Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Coordenação Geral
Yukari Miyata
Subcoordenação Geral
Marcelo Carvalho Ferreira
Coordenação Didático-Pedagógica
Rita Rosa Nobre Mizerani
Conteudista:
Amanda Machado Celestino
Diego Fabiano Alves
Isabella Franca Oliveira
Lydiane Maria Azevedo
Revisão e Edição:
Divisão Psicopedagógica - Academia de Polícia Civil de Minas Gerais
Reprodução Proibida
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 4
2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER .................................................. 6
2.1 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER EM NÚMEROS .............. 11
2.2 A PROTEÇÃO ESPECIALIZADA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA:
LEI Nº 11.340/2006 – LEI MARIA DA PENHA ........................................................ 15
2.3 A ESPECIALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO POLICIAL ................................... 22
2.4 A ATUAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL NOS TERMOS DA LEI Nº 11.340/2006 ...... 25
3 ATENDIMENTO E INVESTIGAÇÃO POLICIAL COM PERSPECTIVA DE
GÊNERO ................................................................................................................... 35
3.1 DIRETRIZES PARA A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DE FEMINICÍDIO COM
PERSPECTIVA DE GÊNERO ................................................................................. 47
3.2 EMPREGO DE TÉCNICAS DE COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA E SOFT
SKILLS PARA O PROFISSIONAL DA SEGURANÇA PÚBLICA ............................. 49
4 VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO LGBTQIA ............................................. 57
4.1 GÊNERO ....................................................................................................... 60
4.2 ORIENTAÇÃO SEXUAL ................................................................................ 64
4.3 VULNERABILIDADE DA POPULAÇÃO LGBTQIA+ ...................................... 66
4.4 AMPARO NORMATIVO PARA PROTEÇÃO DE VIOLÊNCIAS PAUTADAS NA
DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO E DA ORIENTAÇÃO
SEXUAL.................................................................................................................. 74
4.5 CRIMINALIZAÇÃO DA LGBTFOBIA .............................................................. 76
4.6 ESTUPRO CORRETIVO ............................................................................... 79
4.7 LEI MARIA DA PENHA .................................................................................. 80
4.8 NOME SOCIAL .............................................................................................. 81
4.9 RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL ........................................................... 83
5 ATENDIMENTO E INVESTIGAÇÃO POLICIAL COM PERSPECTIVA DE
GÊNERO ................................................................................................................... 86
5.1 BUSCA PESSOAL ......................................................................................... 88
5.2 USO DE CELAS ............................................................................................ 90
5.3 USO DO BANHEIRO ..................................................................................... 91
6 ASPECTOS PRÁTICOS DO ATENDIMENTO POLICIAL DE MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR .......................................... 94
7 CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS EM ATENDIMENTO À
MULHER DA POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS .................................................. 99
8 ASPECTOS PRÁTICOS DO ATENDIMENTO POLICIAL DE PESSOAS
LGBTQIA+ .............................................................................................................. 101
9 CONCLUSÃO .................................................................................................... 105
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 107
1 INTRODUÇÃO
A partir do final do século XX, o conceito de gênero passou a ser tratado como
uma categoria de análise, por meio da qual partem as discussões sobre as
desigualdades inerentes às relações sociais e sexuais. É a partir do gênero que se
estabelecem as noções naturalizadas do que é masculino e do que é feminino, mas
também é por meio deste conceito que se torna possível desconstruir e desnaturalizar
estes papeis fixos e preestabelecidos. Neste sentido, entende-se que gênero é
conceito dinâmico, que se move para além do binarismo masculino-feminino
naturalizado, exatamente como forma de questionar o padrão hegemônico do que se
entende como natural ou normal.
Neste sentido, podemos compreender gênero como o sexo socialmente
construído, de tal modo que o sexo biológico não se confunde com o gênero, conceito
este atrelado às relações sociais. Assim, o gênero é desenvolvido a partir das relações
sociais, ligado à performance, e é categoria que dá significado às relações de poder.
