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Parecer do Gabinete do

Procurador Geral do Estado

PROCESSO: OF. s/no , de 6 de maio de 2016 (GDOC-1000879-373155/2016)


PARECER: 193/2016
INTERESSADO: SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
ASSUNTO: BENS PÚBLICOS. PODER DE POLÍCIA. Autotutela administra-
tiva. Autoexecutoriedade de atos administrativos necessários à
manutenção ou retomada da posse, a qualquer tempo, de bens
públicos de uso comum e especial. Bens públicos jungidos aos di-
tames do Direito Público. Inaplicabilidade da restrição temporal
estabelecida no §1o, do artigo 1.210, do Código Civil. Utilização
de força policial. Precedentes: Pareceres PA no 29/2008 e GPG/
Cons. no 37/2014.

Trata-se de consulta dirigida à Procuradoria Geral do Estado, formulada pelo


Secretário da Segurança Pública1, podendo ser assim sintetizada:
“Ante o exposto, submeto a presente consulta a Vossa Excelência, a fim de saber
sobre a possibilidade do Estado de São Paulo fazer cessar esbulho possessório em
próprios estaduais valendo-se do desforço necessário previsto no art. 1.210, § 1o,
do Código Civil, com emprego de força policial proporcional ao agravo.”

O móvel do questionamento, segundo o Titular da Pasta da Segurança Pú-


blica, foi:
“Preocupa-me o crescente número de invasões de próprios estaduais, por diversos
motivos, em especial políticos, a exemplo da ocupação de escolas públicas estaduais
no segundo semestre de 2015 e, nesta semana, do Centro Estadual de Educação
Tecnológica Paula Souza, responsável pela gestão das escolas técnicas estaduais.
A solução jurídica adotada para cessação do esbulho utilizada pelo Estado de São Pau-
lo, por intermédio da Procuradoria Geral do Estado, tem sido o emprego direto dos
interditos possessórios, notadamente de ações de reintegração de posse, com pedido de
liminar. Todavia, não obstante o juízo possessório não admitir discussão alheia à posse

1 Ofício GS s/no datado de 6 de maio de 2016.

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(art. 1.196 c/c 1.210, parágrafo 2o, CC), é certo que o componente político que permeia
estas invasões, muitas vezes, acaba por desviar o foco da proteção pretendida. E
a ampliação da discussão jurídica, para abarcar a política, acaba por atrasar
a recuperação da posse dos imóveis invadidos, muitos deles vitais à execução
de atividades públicas essenciais, a exemplo da educação, com claro prejuízo à
Fazenda e à população.
Como exemplo, menciono o relevante e recentíssimo precedente de autoria do Juiz
responsável pela central de Mandados Judiciais das Varas da Fazenda Pública
da Capital que, não obstante agir como mero executor de mandado judicial de
reintegração de posse expedido pelo Juízo da 14a Vara da Fazenda Pública, nos
autos no 101946387.2016.8.26.0053, inovou ao impor condições extravagantes
para o cumprimento da liminar para cessação de esbulho cometido na sede do
CEETPS (Centro Paula Souza), como o emprego de força policial desarmada e
pessoalmente comandada pelo Secretário da Segurança Pública, o que motivou
pronta impetração de mandado de segurança, com liminar deferida.”

Delineados, motivos ensejadores e questionamento, cumpre-me, desde logo,


destrinçá-lo, o que faço passando ao largo da abordagem dos fundamentos susci-
tados pelas pessoas responsáveis por turbamentos ou esbulhos de bens públicos,
até porque, por mais relevantes que possam ser os argumentos – e os pretensos
“fundamentos jurídicos” utilizados para justificar tais condutas, a conclusão jurí-
dica é invariável, no sentido da censurabilidade desse agir e no modo pelo qual a
Administração Pública pode coibi-las.
Pois bem.
De início, há que se deixar assente que o regime jurídico dos bens públicos
não é o mesmo dos bens de particulares, ou seja, os bens públicos estão jungidos
ao regramento do Direito Público:
“A administração dos bens públicos rege-se pelas normas do Direito Público, apli-
cando-se supletivamente os preceitos do Direito Privado no que aquelas forem
falhas ou omissas.”2
“15.1.3 Submetidos a regime jurídico de direito público
O regime jurídico dos bens públicos é próprio do direito público. Isso significa a
não aplicabilidade dos institutos de direito privado, a começar pela propriedade.
Até se pode afirmar que o bem público está no ‘domínio’ ou ‘propriedade’ de uma
pessoa de direito público, mas isso não acarreta a aplicação do regime da pro-
priedade privada. Por exemplo, a pessoa de direito público titular do bem público
não está investida na faculdade de usar o bem como melhor lhe aprouver ou lhe

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 41. ed., atual., São Paulo: Malheiros, p. 627.

