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SECRETARIA DO ESTADO DA COMUNICAÇÃO/SECOM

Secretário: Gilberto Ubaiara


Atendimento: Tatiane Aleluia
Capa: Honorato Junior
Produção: Manoel do Vale
Diagramação: José Maria Baia
GOVERNADOR DO ESTADO
ANTÔNIO WALDEZ GÓES DA SILVA

COLEGIADO
DORIVAL DA COSTA DOS SANTOS (PRESIDENTE)
JÚLIA MONNERAT BARDOSA
MAURA LEAL DA SILVA

SECRETARIA EXECUTIVA
EWERTON SOUZA NERI
LEONIL FERREIRA GÓES
MARIA IZABEL DE ALBUQUERQUE CAMBRAIA

1º Presidente da CEV-AP
JORGE WAGNER COSTA GOMES

2º Presidente da CEV-AP
LUCIANO DEL CASTILO SILVA

EX-MEMBROS
ADERVAN DIAS LACERDA
AIRÁ PEREIRA SANTANA
ANGELA MARIA OLIVEIRA DE CARVALHO
BENEDITO DE QUEIROZ ALCÂNTARA
DANIEL SANTIAGO CHAVES RIBEIRO
HAYAT GUIMARÃES FREIRE ZOUEIN
LEIDIANE DA SILVA LAMARÃO PANTOJA
MARIA APARECIDA DA COSTA PENHA
MARIA BENIGNA DE OLIVEIRA NASCIMENTO JUCÁ
PETRÔNIO BAIA VALENTE
RAIMUNDO JOSÉ DA COSTA QUEIROGA

ESTAGIÁRIOS COLABORADORES - UNIFAP


DIOGO SOUZA DA COSTA
EDINELMA CHAVES
GÉSSICA DOS ANJOS LOBO
IRANILDA MORAES LEITE
JESSICA JOYCE RODRIGUES
JOSÉ WILLIAN DA SILVA FEITOSA
LETICIA LOIOLA CAMPELO
LUANE TOMAZ DE BRITO FONSECA
LUCAS VELOSO DA SILVA
LUCILENE MARQUES DO NASCIMENTO
ROSEANE DIAS DA SILVA
SÃ’A RAÍRA DE OLIVEIRA
SABRINA SOUZA DA COSTA
WILZA DOS SANTOS SOUZA
“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder
ser contada uma história”.

HANNAH ARENDT

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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APRESENTAÇÃO
II - Identificar e tornar públicas as estrutu-
ras, os locais, as instituições e as circunstân-
cias relacionadas à prática de violações de di-
reitos humanos mencionadas no caput do art.
1º da Lei 1756, de 24 de junho de 2013, suas
eventuais ramificações nos diversos aparelhos
estatais e na sociedade;
III - Encaminhar, à Comissão Nacional
da Verdade, toda e qualquer informação obti-
da que possa auxiliar no alcance dos objetivos
aqui dispostos;
IV - Colaborar com todas as instâncias do
Poder Público para apuração de violação de di-
reitos humanos, observadas as disposições le-
gais;
V - Recomendar a adoção de medidas e po-
líticas públicas para prevenir violação de direi-
tos humanos;
VI - Promover, com base nos informes ob-
tidos, a reconstrução da história dos casos de
A Comissão Estadual da Verdade do Ama- graves violações de direitos humanos, bem
pá (CEV-AP), Francisco das Chagas Bezerra – como colaborar para que seja prestada assis-
Chaguinha, foi criada por iniciativa do Gover- tência às vítimas de tais violações.
no do Estado do Amapá, durante a gestão de A Comissão da Verdade Chaguinha foi
Carlos Camilo Góes Capiberibe (2011-2014), composta por membros indicados pelo Gover-
por meio da Lei 1.756, de 24 de junho de 2013, no do Estado, escolhidos conforme critérios
publicada no Diário Oficial nº 5.490, alterada profissionais e/ou experiência teórica e/ou
pela Lei 1.771, de 30 de setembro de 2013. prática, relacionados ao estudo da ditadura
Após um período de paralisação de quatro me- militar e na defesa dos direitos humanos. Nos
ses, foi reativada pelo atual governador, Antô- três anos e meio de existência, mesmo com to-
nio Waldez Góes da Silva, conforme Decreto das as dificuldades de pesquisa e coleta de da-
nº 3482, de 6 de julho de 2015. Foi a primei- dos e informações, por exemplo, a ausência de
ra Comissão da Verdade criada na Amazônia, um Arquivo Público Estadual que organize a
objetivando, assim como as demais comissões documentação oficial ou de qualquer outro ar-
estaduais, municipais e institucionais, ofe- quivo, público ou privado, bem como, a resis-
recer subsídios aos trabalhos realizados pela tência de muitos atores em rememorar esses
Comissão Nacional da Verdade (CNV), assim anos, a CEV-AP buscou cumprir a missão de
sendo, acompanhou as diretrizes e finalidades investigar o passado e romper com o silêncio.
estabelecidas por essa comissão. Para tanto, realizou 38 oitivas, com ho-
mens e mulheres que vivenciaram a ditatura
Foram objetivos da Comissão Esta- no Amapá, ou que de alguma forma tiveram
dual da Verdade do Amapá Chaguinha: suas vidas afetadas direta ou indiretamente
I - Esclarecer os fatos e as circunstâncias por esses anos turbulentos. Contudo, mes-
dos casos de graves violações de direitos hu- mo com ausência de arquivos cientificamen-
manos mencionados no caput do art. 1º da Lei te organizados foram utilizados, como apoio,
1756, de 24 de junho de 2013; alguns documentos pesquisados em arquivos

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públicos setoriais tais como: Secretaria de Es- A Comissão Estadual da Verdade do Ama-
tado da Administração, Secretaria de Estado pá sempre pautou sua atuação pela tentativa
da Justiça e Segurança Pública, Judiciário, de prestar um serviço público, e é neste senti-
imprensa Oficial, através do jornal Amapá,1 do que todo o acervo documental e multimídia
da Biblioteca Pública Elcy Lacerda, Prelazia resultante das atividades desenvolvidas, após
de Macapá, especificamente jornal A Voz Ca- seu término, será encaminhado à Universidade
tólica e o Arquivo Edgard Leuenroth, na UNI- Federal do Amapá (UNIFAP), para compor seu
CAMP, além de documentos coletados com os Centro de Memória (ainda em fase de constru-
próprios entrevistados, que contribuíram para ção), resguardado o sigilo dos documentos que
esclarecimento de fatos e acontecimentos, sin- tem essa natureza, para servir de fonte para
tetizados nesse Relatório. novas pesquisas que ajudem a acertar as con-
Na complexa missão de montar e remontar tas com o passado e compreender como se es-
esse mosaico histórico e deixar esse importan- truturava e funcionava a sociedade brasileira
te legado às atuais e futuras gerações, a Co- nos chamados “anos de chumbo”. Essa doação
missão Estadual da Verdade Chaguinha, para se dará em caráter temporário até a implan-
além da parceria da Comissão Nacional da tação definitiva do Arquivo Público Estadual.
Verdade, contou também com o auxílio da Co- Além disso, o acervo da Comissão Estadual da
missão de Anistia do Ministério da Justiça, da Verdade do Amapá já se encontra hospedado
Ordem dos Advogados do Brasil-Seção Amapá, no site: http://www.cev.ap.gov.br.
da Universidade Federal do Amapá e do Minis- Aqui fica o registro de gratidão às pesso-
tério Público Federal. Esse esforço somou-se as e instituições que contribuíram para que o
aos significativos avanços globais conquista- Amapá começasse a passar a limpo esse pas-
dos em prol da preservação da memória, da sado doloroso, que hoje segue nessas páginas
promoção da justiça de transição e da recons- reparadoras de sua história, para que não seja
trução da verdade histórica. esquecido e nunca mais aconteça.

1A primeira publicação do jornal Amapá ocorreu em 19 de março de 1945 e circulou até 1976, com periodicidade semanal
e tiragem média de mil exemplares. O jornal era impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do governo Território Federal
Amapá, em tipografia, e teve como primeiro diretor o servidor público Paulo Eleutério Cavalcante de Albuquerque.

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FRANCISCO DAS
CHAGAS BEZERRA
O nome da Comissão Estadual
da Verdade do Amapá é uma
homenagem à Francisco das
Chagas Bezerra, o Chaguinha,
cearense da cidade de
Quixadá, nascido em
15 de dezembro de 1907
“Chaguinha era um homem simples e sim-
boliza a história de muitos outros homens e
mulheres que exerceram um papel significa-
tivo na resistência política no Amapá”

Na infância pobre aprendeu a ler e escre- operação, foram soltos e enviados de volta à
ver lições de justiça e democracia, formadas a Macapá. Chaguinha influenciou, significativa-
partir de sua percepção das desigualdades so- mente, na formação política de inúmeros jo-
ciais vivenciadas no sertão nordestino, vindo vens estudantes que sonhavam com um mun-
daí seu envolvimento com a política. Veio para do mais livre, justo e igualitário. Morreu em
o norte, em 1933, morando em colônias agríco- Macapá, em 1996.
las de Castanhal, no Estado do Pará. A escolha de Chaguinha para nomear esta
Em 1949, Chaguinha mudou para Belém Comissão visou homenagear esse personagem
onde conheceu e se filiou ao Partido Comunista da história amapaense – ora apresentado como
Brasileiro, o PCB, legenda pela qual se candi- líder da resistência, ora como um simples ven-
datou a deputado estadual. Veio para o Ama- dedor de plantas que circulava pelas ruas de
pá, residindo inicialmente na colônia agrícola Macapá –, bem como incentivar a produção
do Matapi, e em 1951, mudou-se para Macapá, de estudos que contribuam para uma melhor
passando a atuar como vendedor autônomo de compreensão da importância histórica de sua
plantas, comercializadas em um carrinho de trajetória e da resistência no Território Fede-
mão nas ruas da cidade. Foi por conta de sua ral do Amapá, em tempo de autoritarismo e
militância no Partido Comunista que foi preso opressão. É Fato, que Chaguinha era um ho-
em 1964, por ocasião do golpe civil-militar, fi- mem simples e simboliza a história de muitos
cando encarcerado na Fortaleza de São José outros homens e mulheres, alguns anônimos,
de Macapá. Em 1973, voltou a ser preso pelos que exerceram um papel significativo na resis-
militares, acusado de subversão e comunismo, tência política em regiões como a do Território
durante a Operação Engasga, e encaminhado Federal do Amapá, administradas diretamente
juntamente com outros presos para Belém, no pela União, por um modelo de governabilida-
Pará. Após vinte dias, sem que os militares en- de que, desde sua implantação em 1943, pou-
contrassem provas de seus envolvimentos com co dialogou com as representações políticas e
os supostos crimes que desencadearam essa com os movimentos sociais.

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5
FRANCISCO DAS CHAGAS BEZERRA 7
RECONTANDO A HISTÓRIA RECONSTRUINDO A VERDADE 9
I PARTE: ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO 12
1.1. Grupos de trabalho 12
1.2. Termos de Pactuação 12
1.2.1. Demais Parcerias 13
1.3. Ações Realizadas 13
1.3.1. Participação no Programa Fala Juventude 17
1.4. Coleta de depoimentos 18
1.4.1. Audiências Públicas 18
1.4.2. Oitivas 18
II PARTE: DITADURA CIVIL-MILITAR NO AMAPÁ (1964-1988) 21
2.1. Histórico da ditadura civil-militar: especificidades locais 21
2.2. Estrutura de Repressão 22
2.3. Território Federal e Militarização 23
2.4. Intervenção em Sindicatos e Imprensa 25
2.5. Movimento Estudantil 28
2.6. Modos de Resistencia 34
2.7. Demissões de Militares e Servidores Públicos e de Cargos Políticos 40
2.8. Operação Engasga 49
2.9. Amapá e a Guerrilha do Araguaia 57
2.10. Mortos e desaparecidos 60
2.10.1. Os casos dos soldados Cabral e Ovídio 60
2.11. Lugares de memoria: locais de prisões e torturas 63
2.11.1. DIC – Delegacia de Investigação e Captura 63
2.11.2 Fortaleza de São de José de Macapá 65
III PROJETO “A MEMÓRIA VAI À ESCOLA” 68
IV PARTE: RECOMENDAÇÕES 74
REFERÊNCIAS 83

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RECONTANDO A HISTÓRIA
RECONSTRUINDO A VERDADE
A lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, os abusos do passado; responder às necessi-
que criou a Comissão Nacional da Verdade dades concretas das vítimas; contribuir com a
(CNV), estabeleceu, dentre outras coisas, como justiça e a responsabilidade; fazer um esboço
sua finalidade: “Esclarecer os casos de tortu- da responsabilidade institucional e recomendar
ras, mortes, desaparecimentos, ocultação de reformas; promover a reconciliação e reduzir os
5
cadáveres, identificando e tornando públicas conflitos sobre o passado”, a criação da CNV
as estruturas, os locais, as instituições e as cir- não transcorreu sem conflitos e foram neces-
cunstâncias relacionadas aos crimes contra os sários alguns anos de intensos debates até a
2
direitos humanos”. Como órgão temporário de nomeação de seus membros. Dentre os fatores
assessoramento ao governo, a CNV teve ainda que contribuíram para orientar as discussões,
“poderes para identificar e reconhecer todos os podemos destacar a publicação do livro-docu-
6
fatos ocorridos e as pessoas que desse processo mento Direito à Memória e à Verdade, de 2007 ;
participaram, tanto as que sofreram com as vio- a discussão em torno do Terceiro Plano Nacio-
7
lências como as que participaram de forma ativa nal de Direitos Humanos (PNDH 3), em 2009 ;
3
na promoção dessas violências”. Ao finalizar e a condenação do Brasil na Corte Interame-
oficialmente suas atividades, em 14 de dezem- ricana de Direitos Humanos (CIDH-OEA), em
4
bro de 2014; a CNV esforçou-se em apresentar novembro de 2010,8 decorrente de uma ação
um relatório contundente, que pudesse escla- movida por familiares de mortos e desapareci-
recer a sociedade com relação às graves viola- dos na Guerrilha do Araguaia que recomenda-
ções de direitos humanos e os crimes contra a va a investigação e punição dos responsáveis
humanidade perpetrados pelo Estado. por crimes de lesa-humanidade e crimes gra-
Vale destacar que no Brasil, último país na ves contra os direitos humanos.
América Latina a tomar parte no processo de A pesquisa histórica vem revelando, há
“descobrir, esclarecer e reconhecer formalmente pelo menos três décadas, muitos aspectos

2
BRASIL. Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da
Presidência da República. Art 1º.
3
(BRASIL). Cartilha elaborada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política São Paulo. Comissão da Verdade no Brasil.
São Paulo, 2011. Disponível em http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/. Acesso em 29 de
maio de 2013.
4 (BRASIL). BALANÇO DE ATIVIDADES: 1 ano de Comissão Nacional da Verdade. Comissão Nacional da Verdade. Brasília,

maio de 2013. Disponível em: www.cnv.gob.br. Acesso em: 15 de dezembro de 2015.


5
“To discover, clarify and formally acknowledge past abuses; to respond to specific needs of victims; to contribute to justice
and accountability; to outline institutional responsibility and recommend reforms; and to promote reconciliation and reduce
conflict over the past”. HAYNER, Priscilla. Unspeakable Truths: Confronting State Terror and Atrocities. New York/ London:
Routledge, 2002, p.24. Tradução livre.
6
BRASIL. Direito à verdade e à memória. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desa-
parecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.
7 BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Brasília: SDH/PR, 2010.


8
Com relação à sentença ler: WEICHERT, Marlon Alberto. “A Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
obrigação de instituir uma Comissão da Verdade”. In: GOMES, Luis Flavio; MAZZUOLI, Valerio (Org.). Crimes da Ditadura
Militar. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. Para o texto da sentença, cf. “Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha Do Araguaia”) vs. Brasil Sentença de 24 de Novembro de 2010”. Disponível
em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em 29/05/2013.
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desconhecidos a respeito do período da dita- sado recente e de sua incrível capacidade de


dura civil-militar brasileira, e auxiliando no não passar: “Esse passado que insiste em per-
esclarecimento das complexas bases de sus- durar de maneira não reconciliada no presente,
tentação do regime e dos diferentes graus de que se mantém como dor e tormento, esse pas-
11
participação e colaboração. Assim, consoli- sado não passa” .
dam-se estudos que abordam desde a crise Deve-se considerar que no Brasil, foi o
no governo Goulart e o debate sobre o golpe próprio governo militar que promulgou, em
de 1964, até a censura nos órgãos de comu- 1979, a Lei da Anistia, deixando como he-
nicação, as organizações de luta armada, o rança um texto que, em razão de sua redação
funcionamento do aparato repressivo, o papel ambígua e de uma conveniente interpretação
do judiciário, as cassações de parlamentares, da lei, acabou impedindo que fossem levados
as perseguições em meios estudantis e sindi- ao banco dos réus os crimes dos torturadores,
cais e as peculiaridades da transição no caso acabando por igualar, numa inclusão poste-
brasileiro.9 rior, de “terrorismo” de esquerda, crimes não
No entanto, os largos passos dados ao lon- diferenciados entre eles. A imposição do es-
go destas três décadas pela expressiva produ- quecimento pelo Estado, como gesto forçado
ção bibliográfica, fruto de rigorosa pesquisa de apagar e de ignorar, de fazer como se não
acadêmica, não encerraram de modo algum a tivesse acontecido tal crime, tal dor, tal trau-
questão. Numerosos debates permanecem em ma, tal ferida no passado, esse gesto vai justa-
aberto e resta muito para se investigar e conhe- mente na direção oposta das funções positivas
cer, especialmente após a ampliação da possi- do esquecer pela vida.
bilidade de acesso e a disponibilização de no- Dessa forma, as políticas de anistia, que
vos acervos. No Brasil, o acerto de contas com são práticas antigas e não foram nenhuma
o passado de ditadura (1964-1988) ainda está invenção dos militares brasileiros, servem, no
inconcluso. De acordo com um balanço produ- máximo, (e é isso a que, geralmente, preten-
zido, em 2008, por estudiosos, sobretudo, da dem), para tornar possível uma sobrevivência
área jurídica, em um Seminário na Universida- imediata à nação, mas não garantem uma co-
de de São Paulo, que gerou a publicação intitu- existência em comum duradoura. Portanto,
lada O que resta da ditadura10, a ditadura mili- para se sair deste ciclo, o que se deve fazer
tar brasileira encontrou uma maneira insidiosa é o esclarecimento do presente para se evitar
de se manter, de permanecer na estrutura ju- a repetição de novas formas de exclusão e de
rídica, nas práticas políticas, na violência coti- genocídio. No caso das comissões de verdade,
diana, em traumas sociais, que se fazem sentir elas não visam o esquecimento, pelo contrá-
mesmo depois de reconciliações “extorquidas”. rio, visam a narração precisa, mesmo que in-
A questão é muito mais profunda e requer um suportável dos acontecimentos, e sobre essa
permanente fórum de discussão sobre um pas- base comum de conhecimento, encontrar um

9 Como exemplo, podemos indicar uma pequena amostra da produção sobre o período: ALVES, Maria Helena Moreira. Es-

tado e oposição no Brasil (1964 - 1984). São Paulo: EDUSC, 2005; BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart: as lutas
sociais no Brasil (1961-1964). 7.ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; D´ARAUJO, Maria Celina e CAS-
TRO, Celso (Orgs.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000; DREIFUSS, René. 1964: a
conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981; FICO, Carlos. Além do golpe. Versões
e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004; GORENDER, Jacob. Combate nas trevas.
A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987;; REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura
militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São
Paulo: Ed. Unesp, 1993; ROLLEMBERG, DESCDenise; QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.) A construção social dos regimes
autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX (Brasil e América Latina). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.
10
TELES, Edson, SAFATLE, Vladimir (org.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010..
11
TELES; SAFATLE, Op. Cit., p.185.

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lugar para essas memórias, pois conforme tante dessas especificidades se refere à ressig-
Gagnebin “convém muito mais tentar acolher nificação que as ações e as normas preconiza-
essas lembranças indomáveis, encontrar um das pelo centro definidor do poder nacional vão
lugar para elas, tentar elaborá-las, em vez de adquirir em uma sociedade com as caracterís-
se esgotar na vã luta contra elas, na degenera- ticas que a amapaense apresentava, com uma
12
ção e no recalque” . cultura e mentalidade preponderantemente
Testemunhar implica lembrar. E lembrar tradicional, comunitária e mitológica, em ter-
nesse caso é superar o trauma. Na ausência mos pré-modernos. Isso explicaria porque a
de arquivos oficiais que documentassem as vio- Operação Engasga, deflagrada no Amapá, em
lências e atrocidades cometidas pelos agentes 1973, pelos militares, utilizava-se do imagi-
de repressão, a forma mais óbvia foi promover nário mitológico e da estranheza que tanto o
e incentivar os testemunhos dos sobreviventes comunismo quanto o progressismo causavam
e de seus descendentes, e assim, o testemu- na população, para disseminarem o medo e o
nho se transformou, a um só tempo, em peça terror e criarem formas de admoestações.
jurídica e documento histórico para recompor As pessoas presas por essa operação pas-
a verdade. Ao se estimular o testemunho, re- saram de “engasgadores” a “engasgados”.
constrói-se a verdade abafada pela ditadura e Muitas delas tiveram que carregar as marcas
aquilo que era esquecimento se transforma em provocadas pela repercussão imaginária do
memória, gerando um novo direito, um “direito “engasga-engasga” e da exclusão, pois tiveram
a memória”, dos perseguidos pelo Estado e si- que lidar com a aversão e o medo da própria
lenciados pela história oficial. sociedade. Nesse caso, vale lembrar que mui-
Tomando as questões acima indicadas, em tos desses presos foram taxados não só de
síntese, este relatório se propõe a contribuir comunistas, mas de elementos perigosos, ter-
com um movimento de retomada de estudos roristas, marginais, subversivos e promotores
críticos sobre a ditadura, com a firme convic- da desordem social. Talvez a explicação para
ção de que a ciência histórica e o conhecimento o surgimento do mito dos “engasgadores” do
institucional podem intervir nas discussões e Amapá esteja nos fios que teceram a trajetória
transformações do presente. Entende-se que já de Estados que nasceram de experiências de
existem numerosos trabalhos de pesquisa de Territórios Federais dentro da história republi-
qualidade sobre os temas. Um fato a se lamen- cana brasileira.
tar é que este conhecimento tenha ficado res- A proposta aqui, é que todo esse conhe-
trito aos círculos acadêmicos, sem conseguir cimento produzido pelas investigações dessa
penetração suficiente no debate mais amplo pesquisa possa ter alcance e visibilidade junto
junto à sociedade brasileira, e sem alcançar a à sociedade, colocando-se assim a serviço da
construção de uma “cultura da não repetição” consolidação das instituições democráticas e do
ou “cultura do Nunca Mais”. resguardo dos direitos humanos no país. O pre-
A pesquisa sobre esse período em âmbito sente relatório, portanto, com base na pesquisa
local, ainda tem muito a avançar dada a es- documental e nos depoimentos, tem a intenção
cassa produção historiográfica sobre o tema na imediata de produzir conhecimento histórico e
região, mas já é consenso entre um tímido gru- de aprofundar o debate acerca deste período,
po de pesquisadores que a ditadura no Amapá desvendando suas peculiaridades e especifici-
atuou de forma muito particular comparada dades, e assim contribuir para o entendimento
à realidade dos principais centros urbanos do de que a ditadura brasileira, ainda está longe
país. Para Dorival Santos (2001), a mais impor- de ser compreendida em sua totalidade.

12
TELES; SAFATLE, Op. Cit., p.183.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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I PARTE
ORGANIZAÇÃO E
FUNCIONAMENTO
O Regimento Interno, elaborado durante a GT 3: Comunicação Social e Gestão da In-
realização da Oficina de Planejamento Estraté- formação
gico da CEV-AP e aprovado por seus membros, - Acompanhar as atividades da comissão;
foi publicado pela Resolução nº 001/13 e di- - Divulgar as ações e eventos da comissão;
vulgado no Diário Oficial nº 5.613, de 13 de de- - Acompanhar e documentar o registro dos
zembro de 2013. A dinâmica de funcionamento depoimentos.
da CEV-AP foi estruturada, inicialmente, em
quatro Grupos de Trabalho, no entanto, ao lon- GT 4: Realização de Oitivas
go de sua trajetória, devido à necessidade de - Criar ambiente propício e adequado (in-
compatibilizar suas demandas, os grupos aca- fraestrutura e logística) para oitivas (públicas
baram por se fundir em um só sistema opera- e reservadas) da sociedade referente ao período
cional, descritos a seguir com seus respectivos da ditadura;
objetivos. Os membros da Comissão Estadual - Estabelecer normativas (princípios e valo-
da Verdade do Amapá se reuniam a cada 15 res, bases legais, objetivos, metodologia e pro-
dias, para deliberar sobre o seu funcionamento duto) para realização das oitivas e o tratamen-
político-administrativo, visando garantir o de- to das informações, respeitando os princípios
senvolvimento de suas atribuições e atividades. constitucionais da liberdade de expressão e pu-
blicidade e a Lei de acesso à informação
1.1. Grupos de trabalho - Definir agenda de realização das oitivas.
GT 1: Pesquisa, geração e sistematização
de informações 1.2. Termos de Pactuação
- Intercambiar informações com institui- A CEV-AP assinou Termos de Cooperação
ções e espaços de pesquisa; Técnica com quatro instituições, cujo objetivo
- Catalogar e digitalizar documentos e re- foi promover a colaboração mútua na efetiva-
gistros; ção do direito à memória, à verdade histórica e
- Levantar bibliografia, acervos de áudio, à reconciliação nacional, listadas a seguir:
vídeo e fotos; - A Comissão Nacional da Verdade/ Presi-
- Preparar memoriais para subsidiar as oi- dência da República – essa parceria resultou
tivas; nas diretrizes e orientações que nortearam o
- Apontar potenciais depoentes, partícipes desenvolvimento político-administrativo das
e vítimas dos crimes. ações da CEV-AP, bem como, em participações
recíprocas em eventos realizados pelas duas
GT 2: Relações com a Sociedade Civil e Comissões;
instituições - A Comissão de Anistia/ Ministério da Jus-
- Fomentar as relações com as instituições tiça – parceria que contribuiu nas orientações
pactuadas, sociedade civil e outras instituições fornecidas aos depoentes quanto aos processos
afins; de anistia, bem como, em participações signifi-
- Inserir as atividades da CEV-AP nos even- cativas nos eventos da CEV-AP e na doação de
tos públicos; diversas publicações
- Visitar as instituições a fim de prospectar - A Ordem dos Advogados do Brasil - Seccio-
elementos necessários ao desenvolvimento das nal Amapá (OAB-AP) – atuou de forma bastan-
atividades da CEV. te qualificada em diversas ações desenvolvidas

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
13

pela CEV-AP e 1.3. Ações Realizadas


contribuiu, Exercício de 2013
também, Os trabalhos da Comissão
com a dis- Estadual da Verdade do Amapá
ponibili- iniciaram em agosto de 2013, com
zação de a nomeação da Secretaria Exe-
seu es- cutiva, cuja primeira ação foi
paço físico para a realização de diversas mediar a indicação da Fortale-
ações; za de São José de Macapá como
- A Universidade Federal do Amapá (UNI- LOCAL DE PRESERVAÇÃO DA
FAP) – colaborou com a cessão de docentes para MEMÓRIA, junto ao Instituto
compor o Colegiado da CEV-AP e para atuar no Brasileiro de Museus-IBRAM.
projeto “A Memória Vai à Escola”. Ainda foram Em setembro a CEV-AP foi con-
disponibilizados estagiários do curso de histó- vida- da para participar de um encon-
ria para o desenvolvimento de atividades com- tro reali- zado pela Comissão Nacional da
plementares, tais como: acompanhar e trans- Verdade-CNV, em São Paulo, com o objetivo
crever as oitivas, organizar acervo documental de promover uma socialização dos trabalhos
e pesquisar dados biográficos. desenvolvidos pela CNV e pelas comissões es-
taduais. A CEV- AP utilizou-se dessas orienta-
1.2.1. Demais Parcerias ções para auxiliar na organização e no plane-
- O Ministério Público Federal do Amapá – jamento de suas ações.
participou diretamente das Oitivas relaciona- No período de 30 de outubro a 01 de no-
das à “Guerrilha do Araguaia”; vembro de 2013, a CEV-AP participou da Feira
- A Secretaria Extraordinária da Juventude do Livro do Amapá, com o evento FLAP-Memó-
– na parceria com a realização do Projeto Fala ria e Verdade, através da realização de três Pai-
Juventude; néis: O Amapá na época da Ditadura; A Amazô-
- As escolas de ensino, públicas e privadas nia na época da Ditadura; e O Brasil na época
– parceiras nos Projetos “A ““A Memória Vai à da Ditadura, durante o qual aconteceram lan-
Escola”””, “Cinema pela Verdade” e “Mostra de çamentos de livros e noites de autógrafos de
Direitos Humanos no Hemisfério Sul; publicações relativas à ditadura civil-militar
- A Escola de Administração Pública do brasileira. A FLAP Memória e Verdade, repre-
Amapá (EAP) – parceira na logística das ações sentou um marco na história dessa comissão,
da CEV-AP. pois foi durante sua realização que surgiu a
ideia do Projeto Memória Vai Escola.

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


14
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

Feira do Livro do Amapá – FLAP, Memória e Verdade, 2013

Acervo Comissão Estadual da Verdade do Amapá


CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
15

No dia 10 de dezembro de 2013, a comis- parceria com o Ministério da Cultura.


são promoveu um evento rememorativo dos 65
Anos de Declaração Universal dos Direitos Hu- Exercício de 2014
manos. Na ocasião foram realizadas: a Audiên- A CEV-AP participou dos seminários Me-
cia Pública, com o ex-prefeito de Amapá, Leonel mória e Compromisso, realizados pela Confe-
Nascimento, a Palestra: 65 Anos de Declaração deração Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Universal dos Direitos Humanos, e a exibição nas cidades de Belém (PA), Recife (PE), São
do documentário Anistia 30 anos, com alunos Paulo (SP) e Porto Alegre (RS). Em 28 de março
do ensino fundamental e médio da Escola Esta- foi realizada a segunda Audiência Pública com
dual Nanci Nina da Costa. E ainda neste mês, a temática Violação dos Direitos Humanos co-
a CEV-AP participou da 8º Mostra de Cinema metidos na época da ditadura civil-militar, com
e Direitos Humanos na América do Sul promo- o casal Capiberibe, Janete e João, em parceria
vida pela Secretaria de Direitos Humanos, em com a OAB-AP.

