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entrevista

Renato Janine Ribeiro

Ética ou o fim do mundo


0 mundo como está pode se tornar in-
sustentável. No caminho de revés, a
ética tem um papel imprescindível nessa
público. Sim, o mundo ganha – inclusive
materialmente – com ações mais éticas.

redenção. Assim defende o professor ti- Nesta entrevista exclusiva para a Organi-
tular de Ética e Filosofia Política da Uni- com, Ribeiro avalia ainda a crise econô-
versidade de São Paulo (USP), Renato mica (uma crise do conservadorismo), a
Janine Ribeiro. Para ele, o mais impor- (escassa) liberdade no trabalho, discute a
tante sobre ética é saber que o sujeito ética como mercadoria, as relações entre
deve ser responsável por suas ações. É o ética e política, a dificuldade brasileira de
exemplo deixado por Antígona, há mais conciliar a prática e o discurso e a falta
de dois mil anos. Acredita, portanto, em de justificativas de se trabalhar em em-
uma ética de transgressões em nome presas corruptas ou que infringem va-
de firmes convicções morais em vez de lores básicos. Como não poderia deixar
uma obediência cega às leis por medo de ser, discute também o papel dos pro-
das conseqüências. A ética, nesse caso, fissionais de Relações Públicas na defesa
está quase ligada ao ato heróico. Seria o dos interesses das empresas pelas quais
que está faltando à sociedade atual. trabalham. Por fim, Ribeiro só vê uma
saída: ou agimos eticamente sem espe-
O filósofo concorda que, em uma socie- rar recompensas, ou o mundo acaba.
dade que só privilegia o descartável, há
uma corrosão do caráter; as relações pes- 0SHBOJDPN – Antes de tudo, o que é ética?
soais e familiares e, conseqüentemente,
também os laços sociais, se fragilizaram Renato Janine Ribeiro – Ética é uma palavra
ao mesmo tempo em que vivemos com que vem do grego ethos, quer dizer cará-
uma liberdade de escolha nunca vista ter. É muito usada como sinônima – ou
antes. Esse seria o grande dilema ético não – de moral, que deriva do latim mo-
da sociedade atual. Como escolher entre res, costumes. Como costumamos distin-
o tradicional e o novo, entre a lealdade guir uma ética (ou moral) que se limita a
amorosa e a paixão? Não há regras. Para seguir os preceitos vigentes de uma outra
o filósofo, a saída está em criar um pen- na qual o sujeito se responsabiliza por
samento para lidar com as rupturas e uma decisão dificilmente tomada, muitos
com as mudanças ao longo da vida. chamam de moral a primeira (que segue
os costumes dominantes), e, de ética, a
Para Ribeiro, não há como fazer pactos segunda (na qual o caráter é construção
de ética, o tão falado pacto social para o pela qual a própria pessoa é responsável).
país, por exemplo. Ou seja, não é possí-
vel fechar negociações de quem vai ser 0SHBOJDPN – Existe uma ética exclusiva de
ético ou não. Se houver esse pacto, en- um determinado setor? Há uma ética ou
tão ética não é. Afirma, ainda, que não várias “éticas”?
é fácil tomar o caminho ético em uma
sociedade na qual ter a consciência tran- Renato Janine Ribeiro – O mais importante
qüila está longe de ser uma “mercadoria” não é dizer se ela muda ou se há diversas
valorizada. Pois, quem age eticamente éticas, mas, sim, que o sujeito é sempre
nunca terá certeza de que sairá ganhan- responsável pelas decisões. Se dissermos
do. Mas a premissa é imediatamente tan- que há éticas setoriais ou corporativas,
gível quando saímos do individual para o caímos no pior risco para a ética, isto é,

