Você está na página 1de 5

Documento Curricular de Buenos Aires

4. As práticas de linguagem em contexto de estudo

Délia Lerner

Criar as condições para que os alunos aprendam a estudar e sejam cada vez mais capazes de fazê-lo com
autonomia é uma das prioridades do segundo ciclo, prioridade que está relacionada com o compromisso de
conseguir que os alunos concluam com êxito a escolaridade primária e de que a extensão da educação
obrigatória se concretize realmente. Conceber o estudo como objeto de ensino é uma responsabilidade da
escola.
Quando se estuda, as diferentes práticas de linguagem aparecem tão intimamente relacionadas que
separá-las resultaria arbitrário. Por um lado, quando se lê um texto ou se escuta uma exposição sobre um
conteúdo que se está aprendendo, o leitor ou o ouvinte se dispõe a selecionar aquilo que necessitam recordar:
adotam, diria L. Rosenblatt (1996)1 uma posição “eferente” ao ler, uma posição centrada em reter aquilo que
necessitarão saber e reutilizar depois da leitura ou da audição (diferentemente do que ocorre quando o leitor o
ou o ouvinte adotam uma posição “estética” centrada no texto durante a leitura ou a escuta). É por isso que,
enquanto se lê ou escuta, torna-se imprescindível recorrer a escrita para registrar os aspectos do conteúdo
tratado que se consideram mais relevantes em função do objetivo proposto, para tomar depois as anotações
realizadas como ponto de partida ao reelaborar y reorganizar a informação recolhida e ao confrontá-la com
informações obtidas em outras fontes. Por outro lado, quando os leitores se esforçam por compreender um texto
que lhes coloca alguma dificuldade, necessitam intercambiar idéias, confrontar interpretações, argumentar para
convencer o outro do que está certo ou errado de tal ou qual interpretação... necessitam coordenar pontos de
vista com os outros e isto implica por em ação comportamentos do falante e do ouvinte.

4.1 Operar com diversas fontes de informação

Ler para estudar

Quando o docente começa a solicitar a seus alunos “que estudem” um tema determinado, eles
provavelmente se perguntam o que é que se está pedindo, o que esperam que façam. Para responder apelam às
estratégias conhecidas em outra situações de leitura – dar um folheada rápida, olhar as ilustrações do texto (se
houver), realizar uma leitura global ou então, caso se encontrem desorientados, recorrem a seus familiares em
busca de ajuda. Nesta última situação, as respostas que obtém são diversas segundo a experiência acadêmica
dos pais e segundo as possibilidades destes de acompanhar seus filhos na tarefa. Se a escola imagina que os
alunos devem saber estudar e se limita a avaliar como o fazem, cria, portanto, condições desiguais entre eles.
Portanto, ensinar a estudar é uma responsabilidade indelegável da escola.
Ao estudar, se tenta reter informações para poder evocá-las depois de forma pertinente, diante das
perguntas ou situações que se colocam. Para conseguí-lo, é necessário fazer um esforço de re-elaboração e
reorganização maior do que o necessário quando se lê em função de outros propósitos. Além disso, estudar
supõe ler colocando-se também no ponto de vista do professor: a determinação da importância de cada idéia
depende da importância que se supõe que o professor atribua a cada questão.
Às vezes, o interesse por satisfazer a suposta demanda do docente é tão predominante que o aluno
renuncia a entender: para não correr o risco de enganar-se, prefere memorizar e repetir literalmente. Repassa
então muitas vezes o material e tenta produzir regras mnemotécnicas,“truques” para recordar melhor. O que é
“estudado” deste modo se esquece rapidamente: como não foi realmente compreendido, como o aluno não pôde
relacioná-lo com seus conhecimentos prévios, tampouco poderá reutilizá-lo ao empreender novas
aprendizagens. Ensinar a estudar compreensivelmente é então um desafio que a escola – e o segundo ciclo em
particular – devem enfrentar.