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dar a destinação que quiser.”3


“15.3.3 A inaplicabilidade de conceitos de direito privado
O regime de direito público é incompatível, na quase totalidade, com os insti-
tutos de direito privado da propriedade e da posse. Não se pode admitir, por
exemplo, que o bem público seja de ‘propriedade’ do Estado para efeito de re-
conhecer que ‘O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,
e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha’ (CC, art. 1.228).
O vínculo entre o Estado brasileiro e determinados bens não se identifica com
uma relação de propriedade típica do direito privado. Existem diversas caracte-
rísticas fundamentais de cunho publicístico que dão identidade à relação entre o
Estado e os bens de sua titularidade.”4

Essa sujeição dos bens públicos às normas de Direito Público gera reflexos
inexoráveis no que diz respeito à manutenção da posse, nos casos de turbação, ou
sua retomada, nos casos de esbulho, como será visto mais adiante.
Também para a correta resposta à questão jurídica submetida à análise da
Procuradoria do Estado, faz-se necessária rápida abordagem da tricotômica clas-
sificação dos bens públicos quanto à sua destinação5:
“a) de uso comum – são os destinados ao uso indistinto de todos, como os mares,
ruas, estradas, praças, etc;
b) de uso especial – são os afetados a um serviço ou estabelecimento público,
como as repartições públicas, isto é, locais onde se realiza a atividade pública
ou onde está à disposição dos administrados um serviço público, como teatros,
universidades, museus e outros abertos à visitação pública;
c) dominicais, também chamados dominiais – são os próprios do Estado como

3 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 1112.
4 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 1117.
5 Nesse sentido, rezam os artigos 98 e 99 do Código Civil:
“Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público
interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.”
“Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da adminis-
tração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de
direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pes-
soas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.”

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objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais
os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer
proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal.”6

Assim, e atendo-me aos limites da consulta formulada, ficarei adstrito às


questões possessórias relacionadas aos bens públicos de uso especial7 que, ao
submeterem-se aos ditames do Direito Público, atraem a incidência da autoexe-
cutoriedade dos atos administrativos8.
Hely Lopes Meirelles é taxativo ao abordar a autoexecutoriedade dos atos ad-
ministrativos necessários à manutenção ou retomada da posse de bens públicos:
“Observamos que a utilização indevida de bens públicos por particulares, nota-
damente a ocupação de imóveis, pode – e deve – ser repelida por meios adminis-
trativos, independentemente de ordem judicial, pois o ato de defesa do patrimônio
público, pela Administração, é autoexecutável, como o são, em regra, os atos de

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed., rev., atual. São Paulo: Ma-
lheiros, 2012, p. 930.
7 Anoto que as conclusões desta peça jurídico-opinativa são aplicáveis aos bens de uso comum e especial,
mas não aos bens dominicais, como já fora outrora alertado no Parecer PA no 29/2008:
“31. Em relação aos imóveis públicos enquadrados nas categorias de bem de uso comum ou especial, o regime acen-
tuadamente publicístico que lhes é peculiar apresenta uma nota característica concernente à proteção da posse des-
ses bens de raiz. Ao contrário do particular turbado ou esbulhado na posse de imóvel, que somente poderá manter
ou recuperar a posse por sua própria força se o fizer de imediato, nos termos do artigo 1.210, § 1o, do Código Civil,
a pessoa jurídica de direito público desapossada de imóvel de uso comum ou especial poderá, a qualquer tempo,
valer-se da autotutela para recuperar a posse do bem, muito embora também possa, facultativamente, se servir de
ação de reintegração de posse (art. 926 e segs. do CPC).” (grifei)
8 Vale aqui trazer à baila as palavras de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello a respeito da autotutela – ou
autoexecutoriedade – dos atos administrativos:
“Na hipótese de ser oposta resistência por terceiro, atingindo o ato administrativo, e mesmo a autoexecutoriedade
jurídica do seu mandamento, impõe-se o uso de coação pela força policial. É admissível, quando prevista a autoexe-
cutoriedade do ato, ainda que não prescrito, o uso da força policial, uma vez seja indispensável para o cumprimento,
ex officio, daquela e não haja outras sanções possíveis a se aplicar, que atingissem o mesmo fim colimado.
...
Embora, à primeira vista, se possa ter a impressão de que a autoexecutoriedade do ato administrativo constitui um
meio para o exercício abusivo de poder, ela, na verdade, está incorporada ao direito público moderno dos países
democráticos, sendo o berço dessa concepção o Direito Administrativo francês.
Realmente, não há risco para as liberdades dos cidadãos e para seu patrimônio no reconhecimento da autoexecu-
toriedade dos atos administrativos. Ao mesmo tempo que se faculta tal prerrogativa à Administração Pública, com
referência aos seus atos de direito público, se atribuem aos particulares remédios judiciais que permitem a suspensão
ou proibição da autoexecutoriedade quando envolver via de fato, isto é, corresponder a uma violação de direito.
Além disso, o ato poderá ser anulado e o particular haver a indenização dos danos sofridos, apurada perante os
tribunais a plena responsabilidade da Administração Pública.
Verifica-se, consequentemente, que é da própria natureza do ato administrativo a sua autoexecutoriedade, ao contrário
dos atos de direito privado. A autoexecutoriedade é a regra, nos casos em que ela seja efetivamente necessária, e retro-
expostos, no direito público; e a exceção no direito privado. Neste, a justiça pelas próprias mãos só se admite em casos
excepcionalíssimos, como seja a legítima defesa contra agressão injusta, ou o desforço pessoal nos casos de esbulho de
posse. Naquele, ao contrário, ela se realiza em princípio, desde que não haja proibição legal, direta ou indireta, como
salientado.” Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3a ed., vol. I. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 626/627.

