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Resumo:

Em O mal-estar da civilização Freud buscou apresentar uma discussão sobre


os ganhos e as perdas da civilização, e em específico sobre o mal-estar
causado por suas limitações. Para Elias, a civilização, como prática,
envolve o controle das condutas, a regulação dos modos e a subordinação
das emoções. O tormento trazido pela civilização decorre do modo pelo
qual ela limita a liberdade, se sobrepondo aos impulsos, impondo tarefas
culturais acima das vontades individuais. A civilização é a repressão
social se tornando uma cobrança constante e internalizada como mal-estar.
Nesse artigo busco articular sociologicamente, em contraposição a
diversos autores da teoria social, o conjunto de hipóteses levantadas por
Byung-Chul Han (2018b) sobre a psicopolítica, de modo a repensar os rumos
e as transformações do mal-estar em uma sociedade não repressiva (fundada
em negatividade), mas afirmativa (fundada em positividade).

Palavras-chave
Sociedade do cansaço; Psicopolítica; Mal-estar da civilização;
Biopolítica; Capitalismo

Abstract:
In Civilization and its discontents Freud sought to present a discussion
about the gains and losses of civilization, and specifically about the
discontent caused by its limitations. For Elias, civilization, as a
practice, involves the control of conduct, the regulation of modes and
the subordination of emotions. The torment brought by civilization
results from the way in which it limits freedom, overcoming impulses,
imposing cultural tasks above individual wills. Civilization is social
repression becoming a constant internalized demand as discontentment. In
this article I seek to articulate sociologically, in opposition to
several authors of social theory, the set of hypotheses raised by Han
about psychopolitics, in order to rethink the directions and
transformations of discontentment in a society that is not repressive
(founded on negativity) but affirmative (founded on positivity).

Keywords
Burnout society; Psychopolitics; Civilization and its discontents;
Biopolitics; Capitalism

Resumen:
En El malestar de la civilización Freud buscó presentar una discusión
sobre las ganancias y pérdidas de la civilización, y específicamente
sobre el malestar causado por sus limitaciones. Para Elías, la
civilización, como práctica, implica el control de la conducta, la
regulación de los modos y la subordinación de las emociones. El tormento
provocado por la civilización es el resultado de la forma en que limita
la libertad, vence los impulsos, impone tareas culturales por encima de
las voluntades individuales. La civilización es la represión social
convirtiéndose en una demanda constante e internalizada como malestar. En
este artículo busco articular sociológicamente, en oposición a varios
autores de teoría social, el conjunto de hipótesis planteadas por Byung-
Chul Han sobre la psicopolítica, con el fin de repensar las direcciones y
transformaciones del malestar en una sociedad no represiva (fundada en la
negatividad), pero afirmativo (basado en la positividad).
Palabras clave
Sociedad del cansancio; Psicopolítica; Malestar de la civilización;
Biopolítica; Capitalismo

Repressão e mal-estar da civilização


Em O mal-estar da civilização Freud (2011) busca articular psicanálise e
análise da cultura; trata-se de um texto tardio dentre outros textos em
que Freud buscava refletir sobre a civilização europeia e a modernidade.
Em específico, o principal tema que o inquietava eram os “ganhos e
perdas” da civilização, ou seja, do que abrimos mão para termos uma
cultura racional, o que temos como penalizações por viver em uma
sociedade fundada em um estrito ordenamento, e em que medida a
civilização pode significar possibilidade ou limitação. O texto é
iniciado com uma reflexão sobre a relação entre o Eu e o mundo, sobre o
Eu no mundo, para seguir para uma reflexão sobre o “sentimento oceânico”
supostamente ligado à experiência religiosa. A religião é discutida por
Freud em várias dimensões, sendo pensada, sobretudo, em sua relação com a
felicidade e o sofrimento, como modo de realização e como modo de
limitação. O foco, no entanto, não é a religião em si mesma, mas a
questão da possibilidade de uma felicidade consistente e duradoura, e a
religião é apresentada como uma promessa dessa felicidade que não pode,
por meio dela, se realizar. No entanto, não é só a religião uma promessa
não cumprida, mas também a civilização. Ela também nos oferece soluções,
caminhos, um destino a ser alcançado no futuro se negarmos nossas
vontades hoje, se a abraçarmos com todas suas repressões. O trágico, em
Freud, é que também a civilização não se realiza enquanto promessa de
felicidade.

Para pensar a felicidade Freud reflete sobre três fontes possíveis de


sofrimento: a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a
insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos (Freud 2011,
30). Todas essas três fontes, em conjunto, levam a uma conclusão trágica:
a felicidade plena é impossível, pois seremos sempre, em alguma medida,
coagidos e limitados por tudo isso que compõe nosso mundo – a natureza
exterior, nosso corpo, as relações humanas – pois se trata de forças
contingentes, que vão além das vontades individuais. Dessas três fontes
de sofrimento, Freud centra sua discussão na terceira, na relativa às
relações sociais, que em sua época pôde ser descrita a partir do termo
civilização. Freud discute a postura de hostilidade à civilização em sua
época – presente, por exemplo, tanto na literatura romântica como nos
nacionalismos – como uma amostra de que a civilização não traz só
vantagens, mas traz limitações que são sentidas como perdas, como
problemas, como coações. De um lado, a civilização, a partir da repressão
cultural de impulsos, permitiu um direcionamento deles para a produção
cultural, para o ordenamento social, para a arte, para a ciência e para a
política; de outro lado, a civilização, nos protegendo na natureza e de
nós mesmos, criando esse mundo ordenado, nos subjuga a esse mundo e às
regras cada vez mais restritas da vida cultural.

E onde encontramos essa civilização? O que nela nos atormenta? A


civilização, como conduta civilizada, pode ser identificada com um
conjunto de modos de ser que se disseminaram pela Europa, desde o século
17, compreendendo a valorização do controle das emoções, do biológico, a
prática das boas maneiras, o cultivo da arte e da ciência (Elias 1993). A
civilização é definida pela ordem, pela limpeza, pela racionalidade. A
civilização, como prática, envolve o controle das condutas, a regulação
dos modos, a subordinação das emoções. O tormento trazido pela
civilização decorre do modo pelo qual ela limita a liberdade, se
sobrepondo aos impulsos, impondo tarefas culturais acima das vontades
individuais. Ganha-se com a civilização uma menor violência física
cotidiana e um maior ordenamento da vida social que nos permite
empreender atividades produtivas, mas perdemos com a civilização parte de
nossa experiência emocional, que se encontra sempre subordinada a
expectativas sociais, cada vez mais vivenciadas também dentro de nós. A
civilização está fora, mas está dentro, é a repressão social se tornando
uma cobrança constante e internalizada.

Em “Totem e Tabu” (Freud 2012), ao buscar refletir sobre as sociedades


“não civilizadas”, Freud conclui que é sobre o “não” que se constroem as
sociedades. A organização da sociedade é descrita, em seu estudo, em
torno da proibição do incesto, da limitação sexual como forma de
estruturação da cultura, mas os tabus, vividos pelos polinésios como algo
mágico, continuam presentes destituídos de magia, de forma que a
proibição do incesto é a mais antiga e a mais atual, por isso a mais
permanente das regras sociais, tendo uma força estruturante da própria
vida cultural (Lévi-Strauss 1982). Da mesma forma que evitamos a
violência e a agressividade, a expressão emocional intensa e a
sexualidade, é parte da civilização evitar a morte, até mesmo evitar
falar da morte. Na modernidade a morte é segregada, separada do mundo,
transformada em experiência extracotidiana com a qual o contato deve ser
evitado (Elias 2001b). A civilização é, para essa experiência, também
negação; as religiões modernas reproduzem o mesmo, negando a morte como
definitiva, oferecendo conforto diante dessa experiência destruidora e
definitiva (Freud 2010b). Novamente, aparece aqui a sociedade se
construindo em torno de proibições que atuam, por meio da norma, formando
o autocontrole, traço de uma sociedade internalizada, como nos lembra
Elias (1993), psicologizada em antecipação dos outros e de suas
expectativas, ou, dito à maneira de Mead (2010), um self formado a partir
do outro generalizado que é a sociedade, e que por isso, partindo das
atitudes sociais regulares formamos nossa atitude autônoma, sendo nossa
mente autoconsciente um refletir sobre os outros, os antecipando, e assim
refletindo sobre si mesmos.

Quando falamos de civilização e tabus falamos de proibições; se hoje


temos outros totens, permanecem, no entanto, as coerções, talvez não
descritas como proibições, mas mesmo assim com seu caráter de dever. Se
em torno das proibições construímos neuroses e obsessões, o que será que
podemos construir quando as nossas formas de coerção não são mais
percebidas como proibições, mas como liberdade? Para responder essa
questão pretendemos apresentar e articular algumas reflexões do filósofo
e ensaísta cultural Byung-Chul Han (2017b, 2018b), com as contribuições
da teoria sociológica para repensar o mal-estar, não mais como um mal-
estar da civilização, com suas repressões baseadas em proibições, mas
como um novo mal-estar, característico de uma sociedade de alta-
modernidade, hipermodernidade, de uma sociedade da informação.

A hipótese central de Freud (2011) em seu O mal-estar da civilização era


de que toda sociedade, por meio de suas proibições, produz um tipo
específico de sujeito, com seus problemas específicos, relativos sempre
às repressões e às coerções enfrentadas. Elias (1993), em sua discussão
sobre o processo civilizador, de maneira similar, diz que a
psicologização e a racionalização do outro, junto da incorporação das
regras de conduta social como códigos internalizados, que nos impulsiona
a uma autorrepressão, não é algo universal de todas as sociedades, mas
resultado de um modelo de sociedade, de uma organização social que, tal
como em uma sociedade de corte (Elias 2001a), com suas regras muito
particulares de atribuição de valor social por meio da contenção
emocional, se estrutura e atribui valor social à supressão de instintos,
impulsos e vontades, em nome de uma etiqueta social repressiva,
vivenciada por isso como autocontrole. Han (2017b, 2018b), com suas
discussões sobre a sociedade de cansaço e o nascimento da psicopolítica,
busca, em diálogo com Freud (2011) e Foucault (2008, 2014), questionar os
rumos e as transformações de nosso mal-estar em uma sociedade não
repressiva (fundada em negatividade), mas afirmativa (fundada em
positividade). Nesse artigo pretendemos articular sociologicamente o
conjunto de hipóteses levantadas por Han (2017b, 2018b) para repensar o
mal-estar na contemporaneidade.

Sociedade disciplinar e sociedade do desempenho


A partir de Foucault (1979), compreendemos uma sociedade disciplinar como
uma sociedade repressiva, mas também produtiva. A organização da
sociedade disciplinar limita, regula e direciona o poder, mas esse poder
também é produtivo, permite fazer, direciona e incrementa a produção.
Essa sociedade disciplinar, que reprime e produz, é também o modelo de
sociedade civilizada. Como nos mostrou Weber (2006), em seu estudo sobre
as relações entre protestantismo e capitalismo, disciplina e capitalismo
são práticas sociais que se alimentaram reciprocamente ao longo da
história moderna. O protestante, descrito por Weber (2006) como tipo
ideal, angustiado com o medo da condenação e a busca da salvação, se
disciplinava no trabalho; sua disciplina no trabalho se tornou, com o
passar do tempo, a própria disciplina da vida capitalista. A vida
monástica dos monges, a vida austera dos protestantes e a vida
disciplinada dos capitalistas modernos se aproximam na medida em que, por
meio da regularidade imposta, e rotinizada, buscavam amplificar os
produtos de seu trabalho. O ideal protestante de disciplina para o
trabalho, com sua consequente rotinização da vida, foi, nesse sentido,
componente essencial para o desenvolvimento do capitalismo moderno
(Pierucci 1998).

Para Foucault (1979), o poder disciplinar se segue ao poder do soberano.


A soberania é aquela forma de poder sobre o território, a vida e a morte.
O poder soberano é o poder organizado em torno da possibilidade de o
monarca impor sua vontade em nome de um pacto social, a violência é seu
modo de ação primordial. A soberania é, assim, característica do poder
feudal e perdurou até o século 17. O poder disciplinar, em oposição, é o
poder tipicamente moderno. Em ascensão e expansão desde o século 18, a
disciplina incide sobre os corpos, por meio de coerções e regulações,
articuladas por meio do direito e da medicina. O poder disciplinar é o
poder da vigilância constante, das regras estritas e bem definidas, da
lei e da ordem. O modelo mais representativo do poder disciplinar é o
panóptico. Enquanto arquitetura de controle, com um panóptico tem um
centro de onde se permite a observação do todo, seu objetivo é permitir a
rotinização do controle. Por meio da visibilidade se induz ao
funcionamento automático do poder, que se torna coletivo e sistêmico,
atuante por meio de agentes, e promovendo efeitos homogêneos de
padronização de condutas e de amplificação de eficiência (Foucault 2014).
A subordinação do corpo e a automatização das condutas para o bom
desempenho de práticas esperadas é o resultado do poder disciplinar.

A sociedade disciplinar se funda na restrição, no estreitamento das


relações, nos códigos claros de conduta correta, e, sobretudo no
confinamento. A fábrica, com sua ordem na linha de produção, é o modelo
(e talvez o maior de todos, porque caracteriza o capitalismo industrial)
de uma sociedade disciplinar, ou dito de outra forma, a linha de
produção, com sua produção em cadeia com etapas definidas, espacialmente
e temporalmente delimitada e supervisionada, é o modelo de engenharia
social do capitalismo pesado (Bauman 2001), de maneira que é estendido
para outras formas de organização, como os presídios, nos quais a
organização especial e temporal é reproduzida com os mesmos propósitos
disciplinares direcionados a integração no capitalismo (Melossi e
Pavarini 2006). O modelo disciplinar vai muito além da repressão ou da
produção, ele promove também aquilo que Giddens (2002) chamou de
segregação da experiência, ou seja, processos que removem do cotidiano
aquelas experiências que rompem com a continuidade funcional e evocam
dilemas morais, como a loucura, a criminalidade, a doença, a morte, a
sexualidade, e o caráter imprevisível da natureza. Uma sociedade
disciplinar mantém a segurança ontológica pela remoção das experiências
que abalam a crença na continuidade e na regularidade.