1
Louise M. Rosenblatt. “La teoria transaccional de la lectura y la escritura.” En Textos en contexto l. Los processos de lectura y
escrita. Buenos Aires. Asociación Internacional de Lectura – Lectura y Vida, 1996.
As condições prévias que sustentam o êxito das situações didáticas nas quais os alunos devem ler para
estudar consistem em dispor de textos variados, ter lido textos informativos do mesmo gênero com outros
propósitos (quando não se tratava de estudar), conhecer e saber manejar os índices que oferecem estes textos
(títulos, subtítulos, índices, etc), ter tido informação sobre o tema do texto por outras vias: a partir de textos
mais acessíveis, de explicações da professora... Para ler (e mais ainda, para estudar a partir de um texto) é
imprescindível dispor de conhecimentos prévios que possam utilizar como ponto de partida da compreensão.
As situações didáticas que se proporão ao largo do ciclo oferecerão aos alunos oportunidades de ler em
classe, e com a orientação do professor, os textos que estão estudando, de relacionar a informação nova com
conhecimentos que já tenham adquirido, de resolver cooperativamente as dificuldades de compreensão que
podem aparecer, de discutir sobre quais são os aspectos mais relevantes para aprofundar no conteúdo sobre o
qual se está trabalhando, de reorganizar a informação recolhida em diferentes procedimentos para recordar o
que vão aprendendo... Deste modo, os alunos irão adquirindo uma autonomia crescente como estudantes.
Quando se lê para estudar, a leitura adquire uma modalidade peculiar: se torna mais lenta, mais
profunda, o leitor se auto-interroga sobre o que vai lendo, e costuma fazer uso de procedimentos adicionais
como tomar notas, sublinhar, elaborar esquemas, anotar dúvidas, reler este texto ou buscar outro que ajude a
compreendê-lo. Em determinadas ocasiões esses procedimentos constituem um passo prévio à confecção de um
resumo. Para apropriar-se desta modalidade de leitura, os alunos necessitam participar em múltiplas situações
que lhes permitam exercer os seguintes comportamentos do leitor:

● Buscar informação a partir de uma pergunta que se formulou sobre o tema.

Selecionar as obras pertinentes ao tema que se deseja estudar consultando os arquivos da biblioteca e
especificando os pedidos de orientação aos bibliotecários.

● Localizar a informação nas obras selecionadas, consultando o índice.

Esta localização pode oferecer dificuldades aos alunos já que as informações que se buscam nem sempre
aparecem no índice com a denominação esperada. Por exemplo, se buscam em uma enciclopédia de animais
informação sobre cangurus, é possível que encontrem um índice “Os marsupiais” e que suponham – a princípio
– que a informação procurada não se encontra nesta obra. Será necessário então, ajudá-los a estabelecer as
relações pertinentes.
● Explorar rapidamente a obra para determinar sua utilidade e ir familiarizando-se mais com o
tema ou buscando respostas para uma pergunta.
● Ler cuidadosamente o texto escolhido para fazer antecipações e as verificando a partir de índices
previstos pelo texto como os conectivos, os sinais de pontuação e outras marcas lingüísticas que
apóiam a elaboração do sentido.

Por exemplo, quando os alunos encontram reiteradamente em diferentes textos uma expressão típica dos textos
expositivos, como “Em segundo lugar nos referimos a ...”, aprendem pouco a pouco a reconhecê-la como um
indício de que existe uma relação entre o parágrafo que ela encabeça e algum parágrafo precedente que iniciava
uma enumeração e tentam recuperar a relação, relendo o texto para compreender melhor o que se segue.

● Controlar a própria compreensão distinguindo o que se entende do que não se entende e


detectando incongruências. Reler os fragmentos que geram dúvidas ou nos quais o leitor crê
descobrir uma contradição.

As situações de leitura em pares ou grupos e a confrontação da informação entre os companheiros favorecem


este controle.