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de que as pessoas abram mão da respon- uniam pais e filhos, homens e mulheres,
sabilidade por suas escolhas. Isso é tão nas relações privadas, e os cidadãos, nas
negativo quanto elas se refugiarem atrás públicas, todos eles se debilitaram. Com
de mandamentos ou regras universais. isso, a moralidade paga um preço. Mas
Em outras palavras, o decisivo para a éti- não aceitaríamos voltar a uma vida pes-
ca não é o que se faz, mas por que essa soal e política padronizada. O que fazer,
determinada pessoa faz algo ou deixa de então? Como escolher entre a lealdade
fazê-lo. Se eu respeito as leis por medo amorosa e uma nova paixão? Há regra?
das conseqüências, não sou ético. Para- Não há. Mas precisaremos, entre ou-
doxalmente, se desrespeito as leis por tras coisas, criar um pensamento e uma
convicções morais e arco com as con- disposição éticos para lidarmos com as
seqüências de meus atos, sou ético: é o rupturas, com as mudanças ao longo da
exemplo que nos deixou Antígona, mais vida. Esses são os grandes desafios éticos
de dois mil anos atrás. Notem que isso é de hoje.
bem diferente de desrespeitar a lei numa
sociedade democrática e querer furtar- 0SHBOJDPN – Qual o impacto da globaliza-
se às conseqüências, como quiseram os ção nas relações humanas hoje em dia?
invasores da Reitoria da USP em 2006. Na sua opinião, essas relações estão mais
O que retirou qualquer conteúdo ético ou menos éticas?
da ação deles foi essencialmente essa rei-
vindicação. Renato Janine Ribeiro – A globalização res-
ponde por parte da individuação e do
0SHBOJDPN – A seu ver, qual o grande dile- individualismo crescentes (que são dois
ma ético da sociedade atual? conceitos bem diferentes entre si e dos
quais falei na resposta anterior). Ela
Renato Janine Ribeiro
– Vivemos uma situa- também faz com que valores mais fortes
ção sem precedentes que é, por um lado, numa sociedade compitam com os que
termos liberdades em escala inédita – prevalecem em outras. Por exemplo, a
desde as pessoais até as políticas, isto é, mistura de liberdade e de descontrole é
desde a de escolher o companheiro até mais ocidental do que oriental, é mais
a de votar, falar e se organizar – e, por capitalista do que tradicional. Um dos
outro lado, estarmos com os laços so- interessantes resultados disso, porém, é
ciais muito enfraquecidos. Os laços que que cada vez mais ocidentais se abrem
a valores de outras culturas e procuram
uma ética para além de sua parte espe-
cífica do mundo. Isso é enriquecedor. O
 4FEJTTFSNPT que não é positivo é quando se destrói
RVFI²¹UJDBTTFUPSJBJT  uma cultura em nome de outras, su-
postamente superiores. Mas não deixa
DB½NPTOPQJPSSJTDP  de ser verdade que a cultura com maior
EFRVFBTQFTTPBT abertura às outras talvez seja a ocidental
BCSBNN·PEB atual, que realiza – em certa medida –
SFTQPOTBCJMJEBEF a antropofagia de Oswald de Andrade.
Por isso, aliás, nosso país e nossa cultu-
QPSTVBTFTDPMIBT ra têm muito a dizer sobre globalização
cultural e ética.