A sociedade disciplinar é, sobretudo, fechada, limitadora, e se organiza


em torno do corpo que trabalha e age, produzindo. Tal quadro se modifica
em uma sociedade do desempenho, que se apresenta como aberta às
oportunidades, livre, e que se organiza pelo raciocínio, iniciativa e
motivação, atributos atribuídos ao psicológico, enquanto núcleo de
pensamento e de emoção. O poder disciplinar atua no corpo, pois “a
técnica ortopédica do poder disciplinar é muito grosseira para penetrar
nas camadas mais profundas da psique” (Han 2018b, 35). Mas é justamente
da psique que uma sociedade do desempenho se ocupa; ela visa à otimização
mental para otimizar a produção material. Essa sociedade do desempenho é
resultado direto do neoliberalismo, e seu sujeito representa um
agravamento dos aspectos do homo oeconomicus. Se em sua concepção
clássica, liberal, o homo oeconomicus era aquele envolvido na troca de
mercadorias, na negociação, em sua versão neoliberal é um empresário de
si mesmo, sendo ele mesmo o seu capital (Foucault 2008, 311). A
antropologia filosófica do neoliberalismo, sua concepção de ser humano,
apresenta o homo oeconomicus como modelo geral da conduta humana,
finalista, calculista, orientada por estratégias e totalmente racional. É
do homo oeconomicus neoliberal, como descrito por Foucault, que emerge o
ideal de sujeito de uma sociedade do desempenho.

Ao contrário do sujeito de uma sociedade disciplinar, explorado por


capitalistas e sujeito ao estado, o sujeito de uma sociedade de
desempenho se autoexplora com a convicção de que o faz livremente, de que
não é servo de ninguém, de que apenas busca seus objetivos e realiza seus
projetos (Han 2018b). É não apenas um empreendedor individual, mas um
empreendedor de si, que calcula suas ações de maneira finalista, que se
cobra ao desempenho, e que acredita que não há nada de “social” o
impulsionando a tal atitude, exceto a sua própria vontade. Cabe-nos,
então, perguntar: quem impulsiona a busca por desempenho e a
autoexploração em uma sociedade do desempenho? Diferente de uma sociedade
disciplinar, onde há uma coerção advinda de um polo emissor, embora todos
tenham que se submeter a essa coerção, mesmo os emissores, em uma
sociedade do desempenho todos produzem a regra e a coerção por si mesmo,
e reproduzem em discurso. Ser ativo, fazer, repetir e continuar são
imperativos de época, formam um “espírito do tempo”, impulsionados,
sobretudo, pelo capitalismo da informação, que por meio do big data
extrai nosso “psicograma coletivo” (Han 2018b, 36) e incentiva
tecnologias do eu (Han 2018b, 43) que otimizam desempenho.

Uma sociedade do desempenho não deixa de ser violenta, e aí reside um de


seus mal-estares. Embora sua violência sistêmica não seja física e
direta, ela é uma violência indireta, internalizada. A cobrança pelo
trabalho, pelo sucesso, pela liberdade, pelas vivências transitórias leva
ao cansaço e ao esgotamento, e esse esgotamento é uma autoagressão (Han
2017b). Trata-se também de uma violência do consenso, porque se todos
estão em competição, em busca de afirmarem como livres, não se é
permitido escolher não estar. O resultado dessa violência neuronal são as
psicopatologias contemporâneas, como a depressão e o burnout. Tal como a
neurose era a psicopatologia representativa do mal-estar moderno, as
psicopatologias da atividade (deficit de atenção e hiperatividade) e
esgotamento (depressão e burnout) são representativas de um novo mal-
estar, produzido por uma sociedade que não mais proíbe e recalca, mas que
impulsiona ao fazer cada vez mais. Elas se somam às psicopatologias do
autocentramento (narcisismo) e da instabilidade emocional (borderline)
como respostas às demandas dessa nova sociedade.

É inerente à sociedade pré-moderna da soberania a violência da


decapitação; seu medium é o sangue. A sociedade disciplinar moderna é, em
grande medida, uma sociedade da negatividade, sendo regida e dominada
pela coerção disciplinar, isto é, pela ‘ortopedia social’. Sua forma de
violência é a deformação. Mas nem a decapitação e nem a deformação estão
em condições de descrever a sociedade de desempenho pós-moderna. Ela é
dominada por uma violência da positividade, que confunde liberdade e
coerção. Sua manifestação patológica é a depressão (Han 2018b, 183-184).

De um modo geral, os transtornos depressivos abarcam um grande conjunto


de sintomas afetivos, cognitivos e comportamentais possíveis, tais como
humor deprimido, desânimo e perda de interesse, alterações no apetite e
no sono, anedonia, fadiga e perda de energia, pessimismo, baixa
autoestima e autoconfiança, concentração prejudicada, pensamentos de
morte e suicídio, passividade ou agitação (Dalgalarrondo 2008). A esse
conjunto básico de sintomas, juntam-se outros que, conforme incidência
permitem classificar os tipos e subtipos de depressão. Sua amplitude,
como conceito, é tal, que sua definição se torna complexa, e se liga,
sobretudo, à inatividade, à passividade, ao pessimismo e à inação. Tal
como Han (2018b), Ehrenberg (2004) liga a depressão ao capitalismo
contemporâneo a caracterizando, sociologicamente, como resultado de

[…] uma transformação de grande amplitude da normatividade social: a


passagem de uma sociedade que se refere à disciplina (interdição,
obediência, autoridade, etc.) para uma sociedade que se encontra sob o
primado da autonomia (Ehrenberg 2004, 147).

É dessa forma que a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do


desempenho se refere à inversão do eixo das repressões (negatividade)
para as permissões (positividade), da negação das possibilidades para a
afirmação de possibilidades. Segundo Han (2017b), o século 20 representou
uma aprendizagem social dos limites da disciplina, com a constatação de
que, em certo ponto do capitalismo, proibir e bloquear não poderiam
resultar em incremento do crescimento econômico. A sociedade do
desempenho, com sua psicopolítica, representaria o ponto de encontro do
neoliberalismo com uma nova práxis social: a positividade do poder como
garantia do crescimento e da impossibilidade de estagnação. Equalizando
liberdade com produtividade e responsabilidades individuais por seu
sucesso e fracasso, o capitalismo não teria, a partir daí, limites em
suas possibilidades de ampliação.

Biopolítica e psicopolítica
Com as reflexões de Arendt (2007) tivemos o alerta de que a transformação
da política em administração, em gerência da produção, representava algo
distintivo para a era moderna. Foucault (1999) leva esse alerta adiante
no conceito de biopoder, com o qual busca sintetizar a forma como a
organização política moderna, sobretudo centrada no Estado, mas também
por meio do capitalismo, gerencia os corpos, e tem como objetivo central
a gestão da vida e da organização da população. A biopolítica é, assim,
uma forma de poder centrada na gestão da população, visando sua
manutenção, seu crescimento, sua saúde e sua vida. Estatística, medicina,
direito e logística são agrupadas para essa gestão, que é sobretudo uma
gestão econômica das sociedades, visando sua racionalização e bom
desempenho.

Em oposição, para Han, vivemos não mais uma época de biopoder, mas
vislumbramos a ascensão do psicopoder. Essa nova forma de poder, fruto de
um capitalismo da informação, atua por caminhos muito mais eficientes, e
inteligentes, que o biopoder, pois

o poder não se limita a quebrar a resistência e compelir à obediência:


não tem que necessariamente assumir a forma de coerção. […] o poder está
precisamente aonde não é posto em evidência. Quanto maior é o poder, mais
silenciosamente atua (Han 2018b, 25).

Se o biopoder é negativo, composto por negações, proibições, regras de


conduta correta, ordenada e saudável; o psicopoder é positivo, ele
permite, autoriza a ação, desestimula as restrições. Ao invés de oprimir,
se busca libertar e motivar; ao invés de punir os erros e excessos, se
busca manter a sensação de gratificação para impulsionar a dependência.
Enquanto o biopoder funciona pelas emoções negativas, pelo medo da
punição, pelo medo da morte, o psicopoder funciona pelas emoções
positivas, pela euforia, pela participação, pela congregação. O problema
é que um poder negativo é limitado a espaços aonde essa relação de
sujeição é possível, mas o um poder positivo, por se fundar no ganho e
não na perda, pode ser ampliado ao infinito, para todos os âmbitos da
vida.
O psicopolítica não tem polo emissor, não tem locus, trata-se de um novo
pacto social, de um imperativo coletivo para o fazer. Isso não significa
que não há produtores de psicopoder, pois a psicopolítica é também um
modo de organização societária, com seus representantes. A organização
informacional do Estado, o neoliberalismo orientado pela amplificação
exponencial de informações, tudo isso contribui para a produção de
informação, e daí para uso da informação para a manutenção do impulso a
ela mesma. O estímulo à circulação e à continuidade da comunicação é o
instrumento psicopolítico por excelência. A livre informação, sem
restrições, coloca todos em ação, como uma multidão de indivíduos
atomizados. A vigilância digital que atua sob autorização e desejo de
todos aqueles que usam redes sociais serve para esse impulsionamento
constante, aonde por meio de um espírito de liberdade e de livre
expressão, se dá a reprodução e a continuidade de um modelo, que é o da
coação de si mesmo ao fazer e ao produzir, seja produzir bens, seja
produzir informação (Han 2018a). O panóptico digital não limita, mas
impulsiona, e impulsionando ele vigia e influencia o comportamento a
partir da coleta de dados.

Para Arendt (2007), a sociedade moderna, como sociedade do trabalho e do


fazer, se sobrepõe a uma sociedade fundada no agir, enquanto decidir e
realizar politicamente, e por reduz o ser humano a um animal laborans, ao
fazer pela sua mera sobrevivência. A vita activa moderna, reduzida ao
trabalho, não só solapa a ação, como solapa também a contemplação – não
temos mais tempo para refletir, apenas para fazer. Nosso pensar agora é
cálculo, racionalidade com relação a fins, orientação econômica. O animal
laborans atual transforma o fazer em seu mantra, não só fazendo porque há
uma demanda social pela produção ou porque o trabalho engrandece, mas
busca fazer porque não vê alternativa, e equaliza fazer e liberdade. Han
(2017b) complementa que não se trata só da busca por coisas, mas também
pela busca de vivência, do completamente novo, de um novo estímulo ou de
uma nova aprovação.

Psicopolítica também remete, para Han (2018b), à aceleração social, mas


de um modo contraditório. Tal como Elias (1998), Han (2018b) argumenta
que a aceleração do tempo é constitutiva da modernidade, que a passagem
do tempo abandona os rituais que o encadeiam em eventos, se tornando, com
a desritualização da passagem do tempo, uma aceleração acumulativa, mas
improdutiva. Argumentando de maneira similar a Rosa (2019), que destaca
que a aceleração social, fruto da divisão do trabalho, da racionalização
e do capitalismo, além de acelerar processos cria também seu inverso, a
paralisação e o congestionamento, como efeitos colaterais, Han (2018b)
afirma que o impulso para aceleração de produtividade, atribuído aos
indivíduos, gera seu inverso, como “infarto do sistema” e colapso
individual. A aceleração significaria, desse modo, não apenas um aumento
de racionalização, um aprofundamento de individualização na divisão do
trabalho, mas também um aumento de entropia, uma saturação de atividade,
produção e comunicação.

Estar ativo, e hiperativo, é parte de um código moral de uma sociedade


psicopolítica, no qual autoexploração é liberdade. Temos assim, com a
psicopolítica a demolição do código de proibição civilizacional, do
ordenamento típico da disciplina e da biopolítica, em nome de um
ordenamento que coloca no eu a responsabilidade e o imperativo de ação
(Han 2018a). A psicopolítica traz um novo mal-estar, com o fazer se
tornando seu dever, com a coação ao poder tudo, deixando de lado os
limites da disciplina em nome da potência da liberdade. Ela impulsiona a
concorrência individual internalizada, um impulso de autossuperação, que
se não realizada se transforma em culpa e sensação de fracasso (Han
2018b). A psicopolítica internaliza a lógica concorrencial do
capitalismo, dessa vez não como outros a serem enfrentados no mercado,
mas contra si mesmo. Com a obrigatoriedade de tudo fazer, com a disputa
contra si em um capitalismo internalizado como liberdade, o cansaço é
inevitável.

Capitalismo, transparência e cansaço


O capitalismo de uma sociedade do desempenho tem como imperativos o fazer
sempre e mais, e o mostrar sempre e mais. É nas coações do fazer e do
mostrar que desempenho e transparência levam ao cansaço. Além do fazer,
com a necessidade de transparência, somos impulsionados a mostrar, a
participar e a exibir o eu que faz. No ethos da transparência, o sucesso
está na proximidade, e não no distanciamento, e por isso há a necessidade
de uma comunicação constante, que retroage em acúmulo e excesso de
informação (Han 2017a). Psicopolítica e big data se inter-relacionam no
capitalismo. O big data funciona como instrumento psicopolítico para
otimização da produtividade. Agindo nas redes sociais, sendo um “cidadão
digital” se concede informação livremente, com essa informação produtos e
serviços são melhor direcionados, o empreendedor de si, para ser parte de
um mundo de consumo produz para comprar, e ao mesmo tempo tem direcionada
a si, pelos meios de comunicação, um conjunto de ideias e valores que
reforçam seu caráter livre e não sujeito, sua visão de si como sujeito
não determinado, agindo conforme suas próprias vontades, escolhendo e
trabalhando do modo que optou. Seu objetivo é o consumo, autorrealização
e autoafirmação (Han 2018b).