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polícia administrativa, que exigem execução imediata, amparada pela força pú-
blica, quando isto for necessário.”9

Adotando nomenclatura diversa (“polícia dos bens públicos” ou “polícia do


domínio público”), às mesmas conclusões chegou Odete Medauar:
“e) A chamada polícia dos bens públicos
O regime jurídico dos bens públicos e a necessidade de preservá-los para que o
interesse público não seja prejudicado acarretam para a Administração prerro-
gativas e ônus nessa matéria.
Na doutrina, o conjunto de tais prerrogativas e ônus vem recebendo a denomina-
ção de polícia dos bens públicos ou polícia do domínio público. O termo polícia
aqui deve ser entendido com o seu sentido de fiscalização, vigilância, adoção de
medidas fortes para preservar tais bens. Não se trata propriamente de ‘poder
de polícia’, pois este fixa limitações ao exercício de direitos reconhecidos pelo
ordenamento aos seus detentores, incidindo, então, sobre atividades lícitas; se um
particular ocupa um bem indevidamente, tal ocupação não configura atividade
lícita, sobre a qual recai o poder de polícia; além do mais, inclui-se na polícia dos
bens públicos as atividades de manutenção (por exemplo, limpeza, restauração),
que nada têm a ver com limitação de direitos particulares.
Na chamada polícia dos bens públicos incluem-se várias atuações, algumas
apontadas a seguir. Para preservar os bens contra apropriação de terceiros, a
Administração poderá adotar medidas fortes, por si própria, utilizando mesmo
a força, para retirá-los de quem os detenha ilegalmente; para alguns autores, tal
conduta da Administração seria um desdobramento do princípio da autotutela
administrativa. Poderá a Administração utilizar a via jurisdicional, por meio
de ações possessórias, por exemplo, para reaver bens públicos de quem deles se
apropriou indevidamente. Em caráter preventivo, a Administração deverá tomar
as medidas necessárias para evitar a apropriação de bens por terceiros (exemplo:
vigiar, murar, ocupar bem vazio, realizar inventário de bens, instaurar processo
caso desapareçam bens móveis).”10

José Cretella Júnior, em texto publicado na Revista de Direito Administrativo


de abril/junho de 1972, mas ainda totalmente atual, diz:

9 Op. cit., p. 627.


10 Direito Administrativo Moderno. 18. ed., rev., atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 286/287.
Em outra passagem, segue a autora:
“À Administração competem as medidas de preservação do bem em si, de sua integridade física, impedindo que se deterio-
re; é a chamada ‘polícia’ de manutenção, que se traduz em providências relativas à limpeza, restauração, reparação, etc.
Cabe, ainda, à Administração o dever de zelar para que o uso dos bens seja conforme a sua afetação, impedindo des-
virtuamentos e prejuízos ao uso normal. Esse dever adquire relevo principalmente quanto aos bens de uso comum,
em que o povo é seu beneficiário direto.”

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“5. Além de incidir sobre os atos administrativos, a ação do Estado é dirigida de
maneira constante aos bens públicos, ... estão sujeitas a regime jurídico especial,
exorbitante e derrogatório do direito comum (ver: nosso Dos bens públicos no
direito brasileiro, 1969, p. 18).

Ao privilégio excepcional que a Administração tem, de agir de modo direto,


por si mesma, sem necessidade de recorrer à via judicial, mediante suas pró-
prias resoluções executórias se dá também o nome de autotutela. É a auto-
tutela dominial.

Pelo instituto da autotutela, a Administração, dispensando a existência de texto


de lei autorizativo, ou de título hábil emitido pelo juiz, age diretamente, valen-
do-se dos meios comuns de defesa da propriedade, em geral, para a proteção da
coisa pública, em especial.

Como se observa, tal faculdade, concedida à Administração, constitui especia-


líssimo privilégio ou prerrogativa, verdadeira exceção na ordem jurídica, o que
advém da posição sui generis de desnivelamento que o Estado ocupa em relação
ao particular.

Para que a autotutela dominial ocorra é preciso, antes de tudo, que seja incon-
trastável a natureza jurídica pública do bem tutelado, afastados, pois, quaisquer
direitos de quem dê origem à atividade administrativa protetora.

...

Mediante a autotutela o Estado protege não só a coisa, em sua constituição físi-


ca, impedindo-lhe a degradação, como também protege a coisa do mau uso ou
desvirtuamento do uso por parte de terceiros que possam deteriorá-la. Vai além:
procura reaver o bem público daquele que o detém ilicitamente.

...

A peculiaridade do regime da autotutela dominial consiste no fato de que, en-


quanto os sujeitos privados tutelam a propriedade privada apenas por meio
da ação judiciária, o Estado, ao contrário, tutela a propriedade dominial de
maneira direta, mediante a atividade administrativa, pela polícia dos bens
dominiais ...