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0SHBOJDPN – Em uma das suas principais podem existir na forma democrática. É
obras, o sociólogo Richard Sennett de- só nas democracias que a política pre-
fende que a sociedade atual vive uma tende o bem comum. E é só nelas que
corrosão do caráter. Para ele, o capitalis- a corrupção, palavra que ao pé da letra
mo contemporâneo, a flexibilização do quer dizer “degradação, apodrecimen-
mundo do trabalho, a lógica hiper-com- to”, existe como preocupação – porque
petitiva e os padrões atuais de “sucesso” a corrupção é corrupção da forma pura,
corroem a escala de valores e qualquer que seria republicana. Já nos regimes di-
forma de disciplina ética, mesmo dentro tatoriais, como eles não têm uma forma
do próprio capitalismo. Tudo isso em pura empenhada no bem comum, mas
nome da produtividade. O Sr. concorda? se definem desde o começo como volta-
Há uma crise de valores na sociedade dos para interesses privados ou de gru-
atual? pos não eleitos, curiosamente não pode
haver corrupção! Explico: corrupção só
Renato Janine Ribeiro – Concordo plena- pode existir do que é bom. O ruim pode
mente. Uma sociedade que valoriza o apodrecer? Como, se ele já é podre? O
descartável em que pode dar? Daí sur- segundo ponto é o brasileiro. Podemos
gem coisas espantosas tais como os par- falar de corrupção propriamente dita se,
tidos conservadores, como o britânico, e quando, há preocupação com o bem
que sempre defenderam valores como comum. Mas eu diria que essa preocu-
os da família, passarem a sustentar uma pação não é forte em nosso país. O indi-
agenda que não tem mais lugar algum vidualismo é predominante na maneira
para esses valores – e que defende uma como nossos compatriotas consideram o
hipertrofia do indivíduo sem laços com laço social e político. Por isso, acaba não
a sociedade. Foi o que aconteceu com havendo muita diferença entre o egoís-
Thatcher. Nos Estados Unidos, os re- mo de quem invade o acostamento das
publicanos misturaram uma política de estradas para passar à frente dos outros
total amoralidade com um discurso mo- carros e a corrupção do governante ou
ralista dos mais conservadores. Isso só é do funcionário público. Em todos esses
possível com muita ignorância dos elei- casos, a vantagem pessoal fica na frente,
tores ou mesmo com fraude eleitoral. mesmo que a médio prazo produza um
desastre que prejudica também o cor-
0SHBOJDPN – A sociedade brasileira ainda rupto e/ou egocêntrico.
apresenta um índice muito grande de
corrupção, em todos os seus níveis. Mas 0SHBOJDPN – Falta um pacto social de ética
isso não é privilégio apenas da sociedade para o país?
brasileira. Por que somos tão suscetíveis
à corrupção? Renato Janine Ribeiro
– Não sei o que seria
isso. A ética não é uma negociação. Não
Renato Janine Ribeiro – Duas coisas. Primei- podemos combinar que seremos éticos.
ra, a corrupção só é problema numa É uma decisão difícil que tem a ver com
sociedade republicana, no sentido forte um certo heroísmo, pela qual nos dispo-
do termo, que nada tem a ver com pre- mos a sacrificar vantagens em função de
sidentes de república versus reis, mas, um ideal. Se o que quer dizer é que seria
sim, com a defesa da coisa pública, do bom nossa sociedade ser mais ética, e
bem comum. Essas repúblicas hoje só que seria bom os políticos e empresários