Seminário Memória e Compromisso – Belém/PA, dezembro de 2014

Acervo Comissão Estadual da Verdade do Amapá

Apesar das palestras nas escolas terem reunião da Comissão Nacional da Verdade -
iniciado ainda em 2013, foi somente no mês CNV, em São Paulo-SP, aproveitando para re-
de maio de 2014, que foi lançado oficialmente alizar pesquisas no acervo do Arquivo Edgard
o Projeto A ““A Memória Vai à Escola””, com Leuenroth da Universidade Estadual de Cam-
ações mais sistematizadas, realizadas em par- pinas (UNICAMP), onde coletou documentos
ceria com a Secretaria de Estado da Educação importantes relacionados a atuação empresa-
(SEED), com Instituições de Ensino Superior rial na região e a organização do Partido Comu-
Públicas e Privadas. nista no período da ditadura no Amapá.
Nesse ano ainda, a CEV-AP participou de Também ocorreram participações na Ca-

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
16

ravana Cinema pela Verdade, da Comissão de Memorial da Verdade do Conjunto Habitacio-


Anistia/ Ministério da Justiça e da 9º Mostra nal Macapaba, resultado da parceria entre os
de Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério governos federal e estadual, com a montagem
Sul, da Secretaria de Direitos Humanos e do de um Memorial que relembrasse 12 (doze) per-
Ministério da Cultura, ambos tinham como ob- sonalidades locais e nacionais, vítimas da dita-
jetivo promover o debate sobre filmes ambien- dura, que foram escolhidas para dar nomes às
tados no período da ditadura. ruas e avenidas do conjunto.
A CEV-AP também coordenou o Projeto

Conjunto Habitacional Macapaba - Projeto Memorial da Verdade

Acervo Comissão Estadual da Verdade do Amapá

Finalizando esse ano, a Comissão da Ver- pá- UNIFAP, compondo a mesa O compromisso
dade, participou em dezembro do I Encontro com a verdade, justiça e memória: resultados
Estadual da ANPUH-AP (Associação Nacional preliminares da Comissão Estadual da Verda-
de História), na Universidade Federal do Ama- de do Amapá.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
17
I Encontro Estadual da ANPUH/AP – UNIFAP, dezembro de 2014

Acervo Comissão Estadual da Verdade do Amapá

Exercício de 2015 Exercício de 2017


A CEV-AP se dedicou ao desenvolvimento Nesse exercício, a CEV-AP prosseguiu com
das atividades de sistematização de acervo bi- a coleta e transcrição de oitivas e concluiu os
bliográfico, catalogação, digitalização e edição trabalhos de redação e publicização do relató-
da documentação coletada, bem como, realiza- rio final. Concomitantemente prosseguiu com
ção e transcrição de oitivas e a estruturação e as tratativas de parceria com o Ministério Pú-
elaboração do Relatório Final. blico Federal-MPF, que poderá se concretizar
com a assinatura de um Termo de Cooperação
Exercício de 2016 Técnica, cujo objeto é a criação de um centro
No exercício de 2016, deu-se continuidade de documentação digital de acesso público na
a parceria com a UNIFAP, por meio do Termo rede mundial de computadores, com acervos
de Cooperação Técnica nº 004/2013, inserin- da Comissão Nacional da Verdade e das comis-
do em suas ações a participação de estagiários. sões estaduais, além de outros conjuntos do-
Também foi dado prosseguimento à organiza- cumentais que estejam relacionados ao tema
ção do acervo bibliográfico da comissão, com da justiça de transição no Brasil.
atividades de catalogação, digitalização, trans-
crição e edição da documentação coletada em 1.3.1 Participação no Programa
Instituições e dos depoentes. A CEV também Fala Juventude
participou do Simpósio Temático “História e Atividade desenvolvida semanalmente na
Ditaduras: diálogos sobre democracia e auto- programação da Rádio Difusora de Macapá
ritarismo”, organizados pelos professores Dr. (RDM), emissora oficial do governo do Estado,
Dorival da Costa dos Santos (UNIFAP/CEV no Programa “Fala Juventude”, da Secretaria
-AP), Dra. Júlia Monnerat Barbosa (UNIFAP/ Extraordinária da Juventude, com objetivo de
CEV-AP) e Dra. Maura Leal da Silva (UNIFAP/ levar aos ouvintes a temática da ditadura, dos
CEV-AP), durante o “II Encontro Estadual da direitos humanos e de temas afins, com a par-
ANPUH-AP: Culturas, trabalho e sociabilidades ticipação de convidados para debater a pauta
na Amazônia: das especificidades locais aos de- proposta para cada programa. Foram realiza-
safios transnacionais”, no período de 06 a 09 das dezesseis intervenções, que aconteceram
de dezembro de 2016, realizado na Universida- tanto no estúdio da RDM quanto em gravações
de Federal do Amapá. externas, durante a realização do Projeto “A ““A
Memória Vai à Escola”””. Os programas con-
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
18

templaram temas como: a música e a ditadu- 1.4.2 Oitivas


ra no Brasil; a censura e a ditadura brasileira; O processo de escuta dos depoentes teve
futebol e a ditadura; os governos ditatoriais no por objetivo coletar testemunhos de homens e
Amapá; os reflexos da ditadura na Educação; mulheres que vivenciaram, direta ou indireta-
Guerrilha no Araguaia; o golpe civil-militar, mente, o período da ditadura civil-militar, so-
dentre outros. bretudo em nível local, sem jamais perder de
vista sua dimensão nacional. Ao todo foram
1.4. Coleta de depoimentos coletados trinta e oito depoimentos, que estão
1.4.1. Audiências Públicas disponíveis, tendo em vista suas devidas cor-
As duas Audiências Públicas que foram re- reções e autorizações, para consulta no site
alizadas, com a parceria da OAB-AP, objetiva- da Comissão Estadual da Verdade do Amapá:
ram coletar publicamente depoimentos de ví- http://www.cev.ap.gov.br.
timas da ditadura, que notadamente sofreram A metodologia utilizada acompanhou, res-
violação aos seus direitos durante o regime mi- peitando as devidas peculiaridades, as orienta-
litar brasileiro, bem como, buscou dar publi- ções estabelecidas pela Comissão Nacional da
cidade e informar à sociedade sobre o funcio- Verdade, que compreendeu esses testemunhos
namento e relevância das ações desenvolvidas como meios essenciais para alcançar os objeti-
pela CEV-AP. vos propostos, “constituindo-se tanto em fonte
O público presente nas duas Audiências para o esclarecimento circunstanciado de casos
Públicas foi formado, na sua maioria, por estu- específicos, como para a reconstrução histórica
dantes de ensino médio e superior e por fami- do contexto e das práticas do regime do perío-
13
liares dos depoentes. A orientação metodológica do” . Na ausência de arquivos e documentos
buscou seguir as diretrizes da Comissão Nacio- oficiais, estimular o testemunho das vítimas e
nal da Verdade, adaptada ao contexto local. sobreviventes foram fundamentais para se re-
A primeira audiência foi o testemunho de Le- compor a verdade silenciada pela ditadura, e
onel Nascimento, ocorrida no dia 10 de dezem- ao mesmo tempo servindo como peças jurídi-
bro de 2013, conduzida pela Comissão Nacional cas no processo de reparação das vítimas.
da Verdade, durante o evento “65 Anos da De- Assim, buscou-se colher tanto depoimen-
claração Universal dos Direitos Humanos’’. Le- tos de testemunhas, de vítimas e de seus fa-
onel Nascimento foi ex-prefeito do município do miliares, como de agentes e colaboradores do
Amapá, e teve seu mandato cassado em 1975, regime. No entanto, no caso desses últimos o
acusado de ter mandado atear fogo no prédio processo de localização e convencimento para
da prefeitura de Amapá. Contudo, segundo o a participação nas oitivas foi mais difícil, sendo
ex-prefeito a acusação foi injusta e inverídica, necessário que se recorresse à intervenção do
tendo sido utilizada como perseguição política. Ministério Público Federal. No entanto, não se
A segunda Audiência, com os testemunhos obteve o retorno no sentido de conseguir a con-
da deputada federal Janete Capiberibe (PSB vocação de vários dos agentes da repressão, e
-AP) e do Senador João Capiberibe (PSB-AP), as entrevistas limitaram-se a “pracinhas” que
aconteceu no dia 28 de março de 2014, con- serviram na Guerrilha do Araguaia e a agentes
duzido pela Comissão Estadual da Verdade do da Guarda Territorial do extinto Território Fe-
Amapá, durante o evento “50 anos do Golpe deral do Amapá.
Militar”. O casal Capiberibe militou na Aliança Em razão da forma como se estruturou o
Libertadora Nacional (ALN), foi preso e tortu- regime militar e sua resistência no Amapá, os
rado no Pará durante o regime militar, quando depoimentos foram agrupados por temas ou fa-
tentavam implantar um grupo de guerrilha na tos específicos, dentre eles: Operação Engasga,
região. Após a prisão conseguiram fugir, exi- Guerrilha do Araguaia, Modos de Resistência
lando-se em países como Bolívia, Peru, Chile, e Perseguição Política. Os depoimentos foram
Canadá e Moçambique, até a anistia em 1979, colhidos em sua maioria de forma individual e
quando retornaram ao Brasil. reservada, e raramente em forma de audiência

13
(BRASIL). BALANÇO DE ATIVIDADES: 1 ano de Comissão Nacional da Verdade. Comissão Nacional da Verdade. Brasília,
maio de 2013. Disponível em: www.cnv.gov.br. Acesso em: 15 de dezembro de 2015.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
19
QUADRO DAS OITIVAS
pública, como já exposto.
As oitivas seguiram um
roteiro previamente estabele-
cido que pretendia abarcar a
trajetória individual dos entre-
vistados e sua relação com a
ditadura, quer na perspectiva
da resistência, quer na pers-
pectiva de agente do regime.
Para tanto, em um primeiro
momento, foi solicitado que o
entrevistado se apresentasse
e, posteriormente, narrasse
os fatos que considerasse re-
levantes sobre o período. Este
modelo de entrevistas resultou
em uma certa disparidade en-
tre o volume de informações
pessoais fornecidas por cada
entrevistado ou entrevistada,
e isto torna-se visível neste re-
latório, que apresenta dados
biográficos diferenciados, uns
mais completos que outros.
Assim, optou-se por seguir as
linhas narrativas escolhidas
pelos depoentes.
Reconstruir a verdade a
partir de fragmentos de memó-
rias tidas como “traumatizan-
tes” requer um cuidado para
não expor os depoentes a si-
tuações delicadas. Trata-se de
uma tarefa complexa, pois lida
com emoções de pessoas que
ainda sofrem ao expor o que
passaram nas prisões e tortu-
ras. Durante as oitivas, os tes-
temunhos foram cercados de
grande emoção, e não raro os
homens e mulheres choraram
durante seus relatos, ao revive-
rem memórias de um passado
recente doloroso que insiste em
não passar, afinal “nós somos o
que lembramos” 14e “também so-
15
mos o que esquecemos” .

14
BOBBIO, Norberto. O tempo da memória - De senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
15
IZQUIERDO, Iván. “A mente humana”. MultiCiência”. 3, out., de 2004. Disponível em https://www.multiciencia.uni-
camp.br/artigos_03/a_01_.pdf. Acesso em 28 de dezembro de 2015.

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


20
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

DEPOENTES

FOTOS ACERVO COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ


CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
21

II PARTE
DITADURA CIVIL-MILITAR
NO AMAPÁ (1964-1988)
2.1. Histórico da ditadura civil-militar: portanto, neste contexto social e cultural que
especificidades locais se instalou e evoluiu o regime ditatorial civil-
militar no Amapá.
Para a compreensão das especificidades Conforme dados dos Anuários Estatísti-
da ditadura civil-militar no Amapá precisa-se co do Território Federal do Amapá – Anos XII
levar em consideração o contexto sociocultu- (1963); XXIII (1974) e XXIV (1975), do Institu-
ral em que ela operou. Dito de outro modo, é to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
preciso entender como a ditadura militar bra- no início da década de 60, o Amapá possuía
sileira, vigente entre 1964 e 1988, funcionou uma população de 68.889 habitantes, sendo
em uma sociedade de feições sociais e antro- que aproximadamente 40% concentrava-se na
pológicas tradicionais, com uma população capital, Macapá (27.585 habitantes). Vê-se logo
numericamente pequena, onde o anonimato que ainda era uma população predominante-
era impossível e as relações de vizinhança e mente rural, com apenas dezessete núcleos ur-
de afeto eram onipresentes e estruturantes da banos, sendo que destes – excetuando Macapá
vida em sociedade. – somente dois possuíam população pouco aci-
O Amapá possui enormes dificuldades de ma de mil habitantes17; o restante estava distri-
integrar-se ao contexto nacional, em virtude, buído pelos 140.276 Km², o que significa algo
principalmente, de certa peculiaridade geográ- em torno de 3,6 Km² para cada pessoa, o que
fica que o transformou em uma “quase-ilha”: revela uma urbanização da capital, mas ain-
deslocado espacialmente do restante do país da assim um tanto quanto acanhada, quando
pela gigantesca foz do Amazonas e agregado ao confrontada com outros dados estatísticos. Por
Platô das Guianas, como estivesse “de costas” exemplo, havia na cidade 5.532 prédios; destes
para o Brasil. Neste sentido, tem uma vocação apenas 794 eram abastecidos com água trata-
e uma facilidade de comunicação e relaciona- da, 725 com esgoto e 4.512 possuíam energia
mentos mais estreitos com os países do Platô elétrica. Para atender eventuais turistas e visi-
das Guianas e do Caribe do que com outras tantes existiam apenas um hotel e duas pen-
unidades federativas. Neste aspecto, destacava- sões, com capacidade total para 235 hóspedes.
se uma exceção: o Estado do Pará, que agia em Em termos econômicos, desde meados da
relação ao Amapá, como um filtro das questões década de 50, o Amapá já conhecia uma das
nacionais, intermediando os temas brasileiros pontas de lança do capitalismo industrial: ins-
comuns que impactavam a sociedade local. talara-se na Serra do Navio a exploração em
Tal peculiaridade geográfica e cultural esti- larga escala do minério de manganês, quase
mulou, entre as décadas de 40 e 70 do século em sua totalidade exportada para Europa, Es-
passado, a produção de valores tradicionais e tados Unidos e Japão. Porém, em 1960, esse
comunitários16, sobretudo, em uma sociedade o empreendimento empregava somente 152
que, até meados da década de setenta, desco- operários. O que sustentava a vida da imensa
nhecia – à exceção do rádio – qualquer um dos maioria da população era a economia extrativa
grandes meios de comunicação de massa. É, de subsistência. Mesmo o funcionalismo pú-

16
Fala-se aqui em cultura tradicional, centrada na comunidade e na permanência da tradição em contraposição a uma
cultura modernista centrada na inconstância, no individualismo e na ideia de progresso.
17
A Vila de Clevelândia, no Oiapoque e a cidade de Amapá.

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
22

blico que, a partir da década de 80 do século gado, ou mesmo preso cautelarmente, em razão
passado passaria a ser a principal força de tra- de motivação política. Mas, como é evidenciado
balho no Amapá, era insignificante na década neste Relatório, isso não significa que os apare-
de 60 diante da grande maioria de trabalhado- lhos de Estado amapaense tivessem um caráter
res rurais18. mais democrático ou menos ditatorial do que no
Neste contexto, destaca-se uma cultura e resto do Brasil. Ao contrário, estes dados reve-
um imaginário essencialmente fantástico/mi- lam que as ações de repressão no Amapá, como
tológico, reminiscência da cultura indígena, em muitos outros cantos deste país, desde o seu
onde seres e histórias mágicas eram elementos início, ocorreram à margem, à sombra e contra
presentes no cotidiano da sociedade. Mesmo a ordem legal. Era basicamente este tipo de so-
nos núcleos populacionais mais urbanizados, ciedade que a ditadura civil-militar encontrou
pode-se afirmar que esta era ainda uma comu- no Amapá.
nidade, onde a tradição tem um papel integra-
dor decisivo e resistente a novas ideias e valo- 2.2. Estrutura de Repressão
res. Uma sociedade onde a estabilidade, a vida Evidentemente que não é possível compre-
pacata, as relações de afeto e presença, o cole- ender a estrutura repressiva da ditadura civil-
tivismo e a imaginação fantástica predomina- militar no Amapá desconectada do plano na-
vam, ou como descreveu o escritor e músico Zé cional. As Forças Armadas, entre 1964 e 1968,
19
Miguel , o Amapá desta época, é um lugar onde: aumentaram em 160%, passando de 114 mil
para mais de 300 mil militares. Seu objetivo
[...] a canoa balança bem devagar. A maré mudou, o novo foco era o combate ao “inimigo
vazou, encheu é preamar. O Zé vai pro mato interno”. O governo militarizou as polícias es-
apanhar açaí, Maria pra roça vai capinar. A taduais e montou a estrutura de espionagem
vida daqui é assim devagar, precisa mais e repressão. O primeiro órgão a ser criado foi o
nada não pra atrapaiar, basta o céu, o sol, Serviço Nacional de Informações (SNI) que, de
o rio e o ar e um pirão de açaí com tamuatá. acordo com estimativas de alguns autores, che-
Que vida boa sumano! Nós nem tem que fa- gou a ter à sua disposição 300 mil informantes
zer planos e assim vão passando os anos. e um milhão de colaboradores, tendo fichado
Êta! que vida boa! mais de 250 mil pessoas.21
Cada ministério ganhou a sua Divisão de
Uma sociedade com baixo índice de crimi- Segurança e Informação (DSI). Nos demais ór-
nalidade. Para se ter uma ideia, em 1962 havia gãos públicos funcionava a Assessoria de Se-
na Delegacia de Polícia, localizada no bairro do gurança e Informação (ASI). O Departamento
Beirol, apenas 14 presos, sendo 10 por homicí- de Ordem Política e Social (DOPS), existente
dio, e somente uma mulher. Doze anos depois, nos Estados e que já fora usado na ditadura de
havia 18 presos, 09 por homicídio e novamen- Getúlio Vargas, transformou-se em centros de
te apenas uma mulher. Enquanto a população tortura. Exército, Marinha e Aeronáutica tam-
crescera 40% no mesmo período – de 68.889 bém formaram seus centros de repressão e tor-
habitantes, em 1960, para 114.359, em 1974 –, tura, respectivamente, Centro de Informações
20
a criminalidade crescera apenas em torno 28% . do Exército (CIE), Centro de Informações da
Ressalte-se o fato de que entre 1964 e 1974 não Marinha (CENIMAR) e Centro de Informações
houve, no Presídio de Macapá, sequer um de- da Aeronáutica (CISA).
tento provisório ou com pena transitada em jul- Surgem, em 1970, no governo Médici, os

18
Havia 172 funcionários públicos, servidores dos municípios e do Território.
19 GOMES, Joãozinho e MIGUEL, Zé. Vida Boa. In: MIGUEL, Zé. Vida Boa. Belém, 1991. (CD).
20
Fonte: Anuário Estatístico do Território Federal do Amapá – Ano XII / 1963 / Serviço de Geografia e Estatística / Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística.
21 D’ARAÚJO, Maria Celina & SOARES, Gláucio A.D. (orgs). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Ja-
neiro: FGV Editora, 1994.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
23

DOI-CODIs (Destacamento de Operações e In- no Amapá, ao contrário do CIE que teve intensa
formações/Centro de Operações e Defesa Inter- atuação. De todo modo era no âmbito policial
na) que funcionavam em cada uma das regiões local que a repressão realmente se efetivava,
militares do país, subordinados ao Comando sobretudo, a partir da Secretaria de Seguran-
Regional do Exército. Com o apoio de empre- ça, dentro da qual se destacaram, no auge da
sários, foi criada, em São Paulo, a Operação repressão, personagens como o secretário coro-
Bandeirante (OBAN), que reunia representan- nel Índio Machado, o delegado Oscar22, delegado
tes do II Exército, da Aeronáutica, da Marinha, Pedro da Costa Uchôa, coronel Josemir Men-
do Departamento da Polícia Federal (DPF), do des de Souza e o capitão Fontenelle.
Serviço Nacional de Informações (SNI), da Se- O itinerário da angústia, ou seja, o caminho
cretaria de Segurança Pública (SSP), do Depar- percorrido pelos presos políticos no Amapá, de
tamento de Ordem Política e Social (Dops), da certo modo atesta a articulação entre órgãos
Guarda Civil e da Força Pública do Estado de militares e civis na efetivação da repressão: pri-
São Paulo (FPESP). meiro eles iam para o quartel do exército, para
As mudanças ocorridas no DOPS, após o a central de polícia ou para a polícia federal e
golpe de 1964, visavam adequá-lo à doutrina de daí diretamente para a Fortaleza de São José
Segurança Nacional e ao processo de militariza- de Macapá, e alguns eram enviados em aviões
ção da sociedade. Também visavam ajustá-lo ao das Forças Armadas para encarceramento em
aprimoramento do aparato repressivo da dita- Belém-PA, fato que atesta o funcionamento em
dura brasileira. Para se aperfeiçoarem no com- rede do sistema de repressão, no caso, o Amapá
bate aos “subversivos”, membros da Secretaria articulado e subordinado ao aparato repressivo
de Segurança eram enviados a outros Estados e da 8ª Região Militar, sediada em Belém-PA.
até outros países, como os Estados Unidos para
treinamentos específicos de repressão. 2.3. Território Federal
Os presos políticos no Amapá eram envia- e Militarização
dos para vários locais utilizados como prisão Nos vinte e um anos de ditadura (1964
política: a Delegacia do Bairro do Trem, celas - 1988) a militarização da sociedade foi tão
do Palácio do Setentrião e da Polícia Federal, acentuada que ainda hoje, passados mais de
o Quartel do Exército, a Prisão do Beirol, e, cinquenta anos, deixou marcas em setores im-
fundamentalmente, a Central de Polícia, a De- portantes da vida nacional. A ideia de que seria
23
legacia de Investigação e Captura (DIC) e a impossível a existência da ditadura sem apoio
Fortaleza de São José de Macapá, que eram os social, tem levado muitos estudiosos a procla-
locais de prisão e tortura durante a ditadura. mar que não teria havido só uma ditadura mi-
A Guarda Territorial, até 1975, encarregava-se litar, mas sim uma ditadura civil-militar, con-
da repressão às infrações de rotina e o DOPS, cepção com a qual essa comissão compartilha.
apoiado pela Polícia Federal, responsabiliza- A partir de então, a militarização da socie-
va-se pelas infrações de natureza política. Não dade brasileira ficou evidente não apenas na
custa lembrar que a repressão no país se dava ocupação da presidência e de vários ministérios
através do Sistema de Segurança Interna (SIS- por militares, como também, estava presente
SEGIN), que articulava todas as forças policiais nas divisões de segurança e informação de ór-
e militares. gãos públicos, que faziam o crivo dos funcioná-
A funcionalidade deste sistema começa rios civis de cargos de confiança e controlavam
pela informação (SNI), articula-se com os três as políticas setoriais. As escolhas dos governa-
órgãos militares (CIE, CISA e CENIMAR), e to- dores dos Estados e Territórios Federais depen-
dos atuavam integrados com o DOPS. O CISA e diam dos comandos das regiões militares e dos
o CENIMAR não tiveram atividades conhecidas oficiais que serviam à presidência. As polícias

22
Nesse prédio, atualmente funciona o museu Joaquim Caetano.
23Nos depoimentos os entrevistados se referem ao delegado Oscar, também como “Calo Seco”, mas sabem precisar seu
sobrenome
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
24

militares estaduais eram controladas por um sencadeou uma campanha persecutória indis-
departamento do Ministério da Guerra, e co- criminada, gerando um significativo estado de
mandadas por oficiais generais ou coronéis do apreensão e medo na população. Servidores pú-
exército. No caso do Amapá, até 1975, a função blicos foram punidos, demitidos, admoestados
policial foi exercida pela Guarda Territorial, sob sem a menor formalidade administrativa, sindi-
o comando direto dos governadores. Portan- calistas foram destituídos e detidos, estudantes
to, o Amapá não estava a margem dessa cul- penalizados e expulsos de colégios, opositores
tura. Pelo contrário, a própria transformação investigados e ameaçados e militantes petebis-
em Território Federal, em 1943, mais de duas tas e comunistas vigiados e presos.
décadas antes da implantação da ditadura ci- Configurava-se desde os primeiros momen-
vil-militar, já contava com um controle direto tos do golpe civil-militar o que viria a tornar-
das forças armadas sobre a administração ter- se prática estrutural da ditadura: o terror de
ritorial, uma vez que a região era considerada Estado, entendido aqui, como a substituição
como área estratégica de defesa nacional e ad- das chamadas liberdades políticas pela prática
ministrada diretamente pela União. regular de ações estatais contrárias ao sistema
No período territorial vê-se essa militari- legal vigente, materialmente coercitivas e ideo-
zação da sociedade amapaense, sobretudo, no lógicas que visavam atentar diretamente contra
controle governamental da população e na su- a integridade física e psicológica das pessoas e
bordinação de todas as instituições civis, ex- grupamentos sociais, objetivando aliená-los da
pressas paradigmaticamente na militarização participação política pelo medo. A nota oficial
da educação, seja na sua forma, seja na estru- do governo do Território Federal do Amapá, de
tura curricular. No que tange a forma, a dis- 08 de abril de 1964, não deixa dúvidas quanto
ciplina militar se expressava na educação na ao seu caráter intimidatório e discricionário:
ordem unida à entrada das aulas, na superva-
lorização dos símbolos patrióticos (hinos, des- Infelizmente, as investigações policiais deter-
files, bandeiras, rituais), que chegavam ao seu minadas pelo governo, desde o início do mo-
ápice nas festas cívicas de 07 e 13 de setembro vimento de restauração democrática, revela-
(data da criação do T.F.A.) que mobilizavam ram a existência de um grupo de comunistas
todo o Território Federal. Na estrutura curri- no Amapá, infiltrados em diversos setores.
cular os métodos pedagógicos expressavam o Pessoas comprometidas com os agitadores,
autoritarismo, e os conteúdos programáticos seus protetores e mentores vêm sendo apon-
das disciplinas escolares eram impregnados tados no decorrer das investigações.24
com valores cívicos, patrióticos e militares.
Desde os primeiros momentos do golpe ci- Essa mesma nota oficial revela as tramas
vil-militar a elite política local, sob a lideran- ditatoriais entre o comando do golpe no Estado
ça do governador Terêncio Porto (novembro no Pará e o no Território Federal do Amapá, com
de 1962 a abril de 1964), adotou a ideologia e o intuito de repressão a estudantes universitá-
a prática política do novo regime. Já entre os rios amapaenses domiciliados em Belém, que
dias 03 e 07 de abril de 1964, medidas repres- eram investigados, perseguidos e presos, por
sivas de toda ordem foram efetuadas: batidas causa da militância no movimento estudantil.
policiais pela cidade de Macapá, devassa de
órgãos públicos e detenção arbitrária de cida- Em Belém, um trabalho infame, já desmas-
dãos, acusados, em sua maioria, de “militân- carado e que visava perturbar a tranquilida-
cia comunista”. de da família amapaense, desorganizar os
Em concomitância com a prisão de “adep- serviços públicos, desmoralizar as autorida-
tos do comunismo”, o governo territorial de- des, retardar o pagamento dos funcionários

24 Amapá, Macapá, 08 de abril de 1964.


CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
25

e substituir, abruptamente, o governador, sa. Tal estratégia só foi bem-sucedida em cer-


estava em marcha. Seus autores, sobeja- tos momentos, não sendo capaz, no entanto,
mente conhecidos, inimigos declarados do de imobilizar tais setores, uma vez que resis-
Amapá, já estão prestando contas de seus tências e embates não deixaram de acontecer.
crimes perante as autoridades militares, No Amapá o movimento sindical sentiu os
mediante provas apresentadas 25. impactos da ditadura logo no início da nomea-
ção do primeiro governador do regime, o gene-
A nota oficial termina exortando a popula- ral Luiz Mendes da Silva (abril de 1964 a abril
ção à delação e ao servilismo e anuncia a re- de 1967). Entre as principais medidas adota-
pressão e a intimidação terrorista que viria. dos, tanto por sua administração, quanto a do
seu antecessor, estão as intervenções em sin-
Pode confiar povo amapaense que chegou a dicatos, partidos políticos e imprensa. Direto-
hora de se livrar dos perniciosos elementos, rias sindicais foram destituídas e sindicalistas
cujas atividades de apoio aos comunistas investigados, vigiados, perseguidos, presos e
são conhecidas, pois eram feitas aberta- torturados.
mente, dando-lhes participação na admi- Alexandre Fernando Ribeiro, filho de Jorge
nistração, vantagens indevidas e cobertura Fernando Ribeiro (conhecido como “Jorge Padei-
total, inclusive financeira 26. ro”), em depoimento cedido à CEV-AP, relatou a
repressão sofrida pelo pai e outros sindicalistas.
Esta parte da nota oficial revela também o
fracionamento na elite amapaense. Os “perni- Em 64 foi o golpe militar. Então, eu estava
ciosos elementos” que acobertavam os comu- com 14 anos e o papai (Jorge Fernando Ri-
nistas nada mais eram que o deputado Janary beiro, o “Jorge Padeiro”) fazia parte de um
Gentil Nunes, ex-governador do Território, movimento sindical. O nosso sindicato era
e seus seguidores que de comunistas não ti- um sindicato atuante dentro de Macapá,
nham nada. Na verdade, essa tentativa de des- era Sindicato dos Estivadores [...]. Lá fa-
construção de lideranças, como a do ex-gover- ziam parte desse sindicato: o “Periquito”,
nador, evidencia como em torno de questões “Chico Diabo”, Osmar do Nascimento [...].
nacionais ligadas ao regime ditatorial emergem Eles foram taxados de ser de um movimento
tramas e disputas locais pelo poder dentro do subversivo, alguém que tinha ideias contra
Território. o governo, mas não tinha nada a ver contra
o governo. É o direito do cidadão.27
2.4. Intervenção em Sindicatos e
Imprensa Jorge Ribeiro, na verdade, foi presidente do
Toda a estrutura organizacional dos traba- Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de
lhadores brasileiros, na base e na cúpula, foi Panificação e Confeitaria, entre 1960 e 1962, e
duramente atingida pelo golpe civil-militar de também um dos articulistas do jornal Folha do
1964. As prisões de lideranças, as perseguições Povo, onde mantinha seções ligadas ao movi-
a militantes, bem como, a desestruturação do mento sindical local e nacional. Outro caso, é o
trabalho nos sindicatos e nas fábricas, des- de Raimundo Pereira Duarte, conhecido como
barataram atividades que levariam bastante “Periquito”, que presidiu o Sindicato dos Es-
tempo para serem recompostas. Nesse sentido, tivadores do Território Federal do Amapá, um
o regime militar buscou redefinir e limitar as dos mais atuantes da época.
ações dentro dos sindicatos, partidos e impren-

25
Amapá, Macapá, 08 de abril de 1964.
26
Ibidem.
27
Alexandre Fernando Ribeiro. Depoimento cedido à CEV-AP, em 12 de fevereiro de 2014.
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Cópias do Estatuto do Sindicato dos Estivadores do Território Federal do Amapá

Acervo Pessoal de Raimundo Pereira Duarte

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
27

Em depoimento, à CEV-AP, narrou o que Belém preso, daí eu fui para 5ª Companhia.
significava ser oposição e sindicalista no Ama- Era o major Lourinho, o comandante. Aí fui
pá, já antes da implantação da ditadura civil- entrando, o tenente chegou e disse: “ – Ei
militar e a perseguição que sofreu logo nos me- afasta essa metralhadora desse homem. Ele
ses que se seguiram ao golpe de 64, não tem nada de comunista. Esse homem é
violento! Ele não é comunista”. Eu passei 30
Fui preso, porque o governador não gostava dias como suplente de estivador lá com ele.28
de mim, sabe por quê? Porque eu era presi-
dente do Sindicato dos Estivadores, fundei O controle da imprensa foi regulamentado
o sindicato [...]. Eu cheguei lá e fui receber pela Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 (Lei
uma conta da estiva que estava atrasada. de Imprensa), que restringia a liberdade de ex-
Quem trabalhou 24 horas tem que receber. E pressão. No entanto, a situação se tornou mais
cheguei lá para receber, e disse para ele: “ – crítica com a edição do AI-5, e com a promulga-
Coronel senhor sabe o que é estiva? Quem ção do Decreto-Lei nº 898, denominado Lei de
trabalha 24 horas com isso tem que receber, Segurança Nacional (LSN), de 29 de setembro
não pode passar de 24 horas”. E você sabe de 1969. Em Macapá, as publicações já eram
o que ele me disse? “ – Você sabe de uma controladas bem antes destas regulamentações.
coisa que eu vou lhe dizer? Os estivadores Ainda no governo de Terêncio Porto ocorre-
são um bando de safado. E você é o mais ram episódios de repressão nos jornais Folha do
safado porque é o presidente deles”. Eu dei Povo e A Voz Católica, objetivando desarticular a
um murro na boca dele, ele era o governador! imprensa crítica e decidir o que poderia ou não
[...]. Naquele tempo do partido comunista, se ser publicado. Imediatamente após o golpe, a re-
alguém falasse que era comunista, era pre- pressão infiltrou um sensor entre os editores do
so. Daí me tachou de comunista. Aí fui preso jornal de propriedade da Prelazia de Macapá, A
pela “revolução” como comunista. Fui para Voz Católica, conforme descrito por Hélio Penna-
fort, cronista e jornalista amapaense da época:
Prédio do jornal Folha do Povo
Para a Voz Católica foi
designado um censor, o
professor Antônio Munhoz
Lopes, que, numa inex-
plicável falta de atenção,
concordava que o jornal
circulasse com uma tar-
ja preta ao lado do título,
onde se lia “Edição Censu-
rada”. Disse inexplicável,
mas, hoje, compreende-se
melhor a complacência de
Munhoz. Sua sensibilida-
de e o seu espírito liberal
absolutamente não combi-
navam com tarefas dessa
natureza.29

Acervo Folha do Povo

28
Raimundo Pereira Duarte (Periquito). Depoimento cedido à CEV/AP, em 16 de março de 2013.
29
PENNAFORT, Hélio. Amapaisagem. Macapá: Imprensa Oficial, 1992, p.50.