Além da autotutela, meio normal de que dispõe a Administração para o po-


liciamento dos bens públicos, há ainda outros meios tutelares, consistentes em
ações determinadas, do direito comum, que o Estado pode propor para a proteção
dominial. São as ações possessórias. A tutela jurídica da propriedade pública é
obtida pelas normais ações petitórias e possessórias, postas à disposição da Ad-
ministração, como proprietária e possuidora. Em segundo lugar, pelos atos decla-
ratórios da dominialidade, como elencos, cadastros, inventários, delimitações. ‘A
propriedade dominial é defendida diretamente por meio de medidas de polícia e,

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indiretamente, por atos declaratórios da dominialidade’ (ROMANO Santi, Corso


di diritto amministrativo, 1937, p. 191).”11

Afora a doutrina estrangeira citada por Cretella Jr. no texto acima trans-
crito, Marcello Caetano também é defensor da autotutela administrativa dos
bens públicos:

11 Cretella Jr. traz à baila, ainda, a doutrina estrangeira a respeito:


“É claro que, regra geral, ‘a Administração não necessita recorrer às ações possessórias, porque pode recuperar
a posse perdida dentro do ano de sua perda, por si mesma, administrativamente’ (ÁLVAREZ-GENDIN Sabino,
Tratado General de derecho administrativo, 1958, vol. I, p. 461 e Bozzi Aldo, Istituzioni di diritto pubblico, 2. ed.
1966, p. 366).
Fica, pois, bem claro, o objetivo da autotutela dominial, ação administrativa do Estado dirigida à proteção da inte-
gridade material dos bens públicos, pela repressão, inclusive manu militari, a qualquer tipo de ocupação arbitraria
ou modificação das coisas dominiais, ou qualquer atividade do administrado que seja danosa à integridade das
coisas públicas, infringindo as normas que resguardam o domínio público (ALESSI Renato, Sistema istituzionale del
diritto amministrativo, 1953, p. 406).
Dirigem-se as atividades policiais, decorrentes da ‘potestas’ autotutelar administrativa, a todo tipo de ação danosa
do particular relativa à coisa pública, visando a ação do Estado a cessação da atividade danosa do administrado,
bem como a volta do bem a seu estado anterior, a expensas do particular, despesas cobradas na forma e com os
privilégios peculiares aos impostos. ...
Com efeito, o direito de uso de todos tem limites. Excedê-los significa apoderar-se da coisa pública. Ou perturbar-lhe
o aproveitamento. O aspecto do poder público que se destina a repelir atentados desta natureza é conhecido pelo
nome de polícia da coisa pública. (MAYER Otto, Derecho administrativo alemán, 1951, vol. III, pp. 203, 204 e 205).
...
Se o dever do Estado é zelar por todos, o mau uso ou abuso do domínio público por parte de um vai prejudicar a uti-
lização por parte de todos e a omissão do poder público, no tocante à tutela da dominialidade, colide com o princípio
do interesse coletivo, com o direito que todos têm à utilização do domínio público.
...
... Note-se ainda que a defesa contra eventuais danos ou usurpações, que de terceiros podem provir aos bens, é
diferente nos dois campos. Na propriedade privada, tal defesa não pode atuar senão com a ação judiciária, que é o
meio normal da tutela dos bens privados, ao passo que, na propriedade pública, além de tais meios, a defesa pode
realizar-se através de atos de soberania do mesmo ente proprietário, atos que, no conjunto, constituem a polícia dos
bens dominiais. (ZANOBINI Guido, Corso di diritto amministrativo, 6. ed. 1950, vol. I, p. 135).
...
Assim, também, a dominialidade pública, nos três aspectos distintos em que se desdobra – bens de uso comum, bens
de uso especial, bens do patrimônio privado do Estado –, fica à mercê da autotutela que, fundamentada no poder
de polícia, se dirige, a priori e a posteriori, no sentido da preservação da coisa pública, impedindo a turbação, o
esbulho, a má utilização, a deterioração e o desvirtuamento do uso, por quem quer que seja.
Em suma, a autotutela é vigilância, fiscalização, policiamento, condição precípua da própria vida administrativa.
Sem a autotutela, a Administração perderia a extrema flexibilidade de que é dotada, sua própria razão de êxito.
Com a autotutela, a Administração age no momento exato, destituladamente, sem recorrer a providências oriundas
do Poder Judiciário.
...
A Administração tem o direito e o dever de impedir que as coisas públicas pereçam, usando os próprios meios para
a proteção policial do domínio público.
Corolário do princípio setorial das prerrogativas públicas, pois, a prerrogativa autotutelar é a faculdade que tem a
Administração de impedir a destruição e o uso da coisa pública, bem como a de reaver, com os próprios meios poli-
ciais de que dispõe, os bens do domínio público que tenham passado, ilegalmente, para as mãos do particular (nosso
Prerrogativas e sujeições da Administração Pública, em RDA 103/27).” Da Autotutela Administrativa. Revista de
Direito Administrativo no 108: 47/63; abr./jun. 1972.