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combinarem de parar com a corrupção, Renato Janine Ribeiro
– Esse é um nervo ex-
concordo com a proposta. Mas não cha- posto da sociedade brasileira. Por um
maria isso de um pacto ético. Não posso lado, gostamos da palavra bonita que
prometer que serei decente apenas se o proclama princípios elevados. Por outro,
outro também o for. Esse acordo pode não temos muita experiência no mundo
ser muito bom, mas não poderia chamá- da prática. O mundo da ação fica assim
lo de ético. largado: parece que as palavras bastam
a si mesmas e não exigem atitudes ou
0SHBOJDPN – É um movimento contem- atos coerentes com elas. Seria melhor
porâneo das empresas utilizar conceitos se tivéssemos ideais um pouco menos
como responsabilidade social e sustenta- elevados, mas que nós cumpriríamos,
bilidade, inclusive nas suas campanhas do que ter ideais belíssimos, mas que são
de marketing, como um elemento de tão difíceis que nem sequer tentamos
diferenciação no mercado. A ética é hoje implementar.
vendida como marketing empresarial?
Tornou-se um produto? 0SHBOJDPN – Como o Sr. vê as relações de
negócios atuais? É possível que ética e
Renato Janine Ribeiro – Tornou-se. Há um negócios coexistam?
lado positivo nisso, que é o da exigência
dos consumidores, que vão-se tornando Renato Janine Ribeiro – Tanto é possível que
mais cidadãos e começam a olhar o selo já coexistiram e hoje também coexistem
verde, o selo das boas práticas trabalhis- muitas vezes. Acredito que a maior par-
tas e recusam comprar o que foi produzi- te das pessoas seja honesta. O problema
do com mão de obra infantil, por exem- é que basta uma minoria não o ser para
plo. Mas o fato de ser positivo não quer corromper o laço social. Voltando ao
dizer que seja necessariamente ético. É exemplo do acostamento: quantos mo-
bom, sim, mas só chamo de ética a con- toristas, no final de um feriado prolonga-
duta em que a pessoa corre riscos porque do, vão pelo acostamento? Uma peque-
escolhe um ideal em que acredita. Dizer na minoria. Mas dão à grande maioria
que a ética é uma vantagem compara- honesta a sensação de que agir bem é
tiva de certas empresas parece implicar ser otário. O efeito deseducativo dessas
que, se não houvesse essa vantagem, tais situações é enorme.
empresas não agiriam eticamente. Ora,
se elas só agem eticamente por uma ra- 0SHBOJDPN – E como é a relação entre ética
zão não ética, serão éticas? Insisto: para a e política?
vida social, é bom que as pessoas respei-
tem as leis e os princípios que achamos Renato Janine Ribeiro – Na política temos
bons. Mas, para chamar esse respeito de um problema sério, que está no finan-
ético, é preciso algo mais. Não sou con- ciamento das campanhas eleitorais. Esse
tra o respeito às leis quando se é motiva- é um problema mundial, aliás. Cada
do pelo medo da punição. Apenas acho vez mais são necessários marqueteiros,
que esse respeito não chega a ser ético. “spin doctors”, como dizem os ingleses.
Isso custa muito caro. Por isso, mesmo
0SHBOJDPN – Por que se percebe tanta dife- políticos honestos acabam fazendo um
rença entre o discurso e a prática quando caixa 2. A corrupção, com isso, mudou
falamos de ética? de figura. Antes, o corrupto colocava o

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dinheiro no bolso. Hoje, há gente que
eu diria honesta que, por estranho que
pareça, se corrompe para ter dinheiro  0TWBMPSFT
para a campanha. Por isso, também, em JNQMBOUBEPTQFMPT
nosso país é tão comum dizermos que DPOTFSWBEPSFTGPSBN
uma pessoa é honesta na vida privada,
TVCTUJUV½EPTQPSVN
mas não consegue sê-lo na vida pública.
É o contrário do princípio anglo-saxôni- JOEJWJEVBMJTNPSBEJDBM 
co dos “vícios privados, benefícios públi- WPMUBEPQBSBB
cos”. Entre nós, a virtude pode existir no DFMFCSB¸·PEFTJQSÂQSJP
mundo privado, mas no campo público
sentimos que vale tudo.

