the
a correlação teoria-prática. Na confecção do relatório, as palavras registered words had to be carefully chosen, to ensure quality
registradas precisavam ser escolhidas com esmero para garantir monitoring of users. CONCLUSION: Home Visits are powerful
o acompanhamento de qualidade dos usuários. CONCLUSÃO: As training tools. Living the experience with autonomy and at the
Visitas Domiciliares são instrumentos potentes de formação. Viver same time, having the guidance and support or out teacher, was
a experiência com autonomia e ao mesmo tempo tendo a orienta- the great differential.
ção e o apoio da professora, foi o grande diferencial.
KEYWORDS: House calls. Professional training. Psychology. Mental
PALAVRAS-CHAVE: Assistência domiciliar. Formação profissional. health.
Psicologia. Saúde mental.
Submetido 15/05/2020, Aceito 19/11/2020, Publicado 14/12/2020 Como citar este artigo: Araújo, C. M. R., & Silva, J. P. (2020). Visita
Rev. Psicol. Divers. Saúde, Salvador, 2020 Dezembro;9(4):495-505 Domiciliar e Saúde Mental: um relato de experiência. Revista Psicologia,
http://dx.doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v9i4.2958 Diversidade e Saúde, 9(4), 495-505. http://dx.doi.org/10.17267/2317-
ISSN: 2317-3394 3394rpds.v9i4.2958
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Todos esses benefícios e desafios são potencializa- uma capacidade de funcionamento para municípios
dos quando a VD é voltada para famílias que pos- com número de habitantes superior a 200 mil e ca-
suem alguma pessoa com transtorno mental. Nesses racteriza-se por oferecer “um serviço ambulatorial
casos, a função da equipe de saúde pode envolver o de atenção contínua, durante 24 horas diariamen-
acolhimento do usuário e de toda a família, o diag- te, incluindo feriados e finais de semana” (artigo 4),
nóstico e orientação sobre o transtorno, a constru- além de incluir todas as atividades dos CAPS I e CAPS
ção de estratégias para inserção social do usuário e II (Ministério da Saúde, 2002).
outras ações. Esse modelo de atendimento supera o
modelo hospitalocêntrico, pois através de uma equi- Alguns anos depois, em 2011, o Ministério da Saúde
pe interdisciplinar, envolve a família, a comunidade e decide ampliar o suporte às pessoas com necessi-
o os equipamentos urbanos disponíveis no território. dades em saúde mental e cria a Rede de Atenção
(Silva, Teixeira, Sabóia, & Cavalcanti Valente, 2011). Psicossocial (RAPS), através da Portaria 3088. Essa
portaria muda a perspectiva de cuidado dos usuá-
Essa modalidade de atendimento às pessoas com rios na medida em que expande para além do
transtornos mentais só foi possível depois da Centro de Atenção Psicossocial a assistência às pes-
Reforma Psiquiátrica Brasileira, produto de um longo soas em sofrimento ou transtorno mental e integra
período de debates coletivos e construção de leis e diversos equipamentos de saúde como a própria
portarias, concentrado no período de 1989 a 2003. Unidade Básica de Saúde, os serviços de Pronto
Anteriormente a assistência à saúde mental era cen- Atendimento, os serviço de Atendimento Móvel de
trada nos hospitais especializados, chamados mani- Urgência, Hospitais, etc. Com o funcionamento pre-
cômios, espaços que excluíam as pessoas em con- ciso da RAPS as pessoas tem acesso a um conjun-
dições de saúde mental da vida em comunidade. A to de estratégias que objetivam a manutenção da
Reforma Psiquiátrica redireciona a forma de cuidado sua autonomia, a garantia dos direitos humanos e
na assistência psiquiátrica, apresentando ações até a atenção humanizada centrado em suas necessi-
então desconhecidas e que preveem a inclusão dos dades, além de gerar ações compatíveis com o ter-
indivíduos na sociedade e na cultura, preparando-os ritório e coerentes com a comunidade, agregando
para a dinâmica do cotidiano, bem como, orientando maior participação e controle dos atendidos e seus
a família e a sociedade em geral para essa inclusão. familiares. Esses últimos pontos são mais facilmente
(Berlinck et al., 2008) garantidos por meio da atuação da UBS, já que essa
ocupa um papel estratégico na aplicação da RAPS.