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“Quanto à defesa das coisas públicas, por parte da Administração, contra tur-
bações e esbulhos dos particulares, não é de aceitar, igualmente, que se faça pelo
emprego dos meios possessórios. É fato que, admitido o direito de propriedade
pública, tem que se aceitar que ele envolve a posse, e não colhe, portanto, o
argumento de que as coisas públicas não são susceptíveis de posse, princípio só
verdadeiro nas relações jurídico-privadas e relativamente aos particulares e não
para as pessoas de direito público.
Mas, em primeiro lugar, seria logicamente inadmissível a ação de restituição de
posse de uma coisa dominial, pois que, de duas, uma: ou a coisa pertence ao
domínio público e por lei de interesse e ordem pública a sua administração é da
competência de uma autoridade administrativa ou seu concessionário; ou, então,
se é susceptível de posse por particulares, já não é dominial. Desde que a coisa
pública está, por lei, na administração de uma certa autoridade, a competên-
cia desta não pode ser discutida, nem reivindicado o seu exercício, numa ação
possessória. Quanto à ação de manutenção, menos ainda se compreende que as
pessoas de direito público recorram aos meios civis para fazer cessar os atos de
turbação da sua posse. É da essência da personalidade de direito público o exer-
cício das prerrogativas de autoridade, implicando a faculdade de tomar decisões
executórias, que só depois de proferidas podem ser contenciosamente discutidas.
Tal prerrogativa exerce-se, em relação ao domínio, pela polícia que mantém e,
sendo necessário, reintegra a posse da Administração para que se cumpra a lei
atributiva da competência e se preencham os fins de utilidade pública a que, pela
afecção, a coisa está destinada.”12

Vê-se, pois, que o exercício da autotutela, pela Administração Pública, na


defesa da posse de bens públicos, não é algo novidadeiro. Ao contrário, está se-
dimentada no Direito Administrativo brasileiro, encontrando esteio, ainda, no
direito comparado.
Após trazer à lume os expoentes administrativistas, de modo a embasar as
considerações tecidas neste parecer, cumpre-me, igualmente, e a título meramen-
te exemplificativo, colacionar julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tri-
bunal de Justiça do Estado de São Paulo a respeito da quaestio juris aqui versada:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ENUN-
CIADO ADMINISTRATIVO NO 2. AUSÊNCIA DE OMISSÕES. BEM PÚBLI-
CO. CONSTRUÇÃO IRREGULAR EM RODOVIA FEDERAL. TUTELA JU-
RISDICIONAL ACERCA DA DEMOLIÇÃO. INTERESSE DE AGIR DO DNIT.
POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO. RECURSO ESPE-
CIAL PARCIALMENTE PROVIDO.”13

12 Direito Administrativo. Edição de 1947, p. 342.


13 STJ – Resp no 1.521.040 – PB; Rel. Min. Mauro Campbell Marques; DJe 26/04/2016 (cópia anexa).

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Da decisão do Ministro Relator cabe pinçar o seguinte trecho:


“Ora, tal como asseverado pelo Tribunal local, o poder de polícia inerente à Ad-
ministração Pública permite que o DNIT tome as medidas (através de atos ad-
ministrativos) necessárias para alcançar suas finalidades legais. Ou seja, não há
dúvidas de que o uso legítimo do poder de polícia possibilita que o DNIT venha
demolir obras irregulares construídas nas faixas rodoviárias.
Contudo, é certo que as premissas contidas nos atos administrativos e nos poderes
da Administração não se sobrepõem às garantias constitucionais. Em verdade, a
devida compreensão deles é realizada a partir da interpretação das disposições
constitucionais e, para a devida solução do caso dos autos, necessário lembrar o
comando normativo do art. 5o, inc. XXXV, da CF, que assim dispõe:

Art. 5o. [...]


XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito;
Assim, independentemente do atributo da autoexecutoriedade dos atos adminis-
trativos, ao Poder Público é dado recorrer à tutela jurisdicional, porque assim lhe
garante a Constituição.
Vê-se, portanto, que o interesse de agir do DNIT se encontra perfeitamente ca-
racterizado na necessidade e na utilidade presentes na segurança jurídica e im-
parcialidade da tutela jurisdicional.
Nesse mesmo sentido, importante destacar que o Superior Tribunal de Justiça,
em outras oportunidades, já se manifestou pela caracterização do interesse de
agir da Administração Pública nas hipóteses em que ela poderia atuar com base
em seu poder de polícia em razão da inafastabilidade do controle jurisdicional. A
propósito, os seguintes precedentes:
‘AMBIENTAL E ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DEMO-
LIÇÃO DE EDIFÍCIO IRREGULAR. AUTOEXECUTORIEDADE DA MEDIDA.
ART. 72, INC. VIII, DA LEI NO 9.605/98 (DEMOLIÇÃO DE OBRA). PECULIA-
RIDADES DO CASO CONCRETO. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO.
1. A questão cinge-se ao debate sobre o eventual interesse processual do Ibama
em ação civil pública cujo pedido consiste na condenação dos recorridos à repa-
ração de danos ambientais, bem como à indenização por eventual dano coletivo
causado ao meio ambiente em razão da construção de prédio na margem do ‘Rio
Chumbo’, área de preservação permanente.
2. A origem entendeu que a demolição de obras é sanção administrativa dotada
de autoexecutoriedade, razão pela qual despicienda a ação judicial que busque
sua incidência. O Ibama recorre pontuando não ser atribuível a autoexecutorie-
dade à referida sanção.