0SHBOJDPN – Grandes empresas deixaram 0SHBOJDPN – Em uma empresa ou insti-


de existir devido a grandes fraudes con- tuição, como a cultura organizacional
tábeis e que abalaram a economia. Eram pode influenciar a forma como ela se
nomes sólidos como Enron, WorldCom, relaciona com a sociedade? A ética pode
Arthur Andersen. A atual crise financei- ser definida por meio de sua cultura or-
ra também pulverizou gigantes como o ganizacional?
Lehman Brothers e a AIG. Podemos di-
zer que o cerne desta crise está na ética? Renato Janine Ribeiro
– Falta liberdade no
Ou melhor, de uma questão de falta de ambiente de trabalho, tema que analisei
atitudes éticas nos negócios? num programa da segunda temporada
da série Ética, que apresentei nas TVs
Renato Janine Ribeiro – Mudou o que queria Futura e Globo (ver http://www.futu-
dizer ser conservador. Os conservadores, ratec.org.br). Uma coisa é realização no
até algumas décadas atrás, celebravam trabalho, outra é liberdade no seu am-
valores como os da família. É claro que biente. Podemos nos realizar, mas não
isso levava muitos deles a serem pre- ter liberdade, ou ter liberdade num em-
conceituosos, por exemplo, contra os prego que não é o que vai nos realizar.
homossexuais, contra os negros, ateus Na verdade, precisamos das duas coisas.
ou mesmo fiéis de outra religião. Mas O indivíduo se realizar no trabalho de-
havia um propósito de implantar certos pende mais de escolher o lugar que lhe
valores. Isso hoje foi substituído por um convém. Agora, reconhecer liberdade
individualismo radical, voltado para o para os funcionários depende, muito, da
ganho, o lucro, a celebração de si pró- empresa e do chefe. Minha experiência
prio. Não é à toa que a atual crise tem no Governo Federal, como um dos dire-
a ver com o crescimento dos ativos vir- tores da Capes, mostrou como a liberda-
tuais, isto é, que não necessariamente de é um bem raro e precioso na relação
têm base real, mas são papéis, ficção. com as pessoas. E por quê? Porque ela
Quando alguém vem cobrar o que tem, significa respeito. Quando o chefe res-
vê que não tem nada – só papéis, que peita o subordinado, tudo melhora. Mas
facilmente viram pó. Evidentemente, muito chefe tem medo disso.
por trás disso está um descaso com va-
lores, com laços sociais, com a própria 0SHBOJDPN– As empresas e instituições
realidade. criam ou reproduzem códigos de ética.

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Quais são os valores que qualquer em- mas também pode ser necessário para
presa não pode deixar de ter? reduzir a pobreza. Conciliar isso não é
tarefa fácil, mas exige, pelo menos, que
Renato Janine Ribeiro – Um código de éti- sejam reconhecidos todos esses titulares
ca é uma lei, isto é, uma ordem que, se de direitos.
for desobedecida, leva a punições para
o funcionário. É positivo uma empresa 0SHBOJDPN – É possível defender ou traba-
discutir o que as pessoas que trabalham lhar para uma empresa não ética? Como
nela acham correto ou errado. Mas é po- lidar com essa questão?
sitivo, sobretudo, pelo debate, não pela
conclusão ou fechamento dele. Eviden- Renato Janine Ribeiro – É claro que não é éti-
temente, entendo que um código de co fazer isso. Se uma pessoa constata que
ética deve se basear no respeito: aos fun- trabalha para uma empresa que se vale
cionários, aos clientes, aos fornecedores. da corrupção ou do trabalho de meno-
Deve combater a exploração do trabalho res ou, ainda, devasta a natureza, não há
infantil ou escravo entre os fornecedo- justificativa ética para tanto. É evidente
res, deve condenar o autoritarismo na que a pessoa pode dizer que precisa do
empresa. Mas apenas cumprir o código emprego – e pode precisar mesmo (em-
de ética não dá, a ninguém, o diploma bora a maior parte das vezes que conhe-
de pessoa ética. ço, necessite dele para manter um nível
de vida mais elevado, e não para suas
0SHBOJDPN – Em sua opinião, como é pos- necessidades fundamentais) – mas essa
sível conciliar os interesses particulares e explicação, que podemos compreender
coletivos nas organizações? e até mesmo aceitar, não tem nada de
ético. Esse caso é claro e não compor-
Renato Janine Ribeiro– Uma empresa ou ta dúvidas, a meu ver. Onde entram as
instituição pública precisa conciliar três dúvidas é quando a empresa gera produ-
tipos de direitos, pelo menos: os de seus tos que fazem mal à saúde ou à socieda-
consumidores ou usuários, que são sua de. O leque deles está aumentando. Há
razão de ser, sua finalidade; os de seus muito debate a respeito. Parece-me que
trabalhadores ou funcionários, que me- a tendência seja, numa sociedade livre,
recem pleno respeito como pessoas; e isto é, em que uma pessoa não é obriga-
os de seus proprietários, que podem da a trabalhar para Fulano ou Beltrano,
ser particulares ou, no caso do Estado, o trabalhador ser responsável pelo que
a sociedade inteira. Isso para não falar a empresa – ou órgão público a que ser-
em direitos menos tangíveis, como os ve – faz. Aqui temos amplo espaço para
do meio ambiente: a natureza cada vez discussão.
mais aparece não apenas como meio de
realização humana, mas como senhora 0SHBOJDPN – A seu ver, os profissionais de
ou titular de direitos – a ser bem tratada, Relações Públicas podem ajudar a criar e
a não ser destruída. Ou seja, temos afinal a manter um comportamento ético nas
quatro atores que devem ser considera- empresas? Como?
dos. Uma greve na saúde afeta os usu-
ários, que também são, como cidadãos, Renato Janine Ribeiro – O papel dos profis-
os donos do serviço. Um aumento de sionais de Relações Públicas pode ser o
produtividade pode detonar a natureza, de esconder o que a empresa faz de an-