Uma das principais regulamentações para concre- Assim sendo, a VD realizada pela UBS com foco na
tização da Reforma Psiquiátrica surgiu em 2002, saúde mental é uma tecnologia que permite a edu-
quando o Ministério da Saúde estabeleceu através cação permanente, o acompanhamento contínuo, a
da Portaria 366 o funcionamento dos Centros de qualidade do cuidado por meio do acolhimento e,
Atenção Psicossocial (CAPS) como principal estraté- por isso, auxilia no cumprimento da RAPS em geral.
gia para cuidado das pessoas com transtornos men-
tais. Segundo a portaria, os CAPS podem se configu- Diante da complexidade das visitas domiciliares e
rar enquanto CAPS I, CAPS II ou CAPS III, de acordo todas as oportunidades de desenvolvimento profis-
com a quantidade populacional. O CAPS I e CAPS II sional e pessoal que essa atividade é capaz propor-
funcionam das 08h às 18h nos 05 dias úteis da se- cionar, sentimos necessidade de compartilhar as ex-
mana e incluem em sua assistência atendimento periências de internato rotatório de uma estudante
individual e em grupo, oficinas terapêuticas, visitas de Psicologia da cidade do Salvador, Bahia. Portanto,
domiciliares, atendimento à família e atividades co- o presente trabalho tem como objetivo discutir a im-
munitárias; diferenciando-se apenas ao que se refe- portância das Visitas Domiciliares, enquanto ativida-
re ao número de habitantes do município, sendo o de docente-assistencial, identificando os benefícios,
CAPS I para municípios entre 20 mil e 70 mil mora- as potencialidades e os desafios dessa ferramenta.
dores e o CAPS II, 70 mil a 200 mil. Já o CAPS III tem
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como templo religioso, casa de amigos ou familia- A discussão em grupo era um momento de partilha
res, trabalho, entre outros. O prontuário do CCVP é em que avaliávamos com os colegas e a professora
multiprofissional e por isso, podíamos acessar infor- se os objetivos e as estratégias de abordagem esta-
mações de outras categorias de saúde, o que muitas belecidas estavam em consonância com a situação
vezes, nos ofertava maior conhecimento sobre as da família, sua lista de problemas e os relatos encon-
pessoas, seus hábitos e cuidados. Todos os registros trados em prontuários. Havendo necessidade, fazía-
presentes no prontuário foram realizados pelos estu- mos ajustes. Com o plano de trabalho em mãos, se-
dantes, residentes, professores-supervisores ou pela guíamos para o momento da visita domiciliar.
equipe de saúde em geral.
Entretanto, como ilustram Romanholi e Cyrino (2012),
A principal função da leitura do prontuário é oferecer por mais orientada que a visita domiciliar seja, não
aos estudantes informações sobre a família e a sua si- impossibilita a ocorrência de imprevistos. Apesar das
tuação de saúde, de modo a nos ajudar no estabeleci- visitas serem avisadas e confirmadas pelas agentes
mento de objetivos da visita em questão, além de nos de saúde com antecedência, por vezes, saíamos do
preparar para as possíveis situações que poderíamos CCVP em direção ao domicilio e éramos surpreendi-
encontrar. Assim, as visitas seriam úteis e o trabalho dos pela ausência de pessoas na casa, bem como, a
realizado outrora por outros profissionais da Unidade presença de elementos familiares que aconteciam
de Saúde teriam continuidade. Até mesmo nos casos para além do que estava planejado, o que necessi-
em que tínhamos pouca informação sobre o paciente tava de reorganização imediata do planejamento. O
no prontuário por se tratar de uma pessoa que pouco fenômeno da surpresa, por si só, já nos exigia habili-
comparecia ao serviço ou era nova na área, o planeja- dade de um manejo clínico que não tínhamos vivido
mento era realizado de modo a estabelecer objetivos durante as aulas na faculdade, por exemplo.