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3. Mesmo que a Lei no 9.605/98 autorize a demolição de obra como sanção às
infrações administrativas de cunho ambiental, a verdade é que existe forte con-
trovérsia acerca de sua autoexecutoriedade (da demolição de obra).
4. Em verdade, revestida ou não a sanção do referido atributo, a qualquer das
partes (Poder Público e particular) é dado recorrer à tutela jurisdicional, porque
assim lhe garante a Constituição da República (art. 5o, inc. XXXV) – notoria-
mente quando há forte discussão, pelo menos em nível doutrinário, acerca da
possibilidade de a Administração Pública executar manu militari a medida.
5. Além disso, no caso concreto, não se trata propriamente de demolição de obra,
pois o objeto da medida é edifício já concluído – o que intensifica a problemática
acerca da incidência do art. 72, inc. VIII, da Lei no 9.605/98.
6. Por fim, não custa pontuar que a presente ação civil pública tem como objetivo,
mais do que a demolição do edifício, também a recuperação da área degradada.
7. Não se pode falar, portanto, em falta de interesse de agir.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
(REsp 1246443/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUN-
DA TURMA, julgado em 23/08/2011, DJe 13/04/2012)’”
“OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. Pretensão de impedir a Municipalidade de reaver
o imóvel pela via administrativa. Impossibilidade. Princípio da autotutela. Direi-
to do Município de zelar pelo seu patrimônio sem necessidade de título judicial.
Manutenção na posse de bem público. Inviabilidade. Bem que foi cedido para uso
em programa de habitação. Beneficiários que infringiram cláusula de proibição de
venda do bem. Ausência de propriedade do apartamento para alienação à autora.
Recurso desprovido.”14
“REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Expirado contrato que justificava a permanên-
cia de servidora pública em imóvel público, deve desocupá-lo – Providência que
deve ser exigida pela Administração Pública, no exercício do seu poder de au-
totutela. Ademais, a ocupação de bem público não acarreta posse, mas mera
detenção. Esbulho caracterizado. Sentença de procedência mantida. Preliminar
afastada. Recurso improvido.”15
“INDENIZAÇÃO. Bem público. Ocupação pelos autores. Esbulho possessório ca-
racterizado. Desocupação e demolição da edificação levadas a efeito por agentes
da Administração. Inexistência de ilegalidade, pois a atuação administrativa se

14 TJ-SP; 10ª Câmara de Direito Público; APELAÇÃO no 0059868-96.2012.8.26.0224; Rel. Des. Marcelo
Semer; Data da decisão: 14/04/2014.
15 TJ-SP; 7ª Câmara de Direito Público; APELAÇÃO CÍVEL No 0005805-02.2010.8.26.0642; Rel. Des. Moacir
Peres; Data da decisão: 13/08/2012.

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Parecer do Gabinete do Procurador Geral do Estado

deu nos limites do poder de autotutela. Ocupação que, por se tratar de bem pú-
blico, não induz posse. Inexistência de direito a indenização. Ação improcedente.
Recurso improvido.”16

E, finalmente, na seara da jurisprudência administrativa da Procuradoria Ge-


ral do Estado17, o exercício da autotutela administrativa em caso de turbação ou
esbulho da posse de bens públicos já foi abordado no Parecer PA no 29/2008
(cópia anexa), da lavra de Elival da Silva Ramos:
“...
30. Conforme já tive a oportunidade de expor em texto doutrinário publicado nos
Cadernos FUNDAP (Fundação do Desenvolvimento Administrativo), ‘embora
todos os bens públicos estejam subordinados a regime jurídico de direito público,
é certo que os bens de uso comum e os de uso especial são atraídos na direção
desse regime, cujos princípios prevalecem no silêncio da lei’, ao passo que ‘os bens
do patrimônio disponível sofrem atração rumo às normas jurídicas privadas, que
sobre elas incidem, à falta de normas derrogatórias do direito comum expressa-
mente aplicáveis’.
31. Em relação aos imóveis públicos enquadrados nas categorias de bem de uso co-
mum ou especial, o regime acentuadamente publicístico que lhes é peculiar apresenta
uma nota característica concernente à proteção da posse desses bens de raiz. Ao con-
trário do particular turbado ou esbulhado na posse de imóvel, que somente poderá
manter ou recuperar a posse por sua própria força se o fizer de imediato, nos termos
do artigo 1.210, § 1o, do Código Civil, a pessoa jurídica de direito público desapossada
de imóvel de uso comum ou especial poderá, a qualquer tempo, valer-se da autotutela
para recuperar a posse do bem, muito embora também possa, facultativamente, se
servir de ação de reintegração de posse (art. 926 e segs. do CPC).
...
38. O exercício da autotutela por parte da Municipalidade poderá ser apoiado pela
Polícia Militar estadual, desde que as circunstâncias fáticas indiquem que haverá
resistência da parte dos invasores, com grave risco à ordem pública, e não se mostre
suficiente o acompanhamento dos agentes municipais incumbidos da recuperação
de posse pela Guarda Municipal. A atuação desta em situações da espécie está ple-
namente respaldada pelo § 8o, do artigo 144, da Constituição Federal.
...

16 TJ-SP; 10ª Câmara de Direito Público; APELAÇÃO COM REVISÃO no 539.476-5/5; Rel. Des. Antonio
Carlos Villen; Data da Decisão: 15/12/2008.
17 Menciono, ainda, o Parecer GPG/Cons no 37/2014 (cópia anexa), que, respondendo à consulta formulada pela
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano – CDHU, teceu considerações acerca da manutenção/
retomada da posse de bens dominicais, inclusive no que concerne à atuação da Polícia Militar em tais situações.