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
28

Contra a Folha do Povo, o governador de- Segundo a narrativa de Pennafort, o pri-


sencadeou severa repressão e violência, com a meiro a ser preso foi “Teixeirinha”, incumbido
intervenção direta ao jornal e a prisão de jor- de levar uma cópia do depoimento acima citado
nalistas. para Belém do Pará e entregá-la ao major Jar-
bas Passarinho, principal articulador do golpe
o interventor foi o delegado de polícia José na Amazônia. Identificado ainda no avião que
Alves, um advogado pernambucano um tan- se deslocava para a vizinha capital, foi detido
to simplório. José Araguarino, que escrevia nas dependências da Base Aérea de Belém.
para o jornal e estava na mira do governa- Amaury Farias e José Araguarino buscavam
dor, logo observou que tal intervenção não fugir da perseguição imposta pelo governador,
viera através de ato oficial. Foi determinada que por fim decidiu ordenar ao chefe da Guarda
verbalmente. Pensou, então, num jeito de ca- Territorial que mobilizasse todas as suas forças
racterizar o arbítrio em qualquer documento para a captura dos fugitivos. Amigo de longa
que fosse, para defesa posterior. Valeu-se, data de Amaury Farias, Uadih Charone decidiu
inteligentemente, do depoimento que pres- não obedecer à ordem do governador e então se
tava juntamente com o jornalista Amaury aquartelou na Fortaleza São José de Macapá.
Farias, redator-chefe, e o empresário Leo- O próprio Amaury Farias narra assim o acon-
poldo Teixeira (figura bastante estimada tecido: “[...] depois de ter liberado o Alceu, o
na cidade, onde era conhecido apenas por governador manda prender eu e o Araguarino.
Teixeirinha) e engatilhou três perguntas ao Porém Charone não fez recolhimento no xadrez
interventor que o escrivão Olavo da Veiga deixou-nos livre numa sala ... sim! Éramos ir-
Cabral, ingenuamente, colocou no papel. “ mão de maçonaria, um irmão conhece o outro,
31
– Por que nós estamos sob regime de inter- depois nos liberou”.
venção? ” – primeira. “ – Não sei”, respon- Em decorrência de mudanças políticas que
deu o delegado, acrescentando em seguida: culminaram com a escolha de Costa e Silva
“ – Acho que foi alguma coisa que vocês para substituir Castelo Branco, o governador
fizeram ao governador”. Com isto, Aragua- Luís Mendes da Silva foi substituído pelo ge-
rino conseguiu que ficasse documentada a neral de exército Ivanhoé Gonçalves Martins
intervenção. A segunda pergunta: “ – Está o (abril de 1967 a novembro de 1972) que passou
governador Terêncio Porto em condições de a adotar medidas econômicas mais intervencio-
fazer esta intervenção, tendo sido integran- nistas na região e um maior controle sobre os
te de um governo que caiu e ao qual estava movimentos sociais e o sistema educacional.
solidário até os últimos instantes?”. Respos-
ta do Delegado: “ – Sim, porque ele ainda 2.5. Movimento Estudantil
é o governador”. Com esta resposta ficava, Durante o regime militar no Amapá o Mo-
então, provada a solidariedade de Terêncio vimento Estudantil foi responsável por muitas
Porto a Jango. Finalmente, Araguarino inda- ações de resistência, e teve apoio, mesmo na
gou: “ – O senhor deseja fazer uma devas- clandestinidade, de alguns partidos e organiza-
sa em nossas gavetas e arquivos?”. Nesse ções sindicais. Entender como se processou a
ponto a bobeação do interventor foi além do dinâmica do movimento na região requer per-
limite: “ – Não, porque essa devassa já foi ceber que muitas foram as formas de articu-
feita pela manhã e não encontramos abso- lação e manifestação. Grupos independentes,
lutamente nada, que viesse de encontro às grêmios, organizações e dissidências disputa-
leis do País”. Isto deixou claro (sic) a inocên- vam leituras de conjuntura e formas de ação
cia dos FOLHEIROS.30 possíveis.

30
PENNAFORT, Op.Cit, p. 50.
31 Entrevistaconcedida no dia 16 de setembro de 1995 a Hermano Benedito Pinto de Araújo e Jocinildo Batista de Moura.
In: SANTOS, Dorival da Costa dos. “O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação 1964-1974”.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Campinas: Unicamp, 2001
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29
Inauguração do prédio da UECSA- Anos 60

Acervo Pessoal de Carlos Nilson Costa. Fonte: http://porta-retrato-ap.blogspot.com.br.

A historiadora Maura Leal da Silva faz uma distante em muitos aspectos do padrão na-
síntese do perfil da resistência estudantil em cional comumente estudado, sobretudo, nas
território amapaense, nesse período. principais capitais do país, também sentiu o
pulsar e a agitação das ruas, seja em torno
O que se seguiu ao golpe civil-militar com de organizações classistas e partidárias ou
relação ao destino que o Amapá deveria to- simplesmente em espaços que suscitavam a
mar nesse novo cenário nacional, foi o de crítica social ao regime, através da criativi-
afirmação de um modelo de desenvolvimen- dade musical e literária.32
to econômico de exploração para a região
muito mais agressivo e dependente, mas Nesse contexto, destaca-se a atuação da
que tentou vender a ideia de que era algo União dos Estudantes dos Cursos Secundários
novo e o caminho mais próspero para a con- do Amapá (UECSA), entidade criada em 09 de
quista da autonomia política, que passou a julho de 1950 – a partir da atuação dos grêmios
crescer, juntamente, com a juventude ama- estudantis – e que exerceu durante anos um
paense em formação, e com o seu engaja- papel determinante na atuação dos secunda-
mento político, social e cultural. Vão ser es- ristas amapaenses e na representatividade jun-
ses jovens que, de certo modo, canalizarão to ao movimento estudantil regional e nacional,
para si a responsabilidade de debater os e abrigou, ao mesmo tempo posturas ambíguas
problemas do Amapá, não só os decorrentes de denúncia e resistência, e de apoio e susten-
do autoritarismo promovido pelo regime di- tação do regime ditatorial, chegando, talvez, a
tatorial, mas os de sua condição territorial. ser uma das poucas entidades de estudantes a
Esse crescimento dos movimentos sociais, apoiar o golpe de 1964.
políticos e culturais, organizados em grande O movimento estudantil no Amapá, e esse
maioria por essa juventude “amapaense”, apoio imediato ao golpe, pode ser compreen-

32
SILVA, Maura Leal da. “O Território imaginado: Amapá, de território à autonomia política (1943-1988)”. Tese (Doutorado
em História). Programa de Pós-Graduação em História. Brasília: Universidade de Brasília, 2017, p.185.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
30

dido a partir de algumas peculiaridades, tais O que ele fez? Aquartelou-se na fortaleza
como: a ausência de uma Instituição de Ensino junto com os guardas territoriais. Ele (o go-
Superior no Território, o que conservava o mo- vernador) telefonou pra 8ª Região Militar do
vimento organizado restrito à Educação Básica; exército, pedindo reforço porque a guarda
a maciça presença de filhos e filhas de funcio- estava sob o comando do chefe da guarda
nários da máquina estatal no sistema público que não queria seguir as ordens emanadas
de ensino; e a intensa propaganda feita pelo go- do governo. Chegou aqui um avião, à tarde,
verno nas escolas. Portanto, o controle direto uma guarnição do exército cheio de metra-
que o governo territorial buscou exercer sobre lhadoras.34
a UECSA, desde sua criação, teria levado par-
te de estudantes do movimento secundarista Savino, exercendo sua influência no movi-
amapaense a apoiar o golpe. Um exemplo disso, mento estudantil, resolveu mobilizar os alunos
foi a realização da palestra proferida pelo movi- do Colégio Amapaense em uma passeata pelo
mento nacional denominado Cruzada Cívica de centro da cidade até a Delegacia de Polícia,
Esclarecimento da Juventude, promovida com onde Uadih Charone permanecia preso. A con-
grande apoio do governo, em agosto de 1964, sequência desse apoio foi a prisão de Savino
para uma plateia lotada de estudantes no Cine por perturbação da ordem e incitação ao comu-
Territorial, tendo como conferencistas os uni- nismo, conforme relato a seguir:
versitários da Universidade de São Paulo (USP),
Rubens Loureiro e Sérgio Santacrósi, membros Nessa altura, eu reuni os alunos dos colé-
da organização estudantil de extrema direita gios aqui no centro. O Charone ficava sem-
33
Comando de Caça aos Comunistas – CCC. pre onde é a Biblioteca Elcy Lacerda. Era ali
Porém, essa tentativa de controle não se que funcionava a chefia de polícia. Eu con-
operou de forma uniforme e imediata. Mesmo voquei os estudantes pra lá. Eu me lembro
dentro da UECSA opiniões e posturas divergen- bem que a esposa do Amaury Farias, a Deu-
tes também eram observadas. Depoimentos, solina Farias, estava lá e várias lideranças.
como o de José Figueiredo de Souza (o Savino), Pegamos a bandeira brasileira e saímos
que foi presidente desse grupo estudantil, dão rumo a fortaleza pra dar apoio ao tenente
conta da existência de estudantes da entidade Charone porque o exército já estava lá. Che-
que eram identificados como subversivos pelo gamos lá, eu subi a rampa, quando eu subi
regime. Savino foi um dos estudantes presos a rampa, eu disse: “ – Peço a palavra”, “ –
na Fortaleza de São José de Macapá, logo no Tá Preso! Encoste ali! Seu Charone quem é
início do golpe, por prestar apoio ao diretor do esse rapaz?”, “ – É um líder estudantil”, “
Colégio Amapaense e chefe da Guarda Territo- – Tá preso o senhor também!”. Na hora eu
rial, Uadih Charone. fui preso e já tinha outros presos lá também.
Então, daí começou a história da revolução
Quando iniciou a Revolução ficou um am- conosco, principalmente com os estudantes.
biente meio pesado. E o governador, se não O primeiro caso político estudantil foi esse.
me engano, era o Terêncio Porto. Eu me can- Fui preso lá. [...]. Quando eu entrei no ôni-
didatei a presidente da UECSA. O Charone bus, o que tinha de pente de metralhado-
foi chamado pelo governador pra ele pren- ra!! Eles vinham aqui parece iam pra uma
der o Amaury Farias e um outro cidadão lá guerra. Esse governador fez pensar que ti-
de Amapá, o Elfredo Távora. Mandou pren- nha realmente uma guerra aqui. Ele disse,
der os dois que eles não obedeceram a or- inclusive, que eu havia colocado um monte
dem dada pelo governador. Charone disse de tambores para o avião não descer, avião
que não ia prender porque não havia razão. búfalo. Não era nada disso. Aí, mandaram
Não prendeu. Rebelou-se. me levar lá para o xadrez. Primeiro me joga-

33
SANTOS, Fernando Rodrigues. História do Amapá: da autonomia territorial ao fim do Janarismo (1943-1970). Macapá:
Editora Gráfica “O Dia” S/A, 1998, p.164.
34
José Figueiredo de Souza. Depoimento cedido a CEV/AP em 11 de novembro de 2014.

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31

ram numa cafua fedorenta. Me deram uma para a congregar a classe estudantil para
caixa [de fósforo] pra eu riscar e cheirar, que participar desses movimentos sociais todos,
era só o que diminuía o fedor.35 menos o político, e a gente participava de
um grupo mais político, mais politizado.37
Savino ficou confinado por horas num cár-
cere que antes abrigava uma onça pintada. O Segundo Nestlerino Valente as duas corren-
animal foi retirado do local para servir de pri- tes dentro da UECSA eram identificadas como
são, pois na Delegacia de Polícia não havia mais “direita” e “subversiva”. Essa última, da qual
vagas devido à grande quantidade de pessoas Nestlerino fazia parte, agrupava os vistos como
presas, desde o golpe. O depoimento de Savino subversivos e comunistas pelo regime, apesar
é interessante por evidenciar a intensidade da de muitos deles não possuírem qualquer ligação
repressão aos estudantes no Amapá e como as com o PCB. Contudo, muitos desses estudantes
redes de influência atuavam nas engrenagens amapaenses acabaram se aproximando do co-
repressivas, conforme indica a descrição que o munismo fora do Amapá, durante o período que
depoente faz sobre o episódio de sua liberação, cursaram o Ensino Superior, o que levou mui-
pelo Capitão Fontenelle: “ – Eu vou lhe soltar tos desses jovens, quando retornaram, a sofrer
porque o bispo Dom Aristides me disse que você perseguições pelo regime. Foi o que acabou
não é comunista nem subversivo. Que você é até acontecendo no caso de Nestlerino, que se filiou
filho de padre, mas tome cuidado que daqui pra ao PCB quando cursava graduação em ciências
frente você vai monitorado o tempo todo! – Não econômicas, em Belo Horizonte. Durante esse
36
deu outra”. Savino foi liberado, mas continuou período esteve em contato com vários militan-
vigiado pelos militares, sendo constantemente tes no Amapá, mantendo-se informado sobre a
levado à delegacia para depor mesmo sem ter conjuntura política local. Em razão de denún-
qualquer participação nas manifestações. cias sobre seu envolvimento com o comunismo
Nestlerino dos Santos Valente foi outro de- em Belo Horizonte perdeu o apoio financeiro do
poente que também narrou sua experiência governo amapaense e passou a residir no ano-
estudantil dentro da UECSA, destacando as nimato nessa cidade. Acabou sendo preso pelo
duas correntes divergentes que disputavam o DOPS no Estado de Minas, durante uma con-
controle da entidade, conforme trecho abaixo: sulta médica, conforme trecho a seguir:

Eu fui presidente do grêmio Rui Barbosa, eu estava sendo consultado por um médico
concorri a presidência da UECSA, aonde eu do Centro Acadêmico por falta de dinheiro,
perdi as eleições, mas a época no Colégio e lá eu fui preso nu, por isso que eu falo que
Amapaense tinha algumas figuras que gos- é pitoresco, porque o médico estava me exa-
to de lembrar e me dá até uma crise de ri- minando quando o DOPS chegou e me pren-
sos, eram pessoas que eu respeitava muito, deu lá. A partir disto eu fui registrado como
como: José Ribeiro que era um guarda terri- comunista, embora que naquele exato mo-
torial envolvido em um processo de política mento eu estava cuidando da minha saúde.
estudantil, Messias Tavares, Isnard Lima, Como o Dops classificou, eu passei a parti-
José Figueiredo de Souza (Savino), Rai- cipar de todos os processos políticos de Belo
mundo de Souza de Oliveira, o irmão dele, Horizonte inclusive, do Diretório Acadêmico.
Francisco de Souza de Oliveira [...], e tantos Eu fui o tempo todo representante de turma,
outros nomes importantes da política estu- só que naquela época não era muito fácil
dantil, só que se dividiam em duas corren- para a Polícia Federal nos identificar. [...].
tes: uma dos “subversivos” comunistas e a Eu era da Escola de Ciências Econômicas
outra daqueles que faziam apenas a política aonde funcionavam três cursos: Economia,
estudantil, uma espécie de atividade social, Administração Pública e Privada e Sociolo-

35
José Figueiredo de Souza. Depoimento cedido a CEV/AP em 11 de novembro de 2014.
36 Ibidem
37
Nestlerino dos Santos Valente. Depoimento cedido a CEV/AP, em 28 de agosto de 2014.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
32

gia, era Instituição Federal, mas do Amapá, ali uma biblioteca. Toda história estudan-
exatamente, eu fui orientado em Belo Hori- til do Amapá, estava encadernada através
zonte, porque já tinha colegas nossos mili- daquele jornal O Castelo, que eles levaram
tando na política estudantil e de projeção.38 tudo. Fecharam e aí veio a ditadura que
acabou com o movimento estudantil. [...]. Aí,
No Amapá, mesmo com a ocorrência de quando veio a revolução, fecharam lá, fize-
manifestações de apoio ao regime por setores ram até um departamento da Polícia Fede-
da direita estudantil, a repressão e prisões de ral. Inicialmente a UECSA acabou pagando
militantes do movimento foram recorrentes. um preço alto e tornou-se aí um departamen-
Guilherme Jarbas, que iniciou sua atuação to da Policia Federal. O grêmio Rui Barbosa
estudantil nos anos 60, chegando a ser pre- fechou. Quando veio o governador, o General
sidente dos Grêmios Literários Barão do Rio Luiz Mendes da Silva, ele fez uma reunião
Branco e Rui Barbosa, secretário-geral e vice no Colégio Amapaense e fez uma proposta
-presidente da UECSA, relatou que a entidade numa Assembleia. Naquele tempo os alunos
teve sua sede tomada pelos militares, e seus estudavam no segundo andar que tinha uma
os integrantes foram severamente reprimidos e sala enorme. Ele transformaria ali numa es-
perseguidos pelo regime. cola e que depois reformaria. Então, naquele
primeiro momento da revolução, se tornaria
No dia 15 de março, me recordo bem, foi uma um ponto de encontro de estudantes. Na ver-
festona e no dia 31 a Polícia Federal, o exér- dade, ele terminou a escola, saiu a escola de
cito invadiu a sede do Grêmio Rui Barbosa. lá, fechou o grêmio novamente. E no governo
Então, nesse período o movimento estudan- de Lisboa Freire em 73, foi entregue para os
til, ele se voltava mais para a área cívica e Campus Avançados. Aí passou [ser] a sede
cultural com pequenos movimentos sociais dos Campus Avançados.39
diferenciados, e era também um grupo muito
pequeno, ligado mais ao Messias Tavares, Segundo Guilherme Jarbas logo no primei-
ao Ribeirinho, tinha o Ermínio Gurgel. Era ro momento da instalação da ditadura no Ama-
um grupo muito pequeno. [...]. Quando o go- pá quase todas as lideranças estudantis foram
verno federal tomou o grêmio, nós tínhamos investigadas e detidas pelos militares.

Estudantes da UESCA em Macapá- Anos de 1960

Acervo
Pessoal de
Carlos Nil-
son. Fonte:
http://
porta-re-
trato-ap.
blogspot.
com.br.

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
33

O depoente foi um dos poucos militantes se o governo. E você que estudava na escola
que não foi preso, devido a sua proximidade do governo terminava se prejudicando. [...]
com a Prelazia Católica de Macapá: eu, o Nestlerino (Valente), o Aroldo Franco,
Celso Saleh, Adelbaldo Andrade, Jair Fa-
“ – Você anda com quem?” “ – Eu ando com rias, Messias Tavares, Alopércio Franco,
o fulano...”. Bastava citar o nome que eles uma série de estudantes abraçavam a polí-
recolhiam. Então aqueles ligados às entida- tica estudantil. Quando começamos, a gente
des estudantis, eles todos foram realmen- era penalizado. Quando tomávamos algu-
te presos. O único que não foi preso foi eu, ma iniciativa ou medida que esbarrasse no
porque eu tinha uma proteção da igreja, do governo, com certeza seríamos punidos.41
bispo Dom Aristides Piróvano. Eu era da Ju-
ventude Estudantil Católica, e havia um mo- Os critérios que muitos professores e dire-
vimento, eu tenho até essa foto da discus- tores escolares42 utilizavam para qualificar um
são aqui no Cine João XXIII, da Juventude estudante como subversivo, conforme o depoi-
Estudantil Católica, onde eu fiz um rebate mento de Fernando Canto, eram os mais va-
a uma agressão que o padre Antônio sofreu riados e muitas vezes absurdos: “O referido
por parte do Ribeirinho. O padre Antônio, professor [Mário Quirino] propagava que todo
numa solenidade, em vez de cantar o hino cabeludo e barbudo era subversivo e eu estava
nacional, ele pediu que rezassem o pai nos- incluído por usar cabelo grande”. Na impossi-
so. E eu prestei uma solidariedade ao padre bilidade de resistência física, organizada, ar-
Antônio, afinal eu vivia ali com os padres. mada; o corpo, o comportamento, as atitudes
Então, eu fui chamado pelos padres, pelo instrumentalizavam o inconformismo.
Dom Aristides que eu deveria ser da Prela-
zia, que eu estava sendo cassado por esse O professor Mário Quirino disse-me que era
Capitão Fontenelle. E eu fiquei até aliviar a agente do Serviço Nacional de Informações e
barra. Eu acabei não sendo preso. O único mostrou-se brutal no tratamento a mim dis-
dirigente de entidade que não acabou preso pensado, o que gerou discussão, quase mo-
por causa dessa proteção.40 tivando minha expulsão do colégio, cogitada
por ele, o que não aconteceu graças à inter-
Além de todo esse aparato repressivo mi- venção da orientadora. Afinal eu estudaria
litar e policial para conter o movimento estu- o último ano do curso de contabilidade.43
dantil, Josias Nogueira Hagen Cardoso, em seu
depoimento à CEV-AP, enfatizou conteúdos e Em seu depoimento Josias também discor-
métodos autoritários nas escolas públicas do re sobre as primeiras medidas repressivas dire-
Território Federal do Amapá para manter o cionados aos estudantes amapaenses logo após
controle sobre os estudantes e repelir manifes- a instalação da ditadura no país, em 1964.
tações estudantis contrárias ao regime, confor-
me trecho a seguir: A CIA já estava dentro do país informando,
ninguém podia fazer nada que tudo era co-
Naquela época nossa atividade estudantil munista. Quando estourou a revolução de
era um tanto restrita porque todos os esta- 64 todos fomos apanhados. [...]. Eu partici-
belecimentos de ensino no Território eram pava da JOC, Juventude Operária Católica,
de propriedade do governo, de modo que era que teve um trabalho no Amapá de denomi-
difícil fazer uma campanha que não afetas- nar o nome dos bairros de Macapá. Nessa

40
Guilherme Jarbas Barbosa de Santana. Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de 2014.
41 Josias Nogueira Hagen Cardoso. Depoimento cedido à CEV/AP, em 19 de setembro de 2014.
42
No Amapá, durante a vigência do Território Federal, dada a importância que a educação pública passou a ter para a con-
solidação da política territorial, o cargo de Diretor de Escola era considerado uma função estratégica para a administração
pública, vinculado diretamente ao Governador.
43
Resistência, Belém, maio de 1980.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
34

época só chamavam Igarapé e foi mudado mais instituições que congregavam estudantes,
para Perpétuo Socorro e no Beirol surgiu o do golpe até o AI-5, em 1968, demonstram que
Santa Inês. A JOC passou a fazer o enfren- a repressão política foi intensa no sentido de
tamento e os militares diziam que os padres frear esses movimentos no Amapá. No caso da
eram brancos por fora e vermelhos por den- UECSA, somente em 1986 será retomada, com
tro. Então fomos presos e veio para cá uma a realização do seu XII Congresso e da eleição
Comissão Sumária e passou a fazer inter- de Walmir do Carmo para sua presidência.
rogatórios de todas as pessoas que tinham Por outro lado, isso não foi impeditivo para
sido presas ou informadas pelo SNI ou sus- que uma crescente juventude amapaense, mes-
peito de serem contra os interesses da Re- mo com a precariedade com que as informações
volução.44 circulavam em todo o Território e do monopó-
lio estatal dos poucos canais de comunicação
Pelo depoimento acima, percebe-se que o existentes, também encontrasse caminhos de
movimento estudantil local não pode ser en- diálogos e se mantivesse próxima das inspira-
tendido apenas como reflexo das correntes em ções e projetos vividos pelos demais jovens de
disputa dentro da UECSA. Assim, é importante outros cantos do país e do mundo, construin-
destacar as organizações da juventude católica do outras estratégicas de resistência que não
amapaense, que surgiram no início dos anos aquelas observadas por suas representações
1950, tiveram papel de destaque dentro do mo- estudantis. Os estudantes expressavam sua
vimento estudantil: Juventude Universitária resistência contra o autoritarismo realizando
Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica feiras culturais, círculos de leitura e discus-
(JEC) e a Juventude Operária Católica (JOC). são, cursos, seminários, saraus artísticos, sem
Conforme destacou Randolfe Rodrigues: “[...] a contar os inúmeros atos de indisciplina escolar
JEC [Juventude Estudantil Católica] foi a úni- que iam da gozação, da paródia, de caricaturas
ca organização estudantil que ensaiou uma anônimas à depredação de bens de professores
resistência ao golpe de 64, promovendo picha- autoritários.
ções contra os militares, produzidas a partir de Portanto, os anos 1960 e início dos 1970,
45
cera das velas das igrejas católicas.” foram de amadurecimento de uma juventude
Além das organizações da juventude ca- que impulsionou uma produção artística genui-
tólica, que acabaram tendo uma atuação com namente amapaense, principalmente musical e
maior liberdade, comparada à vigilância que literária, que refletiram não só a crítica política,
o governo estabelecia na UECSA, Josias tam- social e econômica ao regime, mas também ao
bém menciona, assim como Nestlerino Valen- programa de desenvolvimento imposto pelo go-
te, as constantes trocas de informações entre verno brasileiro aos Territórios Federais.
o movimento estudantil local e o nacional, o
que denota a grande circularidade entre seus
membros, levando os militares a intensifica- 2.6. Modos de Resistencia
rem a repressão ao movimento estudantil local. A cidade de Macapá era o centro econômico
Em linhas gerais, pode-se afirmar, fazendo-se e concentrava a maior parte da população do
as devidas ponderações às características lo- Território Federal do Amapá. A dimensão de-
cais, que a repressão ao movimento estudantil mográfica46, a estrutura cultural, social e políti-
amapaense atuou no mesmo sentido do ocor- ca moldada em base tradicional, não permitia o
rido em âmbito nacional, objetivando aniquilar florescimento de uma resistência explícita e or-
qualquer resistência ao regime. O fechamento ganizada contra a ditadura militar, e qualquer
da UECSA, dos grêmios estudantis e das de- manifestação nestas condições provavelmente

44 Resistência, Belém, maio de 1980.


45RODRIGUES, Randolfe. “A participação política dos estudantes amapaense: da fundação da UECSA ao golpe de 64”. In: OLIVEI-

RA, Augusto e RODRIGUES, Randolfe (orgs.). Amazônia, Amapá: escritos de história. Belém-PA: Editora Paka-Tatu, 2009.p. 134.
46
No ano de 1960 a população variável por pessoas em domicilio (urbano e rural), se apresentava no quantitativo de 68.688
segundo senso demográfico do IBGE. Fonte: www.sidra.ibge.gov.br
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estaria inviabilizada, dada a impossibilidade de e se efetivavam mais significativamente no âm-


anonimato e, por consequência, de organização bito cultural.
política de oposição nos moldes em voga nos Com a prisão de Charone e de estudantes,
centros definidores do poder nacional. o governador Terêncio Porto criou um clima
No entanto, esta aparência provinciana, propicio para uma intervenção militar mais
pacata, ordeira e submissa da sociedade ama- efetiva, apoiada pelo comando da 8ª Região Mi-
paense escondeu uma resistência que teve seus litar, sediada no Pará. Savino era muito próxi-
momentos de claro enfrentamento, de organi- mo da Prelazia Católica de Macapá, mais espe-
zação, mas que foi, sobretudo, uma resistência cificamente, do bispo Dom Aristides Piróvano.
que surgiu nas frestas da máquina ditatorial, às Durante sua prisão na fortaleza, o capitão Fon-
escondidas, disfarçada de molecagem, de artes, tenelle, através de informações cedidas pelo
de músicas, de silêncios, de recusas e afirma- bispo, fez um levantamento completo da vida
ções; uma resistência nem sempre consciente, do líder estudantil. Os suspeitos de conspira-
porém, indicativa de uma luta de indivíduos e ções, a partir de então, foram constantemente
grupos para sobreviverem livres e autônomos vigiados e a qualquer momento poderiam ser
em uma condição opressiva e castradora. presos para prestar depoimento perante as au-
Como já apresentado anteriormente, o epi- toridades. Segundo João Francisco Cardoso
sódio de oposição direta mais marcante do perí- Neto (o Bolero), mencionado em algumas oiti-
odo aconteceu logo nos primeiros dias do novo vas como um possível agente do SNI no Amapá,
regime, em 12 de maio, explodiu uma rebelião qualquer atitude vista como suspeita era moti-
na Guarda Territorial, sob o comando de Uadih vo para detenção policial.
Charone, que se recusou a cumprir ordens de
prisão enviadas pelo governador Terêncio Por- O Savino foi líder estudantil na época! Eu
to. Hélio Pennafort, descreveu assim os primei- não sei se ele apanhou, mas ele era desses
ros momentos do levante da Guarda Territorial: de bagunçar! Ele não tinha medo não dos
militares! [...] Ele tinha alergia a cabeludo,
Foi pelos meses de abril/maio de 1964, ple- o Ivanhoé. Não entrava cabeludo na sala
na época pós-revolucionária, que o então dele! [...]. Mas eles eram assim, esse pesso-
Território do Amapá viveu dias de agitação al da revolução. Eu achava o seguinte, não
em consequência de um levante recheado de existiu esse negócio de pau-de-arara, que eu
lances melodramáticos. O ponto culminante garanto para vocês [...]. E por causa do cara
foi quando a Guarda Territorial (atual Polí- fazer manifestação [...]. Aí prendia o cara e
cia Militar), comandada pelo Tenente Uadih chegava a passar até 24 horas como foi o
Charone, rebelou-se contra o governador, caso do Bonfim Salgado.48
chegando ao ponto de ensaiar um cerco à
Residência Governamental, onde todo o pri- Foi só no período em que o general Ivanhoé
meiro escalão estava em permanente e soli- Gonçalves Martins (abril de 1967 a outubro de
dária vigília47. 1972) governava o Amapá que a oposição ao
regime se rearticulou e começou a ser tornar
Seja como for, um enfrentamento assim tão visível. Nesta época a oposição cresceu mais
explícito e aberto como foi a rebelião da Guar- solidamente, ocorrendo uma intensa eferves-
da Territorial não mais se observou no curso cência cultural expressa em festivais de músi-
da ditadura militar no Amapá, pelo menos con- ca, organizações da juventude laica e religiosa,
forme dados e documentos colhidos para ela- manifestações artísticas de diversas naturezas
boração deste relatório. De um modo geral, as e matizes, que começou a fugir ao controle e a
resistências eram mais simbólicas que físicas, incomodar o regime.