A pessoa se torna coisa que produz coisas, mesmo que seja informação ou
experiências, algo não muito diferente do trabalhador descrito por Marx
(2004), que se encontra preso no ciclo de produção, sem conferir sentido
ao seu trabalho desprovido de sua conexão mais profunda com o que faz. A
diferença, no entanto, é que o trabalhador explorado pelo capital
industrial se percebia como explorado, enquanto o trabalhador do novo
capitalismo se vê como livre, fazendo escolhas e dispondo de opções. O
trabalhador de um capitalismo industrial, ao estar desempregado entende
que as causas de seu sofrimento são partes da produção e de escolhas de
outro, mas o trabalhador do novo capitalismo se vê como fracassado, como
alguém que não fez o suficiente. A transformação do trabalhador em um
empreendedor, alguém que se orienta não mais pelo trabalho em um lugar,
mas em projetos individuais e metas, é núcleo central de um novo conjunto
de ideias sobre o trabalho, de um novo espírito do capitalismo
(Bolstanski e Chiapello 2009), que acompanha as mudanças de um
capitalismo industrial para um capitalismo financeiro – o que Han (2018b)
vê, por sua vez, como intrínseco ao capitalismo do imaterial

O neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o trabalhador um


empreendedor. […] Na produção imaterial, de um jeito ou de outro, cada um
possui o seu meio de produção. O sistema neoliberal não é mais um sistema
de classes em sentido estrito. Ele não se constitui por estratos
antagônicos da sociedade. E é aí que reside a estabilidade do sistema.
[…] é disseminada a ilusão de que qualquer um, enquanto projeto que se
esboça livremente, é capaz de autoprodução ilimitada (Han 2018b, 14-15).

Para Boltanski e Chiapello (2009), o espírito do capitalismo é um


conjunto de crenças que serve de justificativa para uma ordem social e
legitima ações dentro dessa ordem, garantindo assim uma existência em
harmonia com a acumulação. O espírito do capitalismo compreende as visões
de mundo sobre o capitalismo, com justificações individuais e coletivas
para sua forma econômica. Os pilares do espírito do capitalismo foram
formados pelas crenças em seu progresso material, sua eficiência na
satisfação de necessidades e como modo de organização livre. Para os
autores, cada época, cada transformação do capitalismo, traz consigo um
novo espírito, enquanto conjunto de crenças. Se o espírito do capitalismo
descrito por Weber (2006) tratava de uma ordem social burguesa emergente,
ainda tradicional, mas com grande nível de inovação técnica no trabalho,
e se outros espíritos o sucederam com o capitalismo globalizado, para
Boltanski e Chiapello (2009), o novo espírito do capitalismo é aquele do
discurso empresarial da década de 1990, que se apresenta como ideologia
dominante acerca das representações sobre a economia. Esse novo espírito
é caracterizado por valores relacionados à mudança, à diminuição, ao
desenvolvimento de projetos individuais e descentralizados, à mobilização
espontânea, à flexibilidade no trabalho e à autonomia. O foco desse novo
discurso a respeito do capitalismo, apresentado como ideologia dominante,
é a autonomia do trabalhador, liberto das obrigações empresariais
rígidas. O trabalhador agora é empreendedor de si mesmo, e os manuais de
autoajuda são seus guias espirituais nessa empreitada.

De forma análoga, Ehrenberg (2010) vê no culto da performance, trazido do


esporte e da aventura, carregado de chavões empresariais, como um
discurso ideológico sobre a positividade da disputa, do empreendimento,
da busca de resultados, das vitórias a todo custo. O indivíduo performa
como um atleta em busca de otimização econômica; deve ser bravo e
vitorioso, enfrentando todos os desafios. Mais do que uma opção, se
otimizar para a performance, para a obtenção de sucesso, se torna uma
norma social, e como norma, exige sacrifícios. A medicalização da vida,
para otimizar o empreendedor de si já cansado, se torna uma opção. A
competição não pode parar, e os riscos devem sempre ser assumidos. As
emoções devem ser positivas ou ignoradas nessa busca. Ou dito ao modo de
Bauman (2001), na passagem de uma sociedade de produtores para uma
sociedade de consumidores, do capitalismo industrial (sólido) ao
capitalismo da informação (líquido), o inconformismo e a adaptação se
tornam virtudes, ser maleável e estar em movimento são obrigações, o
indivíduo deve enfrentar suas frustrações sempre, sozinho e
individualizado.

O capitalismo da informação, do que nos fala Han (2018b), é também um


capitalismo emocional, mas de emoções muito bem definidas. Diferente de
um capitalismo industrial e de sua óbvia exploração do trabalho ou do
capitalismo dos protestantes que viam no sofrimento uma fonte de virtude,
o capitalismo da informação se vale das emoções positivas e reproduz um
discurso sobre a liberdade e a euforia. Emoções negativas são
desestimuladas e, por isso, o excesso de positividade. Vive-se na
positividade da busca de gratificação, que eventualmente esgota o sujeito
em seu excesso de atividade. Han (2018b, 59-68) distingue sentimentos e
emoções, atribuindo ao sentimento uma continuidade temporal e às emoções
a vivência situação no agora, no presente imediatamente vivido. O
capitalismo industrial podia ser sentimental, porque era contínuo,
impunha um ritmo de vida fundado na rotina, mas só o capitalismo
informacional pode ser emocional, porque exige a todo o momento novos
empreendimentos, uma nova doação de si, de um eu que busca a emoção em um
momento para não lidar com ela extinta no momento seguinte. Essa
dualidade muito se assemelha à diferença que Bauman (2001) faz entre os
modos de individualização no capitalismo sólido e no capitalismo líquido,
sendo o primeiro modo fundado na busca de ser indivíduo situado em uma
comunidade, e o segundo construção estética da identidade, por meio de
experiências transitórias de consumo.

Illouz (2011) atribui esse aspecto emocional do capitalismo a uma série


de mudanças nas sociedades contemporâneas. De um lado, com a entrada da
linguagem da psicologia na empresa capitalista, com suas práticas
motivacionais, e com a difusão da autoajuda e literatura focada no bem-
estar, aquele elemento sistêmico, mais racionalista, de nosso cotidiano
no trabalho se torna emocional; as emoções passam a ser reconhecidas no
discurso público, como justificativas suficientes, como modos de se
comunicar. De outro lado, em contradição, o campo afetivo por excelência,
aquele da vivência familiar e dos relacionamentos íntimos, se racionaliza
com relação a fins, se torna pragmático, mais “capitalizado”. Para Illouz
o capitalismo emocional tem essa dupla linguagem, do mundo público do
racional emocionalizado e do mundo íntimo racionalizado, com os afetos
ali sendo geridos como bens e mercadorias. Han (2018b), em oposição, vai
dizer que a transformação do público em emocional faz parte desse
capitalismo da informação, que torna até mesmo o íntimo transparente,
algo exposto e destinado ao consumo, e ao mesmo tempo emocional, porque é
constitutivo da psicopolítica a busca de envolvimento emocional em todas
as práticas.

Como toda experiência negativa deve ser evitada, o sofrimento do fracasso


na sociedade de desempenho é análogo ao inferno do protestante descrito
por Weber (2006), que disciplinado e trabalhando, ao não ser produtivo,
se vê condenado. Giddens (2002) compara a angústia dos protestantes
capitalistas na busca pela salvação, disciplinados para o trabalho para
evitar a condenação, às pressões civilizatórias descritas por Freud
(2011); tanto a disciplina para trabalhar, como a repressão dos impulsos,
caso transgredidas, levariam a culpa. Em ambos os autores, Freud e Weber,
a renúncia do prazer são as bases da formação da modernidade. Giddens
(2002, 144), no entanto, apresenta uma ressalva: essa visão de uma
modernidade fundada na repressão parece hoje incongruente com “a aparente
permissividade moral da modernidade tardia”; de modo que, ao invés da
culpa fundada nos ditames do que não pode ser feito, em uma modernidade
tardia, temos a vergonha como processo central que orienta o projeto
reflexivo do eu. Como essa vergonha se expressa? Segundo Han (2018b),
pelo fracasso em fazer. Se o protestante trabalhava angustiado pelo medo
da condenação, para o empresário de si mesmo a condenação é não ser capaz
de dar conta de tudo que almeja, é não ser ativo e produtivo o bastante –
é fracassar diante dos próprios anseios, que sente como individuais. Para
o sujeito do desempenho, angustiado pelo fazer, a depressão é o seu
inferno, que se sucede ao esgotamento e cansaço.
À conclusão semelhante chega Ehrenberg (2010) ao refletir sobre a
mentalidade orientada para a performance, que impulsiona cada um ao
governo de si, e, por isso, pela gestão individualizada de
responsabilidades e consequências do agir, e o surgimento de novas
psicopatologias. Uma cultura orientada para a performance não apresenta
mais aqueles sintomas psicopatológicos neuróticos da época de Freud, mas
um conjunto novo de psicopatologias depressivas e expressas em queixas
relativas à impotência, à desesperança e à desvalorização. Esse novo
quadro psicopatológico é resultado das demandas por performance e
resultados, por mudança permanente e flexibilidade e, sobretudo, pelas
pressões por resultados. A mitologia de autorrealização (Ehrenberg 2010,
174) transforma o indivíduo em empreendedor de si, e o resultado deve ser
o sucesso, e o sucesso deve ser visto, deve ser aparente e transparente.

É nesse sentido que o fazer econômico, enquanto produção individualizada


e vista como livre, é complementado pelo aparecer. O que Han (2017a)
chama de sociedade da transparência se refere a um novo imperativo moral
que se complementa ao imperativo de liberdade e de produção, que é de
participar ativamente nas redes digitais, mostrar que se está agindo,
esperar a recompensa por sua ação. Se age para mostrar, se faz para
exibir, para assim ser gratificado, em uma espécie de condicionamento
circular, encadeado, que é a forma acabada de um tipo de sociedade.
Vivendo um panóptico digital, sendo transparentes e ativos, os sujeitos
do desempenho não são mais supervisionados por ninguém, eles se observam
entre si, se reforçam entre si, são vigias e presos simultaneamente.

Em seu ensaio sobre as grandes cidades, Simmel (2005) apontava como um


dos grandes problemas da vida na metrópole moderna a contradição entre se
viver sob excesso de estímulos e não se sentir, por isso, estimulado por
nada. Sob o nome de comportamento blasé, Simmel dava destaque ao
embotamento emocional que o excesso de possibilidades, estímulos visuais
e a orientação constante para o agir causavam nos habitantes das
metrópoles modernas. Han (2017b), ao pensar as consequências do
imperativo do fazer, na multitarefa como regra do capitalismo
informacional, no aparecer e estar em evidência como norma da
sociabilidade nas redes sociais, chega em uma conclusão ainda mais
radical: da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, com a
psicopolítica da autoexploração, vivemos na atenção profunda de tudo
fazer, de buscar sempre o novo, e o resultado esperado disso é o tédio e
o cansaço. Se o cidadão metropolitano do início do século 20 vivia
entediado pelos excessos, o cidadão hiperestimulado do século 21 se vê
não só entediado, mas cansado e deprimido (Han 2018a).

Liberdade e mal-estar contemporâneo


A civilização moderna possuía uma direção clara, embora contingente.
Tratava-se de uma ordem pautada na valorização simbólica e das lutas em
torno de valores relativos ao autocontrole e a racionalidade. Ser
controlado, reprimir os impulsos, era fonte de valor social. O
autocontrole, como repressão social internalizada, atuava como
autopunição, como vergonha e culpa, inibindo a expressão emocional, a
agressividade e a sexualidade. A civilização favoreceu a pacificação, que
significa, para Elias (2011), a inibição da violência física nos espaços
sociais, restando apenas a autorização para a violência simbólica das
disputas sociais em torno de valores. Para Elias, ser civilizado era ser
psicologizado, isto é, internalizar o outro como uma imagem complexa,
repleta de motivos e conexões causais, e, também, ser racionalizado,
agindo por meio de cálculos, previsões e expectativas. Mas Elias destaca,
a civilização se mantém por meio de um modelo de sociedade e de suas
disputas.

Em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, Freud (2010a) traz uma


reflexão que tem como desencadeadora a Primeira Guerra Mundial; são
feitas indagações sobre os retrocessos civilizatórios que a experiência
da guerra representa, sobre a desilusão provocada por tal conflito
violento. Ali ele já refletia sobre as regras da vida civilizada, sobre a
capacidade ordenadora dessas regras, mas já advertia: a civilização é
algo muito vulnerável também, e a guerra é a amostra disso; a civilização
é um esforço coletivo, e a paz dela decorrente precisa ser mantida e
cultivada. Na guerra a civilização é suspensa, a brutalidade retorna, e
tudo o que era reprimido se vê autorizado; é na guerra que vemos a
importância da civilização e, também, sua vulnerabilidade. A guerra
também mostra a virtude da civilização para conter os instintos e
assegurar alguma paz. A repressão social, que se torna autorepressão ali
lhe afigura como positiva, como contenção da violência. Ademais, e mais
importante, aí fica claro que a civilização e a repressão são
contingências de uma sociedade, podendo essas repressões serem suspensas
em eventos particulares, com o decorrer da história. Elias (1997) também
discute a suspensão da civilização e o colapso da repressão civilizatória
durante a Segunda Guerra Mundial, e a partir daí reforça: nossas coações
não são inatas, não são propriedades universais, são mantidas em um
modelo de sociedade, alteradas quando esses modelos são alterados, de
modo que o autocontrole e a autorepressão típicos da civilização, em um
contexto de outro tipo, podem se alterar, seja em sua completa negação,
seja em seu inverso. Se a civilização não é uma conquista permanente,
tampouco o mal-estar é imutável.

Em sua reflexão sobre o mal-estar da pós-modernidade, Bauman (1998)


retoma Freud (2011) e Elias (1993), para destacar que civilização é ganho
de alguma coisa, mas perda de outras coisas. Limpeza e ordem foram, na
modernidade, o ganho da civilização. O projeto de uma modernidade
civilizada não tolerava a ambivalência, e a constância de uma sociedade
nacional, ordenada, estratificada, científica, era a garantia de uma
ordem produtiva, certamente repressiva, mas que poderia garantir a
segurança. Hoje, isso se inverte, e busca-se viver na ambivalência, fazer
de si um projeto inacabado, que não pode ser fechado em regras (Bauman
1999, 244-298). Um modelo societário é mantido e internalizado na medida
em que é empreendido algum esforço em sua manutenção, e apenas em um
conjunto de relações e figurações nos quais ele garante a troca e a
disputa. Desse modo, em uma sociedade globalizada, com um capitalismo
informacional, com as demandas sociais de ampliação de liberdades
individuais, o imperativo civilizatório se transforma, e com isso temos
um novo mal-estar que

[…] provém de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera


uma segurança individual pequena demais. […] liberdade sem segurança não
assegura mais firmemente uma provisão de felicidade do que segurança sem
liberdade (Bauman 1998,10).
É típico que sociedades se vejam sob uma ótica favorável, e considerem
seus valores como valores a serem defendidos como positivos, e afirmados
como elementos constituintes de sua estima de grupo (Elias e Scotson
2000). É a na apresentação favorável da coerção da liberdade que uma
sociedade psicopolítica convive com seu mal-estar. Simmel (2006), em um
texto sobre as ideias de indivíduo e sociedade nos séculos 18 e 19,
discute como liberdade é uma dessas ideias maleáveis, que mudam ao longo
do tempo, mas que tende a ser identificada como algo de ideal em uma
sociedade, com suas buscas e ambições. Se para no século 18 a liberdade
representava a crítica dos privilégios da aristocracia e o indivíduo era
um sujeito universal, típico da filosofia iluminista, no século 19 a
liberdade se aproximava da igualdade, apenas sendo possível fora do
individualismo, e o indivíduo se apresentava como autonomizado e
diferenciado pelo trabalho especializado. A relação entre indivíduo e
liberdade nunca é estática, e os séculos 20 e 21 produziram uma nova
relação.