● Diante de uma dificuldade, avançar no texto buscando elementos que permitam compreender
melhor ou voltar atrás quando se perdeu uma informação relevante.
● Resolver dúvidas sobre o significado de uma palavra ou expressão formulando hipóteses
baseadas no contexto, estabelecendo relações lexicais com palavras conhecidas, procurando no
dicionário e escolhendo o significado mais consistente com o sentido do texto.
● Anotar para entender melhor, para reter informações importantes ou para poder voltar a localizar
uma informação.
● Assinalar o que se considera relevante por meio de marcas ou sublinhado.
● Discutir, quando há discrepâncias entre o que diferentes alunos consideraram como relevante no
texto que estão lendo e explicar as razões da seleção, confrontá-la com a dos colegas e revisá-la a
luz desta confrontação.

Situação de referência

Em Língua, Documento de Trabalho nº 4

“Ler textos difíceis”, p.65

Ver anexo 1 a.

Entrevistar

Em determinadas ocasiões os alunos entrevistam um especialista para perguntar-lhe sobre aspectos de


uma tema que necessitam compreender melhor ou sobre o qual não encontram informação nas fontes
bibliográficas. Quando o especialista não pode vir a escola ou quando resulta valioso obter dados de múltiplos
informantes, os alunos poderão realizar as entrevistas por telefone ou por correio eletrônico (assim como ocorre
freqüentemente na prática social). Podem organizar-se entrevistas entre alunos que leram materiais diferentes
ou tenham vivido diferentes experiências que podem enriquecer os conhecimentos de todos (por exemplo,
quando um aluno teve oportunidade de viajar a alguma região do país que estão estudando).
Ter oportunidade, ao longo do ciclo, de entrevistar diferentes pessoas em relação a diversos assuntos
permitirá aos alunos apropriar-se progressivamente dos seguintes comportamentos:

● Buscar e sistematizar a informação que se encontra nos textos tendo presente o propósito da
entrevista (obter maiores informações sobre o tema que se está estudando ou de um ponto de
vista específico sobre o mesmo).
● Reorganizar a informação obtida para delimitar sobre o que se vai perguntar.
● Selecionar quem se entrevistará em função do propósito.
● Escrever o questionário-guia selecionando as perguntas que permitam obter a informação que
não se encontrou nos textos.

A elaboração do questionário requer que se dedique um tempo para planejá-lo e revisá-lo cuidadosamente para
que se certifique que tenham sido incluídas todas as perguntas que se deseja formular, que a ordem seja
adequada e que o conteúdo seja pertinente.

● Focalizar as perguntas – durante a entrevista – em função do que se considera mais pertinente,


evitando digressões.
● Escutar atentamente as respostas do entrevistado, para advertir ambigüidades ou contradições
que requeiram esclarecimento.

A assimetria em relação ao entrevistado (quando se trata de um adulto especialista) e a tendência inicial dos
alunos de prestar atenção a cada resposta isoladamente tornam complexo esta aprendizagem, que se vai
conseguindo ao ler entrevistas e ao revisar a transcrição das mesmas e considerar o que se poderia ter
perguntado frente as respostas pouco coerentes ou confusas.

● Comparar com o entrevistado a validade da informação encontrada nos livros ou das


interpretações realizadas a partir delas.

Situação de referência

Em Língua. Documento de trabalho nº 5, Tomar a palavra, escutar e se fazer


escutar.
“A entrevista” p.44 até 52
Ver anexo 2

Escutar relatos

No curso de alguns projetos, resulta importante obter informação através de relatos de protagonistas,
testemunhas ou especialistas nas questões que estão estudando: um vizinho antigo do bairro, o membro de uma
comunidade indígena, uma pessoa que desempenha uma atividade nova ou pouco conhecida, um habitante de
uma região distante do país, um investigador, o ex diretor de uma escola... Histórias de vida, relatos de viagem,
casos curiosos, crônicas da luta de uma comunidade de bairro ou de um descobrimento científico se fazem
assim presentes na aula.