47
PENNAFORT, Op. Cit., 1992, p.50.
48
João Francisco Cardoso Neto (Bolero). Depoimento concedido à CEV/AP, em 29 de agosto 2014.
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Um grupo de jovens saía de bicicleta, quase Lembro que numa noite, nós, sentindo a ne-
sempre à noite, para quebrar placas de sinaliza- cessidade de confrontar os militares reuni-
ção, lâmpadas de iluminação pública, apedrejar mos com um padre que se chamava Pe. Ca-
órgãos públicos, depredar veículos oficiais. Es- etano Maiello, lá onde funciona o dormitório
tes atos eram considerados pelas autoridades dos padres do PIME, a Rádio Educadora, o
locais expressões de vandalismo, mas, também, jornal A Voz Católica e o Colégio Diocesano.
podem ser vistos como formas de resistência e De lá saiu a ideia de nós sairmos na rua
de afrontamento ao poder estabelecido. Segun- pichando palavras de ordem, com frases
do Raimundo Simões Nobre, participante da contundentes contra os militares [...]. Isso
49
Juventude Oratoriana do Trem (JOT) : foi em 1970 ou 1971 [...]. Quando nós re-
solvemos formar grupos, para sair na cala-
a gente se reunia na JOT [Juventude Ora- da da noite pichando a cidade com aquelas
toriana do Trem] em uma sala da paróquia palavras de ordem, nós procuramos o pa-
da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dre Caetano Maiello. E muito tempo depois,
[...]. Éramos supervisionados pelo Padre quando esses grupos foram se desfazendo,
Vitório Galianni, que apesar de desconten- por inúmeros motivos, a gente ficou saben-
te com a situação brasileira, preferia e até do que todo o pessoal que compunha os gru-
nos aconselhava a se preocupar com o fute- pos, que foram presos, foi o padre que os
bol, esportes e lazer, mas fechava os olhos entregou para o SNI.51
quando discutíamos aqui e ali alguma coi-
sa de política. Não propriamente de política, Os jovens manifestavam seu descontenta-
mas a gente gostava de rock, jovem guarda, mento com a sociedade autoritária, extrava-
Beatles, Elvis, cachaça, calça boca de sino, sando suas revoltas por meio de pichações e
cabelos grandes, e a polícia, especialmente, grafites nos muros de Macapá. Na impossibi-
o delegado Oscar que era magrinho e enru- lidade da resistência organizada e armada, a
gado e apelidamos ele de “Calo Seco” e o resistência simbólica se efetuava. Fernando
delegado Uchôa, meu tio, perseguiam a gen- Canto sintetiza assim o teor comum nestas ma-
te sem quê, nem porquê. Um dia decidimos nifestações: “os grafites que chegam a Macapá
aprontar. Quebrar placa de rua, lâmpadas carregam um gosto simbólico de medo, da ex-
de poste e apedrejar a Central de Polícia que plosão lírica de uma juventude tiranizada pela
ficava ali onde é o BANAP [Banco do Estado propaganda e dogmatizada paulatinamente por
52
do Amapá] hoje. Saíamos pelo menos uma uma educação obscura no silêncio dos anos” .
vez por semana para estas incursões até a Formado, sobretudo, por jovens morado-
nossa proeza máxima que foi quebrar todas res do bairro do Laguinho (dentre eles alguns
as lâmpadas da pista do aeroporto. A coi- estudantes do Colégio Amapaense) organizou-
sa repercutiu muito e decidimos parar com se um grupo autodenominado Clã Liberal do
aquilo [...].50 Laguinho, com o propósito explícito de discu-
tir questões artísticas, religiosas e científicas, e
Meton Jucá, em depoimento à CEV-AP, que acabou incomodando o regime. A indepen-
lembra que dentre as formas de resistência dência e criatividade com que o grupo funcio-
estavam as pichações noturnas nos muros da nava se tornou intolerável no contexto repres-
cidade, realizadas pela juventude, camufladas sivo, e foi cerceada violentamente com a prisão
pelo apoio de padres católicos, como o padre de importantes lideranças do Clã e com seu
Caetano Maiello, que depois foi suspeito de ser consequente esfacelamento. Fernando Canto,
o delator dos envolvidos nessas pichações. preso em razão de sua militância, recorda:

49 A Juventude Oratoriana do Trem era uma associação de jovens católicos, que funcionou entre os anos 60 e 70, funda-
mentalmente com fins recreativos, esportivos e culturais.
50
Entrevista de Raimundo Simões Nobre, concedida a Dorival Santos, em 23 de fevereiro de 2000. In: SANTOS, Op. Cit, 2001.
51
Meton Jucá Junior. Depoimento concedido à CEV/AP em em 14 de fevereiro de 2014.
52
CANTO, Fernando. Telas e quintais. Macapá: Conselho de Cultura do Amapá, 1987, p.44.
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37

Eu participei juntamente com o João de gente sabia e já tocava e o pessoal começa-


Deus de todas as atividades do Clã Libe- va a entrar na onda, quer dizer, era proibi-
ral do Laguinho, no período de 1972 e 73, e do, e pô a gente sabe que hoje pra juventude
até se romper mesmo com auge da missão a gente põe uma coisa proibida, da muito
esdrúxula que aconteceu aqui no Amapá e fina... transgredir, (risos) e a gente fazia
Macapá que chamava “Operação Engasga muito isso sim, agora festivais de música
-Engasga”. Mas, a gente era um grupo de valorizando inclusive as coisas daqui. Nós
jovens que tentava buscar além das ativida- fizemos em 1971 parece que foi no festival,
des é... sociais e religiosas, que nós éramos no chamado festival de música, com a mú-
ligados também muito à igreja São Benedito sica “Laguinho, Laguinho, Laguinho”, era
do movimento jovem, mas que não era o su- do Odilardo, letra quilométrica do Odilardo
ficiente pra gente estender nossas próprias Lima e falava dos valores do bairro, até hoje
54
ideias e também nossas canções, e a gente esse pessoal ainda canta [...].
reunia no Clã Liberal do Laguinho pra, no
quintal do Pai do João de Deus, (inaudível) A vitalidade e o dinamismo do grupo, as
no lado do poço do mato, lugar muito aprazí- possibilidades de discussão de concepções de
vel, muito bonito, a gente se reunia lá pra se cultura e de sociedade, mesmo que a partir de
divertir e pra conversar, era tão interessante sua produção artística, são chaves importan-
que até o programa de rádio ia ser transmiti- tes para entender a forma com que o estado
do direto de lá, e a gente ia.53 reprimiu seus integrantes. A seguir, Fernan-
do Canto fala das prisões indiscriminadas dos
Ainda que seus integrantes procurassem membros do grupo ocorridas em meados dos
ressaltar que o grupo tinha apenas e exclusiva- anos setenta, e do enfraquecimento do Clã Li-
mente preocupações artísticas e estéticas, isso beral do Laguinho:
não impediu que recaísse sobre eles o peso da
repressão. As expressões culturais promovidas Nós não tínhamos universidade. Todo mun-
pelo Clã Liberal do Laguinho representaram do tinha que ir pra fora estudar tanto que
uma das formas encontradas pela juventude nós fomos, mas depois do “engasga-engas-
para lidar com as imposições do regime ditato- ga” e também quando eu terminei o meu
rial. Não era a arte pela arte, naqueles tempos curso essencial em 1973 eu ia sendo expul-
a experiência artística era também uma atitu- so por causa disso, eu tive que ir embora
de política. O grupo tinha em torno de seten- daqui, eu fui preso. Toda hora a gente ia
ta componentes, muitos menores de idade, e ser preso a qualquer motivo. A repressão
promovia eventos musicais com letras autorais era tão grande que a gente era marcado. A
inspiradas pelos grandes nomes da música po- gente já sabia que se fizesse qualquer coi-
pular brasileira, como se observa no depoimen- sinha, andasse sem carteira de identidade,
to de João de Deus: ia preso, um negócio que realmente revoltou
muita gente, traumatizou de alguma forma,
Na realidade nós começamos com os festi- né? Até hoje a gente sente isso. Depois que
vais de música [...]. Participava de festivais a gente foi preso junto lá no exército, e os ou-
de músicas, participava de eventos sociais tros nossos companheiros estavam presos
na própria Igreja Católica né, movimento jo- em Macapá, enjaulados lá, tanto que existe
vem [...]. A gente tocava muito também, to- vários depoimentos e tudo mais. Mas agora,
cava, isso que reunia o povo. O violão e a tu tava falando a respeito dessa formação
música na realidade eram o elemento assim intelectual que nós tínhamos. Não chegaram
amplificador de tudo isso, né? E a gente já a levar livro meu e nem entrar em casa, o
sabia algumas músicas que a gente tocava, cara que foi me buscar foi o Amaury, o fi-
como (inaudível) de Geraldo Vandré que a lho do seu Amaury [Antônio Farias] o sub-

53
Fernando Pimentel Canto. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016.
54
João de Deus de Souza Filho. Depoimento cedido a CEV/AP em 02 de setembro de 2016
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tenente R2 cheio de soldados armados com os primeiros momentos do grupo, deixa esca-
metralhadora [...]. A ditadura tinha que ter par que de fato o Clã Liberal do Laguinho cons-
um, um, bode expiatório, né? E no caso se- tituiu-se em um importante foco da resistência
ria aqueles caras que tinham sido presos na à ditadura no Amapá:
época de 64, então vai lá, prende o padeiro,
prende o Chaguinha, prende o Gurgel, pren- Manoel Bispo, artista plástico e tudo, ele foi
de o Isnard, prende o Odilardo, quer dizer, do primeiro, se eu não me engano foi o pri-
tudo isso é carta marcada, ao passo que meiro presidente do Clã Liberal do Laguinho
eles estavam fazendo um tipo de atividades [...]. Era interessante o movimento. Mas ali
que se soube depois que não era exatamen- se reunia para debater mesmo alguns as-
te um combate aos criminosos.55 suntos, debatia, conversava [...]. Principal-
mente política, questões mesmo do Amapá.
A faceta política implicada na articulação Não era todo final de semana, mas todo
destes jovens do Clã Liberal do Laguinho em uma vez por mês a gente fazia uma feijoada
suas atividades artísticas e em seus encontros lá na casa do João de Deus, que ficava nas
culturais pode ser percebida também no depoi- Nações Unidas, na rua de casa56.
mento de Rui Gonçalves Lima que, recordando

Membros do Clã Liberal do Laguinho

Acervo Pessoal de Fernando Canto

55
Fernando
Pimentel Canto. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016.
56
Rui Gonçalves Lima. Depoimento cedido à CEV/AP, em 20 de fevereiro de 2014.
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A Igreja Católica no Amapá, assim como em que não adianta nada reagir. O melhor se-
todo o Brasil, mantinha uma postura ambígua. ria deixar como está para ver como é que
Parte da cúpula era alinhada ao regime e parte fica. Engano meu amigo, um grande enga-
dos clérigos paroquiais era claramente apoiado- no o teu. Temos esta experiência e tu podes
ra ou simpática às manifestações de resistência fazê-la também [...]. Todos são uns covar-
ao poder ditatorial. Esse apoio era concretamen- des. A única coisa que os torna atrevidos é
te motivado em razão de injustiças praticadas a timidez dos bons. Basta, porém, falar um
contra a integridade física e psicológica de seus pouco mais alto, basta levantar a cabeça,
fiéis. As reuniões comunitárias patrocinadas por basta dizer umas poucas verdades e aca-
esses padres culminavam quase sempre com al- bou-se a coragem deles. Hoje mesmo um
guma discussão sobre as ações repressivas do amigo, um amigo me dizia que o Brasil é de
58
Estado e as maneiras de enfrentá-las. quem grita mais [...].
Porém, onde de fato se verificou essa resis-
tência ao regime ditatorial no Amapá, no âm- A partir de 1969, sob a influência dos inú-
bito clerical, e até mesmo social, foi nos órgãos meros festivais de música que se multiplicavam
de imprensa da Igreja Católica, mais precisa- pelo país, a sociedade local organizou os Festi-
mente, na Rádio Educadora e no jornal A Voz vais Amapaense da Canção, nos anos de 1969,
Católica, lugares onde se abrigavam desconten- 1970, 1971, e 1975. Estes eventos eram a opor-
tes com a ordem estabelecida. Padres como Vi- tunidade não apenas de extravasar através das
tório Galianni, Caetano Maiello, Botan e Jorge letras e músicas a inquietação com a sociedade
Basile protegiam jornalistas, estudantes e ar- autoritária, mas, também como uma forma de
tistas nesses órgãos, dando-lhes liberdade de congregação e de organização dos agentes da
expressão e proteção possível nas condições de resistência. Mais do que canais de expressão
um Estado repressor. Élson Martins, Odilardo artística, os festivais revelaram-se verdadeiros
Lima, Bonfim Salgado, entre outros, aproveita- instrumentos de veiculação do descontenta-
ram o espaço para destilar suas ironias clara- mento com o quadro social em que estava imer-
mente endereçadas ao regime. Bonfim Salgado, sa. Os festivais catalisavam a energia contesta-
referindo-se jocosamente à Lei de Segurança dora, transformando-se em um espaço onde se
Nacional, à tortura e à perseguição, escreveu discutia estética, ciência, literatura e, permean-
neste periódico: do tudo isto, a política. A música “Devaneio”,
de autoria do jovem artista Fernando Canto,
é a lei. Olho por olho, dente por dente. Afinal, classificada em segundo lugar no IV Festival
o que anda acontecendo? Quem souber que Amapaense da Canção, de 1972, é representa-
responda. Eu não sei. Observo e calo. Ano- tiva nesse sentido, tendo sido censurada pelo
to numa agenda, que tão cedo não sairá do regime.
fundo da gaveta. É perigoso mostrar a agen- Fernando Canto foi um dos mais ativos co-
da. Nada de abrir o jogo. Batuque. Mãe de laboradores dos festivais e revela que, apesar
Santo. Se der santo e senha, falo. Não deu das informações sobre os grandes problemas
santo e senha, calo. Rimou 57. e eventos nacionais e internacionais chegarem
com um certo atraso, as novidades artísticas
Outro exemplo da linha contestatória assu- eram absorvidas e ressignificadas pela socie-
mida pela A Voz Católica em algumas ocasiões dade amapaense, como pode ser observado no
foi a matéria publicada, em 14 de novembro de trecho a seguir.
1970, véspera do Dia da Bandeira, data impor-
tante no simbolismo do regime ditatorial mili- Embora existisse um certo isolamento cultu-
tar, conforme trecho a seguir: ral e morosidade nas notícias, estava sem-
pre presente, com todo o apoio, a velha Rá-
Muitos chegam mesmo a dizer que o mun- dio Difusora de Macapá. Dessa forma, os
do, que o Brasil, não tem mais conserto, acontecimentos e mudanças socioculturais

57
A Voz Católica, de 13 de dezembro de 1969.
58 A Voz Católica, de 14 de novembro de 1970.
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40

e políticas do ocidente de alguma forma in- Por fim, no que tange à resistência à di-
fluenciavam a criação musical de nossos tadura civil-militar no Amapá, não se poderia
compositores e poetas. Os temas mais can- deixar de mencionar o papel do Partido Comu-
tados eram a guerra, a paz, o amor, etc. nista Brasileiro (PCB). Ainda que jamais tives-
Nesse período os Beatles estavam ainda se pregado o enfrentamento armado contra o
revolucionando o mundo com suas músicas regime teve a sua importância no movimento
maravilhosas. Havia a guerra no Oriente organizado de resistência no Amapá. O PCB
Médio, no Vietnã, na África. O homem havia funcionava em território amapaense desde pelo
pisado pela primeira vez na Lua. Movimen- menos meados da década de cinquenta. Tinha
tos guerrilheiros da América Latina e África importante inserção no meio sindical, especial-
eram fortemente massacrados pelo capital mente, no sindicato da construção civil e no dos
dos países ricos. Che Guevara partira para estivadores. São apontados como dirigentes ou
a Bolívia, e ali tombou. No Brasil a repressão militantes do partido: Francisco das Chagas
política da ditadura militar fazia desapare- Bezerra (Chaguinha), Jorge Fernandes Ribeiro
cer presos políticos. Surgiram os assaltos a (Jorge Padeiro), Osmar Nascimento, Nehemias
bancos por elementos pertencentes a movi- Monteiro da Costa, José Mascarenhas, Altino
mentos guerrilheiros, apareceram seques- Nasiaseno dos Santos, Francisco Gomes Perei-
tros de diplomatas. A retaliação do sistema ra, Calixto de Moraes Acácio e Antônio Alexan-
se presenciava em massacres aos comunis- dre Gomes.
tas do MR-8. Escondia-se do povo a guerri- Era na seção Amapá do PCB que desagua-
lha do Araguaia.59 vam e ao mesmo tempo fluíam as insatisfações
e as resistências contra o regime. O funciona-
As letras das canções, compostas quase mento de um partido como o PCB pressupõe,
sempre através do uso de metáforas e simbo- sobretudo, em um contexto de ditadura, como
lismos, vez ou outra acabavam no crivo da cen- condição indispensável o anonimato e, em uma
sura. As músicas eram vistoriadas com meses sociedade como a amapaense, onde isto era
de antecedência na Polícia Federal. Algumas quase impossível, o partido tornava-se extre-
canções ficaram anos sem poder vir a público, mamente vulnerável e só foi tolerado enquan-
outras até hoje são desconhecidas. No presen- to havia cobertura legal. Assim que as condi-
te, alguns daqueles jovens de então relutam em ções do autoritarismo se acirraram, o partido
confirmar sua adesão consciente e explícita aos não conseguiu sobreviver organizado ao ano de
modelos políticos e ideológicos contrários ao re- 1964. Seus principais dirigentes e alguns sim-
gime ditatorial. No entanto, foram protagonistas patizantes foram presos ainda na primeira se-
de uma forma de resistência bem coerente com mana do golpe, e continuaram – até pelo menos
o contexto e as características socioculturais da 1974 – sendo presos sempre que se suspeitava
sociedade amapaense de então. que alguma coisa estava sendo tramada con-
Outra forma de os jovens manifestarem seu tra o regime, eram os “bodes expiatórios” pre-
descontentamento e manterem sua autonomia feridos. Argumento acusatório das forças re-
e liberdade de pensar, era em encontros coti- pressivas para a perseguição de descontentes
dianos, em horários pré-estabelecidos e em lo- ou opositores, a alcunha “comunista” marcou
cais alternados, para sintonizar e escutar a Rá- a existência de muitos resistentes, sendo eles
dio Cubana. Essa era uma prática de tal modo filiados ou não ao partido.
significativa para seus participantes que José
Ribeiro da Conceição, guarda territorial e mili- 2.7. Demissões de Militares e Servi-
tante ativo do Partido Comunista Brasileiro, fu- dores Públicos e de Cargos Políticos
gindo da repressão que desabou sobre os des- Entre as ações repressivas de maior impacto
contentes com o regime ditatorial, acabou indo da ditadura no Amapá, destacam-se as demis-
parar em Cuba como radialista da programação sões a militares, servidores públicos e de pes-
em português de uma emissora naquele país60. soas que ocupavam cargos políticos dentro do
59 CANTO, Op.Cit., p.50.
60SANTOS, Dorival da Costa dos. O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação 1964-1974. Campinas:

2001, p.156. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual de Campinas.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
41

Governo do Território Federal, que passaram a instalado, de modo que, no segundo semestre
ser investigados, perseguidos, demitidos, trans- de 1967, as organizações classistas e partidá-
feridos e ameaçados. A criação, em 27 de julho rias praticamente inexistiam formalmente, a
de 1964, da Comissão de Investigação Sumária não ser em torno da estrutura partidária con-
(CIS), que possuía autorização para, indiscrimi- sentida, Movimento Democrático Brasileiro-M-
nadamente, devassar o serviço público e seus DB e Aliança Renovadora Nacional-ARENA.
componentes, à cata de atividades “subversivas A CEV-AP coletou vários depoimentos en-
e antimilitares” , serviu a esse propósito. A re- tre 2013 a 2017, dentre os quais, identificou-
ferida Comissão foi, inicialmente,61composta pelo se que, durante o regime de exceção ocorreram
major Washington Mascarenhas, o contabilista demissões de funcionários públicos pertencen-
Benedito Pedro Paiva e o delegado de polícia Lis- tes ao quadro do antigo Território, vítimas de
mar Leão Cardoso. Em seu relatório de agosto perseguições políticas cometidas por agentes
de 1964, a CIS indiciou e ordenou a prisão de a serviço da ditadura. Abaixo foram identifica-
aproximadamente vinte e três servidores que dos alguns nomes das vítimas exoneradas do
foram detidos, “nas masmorras da secular For- quadro do Território, porém, sabe-se que estes
taleza de São José pelo prazo de sessenta dias, nomes representam apenas uma pequena parte
sob a custódia da Guarda Territorial, que havia do quantitativo de pessoas demitidas e exone-
se tornado no Território do Amapá a presença ar- radas pelo regime autoritário no Amapá.
62
mada e coercitiva do regime autoritário” .
Concluídos os trabalhos, a expectativa era José de Ribamar Monteiro
de dissolução da CIS. Todavia, ela foi recom- José de Ribamar Monteiro foi um dos ex-
posta, em 08 de setembro de 1964, ganhando servidores do G.T.F que perderam seus cargos
ares de instituição e instrumento permanente públicos por perseguições políticas na ditadura.
de terror de Estado, constituída pelo advogado Antes de ser demitido do funcionalismo públi-
José Rufino Ribeiro, o promotor público Edson co, foi preso em Macapá e em Belém, em 1979,
Gomes Corrêa e o servidor aposentado Floriano aos dezenove anos, por envolvimento com o Mo-
D’Horta Waldeck. De acordo com os estudos fei- vimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) –
tos pelo historiador amapaense Fernando Ro- organização política de esquerda da luta arma-
drigues dos Santos: da contra a ditadura militar. José de Ribamar
relembra esse período como membro ativo do
Com base nas averiguações da CIS, o pre- MR-8 em Macapá.
sidente Castelo Branco, dia 07 de outubro
de 1964, aposentava compulsoriamente um Eu fiz parte do MR8, Movimento Revolucio-
funcionário e demitia outros vinte e cinco do nário 8 de Outubro. E então, nós tínhamos
serviço público, sendo vinte por improbidade vários pensamentos, mas um deles era o
administrativa de variadas intensidades e que alentava o nosso, a nossa atitude que
os demais acusados de ações políticas an- era justamente um país bom pra todo mun-
ti-militar, como foi o caso do guarda territo- do. E eu garanto que o ar de democracia que
rial José Ribeiro da Conceição, de fato um se respira hoje, não só no Brasil, como prin-
contestador ideológico que, ao eclodir o golpe cipalmente em Brasília, foi fruto dos meus
militar, desapareceu da região, sendo pro- colegas.64
cessado à revelia.63
Ribamar, à época, mantinha contato com
Durante todo o ano de 1964, e nos primei- outros membros do MR8, através de rádio clan-
ros anos que se seguiram ao golpe, o governo destino, meio de comunicação pelo qual os mi-
territorial atuou intensamente para reprimir litantes do Amapá interagiam com os demais
qualquer manifestação de resistência ao regime membros e ficavam sabendo do cenário político
61
SANTOS, Fernando Rodrigues. Da autonomia territorial ao fim do janarismo (1943-1970). Macapá: Editora Gráfica O
DIA S.A., 1998, p.155.
62
Ibidem.
63
SANTOS, Op.cit., p.156
64
José Ribamar. Depoimento concedido a CEV -AP, em 14 de agosto de 2014.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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nacional, recebendo instruções de lideranças, pessoal me chamou e disse: “ – Olha rapaz


como Vladimir Palmeira. tu passaste no concurso, né? Mas escuta o
que vamos te falar”. Me levaram numa sala
O pessoal daqui de Macapá quase todo... lá da assessoria jurídica do governo da Se-
ele era militante na mesma vertente, sabe? cretaria de Administração da Fazenda, e ai
Quando a gente às vezes viajava daqui se eles me disseram: “ – Olha tu passaste no
deslocava, era que a gente tinha contato com concurso mas tu vai ter que seguir a linha
outros lá fora. [...] até Minas Gerais [...] do aqui do governo”, ai eu disse: “ – Mas por
campo, mas a repressão era demais ai: “ – que? ”, “ – Porque tu sabe que tu já fostes do
Olha fica lá e qualquer coisa a gente manda contra”. “ – Eu sou concursado, não tenho
instruções pra vocês”. [...] nós tínhamos um que seguir a linha de ninguém, eu tenho a
amigo que ele tinha um rádio e era através minha, por isso que fui militante”. “ – Olha
desse rádio que a gente...rádio de comunica- o que tu tá dizendo”. Tudo bem, comecei a
ção na época, não sei se existe, tipo assim cuidar do meu serviço, eu passei na época,
como hoje é o Facebook, era uma rede social, hoje, por exemplo, seria um programador
aí ele recebia: “ – Olha tá acontecendo isso de computador. Eles me chamaram lá e me
assim, assim”. disseram que a partir daquele momento eu
não poderia mais ser servidor do Território
A relação de Ribamar com o MR8 e com o porque eu tinha falsificado uns documentos,
movimento estudantil incomodava as autori- aí eu perguntei: “ – Quais documentos?”, “
dades locais, resultando em várias prisões, na – Não interessa, falsificaste documento”. E
década de 1970, arbitrárias e sem registros for- nesse momento, entraram mais um assessor
mais, ou quando existiam tais registros eram ex- jurídico, Zé Luís e mais o capitão Moura Vale.
traviados, como se nunca tivessem acontecido. “ – Olha Zé, esse aqui é dos que batalhavam
aí contra o governo e ele falsificou documento
Eu fui preso, mas os registros daqui foram para entrar aqui”. Aí ele respondeu: “ – Bota
queimados [...]. A gente ia preso sem comu- na rua, bota na rua, não tem conversa não”,
nicação [...]. Eu não posso provar nem que eu o capitão perguntou: “ – O que que ele ainda
fui preso, não existe arquivo pra provar [...]. tá fazendo aqui?”. E eles disseram que eu
Eu era gato escaldado. Eu não saia a noite e falsifiquei um documento. “ – Eu quero ver
mesmo se eu saísse eu corria o risco de ser esse documento que eu falsifiquei! “– Você
preso. E naquele tempo não havia motivo pra não tem que ver nada, pode se mandar da-
gente ser preso, bastava que alguém disses- qui, senão já vai direto para Fortaleza, vai
66
se: “ – Olha fulano ali é do contra.65 pagar tudo que já fez, caramba!”

Ribamar também foi detido em Belém pelos Conforme a descrição acima, José de Ri-
agentes do Departamento de Ordem Política e bamar foi exonerado do serviço público por fal-
Social (DOPS) em visita a amigos na Casa do sificação de documento. Ainda tentou registrar
Estudante. Após esse período, já formado em uma queixa contra a administração pública na
técnico em contabilidade, ingressou no serviço antiga Delegacia do Trabalho, objetivando rever-
público amapaense, por meio de concurso, para ter sua demissão, mas foi informado que como
a Secretaria da Fazenda e Finanças do Territó- era contra o governo nada poderia ser feito.
rio Federal do Amapá. Contudo, não pôde exer-
cer suas funções, pois foi acusado de falsificar Eu fui lá à Delegacia do Trabalho [...] o rapaz
os documentos do concurso para investidura me atendeu lá: “ – O que está acontecendo?”.
do cargo: Ai eu disse: “ – Rapaz é o seguinte, eu estou
demitido lá do governo” e o rapaz falou: “—
Está aqui olha! A minha carteira profissio- Ah, é com o juiz, aguarda aí!”. Eu sentei lá,
nal assinada [...]. Quando eu assumi lá um uma meia hora depois ele me chamou[...] era

65
JoséRibamar. Depoimento concedido a CEV -AP, em 14 de agosto de 2014.
66
Ibidem.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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uma juíza, e ela era tida como muito seve-


ra, sabe? Rígida mesmo. Ela perguntou: “— Claudio Nascimento foi levado para a Forta-
Me conte o que está acontecendo!”. “ – Olha leza de São José de Macapá e submetido a tortu-
eu passei no concurso do governo”. Contei ras psicológicas durante trinta dias sem poder
a história pra ela. Ela botou a mão no quei- ver sua família, sendo vigiado pelos Guardas
xo e disse: “— Mas meu filho, é contra o go- Territoriais. Claudio afirma que, enquanto este-
verno? Você não vai poder fazer nada. Sabe ve preso, presenciou a queima dos arquivos das
o que você faz? Vai atrás de outro emprego gestões territoriais passadas: “Lá na Fortaleza
que é melhor”. Aí aquilo foi outra cacetada. eu assisti à queima dos arquivos do governo. Fi-
“— Mas eu não tenho direitos?”. Ela disse: zeram aquele monte de fotografias de todos os
“— Você não tem direito a nada. Vá embora governadores [...]. Eles fizeram aquele monte e
67
daqui, por favor!”. queimaram na nossa frente ali. Nós ficamos ali
obrigados a assistir”.69
Atualmente José de Ribamar aguarda res-
posta do processo de anistia e reparação finan- Luís Messias Tavares
ceira pelo Estado brasileiro, pelos danos morais O caso da demissão de Luís Messias Ta-
causados e pelo tempo que ficou desempregado vares, já falecido, foi relatado à CEV- AP, por
devido a perda do cargo público no ex-Território sua irmã, Carmozina Tavares de Lima. Messias
Federal do Amapá. Tavares foi militante ativo do movimento estu-
dantil e conduziu os estudantes a resistiram
Claudio Carvalho do contra o regime militar no Amapá. Foi presi-
Nascimento dente e um dos fundadores da UECSA, o que
Cláudio Carvalho do Nascimento, em 1964, chamava a atenção dos governantes da época,
foi demitido de seu cargo de Superintendente resultando em sua prisão na Fortaleza de São
de Serviços Industriais do T.F.A, pelo general José de Macapá.
Luiz Mendes da Silva. Segundo ele, a motivação
de sua demissão foi por pertencer ao grupo po- Meu irmão foi preso e quem levava comida
lítico adversário ao governo. pra eles na Fortaleza, por exemplo, o meu
irmão, era eu. [...]. Porque era comunista
Saiu no Diário Oficial minha exoneração e eu (risos), como eles diziam [...] Ele não era co-
ainda fiquei uns tempos aqui. Não pude ficar munista, porque nem havia esse partido co-
muito tempo porque o general deu ordem, munista aqui, eu acho que nem havia isso.
ordem mesmo, que era um governo revolu- [...]. O meu irmão era agente de polícia. Ele
cionário [...] que não desse emprego pra ne- perdeu o emprego. Também foi demitido. Na
nhum de nós. Então, eu ia ficar aqui passan- época, assim, foi um terror.70
do fome, necessidade? O carro da polícia foi
me buscar lá em casa com aparato militar, Após ter sido exonerado do cargo de agente
com armas, carro aberto pra desfilar na ci- de polícia, Luís Messias Tavares se formou em
dade como corrupto. Então, com metralhado- engenharia florestal, indo trabalhar em Belém,
ras. Eu fui preso na frente da minha esposa, todavia as lembranças das prisões e das tortu-
meus filhos pequenos. Um constrangimento ras nos tempos em que esteve preso na Forta-
muito grande pra mim. Me levaram. Desfilei leza jamais saíram de sua lembrança, atormen-
na cidade toda. Me levaram para Fortaleza tando-o, provocando-lhe enfermidades mentais
de São José de Macapá, me colocaram aqui irreversíveis.
nesse cubículo, eu fui o preso número sete.
Tinha até número lá. [...] Todos que exerciam Meu irmão, com 25 anos, quando ele surtou,
cargos de comissão de obras, chefes de pes- não teve jeito. A coisa que ele se lembra era só
soal, foram todos exonerados.68 da prisão. Então ele teve um AVC, ele surtou,
67
José Ribamar. Depoimento concedido a CEV -AP, em 14 de agosto de 2014.
68
Claudio Nascimento. Depoimento a CEV/AP, em 28 de agosto de 2014.
69 Ibidem.
70 Carmozina Tavares de Lima. Depoimento a CEV/AP, em 20 de março de 2014.