Para Han (2018b) vivemos sob a égide de uma nova ideia de liberdade, e
ela é fonte de legitimação de novas formas de submissão e coação. Para
ele, a nova forma de submissão é consequência da libertação, e se
consolida mediante um conjunto de ideias que negam qualquer submissão,
apresentando-a como liberdade, ou como projetos livres, como construção
individual de um eu sem coações externas. A contradição desse processo
está na liberdade ter sido transformada na forma perfeita de coação, por
meio de coações internas voltadas para o desempenho, a exposição, a
produção (de si, das coisas, das vivências). Ou, dito de outra forma,
“substitui-se o dever pelo poder, pois a liberdade do poder produz até
mais coações do que o dever disciplinar, que expressa regras e
interditos. O dever tem um limite, o poder não” (Han 2018b, 9-10).

A partir de Engels e Marx (1998) notamos que a ideologia, muitas vezes,


nos aparece como um modo de justificação de um modelo societário ou como
um modo de inversão das relações do poder, que ofusca as relações reais.
Para Marcuse (1973) a ideologia da sociedade industrial era a da
funcionalidade, da produtividade e da quantificação; o utilitarismo era
sua crença fundamental de uma sociedade fundada em instrumentos técnicos
neutros, vistos como objetivos e alheios à experiência humana, ela
englobava a crença no progresso tecnológico em uma sociedade industrial
disciplinada. Em uma sociedade do desempenho, Han (2017b) identifica que
um aspecto dessa ideologia da sociedade industrial se mantém: a produção
e o fazer como aspecto definidor da vida que vale a pena ser vivida.
Zizek (1992), por sua vez, aproxima ideologia do inconsciente para nos
trazer a difícil constatação de que por meio de belas palavras, de uma
crença vista como positiva, muitas vezes se omite algo de terrível e
assustador, sua revelação como inconsciente ou como ideologia. Nesse
sentido, a ideologia dominante em um novo capitalismo contemplaria não
mais as limitações disciplinares de um capitalismo industrial, mas a
liberdade levada até o limite de uma permissividade hedonista (Zizek
2011), mas nunca percebida como dominação. Ao pensar a ideologia de uma
sociedade do desempenho, Han destaca, tal como Zizek (2011), que
indivíduo e liberdade são algumas dessas palavras que hoje mobilizam
ideologicamente e que, por isso, em seu sentido positivo trazem algo a
ser ofuscado ou negado, a própria lógica de dominação ideológica. São
nessas palavras, indivíduo e liberdade, que são depositadas as cargas da
necessidade psicopolítica do fazer, que deixa de ser uma necessidade
social e passa a ser encarada como uma necessidade individual. Não mais
as repressões, mas as coações internalizadas como liberdade são a fonte
de nossos mal-estares enquanto sofrimento coletivamente partilhado, mas
apenas individualmente percebido.

A psicopolítica é uma política existencial, se relaciona com o problema


da finitude do tempo e da existência, das possibilidades e das
necessidades, da contingência de ser-no-mundo. A psicopolítica mobiliza a
angústia de tudo ser e tudo fazer e coloca seu peso no indivíduo. Tal
como na vivência da angústia em Kierkegaard (2007), que se trata de um
sofrimento da liberdade, um medo sem foco e generalizado porque
direcionado para o futuro, gerada pelas possibilidades limitadas de
escolhas, o indivíduo produtivo e criador da contemporaneidade vive o
problema da escolha, mas a angústia contemporânea é de outro caráter, não
é a ansiedade de escolha diante de opções, mas a necessidade de deixar
tudo em aberto, de tudo fazer, ou melhor, de ser aberto e abarcar a tudo.
O angustiado descrito por Kierkegaard (2007) quer cessar a angústia e,
por isso, se vê obrigado a uma escolha, mas o angustiado de uma sociedade
neoliberal é aquele que precisa viver nessa angústia, que faz dela a
normalidade, porque anseia sempre por fazer mais e não pode renunciar a
opções. Por sua vez, se o ser-para-a-morte de Heidegger (2004) é aquele
que enfrenta a finitude, sabe que o fim lhe é uma coação, e que diante do
tempo que passa rumo à morte precisa decidir, o sujeito do desempenho não
só não se abre para a morte, como evita qualquer escolha definitiva, quer
abarcar o mundo e se exaure nessa busca. O mal-estar da sociedade
contemporânea e de sua psicopolítica, com seus algozes que são vítimas de
si mesmos, é a coação sob discurso de liberdade, é a autoexploração
normalizada como prática cotidiana, a autoafirmação como norma de
interação, é o cansaço da obrigação do fazer e agir, que se não for
levada adiante, tal como na velha repressão, é sentida como vergonha ou
culpa.

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Datas de Publicação
Publicação nesta coleção
28 Maio 2021 Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
Recebido
14 Ago 2020 Aceito
05 Nov 2020 Publicado
07 Maio 2021
Creative Common - by 4.0 Artigo está licenciado sob forma de uma licença
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Sociedade do cansaço é um livro curto – numa época de velocidade e


esgotamento, trata-se de uma forma precisa de transmitir para o público
leitor o aspecto tenebroso da valorização de indivíduos inquietos e
hiperativos que se arrastam no cotidiano produtivo realizando múltiplas
tarefas. Publicado originalmente em língua alemã, Sociedade do cansaço
foi traduzido para o português em 2015 e ampliado na segunda edição em
2017 com dois textos anexos esclarecedores: “Sociedade do esgotamento” e
“Tempo de celebração: a festa numa época sem celebração”.
No livro, o sul-coreano Byung-Chul Han, professor de filosofia e estudos
culturais da Universidade de Berlim, parte de uma constatação
relativamente comum para o problema das relações entre sociedade e
sofrimento psíquico: cada época tem suas enfermidades 1 . Dado que os
sofrimentos psíquicos são compreendidos nos dias atuais sobretudo como
desvios neuroquímicos, para o autor do livro em tela nossa época se
configura como uma “violência neuronal”. Não obstante a expressão, sua
explicação passa ao largo de aspectos fisiológicos do sistema nervoso:
sofrimentos psíquicos como síndrome de burnout , transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade e depressão são apreendidos pelo autor em sua
relação direta com o modo operatório do capitalismo contemporâneo.

De saída, Byung-Chul Han sustenta que as sociedades ocidentais não são


mais designadas pela negatividade típica de épocas e dispositivos
“imunológicos”, cujos mecanismos de defesa são a reação, o estranhamento
e o isolamento do estranho como formas de proteção. Para além da
negatividade das sociedades disciplinares – em que semelhantes
dispositivos operam por meio de muros, passagens e barreiras e nas quais
o princípio de interdição torna possível o modelo freudiano da neurose
enquanto conflito intrapsíquico –, a sociedade contemporânea distingue-se
pelo excesso de positividade . Em seu aspecto biológico e social, a
violência neuronal a que se refere o autor não está mais associada à
negatividade estranha (exterior) ao sistema: trata-se de uma violência
imanente ao próprio sistema (p. 20). Em sua forma especificamente social,
a nomeação adequada do sistema é “sociedade do desempenho”. É dessa
maneira que o sul-coreano designa o modo de funcionamento da sociedade
ocidental contemporânea pós-disciplinar, já apreendida por outros autores
como, por exemplo, “sociedade pós-industrial” (Bell, 1999), “sociedade de
controle” (Deleuze, 1992), “capitalismo cognitivo” ou “economia material”
(Negri e Lazzarato, 2001; Gorz, 2005) e “biopolítica” (Foucault, 2008) 2
. A despeito do matiz analítico diverso de cada uma das expressões
conceituais, todas indicam a constituição de uma nova subjetividade
proveniente das transformações sócio-históricas ocorridas desde o final
do último século.

Yes, we can – o slogan utilizado pelo presidente estadunidense Barack


Obama – expressa com precisão o excesso de positividade da sociedade do
desempenho (p. 24). No lugar do enunciado disciplinar coercitivo (“tu
deves”), imposto de fora, entra em cena o novo enunciado (“nós podemos”),
o qual, em seu aspecto imanente, remete a uma falsa liberdade ao impor
aos indivíduos o imperativo da realização, da mobilidade, da velocidade e
da superação constantes. O aspecto central da análise do coreano reside
justamente na falsa liberdade e no processo destrutivo contido nesta
transformação contemporânea. O filme Cisne negro , de Aronofsky (2010),
pode evidenciar sua tese. Neste thriller psicológico, a imposição da
performance e do desempenho mediante a autossuperação é incorporada pela
protagonista e levada a suas últimas consequências. A autodestruição da
bailarina – que figura aqui apenas como metáfora do desempenho
profissional contemporâneo – nada mais é senão a perseguição obstinada do
enunciado “tu podes”. Em que pesem os efeitos destrutivos, o filme parece
ratificar a constatação de Byung-Chul Han de que “[a] positividade do
poder é mais eficiente que a negatividade do dever” (p. 25). Ou seja, a
autossuperação postulada em yes, we can é capaz de extrair toda a
potência e eficácia insuspeitas ao próprio sujeito, ainda que o custo da
autossuperação possa ser a autossupressão.

Com o deslocamento da negatividade para a positividade , o sujeito do


desempenho – mais rápido e eficiente – substitui o sujeito da obediência.
Transforma-se, assim, o paradigma do inconsciente freudiano, que não é
atemporal, mas histórico. Suas condições de possibilidade são a
disciplina, a interdição e a repressão modernas, cujo corolário forma o
sujeito obediente, temerário e angustiado diante da possibilidade de
transgressão. Ao contrário do inconsciente freudiano vinculado
necessariamente à repressão e à negatividade, o sujeito neoliberal do
desempenho é dominado hoje pelo excesso de positividade. Portanto, se no
modelo freudiano o sujeito da obediência se submete ao superego, o
sujeito do desempenho projeta para si uma forma ideal de existência (p.
100). O excesso de positividade investido para alcançá-la conduz o
indivíduo, de forma inexorável, ao esgotamento típico dos sofrimentos
psíquicos da nossa época, que são, aos olhos de Han, especialmente a
síndrome de burnout e a depressão. Sua tese é explicita: “[a] sociedade
disciplinar ainda está dominada pelo não . Sua negatividade gera loucos e
delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos
e fracassados. […] Esses estados psíquicos [de esgotamento] são
característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é
dominado por um excesso de positividade” (pp. 24-25 e 70, grifo do
autor).

Com efeito, em uma época cujas palavras-chave são “projeto”, “motivação”,


“iniciativa”, “eficiência”, “flexibilidade”, não surpreende a avaliação
positiva de indivíduos ativos. Para além da rubrica psicopatológica, a
hiperatividade – que é também a impossibilidade de recusa, de dizer “não”
a estímulos intrusivos – apresenta-se para Byung-Chul Han como a
expressão cabal da valorização do excesso de positividade. É verdade que
o déficit de atenção associado à hiperatividade constitui um transtorno
psiquiátrico específico de nossa época. No entanto, a justa medida da
hiperatividade é valorizada sutilmente no próprio Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais (DSM) da Associação Psiquiátrica
Americana, documento que, como referência mundial para a prática clínica
e as pesquisas epidemiológicas, é responsável por estabelecer
cientificamente a distinção entre conduta normal e patológica. Na
apresentação ao “Episódio hipomaníaco”, o DSM-IV-TR evidencia como o
estado moderado de euforia e agitação – que não implica deficiência no
funcionamento normal do indivíduo, não requer hospitalização nem
apresenta características psicóticas – pode ser socialmente desejado:
“[a] alteração no funcionamento em alguns indivíduos pode assumir a forma
de um aumento acentuado na eficiência, realizações ou criatividade” (APA,
2002, p. 362).

Para criticar o excesso de positividade da nossa época, Byung-Chul Han


evoca Nietzsche, mostrando assim que o estado atual da sociedade nada
mais é do que o desenvolvimento da modernidade ocidental decadente. Por
falta de repouso, afirma o filósofo alemão em 1878, “nossa civilização
caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é,
os inquietos, valeram tanto […]” (Nietzsche apud p. 37). Influenciado por
Nietzsche, que perpassa seu texto, Byung-Chul Han considera a
hiperatividade contemporânea como uma espécie de esgotamento espiritual
dos nossos dias. Contra o tédio – que constitui o ponto alto do descanso
espiritual –, o indivíduo afunda-se, inquieto, na atividade. Ácida, outra
passagem do autor de Humano, demasiado humano dá o tom da crítica do
coreano aos valores considerados nobres pelo capitalismo contemporâneo:
“Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”
(Nietzsche apud p. 53) 3 . Ora, mas por que julgar de forma tão
desprezível a atividade sôfrega dos indivíduos contemporâneos?