de vinculação com o usuário e conhecer a sua história
de saúde mental, bem como, outras questões sociais, Sobre a realização das visitas, a professora orienta-
familiares e emocionais que poderiam nos orientar va que deveriam durar entre 20 e 30 minutos (tem-
em acompanhamentos futuros. po cronológico), porém, nos deparamos com mais
de uma categoria de tempo no momento da visita: o
A partir das informações disponíveis, era realizado tempo emocional, constatado por Sakata (et al., 2007)
o preenchimento da ficha era uma espécie de con- numa pesquisa com profissionais de saúde de uma
densação das informações mais importantes lidas Unidade Básica de Saúde (USB) em Ribeirão Preto.
no prontuário. A ficha, que é padronizada no CCVP Esses profissionais, no momento da visita, lidavam
para todas as VDs, consiste em preencher os itens: com o tempo cronológico e o tempo emocional. O
nome do sujeito que tinha transtorno mental, idade, tempo cronológico diz respeito à duração das visitas
objetivos da vida, principais problemas, condições de e a conciliação do mesmo com o comprimento das
risco ou vulnerabilidade da família, principais estra- tarefas e o tempo emocional envolve as relações e os
tégias de enfrentamento da família, e por fim, quais vínculos construídos.
abordagens a serem utilizadas para atingir os obje-
tivos. Usualmente os objetivos que elaboramos en- Na experiência do internato foi possível conhecer as
volviam: orientações necessárias sobre a condição duas perspectivas do tempo. O tempo cronológico é o
de saúde mental do sujeito e/ou sobre uso da me- que temos de concretude, surgindo, muitas vezes de
dicação prescrita; a busca da resolução da lista de forma desafiadora. Houve dias que os minutos pas-
problemas e condições de risco ou vulnerabilidade; saram depressa e outros dias em que se arrastavam.
o fortalecimento das estratégias bem sucedidas en- Após analises dessas situações, foi possível concluir
contradas pela família para lidar com as situações di- que a sensação de lentificação do tempo pôde ser
fíceis. Investia-se na criação de objetivos potentes e atribuída, principalmente, a acontecimentos inespera-
concisos que possibilitassem uma visita assistencial dos e desagradáveis da visita, a exemplo de: falta de
e educacional, tendo em vista a constante evolução colaboração do paciente para/com equipe de saúde
do quadro do sujeito. Após a elaboração do planeja- (evitando responder as perguntas); discurso agressi-
mento, a discussão em grupo era realizada, visando vo vindo de um dos membros da família, membro da
decidir, coletivamente, se os objetivos e estratégias família agindo de forma que julgamos ser prejudicial
eram pertinentes. para a melhoria do sujeito adoecido, dentre outros.
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Já a sensação de aceleração do tempo dava um toque estruturais, que inclusive poderiam ser considerados
de brevidade na visita e acontecia em consequência à fatores de risco a saúde dos moradores. Borges &
fluidez do encontro entre equipe, família e indivíduo. D’Oliveira (2011) acreditam que ao conhecer a reali-
Essas visitas eram capazes de proporcionar satisfação dade de vida daquele usuário e família, torna-se pos-
profissional, uma vez que, na maioria das vezes, todos sível compartilhar com eles os cuidados adequados a
os objetivos eram cumpridos com eficácia e existia serem realizados. A ida ao domicílio é a melhor ferra-
bastante cooperação da família. Para nós, internos de menta para conhecer essa realidade.
Psicologia, esses eram dias muito agradáveis.
Como aspecto desafiador, os cuidados que são pres-
O tempo emocional é muito especial, principalmente tados através das VDs são comumente interpreta-
se encarado à longo prazo. Depois que a rotina de dos como instrumentos de controle de saúde. Para
acompanhamentos de determinada família é estabe- França (et al., 2006), alguns profissionais atribuem a
lecida, percebe-se que os integrantes da família, em visita domiciliar o papel de controlar doenças e co-
algum momento, passam a se sentir seguros diante brar verdades sanitárias, o que pode ser bastante
da presença da equipe, depositando confiança nos prejudicial para o relacionamento e vinculação, pois
mesmos e no trabalho que desenvolvem. Surge en- o processo torna-se inflexível e ignora saberes que
tão a vinculação. A vinculação família-profissional é não são científicos. O atendimento domiciliar deve
extremamente importante, já que, como Cunha e Sá objetivar o trabalho de proteção à saúde, através de
(2013, p. 9) apontam “a VD implica certa exposição uma abordagem que seja educativa e que possibilite
dos hábitos e rotinas privativas do usuário no espaço potencialidades individuais e coletivas para o melhor
domiciliar. Assuntos particulares se tornam visíveis, enfretamento de condições não favoráveis (Mandú et
alvo de avaliação dos profissionais de saúde e do seu al., 2008). Durante os diálogos com a família tínha-
saber-poder sanitário, legitimado pela ciência.”. Deste mos cautela para não sermos impositivos em relação
modo, é importante que essas pessoas não se sintam às orientações dadas ou punitivos em relação aos há-
expostas ou julgadas, e sim acolhidas e fortalecidas bitos que a família declarava.