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ti-ético ou o de garantir que ela preste admitir que desejava a pena de morte
contas, com sinceridade e, se for o caso, para os assassinos de João Victor Borges
pedindo desculpas à sociedade ou com- (garoto de 5 anos morto em 2007, no
pensando a natureza pelo desgaste que Rio de Janeiro, ao ser arrastado por la-
fez. Veja o recente caso do filme brasi- drões, que haviam roubado o carro dos
leiro Linha de Passe, dirigido por Walter pais). Hoje, como o Sr. vê a repercussão
Salles, cujos autores compensaram, me- gerada nesse caso?
diante ações ecológicas, o carbono que a
produção do filme gerou. Uma ação des- Renato Janine Ribeiro– Vejo como uma
sas fala por si mesma, mas é claro que, se prova enorme da hipocrisia nacional.
não for divulgada, não valoriza quem a Coloquei o dedo numa ferida séria: não
praticou – nem tem efeito disseminador apenas o que fazer com jovens que co-
como exemplo. Em suma, o profissional metem, conscientemente, um crime
de RP ajudará a criar um ambiente ético hediondo, que foi o caso concreto; mas
se ele, e a empresa, forem éticos. Se não, não ficarmos na hipocrisia de pregar
não há o que fazer. uma coisa e sentir outra. Uma reação
que ouvi é que eu podia pensar e até di-
0SHBOJDPN – Na sua opinião, os meios de zer, em mesa de bar, que queria que os
comunicação no Brasil operam de forma assassinos morressem, mas não deveria,
ética? até por dispor de espaço público, afirmar
isso em alto e bom som. Ora, isso não
Renato Janine Ribeiro – Não dá para ter uma é defender a hipocrisia? E como vamos
resposta sim ou não. O mais fácil seria consolidar o necessário respeito aos di-
dizer não. Agradaria a muita gente. Mas reitos humanos dos criminosos e dos
sustento há anos que as novelas da TV presos, se nós mesmos não acreditarmos
Globo, em que pese o consumismo que muito nisso? Deixei claro em minhas in-
decorre do merchandising nelas pratica- tervenções que meus sentimentos entra-
do, combatem preconceitos – contra a vam em contradição com os valores que
mulher, contra a lésbica, contra o por- sempre preguei. Então, que base real
tador de Síndrome de Down. Por outro têm esses valores para mim? E isso vale
lado, a maior parte dos programas da TV para muitos que concordaram comigo
em geral – inclusive a cabo – não tem uma em privado, e o disseram, mas em públi-
preocupação cultural ou mesmo ética. O co afirmaram outra coisa. Em suma, se
estímulo sexual precoce é um problema queremos praticar os valores, acreditar
sério. A não-cobertura das discussões po- neles é um bom começo; mas acreditar
líticas também o é. No governo FHC, a neles depende de muita coisa, inclusi-
mídia praticamente não dava espaço a ve de uma disposição dos afetos. E essa
quem discordasse das políticas econômi- disposição afetiva não vem do nada. Por
cas vigentes. Hoje, como a mídia conti- exemplo, é condenável passar os carros
nua defendendo aquelas políticas, pelo pelo acostamento, na estrada, mas como
menos temos dois discursos sendo difun- ninguém é punido por isso, algumas
didos, aquele e o do atual governo. É me- pessoas decentes, que têm razões para
lhor, mas não foi mérito da mídia. estarem com pressa e que estão sendo
atrasadas por esses irresponsáveis, aca-
0SHBOJDPN – O Sr. foi protagonista de um bam também pegando o acostamento.
debate ético na sociedade brasileira, ao Porque elas se sentem idiotas de cum-