É que o sujeito do desempenho contemporâneo experimenta uma contradictio


in adjecto: a liberdade coercitiva. Alçado à condição de “empresário de
si mesmo”, o sujeito atual não tem mais como máximas a obediência ao
outro, o cumprimento da lei e do dever, mas o sentimento de “liberdade” e
de “autonomia”, a partir do qual deve fazer operarem “criatividade”,
“desempenho”, “inovação”, “boa vontade”, “iniciativa individual” e
“flexibilidade”. Note-se que o autor patenteia a autoexploração latente
na última característica supervalorizada pelo mercado e pelos indivíduos
em suas condutas de vida: para as relações sociais de produção
capitalista contemporânea, o sujeito de desempenho pode explorar-se a si
próprio de modo ainda mais efetivo “quando se mantém aberto para tudo”
(p. 96). Não obstante a ênfase dada à “flexibilidade”, juntas, todas as
expressões supracitadas constituem o mantra do paradigma produtivo atual
que perpassa inteiramente a existência individual, submetendo-a a novas
coações. Daí a ideia de que “o sujeito de desempenho pós-moderno não está
submisso a ninguém”, salvo a ele próprio (p. 101). Lembremos uma vez mais
o Cisne negro – o enunciado do diretor da peça de balé que é incorporado
pela protagonista apresenta-se da seguinte forma: “Você não tem nenhum
obstáculo a superar a não ser você mesma”. Soando liberdade, a
perseguição da meta violenta psíquica e corporalmente o sujeito. É que,
como mostra Byung-Chul Han de forma convincente, o sujeito narcísico e de
desempenho solicitado em nossos dias não realiza a meta: concorrendo
consigo próprio, é incapaz de chegar à conclusão. É ilusório, portanto,
associar atividade excessiva pretensamente autônoma à conquista de
liberdade.

A coação de desempenho força-o [o sujeito narcísico de desempenho] a


produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da
gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa.
E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura
superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama
de burnout (esgotamento). O sujeito de desempenho se realiza na morte.
Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem (pp. 85-86).

A forma pronominal do verbo “destruir” parece nesse excerto, de fato,


insuficiente: o prefixo “auto” sublinha a dimensão da destruição do
sujeito de desempenho. Dessa forma, o coreano apresenta o aspecto áspero
e inequívoco de sua tese. Veiculada não apenas por discursos empresariais
( management ) e mensagens da indústria cultural 4 , mas também por
discursos institucionais de promoção da saúde e do bem-estar 5 , a tão
propagada “autorrealização” conduz o indivíduo à autodestruição. Eis a
lógica paradoxal da “liberdade” em uma sociedade pós-disciplinar que
absolutiza desempenho e produção. “O excesso de trabalho e desempenho
agudiza-se numa autoexploração. […] Os adoecimentos psíquicos da
sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas
dessa liberdade paradoxal” (p. 30).
Na sociedade do desempenho, ação e identidade são reduzidas à esfera do
trabalho e da produção. Experimenta-se o “tempo de trabalho total” –
expressão que nos remete, às avessas da suposta liberdade individual
sustentada pelos arautos do neoliberalismo, à noção de um “trabalho
totalitário”. “A própria pausa se conserva implícita no tempo de
trabalho. Ela serve apenas para nos recuperar do trabalho, para poder
continuar funcionando” (p. 113) – para o trabalho, é preciso acrescentar.
Ainda que não seja mobilizada pelo autor de A sociedade do cansaço , a
noção de trabalho imaterial – formulada na passagem para o século XXI por
André Gorz, Antonio Negri e Maurizio Lazarrato – evidencia de que forma o
novo paradigma produtivo do capitalismo cognitivo e a procura constante
do indivíduo por acúmulo de capital humano deitam por terra, de fato, a
cisão entre tempo de trabalho e tempo livre. Concebe-se este como
investimento naquele: é no tempo de não trabalho que se adquirem
condições, matérias-primas e capital necessários para a geração da
riqueza capitalista contemporânea 6 .

Com a sobrestimada noção de autoinvestimento, a dialética senhor-escravo


desaparece como dois polos contraditórios para encarnar-se a um só tempo
como unidade indissociável no próprio indivíduo. Tudo se passa como se
assistíssemos a uma nova servidão voluntária. No lugar da sujeição ao
outro – seja a obediência à tirania do soberano (Boétie, [1576] 2017) ou
a submissão à exploração do capitalista (Marx, [1844] 2004) –, na
sociedade de desempenho predomina a autoexploração. Enquanto realidade
incontestável, “você S/A” configura o novo paradigma das relações sociais
de produção capitalista contemporânea. Para o autor de Sociedade do
cansaço , o atual estágio socioeconômico é, neste sentido, essencialmente
pós-marxista, uma vez que a “alienação” não demanda mais o outro, que
está na origem do conceito.

O sistema capitalista mudou o registro da exploração estranha para a


exploração própria, a fim de acelerar o processo. […] Hoje, vivemos numa
época pós-marxista. No regime neoliberal a exploração tem lugar não mais
como alienação e autodesrealização, mas como liberdade e autorrealização.
Aqui não entra o outro como explorador, que me obriga a trabalhar e me
explora. Ao contrário, eu próprio exploro a mim mesmo de boa vontade na
fé de que possa me realizar. E me realizo na direção da morte. Otimizo a
mim mesmo para a morte (pp. 105 e 116).

Embora não esteja explicitado na letra do livro, torna-se patente que o


outro a que o indivíduo contemporâneo se submete sob a ilusão de
liberdade é o mercado e sua lógica performática. Lemos, afinal, que,
destruindo-se na vitória, o sujeito do desempenho faz funcionar uma
sociedade cuja base reside na autoexploração determinada pela
racionalidade neoliberal. Sem conotação propriamente marxista, o autor
destaca – e nesse ponto indica o limite do estudo sociológico de Alain
Ehrenberg (1998) sobre a depressão – que o imperativo do desempenho que
conduz o sujeito primeiro ao esgotamento (síndrome de burnout ) e depois
à depressão provém sobretudo do excesso de positividade solicitado pelas
relações sociais de produção capitalista 7 .

Uma vez que o aperfeiçoamento das habilidades ilimitadas para o sucesso


profissional é lançado ao infinito, compreende-se, segundo Han pp. 45,
108 e 117), a elevação da saúde à condição de divindade, ou melhor, a
“histeria” ou “mania de saúde”. Valendo-se ao longo do ensaio de
expressões conceituais compostas por palavras cujas acepções são
eminentemente paradoxais – tais como “liberdade coercitiva” e
“autorrealização destruidora” –, o autor faz notar as contradições do
tempo presente trazendo à tona também a perseguição patológica pela
saúde. Se, por um lado, a “vitória” pode ser alcançada mediante tal
condicionamento, por outro, o sujeito depressivo atual figura como o
único responsável por seu fracasso. Em uma sociedade clivada que produz
“perdedores” em série, o depressivo é o sujeito que “[e]stá cansado,
esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. […] Desgasta-se correndo
numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma”
(p. 91). Nesse sentido, apesar da crítica de que Ehrenberg desconsidera
as relações sociais de dominação neoliberal, o argumento do autor de
Sociedade do cansaço não está tão distante quanto presume do autor de La
fatigue d’être soi: dépression et société , conforme os próprios títulos
dão a ver 8 . Para Ehrenberg, mais do que paixão triste, a depressão é
uma patologia da capacidade insuficiente de ação e iniciativa. Sua
condição de possibilidade, insiste o sociólogo francês em seu livro,
provém da conquista de autonomia e de responsabilidade no mundo pós-
disciplinar, as quais, transformadas em norma social, o sujeito não
suporta, prostrando-se depressivo.

Como se vê, a substituição do elemento negativo pela pura positivação não


é considerada por Byung-Chul Han como favorável aos indivíduos, visto que
ela é, antes de tudo, autoagressividade. Para evidenciar sua concepção, o
coreano diferencia duas formas de potência: a “positiva” e a “negativa”.
A primeira, como traço distintivo do tempo presente, inibe a reflexão
proveniente da “atenção profunda” e conduz o sujeito à hiperatividade
superficial e fatal. A potência “negativa” – que o autor, ao contrário de
Agamben, não identifica no escrivão Bartleby ( I would prefer no to ), de
Melville – consiste justamente na resistência ao estímulo: em vez do
“para-isso”, ação constante do hiperativo, enaltece-se o “não-para”.
Trata-se de uma espécie de “tédio profundo” ou “cansaço fundamental”,
sobre o qual Byung-Chul Han discorre a partir de Para uma abordagem da
fadiga , do escritor austríaco Peter Handke (1990). Inspirador,
semelhante cansaço indica menos o que se deve fazer do que aquilo de que
se pode abrir mão. Tal cansaço “habilita o homem para uma serenidade e
abandono especial, para um não fazer sereno” (p. 73). Próximo à angústia,
à ira e ao luto – potências negativas fundamentais substituídas no
universo existencial contemporâneo pela irritação e pelo medo 9 –, o
“cansaço fundamental” consiste numa forma de fazer desaparecer a economia
da eficiência e da aceleração, resistindo-lhe. Com todos os paradoxos que
a linguagem permite, o cansaço elogiado pelo autor constitui a potência
negativa, em que seria possível gozar – sem aberração – o uso do inútil
(p. 76).

Claro está que, para Han, o estado de esgotamento na sociedade atual não
provém desse tipo de potência, mas do excesso de positividade (leia-se:
estímulos). A leitura de 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono pode
ratificar o sentido da experiência social analisado por Byung-Chul Han.
Nesse livro, o professor de história da arte Jonathan Crary (2016)
evidencia de que forma a presença constante de estímulos tende a impedir
o desligamento do indivíduo, que dorme hoje em sleep mode . Inspirada nas
máquinas, essa expressão recorrente e apenas aparentemente inócua dá a
ver a ideia de que o indivíduo está em “modo de consumo reduzido”, à
disposição, superando a lógica “desligado/ligado”, “de maneira que nada
está de fato ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso” (Crary,
2016, pp. 22-23). Trazendo à tona projetos científicos, tecnológicos e
laboratoriais cujo objetivo consiste em reduzir ou eliminar o sono, o
norte-americano mostra que tais empreendimentos – supostamente
inacreditáveis – são consonantes à cultura moderna ocidental que deprecia
o sono desde a estimação positiva de conceitos e valores como
produtividade, racionalidade, consciência, vontade, objetividade, ação,
desempenho. Na cultura ocidental contemporânea “24/7”, na qual impera o
regime de trabalho non-stop , o sono se apresenta como a única dimensão
existencial ainda não colonizada pelo capitalismo.

A sociedade do cansaço atual nada mais é do que a absolutização


unilateral da “potência positiva”. Por isso, é também uma “sociedade do
doping ”. O melhoramento cognitivo ( neuro-enhancement ) pode não
representar nenhum problema moral diante da normatividade social vigente
na sociedade do desempenho. Ou seja, o uso pragmático e utilitário
circunscrito à “psicofarmacologia cosmética” (Kramer, 1993) apresenta
absoluta coerência em uma configuração social que inculca nos indivíduos
a necessidade tanto de realização permanente – para a qual se solicita,
antes, a autossuperação – quanto de bem-estar como fórmula para o sucesso
social. Uma substituição ocorre, assim, no plano terapêutico. Desprovido
de tempo, o sujeito do desempenho não procura mais a gênese do conflito
psíquico, cuja temporalidade técnica é lenta. A medicação psiquiátrica
pode atender com a urgência necessária o restabelecimento, a manutenção e
o aperfeiçoamento das potencialidades do sujeito impaciente para a
escavação arqueológica de cunho psicanalítico que visa a descobrir a
origem do sofrimento psíquico.

Em um aforismo sugestivo, o antropólogo estadunidense Marshall Sahlins


(2004, p. 23) sentencia: “[u]m povo que concebe a vida exclusivamente
como busca da felicidade só pode ser cronicamente infeliz”. Do mesmo
modo, ao juízo de Han, a lógica social parece inequívoca: a sociedade
hiperativa do desempenho só pode produzir indivíduos estafados. Daí a
epidemia de um sofrimento psíquico relacionado diretamente ao desempenho
profissional, que captura todos os aspectos da vida humana. A síndrome de
burnout , que precede a depressão, é a consequência lógica e patológica
da autoexploração.

Sublinhemos, por fim, o fato de que a associação entre a depressão (e


outros sofrimentos psíquicos) e as normas sociais do capitalismo
contemporâneo não é inédita. Além de Ehrenberg (1998) e sua ênfase na
“autonomia” como norma social que se impõe sobre os indivíduos, Maria
Rita Kehl (2009) também argumenta que a epidemia atual de depressão
encontra suas condições de possibilidade em uma sociedade simultaneamente
antidepressiva e maníaca (leia-se: patologicamente hiperativa).
Subtraindo o aspecto psicanalítico que foge ao escopo da nossa análise, a
autora brasileira sustenta que a depressão recusa e questiona valores
essenciais da sociedade capitalista contemporânea, entre os quais se
destacam a velocidade e o gozo, isto é, a aceleração do tempo e o
imperativo da felicidade, do prazer e da satisfação prêt-à-porter .
A despeito desta observação final, dialogando com obras de escritores e
artistas diversos – entre os quais despontam não apenas os já citados
(Nietzsche, Melville, Handke, Agamben), mas também Kafka, Maurice
Blanchot, Cézanne, Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Hannah
Arendt, Jean Baudrillard e Roberto Esposito –, Byung-Chul Han apresenta
em seu Sociedade do cansaço uma reflexão percuciente para o público
leitor compreender melhor o modo de funcionamento da sociedade
capitalista contemporânea. De forma mais específica, o livro é uma
contribuição a ser considerada por sociólogos e pesquisadores que estudam
a relação entre sociedade e sofrimento psíquico, na medida em que
associa, de forma inequívoca, autorrealização e autodestruição em uma
determinada configuração social. Com uma pergunta, o Zaratustra de
Nietzsche (2011, p. 46) pode ainda nos perturbar e inquietar, provocando
a reflexão: “[e] também vós, para quem a vida é furioso trabalho e
desassossego: não estais muito cansados da vida?”.