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
44

não teve psicólogo, não teve neurológico, não O coronel José Índio Machado [...]. Ele ficou
teve nada, apagou toda a memória dele recente, mordido comigo. Então eu fui demitido [...].
o arquivo dele apagou. Apagou e ele não conse- Então, arranjou uns dois policiais, mandou
guia mais constituir um arquivo novo. Ele ficou pro Amapá pra tocar fogo lá na prefeitura,
só com o arquivo antigo. Se você conversasse que era pra jogar a culpa em cima de mim.
com ele hoje, amanhã você voltava a conversar E aí criou um problema. Mas a justiça tomou
com ele, ele não lembrava que você tinha conver- conhecimento e mandou o avião com o co-
sado com ele. mandante Juarez e outro deputado pra Be-
lém e vim no outro dia, justamente porque
Leonel Nascimento ele pediu a verificação lá dos bombeiros do
Em audiência pública realizada, no dia 10 incêndio. Ele fez uma fantasia enorme, de
de dezembro de 2013, que fez parte da progra- uma coisa que foi bobagem, porque a própria
mação dos 65 anos da Declaração Universal dos chuva que tava dando não permitiu que o in-
Direitos Humanos, promovida pela CEV- AP, o cêndio se formasse. Não houve incêndio, o
ex-prefeito do município de Amapá, Leonel Nas- que houve foi um documento lá que fizeram,
cimento, então com 91 anos, relata que foi alvo mas jogaram toda a culpa em cima de mim.73
de perseguição política pela ditadura militar,
durante o período em que exercia o seu man- Nascimento foi apontado como culpado por
dato de prefeito, entre os anos de 1964 a 1975. este incêndio na prefeitura de Amapá, resultan-
Segundo a narrativa de Leonel Nascimento do assim, na sua deposição, em 1975. Leonel
houve perseguição de lideranças locais, princi- Nascimento espera do Estado brasileiro uma
palmente pelo chefe de segurança pública do aposentadoria de acordo com a função que de-
T.F.A, coronel José Índio Machado: “A minha sempenhara na época, e um ressarcimento fi-
presença aqui, é para defender a injustiça que nanceiro e moral por ter sido destituído de seu
foi praticada na administração do comandante cargo político:
Henning, e praticada pelo Tenente Coronel José
índio Machado, e ficou comprovado pela justiça A minha aposentadoria devia ser como pre-
e pelo Tribunal de Contas da União” 71 . De acordo feito do município de Amapá, governo, por-
com o ex-prefeito, houve um golpe para desti- que naquela época quando o gestor com-
tuí-lo do mandato: “Tiraram-me porque eu não pletava dez anos de serviço ele ficava como
apoiei politicamente o então governador”, Leo- “dono” daquele cargo. E eu passei 11 anos,
nel Nascimento se referia ao governador, o capi- quatro meses e dois dias. Então eu tenho di-
tão de mar e guerra Arthur de Azevedo Henning reito de ser aposentado com o ordenado de
(abril de 1974 a março de 1979). prefeito de Amapá na atualidade para haver
À época, os prefeitos dos municípios eram justiça. E os meus prejuízos financeiros e
indicados pelo governo militar do Território, moral, quem vai pagar?
com exceção da capital. Leonel antes de ser
prefeito era auxiliar de engenharia civil, sendo Em 30 de janeiro de 1978 o processo contra
indicado, posteriormente, pelo primeiro gover- o senhor Leonel Nascimento juntamente com o
nador nomeado no Amapá em 1964: “quem me senhor José Belízio Dias Ramos foram julgados
indicou pra ser prefeito de Amapá para o general culminado com a absolvição dos réus pelo cri-
Luís Mendes, foi o Dom Aristides Piróvano, Bispo me de atear fogo no edifício da Prefeitura Mu-
da Prelazia de Macapá” 72 . Para justificar sua de- nicipal de Amapá, na ocasião o Juiz de Direito
missão arbitrária do cargo, Leonel Nascimento em exercício Benjamim Lisboa Rayol ressalta a
afirmou que o Secretario José Índio Machado inexistência de provas ou qualquer indício de
forjou um incêndio na prefeitura do município que os réus sejam os autores do fato ocorrido
de Amapá. naquele município.

71 Leonel Nascimento. Depoimento concedido a CEV/AP, em 10 de dezembro de 2013.


72 Ibidem.
73
Ibidem.
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Documentos referente ao processo Demissão de Leonel Nascimento

Acervo Pessoal de Leonel Nascimento


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46

Tenente José Alves Pessoa quentado, começou a combater a revolução,


Nos depoimentos concedidos à CEV-AP pe- mesmo não sendo militarmente, e sim com
los filhos do tenente José Alves Pessoa, Tânia idealismo: falar, protestar, discursar. Aí, ele
Mercedes Costa Pessoa e Luís Carlos da Costa começou a ser preso.74
Pessoa, são descritos os detalhes da persegui-
ção política que seu pai e sua família sofreram, Segundos os filhos, tenente Pessoa, sentin-
desde de 1964, até o seu falecimento, em 1979, do-se injustiçado, passou a combater as perse-
bem como sua exoneração do Exército. guições do governo ditatorial de Luiz Mendes
José Alves Pessoa nasceu em Natal, no Rio da Silva, refutando todas as acusações em car-
Grande do Norte, em 20 de março de 1903. En- ta pública, de 21 de outubro de 1964, endere-
tre os anos de 1936 a 1942, tenente Pessoa ser- çada aos amapaenses: “não sou corrupto nem
75
viu nas unidades militares de alguns estados ladrão. Não sou comunista nem subversivo!” .
brasileiros, como Amazonas (Manaus), Rorai- Tenente Pessoa pertenceu ao Clube dos
ma (Porto Velho), Pará (Belém), Maranhão (São Treze, grupo de amigos que se reuniam nos fi-
Luiz) e Amapá (Clevelândia do Norte, no muni- nais de semana para momentos de lazer. Po-
cípio de Oiapoque) atuando como comandante rém, segundo relato de seus filhos, essas reu-
no Tiro de Guerra. Em 1946, filiou-se ao Par- niões não eram bem vistas pelas autoridades,
tido Comunista Brasileiro (PCB) no Pará, onde que consideravam seus membros subversivos.
candidatou-se a deputado estadual, em 1947. Inclusive, posteriormente, alguns de seus inte-
Com o Ato Institucional nº 01, de 09 de grantes, visando vantagens políticas no gover-
abril de 1964, imposto pelo Comando Supremo no de Luís Mendes, delataram o referido tenen-
da ditadura militar no Brasil, foi exonerado dos te como comunista:
cargos de delegado regional do Serviço Social
da Indústria – SESI/AP e do cargo comissio- Aqui em Macapá existia o Clube dos Treze e
nado de superintendente de abastecimento do o papai pertencia a esse clube. Então, desse
governo do T.F.A. Contudo, as perseguições Clube dos Treze que eram amicíssimos nos-
políticas não cessaram. A partir de inquérito sos, ele chegou a revelar, esse pessoal. Eu
da Comissão de Investigação Sumária – CIS, e não sei se por covardia ou pra se vingar de
com a implantação do Departamento Militar no alguma coisa, armou um esquema pra de-
Amapá, o tenente Pessoa foi acusado de pertur- nunciar ele: “ – Olha! Esse aqui é comunis-
bador da ordem pública e comunismo, sendo ta!”. E eles ficaram por cima na Revolução
desligado, arbitrariamente, do exército, em 09 e o papai sofreu todo esse tipo de punição! 76
de outubro de 1964.
Durante a vigência da ditadura, Tenente
Ele foi cortado paulatinamente, na questão Pessoa foi repetidamente investigado e punido
do exército que ele foi considerado morto, pelo regime por ter militado no PCB. Foi pre-
chamavam de morto vivo; foi exonerado do so e interrogado na Fortaleza de São José de
SESI, ele era secretário da SAF, que hoje Macapá em diversas ocasiões. Posteriormente
seria a Secretaria de Agricultura ou coisa suas reclusões aconteceram em prisão domi-
assim. Então, ele foi perdendo tudo isso ciliar.
aí, foram cortando. Ele foi ficando isolado
e massacrado. Hoje se chama bullying. Foi O que foi que aconteceu? Ele começou a
o que aconteceu. Psicologicamente ele foi fi- ser preso. Começou a vim ministros aqui,
cando afetado, e como ele já era meio es- prendiam ele. “ – Vai chegar ministro tal”,

74
Luís Carlos da Costa Pessoa. Depoimento concedido à CEV/AP, em 18 de fevereiro de 2014.
75
PESSOA, José Alves. “Carta aos meus amigos e ao povo do Amapá”. Macapá, 21 de outubro de 1964. (Arquivo Pessoal
do Tenente Pessoa).
76
Luís Carlos da Costa Pessoa. Depoimento concedido à CEV/AP, em 18 de fevereiro de 2014.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
47

prendiam ele e levavam para a Fortaleza. nha de Macapá quase todo tempo”, ele ci-
Começou o tempo da Fortaleza. Ali onde é o tando isso e era o papai. Ele não lembrou o
Museu Joaquim Caetano, ali era a central, nome. Ele só citou que tinha um tenente que
Delegacia de Polícia, e lá embaixo tinha um vinha de Macapá, e todo tempo eles se en-
porão. Ele foi preso várias vezes ali. Eu fui contravam nessa Casa das Onze Janelas. E
levar comida pra ele de bicicleta várias ve- esse meu cunhado disse: “ – Olha, está aqui
zes. Nem comida eles davam. Não deixavam o porão que eles ficavam jogados”. Eu disse:
nem a gente falar. Era assim que funciona- “ – Como é que era? ”, ele disse: “ – Isso aqui
va [...]. Numa vez veio um presidente, não ficava isolado. Era o SNI que tomava conta
sei se foi Costa e Silva, ele botou uma faixa dessa área”. Eu fui saber disso ano passa-
escrita “vai de reto satanás”, aí prenderam do, pra você vê como são as coisas.78
ele e disseram: “ – Tu vais ficar em prisão
domiciliar”. Ficava o carro da polícia na Até a sua morte, em 22 de outubro de
frente de casa.77 1979, ele permaneceu excluído do exército,
sendo considerado oficialmente morto perante
Em algumas dessas prisões, tenente Pes- as autoridades e, somente em maio de 1980,
soa era transferido para Belém. Durante esses sua família recebeu o comunicado oficial do
percursos entre uma cidade e outra sofria com seu processo de anistia política. Segundo seu
a tortura psicológica imposta pelos militares, filho:
que ameaçavam jogá-lo do avião no rio Ama-
zonas. Essas detenções no Pará duravam em Ele esperou a anistia em 1979, foi em agos-
média vinte dias, em porões de um quartel mi- to de 1979, ele morreu em outubro. E o de-
litar chamado de Casa das Onze Janelas, sob creto que o anistiou oficialmente em maio de
o comando do Serviço Nacional de Informações 1980, ele já estava morto. A mamãe recebia
(SNI). Em visita a Belém, em 2013, seu filho, uma pensão. Nesse período de 1964 a 1979
Luís Pessoa, descobriu, acidentalmente, que ele já era considerado como morto.79
seu pai esteve custodiado neste quartel:
Em 07 de maio de 2015, depois de um lon-
Ano passado em 2013, eu fui naquela Casa go processo na justiça, a Comissão de Anistia
das Onze Janelas, lá em Belém, aquilo ali do Governo Federal concedeu a José Alves Pes-
era um quartel militar antigamente. O meu soa a condição de anistiado político post mor-
cunhado me levou lá e eu fui conhecer. Ele tem e uma “reparação econômica de caráter
estava me dizendo: “ – Eu servi aqui e tal”, indenizatório, em prestação única pelo período
eu disse: “ – Foi? quando foi?”, “ – Na época compreendido entre 16.05.1966 a 28.08.1979,
da revolução”. Eu disse: “ – E como é que totalizando 14 períodos de perseguição política,
80
era?”, “ – Vinha uns presos, inclusive de destinada a seus sucessores” . Para os filhos, a
Macapá”, ele dizendo “ – Eles ficavam ali, perseguição política vivenciada pelo pai, e suas
lá embaixo do porão”. Ele me mostrou. Eu consequências para a vida pessoal e familiar,
disse: “ – Sabe quem vinha? Era o papai que ainda é uma memória traumática. A busca pela
vinha! [...] ele vinha meio estragado”. Um reparação por parte do Estado brasileiro e os
dia desse eu vi também que o Jinkings lá de depoimentos concedidos a CEV-AP significam
Belém, que tem a livraria Jinkings, ele citou. tentativas de lidar com esse trauma.
Ele disse: “ – Olha, tinha um tenente que vi-

77
Luís Carlos da Costa Pessoa. Depoimento concedido à CEV/AP, em 18 de fevereiro de 2014.
78 Ibidem.
79 Ibidem.
80 MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA. Relatório e Voto do processo de anistia e reparação econômica do Tenente José Alves Pessoa.
DJULG/CJF/CGP/CA. Brasília, 07 de maio de 2015.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

Documentos referente ao processo de Anistia do Tenente José Alves Pessoa

Acervo Pessoal do Tenente José Alves Pessoa

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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2.8. Operação Engasga altura, por cima dos quintais, muros e casas.
O objetivo deste tópico é descrever uma Dispunham de óculos especiais que lhes permi-
manifestação particular de violência pratica- tiam uma perfeita visão noturna e substâncias
da por agentes do regime contra a população que os tornavam invisíveis.
amapaense em geral, mas tendo como foco os Os “engasgadores” eram concebidos, em úl-
suspeitos de subversão e desafetos políticos. tima instância, como entes dotados de poderes
A Operação Engasga, ou “Engasga-Engasga”, supra-humanos, comparados a entidades mito-
como ficou popularmente conhecida a Opera- lógicas que povoavam a mentalidade e a cul-
ção Militar, de 1973, no Amapá, foi uma ação tura da maioria dos amapaenses, tais como, o
de terror de Estado que produziu, no imaginá- “curupira”, a “matinta pereira”, a “cobra Sofia”,
rio social, um medo generalizado, desdobrado “a mãe do rio” entre outros. Mitos esses inscri-
em uma aversão ao comunismo, servindo como tos muito além do folclore; na verdade consti-
uma estratégia de controle e consenso. tuíam-se em entidades organizadoras da vida
O governo de José Lisboa Freire (novembro comunitária. A despeito do pânico disseminado,
de 1972 a abril de 1974) foi marcado pela de- nenhuma mulher chegou a ser assassinada ou
flagração da Operação Engasga, que pode ser gravemente ferida nestes ataques. Há relatos de
considerada o auge da repressão do regime di- vítimas que teriam tido pequenos ferimentos no
tatorial no Amapá, e que surge como um exem- pescoço, em razão de uma suposta luva coberta
plo peculiar da realidade amapaense, ajudando por uma lixa grossa que era usada pelo agres-
a entender como, a despeito do poder de for- sor ou agressores, muito embora não tenham
ça envolvido pelos militares e forças policiais, sido localizados por esta comissão nenhum re-
para estabelecer o controle social e eliminar gistro de ocorrências ou inquéritos policiais.
opositores, foi engendrado, também, um esfor- Como um complemento à narrativa do “en-
ço de convencimento, no sentido de construção gasga-engasga”, convém relatar dois outros
de um imaginário em que “comunistas” eram acontecimentos, que ocorrem antes de maio de
identificados como inimigos públicos. A retóri- 1973, também sintomáticos da instrumenta-
ca da existência de perigo comunista iminente, lização que os agentes da ditadura faziam do
advindo da ação de elementos vis e perniciosos, imaginário fantástico da população. O primei-
servia para justificar socialmente a investida ro, em março de 1972, um boato correu entre
policial na cena pública e na vida privada dos os estudantes e suas famílias. Em Macapá, uma
suspeitos. mulher loura andava distribuindo gratuitamen-
Em maio de 1973, algumas mulheres pro- te bombons envenenados. Diziam se tratar de
curaram a Rádio Educadora São José de Ma- uma comunista disfarçada que tencionava se-
capá e a polícia para se queixarem de que ha- mear o germe da desordem social. Não é difí-
viam sido agredidas e submetidas à tentativa de cil perceber o impacto que esta notícia causou
estrangulamento por um homem encapuzado. nas famílias dos estudantes. A polícia jamais
Denúncias no mesmo teor foram se intensifi- apresentou oficialmente qualquer suspeita ou
cando e, em junho, a população vivia um clima a conclusão das investigações, se é que foram
de pânico e de histeria. A tensão era agrava- instauradas.
da por estranhos cortes de energia elétrica, que O louro, ou a loura, não era um tipo físico
coincidiam com saída de estudantes, no turno comum, na época, no Amapá. Daí não ser uma
da noite, e com os ataques inexplicáveis. A pro- interpretação despropositada ver nestes acon-
liferação de relatos sobre ataques disseminou, tecimentos o uso instrumental pelo regime di-
primeiramente, o pânico e, em seguida, uma tatorial da resistência da cultura tradicional e
busca de entendimento e significação para o comunitária ao forasteiro, ao estranho que ame-
que estava ocorrendo. Amalgamando aspectos aça sua quietude e sua ordem. Este forasteiro
fantásticos e tecnológicos, o imaginário popular pode ser tanto uma pessoa quanto uma ideia,
começou a caracterizar os “engasgadores” como um valor que ameace sua estabilidade. Neste
seres com superpoderes. Dizia-se que possuí- sentido, tanto o comunismo, quanto o progres-
am molas potentíssimas em seus calçados, ca- so eram ideias estranhas e ameaçadoras.
pazes de impulsioná-los a mais de 10 metros de O segundo acontecimento ocorreu em no-
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
50

vembro de 1972. Acalmados os ânimos da No curso destas denúncias e neste clima de


população em relação aos “bombons envene- terror propagado, a polícia desencadeou uma
nados”, um novo boato colocava, novamente, intensa campanha persecutória e prendeu cer-
sob tensão a sociedade amapaense. Macapá ca de vinte e oito pessoas, não por coincidên-
possuía na época uma única estação de trata- cia, as mesmas – em sua quase totalidade – que
mento de água. Segundo informações de inte- haviam sido presas e torturadas nos primeiros
grantes do governo territorial, um dos tanques dias de abril de 1964. O relato de Meton Jucá
reservatórios sofrera um atentado, tendo sido revela esse cenário de prisões indiscriminadas.
contaminado com uma significativa quantida-
de de veneno letal, capaz de matar milhares de Volta e meia a gente estava preso. Era as-
pessoas em poucas horas, mas que, felizmente, sim sem nenhuma explicação. Encontravam
havia sido descoberto a tempo pelas autorida- a gente na rua de noite: “ – Tá preso”. Le-
des. Novamente os comunistas foram respon- vavam, botavam na delegacia. Se a gente
sabilizados. estivesse no bar, na farra, andando na rua,
A permanência deste ambiente de boatos e pegavam a gente e levavam sem nenhuma
com esse clima de tensão, atingiu seu auge com explicação formal, sem nenhuma formali-
a proliferação do imaginário dos “engasgado- dade. Chegava lá tirava o cinto, a meia. Se
res”. A Operação Engasga se valeu deste imagi- tivessem alguma coisa no bolso, entregava.
nário para legitimar uma intensificação da ação Naquele tempo todo mundo usava pente,
repressiva do Estado. Era necessário chamar, lenço e meia. Faziam uma trouxa com aqui-
de algum modo, a atenção do centro de poder lo, escreviam o nome da pessoa num papel
ditatorial para o “perigoso” Amapá. Segundo o e botavam em cima. No outro dia de manhã
depoimento de Meton Jucá à CEV-AP, foi então mandavam a gente embora [...]. Não tinha
que, por volta de fevereiro de 1972, um plano depoimento. Nada! Não tinha absolutamen-
começou a ser urdido no gabinete do secretário te nada! Era só para mostrar o peso, a força
de segurança, coronel Índio Machado, asses- que eles tinham. [...]. Eu lembro de uma vez
sorado por alguns oficiais da Policia Militar do que nós estávamos bebendo ali pelas ban-
Paraná. das do Mercado Central e chegou o “violino”
que era o carro da polícia na época: “ – Bora,
Havia aqui um cidadão que se chamava todo mundo preso!” “ – Por que? O que foi?”
”Coronel Índio Machado”. Esse camarada é Chegou lá nesse porão que funcionava a DIC
que tomava conta da segurança dos milita- (Delegacia de Investigação e Captura) foi
res aqui de Macapá. E foi exatamente nessa feito essa identificação. Pega nome e tal, o
época em que ele estava aqui, que ele forjou que tem nos bolsos e deixa lá. Nessa noite
essa história do “Engasga-Engasga” para o Elson estava conosco. Era o Elson, era o
poder conseguir recursos, espaço e aval dos Balofa, eu, o Mário Cruz..., enfim.82
militares para criar aqui uma Policia Militar.
Esse movimento “Engasga-Engasga” foi um É possível perceber o horror pelo qual es-
fator inventado pelos militares para criar sas pessoas passaram, a partir da rememora-
aqui a Policia Militar. Porque não havia Po- ção de Odilardo Lima, que ironicamente acabou
licia Militar. A nossa polícia aqui era um ‘ar- tornando-se delegado de polícia, e na época era
remedo’ de Policia Civil, e Guarda Territorial líder comunitário ligado à Igreja Católica e jor-
que funcionava lá na fortaleza [São José de nalista da Rádio Educadora. Lembra Odilardo
Macapá]. Os policiais da Guarda Territorial que, ainda no mês de maio de 1973, época em
eram uns militares muito brutos e truculen- que trabalhava como redator da Rádio Educa-
tos que abordavam a gente na rua a peso de dora, quando saía de um dia de trabalho em
grito, de porrada, de coronhada81 um final da tarde, foi abordado no pátio exter-
no da emissora por uma equipe do aparelho de

81
Meton Jucá Junior. Depoimento cedido a CEV/AP, em 24 de fevereiro de 2014.
82 Ibidem

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
51

repressão composta pelo tenente Josemir, por nessas pessoas.


Lourival Alcântara, representante do Serviço
Nacional de Informação do gabinete do gover- abriram o porão e botaram todos de mãos
nador, o delegado Espíndola da Delegacia de para cima, chamando-nos de comunistas e
Ordem Política e Social-DOPS e o policial João terroristas. Aí fizeram a revista. Apertaram
Cardoso Neto, o “Bolero”: “o tenente Josemir me tanto meu saco que quase não aguento. De-
disse que o secretário de segurança [José Índio pois nos levaram para outra cela, aos pou-
83
Machado] queria falar comigo” . Estranhou o cos. Cinco degraus separavam o nível do
convite do secretário. Intuía que não era verda- solo do porão para onde fui levado. Na porta
de, mas desde abril de 1964, acostumara-se a havia dois caras encapuzados. Um sujeito
ser inesperadamente interpelado e detido pela me empurrou e fui aparado na porrada. O
polícia. Odilardo Lima nem chegou a ir ao pré- Isnard Lima e o Capiberibe estavam apa-
dio da Secretaria de Segurança Pública, foi le- nhando. Apanhavam lambadas de arame,
vado diretamente para a Fortaleza São José de socos e pontapés, com as perguntas e os pa-
Macapá, sem poder comunicar aos seus fami- lavrões. Fui torturado durante duas horas.
liares o seu paradeiro. Depois nos manietaram com arame e corren-
Ao chegar à fortaleza, um soldado olhou te. Eu fui manietado com arame. Havia um
para as suas alpercatas e comentou: “Vejam só, caminhão do exército nos esperando. Nos
é ele mesmo! Olhem como os pés dele estão sujos jogaram lá como se joga porco. Quando me
de barro”. Só então percebeu que estavam que- atiraram lá, o arame começou a cortar meus
rendo ligá-lo às recentes agressões que vinham pulsos. Aí eu fiquei de um jeito que não cor-
sendo supostamente praticadas na cidade con- tasse as veias. Antes disso, nós fomos enca-
tra as mulheres. Segundo Odilardo, ele foi um puzados e levados para uma sala. Lembro-
dos primeiros presos a chegar ao porão que fica me que chamavam pro cara que estava nos
logo na entrada da fortaleza. Logo depois foram interrogando de coronel. O carro nos levou
chegando pessoas conhecidas: João Capiberibe até o aeroporto. Nós continuávamos encapu-
(irmão do atual senador João Alberto Capiberi- zados e foi lá no aeroporto que o vento levan-
be), Francisco das Chagas Bezerra (Chaguinha), tou meu capuz e eu pude ver o caminhão e
Jorge Fernandes Ribeiro (Jorge Padeiro), Ale- um C-47 da FAB. Eles ameaçaram jogar a
xandre Fernando Ribeiro (filho de Jorge Padei- gente lá de cima. No avião encontramos ou-
ro), Isnard Lima Filho, Olivar Cunha, Paul Ler- tros presos, estes acorrentados. Mas aí que
rouge, dentre outros. Passados dois dias da sua entrou o comandante do avião. Ele discutiu
prisão, Odilardo, ativo militante da juventude com o cara do exército que havia nos levado
católica, recebeu a visita do bispo de Macapá, e disse que no avião quem mandava era ele
Dom José Maritano. e que não iria se responsabilizar pela mor-
te de ninguém dentro da aeronave. Depois
Para falar com o bispo eles me mandaram mandou afrouxar o arame e tirar o capuz.85
para outro prédio. Ao atravessar a ala entre
o porão em que eu estava preso e o prédio Transferidos para Belém, os presos, entre
sequente, vi o delegado Antero que estava eles uma das mulheres acusadas da distribui-
selecionando correntes e cadeados e ouvi ele ção de “bombons envenenados”, foram encami-
comentar qualquer coisa sobre Belém. Aí não nhados para a 5ª Companhia de Guarda, sedia-
dei mais um tostão pela minha vida.84 da no Forte do Castelo. Levaram-lhes comida:
carne em conserva, ovos, arroz e feijão. Na pri-
A citação a seguir é importante por dar con- meira noite, chegou o sargento Uberdan Matos,
ta do tratamento recebido pelos presos da Ope- conhecido de Odilardo, da época em que o pre-
ração Engasga e das marcas que esta deixou so serviu como cabo no 2º Batalhão de Infan-

83 SANTOS. Op.cit., p.74.


84 Ordilardo Lima. Entrevista. In: Resistência, Belém, maio de 1980.
85
Ibidem
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
52

taria de Selva. Odilardo afirma que o sargento íamos. Começamos a sair e procurávamos
Uberdan aproximou-se meio desconfiado, e lhe passar o tempo todo fora. Ninguém tinha
perguntou o que tinha acontecido: “ – Não sei, interesse em voltar ali. Aquilo tinha-nos dei-
86
estou nesta canoa ...” respondeu. Pouco mais xado com os nervos sensíveis. Tomávamos
tarde surgiu um homem à paisana que, pela de- cachaça no Ver-O-Peso, com peixe frito, e em-
ferência com que foi tratado pelo guarda, levou prestávamos dinheiro de conhecidos nossos.
Odilardo a concluir que se tratava de um ofi- Tenho um tio que ficou apavorado quando
cial. Foi justamente este homem que reiniciou me viu. Ele é reformado da marinha e ficou
as humilhações e sevícias: com medo de ser comprometido. [...] íamos
para a casa de uma parenta do Capi e tele-
mandava a gente levantar os braços, deitar, fonávamos [ao quartel] avisando que dormi-
levantar... ninguém dormiu. Quando íamos ríamos fora. [...]. Haviam se passado vinte e
cochilando eles batiam com a bota no chão cinco dias, desde que chegamos em Belém
de madeira. Lá pelas tantas começaram a até a nossa partida. Um dia chegou o aviso
chegar soldados curiosos que nos xingavam pra gente se arrumar. Um carro do exército
e afirmavam que seríamos jogados na Baía levou-nos para o avião, do mesmo tipo que
de Guajará, com pedras amarradas nos pés. viemos pra Belém, e regressamos a Macapá.
Eu tremia todo de puro esgotamento. O pes- Voltou todo mundo.89
soal também.87
O depoimento abaixo, de Alexandre Fernan-
Transcorrida uma semana da chegada a do Ribeiro, é bastante impactante, ao demons-
Belém, os presos foram separados. Uns ficaram trar como a Operação Engasga foi a inflexão da
no Forte do Castelo, outros foram conduzidos perseguição política, com aumento expressivo
ao Quartel do 2º Batalhão de Infantaria de Sel- no número de prisões. Através dele é possível
va. O critério provável para esta seleção, segun- a reconstrução do terror vivenciado, sobretudo,
do entende Odilardo, era o grau de comprome- por aqueles que foram presos por essa opera-
timento com as ideias de subversão à ordem ção em Macapá e conduzidos coercitivamente
88
ditatorial . Separado o “joio do trigo”, iniciou-se à Belém.
um longo e penoso interrogatório que se prolon-
garia por vários dias com indagações sobre a Em 1973 na crise do Engasga [...] nós fomos
vida privada, sobre as atividades políticas e so- levados pra Belém daqui [...]. Eu fui algema-
bre a vida militar de Odilardo. Os presos foram do no avião, papai também foi algemado.
mantidos muitos dias nesta rotina de interroga- Eu fui no avião num teco-teco, digamos um
tórios constantes e de violências cotidianas, até teco-teco, e eles foram, me parece que, num
que as condições do encarceramento começas- búfalo da FAB. Porque papai, Fernando (que
sem a ser abrandadas: é meu irmão), Periquito (Raimundo Pereira
Duarte), filhos do Periquito, alguns deles, o
deixaram a gente tomar banho de sol e al- Tupã, inclusive. Outras pessoas... uma in-
moçar com os soldados e daí a cinco dias finidade de pessoas. Fomos levados para
nos libertaram. Um oficial moreno disse que aquele forte, não sei qual é o nome da com-
a gente era hóspede oficial do governo e que panhia ali no Ver-O-Peso [...]. Então chega-
passaríamos para os alojamentos dos solda- mos lá, foi aquela comitiva. Como era muita
dos e que poderíamos sair a qualquer hora, gente, umas pessoas foram lá para o CPOR
mas chegar antes das 22 horas e dizer onde (Centro de Preparação de Oficiais da Reser-