no vínculo que foi construído. Mandu, Gaíva, Silva e
Silva (2008), valorizam as relações afetivas estreitas Algo que também pode ser prejudicial e perigoso é a
que os familiares estabelecem com os profissionais. utilização em excesso das VDs, caso isso ocorra, elas
passam a ser chamadas de “Visitas Domiciliares com-
A vinculação era um assunto delicado para nós, pulsórias”. Pereira, Cézar, Silva, Reidorfer e Cardoso
pois passaríamos apenas 10 semanas no internato. (2014), afirmam que tal tipo de visita, pode fazer com
Entretanto, percebemos que o vínculo das pessoas já que os indivíduos enxerguem o setor de saúde como
era muito forte com o CCVP, então, agregamos ainda intrometidos e que colocam sua liberdade em risco.
mais a esse vínculo, mantendo a qualidade do ser- Todos esses aspectos eram cuidadosamente pensa-
viço, o olhar acolhedor, a escuta atenta e realizando dos juntamente com a professora e os colegas antes
orientações necessárias. A professora do internato da realização das visitas, pois, como estudantes de
também é um elo de continuidade do vínculo, por ser Psicologia, não devemos cair no papel de um agente
quem continua responsável pelo acompanhamento controlador e fiscalizador, que dita ordens e regras.
das famílias que visitamos, mesmo quando o rodízio Incluímos aqui a ressalva que tal reflexão deve-se ao
se encerra. carácter da VD que realizamos, que visa a orientação,
acolhimento, escuta e realização de possíveis enca-
No contexto das visitas domiciliares, adentrar o espa- minhamentos aos usuários de saúde mental e suas
ço alheio é defrontar-se com múltiplas realidades de famílias. Para o sucesso das nossas VDs é fundamen-
vida. A maioria das famílias cadastradas no CCVP são tal que as pessoas estejam confortáveis e desejem
pobres e as casas visitadas variavam de acomodações nos receber. Já as VDs que se caracterizam pelo nível
simples à precárias; contextos sociais que colocavam da atenção secundária ou terciária e com isso visam
em risco o bem-estar daqueles que ali residiam. O o atendimento aos usuários que muitas vezes são
primeiro momento com as famílias, também era o dependentes de serviços de saúde, como, dependen-
momento de conhecimento das suas instalações e, tes de respiradores, feridos, em cuidados paliativos,
por vezes, tal momento era surpreendente, pois en- entre outros, em diversos casos necessitarão serem
contrávamos precariedades de quesitos básicos e realizadas mais de uma vez por semana.
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Por sermos psicólogas em formação, as visitas des- estudantes, eram considerados por nós como a chan-
tinadas a nós, no CCVP, eram aquelas com foco e ce que as pessoas tinham de expor suas dificuldades
atenção em Saúde Mental. Por isso, todas as famílias e frustrações. Como já tínhamos feito o estudo do
selecionadas para realização das visitas possuíam prontuário, as informações sobre o relacionamento
um ou mais de um, dos seus membros com algum dos familiares estava. Eram oportunidades que tínha-
tipo de transtorno mental. Assim sendo, toda ação mos de intervir no funcionamento familiar, orientan-
do trabalho era focada no indivíduo e na sua famí- do para uma busca de funcionalidade e realização de
lia, já que, pensando na desinstitucionalização do novos acordos entre os membros, através de uma re-
cuidar, a família é a principal responsável no manejo flexão do papel de cada um no contexto em debate.
dos cuidados do sujeito. As VDs configuram-se como Como afirmado por Pietroluongo e Resende (2007), é
instrumentos facilitadores na abordagem do pacien- função da psicóloga facilitar a comunicação entre as
te com transtorno mental e sua família, pois permite pessoas, por meio das habilidades de dialogar e es-
o acompanhamento de forma individual mergulhado cutar. Como estudantes de psicologia, foi muito rico
na realidade própria daquele núcleo, entendo a sua viver esses momentos e adquirir tais habilidades.