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Sociedade da transparência” foi publicado na Alemanha em 2012, dois anos


depois do livro mais conhecido e, por assim dizer, midiático, de Byung-
Chul Han: “Sociedade do cansaço”. A semelhança dos títulos sugere a
proximidade entre as abordagens e os conteúdos, algo que se percebe sem
dificuldade alguma após a leitura do livro. Aliás, não apenas a
proximidade, mas certa continuidade das preocupações do filósofo sul-
coreano. São nove pequenos capítulos que apresentam elementos diferentes
e complementares que nos guiam no sentido de compreender alguns
desdobramentos da sociedade caracterizada no livro de 2010. Logo no
início do livro Han parece justificar o tema do livro alegando a presença
indiscutível do tema da transparência nos discursos públicos
contemporâneos, que revela a transição de uma sociedade da negatividade
para a positividade. Transparência e positividade, então, aparecem como
sinônimos em um mundo cada vez mais inclinado a dissimular as diferenças
e a alteridade. Este processo, esteticamente caracterizado pela relação
imediata entre imagem e olho, possível através das superfícies sensíveis
ao toque e da transformação mágica decorrente dessa tecnologia, permite
Han dizer que estamos vivendo numa sociedade determinada pela tirania de
uma beleza que cada vez mais se aproxima de uma estética da superfície.

A aura da obra de arte, tema caro a Walter Benjamin, desaparece por


completo na contemporaneidade em função da supervalorização dos objetos a
partir da sua exposição. As coisas, as pessoas, as obras de arte, enfim,
qualquer coisa pode ser julgada e valorizada de acordo com a sua
capacidade de exposição e de visualização. O suposto valor do culto,
portanto, dá lugar ao valor de exposição. A cultura nos tempos de
predomínio das redes sociais aponta para uma substituição do rosto humano
pela face, que é plana e rasa, características que sugerem a ausência da
aura e a imanência do igual. É partir deste ponto que Han vai analisar a
fotografia atual como ápice de uma cultura sem negatividade e, já que
cada um é responsável pela exposição da própria imagem, são os próprios
indivíduos que sustentam uma lógica da performance.

Não há mais condições de existência ou de habitação, apenas de exposição,


de performação. Segundo Han, essa transformação conduz nossa visão de
mundo a confundir beleza aparente com prazer, e isso tem efeitos
devastadores na nossa sexualidade, na saúde física e mental e, no tocante
à questão filosófica-estética por excelência, na nossa sensibilidade. É
nesse sentido que ele afirma que a “absolutização do valor expositivo se
expressa como tirania da visibilidade” (2017, p.35). O privilégio
absoluto da visão atrofia os demais sentidos e, para fazer uma referência
ao processo denunciado em “Agonia de Eros”, contribui para a eliminação
das diferenças e das distâncias.

Aliás, esse tema discutido alhures é retomado no terceiro capítulo. O


fetiche a fantasia enquanto categorias filosóficas são imprescindíveis
para se pensar as exigências econômicas que o sistema capitalista no
impõe. O jogo, a oscilação, o binômio revelar-ocultar, enfim, os mais
conhecidos sinônimos de movimento e deslocamento são colocados em cheque
por uma cultura que, hoje, nos oferece de forma inegociável a lógica da
transparência como substituta da sedução: o declínio de Eros dá lugar à
pornografia como elemento que caracteriza o cidadão contemporâneo
duplamente: na sua esfera desejante e na sua atuação política.

No quarto capítulo Han permanece discutindo na perspectiva benjaminiana


em torno da fotografia enquanto paradigma e convida mais um pensador para
conversar sobre a questão: é a partir da noção de nudez, construída por
Giorgio Agamben em livro homônimo que o filósofo coreano passa a tratar a
sociedade pornográfica. E aqui, até mais do que em outros momentos, ele
sugere que podemos pensar a pornografia a partir de questões legítimas da
filosofia. Contudo, não concorda com a perspectiva em que o filósofo
italiano, de certa forma, cria uma expectativa interessante e quase
criadora da nudez. Mesmo que se esforce para desviar-se do fulcro
teológico da sua reflexão, Agamben não enfrenta o que parece ser, para o
coreano, o maior delito da noção de nudez, qual seja, o fato de que toda
exposição já é necessariamente pornográfica, intensificada pelo
capitalismo. Para Han, Agamben não observa a diferença essencial que há
entre o erótico e o pornográfico. Diferença esta que, em sua concepção, é
fundamental para definir a pornografia como a exposição exacerbada, a
busca obsessiva pela transparência e pelo suposto prazer que ela pode
oferecer.

Ao comparar as ciências exatas e as humanas, mais precisamente o cálculo


e o pensamento, Han aponta pata mais um elemento constitutivo dos
excessos da vida contemporânea que aumentam a complexidade da condição
atual da vida humana: a aceleração. A igualdade promovida pelo cálculo,
vulgarmente falando, permite que a velocidade se apresente como um fator
decisivo para debater a questão da temporalidade, dos movimentos e da
construção das narrativas possíveis a partir das condições estabelecidas
nesses termos. Ele parece bastante pessimista quanto à possibilidade de
movimentos revolucionários e a elaboração de narrativas que resgatem a
memória, a história, os significados, os rastros e marcações. Isso tudo
conduz a um vazio perturbador.

No capítulo sexto, ele apresenta a ideia de que o valor do culto é


substituído pelo valor da exposição, assim como a sociedade da
transparência, onde o capitalismo neoliberal transformou tudo em
mercadorias – commodities, a sociedade da intimidade – um palco onde os
sujeitos são narcisistas, a intimidade vira também mercadoria, ou seja,
pornografia. A intimidade transparece em si mesmo. A distância é anulada,
tudo está desnudado e desvelado, pois, tudo está próximo, facilitado, com
simples deslizar de dedo na tela do aparelho celular, por exemplo, tem
acesso a uma transferência bancária ou o pagamento da conta de luz. O
século XVIII é marcado, em suas palavras, por “um theatrum mundi”, como
se tudo tivesse se tornado um grande palco cênico. Isso possibilita a
distância cênica, portanto, a um impedimento, isto é, do contato imediato
entre os corpos e alma, renunciando à distância teatral em favor da
intimidade.
Han utiliza-se da concepção filosófica de Richard Sennet, segundo a tese
que a modernidade não é mero teatro de representação, mas, sim, um
mercado, uma vitrine onde se expõe, se vende e se consome intimidades,
isto é, vivemos em uma sociedade de exposição, e essa exposição é
pornográfica. Nos espaços sociais, principalmente nas redes de
relacionamentos, constroem-se espaços de proximidade, onde se elimina o
fora, o outro, aniquilação da alteridade. Podemos citar a música de
Caetano “Sampa” quando afirma em uma frase: Narciso acha feio o que não é
espelho, ou seja, o que não reflete o igual é anulado. Nas redes sociais
podemos observar que há um desejo por reflexo, e esse reflexo é de si
mesmo, o outro, o negativo, não é desejo do sujeito narcísico. Podemos
dizer que a intimidade, como afirma o filósofo coreano, psicologiza e
personaliza tudo, desde os espaços públicos, e principalmente os
políticos. As figuras políticas não são avaliadas por suas ações, mas,
sim pela sua imagem, ou seja, pela pessoa pública que expõe em suas redes
de relacionamento. Cabe destacar, que pessoa vem do latim, personare,
“soar através” e significa máscara, assim, o autor desenvolve sua tese
afirmando que a sociedade da transparência, é revelação e desnudamento,
portanto, trabalha contra qualquer forma de máscara e toda aparência. Os
véus e as máscaras se desvelam e a verdade está revelada.

Não existem mais rituais. E o que temos nesta sociedade desritualizada é


uma transparência pornográfica que anula a distância. Sennet afirma que:
“o narcisista não está propenso a fazer experiências, mas quer vivenciar;
em tudo que lhe vem ao encontro ele busca vivenciar a si mesmo” (HAN,
2017, p. 84). E, assim, o ser narcisista tornado depressivo, engole a si
mesmo em sua intimidade ilimitada. Ainda, nesse modelo de sociedade, a
informação também virou mercadoria, e há uma dificuldade de transformá-la
em conhecimento, pois, está privada de toda a negatividade. Com isso não
padece apenas de verdade, mas ainda com a falta de aparência.No decorrer
do texto, o filósofo recupera a alegoria da caverna de Platão, para
pensar a sociedade da transparência, afirmando que pode ser compreendida
como um grande palco de teatro. Os prisioneiros da caverna estão presos
como espectadores de teatro diante do palco, nesse horizonte de reflexão,
afirma a falta de luz divina (sol), pois, o transparente é opaco e não
transcende a aletheia (HAN, 2017, p. 87.). No mundo “construído” por
Platão todas as coisas estão encandeadas. As representações miméticas são
aniquiladas, pois a sociedade da transparência é uma sociedade sem
poetas, sem sedução e sem metamorfose (HAN, 2017, p. 91). Tendo a
opacidade como uma de suas características, pois, é o poeta que produz
ilusões cênicas, aparência e rituais, a lógica muda para deixar tudo
homogeneizado e positivado, de modo operacionalizante, portanto, a massa
de informação é apenas um enchimento, não traz luz à escuridão. Apenas
informação, e o acumulo de informação que torna a sociedade positiva,
aniquilando a alteridade, isto é, o outro.

Partindo de análises sobre o século XVIII, Han coloca em questão as


concepções de Rousseau na sua obra “As confissões”. Grosso modo, Rousseau
aborda a problematização sobre verdade e confissão, partindo de uma
premissa do mito do bom selvagem e o coração de cristal, ou seja, “seu
coração transparente como um cristal, não pode esconder nada do que nele
passa” (HAN, 2017, p. 98), portanto, exige-se uma abertura do coração,
que pode ser entendida como uma ditadura do coração, exigindo
transparência. Ainda no século das luzes, a sociedade é entendida por Han
como um teatro repleto de cenas, máscaras e figuras, nem as vestimentas
eram separadas dos palcos, faziam parte do convívio diário as vestimentas
teatrais, como também as máscaras e os penteados. Rousseau é contrário à
arte teatral, pois acredita que em palco a dissimulação da aparência e da
sedução, elimina a transparência dos sujeitos, pois não se pode ter
apenas uma pose ou cena, mas, sim a transparência do coração, pois isso é
contrário a arte mimética. Assim como Platão, afirmava a proibição da
mimética e da arte teatral no seu ideal de Estado. A favor da
transparência, afirma que uma moralidade exposta deve ser o ideal para
uma sociedade, onde todos possam vigiar uns aos outros, transformando
assim em uma sociedade de controle e vigilância total; e, por isso,
preferia cidades menores. Um exemplo é ter como modelo os romanos que
edificam casa ‘transparentes’ e podem ser observados por todos, mantendo
uma doutrina de costumes.

O que fica evidente na sociedade transparente é que o vento digital da


era da comunicação e informação não têm um imperativo moral, e ainda de
certa maneira, é desprovida de coração, pois, o seu propósito não é
acentuar uma moral do coração como desejava Rousseau, mas sim maximizar
os lucros e ainda chamar a atenção. Vivemos em uma sociedade do controle?
Muito mais que controle é uma sociedade do cansaço e desempenho, no
entanto, segundo Han, não vivemos o fim do panóptico, desenvolvido por
Jeremy Bentham, mas, sim, uma nova forma, chamada por ele de
aperspectivístico, isto é, a vigilância, nesse modelo não é realizada por
um centro, mas por todos. Não há um olho central que vigia tudo, como nos
presídios, hospitais e escolas. O problema do aperspectivismo consiste em
os indivíduos acreditar que são livres. Todavia, não há um bloqueio de
comunicação entre os sujeitos, pelo contrário, eles estão de forma
ininterrupata conectados com uma hipercomunicação. E exibem-se em
vitrines por livre vontade, expondo-se ao mercado do panóptico, onde
todos controlam todos, senhores e escravos de si mesmo.

Há ainda que destacar que a autoexploração se torna mais eficiente. E em


todas as esferas da sociedade não existe mais o culto e o mistério,
apenas a exposição. Uma sociedade onde impera a desconfiança, tudo é
instável e não duradouro, imperando dessa forma, a suspeita (verdacht).
Portanto, não há apenas uma central que vigia, mas, sim, o globo como um
todo se torna o único vigilante, isto é, o panóptico. As redes sociais,
como o Facebook, Instagram e o próprio Google, adotam medidas panópticas,
que estimulam a exposição livremente, o que permite Han falar em uma
dialética da liberdade que se apresenta como controle. Por fim, podemos
afirmar que as reflexões do pensador coreano são fundamentais para
entender as mazelas do século XXI, seja no campo filosófico, político ou
sociológico, pois nos coloca numa desconfortável situação de precisar se
reconhecer nesse contexto como colaborador de um sistema pernicioso, de
subjugação do homem, de um sem número de artimanhas que se desdobram em
ofertas sedutoras e atraentes com o intuito de submeter todos nós a um
regime que se mostra, em todas as suas esferas, lamentável e desolador,
numa palavra, antifilosófico.

Pâmela Bueno Costa & Samon Noyama


http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/ensinoepesquisa/article/view/2
133/pdf_71

a era da excessiva positividade, do autodesenvolvimento e da


produtividade incessante, o revolucionário livro de Byung-Chul Han,
"Sociedade do cansaço", apresenta uma exploração instigante ao lado mais
sombrio da nossa atual sociedade hiperativa. Han adentra as implicações
psicológicas e sociais da epidemia de exaustão, revelando uma sociedade
movida pela busca incessante de conquistas, auto-otimização e erradicação
de qualquer forma de negatividade. Com análises meticulosas, Han desafia
nossa fervorosa adição à positividade e destaca as consequências sociais
dessa pressão autoimposta. "Sociedade do cansaço" busca despertar os
leitores para uma questão essencial: será que inadvertidamente criamos
uma sociedade que prospera e perpetua a sua própria exaustão?
Autor : Byung-Chul Han
Byung-Chul Han é um filósofo e crítico cultural de origem sul-coreana,
amplamente reconhecido por sua análise perspicaz da sociedade
contemporânea. Ele fez contribuições significativas para o campo da
filosofia por meio de suas obras instigantes que exploram temas como
neoliberalismo, tecnologia e os efeitos do isolamento na era digital. O
trabalho de Han frequentemente mescla tradições filosóficas orientais e
ocidentais, oferecendo uma perspectiva única sobre os desafios e
complexidades do mundo moderno. Seu livro aclamado pela crítica,
"Sociedade do cansaço", adentra o paradigma da produtividade e as
pressões de desempenho que caracterizam a sociedade contemporânea,
lançando luz sobre as ramificações físicas, psicológicas e sociais do
fenômeno do cansaço.
Sociedade do cansaço | PDF Download Grátis
Visão Geral | Capítulo 1
Olá, bem-vindo ao Bookey! Hoje vamos desbloquear o livro Sociedade do
Cansaço, de Byung-Chul Han.