86
Ordilardo Lima. Entrevista. In: Resistência, Belém, maio de 1980.
87 SANTOS. Op.cit., p.77
88 “Ao que tudo indica os mais suspeitos ficaram no Forte do Castelo: eu, Alexandre, Jorge, Fernando Ribeiro, Paul Ler-

rouge. O Alexandre tinha sido baleado pela polícia de Macapá, dentro da casa dele, e passou mal com aquela rótula... havia
mais o Capiberibe e um epiléptico.” In: SANTOS, Op. cit,, p. 77.
89
SANTOS. Op.cit., p.79-80.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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va). Eu estava numa situação crítica porque dre, com mencionado anteriormente, foi aquele
eu havia levado um tiro. Eu havia perdido atingido por um tiro em uma das pernas, fato
muito sangue. Eu estava recém operado e remorado por vários depoentes.
fui colocado lá e aí me chamaram. Chama- A maranhense Carmozina Tavares Lima,
vam de um por um para dar depoimento. As na época ainda adolescente relembra o episódio
perguntas mandadas pelo senhor secretário em que Alexandre foi baleado e preso.
de segurança, na época, parece que era o
Ivan [...]. E havia uma imensidade de insa- Aí em 73 no “Engasga-Engasga”, levaram
nidade, perguntas malucas, extrapoladas todas as pessoas que supostamente eram
[...] uma coisa sem nexo, coisa de gente doi- comunistas, que moravam aqui. Elas foram
da. Aí faziam perguntas. Aí terminava esse presas. O filho do seu Jorge, o Alexandre,
vinha outro, você pensa que você ia folgar foi baleado. O rapaz estava dormindo, aí
vinha outro, conta tudo de novo. [...] eles quando foi ver aquela confusão todinha: “
queriam caçar uma agulha dentro de um pa- – Engasga-Engasga!”, ele se levantou e cor-
lheiro, porque não sei como é que alguém po- reu para o quintal para ver o que era, aí ati-
dia achar alguma coisa dentro de um mundo raram na perna dele. Quando ele foi preso,
fantástico de coisas, de pergunta sem nexo. para Belém, que eles foram presos para lá,
Por que isso aí? Eu acho que esse secretá- ele foi baleado e só foi socorrido da bala lá
rio, ele tinha forjado alguma coisa para jogar em Belém. Foram amarrados, em 73, ao in-
culpa no pessoal que já tinha fama de comu- vés de colocarem algemas, colocaram ara-
nista e tal, visando o que? Desestabilização. mes. Eles foram no avião transportados com
Então vamos pensar por esse lado, desesta- arames nos braços.91
bilizar o que? A ordem. Por quê? Criaram um
movimento aqui que havia um camarada, Carmozina Tavares corrobora com a afir-
estrangulava mulher e saia pulando cerca. mação de que o cotidiano da população foi
Ora, então seria um maníaco? Tudo bem. profundamente afetado por esta operação. Ela
Um maníaco, ele tinha cabelo grande, usava foi esposa de Isnard de Lima Filho, bacharel
barba grande e tinha unhas grandes e ele ti- em direito e poeta, autor de obras como: Ma-
nha uma facilidade para sumir. [...]. Mas era rabá azul, Rosas para a madrugada, Memórias
fantástico como aquilo desestruturou, tirou de um cárcere e Poemas para um amor cigano.
a paz, saiu da rotina a cidade de Macapá, Esta última foi censurada e quase todos seus
sabe?! Então, eles queriam pegar alguém exemplares foram recolhidos no dia de seu
para jogar essa responsabilidade para al- lançamento por suposto conteúdo comunista.
guém. Para ver se alguém encaixava naque- Abaixo descreve o cenário do medo vivenciado
la carapuça. Só que quem estava colhendo pela população amapaense, comentando, tam-
o depoimento era pessoas de credibilidade, bém, sobre as prisões de seu marido no prédio
era agente, tenente do Exército, suboficiais. que hoje é o atual Museu Histórico Joaquim
O que se dizia estava anotado.90 Caetano da Silva:

Alexandre lembra como sua a família foi Ser PM (policial militar) já era um poder e
afetada pela Operação Engasga. Seu pai foi com essa autoridade de 64 o poder cresceu.
à falência em seu empreendimento de panifi- Eles deixaram de ser só um representante
cação pouco tempo depois de ter sido preso e de poder, o poder quadriplicou, eles podiam
acusado de sindicalismo subversivo atrelado à tudo. Você não podia falar. Se você recla-
ideologia “esquerdista comunista”, e por sua hi- masse você ia preso. Era a “lei do cala boca”,
potética participação no “engasga-engasga”. A ficar com a boca calada. E as pessoas que
população deixou de consumir seus pães, pois estavam próximo de você tinham medo de
acreditava que estavam envenenados. Alexan- se aproximar. Porque se você é considerada

90 Alexandre Fernando Ribeiro. Depoimento cedido à CEV/AP, em 12 de fevereiro de 2014.


91 Carmozina Tavares Lima. Depoimento concedido à CEV/AP, em 21 de fevereiro de 2014.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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comunista e eu ando com você, eu vou ser A importância deste depoimento é indicar
comunista. Até isso, você começar a ter uma que agentes da repressão não acreditavam na
separação social, você tem uma separação existência real do engasgador (ou engasgado-
social. Poucas pessoas ficaram assim de- res). Conforme José Lucio, em nenhum mo-
pois de 73, só aqueles amigos mesmo fieis mento de suas diligências essa figura que des-
ficaram junto com o Isnard, formavam aque- pertava o terror da sociedade amapaense foi
le grupo. Mas muitos que frequentavam a avistada ou apreendida pelas forças policiais.
nossa casa, que se diziam, eram poetas, e Rui Gonçalves Lima, técnico judiciário do Tri-
eu também não condeno, até porque quem bunal de Justiça do Amapá, relembra o impacto
tem família tem medo. Era uma coisa as- social da Operação Engasga:
sim, não é como hoje que se você pega uma
pancada você vai na televisão, você vai no O “Engasga-Engasga” se tornou essa psi-
rádio, você reclama, você passa no e-mail, cose, né? [...] tinha esses acontecimentos,
todo mundo sabe, e aí você consegue agru- [...] mais assim a noite, quando as pessoas
par um grupo de pessoas pra te defender ou saiam do colégio [...] desligava a energia,
pra dar uma opinião favorável a você. [...]. Aí apagava, dava aquele apagão na cidade.
quando prendiam o Isnard, levavam pra lá, Aí, depois começava aquele corre-corre, as
então tinha um porão, aí ele gritava, porque viaturas andando, correndo, e as pessoas
ele tinha uma voz pra berrar, ele barrava de dizendo que estavam engasgando. Espa-
lá, a tia Valquíria ouvia. Aí coitada, ela ia lharam uma onda de boataria [...] e aquilo
chorando, ia atrás do Petcov. Petcov era um ali aterrorizava todo mundo. Aí, as pessoas
advogado que tinha aqui, ou atrás do Cícero já viam qualquer movimento estranho, qual-
Bordalo pra ir tirar ele de lá.92 quer uma pessoa olhando, correndo, ou en-
tão, aí já tinha aquele pânico na cidade.94
JLP, da associação dos guardas territoriais,
ingressou na hoje extinta Guarda Territorial, O testemunho de um personagem que in-
em 1973, no auge desta operação. Em depoi- tegrou o sistema repressivo, João Francisco
mento concedido à CEV/AP relembra este clima Cardoso Neto, o “Bolero Neto”, como é popu-
de terror vivenciado pela população amapaense larmente conhecido, que atuou como 3º escri-
dos anos 1970, conforme trecho a seguir: vão do Dops, na época do “Engasga-Engasga”,
apresenta uma das teorias explicativas para o
Na época a vítima, era a sociedade em si. empenho das autoridades na operação, vincu-
Todas aquelas pessoas viviam aquele clima lando o “Engasga- Engasga” à criação da Polícia
como se fosse uma guerra, [...] seis horas Militar:
da tarde todo mundo fechava as janelas e
portas, pregavam portas, pregavam janelas Esse “Engasga-Engasga” foi uma história
com medo da situação. Então, não tinha uma que implantaram aqui para criar a Polícia
pessoa assim para dizer hoje: “ – Hoje eu es- Militar. Isso aí foi quase que notório [...] veio
tou com medo das pessoas que engasgam”. o coronel Gentil Almeida Campos lá do Rio
Era a sociedade em si que ficava temerosa, e Grande do Sul para fazer esse movimento e
até hoje as pessoas ainda o tem como se fos- criar a polícia [...] isso nunca saiu da minha
se um momento de pânico, e não buscaram cabeça.95
ainda. [...}. Teve vítima sim, só que a gen-
te não tinha como chegar lá. Eu pelo menos Ainda segundo o depoente, uma das jus-
não cheguei um dia, assim, a socorrer uma tificativas empreendidas pelos militares para
daquelas pessoas, entendeu? 93 a utilização do “mito” dos engasgadores, era o
fato de que com a criação da Polícia Militar eles
92
Carmozina Tavares Lima. Depoimento concedido à CEV/AP, em 21 de fevereiro de 2014.
93 JlP.Depoimento cedido a CEV/AP, em 12 de novembro de 2014.
94
Rui Gonçalves Lima. Depoimento concedido a CEV/AP, em 20 de fevereiro de 2014.
95
João Francisco Cardoso Neto. Depoimento cedido a CEV/AP, em 29 de agosto de 2014.
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poderiam ascender na carreira e aumentar seus refere à afirmação de que a Operação Engasga
soldos, equiparando-os aos agentes de Polícia foi arquitetada pelos militares e pelos agentes
Federal. Parte dessa elite, mais diretamente de repressão no Amapá como uma forma de
ligada ao aparelho repressivo, entendia que a justificar a necessidade de criação da Polícia
Guarda Territorial não atendia mais a organi- Militar, que o processo de militarização da po-
zação, a cientificidade e a profissionalização ne- lícia é uma das marcas do regime em âmbito
cessária para uma moderna ação coercitiva. nacional. Um exemplo disso é que, desde 1972,
O depoimento de pessoas ligadas ao apare- os Territórios Federais de Roraima e Rondônia
lho repressivo diminuem o significado e a abran- já haviam iniciado as articulações para a subs-
gência da Operação Engasga. O fato é que ela, tituição de suas guardas territoriais por policias
embora não oficialmente reconhecida, permane- militares, o que permite supor que, mais cedo
ce viva na memória de quem a vivenciou, em ou mais tarde, este processo também ocorreria
Macapá. Este processo pode ser compreendido no Amapá, como, de fato, aconteceu em 26 de
como algo muito maior do que somente o uso do novembro de 1975.
aparato policial e militar para reprimir e prender Saber o que se passava na cabeça dos
supostos terroristas e comunistas. Ela deve ser construtores da Operação Engasga ainda é
entendida, também, como uma política de esta- um desafio. A ausência de documentos oficiais
do para a disseminação de boatos e instalação sobre o ocorrido e a recusa de seus principais
de um clima de terror social generalizado. protagonistas em se manifestarem, produziu
Pelo menos em um aspecto os militares muitos apagamentos e silenciamentos. A au-
acertaram, conforme documentos internos do sência de documentos oficiais (considerando-
Partido Comunista Brasileiro, colhidos pelo se a destruição massiva de fontes históricas do
Projeto Brasil Nunca Mais – e custodiados no período, deliberadamente ou não) dificultam a
Arquivo Edgard Leuenroth –, desde o final da comprovação oficial da Operação Engasga, en-
década de cinquenta, Chaguinha, Jorge Padeiro tretanto, as oitivas realizadas pela CEV-AP são
e Nehemias Nascimento eram importantes lide- indícios fortes de sua existência. Daí a impor-
96
ranças do partido no Amapá. É importante no- tância desses depoimentos, mais do que des-
tar que, logo após a prisão e envio para Belém vendar as razões que motivaram o surgimento
de um número expressivo de pessoas acusadas de uma operação militar de cunho repressivo,
de serem “engasgadores” e “comunistas”, os estes possibilitam uma reflexão acerca da res-
ataques cessaram. Esta relação, embora possa significação dada pela cultura local a tal acon-
ter sido lida por alguns, à época, como prova da tecimento e do uso do medo como instrumento
culpabilidade dos acusados, hoje parece indi- de controle pelo regime.
car que os objetivos da “Operação Engasga” te- Mesmo que se considere a hipótese de te-
nham sido atingidos: tirar de circulação efetivos rem concebido um plano, simplesmente, como
ou potenciais opositores do regime e disseminar mais um recurso de intimidação e difamação
um clima de desconfiança, tensão e medo na dos opositores do regime, ou então como es-
sociedade. tratégia para justificar e forçar o governo bra-
Algumas perguntas teimam em inquietar sileiro a criar a Polícia Militar no Amapá (e,
as mentes das pessoas que sofreram neste epi- independentemente de ter sido arquitetada ou
sódio: Por que esta encenação? Quais as razões não por agentes da repressão), a operação foi
de sua montagem? Os depoimentos e indícios decisiva para o desmantelamento da resistên-
coletados pela CEV-AP parecem indicar que cia à ditadura, deixando marcas profundas no
agentes da repressão entenderam a operação imaginário social amapaense, que permane-
como forma de se conseguir a militarização da cem vivas nas memórias das vítimas e de seus
polícia no Território e controlar a população descendentes como experiências traumáticas
pelo medo. que não passam.
Deve-se considerar, entretanto, no que se

96
Nehemias Nascimento não foi citado por nenhum dos depoentes, não tendo sido possível identifica-lo.
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

Reportagens no jornal paraense Folha do Norte referente ao


“Engasga-Engasga” em Macapá

Fonte: Folha do Norte, Belém, 01 e 04 de junho de 1973.

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2.9. Amapá e a Guerrilha do Araguaia Marabá e de Xambioá, no Pará, no norte de Goi-


A Guerrilha do Araguaia foi um movimento ás (região onde atualmente é o norte do Estado
de resistência ao regime militar na região ama- de Tocantins) e noroeste do Maranhão, numa
zônica brasileira, ocorrido ao longo do rio Ara- região conhecida como Bico do Papagaio. Cer-
guaia, no final da década de 1960 e na primeira ca de dez mil militares atuaram em campanhas
metade da década de 1970. Organizada, pre- e operações de inteligência deflagradas a partir
ponderantemente, pelo Partido Comunista do de abril de 1972. Para combater os militantes
Brasil (PCdoB), foi severamente combatida pelas de esquerda, foram mobilizados vários destaca-
Forças Armadas, a partir de 1972, quando vá- mentos de soldados do Exército Brasileiro de di-
rios de seus integrantes já haviam se estabeleci- versos Estados. As perseguições aos militantes
do na região, há pelo menos seis anos. O palco culminaram na morte e no desaparecimento de
das operações de combate entre a guerrilha e dezenas pessoas, entre elas guerrilheiros, cam-
os militares se deu às margens do rio Araguaia, poneses da região e militares, em circunstâncias
próximo às cidades de São Geraldo do Araguaia, ainda não devidamente esclarecidas.

Mapa da região da Guerrilha do Araguaia

Fonte: Comissão Nacional da Verdade

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A partir do depoimento de Paulo Fonteles esforço, vai exigir dedicação, vai exigir que
Filho a CEV-AP encontrou indícios da partici- você faça um levantamento de toda essa
pação das Forças Armadas do antigo Território memória.98”
Federal do Amapá na Guerrilha do Araguaia.
Para compreender o papel do Amapá como base Buscando confirmar essas informações a
de apoio do exército no combate à guerrilha, fo- CEV/AP colheu o depoimento de Valdim Pereira
ram realizadas oitivas que só foram possíveis de Souza, um ex-militar, que atualmente reside
a partir da intervenção do Ministério Público em Macapá, e que serviu ao 52º Batalhão de
Federal. O resultado deste esforço se materia- Infantaria de Selva do Exército. Em 1976, foi
lizou em três depoimentos, de Raimundo José enviado junto com as tropas ao conflito arma-
da Silva Rodrigues, Valdim Pereira de Souza e do no Araguaia. O ex-combatente conheceu de
um sob sigilo. perto o terror que pairava na região, pois foi mo-
A oitiva com Paulo Fonteles de Lima Filho, torista, entre 1976 a 1983, do principal coman-
membro da Comissão Estadual da Verdade do dante do Exército responsável pelas operações
Pará97, filho do advogado, ex-preso político e ex- no Araguaia, o tenente coronel Sebastião Rodri-
deputado estadual assassinado, Paulo Fonte- gues de Moura, o “Major Curió”. Além de Curió,
les de Lima, indica como o Amapá se inseriu Valdim serviu de motorista para outros agentes
no cenário obscuro de desaparecidos da guer- da repressão, que circulavam sem uniforme,
rilha, principalmente, no que concerne a ocul- impossibilitando a identificação dos mesmos,
tação de cadáveres de guerrilheiros, na região que poderiam ser tanto civis quanto militares.
da Oiapoque-AP, especificamente, na vila de Segundo ele, os mandantes das operações eram
Clevelândia do Norte, onde poderia ter existi- conhecidos como “doutores” e possivelmente
do um cemitério clandestino de guerrilheiros pertenciam ao alto escalão do Exército.
do Araguaia. Para Fonteles, este lugar poderia O ex-motorista, à época com 19 anos, co-
ser um dos destinos das ossadas da “Operação meçou o seu depoimento revelando que pre-
Limpeza” que consistiu em senciou várias prisões e torturas de guerrilhei-
ros: “A gente ouvia os caras sofrendo. A gente
retirada de ossadas no Araguaia [...] en- não sabia o que era. Para a gente eram inimigos.
tre 1976 e 2004, eles [os militares] fizeram Você sabe como é que é na guerra. Na guerra
diversas “Operações Limpeza”, que é o se- às vezes morre gente inocente, eu acredito que
guinte: você tem aqui um sepultamento, você muitos inocentes” . Para Valdim a ditadura vi-
99
vai e retira e leva para um local ignorado, timou não apenas civis mas, também, muitos
isso é que foram as “Operações Limpeza”. militares que nem sequer tinham noção do que
[...] Você precisa levantar as informações. iriam enfrentar nas matas do Araguaia, dei-
Mas, é uma tendência muito forte. Primeiro xando marcas permanentes em suas vidas. Ele
porque nós estamos numa região afastada também se considera vítima das operações no
do país. [...] Então, essas bases que ficam, Araguaia.
digamos assim, nos sertões brasileiros, em
locais afastados precisam ser naturalmente Eu acho que nós fomos mais vítimas do que
trabalhadas essas informações. [...]. Mas, as vítimas da época que se diziam vítimas,
acho provável que o local sendo afastado, que hoje viraram todos autoridades. Então,
eles tenham feito isso. Por exemplo, na serra eu não vejo eles como vítimas. Quem se tor-
do Cachimbo há informação que ainda con- nou vitima fomos nós que fomos pegados
tinuam lá os sepultamentos. Agora é isso, pelo sistema para entrar numa briga que a
é um trabalho de pesquisa que vai exigir gente não sabia o que que era.100

97 A Comissão Estadual da Verdade do Pará foi criada pela Lei Estadual 7.802, de 31 de março de 2014.
98
Paulo Fonteles Filho. Depoimento cedido à CEV-AP, em 02 de novembro de 2013.
99 Valdim Pereira de Souza. Depoimento cedido à CEV-AP, em 13 de maio 2014.
100
Ibidem.
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As sucessivas operações de “pente fino”, gente aqui. Era em toda a região amazônica”.102
como se referiu Valdim, ou “Operações Limpe- Clevelândia do Norte, segundo Valdim, fun-
za”, nas quais o Amapá estaria supostamente cionou, na época da guerrilha, como base de
envolvido, foram realizadas de forma clandes- preparação dos militares para treinamento em
tina, por oficiais à paisana, com o objetivo de selva, haja vista que os combates contra os
ocultar indícios e dificultar possíveis investi- guerrilheiros eram travados em matas fechadas
gações sobre as mortes e desparecimentos de de difícil acesso, e a base militar de Clevelândia
guerrilheiros e camponeses na região. tinha as condições perfeitas para a formação
dos soldados combatentes: “Ali não só era uma
Olha, o que eu fiquei sabendo da “Opera- base militar. Era uma base de apoio [...]. Eu nem
ção Limpeza”, até porque eu não sabia o que conhecia Macapá naquela época. Eu fui em Cle-
era, era para apagar os vestígios de guerri- velândia, a gente passou quarenta dias e de lá
lha. Isso é o que eu entendi porque a gente a gente voltou pra Belém/Marabá novamente” 103 .
ia muito para uma região chamada Bacaba Valdim Pereira prestou esse mesmo depoi-
do Quartel, e o Curió não vivia muito lá no mento, também em maio de 2010, ao Grupo de
quartel. Ele vivia lá para Brasília e quando Trabalho Tocantins (GTT) – atualmente Grupo
ele chegava, me requisitava. Ele me pedia de Trabalho do Araguaia (GTA). Como ele, ou-
para eu ficar à paisana, eu era fardado, e tros ex-militares e ex-mateiros que participa-
ir num carro descaracterizado também, que ram da “Operação Limpeza” foram ouvidos pelo
era do DNER, do INCRA, qualquer carro. GTA, com objetivo de localizar o derradeiro pa-
Não era carro caracterizado. Era descarac- radeiro dos corpos. Essas revelações implica-
101
terizado, inclusive, sem placa. ram em retaliações contra sua pessoa por ex-a-
gentes ligados à repressão. Essas perseguições
O que chamou a atenção no depoimento de começaram desde 1987, quando Valdim, já fora
Valdim Pereira foi a utilização de veículos de das Forças Armadas, decidiu fugir de Marabá,
órgãos como o Departamento Nacional de Es- deixando para trás sua esposa e filhos.
tradas de Rodagem (DNER) – substituído pelo No contexto da política territorial amapa-
Departamento Nacional de Infraestrutura de ense em relação à Guerrilha do Araguaia, a
Transportes (DNIT) – e o Instituto Nacional de gestão do general Ivanhoé Martins, que apre-
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para sentava uma imagem de refinamento político,
o transporte dessas ossadas humanas enter- também teve sua face truculenta. Foi durante
radas nos cemitérios de Xambioá e Marabá, e seu governo que as forças policiais do Territó-
em outros locais da região, onde os presos fo- rio Federal do Amapá começaram a colaborar
ram torturados e mortos, como a “Casa Azul”, intensamente com o exército no intuito de des-
localizada em Marabá, no Pará, às margens da truir a vizinha guerrilha do Araguaia. Como re-
Rodovia Transamazônica, para onde eram leva- sultado desta colaboração vários camponeses
das as lideranças consideradas mais perigosos foram torturados nos acampamentos do De-
pelos militares. partamento de Estradas e Rodagens do Terri-
Conforme seu depoimento, foram presos tório para fornecerem informações sobre uma
guerrilheiros em vários outros Estados da Ama- suposta base de apoio ao movimento guerri-
zônia, como Amapá, Roraima, Acre e Manaus. lheiro citado.
O Amapá participou ativamente no combate Fernando Portela, no livro A guerra de guer-
contra os “supostos” comunistas no Araguaia: rilhas no Brasil: a saga do Araguaia, testemu-
“Muitos militares daqui [Amapá] foram para lá nha tanto o envolvimento do Governo do Terri-
[...]. Até porque aqui também tinha guerrilheiros. tório Federal do Amapá, quanto a participação
Aqui no Amapá também tinha suspeito. Foi preso de soldados amapaenses na repressão ao foco

101
Valdim Pereira de Souza. Depoimento cedido à CEV-AP, em 13 de maio 2014.
102
Ibidem.
103
Ibidem.
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guerrilheiro: bral” e “Ovídio”. Este último foi morto por en-


gano por um outro soldado, que o confundiu
A tortura foi sistemática. [No Amapá] como com um guerrilheiro. Ovídio não respondeu
em Xambioá, cavaram-se buracos próximos à senha combinada para aquele dia e aca-
ao acampamento e os homens foram pendu- bou levando uma rajada de metralhadora.106
rados de cabeça para baixo, amarrados com
cordas em estacas enfiadas à beira dos bu- A morte desses soldados amapaenses ain-
racos. Levaram empurrões, socos e choques da permanece como uma incógnita. Quando
elétricos. E havia um médico entre os “espe- as pessoas rememoram o fato, que significou
cializados”. Quando um homem desmaiava, para elas uma experiência psicológica profun-
recebia uma injeção para reanimar e sofrer da, parecem praticar uma espécie de terapia,
bem consciente. [...] nessa época, um inci- ao jogar luz sobre uma história que é pública e
dente abalou em definitivo as relações exér- é também biográfica. Em depoimentos à CEV/
cito-PM. Um sargento da PM de Goiás diri- AP, alguns se emocionaram e não conseguiram
ge um grupo fardado que se encontra com continuar quando lembravam das crueldades
tropas descaracterizadas do Oiapoque, do que se faziam presentes no combate à guerri-
Comando de Fronteiras de Roraima104(sic). lha. Fatos infames da guerrilha, como torturas,
O sargento, que perdera um colega no dia execuções, ocultação e eliminação de restos
anterior, num encontro com guerrilheiros, mortais, dificilmente serão confessados por
teve reflexo rápido: abriu fogo e matou um quem os cometeu.
soldado do outro lado. Foi difícil evitar um
massacre. Mas o exército jamais esqueceu 2.10. Mortos e
o caso e as PM não voltaram a participar, desaparecidos
como antes, do combate à guerrilha.105 No que tange às graves violações de direi-
tos humanos praticados pelo terror de Estado,
O Jornal Nova Fronteira, em sua edição de excetuados casos dos soldados Cabral e Ovídio,
15 de maio de 1992, numa matéria intitulada mortos na região da Guerrilha do Araguaia por
“Cidade relembra 20 anos do Araguaia” men- ocasião das operações militares contra militan-
cionou alguns nomes de amapaenses partici- tes da resistência, esta Comissão não encon-
pantes da repressão aos guerrilheiros no inte- trou informação de nenhum outro amapaense
rior do Pará: ou habitante do Amapá que tenha morrido ou
desaparecido em consequência de ações de
O Amapá participou da repressão ao foco agentes da repressão, o que não quer dizer que
guerrilheiro enviando tropas do exército lo- não tenham ocorrido outros casos.
cal para combater os chamados “comunis-
tas” de Marabá. Alguns desses soldados, 2.10.1. Os casos dos
hoje, se encontram adaptados à vida civil, soldados Cabral e Ovídio
como é o caso do contador José Paulo Ra- O ex-soldado amapaense Raimundo José
mos, atualmente funcionário do Palácio do da Silva Rodrigues, o “Cabo da Silva”, atual-
Setentrião; do assessor de imprensa da CA- mente professor em Macapá e sócio da Associa-
ESA, Juarez Dantas e do vereador Pery Ar- ção dos Ex-Combatentes da Guerrilha do Ara-
quelau, do PT, que na época era eletricista guaia, foi ouvido pela CEV/AP. Em seu relato,
do exército. contou sua experiência, entre os anos de 1972
Alguns desses amapaenses morreram em e 1973, no Exército na Guerrilha do Araguaia,
combate. Como é caso dos soldados “Ca- e chamou atenção para os fatos relacionados

104
O autor equivoca-se, posto que, se trata de tropas do Comando de Fronteiras do Amapá. Fica evidente o lapso quando se
cruza com informação imediatamente anterior: “tropas descaracterizadas do Oiapoque”, cidade amapaense.
105
PORTELA, Fernando, A guerra de guerrilhas no Brasil: a saga do Araguaia. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 1979, p.74-76.
106
Jornal Novo Fronteira nº 214, Ano IX de 15/05/1992 - Cidade relembra 20 anos do Araguaia.
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à morte de um militar amapaense, conhecido soldado Mira era o sentinela móvel, então
como “Cabral”, ocorrido em 1972, em Marabá houve um momento que o Cabral deu um to-
PA. Segundo o depoente: que na minha coxa, coxa com coxa, assim
sabe, perna com perna me avisando, ai a
[...] nós íamos patrulhar baseados em infor- backson era giratória e eu corri, a gente era
mações de onde estavam os guerrilheiros, treinado né, e eu corri fazendo a visão de
vinha informação e nós íamos ou de carro, 180°, isso girando a backson e coincidiu de
ou de helicóptero, e quem descia primeiro do eu ver o vulto que apesar de estar escuro,
helicóptero pelo guincho era eu, no meu gru- houve a coincidência de eu ver o vulto e o
po, o GC, que era um Grupo de Combate que disparo do elemento que tava atrás de mim.
tinha um sargento e um cabo.107 O projétil passou perto de mim e atingiu o
Cabral. Ele não falou nada, não disse a se-
Cabo da Silva era responsável, juntamen- nha, eu acho que o merendinha pensou que
te com sua guarnição e com apoio da Polícia era guerrilheiro mesmo e sobre forte tensão
Militar paraense, de proteger as instalações emocional ele atirou. Ele fez o disparo, o 762
do Incra e os maquinários das empreiteiras – entrou aqui e varou aqui atrás, e ai ele gri-
utilizados na abertura da transamazônica em tou: “Inimigo!”. Ai eu destravei a backson,
Marabá –, contra os ataques e as invasões de mas ninguém se manifestou, ai eu comecei
guerrilheiros: “Nós tínhamos de atender as or- a deduzir as coisas e disse: “ – Poxa, foi o
dens explicitas do Exército, senão você ia preso Mira”, que era o único sentinela móvel. Eu
mesmo!” 108 comecei a focar, peguei a lanterna e comecei
O ex-militar afirmou, ainda, que, de 1972 a a focar, que eu olhei e vi o corpo, aí o Cabo
1974, foram enviados mais de sessenta solda- lá pulou e viu o corpo e viu que era o Cabral,
dos amapaenses para o combate no Araguaia. aí tocou o “auê”, porque eles eram amigos
Dentro desse contexto, o militar conhecido de bola, era o Nobre (Merendinha) queria se
como “Cabral” foi vítima de “fogo amigo” (ex- suicidar na hora e a gente pra segurar.109
pressão eufêmica utilizada militarmente para
descrever ataques de aliado a aliado, geral- O soldado Cabral, morto por engano, tinha
mente por erro de cálculo ou de interpretação). um histórico de sonambulismo no alojamento
Cabral foi confundido com um guerrilheiro e, militar. Segundo Cabo da Silva:
por não proferir a senha da guarnição numa
noite, seu companheiro, o cabo Nobre, ou ‘Me- O Cabral era sonâmbulo, tinha havido um
rendinha’, acabou efetuando um disparo que o episódio no alojamento em que ele acordou
matou, conforme trecho a seguir: e pegou o fuzil, quer dizer, ele supostamen-
te acordou e queria atirar dizendo “inimigo,
Nós fomos guarnecer as maquinas, então inimigo”, os soldados pularam, pegaram a
nós nos dividimos, aliás, o sargento dividiu arma dele e ele acordou. Então, se presume
em duas partes o GC, em duas turmas e eu que ele dormiu e subiu na “lagarta” do trator
fiquei na primeira turma e a outra turma dormindo, e se assim foi, o Exército tem cul-
foi descansar. Então, lá pelas dez da noite, pa porque ele não deveria nem ter servido.110
porque lá era tudo escuro, escuro mesmo,
mesmo perto da clareira, eu e o Nobre que Cabo da Silva relatou que o corpo de Cabral
era o atirador oficial do grupo. [...]. O fina- ficou dois dias no necrotério de Marabá e, sem
do Cabral ficou atrás da lamina do trator, o tratamento adequado, acabou se decompon-
o soldado Matos ficou atrás do trator e o do: “o pessoal não passava no quarteirão onde

107
Raimundo José da Silva Rodrigues. Depoimento cedido à CEV/AP, em 02 de novembro de 2013.
108 Ibidem.
109Ibidem.
110 Ibidem.