dinâmica, oferecendo suporte no cuidado, tratamen-
to, reinternação, etc (Pereira et al., 2014). O internato é uma oportunidade ímpar para adquirir
competências que tornam a análise da realidade do
Nesse sentido, as VDs com foco em saúde mental sujeito crítica; o que facilitará uma construção de in-
são uma técnica muito eficaz como ação da Reforma tervenções coerente com determinado contexto so-
Psiquiátrica. Isso pode ser afirmado, pois a ressociali- ciocultural (Santos e Nóbrega, 2017).
zação do usuário perpassa pela compreensão da sua
realidade e pela busca dos recursos e equipamentos Após o retorno da visita, os estudantes reuniam-se
que cada pessoa dispõe. A equipe de saúde tem como com a professora para o momento da supervisão. Em
função fazer essa averiguação e oferecer ao usuário Psicologia, a supervisão é um momento que simboli-
as possibilidades encontradas. Na nossa experiência, za a passagem dos aprendizados teóricos para uma
nós tivemos a oportunidade de oferecer às pessoas aprendizagem prática, que inclui o desenvolvimento
que visitamos as informações sobre os grupos exis- de novas competências. Esse momento formativo
tentes no CCVP, sobre os cursos gratuitos que o CCVP articula e facilita a transição da teoria para prática,
tem em parceria com o SENAI/BA e estimular a ida às sendo assim, de importância vital para o estudante
atividades do Centro de Atenção Psicossocial, locali- de psicologia progressivamente tornar-se psicólogo.
zado em Vale dos Lagos. (Silva et al., 2020)
Um outro ponto importante é o conceito de famí- Para nós, a supervisão era um momento estrutural
lia como um sistema orgânico. O que implica dizer no desenvolvimento da nossa criticidade. Naqueles
que quando uma pessoa do sistema adoece, todos momentos podíamos avaliar nosso amadurecimento
adoecem juntos, principalmente quando a doença enquanto agentes de saúde e elencar pontos de me-
envolve um forte sofrimento psíquico. É exigido da lhoria para as próximas visitas. Aprende-se a realizar
família uma reorganização para o cuidado, de modo as visitas indo até os domicílios, mas também, certa-
a não sobrecarregar apenas um cuidador, mas quan- mente, usufruindo de um espaço onde é permitido a
do possível, dividir as tarefas necessárias com todos exposição de dúvidas e limitações, escuta de experiên-
os membros do sistema. A VD é uma necessidade de cias dos colegas, troca de conhecimentos a respeito
toda a família, porque muitas vezes os familiares pre- de tópicos específicos e principalmente, orientação da
cisam de orientação para o melhor cuidar e de acolhi- professora, que oferece conhecimento e segurança.
mento emocional. (Schrank & Olschowsky, 2008)
O ganho de experiência obtido em momentos de su-
Com esses aspectos em foco, sempre que possível pervisão, são fundamentais para a formação e tal mo-
prezávamos pelo atendimento em conjunto com os mento deve ser compreendido como momento de fa-
membros presentes no momento na casa. Pudemos cilitação e de suporte para os estudantes (Pitombeira
vivenciar desde momentos muito interessantes de et al., 2016). Portanto, nota-se a necessidade da su-
partilha e apoio mútuo entre os familiares até si- pervisão como requisito para a atividade de visitação
tuações de brigas e conflitos. Esses momentos, ape- domiciliar. Além de servir como fortaleza para nós,
sar de nos causar desconforto e insegurança como com a condução de uma professora - psicóloga, a
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supervisão passa a ser a ocasião responsável por pro- Para Machado (2014), registrar semanalmente as
piciar discussões embasadas teoricamente a respeito atividades práticas é uma forma de não aconte-
da prática realizada. A supervisão é um espaço fértil cer aprisionamentos nas sensações e opiniões.
para discussão teórica que favorece articulação com Registrar semanalmente é um exercício constante
a prática associada às condições de trabalho (Santos de aperfeiçoamento da técnica. O primeiro relatório
e Nóbrega, 2017). feito em campo foi acompanhado de questionamen-
tos sobre o que escrever, quais seriam as palavras
Além desse fator, a supervisão era um momento de mais adequadas e sobre a natureza do relato – se
avaliação entre os objetivos desenvolvidos no plane- baseado em impressões pessoais ou não. A profes-
jamento e os objetivos alcançados. Em alguns casos, sora dedicou-se a retirada de dúvidas e de orienta-
não conseguíamos cumprir os objetivos por falta de ções que são fundamentadas em princípios éticos e
tempo, falta de manejo ou intercorrências diversas. no Código de Ética do Psicólogo.