No mundo acelerado de hoje, onde eficiência e produtividade são altamente


valorizadas, não é surpresa que muitas pessoas se aproximem, se não já
estejam lidando, com uma sensação de exaustão, desilusão e cansaço. Em
seu livro provocativo, "Sociedade do Cansaço", Byung-Chul Han mergulha
fundo no cerne desse problema prevalente, dissecando e examinando as
complexidades dos mecanismos societais que perpetuam a epidemia do
cansaço.

A obra de Han transcende a compreensão convencional do cansaço como


simplesmente resultado de estresse crônico ou carga de trabalho
excessiva. A partir de várias perspectivas filosóficas, sociológicas e
psicológicas, ele revela um insight profundo sobre a cultura tóxica da
sociedade contemporânea que alimenta e prospera com o cansaço.

Um exemplo da vida real que ilustra a perspectiva de Han pode ser


testemunhado no sempre evolutivo mundo do emprego moderno. A ascensão da
economia compartilhada, com suas flexibilidades e gratificações
instantâneas, uma vez parecia promissora. No entanto, por trás da
aparência brilhante, há um dilema oculto. Não mais presos às estruturas
tradicionais de trabalho, as pessoas são lançadas em uma corrida
implacável para sempre provar seu valor, navegar por múltiplas fontes de
renda e perpetuamente priorizar o próximo trabalho temporário em
detrimento do próprio bem-estar.

Considere João, um designer gráfico freelancer que procurou liberdade e


flexibilidade em sua carreira. Inicialmente, ele adorava a autonomia de
escolher seus próprios projetos e gerenciar seu próprio tempo. No
entanto, à medida que as demandas dos clientes aumentavam, João se viu
trabalhando horas mais longas, sacrificando tempo pessoal e sentindo
constantemente uma pressão para cumprir prazos que pareciam
intermináveis. Com a ausência de uma rotina de trabalho estável e uma
clara separação entre trabalho e vida pessoal, a condição de João começou
a se deteriorar lentamente. A combinação de incerteza financeira, o medo
de perder oportunidades potenciais e a constante comparação com os outros
na competitiva economia dos "bicos" o deixaram emocionalmente esgotado,
fisicamente exausto e, por fim, no limite do burnout.

Através desse exemplo, a análise de Han começa a desvendar a intricada


rede de expectativas da sociedade contemporânea. Ele destaca os ideais
culturais de auto-otimização, produtividade e responsabilidade individual
como combustíveis para o burnout. Nesse sistema, os indivíduos não são
mais coagidos ou oprimidos por forças externas, mas voluntariamente se
submetem às demandas do sucesso, sempre se esforçando para serem
melhores, mais rápidos e mais eficientes. Consequentemente, o esgotamento
se torna um subproduto dessa nova forma de autoexploração.

"Sociedade do cansaço" de Byung-Chul Han desafia os leitores a


confrontarem as duras realidades das dinâmicas sociais que contribuem
para o burnout. Através de sua análise perspicaz e observações agudas,
ele traz à luz as sutis maneiras pelas quais contribuímos
inconscientemente para nosso próprio esgotamento. Ao nos imergirmos no
resumo subsequente do livro, somos convidados a questionar e examinar
criticamente os sistemas opressivos em jogo, encontrando orientação e
inspiração para lidar com o burnout tanto em níveis individuais quanto
coletivos.

No texto a seguir, iremos discutir os três principais conceitos derivados


deste livro.

1. Na sociedade do cansaço, os indivíduos não são oprimidos por forças


externas, mas sim, a autoexploração e a constante produtividade se tornam
a norma.

2. A busca incessante por sucesso e eficiência leva a um estado de


exaustão e colapso mental, resultando em uma sociedade obcecada por
conquistas e felicidade superficial.

3. Para combater o cansaço, é crucial abraçar a lentidão, a ociosidade e


a introspecção como atos de resistência às pressões de uma sociedade
hiperativa e hiperprodutiva.
Na sociedade do cansaço, os indivíduos não são oprimidos por forças
externas, mas sim a autoexploração e a constante produtividade se tornam
a norma. | Capítulo 2
Um exemplo que ilustra esse ponto é o fenômeno da "cultura da correria",
que ganhou popularidade nos últimos anos. A cultura da correria glorifica
a ideia de trabalhar e se esforçar constantemente em busca do sucesso,
acreditando que o trabalho árduo e a produtividade inevitavelmente
levarão ao êxito. Nessa cultura, as pessoas se sacrificam voluntariamente
em relação à suas vidas pessoais, tempo e bem-estar em busca de seus
objetivos.

Dentro da cultura da correria, as pessoas frequentemente se orgulham de


suas longas horas de trabalho, falta de sono e recusa em tirar folgas ou
férias. Elas veem o tempo livre como improdutivo e desperdiçado,
priorizando o trabalho constante e a produtividade. Essa mentalidade é
perpetuada por figuras influentes em indústrias como empreendedorismo e
autossuperação, que defendem a busca incansável pelo sucesso.

Além disso, o avanço da tecnologia e a constante conectividade que ela


oferece têm alimentado ainda mais a sociedade do cansaço. Com smartphones
e laptops, as pessoas estão sempre disponíveis e esperadas a estarem
prontas para responder. Isso cria uma cultura de disponibilidade
constante, onde o trabalho acompanha as pessoas mesmo fora das horas
tradicionais de expediente. A linha entre trabalho e vida pessoal se
torna difusa, levando as pessoas a se sentirem obrigadas a checar e-
mails, responder mensagens e se manterem conectadas, mesmo durante o
tempo de lazer.

Além disso, o surgimento da economia dos "bicos" e do trabalho freelance


intensifica a pressão para ser constantemente produtivo. Nesse tipo de
trabalho, as pessoas muitas vezes são remuneradas por tarefa ou projeto
concluído, o que as incentiva a assumir o máximo de trabalho possível. O
medo de perder oportunidades de renda e trabalho leva as pessoas a se
empurrarem constantemente até os seus limites, muitas vezes em detrimento
de sua saúde física e mental.

Na sociedade do cansaço, o sucesso está relacionado à produtividade, e as


pessoas sentem uma pressão constante para provar o seu valor através de
suas realizações. Essa mentalidade cria uma cultura de competição,
comparação e estresse. As pessoas passam a ter medo de ficar para trás,
de serem vistas como preguiçosas ou pouco produtivas, e de perder
oportunidades. Como resultado, elas se esforçam constantemente,
sacrificando seu próprio bem-estar para atender às expectativas da
sociedade.

A sociedade do cansaço não é apenas resultado de forças externas, mas sim


um estado autoimposto de constante produtividade e autoexploração. As
pessoas se submetem voluntariamente às pressões e demandas do mundo
moderno, acreditando que o único caminho para o sucesso e validação é o
trabalho incessante. Essa mentalidade perpetua uma cultura tóxica, onde o
esgotamento e a exaustão são normalizados, e as pessoas lutam para
encontrar significado e realização além do trabalho e das conquistas.

Em conclusão, o livro "Sociedade do cansaço" de Byung-Chul Han lança luz


sobre a cultura tóxica de autoexploração e constante produtividade que
caracteriza a sociedade moderna. Através de exemplos como a economia
informal, a cultura do trabalho excessivo e o impacto da tecnologia, Han
destaca como as pessoas se submetem voluntariamente ao esgotamento em
busca de sucesso e validação. Compreender a natureza internalizada dessas
forças opressoras é crucial para encontrar maneiras de abordar e aliviar
a epidemia de burnout em nossa sociedade.
A busca incessante pelo sucesso e pela eficiência leva a um estado de
exaustão e colapso mental, resultando em uma sociedade obcecada pela
conquista e pela felicidade superficial. | Capítulo 3
Os consumidores são bombardeados por anúncios e publicações nas redes
sociais que prometem gratificação instantânea e felicidade através dos
últimos gadgets, viagens de luxo e experiências modernas. Essa busca
constante pelo prazer e a crença subjacente de que a felicidade pode ser
comprada leva a um estado contínuo de insatisfação e exaustão.

Além disso, a sociedade do cansaço é impulsionada por uma cultura de


comparação e competição. Plataformas de redes sociais como o Instagram e
o Facebook fornecem um palco para as pessoas exibirem suas conquistas e
sucessos. As pessoas constantemente se comparam aos outros, medindo seu
valor e felicidade com base em marcas externas de sucesso, como o número
de curtidas, seguidores ou bens materiais. Essa cultura de comparação
alimenta ainda mais a busca interminável por sucesso e eficiência, já que
as pessoas se esforçam para superar seus pares e manter uma imagem
favorável.

Além disso, a tecnologia e a era digital também contribuíram para o


fenômeno do cansaço. A conectividade constante e a sobrecarga de
informações criaram uma sensação de urgência e uma cultura de trabalho 24
horas por dia, 7 dias por semana. As pessoas são esperadas para estarem
sempre disponíveis e responsivas, levando a uma mistura de fronteiras
entre trabalho e vida pessoal. A incessante enxurrada de notificações e
e-mails aumenta a pressão avassaladora de ser sempre produtivo e
eficiente, deixando pouco tempo para descanso e autocuidado.

Han também critica a ideologia neoliberal que fundamenta a sociedade do


cansaço. O ênfase neoliberal na produtividade e na responsabilidade
individual permeia todos os aspectos da vida, desde a educação até o
emprego e os relacionamentos pessoais. O indivíduo se torna um
empreendedor de si mesmo, constantemente buscando autoaperfeiçoamento e
perseguindo o sucesso. Essa cultura de autossacrifício mascara a natureza
opressiva do sistema, já que as pessoas são levadas a acreditar que seu
esgotamento e colapso mental são falhas pessoais e não questões
sistêmicas.
Psicanálise e sociedades do cansaço e da transparência
O texto abaixo consiste na leitura dos livros Sociedade do cansaço e
Sociedade da transparência de Byung-Chul Han.

Em relação à psicanálise freudiana, Byung-Chul Han afirma que por


estarmos num momento de positividade, e já que a psicanálise se refere à
negatividade, estaria difícil ela dar conta do mundo atual.

A meu ver ele não se dedicou a pensar a psicanálise em sua historicidade,


como exemplo em Lacan que desde 1970 já pensa e elabora o conceito de
gozo como positividade, e inclusive como lidar com isso na clínica
psicanalítica.
Começa o seu texto dizendo que não vivemos numa época viral, apesar do
medo que temos de uma pandemia grupal, pois graças a técnica imunológica,
esta época já passou. Prossegue: vivemos uma época de excesso de
positividade, daí doenças neuronais como depressão, déficit de atenção,
hiperatividade, burnout, que escapam das técnicas imunológicas. Traz a
alteridade como categoria fundamental da imunologia, e que no momento há
o desaparecimento do Outro, da alteridade. O paradigma imunológico não se
coaduna com o processo de globalização e a dialética da negatividade é o
traço fundamental da imunidade.

A sociedade disciplinar de Foucault não é mais atual segundo o autor. A


sociedade do século XXI é uma sociedade de desempenho. Os sujeitos são do
desempenho e da produção e não mais sujeitos da obediência. São sujeitos
empresários de si mesmos. A sociedade disciplinar é uma sociedade da
negatividade, gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho
produz depressivos e fracassados. Já habita no inconsciente social o
desejo de maximizar a produção. Ocorre a positividade do poder mais do
que a negatividade do dever. O inconsciente social do dever agora é
registro do poder.

Cita Ehrenberg que coloca a depressão na passagem da sociedade


disciplinar para a sociedade do desempenho. O depressivo é acossado pela
exigência da iniciativa pessoal, é esgotado de ser ele mesmo.

O desenvolvimento cultural da humanidade deve à uma atenção


contemplativa. Hoje há uma hiperatenção. Não há tolerância para o tédio
profundo, importante segundo Benjamin para o processo criativo: "pássaro
onírico, que choca o ovo da experiência". Seria o lugar do descanso
espiritual. Nietzsche também assinala a importância do elemento
contemplativo.

A sociedade do cansaço é uma sociedade ativa que se desdobra para uma


sociedade do doping, que gera um desempenho sem desempenho. O homem se
torna uma máquina do desempenho. A sociedade ativa e a sociedade do
desempenho geram cansaço e esgotamento excessivos, efeitos do
empobrecimento da negatividade e o excesso da positividade. Há um infarto
da alma.

Byung-Chul Han afirma que o aparato psíquico freudiano é repressivo e


impositivo. Sua estrutura é de uma sociedade disciplinar, logo abarca
hospitais, asilos, presídios etc. Diz que a psicanálise freudiana só pode
ser efetiva numa sociedade repressiva organizada pela negatividade das
proibições. Hoje, a sociedade de desempenho se afasta da negatividade das
proibições e se organiza como sociedade da liberdade, que se define pelo
poder hábil. Este sujeito do desempenho é um sujeito da afirmação, sendo
seu eu sem medo e angústia (segundo o autor).

O autor diz que o inconsciente freudiano não é uma configuração


atemporal. É uma produção da sociedade disciplinar repressiva, que
segundo ele estamos nos afastando. Aproxima o ego freudiano ao sujeito da
obediência kantiano, como cumprimento de um dever. O sujeito de
desempenho da modernidade tardia tem como máxima liberdade e boa vontade,
e não mais a obediência, a lei e o dever. É um empreendedor de si mesmo.
Mas a liberdade em relação ao outro vai transformar essa liberdade em
novas coações. Esta falta de relação com outro provoca uma crise de
gratificação. Richard Sennet afirma que esta crise da gratificação, do
reconhecimento, vai se ligar a uma perturbação narcisista e à uma falta
de relação com o outro. Coloca esta questão como distúrbio de caráter. O
si-mesmo não encontra nada de "diferente". Byung-Chul Han critica Sennet
quando ele diz que o aumento das expectativas impede o sujeito de
alcançar uma meta, pois para ele no sujeito narcisista o sentimento de
alcançar uma meta não se instaura, é incapaz de chegar a uma conclusão,
pois é impulsionado pela coação de desempenho, não alcançando repouso.
Vive constante num sentimento de carência e culpa. Sofre então um
esgotamento, colapso psíquico, burnout. Afirma que este sujeito se
realiza na morte.