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49. O fundamento jurídico dessa prerrogativa do Poder Público está no pró-
prio regime que a Constituição e a legislação infraconstitucional traçaram
para a atuação das entidades administrativas, com personalidade de direito
público, regime que contempla, dentre outros aspectos relevantes, a autoexe-
cutoriedade dos atos administrativos em geral e notadamente das medidas de
polícia administrativa.
...
52. Há quem pretenda que a autoexecutoriedade das sanções administrativas
deva ser consagrada expressamente em lei, como é o caso de CARLOS ARI
SUNDFELD, ponto de vista esse que foi por ele amplamente exposto no Pare-
cer PA-3 no 113/97, em que se examinou, precisamente, a efetivação de ordem
de demolição expedida pela Secretaria do Meio Ambiente em área de proteção
aos mananciais.
53. Não se me afigura ser essa a melhor doutrina, pois, como já foi dito,
decorre do próprio regime jurídico aplicável à Administração Pública (e der-
rogatório do direito comum) a desnecessidade desta ingressar em juízo para
assegurar a aplicação e execução de penalidades administrativas, sendo,
pois, a autoexecutoriedade da pena de demolição de obra ou edificação ínsita
à previsão legal dessa modalidade de sanção associada ao exercício da polícia
urbanística e ambiental. Esse o caminho trilhado pelo então Procurador Ge-
ral do Estado, ao fixar a orientação dissonante do entendimento preconizado
no Parecer PA-3 no 113/97. Destarte, prevalece na PGE, por força do despa-
cho aditivo a esse parecer, proferido pelo comando institucional, a diretriz se-
gundo a qual ‘existe, na lei, autorização implícita para que a Administração
execute a penalidade de demolição’.”

Dirigindo-me à conclusão deste parecer posso afirmar, sem dúvidas, e com


esteio na melhor doutrina, jurisprudência e precedentes pareceres da Procurado-
ria Geral do Estado, que à Administração Pública é facultado manter ou retomar
a posse de seus bens em caso, respectivamente, de turbação ou esbulho, indepen-
dentemente de ordem judicial.
Se até mesmo ao particular é excepcionalmente garantida, em caso de turba-
ção ou esbulho, o exercício da autotutela18, certamente a Administração Pública
também pode exercê-la.

18 Reza o Código Civil:


“Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho,
e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§ 1o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto
que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou
restituição da posse.”

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Parecer do Gabinete do Procurador Geral do Estado

Enquanto o agir do particular encontra lastro em dispositivo do Código Civil


(art. 1.210, §1o), a atuação administrativa está escudada no regime publicístico
de seus bens.
Advém, daí, uma diferença crucial, qual seja, o particular está adstrito a um
requisito temporal (“contanto que o faça logo”), ao passo que a Administração
pode exercer seu direito a qualquer tempo. Por óbvio, é recomendável que aja o
mais rápido possível, até porque, como dito alhures, não se trata meramente de
um poder, mas de um verdadeiro dever da Administração garantir a posse e uso
de seus bens, conforme a destinação que lhes foi dada.
A operacionalização da atuação administrativa deve-se dar com ofício do
Titular da Pasta à qual o bem público está vinculado, dirigido ao Secretário da
Segurança Pública, instruído com os elementos necessários ao planejamento da
operação a ser feita pela Polícia Militar, que deverá, nos termos do Parecer GPG/
Cons. no 37/2014, “por meio de um juízo de conveniência e oportunidade, defi-
nir as estratégias de atuação da Corporação...”, não desconsiderando que “os atos
de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou
restituição da posse”.
É o parecer.

GPG., 10 de maio de 2016.

ADALBERTO ROBERT ALVES


Procurador do Estado Assessor Chefe
Assessoria Jurídica do Gabinete – AJG

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PROCESSO OF. S/NO , DE 6 DE MAIO DE 2016 (GDOC-1000879-373155/2016)
INTERESSADO: SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
ASSUNTO: BENS PÚBLICOS. PODER DE POLÍCIA.

De pleno acordo com o Parecer AJG no 193/2016, subscrito


pelo Procurador do Estado Assessor Chefe, da Assessoria Jurídica do
Gabinete do Procurador Geral do Estado.
À guisa de conclusão, esclarece o parecer ora aprovado que “à
Administração Pública é facultado manter ou retomar a posse de
seus bens em caso, respectivamente, de turbação ou esbulho, inde-
pendentemente de ordem judicial”.
Com efeito, o regime dominial dos bens públicos é peculiar e
inconfundível com o regime privatístico, que, com a exceção do des-
forço imediato, remete o proprietário ou simples possuidor à tutela
jurisdicional, em caso de turbação ou esbulho possessório. Isso é
particularmente verdadeiro quando se trata de bens públicos de uso
especial, isto é, afetados a uma utilização específica e exclusiva por
parte da Administração Pública, envolvendo o desempenho de suas
multifárias e imprescindíveis atividades.
Diante da autêntica “banalização” nas ocupações de imóveis afe-
tados a serviços públicos no Estado de São Paulo, sob o falso pretexto
de que se trata do exercício da liberdade de manifestação do pensa-
mento ou do direito de reunião, recomenda esta Procuradoria Geral
do Estado que as Secretarias de Estado, agindo em conjunto com a
Secretaria da Segurança Pública, alterem a sistemática até aqui adota-
da, de solicitar a este órgão de advocacia pública a obtenção em juízo
de ordens de reintegração de posse. A par da maior demora na recu-
peração da posse administrativa, sujeitam-se essas ações possessórias
à falta de uniformidade típica do sistema jurisdicional brasileiro, va-
riando excessivamente as cautelas impostas pelos magistrados para
o cumprimento das ordens de reintegração. Por vezes, o que temos
assistido é a transformação das audiências de conciliação, por si sós
incompatíveis com a presteza na execução da ordem judicial, nesses
casos, em cenário para a apresentação de reivindicações por grupos
que, ao contrário do que se poderia supor, não se interessam em man-
ter um diálogo constante e produtivo com a Administração, na busca
da melhoria das condições de prestação dos serviços públicos.