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o corpo tava porque ele já estava em estado de cedinho, umas seis horas da manhã, bate-
decomposição e a gente sentindo aquele cheiro ram lá em casa. O pai foi atender, aí quando
horrível e não poder sair de lá, foi ai que veio um meu pai foi pra frente da casa, eu também
sargento e eu ajudei a soldar a urna, e a urna fui atrás, né? aí disseram pra ele, “ – Olha,
111
veio pra cá [Macapá] ”. aconteceu um acidente com seu filho, com o
A família do soldado Cabral procurou vá- Ovídio, e ele faleceu, e o corpo dele tá che-
rias vezes o ex-militar Raimundo José da Silva, gando dez horas da manhã, chegando em
a fim de compreender realmente o que havia Macapá”. Assim, aquela noticia muito rápi-
ocorrido de fato naquela noite e pedir para que da, ai minha mãe e eu, começamos a cho-
Cabo da Silva prestasse depoimento alegando rar, gritar, me desesperei na hora, a mamãe
ser o Exército Brasileiro o culpado pela mor- perguntou “ – O que aconteceu?” aí eu disse
te do combatente. Porém, este alegou que foi “ – Mamãe eu tenho uma notícia pior que nós
orientado por seus superiores a não desmentir poderíamos receber, meu irmão faleceu!”. E
seu depoimento prestado para as Forças Arma- ai foi só desespero, só desespero mesmo.113
das, logo após a morte do soldado.
Segundo Duvalina, as circunstâncias da
Então o Exército, imediatamente e pratica- morte do irmão não foram, à época e nem até o
mente, me obrigou a fazer um depoimento presente, devidamente esclarecidas pelo Exér-
meio estranho. Os meus superiores estavam cito. A família tomou conhecimento de possí-
presentes. Evidentemente, o depoimento veis detalhas da morte de Ovídio por outros
que eu fiz foi pra atender, guardar os inte- soldados presentes no local do ocorrido. Ovídio
resses do Exército. Eu omiti o sonambulis- teria sido alvejado por outro soldado do Exér-
mo porque senão eu iria sofrer repressão. cito quando retornava para o acampamento,
Porque se eu menciono o sonambulismo eu após uma inspeção em busca de alimentos, em
‘queimava’ o Exército e eu não poderia ficar uma região insalubre, com pouca luminosida-
112
‘queimado”. de, de mata fechada e de difícil acesso.

Outro caso semelhante de morte, suposta- A gente começou...a procurar saber como,
mente, por engano envolvendo soldado amapa- porque ele morreu, o que foi? A gente não
ense, foi o caso de Ovídio França Gomes, de tinha informações, nenhuma, alguns ami-
27 anos. O militar atuava, pelo menos há cinco gos dele, que chegaram depois foi que fa-
anos, no exército, e foi convocado para com- laram pra gente que eles passavam muito
bater na Guerrilha do Araguaia. A notícia de sacrifício. [...]. Lá nesse local, na mata, mata
sua morte pela família, em outubro de 1973, foi fechada, meio dia era como se fosse meia
relatada a CEV-AP pela irmã Durvalina França noite, os “caros”, como é que se diz? Os he-
Gomes que na época tinha 23 anos de idade. licópteros do exército passavam em cima da
mata e eles escutavam o barulho do motor
Foi em outubro de 1973, e a gente não tinha e tal, mas eles não podiam aterrissar. Não
notícia nenhuma, não sabia o que estava tinha espaço, não podiam jogar nada por-
acontecendo. Não sabia de jeito nenhum no- que ficava preso lá pelas arvores, então eles
ticia dele, a mamãe começou a se preocupar, passaram muita fome, muita necessidade.
ai passou outubro né, ai novembro, dezem- Ele conta que eles andavam com plástico,
bro, janeiro, ai a minha mãe chorava quase quando o cansaço batia a noite, né, eles
que todo dia, assim, porque não sabia o que se enrolavam no plástico e dormiam por lá
tinha acontecido e reclamava, ai quando foi mesmo, na chuva, e quando eles chegavam
em fevereiro, no dia 16 de fevereiro, logo em algum lugar assim que tinha aquelas

111Raimundo José da Silva Rodrigues. Depoimento cedido à CEV/AP, em 02 de novembro de 2013.


112
Ibidem.
113
Durvalina França Gomes. Depoimento cedido a CEV/AP, em 01 de dezembro de 2016.
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roças antigas, cana, cana-de-açúcar, ma- tas vezes eu vou aqui na fortaleza, e vejo
mão, eles pegavam pra comer, pra irem se que não era assim, porque eu vivi aqui. Eu
alimentando, eles passavam de cinco dias fui criado nessa fortaleza. Quando papai foi
nessa..., andando no mato, depois voltavam preso lá, eu que levava café pra ele. Quando
pro acampamento, e lá um desses dias que eles foram presos, encapuzaram eles, ama-
ele foi, eles voltando pro acampamento, con- raram eles com arame farpado. Teve um
ta o rapaz, que fazia visita pra gente. Con- policial que veio dar um tapa no rosto dele.
tou pra gente, que ele ia com um pedaço de Ele não gosta de se lembrar disso porque ele
um mamão na mão. Eles se identificavam apanhou justamente porque o cara encapu-
com um lenço vermelho, amarrado com um zou ele. Nossa família, até hoje, as pessoas
lenço vermelho ou uma fita vermelha, pra ainda pensam que somos comunistas.
que quando eles chegassem no acampa- (Tupã, filho de Raimundo Pereira, o “Peri-
116
mento eles fossem reconhecidos de longe, e quito”).
ele ia com lenço e tudo. Então a gente ima-
ginava assim, que a pessoa que estava lá, No Amapá, assim como no resto do Bra-
ficava uma única pessoa, eles estavam cin- sil, algumas instalações foram utilizadas pelas
co dias andando na mata. Ele deveria estar autoridades militares e policiais como centros
apavorado, cansado, com sono, a gente não de prisões e torturas de presos políticos, onde
sabe. E quando ele deu sinal que eles esta- ocorreram graves violações aos direitos huma-
vam chegando, ele pegou a metralhadora e nos. No que se refere à existência comprovada
começou a disparar, ele ia na frente, atingiu de locais de tortura no espaço amapaense dois
logo ele, então ele fraturou tudo, mal a gente foram os lugares mais mencionados por diver-
via o rosto, o resto estava tudo destruído.114 sos entrevistados pela CEV/AP: a Delegacia de
Investigação e Captura (DIC) e a Fortaleza de
Contudo, os soldados que atuavam na São José de Macapá.
Guerrilha do Araguaia eram orientados a man-
terem segredo das atividades militares na re- 2.11.1. DIC – Delegacia de Investiga-
gião, e as informações recebidas pela família, ção e Captura
por colegas do pelotão de Ovídio foram vagas e O prédio onde atualmente funciona o Mu-
contraditórias. À família restou apenas o con- seu Histórico Joaquim Caetano da Silva, loca-
solo de receber um caixão lacrado com o corpo lizado no centro de Macapá (e que teve já va-
fuzilado de Ovídio. A dor da perda foi marcada riadas funções, como por exemplo, Intendência
pelo silêncio, mas jamais pelo esquecimento e de Macapá, Conselho de Intendência, Câmara
pela busca da verdade e justiça: “não permi- de Vereadores e Tribunal do Júri) sediou, du-
tiram na verdade que fosse aberta a urna pra rante a ditadura, a Delegacia de Investigação
gente ver o corpo. Já os amigos que contavam, e Captura (DIC), departamento administrado
né, que ele foi todo metralhado, que o rosto ficou pelos militares, especializada em investigar e
..., a cabeça não foi atingida, mas os braços foi averiguar os delitos contra a ordem social. Os
fraturado o corpo todo.” 115 suspeitos de envolvimento com grupos de es-
querda, comunismo e subversão, ou que sim-
plesmente discordavam dos rumos políticos e
2.11 Lugares de memoria: locais de administrativos do Território Federal do Ama-
prisões e torturas pá, eram encarcerados e, em muitos casos,
A história de Macapá é muito furada, nin- submetidos à torturas físicas e psicológicas
guém tem dados concretos. O governo quei- nesse lugar.
mava tudo. Nós ficamos “sem história”. Mui-

114 Durvalina França Gomes. Depoimento cedido a CEV/AP, em 01 de dezembro de 2016


115Ibidem.
116 Tupã, filho de Raimundo Pereira. Depoimento cedido a CEV/AP, em 17 de março de 2013.
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Delegacia de Investigação e Captura (DIC)

Fonte: Novo Amapá, Macapá, 29 de setembro de 1973

Josias Nogueira Hagem Cardoso, membro Gerson Góes, capitão de exército José Arta-
da UECSA, narrou a esta comissão os momen- gomis e o coronel Adalvaro Cavalcante. Você
tos de encarceramento e torturas nas depen- era chamado e lhe era dado um papel e dito:
dências do DIC, conforme trecho a seguir: “ – Preste a atenção no que você vai respon-
der, caso contrário o negócio vai ficar feio”.
Aproximadamente dezoito pessoas, confi- E perguntavam daqui e dali e nada sabendo
nadas em um só ambiente e éramos joga- era aplicado umas bolachadas e depois sol-
dos assim, presos incomunicáveis. A nossa to. Quando eu saí daqui dez da noite, eu saí
alimentação vinha lá do antigo presídio, do com a mão quebrada e a costela quebrada
Beirol. Era resto de comida que eles coloca- e nessa condição fui assinar o alvará de li-
vam assim em uma bandeja e depois das bertação na condição de preso domiciliar em
dezoito horas, eles empurravam e diziam: frente ao capitão José Artagomis. Aí eu tive
“ – Olhem aqui seus filhos da puta, podem que sair fedendo a merda e a urina, porque
comer! Amanhã nós passaremos aqui e va- não tinha banheiro! [...] Olha nós tínhamos
mos ver que gosto tem a comida e vamos ver aqui no Amapá os “cabeças”, a Comissão
quantos estão vivos”. E nós não comíamos Sumária, oficiais do exército, gente que nos
a comida [...]. Quem foi preso nesta época e sumariavam, mas torturadores, eram gente
diz que não apanhou é mentiroso. [...]. Fiquei daqui mesmo. Olha essa declaração: “ – Eu
preso, e a comissão era formada pelo capi- Antônio Lino do Carmo, servidor público ci-
tão de corveta, Luiz Gonzaga Vale, coronel vil aposentado da SEGUP, declaro que es-
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tando de serviço na Divisão de Segurança e 2.11.2 Fortaleza de São José de


Guarda do antigo Território Federal do Ama- Macapá
pá, no mês de janeiro de 1968, cumprindo A Fortaleza de São José de Macapá foi cons-
ordem superior do capitão de corveta Luiz truída durante a colonização portuguesa, no
Gonzaga Vale, diretor da divisão, conduzi à século XVIII, com o objetivo de garantir a de-
cela do subterrâneo do Museu Joaquim Ca- fesa e ocupação portuguesa no norte do Bra-
etano da Silva (Delegacia de Investigação e sil. É considerada uma das maiores fortifica-
Captura), o preso Josias Nogueira Hagem ções militares da América Latina, e contribuiu
Cardoso, preso incomunicável até segunda para o surgimento da vila de São José de Ma-
ordem da autoridade. Quem foi meu tortu- capá, que deu origem à cidade de Macapá e, em
117
rador foi ele!” 1943, tornou-se a capital do Território Federal
No relato acima, Josias Hagem identifica do Amapá. Foi tombada como Patrimônio His-
um de seus agressores nos porões da DIC e tórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
descreve detalhadamente as práticas de tortu- Artístico Nacional (IPHAN), em 22 de março de
ras das quais foi vítima, juntamente com outras 1950. No ano de 1997, entrou em processo de
dezessete pessoas. Além dos constantes maus revitalização. Atualmente, o monumento abriga
tratos sofridos por eles na prisão, ainda tiveram o Museu da Fortaleza, administrado pela Secre-
que conviver com estigma de terem sido con- taria de Estado da Cultura e pelo IPHAN, que
finados em um dos lugares mais temidos pela desenvolvem atividades artísticas, culturais e
sociedade no período: “Ficamos como leprosos. científicas, com o objetivo de preservar e valori-
Nem nossos parentes iam a nossas casas com zar a história nacional.
118
medo de serem presos também e torturados.”

Entrada principal da Fortaleza de Macapá – Anos 60

Fonte: http://porta-retrato-ap.blogspot.com.br.

117 Josias Nogueira Hagem Cardoso, Depoimento cedido à CEV/AP, em 16 de setembro de 2014.
118
Ibidem
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
66

Durante o período do Amapá federal, a dos lugares de memória, conforme a expressão


Fortaleza foi cedida para uso de diversas ins- cunhada por Pierre Nora119, como lugares que
tituições públicas. Com a implantação do regi- simbolizam a história nacional, de consolida-
me militar, em março de 1964, o governo ama- ção e totalização, reunindo elementos caracte-
paense determinou que somente o comando rísticos de um grupo, conferindo-lhe sentido,
da Guarda Territorial permanecesse no Forte, e unificando-o a uma rede articulada dessas
para onde foi levada a maioria dos presos po- identidades diferentes.
líticos, tornando-se símbolo e ícone de medo. Adamor Oliveira, que foi chefe da Divisão
Grande parte das pessoas entrevistas pela de Polícia Judiciária durante o período dita-
CEV-AP destacaram essa representação que o torial, rememora que estudantes e criminosos
forte de Macapá passou a ter em suas vidas comuns dividiam o mesmo local nas dependên-
desde então, o que leva a pensá-lo como um cias do Forte.

Vista parcial da área interna da Fortaleza de São José de Macapá

Fonte: http://porta-retrato-ap.blogspot.com.br.

As refeições dos prisioneiros eram doadas visitas. Era permitido que lá na porta da
pelos familiares e alguns ficavam sem o alimen- Fortaleza, fosse entregue as marmitas e os
to e as visitas para entrega da refeição eram soldados de plantão levavam para eles. Era
120
sempre monitoradas pelos guardas. Segundo no “come na mão”
seu depoimento: Ainda conforme narrativa de Adamor, no
Teve dois estudantes: o Messias Tavares e inverno a situação se agravava com as chu-
o “Ribeirinho”, que foram os que mais demo- vas que invadiam o presídio, obrigando-os a se
raram lá pra serem liberados. Uma tortura amontoarem pelos cantos. A escuridão e a umi-
do tipo massacre físico, eu não presenciei, dade eram constantes: “só aquela situação já é
mas presenciei essa estada toda deles lá. uma terrível tortura. Eu me imagino lá no lugar
A comida, também, era uma forma de tor- de um deles, passando uma noite inteira ilha-
tura que posso citar. A comida geralmente do ali naquele cantinho. É uma umidade terrível
os parentes levavam [...]. Eles não recebiam de inverno. É inimaginável a umidade lá dentro.
119
NORA, Pierre. “Entre a Memória e a História: a problemática dos lugares”. Revista do Programa de Estudos pós-gradua-
dos em História do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, nº 10,p.7-29, dez.1993,
120Adamor de Sousa de Oliveira. Depoimento concedido à CEV/AP, em 03 de setembro de 2014.

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
67

Principalmente com o piso cheio d’agua” 121 . co. Era muita gente. Na fortaleza tinha gente,
Segundo Carmorzina Lima, seu marido Is- não era brincadeira. Lá eu fiquei na fortaleza
nard Lima Filho e seu irmão Luís Messias Ta- preso alguns dias e de lá fomos pra Belém
vares, ambos falecidos, foram presos na Forta- amarrados com arame e passamos trinta e
leza de São José de Macapá. Quando seu irmão um dias, eu e mais oito companheiros na 5ª
foi preso, em 1964, Carmozina, com apenas 11 Companhia de Guardas.123
anos de idade, era quem levava comida para Regina Coeli de Menezes Medeiros, viúva
ele. Abaixo trechos desses momentos narrados do radialista Ermínio Carlos Gurgel Medeiros,
por Carmozina: conhecido como “Gurgel”, também destacou
Em 64 eu vivenciei assim, porque meu irmão em seu depoimento a utilização da fortaleza
foi preso e quem levava comida pra ele na como local de prisão e tortura durante o perío-
Fortaleza, por exemplo, o meu irmão, era eu do militar no Amapá.
(...), eles ficaram em celas que pingava água, Quando chegou a época da “revolução”, em
né e ficaram alguns dias até sem se alimen- 1964 do golpe militar [...] estavam prendendo
tar, depois as famílias foram, por exemplo, muitos comunistas [...] e um desses que foram
a minha mãe procurou ajuda do Tenente presos foi o Gurgel que tinha emprestado um
Charone, que na época morava próximo de livro que ele estudava no Colégio Amapaense,
casa, pra que ele pudesse facilitar a entrada um livro de Moral e Cívica. Viram a assinatu-
da comida, né? E assim, as famílias procura- ra dele nesse livro e o guarda o recolheu na
vam aquelas pessoas que tinham influência casa da minha sogra. Olharam tudo, revis-
na polícia e que poderiam ajudar nessa inte- taram tudo, não acharam nada, mas assim
gração família e preso. E depois conseguiram mesmo levaram aquele jovem preso. Levaram
que todo mundo levasse comida, toda famí- pra dentro da fortaleza [...] Eles foram direto
lia. Cada família levava a comida pra pessoa sem depoimento sem nada. Veio um avião da
que estava presa.122 FAB, com um bocado de generais pra colher o
Outro entrevistado que também menciona depoimento daqui.124
o tempo de prisão nas masmorras da Fortale- Analisando estes depoimentos é impossível
za de São José de Macapá foi João Rodrigues não relacionar esse forte ao período da ditadura
Capiberibe, preso apenas por ser irmão de João no Amapá. De fato, estes locais de prisão, como
Alberto Capiberibe (Capi), militante da Aliança o da Fortaleza de São José de Macapá, citados
Nacional Libertadora (ANL), que neste momento pelos depoentes, carregam em sua história o es-
se encontrava preso em Belém do Pará. tigma das perseguições políticas, torturas e pri-
Tive a infelicidade de participar desse mo- vações de liberdade do período ditatorial.
mento tortuoso do país que até hoje existe. A Comissão Estadual da Verdade do Amapá
Nós fomos surpreendidos e achincalhados, compreende a importância de reafirmar o signi-
presos, batidos, passado por todo um pro- ficado que a Fortaleza de São José de Macapá
cesso de humilhação sendo cidadãos tra- possui como Lugar de Memória, relacionado aos
balhadores. Eu estava trabalhando nesse fatos ocorridos no período ditatorial do Brasil
dia. Cheguei aqui tinham invadido a minha (1964-1988). Segundo Pierre Nora125, estes lu-
casa. Fui para delegacia, ao chiqueiro que gares, construídos historicamente, teriam uma
era a delegacia com um monte de bandido lá tripla função: são lugares materiais, funcionais
dentro e me mandaram direto para a Forta- e simbólicos, onde a memória coletiva se anco-
leza. Não pense que eu fui pacifico não! Um ra e se expressa. Possui, ainda, um valor como
cara me deu porrada e eu dei nele dentro da documento e monumento reveladores dos con-
Fortaleza. Eu apanhei menos que os outros flitos e disputas, que envolvem o constante pro-
porque não tinha espaço para me baterem. cesso de construção da memória.
Sofri muito aquele constrangimento psicológi-

121 Adamor de Sousa de Oliveira. Depoimento concedido à CEV/AP, em 03 de setembro de 2014.


122 Carmorzina Tavares de Lima. Depoimento cedido à CEV/AP, em 20 de março de 2014.
123
João Rodrigues Capiberibe. Depoimento cedido à CEV/AP, em 24 de março de 2014.
124
Regina Coeli Menezes Medeiros. Depoimento cedido à CEV/AP, em 11 de fevereiro de 2014.
125
Ibidem.
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
68

III PARTE
PROJETO “A MEMÓRIA
VAI À ESCOLA”
Nos últimos anos, os professores, sobretu- escolas, tanto da rede pública quanto privada,
do, os das áreas de humanas do ensino funda- objetivando levar ao espaço escolar e acadêmi-
mental e médio, vêm-se se deparando a cada co do Estado, por meio de palestras, exibição
dia com a crescente demanda social e a ne- de vídeos/depoimentos, exposição de imagens e
cessidade cada vez maior de se debater temas manifestações artísticas e culturais, a temática
considerados de natureza “sensíveis” e de difí- da ditadura militar, dos direitos humanos e dos
cil abordagem, como o da ditatura civil-militar temas afins, para que esse período da história
brasileira, marcado pelo autoritarismo e pela brasileira possa ser melhor conhecido e debati-
violência do Estado. São temas sensíveis, não do em sala de aula.
apenas porque é difícil falar sobre eles, mas, Duas atividades, que ocorreram em cará-
principalmente, porque não existe ainda, na ter experimental e que antecederam seu lança-
maioria dos casos, um consenso da sociedade mento foram fundamentais para a elaboração
sobre o que dizer e como falar sobre esse passa- das ações do “A Memória Vai à Escola”. Foram
do, e em muitos casos, os processos de memó- elas: a realização da II Feira do Livro que con-
ria, trauma e reparação ainda estão em curso e templou o eixo “Flap Memória e Verdade”, em
diferentes versões se encontram em disputas. dezembro de 2013, que propôs como uma das
O Projeto “A Memória Vai à Escola” nasceu suas atividades, a palestra “Direitos Humanos,
das preocupações acima levantadas, durante Direitos Universais”, ministrada por um inte-
as reuniões de planejamento e avaliação das grante da CNV, e mediada pela CEV-AP; e a re-
atividades da Comissão Estadual da Verdade alização, em maio de 2014, do Painel “Guerrilha
do Amapá, percebeu-se que era enorme o des- do Araguaia”, com a exibição do documentário
conhecimento e desinteresse dos alunos acerca seguido de debate “Araguaia: Campo Sagrado”,
desse passado autoritário. O estudo da ditadu- realizado por um integrante do Grupo de Tra-
ra civil-militar ainda enfrenta certa resistência balho “Araguaia, da Comissão Nacional da Ver-
entre alguns professores que preferem conser- dade”, ocorridos na Escola Estadual Gabriel
var o silêncio do que refletir sobre ele. Assim, de Almeida Café e na Universidade Federal do
foi proposto um projeto, em parcerias com as Amapá (UNIFAP).

Durante a etapa de planejamento das ati- as alunas para o Exame Nacional do Ensino Mé-
vidades do “A Memória Vai à Escola”, visan- dio (ENEM). Além disso, como a escola possuía
do a qualificação e uma maior participação do a Rádio Escolar “Gabrielense”, que servia como
público escolar foram realizadas três oficinas meio de divulgação e informação, foi realizado
preparatórias para os alunos e professores que em parceria com a CEV-AP um programa que
atuariam no lançamento do Projeto: Noções de abordou a ditadura militar.
Cerimonial; Operacionalização de Eventos; e O evento de lançamento do projeto “A Me-
Técnicas de Jornalismo. Foi escolhida para o mória Vai à Escola” ocorreu no dia 23 de maio
lançamento do projeto a Escola Estadual Ga- de 2014, no Centro de Difusão Cultural João
briel de Almeida Café, em razão de estar desen- Batista de Azevedo Picanço, contemplando três
volvendo atividades sobre o tema “50 anos do momentos: Mesa de Abertura, composta por
golpe”, com o objetivo de preparar os alunos e representantes da Secretaria Estadual de Edu-

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
69

Folder do Projeto “A Memória vai à Escola”

Acervo da Comissão Estadual da Verdade do Amapá

cação (SEED) e da Comissão Estadual da Ver- senvolvidas quarenta e seis ações, nas quais
dade do Amapá (CEV-AP); foram atendidas trinta e uma instituições de
Apresentações Artísticas, na qual estudan- ensino fundamental, médio, tecnológico e su-
tes realizaram performances com músicas de perior, tanto públicas quanto privadas, com
resistência do período da ditatura e os poetas carga horária de 126 h/a, contemplando um
locais declamaram poesias; Mesa Redonda, público de 2.342 alunos e alunas de diversas
com integrantes da CEV-AP e da UNIFAP – que faixas etárias. Um dos pontos fortes destaca-
discorreram sobre o golpe de 64 e ao período dos pela equipe do projeto “A Memória Vai à
da ditadura militar. Após as palestras houve Escola”, além da participação positiva do corpo
intervenções dos alunos. técnico e docente, foi a grande aceitação do pú-
Durante a vigência do projeto, entre o pe- blico estudantil, que demonstrou motivação e
ríodo de maio a outubro de 2014, foram de- interesse durante a realização das atividades,

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
70

Folder do Projeto “A Memória vai à Escola”

Acervo da Comissão Estadual da Verdade do Amapá

por intermédio de reflexões, análises, compara- gratificante e enriquecedora, ao propor desafios


ções entre as leituras, os fatos históricos e as maiores dos que os planejados inicialmente, ao
notícias divulgadas na mídia, além de troca de levar a pensar sobre o período da ditadura civil-
informações e experiências, contribuindo assim militar também no campo da ação, onde ela se
para a ampliação de conhecimentos, formação mantém mais viva do que nos livros. Espera-
de juízos e valores e, consequentemente, assu- se que essa proposta seja recuperada cotidia-
mir uma posição mais crítica e fundamentada namente nas instituições de ensino, público e
sobre o regime ditatorial brasileiro. privado, em âmbito local, nacional e internacio-
Para os integrantes da CEV-AP o projeto nal, pois como sugere Frei Betto: “resgatar no
“A Memória Vai à Escola” foi uma experiência presente o passado é a melhor forma de manter

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
71

Depoimentos de participantes do projeto


“A Memória Vai à Escola”
viva a memória das vítimas e impedir que tais promover debates transdisciplinares sobre o
atrocidades se repitam no futuro” 126
. golpe civil-militar perpetrado contra o estado de-
mocrático brasileiro, que propiciou compreender
“Os alunos precisam ter informação desse relevantes aspectos do contexto histórico que
que é um tema tão relevante para a memória levaram ao golpe, bem como, seus impactos no
histórica do país” cenário nacional, mas especificamente local, ou
(prof. Raimundo José da Silva Rodrigues, seja, no ex-Território Federal do Amapá, contri-
diretor da Escola Estadual Jacinta Carvalho) buindo assim, para que a comunidade escolar,
acadêmica e a sociedade em geral pudessem re-
“Já trabalhamos vários temas que abor- fletir sobre a construção sócio histórica do país.
dam o período militar, mas nada parecido com Passados meio século do golpe, essa iniciativa
a maneira com que a comissão abordou. Então, da Comissão Estadual da Verdade do Amapá,
a vinda desse projeto para dentro da escola foi permite uma visão didática e crítica do regime
importante para acrescentar na nossa forma de militar, seus antecedentes e consequentes, iden-
apreender, compreender e refletir”, tificando os resistentes, seus legados e contri-
(aluna Paula Viana, da Escola Estadual buindo de forma efetiva ao resgate da memória
Gabriel de Almeida Café) e ao entendimento do Brasil e seu contexto na
atualidade. ”
“O projeto ‘“A Memória Vai à Escola””’, no Profº Leonil Ferreira Góes, integrante da
qual tive a honra de ministrar palestras e de- CEV-AP e palestrando do projeto.
senvolver outras atividades didáticas, visou

126
BETTO, Frei. Cartas da Prisão (1969-1973). Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 12.

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72
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ

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73
Fotos das Ações nas Escolas do Projeto “A Memória Vai À Escola”

Acervo do Comissão Estadual da Verdade do Amapá

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
74

IV PARTE
RECOMENDAÇÕES
A Comissão Estadual da Verdade do Ama- no sentido de implementar programas e políti-
pá foi criada, em 2013, com o objetivo de con- cas públicas que contribuam para esclarecer e
tribuir para a elucidação da verdade sobre as reparar os abusos cometidos entre 1964 e 1988,
violações aos direitos humanos cometidas no bem como, impedir que se repitam.
Território Federal do Amapá (atual Estado do Ao mesmo tempo, acreditamos ser prerro-
Amapá), durante a ditadura civil-militar. De gativa do Governo do Estado empenhar-se na
acordo com a mesma Lei nº 1756/2013 que a adoção de medidas e iniciativas que tenham
instituiu, é também atribuição desta comissão como norte a reparação, a justiça e o direito à
recomendar aos órgãos e entidades estaduais, memória e à verdade, assim como cobrar ações
bem como, a outras instâncias competentes, a efetivas de outras instâncias de governo. Em
adoção de medidas e políticas públicas voltadas cada uma das recomendações adiante haverá
para a busca da verdade, da reparação, da ga- uma orientação específica para o Governo do
rantia de direitos e da prevenção de novas vio- Estado. Caberá ao Poder Público apoiar tais ini-
lações (artigo 4º, inciso V). ciativas e assegurar sua implementação.
A conclusão dos trabalhos desta comissão é A instalação de marcas de memória, a al-
encarada pela equipe que nela trabalhou como teração de nomes de ruas e equipamentos ur-
um primeiro passo no sentido de desvendar o banos que homenageiam violadores de direitos
passado triste do período ditatorial na região. humanos, a busca permanente pelos restos
Embora tenhamos claro que este relatório re- mortais de desaparecidos políticos, o fomento a
presenta um instrumento de denúncia dos cri- produtos culturais que tenham como tema o di-
mes cometidos pelo Estado brasileiro, por seus reito à memória e à verdade, todas essas ações
agentes e por parcelas da sociedade civil que, se revestem de urgência e devem ser estabele-
no Território Federal do Amapá, perseguiram, cidas oficialmente em programas previstos em
estigmatizaram, aprisionaram e torturaram ho- decretos ou leis, daí a necessidade de uma Uni-
mens e mulheres que tiveram suas vidas mar- dade de Administração/Gestão de uma Política
cadas de forma profunda e permanente, acre- de Memória e Verdade no âmbito estadual.
ditamos que ainda resta muito o que se fazer
para garantir que esse passado não se repita.
É neste sentido que deixamos recomendações RECOMENDAÇÃO Nº 1
que, acreditamos, evidenciem para as gerações
futuras a importância de se lutar pela democra- Prosseguir na busca por desaparecidos
cia contra todos os regimes de exceção. políticos, a despeito de a comissão não en-
As quinze recomendações elaboradas por contrar registro de desaparecidos políticos
esta comissão são resultado de mais de três no Amapá, esta coletou informações de que
anos de investigação, num processo que en- possivelmente corpos de guerrilheiros do
volveu a análise de centenas de documentos, Araguaia foram enterrados de forma clandes-
oitivas com testemunhas e entrevistas com tina em Clevelândia do Norte, no Oiapoque,
estudiosos dos temas afetos a esta pesquisa, com a conivência do Governo do extinto Ter-
bem como a realização de audiências públicas. ritório Federal do Amapá.
Optamos por centrar esforços na elaboração de (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
propostas direcionadas ao Poder Executivo Es- Secretaria de Estado da Justiça e Segurança
tadual, entendendo que o Governo do Estado, Pública, Procuradoria Geral do Estado).
sucessor do Governo do extinto Território Fede- A sentença do “caso Araguaia”, como ficou
ral do Amapá, como ente jurídico e administra- conhecida a decisão da Corte Interamericana
tivo, deve ser responsabilizado pelas violações de Direitos Humanos (demanda nº 11.552 da
cometidas por seus agentes e envidar esforços CIDH/OEA), condenou o Estado brasileiro, em
CHAGUINHA - AMAPÁ 2017
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
75