Segundo Freud, diz Byung-Chul Han, o "caráter" é um fenômeno da


negatividade, pois não se formaria sem a censura do aparato psíquico,
sendo um "sedimento depositado de possessões objetuais renunciadas". O eu
evita o conhecimento dessas possessões que estão no id pelo processo de
repressão (o autor usa repressão em vez de recalque ou foi traduzido
assim). "O caráter contém em si a história da repressão", reflete as
relações entre id, ego e superego.

A histeria seria uma doença típica da sociedade disciplinar enquanto a


depressão seria amorfa, trazendo um homem sem características. Cita Carl
Schmitt que diz que ter muitos amigos no facebook é indicação de falta de
caráter, pois devido a divisão interior só se teria um inimigo verdadeiro
e também um único amigo. O homem pós moderno, espelho da falta de forma,
seria então um homem sem caráter, um homem flexível da positividade.

Afirma que nas doenças psíquicas atuais como depressão, burnout, déficit
de atenção, síndrome de hiperatividade não se encontra repressão e
processo de negação, pois remetem a um excesso de positividade, afirmando
que "a psicanálise não oferece nenhum acesso a elas" (Cf. p.88). Também
nos depressivos não se dá transferência já que não ocorre repressão. A
sociedade do desempenho trabalha no desmonte de barreiras e proibições
dadas pela sociedade disciplinar. Logo há uma promiscuidade generalizada.
O inconsciente não influenciaria a depressão.

Afirma que Freud concebe a melancolia como uma relação destrutiva com o
outro internalizado como parte de si-mesmo, gerando conflito
internalizado no próprio eu, que levaria ao empobrecimento do eu e
autoagressividade. Atualmente não há nenhuma relação conflitiva com o
outro, de perda, anterior ao sujeito depressivo. A depressão que
desemboca no burnout é resultado da autorelação exaltada, narcisista, que
ganha traços depressivos. O sujeito de desempenho está cansado, esgotado
de lutar consigo mesmo. Remói a si mesmo que o leva a autoerosão e ao
esgotamento. Todas as suas ligações se rompem, não havendo luto, que
surge quando se perde um objeto. Distingue a melancolia da depressão,
sendo a primeira efeito da negatividade, enquanto a depressão aponta para
o excesso de positividade.

Para Byung-Chul Han o burnout, que precede a depressão é resultado


patológico da autoexploração, influência também do contexto econômico,
pelo imperativo da expansão e oferta de produtos à identidade que é
flexível.
Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho o
superego se positiva em eu-ideal, que é sedutor. O sujeito de desempenho
se projeta em "liberdade", mas ao tentar alcançar a perfeição deste eu-
ideal se esgota, se consome, chegando ao suicídio.

E assim, a sociedade da negatividade se transforma em sociedade positiva,


da transparência. A transparência surge quando se elimina a negatividade.
As coisas, as ações, o tempo, as imagens se tornam transparentes ao se
tornarem rasas, planas, operacionais, o presente é otimizado e
imediatizado. A transparência é uma coação sistêmica. O movimento de
aceleração responde ao igual, desconstruindo a negatividade, eliminando o
diferente. Há predomínio do traço autoritário da transparência, que
elimina a esfera privada. Cita Freud ao dizer que o eu nega o que o
inconsciente afirma, logo o ser humano não é transparente consigo mesmo.
Devido a transparência o mundo se torna desavergonhado e desnudo.

Segundo Byung-Chul Han a "política" também é paralisada devido à


necessidade de total transparência, dando lugar à violência de
necessidades sociais, seguindo o veredicto da sociedade positiva: " me
agrada". A verdade é afastada, já que implica na negatividade. Há uma
ausência de saber.

Enfatiza que o espaço do sagrado, da paz, não são transparentes, são


sinuosos, como também o objeto do desejo no amor cavalheiresco é um
"buraco negro" em torno do qual se adensa o desejo. Cita Lacan ao afirmar
que este objeto do desejo é inacessível, indecifrável, o que se observa
na anamorfose, cuja imagem surge deformada. Não é evidente, sendo a
"Coisa" (das Ding) sem imagem devido a sua impenetrabilidade e
ocultamento, e não tendo representação.

Em Sociedade da transparência Byung-Chul Han desenvolve temas importantes


como exposição, pornografia, intimidade, informação, narração, que sofrem
profundas modificações pela coação transparente, acarretando
desculturalizaçao.

A sociedade do cansaço e da transparência são sociedades da positividade


que tomou o lugar da negatividade.

O autor afirma que o pensar não é transparente. Segundo Hegel, uma


negatividade habita o pensar, que permite o transformar. O tornar-se
outro é constitutivo para o pensar.

Embora a psicanálise freudiana siga o paradigma da negatividade, ela abre


espaço fundamental nesta nossa sociedade atual, do cansaço e da
transparência, como uma teoria e práxis que busca o esvaziamento de gozo.

Os estudos do último Lacan sobre o inconsciente real, trazendo outras


leituras de conceitos como trauma, repetição, nó borromeano, sinthoma,
nos possibilita meios de aproximação dos problemas que esta sociedade
positiva apresenta.
A Agonia de Eros”, livro do filósofo Byung-Chul Han, coreano radicado na
Alemanha, é alarmante. Seu tema central é, como podemos deduzir do
título, o amor. Para este filósofo, o amor é uma experiência radical, que
se baseia no esvaziamento de si, para o encontro com o outro. Este outro
não é apenas um diferente, mas um totalmente outro, isto é, alguém que
não diz respeito ao nosso eu, ao nosso mundo, ideal de vida, etc. Ele diz
respeito apenas a ele mesmo. Abrir mão de si, dos próprios limites, num
profundo esvaziamento (uma espécie sui generis de morte) é o amor. Mas,
ao contrário do que se pensa, esta experiência não traz a morte, nem a
dissolução do sujeito: é antes a salvação que vem com o amor.

Vivemos, contudo, o amor nesta radicalidade? O coreano afirma que, muitas


vezes, não. Eros agoniza porque na sociedade neoliberal não há espaço
para o diferente: o amado é o atopos, aquele que não tem lugar, e o
consumo exige algo de igual. Deste modo, as diferenças aceitas são apenas
as consumíveis, mas não aquelas que exigem uma verdadeira alteridade.
“Vivemos, diz o autor, em uma sociedade que se faz cada vez mais
narcisista”. A depressão é o efeito mais visível desta destruição da
alteridade, é a sintomática de alguém que está cansado, esgotado de si
mesmo. O narcisismo dissolve todos os limites do eu, de modo que se
projeta para o mundo de tal forma que só reconhecemos algo se isto for
uma sombra de nós mesmos.

Sendo uma relação desigual, no amor não cabe uma relação de dever e
poder; não há contabilidade, e sim alteridade atópica – o amor é também
uma dor, mas esta não pode ser suportada em nosso mundo; o esvaziamento
próprio ou a ausência do amado são dores insuportáveis, totalmente
esquecidas, tornando o outro num objeto a ser colhido e consumido no
imediato. O amor é uma experiência de excesso e transformação; sua
domesticação faz com que só queiramos o igual a nós, buscando no outro
uma confirmação. Desta forma, nos tornamos escravos da mera vida. Não é
que vivemos, mas apenas sobrevivemos. Trata-se de uma reação diante da
morte advinda do amor: trabalhamos e tornamos fetiche a nossa saúde na
tentativa de afastar a negatividade, a dor, sem perceber que nos tornamos
ainda mais escravos. Para filósofos como Aristóteles isto é totalmente
inadequado, uma vez que não devemos nos preocupar apenas com a vida
aparente, mas devemos agir de acordo com a vida boa, isto é, a vida que
vale a pena ser vivida.

A agonia segue: é exposta pela pornografia, verdadeira antítese do Eros e


que, ao remover toda a ritualidade e expurga o ato sexual de todo o
mistério que o circunda. Esta profanização é nefasta, e destroi toda a
comunicação. Os sentidos também se perdem, e a imaginação fica frouxa com
a falta de amor: é isso o que, segundo o filósofo, explicaria uma crise
da arte contemporânea. A própria política se torna inviável, pois já não
existe o bem comum, a valorização do outro, mas apenas o narcisismo
coletivo.

A exposição de Han é penetrante e induz a pensar. É verdade que algumas


de suas teses podem ser questionadas, como o fato de depositar a “culpa
última” deste processo em um fator econômico e não antropológico; no
entanto, isso não reduz o brilhantismo de sua análise, profundamente
radicada na realidade. **
Leia mais em: https://www.semprefamilia.com.br/blogs/prosopon/resenha-a-
agonia-de-eros/
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Eros e Psiquê é uma leitura essencial para as mulheres (e homens)
contemporâneas. Embora tenha sido deixado de lado frente a outros
clássicos gregos como A Ilíada e A Odisséia, a história de Psiquê é
inspiradora. Esse mito revela que não só devemos buscar melhor
compreender o processo de transformação do feminino, bem como nos lembra
essa transformação impacta também a concepção do masculino (representado
por Eros).

O autor, Erich Neumann, divide a obra em duas partes: a narrativa do


completa do mito e a sua análise sobre o desenvolvimento da psique
feminina através da heroína. Na primeira, a princesa Psiquê ao receber a
adoração dos homens por causa de sua beleza acaba despertando a inveja e
o ódio da deusa Afrodite. Como os deuses do Olimpo dificilmente perdoam,
Afrodite deu instruções ao filho, Eros, para que ele fizesse com que a
jovem se apaixonasse pelo homem mais feio do mundo e assim pagasse pela
sua ofensa.

Eros e Psiquê, Jean François Lagrenée


Mas incapaz de cumprir sua tarefa, Eros se relaciona em segredo com
Psiquê — sem que nem ela saiba quem é o marido que aparece em seu quarto
todas as noites. Instigada pelas irmãs malvadas, Psiquê quebra o
juramento feito a Eros e descobre sua identidade e graças a isso Eros se
fere e foge da amada. Ao descobrir a traição de seu filho, Afrodite se
enfurece e por isso, semelhante a Hércules, Psiquê precisa realizar
tarefas aparentemente impossíveis. A jovem deve separar milhares de grãos
misturados, pegar lã dos perigosos carneiros dourados, buscar água na
íngreme fonte do rio Estige e ir ao mundo dos mortos trazer para Afrodite
uma caixinha contendo parte da beleza da deusa Perséfone.

Por fim, quando estava perto de completar o último desafio, Psiquê decide
pegar a beleza de Perséfone para si mesma, e ao fazê-lo cai em um sono
profundo. Tal como em Bela Adormecida ou na Branca de Neve, Afrodite
sabia que a curiosidade a faria abrir a caixa. Mas curiosamente é essa
aparente derrota que dá a Psiquê sua verdadeira vitória: Eros escapa da
mãe e desperta Psiquê e convencendo Zeus a permitir que Psiquê ganhe a
imortalidade, o casal pôde finalmente ficar junto. Do enlace nasceu
Volúpia, a deusa da virtude.

Terminada a narrativa tratada no livro, Erich Neumann faz um trabalho


incrível em detalhar sobre o significado arquetípico do mito para o
desenvolvimento do feminino. Cada parte da história de Psiquê retrata um
aspecto do seu inconsciente que vem à tona e a torna cada vez mais um
indivíduo livre e dotado de ação. Vale frisar que o mito é arquetípico
porque não se trata de uma trajetória específica de uma pessoa (ou
mulher) e sim um padrão abstrato que retrata as fases que compõem essa
trajetória comum.

Entre tantas considerações ricas e interessantes, o que mais me saltou


aos olhos foi a consideração que Neumann faz acerca do papel do feminino
dentro do patriarcado. Para o autor, a personalidade feminina muda de um
estado de pertencimento aos valores do “matriarcado” para um estado de
independência e construção do ego ou identidade. Tal mudança só pode
ocorrer em contato com o arquétipo oposto ao matriarcado, “O Grande Pai”.
A situação do patriarcado, conhecida nos países ocidentais, é marcada
pelo confinamento da vida feminina submetida à consciência do masculino e
de seus valores.

A situação em que o feminino está submetido ao patriarcado só pode ser


resolvida pelo encontro: quando Psiquê decide desvendar a identidade do
marido misterioso (Eros). Somente quando o feminino e o masculino são
contrapostos em pé de igualdade, foi possível para a heroína começar seu
caminho heróico no desenvolvimento da sua própria personalidade.

Na história de Psiquê, o matriarcado é representado, em parte, pelas


irmãs que ao passo que reforçam a noção de sororidade, reforçam também a
inimizade aos homens e o senso de perigo que representam. Por isso, ela
não só supera a hostilidade ao masculino através do encontro e da
descoberta do amor (Eros), como também é capaz de transformar o
adolescente e imaturo Eros em um adulto e salvador, livre do domínio da
mãe.

Psiquê durante sua trajetória passa de inocente donzela a heroína


imortal. A sua força interior, conquistada através da superação das
tarefas e de seu amor, é tão grande que ela consegue enfrentar a
violência dos arquétipos (feminino e masculino) em pé de igualdade, diz
Neumann. Contudo, todo esse processo não acontece em oposição aos deuses,
como ocorre no mito de Prometeu, mas sim através de um arroubo
apaixonado: é o seu amor a Eros que une Psiquê (ou alma humana) ao
Divino.

Então, em tempos de debate sobre feminismo e protagonismo feminino,


Psiquê serve como um lembrete de que o real inimigo não é o “o outro” (o
masculino), e sim a nossa inconsciência acerca das ideias e arquétipos
que nos aprisionam. Logo, não é com o embate ou com confronto que iremos
resolver as diferenças entre homens e mulheres e sim através do encontro
e da descoberta.

Apesar de não ser uma leitura fácil a partir da segunda parte, o livro
Eros e Psiquê do Erich Neumann já vale a pena pelo conteúdo do próprio
mito. Em um contexto em que se fala da falta de heróis femininos, Psiquê
nos lembra que não precisamos inventar novas histórias para representar o
empoderamento do feminino, antes o heroísmo feminino pode ser encontrado
mesmo na antiguidade.
O gozo do Outro, o autoritarismo, são temas desta sociedade positiva que
cobrem a alteridade e a autoridade. A psicanálise através de Totem e
Tabu de Freud já denunciava os excessos da civilização.

Referência bibliográfica
Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

______________. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

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