Quando o motivo era falta de manejo, precisáva-
mos encontrar junto com os colegas e a professora Machado (2014) afirma que uma escrita com um cará-
o ponto em que não soubemos conduzir e reavaliar ter de julgamento muito marcante, é capaz de definir
as possibilidades futuras. A depender da situação, a toda uma vida por um estado. Ou seja, escrever dei-
professora assumia uma postura desafiadora ou aco- xando vieses, pode ser responsável pela generalização
lhedora, pois conforme nos dizem Morgado e colabo- da totalidade de um indivíduo a um só termo ou adjeti-
rares (et al., 2018), as funções do supervisor incluem vo que seja empregado de forma muito contundente.
informar, questionar, sugerir, encorajar e avaliar. A autora ainda acrescenta que “a escolha de palavras
e frases que tragam a multiplicidade presente em uma
Entretanto, quaisquer dessas intervenções necessi- situação exige tempo” (Machado, 2014, p. 9).
tam de um clima afetivo para que o desenvolvimento
e aprendizagem dos estudantes seja efetivo. O su- No início do rodízio, passávamos muito tempo para
pervisor precisa apresentar uma boa habilidade de produzir um relatório que julgássemos como ‘ideal’.
escuta, capacidade cooperativa, facilidade de comu- Eram necessárias muitas folhas de rascunho, auxílio
nicação, encorajamento e entusiasmo pela profissão, constante da professora e muitas pesquisas nos rela-
entre outros, (Morgado et al., 2018), elementos que tórios que estavam disponíveis no prontuário da fa-
pudemos encontrar nessa experiência desenvolvida. mília. Conforme o tempo foi passando, fomos crian-
do segurança no processo e construindo um modelo
Levando em consideração a possibilidade de depa- mental do que era necessário ser registrado; aqui,
rar-se com o imprevisto que as VDs impõem, Duarte já sabíamos quais palavras utilizar na confecção de
(2015) complementa que “supervisão enquanto dis- um instrumento que servirá de base para visita dos
positivo é pensar as possibilidades para enfrentar as próximos internos e quais informações da visita de-
impossibilidades” (p. 6). Na nossa experiência, a super- veriam ser suprimidas, afim de resguardar o sigilo do
visão era, em geral, um espaço poderoso e encoraja- paciente e sua família.
dor de todo o trabalho realizado; sempre ancorados
em teorias psicológicas. Foi vantajoso e pertinente fa- Quando precisávamos de suporte, porque não nos
lar dos casos atendidos e ouvir os casos dos colegas, sentíamos seguros o suficiente pra escrever o nosso
aproveitando todas as discussões para uma melhor e relatório do zero, tínhamos o apoio de algumas de-
ativa construção das psicólogas que queremos ser. zenas de relatórios disponíveis e é muito significativo
pensar que no futuro, serão os nossos relatórios que
Por fim, era realizada a confecção do relatório da vi- serão lidos, estudados e consultados por outros estu-
sita. Andrade (et al., 2013) atribuem importância a dantes e profissionais. Através deles, novas pessoas se
essa etapa, pois acreditam através de tal registro é comoverão com as histórias lidas e embasarão suas
possível obter informações sobre o usuário visitado visitas e atendimentos. Por isso, era preciso, além de
e sua família e realizar análise periódica do seu es- tudo, ter compromisso e zelo com o que escolhíamos
tado de saúde, além de servir como ferramenta de registrar. Sabíamos que o mais importante de tudo,
avaliação das VDs. era que o trabalho que estava sendo realizado, deveria
ser realizado eticamente. Almejando que os próximos
profissionais, deem seguimento a esses preceitos.
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