24 de novembro de 2010, e estabeleceu uma Entre as orientações, sugerimos que seja


série de obrigações, entre elas a localização dos incluída uma portaria determinando que even-
militantes assassinados: “O Estado deve reali- tuais vítimas de intervenção das forças de segu-
zar todos os esforços para determinar o paradei- rança pública não sejam removidas do local da
ro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, ocorrência, sejam elas fatais ou não. Segundo
identificar e entregar os restos mortais a seus a medida sugerida, policiais não devem pres-
familiares”. tar socorro às vítimas de crimes ou confrontos
O arcabouço jurídico brasileiro e interna- com a polícia, cabendo a eles chamar o Serviço
cional impede que o Estado abdique do dever de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Tal
de buscar os desaparecidos políticos, de modo prática visa não apenas impedir a descaracte-
que seria valoroso firmar um novo termo de rização dos locais em que os crimes ocorreram,
cooperação, voltado especificamente para a mas, também, evitar a colaboração de agentes
investigação da possibilidade da existência do públicos na morte da pessoa supostamente so-
cemitério clandestino de Clevelândia do Norte. corrida.
Desde 1995, a competência legal para empreen- Finalmente, é fundamental seguir com o
der a busca pelos desaparecidos é da Comissão programa de educação em direitos humanos
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos dos membros das Polícias Militar e Civil, entre
da Presidência da República. A despeito disso, outras ações programáticas, recomendamos:
tendo o governo do extinto Território Federal a) apoiar, incentivar e aprimorar as condi-
do Amapá, possivelmente, colaborado com a ções básicas de infraestrutura e superestrutura
ocultação de cadáveres durante a repressão, é para a educação em direitos humanos na área
fundamental que ele envide esforços para iden- de Segurança Pública;
tificar os corpos das vítimas nunca localizadas b) fomentar junto as Unidades de Forma-
nos cemitérios oficiais ou clandestinos localiza- ção das Polícias Civil e Militar manutenção de
dos no Amapá. acervo especializado de livros de referência em
temas de direitos humanos, disponíveis para a
formação permanente e continuada do efetivo;
RECOMENDAÇÃO Nº 2 c) criar uma premiação anual da Secretaria
de Justiça e Segurança Pública, visando identi-
Intensificar a formação em direitos hu- ficar, distinguir e estimular, por categorias, os
manos dos agentes do Sistema de Segurança profissionais que se distinguirem na promoção
Pública, especialmente Policias Civil e Mili- e defesa dos direitos humanos no âmbito de
tar e reforçar a importância de um protocolo sua atuação funcional no Estado, com especial
de boas práticas. atenção para as populações mais vulneráveis;
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Secretaria de
Justiça e Segurança Pública, Policias Civil e Mi-
litar, Secretaria de Educação). RECOMENDAÇÃO Nº 3
A denúncia de violação dos direitos huma-
nos por agentes da Segurança Pública, no exer- Instalar marcas de memória em locais
cício de suas funções, é recorrente no Estado do simbólicos, como a Fortaleza São José de
Amapá, especialmente, contra a juventude da Macapá e o Museu Joaquim Caetano, nos
periferia de Macapá e Santana. Recomendamos quais práticas ditatoriais contra integrantes
que um protocolo de observação dos direitos da resistência democrática foram sistemati-
humanos seja elaborado e sirva de instrumento camente praticadas.
a ser seguido pelos agentes da segurança públi- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil,
ca estadual e seja reiterado e divulgado para os Secretaria da Justiça e Segurança Pública).
agentes e também à sociedade. E que ele seja O amplo conhecimento por parte da popula-
permanentemente atualizado, incorporando ção brasileira das violações aos direitos huma-
novas orientações de boas práticas, sobretudo nos cometidas ou acobertadas pelo Estado, du-
para reforçar seu caráter civil. rante a ditadura, deve ser compreendido como

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
76

ferramenta fundamental para a prevenção de graves violações aos diretos humanos. Neste
novas violações. Neste sentido, a Comissão da sentido, recomendamos ao Governo do Estado,
Verdade do Estado do Amapá, em observação em associação com as prefeituras municipais,
do artigo 4º da Lei nº 1756/2013, recomenda que crie o programa “Ruas de Memória”, por
a instalação de marcas de memória em locais meio de mobilizações, debates e projetos de lei
representativos. para a remoção de toda e qualquer homenagem
A Comissão Nacional da Verdade, em sua em logradouros ou equipamentos estaduais a
recomendação de número 28, buscou prestigiar pessoas que participaram da repressão militar,
esse tipo de medida: providência já sugerida no relatório final da Co-
“Devem ser adotadas medidas para pre- missão Nacional da Verdade. Determine, tam-
servação da memória das graves violações bém, que as novas denominações de ruas, insti-
de direitos humanos ocorridas no período tuições e demais equipamentos públicos devam
investigado pela CNV e, principalmente, da privilegiar nomes de mulheres, em minoria no
memória de todas as pessoas que foram ví- viário amapaense, mas, também, vítimas em
timas dessas violações. Essas medidas de- geral da repressão. Para tanto, recomenda-se,
vem ter por objetivo, entre outros: também, a criação de um BANCO DE REFE-
a) preservar, restaurar e promover o tom- RÊNCIAS EM DIREITOS HUMANOS, a ser cria-
bamento ou a criação de marcas de memória do para reunir sugestões populares de nomes
em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram de pessoas que contribuíram para a luta pelos
graves violações de direitos humanos”. direitos humanos no país e, especialmente, no
Recomendamos ao Governo do Estado, em Estado do Amapá.
acordo com essa orientação, que dê prossegui- A supressão de símbolos ligados às violên-
mento aos trabalhos de pesquisa e identificação cias cometidas pelo Estado, especialmente du-
dos sítios de memória, instalando neles placas rante a ditadura militar, é indispensável para a
que registrem e homenageiem as vítimas das construção de uma sociedade democrática.
violações aos direitos humanos. Como acontece
na Argentina e em outros países, as marcas de
memória deverão ser colocadas em posições que RECOMENDAÇÃO Nº 5
permitam fácil visibilidade pela população. Esta
CEV recomenda, ainda, que tais marcas sejam Criar um programa de fomento à cultura
inauguradas em eventos públicos, divulgados e a produção acadêmica que financie proje-
amplamente e com a participação do governa- tos relacionados ao tema do direito à memó-
dor, de sobreviventes e familiares de vítimas da ria e à verdade
repressão. Neste sentido recomenda-se, tam- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Secretaria de
bém, a instalação do MEMORIAL DA VERDADE Cultura; Gabinete Civil).
NA FORTALEZA SÃO JOSÉ DE MACAPÁ. Mais de meio século após o golpe de 1964,
muito da história da ditadura civil- militar e
das violações aos direitos humanos pratica-
RECOMENDAÇÃO Nº 4 das, naquele período, ainda estão por ser co-
nhecidas, contadas e registradas. Parte subs-
Prosseguir com as alterações de nomes tancial do que conhecemos sobre o período
de logradouros e equipamentos públicos que nos foi legada por meio de produtos culturais,
homenageiam agentes da ditadura sobretudo, livros e filmes que têm contribuí-
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Secretaria de do para avançarmos no direito à memória e à
Justiça e Segurança Pública; Secretaria de Cul- verdade, quase sempre superando grandes di-
tura; Secretaria de Infraestrutura, Secretaria de ficuldades de produção, viabilização comercial
Transportes). e distribuição.
As cidades de Macapá e Santana tem ao di- Produtos culturais que logram superar tais
versos logradouros e equipamentos públicos ba- obstáculos constituem documentos fundamen-
tizados com o nome de pessoas que cometeram tais no direito à memória e à verdade. E, sobre-

CHAGUINHA - AMAPÁ 2017


COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
77

tudo, em razão disso, têm alcançado justo re- RECOMENDAÇÃO Nº 6


conhecimento. No cinema, o tema das violações
aos direitos humanos no período da ditadura é Criar o Prêmio de Direito à Memória e
inspirador. Seria especialmente oportuno que à Verdade Francisco das Chagas Bezerra, o
o Estado do Amapá e seus personagens apa- Chaguinha
recessem com mais frequência em livros e fil- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
mes sobre o assunto, e que editais de fomento Secretaria de Justiça e Segurança Pública).
contribuíssem não apenas para a viabilidade A luta pela memória e pela verdade no Brasil
desses projetos, mas principalmente para que pós redemocratização é, também, uma luta tra-
o tema seja mais recorrente na produção cul- vada por instituições e indivíduos que, em suas
tural amapaense. trajetórias, assumiram o desafio de denunciar,
Recomendamos ao Governo do Estado a divulgar, organizar, pesquisar, registrar ou nar-
criação de um programa de fomento que vise à rar a história da ditadura civil-militar, conferin-
elaboração e publicação de livros, filmes, peças do destaque às violações aos direitos humanos
de teatro, projetos educacionais, projetos em praticadas pelo Estado ou em seu nome. No
música e em artes plásticas que tenham como Estado do Amapá não existem premiações que
tema a ditadura civil-militar e as violações aos reconheçam e valorizem a atuação de persona-
direitos humanos praticadas no período. A pro- lidades que se destacam na luta por direitos
posta é que seja aberto um edital todos os anos humanos, tampouco, pelo direito à memória e
para o financiamento de um produto em cada à verdade.
uma das seis categorias a seguir: um livro, um Recomendamos ao Governo do Estado a
filme, um álbum musical, uma peça de teatro, criação do PRÊMIO DE DIREITO À MEMÓRIA
uma exposição ou instalação de artes plásticas E À VERDADE FRANCISCO DAS CHAGAS BE-
e um projeto educacional. Não apenas a ade- ZERRA, o Chaguinha, a ser conferido todos os
quação com o tema e a viabilidade de execu- anos a uma personalidade ou instituição que
ção, mas, também, o protagonismo do Estado tenha se destacado na luta pela memória e ver-
do Amapá e o tratamento dado ao tema das dade, menos como homenagem a anistiados, ex
violações aos direitos humanos devem ser cri- -presos políticos e àqueles que sobreviveram à
térios de seleção. Os demais critérios deverão tortura e à guerrilha, e mais como homenagem
ser técnicos, de modo a garantir a execução e a a quem, na atualidade ou no conjunto da obra,
qualidade dos projetos selecionados no prazo a tenha dedicado sua vida e seu trabalho aos te-
ser especificado. O júri deverá necessariamen- mas da memória e verdade. O prêmio será en-
te mesclar especialistas em produção cultural tregue em dezembro e se somará ao calendário
e especialistas na área da memória e verdade. de celebração dos Direitos Humanos, realizado
Finalmente, as contrapartidas deverão incluir em data próxima ao Dia Internacional dos Di-
a ampla divulgação e veiculação dos produtos reitos Humanos (10 de dezembro).
em escolas, centros culturais e bibliotecas pú-
blicas, bem como, a participação em seminá-
rios e oficinas. RECOMENDAÇÃO Nº 7
A criação desse edital não exime o Governo
do Estado de permanecer atento a outras pos- Criar e manter no âmbito da administra-
sibilidades de promover o direito à memória e à ção estadual um Centro de Memória e Ver-
verdade por meio da cultura. Outras ações cul- dade
turais, para além do edital, deverão ser promo- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
vidas, em projetos independentes ou mediante Secretaria de Planejamento; Secretaria de Infra-
a inclusão do eixo de memória e verdade em ou- estrutura; Secretaria de Cultura).
tras políticas de fomento já consolidadas, inclu- A preservação da memória deve garantir, no
sive com vistas ao incentivo de novas práticas âmbito do Estado do Amapá, a criação de um
e linguagens artísticas e produção acadêmica. centro de referência que possibilite a produção
de conteúdo e a realização de eventos com foco

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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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no direito à memória e à verdade. Esse local (ÓRGÃOS RESPONSAVEIS: Secretaria de


deve ser concebido como um centro cultural, Planejamento; Secretaria de Infraestrutura; Se-
provido de espaço expositivo — incluindo um cretaria de Cultura).
ambiente para coleção permanente e outro de- O direito à memória e à verdade, previsto
dicado a exposições temporárias —, bem como, tanto no direito constitucional (que instituiu o
auditório, sala de cinema, espaço para cursos e habeas data), quanto no direito internacional,
oficinas e estrutura para montagem de bibliote- exige que o Governo do Estado do Amapá asse-
ca e videoteca. gure o direito de acesso à informação, que foi re-
O Governo do Estado deve assumir essa gulamentado pela Lei Federal nº 12.527/2011.
missão e criar um CENTRO DE MEMÓRIA E O Governo do Estado deve desenvolver uma
VERDADE, que muito poderá contribuir para a política de gestão documental, nos termos do
construção social da justiça de transição. Ideal- parágrafo 2º, artigo 216 da Constituição da
mente, seria oportuno obter junto ao Governo República e da Lei de Arquivos (Lei federal nº
Federal os recursos para a construção desse 8.159/91). A própria Constituição Estadual
centro. Esse centro será depositário da produ- institui como dever do Poder Público a abertu-
ção institucional sobre memória e verdade do ra, a manutenção e a conservação dos arquivos,
Estado e, principalmente, de material audiovi- bem como a “custódia dos documentos públi-
sual. Exposições itinerantes, seminários, mos- cos”. Sem o espaço físico qualquer política de
tras de cinema e outras iniciativa abordarão abertura, manutenção e conservação de docu-
preferencialmente o tema das violações aos di- mentos está fadada ao fracasso, daí a necessi-
reitos humanos no período compreendido entre dade urgente da construção do Arquivo Público
1964 e 1988, no âmbito do Estado do Amapá, do Estado do Amapá, hoje o único Estado da
podendo ser ampliado a fim de abarcar outros Federação que não dispõe de um prédio para
períodos da História do Brasil e também a histó- funcionar o Arquivo Público.
ria contemporânea, debruçando-se sobre temas É neste sentido que, também, recomenda-
outros, como o movimento negro, o movimento mos, a disponibilização das oitivas realizadas e
de mulheres, a questão indígena, a identidade dos documentos coletados por esta comissão à
de gênero ou o genocídio da juventude negra sociedade, por meio da guarda temporária de
nas periferias. nossos arquivos pela UNIFAP, até que seja cons-
Recomenda-se ainda que, no futuro, o lo- truído o Arquivo Público do Estado do Amapá, e
cal transformado em CENTRO DE MEMÓRIA a manutenção de nosso site.
E VERDADE venha a ser também a sede de
eventuais Unidades Governamentais de Direito
à Memória e Verdade, bem como, de conselhos RECOMENDAÇÃO Nº 9
e comissões amapaenses que trabalhem com o
tema, consolidando este ambiente futuro como Incluir no currículo da Educação Funda-
local de referência em memória e verdade. mental e do Ensino Médio, por meio do Pla-
Por fim, para que não seja esquecida e no Estadual de Educação, o ensino sobre as
que nunca seja repetida essa experiência, re- violações aos direitos humanos ocorridas na
comendamos a instalação de um MEMORIAL ditadura
DA VERDADE NA FORTALEZA DE SÃO JOSÉ (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Secretaria de
DE MACAPÁ, como um dos lugares que, infe- Justiça e Segurança Pública; Secretaria Muni-
lizmente, mais simboliza essa página triste de cipal da Educação).
nossa história. Durante a ditadura militar, o Estado extin-
guiu da educação brasileira o ensino de história
e deu lugar à Organização Social e Política Bra-
RECOMENDAÇÃO Nº 8 sileira e aos Estudos dos Problemas Brasileiros.
Tal intervenção revela a importância de se co-
Efetivar fisicamente o Arquivo Público nhecer o passado para a formação do pensa-
do Estado do Amapá mento crítico e social, suprimido durante o regi-

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me. No entanto, passadas mais de três décadas de História da Universidade Federal do Amapá,
desde o início do processo de redemocratização, por meio de projeto de extensão que amplie o
pouco se estuda, ainda, sobre as violações aos número de escolas visitadas e que ofereça cur-
direitos humanos cometidas pela repressão. so sobre a ditadura civil-militar a professoras e
A introdução do assunto no currículo da professoras da rede pública de ensino.
educação pública foi recomendação da Comis-
são Nacional da Verdade, que indicou a neces-
sidade de haver preocupação RECOMENDAÇÃO Nº 10
por parte da administração pública, com a
adoção de medidas e procedimentos para Formalizar um pedido de desculpas ofi-
que, na estrutura curricular das escolas pú- cial às vítimas de violações aos direitos hu-
blicas e privadas dos graus fundamental, manos praticadas pelo Governo do extinto
médio e superior, sejam incluídos, nas disci- Território Federal do Amapá durante a dita-
plinas em que couberem, conteúdos que con- dura militar
templem a história política recente do país e (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
incentivem o respeito à democracia, à insti- Secretaria de Justiça e Segurança Pública).
tucionalidade constitucional, aos direitos hu- Instada a investigar as violações aos direi-
manos e à diversidade cultural. tos humanos cometidas no âmbito do Estado do
Foi em 2003 que o Estado brasileiro come- Amapá, esta Comissão da Verdade reuniu uma
çou a elaborar o Plano Nacional de Educação amostra significativa de abusos, que vão desde
em Direitos Humanos, em resposta a uma exi- a perseguição a servidores por razões políticas à
gência da ONU no âmbito da Década das Nações colaboração sistemática com prisões arbitrárias
Unidas para a Educação em Direitos Humanos e torturas de vítimas da repressão política.
(1995–2004). Publicado em 2006, ele deu ori- Em 2009, o Ministério Público Federal pro-
gem às Diretrizes Nacionais para a Educação pôs ação determinando que a União e o Estado
em Direitos Humanos, em 2012, composto por de São Paulo procedam com pedidos de descul-
programas e projetos a serem desenvolvidos pas oficiais de modo a reparar “danos imateriais
tanto pelo governo como pela sociedade. causados pelas condutas de seus agentes du-
No Estado do Amapá não temos um Plano rante a repressão aos dissidentes políticos da
Estadual de Educação em Direitos Humanos, ditadura militar”. Em 2014, o relatório final da
com o objetivo de indicar princípios, diretivas e Comissão Nacional da Verdade incluiu entre
compromissos para profissionais da educação e suas recomendações a orientação para que as
gestores públicos. Ainda que liste como uma de Forças Armadas oficializem “o reconhecimento
suas ações programáticas fomentar a inclusão de sua responsabilidade institucional pela ocor-
das temáticas relativas à memória e à verdade rência de graves violações de direitos humanos
no currículo escolar, é indispensável que o en- durante a ditadura militar”.
sino das graves violações cometidas pelo Estado Constatada a similaridade na forma de en-
durante o período da ditadura civil-militar seja volvimento, cumplicidade e gravidade das vio-
incorporado ao Plano Estadual de Educação, lações aos direitos humanos praticadas pelas
tornando este tema obrigatório no ensino fun- esferas administrativas supracitadas e por este
damental e médio. Governo, consideramos oportuno e necessário,
De todas as atividades que realizamos, o no âmbito de um justo processo de reparação,
projeto “A Memória Vai à Escola” permite de que o Estado do Amapá formalize um pedido
maneira mais contundente que as próximas oficial de desculpas às vítimas de violações com
gerações percebam como se engendrou um as quais tenha colaborado.
regime que violou direitos humanos e disse- Tal pedido de desculpas deverá contemplar
minou medo e como, apesar disso, formas de não apenas as pessoas que sofreram abusos fí-
resistência são possíveis e sempre necessárias. sicos e seus familiares, mas deve ser estendido
Neste sentido, recomendamos sua continuação, aos servidores que sofreram perseguição, coa-
a partir do convênio firmado com o Colegiado ção, constrangimento, demissão ou exoneração

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por razões políticas, bem como, àqueles que ti- A recomendação desta Comissão da Verda-
veram suprimido seu direito à livre manifesta- de não se limita, porém às referências ao golpe
ção, por meio de um sistema de repressão aos de 1964, mas, também, aos agentes e defenso-
movimentos sociais apoiado pelo extinto Gover- res da ditadura civil-militar, em especial àque-
no do Território Federal do Amapá. les que praticaram graves violações de direitos
Os trabalhos relacionados a justiça e repa- humanos e que tenham sido relacionados no
ração, bem como a busca pela elucidação das relatório da CNV ou em outras denúncias.
violações aos direitos humanos praticadas no
Estado do Amapá durante a ditadura civil-mi-
litar, devem ser objetos de uma política pública RECOMENDAÇÃO Nº 12
permanente, que não esteja a reboque do bom
senso ou da “ideologia” dos próximos governa- Propor à Assembleia Legislativa a revo-
dores e suas equipes. gação de homenagens e títulos conferidos
a violadores de direitos humanos e impedir
que esses violadores sejam homenageados
RECOMENDAÇÃO Nº 11 no futuro
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil,
Proibir a realização em espaço público esta- Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de
dual de eventos em celebração ao golpe militar Comunicação).
de 1964 ou apologia a autores de violações aos O princípio democrático impede os Po-
direitos humanos deres Públicos de promover ou apoiar atos e
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil, eventos contrários à dignidade humana, bem
Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de como, homenagear nomes ligados a violações
Comunicação). aos direitos humanos. A 28ª recomendação da
Em uma democracia, é inconcebível que o Comissão Nacional da Verdade — “Preservação
Estado adote políticas ou siga diretrizes con- da memória das graves violações de direitos
trárias aos direitos humanos. A ditadura civil- humanos” — prevê, entre outras ações, “cas-
militar brasileira praticou crimes de lesa-hu- sar as honrarias que tenham sido concedidas a
manidade, que, embora sejam imprescritíveis, agentes públicos ou particulares associados a
continuam impunes. Em razão do princípio esse quadro de graves violações, como ocorreu
democrático, os Poderes Públicos não podem com muitos dos agraciados com a Medalha do
promover ou apoiar atos e eventos contrários à Pacificador”. No âmbito do Estado do Amapá,
dignidade humana. A quarta recomendação da trata-se de competência privativa do Poder Le-
Comissão Nacional da Verdade – “Proibição da gislativo, “conceder título de cidadão honorário
realização de eventos oficiais em comemoração ou qualquer outra honraria ou homenagem à
ao golpe militar de 1964” – recebeu a seguinte pessoa que reconhecidamente tenha prestado
justificativa, constante no relatório final daque- serviço ao Estado do Amapá”.
la comissão: Não se pode considerar, no entanto, que os
As investigações realizadas pela CNV com- agentes de um regime que se baseou em crimes
provaram que a ditadura instaurada atra- de lesa-humanidade tenham “prestado serviço”
vés do golpe de Estado de 1964 foi respon- ao país, tampouco ao Estado do Amapá. Ten-
sável pela ocorrência de graves violações do a Assembleia Legislativa do Estado do Ama-
de direitos humanos, perpetradas de forma pá eventualmente ofertado o título de Cidadão
sistemática e em função de decisões que en- Amapaense, bem como prestado outros tipos
volveram a cúpula dos sucessivos governos de homenagens a personalidades vinculadas ao
do período. Essa realidade torna incompatí- golpe de 1964 ou à ditadura, é importante que
vel com os princípios que regem o Estado de- esses atos sejam anulados. E que se garanta,
mocrático de direito a realização de eventos com força de lei, que violadores de direitos hu-
oficiais de celebração do golpe militar, que manos não recebam honrarias e prêmios do po-
devem ser, assim, objeto de proibição. der público no futuro, nem no Legislativo nem

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no Executivo. RECOMENDAÇÃO Nº 14
Instituir uma comissão permanente de-
RECOMENDAÇÃO Nº 13 dicada a dar seguimento às investigações
sobre violações aos direitos humanos come-
Disponibilizar aos servidores do extin- tidas entre 1964 e 1988 no âmbito estadual,
to Território Federal do Amapá que tenham em especial contra as populações indígenas.
sido demitidos por motivações políticas, en- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
tre 1964 e 1988, certidões que lhes permi- Procuradoria Geral do Estado; Secretaria de
tam requerer anistia política Justiça e Segurança Pública).
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil; Algumas limitações que enfrentamos, tanto
Procuradoria Geral do Estado; Secretaria de em termos estruturais quanto em quantidade
Administração; Secretaria de Justiça e Segu- de pessoas, impediram que algumas questões
rança Pública). fossem abordadas com mais profundidade,
Na esteira do golpe civil-militar de 1964 e como são os casos dos partidos políticos e dos
da assinatura do Ato Institucional nº 1, foram sindicatos. Um tema que identificamos como
demitidos de forma sumária milhares de servi- imprescindível para o entendimento da especi-
dores públicos indesejáveis, de todos os esca- ficidade do Amapá, que é o de como a ditadu-
lões e esferas de governo, inclusive territorial. ra atingiu de maneira particularmente cruel os
O Governo do Território Federal do Amapá, no povos indígenas da região, ficou completamen-
espirito do artigo 7º do AI-1, criou no âmbito te fora do escopo de nossas investigações e re-
territorial a Comissão de Investigação Sumária comendamos que seja criado um grupo que se
(CIS) que previa a demissão, o afastamento ou dedique à realização de oitivas com lideranças
a aposentadoria compulsória de servidores que e de pessoas próximas às comunidades indíge-
“atentassem contra a Segurança Nacional”. Fo- nas. Por exemplo, não existem estudos, dados
ram alvos da CIS os trabalhadores e dirigentes e informações sobre o impacto da ditadura so-
envolvidos em greve de 1961 e 1963, além dos bre as comunidades indígenas que viviam às
que já eram monitorados desde o final dos anos margens da BR-156, 210 e da Perimetral Norte.
1940. A perseguição se estendeu aos dirigentes Fato que exige investigações para seu esclare-
sindicais impedidos de tomar posse na direto- cimento.
ria, alguns foram presos e torturados na Dele- Assim como as comissões da verdade esta-
gacia de Investigações e Capturas (DIC), demiti- belecidas nos âmbitos federal e em outras es-
dos e alvos de processos da CIS e de Inquéritos feras da federação, esta Comissão da Verdade
Policiais Militares (IPM). possui mandato efêmero. A pesquisa por ela re-
Recomendamos que o Governo do Estado alizada, com base em documentos, audiências
providencie o levantamento dos casos de traba- públicas e entrevistas, revelou inúmeras viola-
lhadores que foram alvos de demissões e perse- ções aos direitos humanos ocorridas no Estado
guições políticas. É oportuno que essas pessoas do Amapá no período ditatorial. No entanto, a
possam pleitear anistia política, como repara- busca pela verdade é infindável, daí a necessi-
ção pelo tempo de afastamento e pelo atraso dade ser instituída uma comissão sem manda-
no cálculo previdenciário. Recomenda-se, tam- to limitado para resgatá-la. Em seu relatório, a
bém, tratar com a Comissão de Anistia do Mi- Comissão Nacional da Verdade recomendou a
nistério da Justiça a organização de uma Cara- criação de um órgão permanente com atribui-
vana da Anistia temática sobre esses servidores ção de dar continuidade às investigações por
do extinto Território Federal do Amapá, para ela iniciadas e “cooperar, complementar e coor-
que sejam apreciados os requerimentos e para denar atividades de investigação documental
que o Estado reconheça a condição de anistiado com pessoas, instituições e organismos, públi-
político, de acordo com a Lei nº 10.559/2002 cos e privados”.
e realize a reparação econômica e moral, eixo No Brasil, há outras comissões que traba-
estruturante da justiça de transição no Brasil. lham o tema das violações aos direitos humanos
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COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAPÁ
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e que adquiriram caráter permanente, como a mendações elaboradas por esta Comissão Es-
Comissão Especial sobre Mortos e Desapareci- tadual da Verdade
dos Políticos (CEMDP), criada em 1995, e vincu- (ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil;
lada à Secretaria Especial de Direitos Humanos Procuradoria Geral do Estado; Secretaria de
do Ministério da Justiça. Outra é a Comissão de Justiça e Segurança Pública).
Anistia, criada em 13 de novembro de 2002, e A Constituição do Estado do Amapá insti-
também ligada ao Ministério da Justiça. tui a participação popular como princípio da
Para que o trabalho de investigação das vio- organização estadual (artigo 5º, inciso III), que
lações aos direitos humanos praticadas duran- se concretiza em diversas instâncias, como na
te a ditadura no âmbito do Estado do Amapá política habitacional, na gestão da saúde, na
não cesse com o fim do mandato desta Comis- proteção e promoção do patrimônio histórico, e,
são, uma vez que temos consciência do caráter de forma ampla, que inclui as atividades de me-
inconcluso do nosso trabalho, recomendamos mória no “processo cultural do estado”
a criação de uma comissão permanente de Me- A implementação das ações de justiça de
mória e Verdade, alocada dentro da Secretaria transição recomendadas por esta Comissão
de Justiça e Segurança Pública ou do Gabinete também deverá seguir esse princípio essencial
Civil e dedicada a prosseguir com a elucidação dos regimes democráticos. Não por acaso, as
dos crimes cometidos no extinto Território Fe- principais iniciativas de justiça de transição no
deral do Amapá, bem como do registro do que Brasil tiveram como origem a sociedade civil. A
vier a ser descoberto. própria Comissão Nacional da Verdade não te-
ria existido sem a condenação do Estado brasi-
leiro no Caso da Guerrilha do Araguaia (Gomes
RECOMENDAÇÃO Nº 15 Lund e Outros vs. Brasil) na Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, que se originou de
Criar no governo um órgão autônomo uma denúncia dos familiares de mortos e desa-
(secretaria, coordenadoria, autarquia etc.) parecidos políticos.
responsável exclusivamente pelas políticas A CNV, em sua recomendação 26, propôs
de justiça e direitos humanos no âmbito do um órgão que teria, entre outras funções,
Estado do Amapá. monitorar o cumprimento das recomenda-
(ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS: Gabinete Civil; ções da CNV, com acesso ilimitado e pode-
Procuradoria Geral do Estado; Secretaria de res para requisitar informações, dados e
Administração). documentos de órgãos e entidades do poder
Não existe no âmbito do Estado do Ama- público, ainda que classificados em qual-
pá nem uma unidade administrativa e de ges- quer grau de sigilo, constituindo grupos de
tão com a responsabilidade de conduzir a po- trabalho e pesquisa e instalando escritórios
lítica de justiça e direitos humanos. Mesmo a nas unidades federadas onde forem neces-
SEJUSP que por ter em sua nomenclatura a sários.
área de justiça, sequer tem uma unidade inter- Recomenda-se a criação de uma comissão,
na responsável por essas políticas, isto em um ou conselho, estadual com esta competência,
estado onde as violações aos direitos humanos vinculado ao Gabinete Civil ou a Secretaria de
vicejam, entre outros lugares, na tríplice fron- Justiça e Segurança Pública, formado por re-
teira, no meio rural e nas periferias das cidades. presentantes da própria SEJUSP e de outras
Por isso é imprescindível desvincular da se- secretarias, e também por representantes da
gurança pública as políticas de justiça e direitos sociedade civil, em igual número de assentos.
humanos dotando-as de um órgão especifico. Os mandatos deverão ser soberanos e não coin-
cidentes com os mandatos eletivos da gestão
estadual. A representação da sociedade civil
RECOMENDAÇÃO Nº 16 deverá idealmente incluir representante com
histórico de atuação na área de memória e ver-
Criar um conselho paritário com a fun- dade, bem como anistiado político e/ou familiar
ção de zelar pela implementação das reco- de mortos ou desaparecidos.
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REFERÊNCIAS

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