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Parecerdo
Parecer doGabinete
Gabinetedo
do Procurador Geral do Estado

O Poder Público somente deve adotar a autocontenção no exer-


cício do poder de autotutela quando houver dúvida fundada sobre
a situação controvertida, havendo risco de reversão da medida por
provocação dos administrados na via judicial. Não é essa, manifesta-
mente, a hipótese que se examina, pois sequer os “ocupantes-mani-
festantes” questionam a posse estatal, fundando a suposta legitimi-
dade de sua atuação em um discurso exclusivamente político, sem o
menor respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
No exercício da autotutela é previsível, em um cenário de ra-
dicalização política, que enfrentem as Secretarias de Estado forte
resistência para efetuarem as desocupações. Daí a necessidade de
imediata comunicação à Secretaria da Segurança Pública, para que
providencie a força policial necessária às desocupações, que devem
ocorrer o mais rápido possível, quer para evitar o seu alastramento,
quer para a preservação do patrimônio público e o interesse de ter-
ceiros, prejudicados pela interrupção, ilegal e abusiva, na prestação
dos serviços de que são destinatários.
O modo de operacionalização do apoio da força policial deve
ser encontrado, de forma conjunta, em deliberação das autoridades
da Secretaria afetada pelas ocupações e da Secretaria da Segurança
Pública, em que avultam as atribuições do Comando da Polícia Mi-
litar. Se não houver prejuízo à efetividade das medidas de desocu-
pação, é conveniente que sejam acompanhadas por representantes
dos Conselhos Tutelares e do Ministério Público, quando, dentre os
ocupantes, existam menores de idade.
Alerto, por fim, que as desocupações por meio da adequada
ação administrativa não esgotam o elenco de providências a se-
rem tomadas pelas Secretarias de Estado que tiveram imóveis sob
sua administração invadidos, havendo a necessidade de registra-
rem boletim de ocorrência perante a repartição policial compe-
tente sempre que algum crime (por exemplo, de dano ou furto),
em tese, tenha sido praticado pelos invasores. O inquérito policial
deve ser acompanhado pela Pasta, informando a esta Procuradoria
Geral no caso de haver processo criminal instaurado, para a devida
habilitação como assistente de acusação. Ademais, se danos foram
produzidos pela ocupação ilícita devem ser indenizados pelos ocu-
pantes ou seus responsáveis legais, para o que imprescindível se
faz a sua identificação precisa pelos agentes públicos que adminis-
tram o próprio invadido.

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Por último, há também que se atentar para o peculiar regime ju-
rídico que, por vezes, vincula os ocupantes ao serviço público afetado
por sua atuação ilícita. No caso de estudantes da rede pública, existe
um conjunto de normas disciplinares que incidem nessas situações, a
demandar, de igual modo, a instauração dos correspondentes proce-
dimentos administrativos.
Esse conjunto de medidas direcionadas à restauração da ordem
legal não constituem, é bom frisar, poderes discricionários postos
à disposição do administrador público. Cuida-se, a bem de ver, de
imposições normativas, sujeitando o gestor público renitente a res-
ponder, ele próprio, pela grave omissão.
Não é demais salientar que o maior rigor, que ora se preconiza,
nas desocupações de repartições públicas invadidas, não se incom-
patibiliza com a orientação favorável à ampliação do diálogo entre
agentes públicos e administrados ou destinatários de serviços públi-
cos. Ao contrário, a cessação das irresponsáveis e ilícitas ocupações
de próprios do Estado levará os possíveis ocupantes a uma alteração
no método de apresentação de suas reivindicações, compatibilizan-
do-se, pois, o exercício legítimo da autonomia individual com o im-
pério da lei e da ordem, sem o que não triunfará o projeto de Estado
democrático de Direito delineado pela Constituição da República.

GPG., 10 de maio de 2016.

ELIVAL DA SILVA RAMOS


Procurador Geral do Estado

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Parecer do Gabinete do Procurador Geral do Estado

PROCESSO: OF. S/NO , DE 6 DE MAIO DE 2016 (GDOC-1000879-373155/2016)


INTERESSADO: SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
ASSUNTO: BENS PÚBLICOS. PODER DE POLÍCIA.

Encaminhe-se cópia do Parecer AJG no 193/2016, com a apro-


vação do Senhor Procurador Geral do Estado, às Subprocuradorias
das Áreas do Contencioso Geral e Consultoria Geral.
Após, restitua-se à Secretaria da Segurança Pública, por inter-
médio de sua Consultoria Jurídica.

GPG., 10 de maio de 2016.

ADALBERTO ROBERT ALVES


Procurador do Estado Assessor Chefe
Assessoria Jurídica do Gabinete – AJG

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