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prir a lei ou a ética. Isso é grave no Brasil: um adulto com palavras que discrepam
quando as pessoas sentem que praticar o dos atos. Os pequenos são atentos mais
bem não adianta, a disposição a sair dele às ações do que ao verbo. Então, numa
é grande. No caso de assassinos frios e sociedade da ganância, que ética quere-
cruéis, o que fazer? O seqüestrador de mos que os jovens tenham?
Silvio Santos morreu na cadeia, apesar
das garantias que lhe deu o governador 0SHBOJDPN – Finalmente, por que (e para
da época, e que resultou disso? Nada. In- que) ser ético? O que as empresas têm a
felizmente, é assim que a sociedade bra- ganhar ou a perder?
sileira opera: afirma valores em público,
e admite em privado a violência. Ouvi, Renato Janine Ribeiro– Eu gostaria de sair
por exemplo, que os pais da criança as- da questão “o que (Fulano) tem a ga-
sassinada poderiam, sim, matar os assas- nhar com a ética”, porque essa questão
sinos; o errado era querer que fossem é, ela própria, não-ética. Posso responder
mortos na prisão ou executados após em poucas palavras: todos nós, com a
devido processo legal. Quer dizer, então, ética, temos a ganhar um mundo melhor.
que além de você perder seu filho, você O mundo como está pode se tornar
tem de macular sua mão para que sejam insustentável. Mas isso vale para nós
punidos os criminosos? Quer dizer que a como humanidade. Na ética, ganha-se
Justiça não punirá à altura, e as pessoas materialmente como uma coletividade.
de bem compreenderão a reação emoti- Como indivíduos, pode ser que tenha-
va de quem perdeu um ente querido? É mos de perder para sermos éticos. Quem
mais fácil censurar quem pergunta isso encontra vinte mil reais no aeroporto e
do que entrar num debate sério. os devolve ao dono, o que ganha mate-
rialmente? Nada. Refiro-me a um faxinei-
0SHBOJDPN – O Sr. vê problemas na educa- ro pobre, que foi homenageado e tudo o
ção atual para que sejam formados cida- mais. Ou o caseiro do ministro Palocci,
dãos mais éticos? que penou como o diabo, como mostrou
a revista Piauí. Perdeu o que mais impor-
Renato Janine Ribeiro – Nossa educação tava para ele, que era o reconhecimento
é muito ruim. Para melhorar, serão pre- por um pai que nunca antes o aceitara,
cisos anos. Pelo menos, os governos es- e que voltou a rejeitá-lo. Sim, o mundo
tão se interessando mais em melhorá-la ganha – inclusive materialmente – com
e têm agora indicadores de sua melhora ações mais éticas, mas quem age etica-
ou não. Não sei, porém, se esses indica- mente nunca terá certeza de que ele, em
dores medem o essencial ou só o secun- particular, sairá ganhando materialmen-
dário. E a formação ética depende muito te. Terá a consciência tranqüila, mas em
da família. Se esta dá maus exemplos nossa sociedade essa não é uma merca-
aos filhos, eles percebem o que os pais doria muito valorizada. Só que não há sa-
fazem e não o que dizem. Crianças são ída: ou agimos eticamente, sem esperar
muito inteligentes. É mais fácil enganar recompensa, ou o mundo acaba.

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