● Escutar atentamente os relatos para tratar de lembrá-los globalmente.

Este comportamento implica reconstruir o fio condutor do relato apesar das eventuais digressões do relator.
Para fazê-lo, é necessário ter presente qual e o propósito que guia a escuta. Por exemplo, se os alunos estão
escutando o relato da ex diretora da escola com o objetivo de escrever sua biografia, deverão prestar atenção a
aspectos diferentes dos que se considerariam se estivessem preparando uma história do estabelecimento para
seu centenário ou a história do bairro.

● Prestar atenção aos detalhes significativos da narrativa, pedindo ao narrador que repita algum
fragmento se necessário.
● Assegurar-se de que se compreendeu bem, formulando perguntas ao narrador.
● Tomar notas de algumas passagens chave para poder reconstruir a totalidade do relato.
● Controlar que, quando se compreende o sentido global do relato, se resgatam detalhes relevantes
para o que se está investigando.
● Começar a encontrar pistas para determinar a veracidade do relato. Reconhecer elementos reais e
fantasiosos.
● Confrontar os conhecimentos prévios que se tinha sobre o tema com a informação que se
desprende do relato e formular perguntas ao relator caso se observem incongruências.

Situação de referência

Em Língua. Documento de trabalho nº 5, Tomar a palavra, escutar e se fazer


escutar.

“Narrativa de histórias tradicionais”, p.38 até 41

Esta situação didática, concebida para relatos de ficção, pode se adaptar a escuta
de relatos como forma de obter informação.

Ver anexo 3.
Escutar um exposição ou uma entrevista tratando de registrar a informação mais relevante para o
propósito.

Ao escutar exposições ou entrevistas, seja diretamente ou através de outros meios, os alunos aprendem
progressivamente a selecionar a informação que responde às inquietudes surgidas em relação ao tema, a pensar
enquanto vão escutando as questões que ficam sem resposta e a postergar sua formulação até o momento
reservado para as perguntas do público. Põem em jogo, assim, os seguintes comportamentos:

● Fazer perguntas sobre o tema, pedir aclarações, aportar exemplos.


● Formular novas questões enquanto vai escutando.

Assim como o leitor formula hipóteses enquanto lê, o ouvinte faz antecipações sobre o que o expositor ou o
entrevistado dirão mais adiante. Para que estas antecipações sejam mais ou menos ajustadas, é imprescindível
que os alunos já possuam alguns conhecimentos prévios sobre o tema ou que este se vincule com outros que já
tenham sido abordados. Por outro lado, a informação abordada pelo expositor – ou entrevistado – pode gerar
nos ouvintes questões que não tinham sido previstas quando o convidaram e será preciso decidir se é ou não
oportuno formulá-las (e em que momento fazê-lo).

● Tomar notas sobre o que não se entende ou sobre o que interessa.


● Estabelecer relações entre diferentes aspectos da exposição, elaborando conclusões provisórias e
ajustando-as a medida que a exposição avança e se contrastando com a informação nova que o
expositor vai incluindo.
● Tomar posições frente ao que se escuta.

Os alunos podem ir comparando o que escutam com os conhecimentos elaborados a partir de outras fontes
confiáveis. Vão aprendendo a escutar criticamente quando tem reiteradas oportunidades de discutir em classe
sobre o que escutaram.

● Informar aos outros sobre o que se escutou expor.

Em alguns casos, os alunos tem oportunidade de informar a companheiros de outras idades sobre o conteúdo da
exposição ou a entrevista a que assistiram. Em outros casos, realizam uma visita (a Legislatura, a um museu, a
uma exposição, um aquário, uma reserva natural) e se distribuem em grupos, cada um dos quais recebe outras
explicações. Ao voltar à classe terão oportunidade de intercambiar a informação recolhida.

Você também pode gostar