A constituição social do gênero tem como base a delimitação de espaços, com
diferenciação entre o que é público e o que é privado, a divisão de papeis,
estabelecida em razão do sexo, e estereótipos, os quais funcionam como marcadores
de diferenças do que é ser homem e do que é ser mulher.
Considerando que as desigualdades geradoras de violência têm base no
gênero, a especialização do atendimento policial passou a ser uma necessidade
precípua. Com isto, as atividades de Polícia Judiciária foram ampliadas, sobretudo,
para o acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em razão do gênero.
Neste cenário, é imperativo superar as limitações no atendimento ao público que a
ausência de percepção de gênero acarreta no dia a dia policial.
A partir deste esboço teórico, este curso tem a finalidade de qualificar policiais
civis e servidores administrativos da Polícia Civil de Minas Gerais para o atendimento
e para a investigação policial com a perspectiva ampla de gênero, abrangendo as
mulheres em situação de violência doméstica e as violências pautadas na orientação
sexual e na identidade de gênero.
Para atingir este objetivo, iniciaremos com a apresentação do conceito analítico
de gênero e sua aplicação na prática policial especializada no atendimento à mulher
em situação de violência. Em seguida, realizaremos um estudo sobre a violência em
razão da orientação sexual e da identidade de gênero. Ao longo do curso, serão
4
realizadas demonstrações práticas sobre o atendimento policial e investigação
criminal adequados, a fim de permitir a compreensão sobre as especificidades que
envolvem o gênero na atuação policial.
5
2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER
1A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi adotada
em Belém do Pará, no Brasil, em 9 de junho de 1994, pela Organização dos Estados Americanos, motivo
pelo qual é conhecida como Convenção de Belém do Pará.
7
A virilidade é um atributo masculino que exige demonstração pública de força e
de honra, segundo essa concepção tradicional dos papeis de gênero e de formação
de masculinidades. Nesse estado de coisas, a ordem social é forjada como uma
“imensa máquina simbólica”, que legitima a dominação masculina (BOURDIEU, 2020,
p. 24). Essa força, que pode ser simbólica ou real termina por atingir os corpos
femininos. No habitus masculino, a virilidade é algo que deve ser demonstrado e
validado pela comunidade, o que acaba por confinar os homens em um espaço de
carga e de vulnerabilidade. O medo de demonstração de fraqueza ou de ser
ridicularizado em sua honra perante a sociedade resulta na adoção de mecanismos
violentos de poder.
Sobre essa construção social e cultural do masculino, recomendamos o
documentário O Silêncio dos Homens. O material foi produzido pelo Papo de Homem
(https://papodehomem.com.br/), fruto de um projeto que ouviu mais de 40 mil pessoas
em questões a respeito das masculinidades, em parceira com o Consórcio de
Informações Sociais (CIS) da USP. Assista!
Figura 2
Figura 3
Figura 4
11
Em termos técnicos, a Lei Maria da Penha é reconhecida pela Organização das
Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor lei do mundo na questão da violência
doméstica e familiar, atrás apenas da legislação chilena e espanhola. Apesar disso, o
Brasil continua apresentando números alarmantes de violência contra a mulher, sendo
considerado o 5° país no ranking de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). As estatísticas sobre violência
doméstica e familiar nos mostram o quanto ainda é necessário trabalhar para garantir
a igualdade de direitos entre homens e mulheres por meio do enfrentamento da
violência de gênero.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, edição 2020,
divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 1.341 mulheres foram
vítimas de feminicídio em 2021, com predomínio de mortes no âmbito das relações
íntimas de afeto, já que em 81,7% dos casos o feminicídio foi praticado pelo
companheiro ou ex-companheiro. Estes dados revelam a maior vulnerabilidade das
mulheres nas relações íntimas de afeto, já que os parceiros íntimos são os autores
mais comuns crimes contra a mulher.
Figura 5
Por sua vez, os dados coletados pelo FBSP na 4ª edição do relatório Visível
Invisível, uma pesquisa de vitimização de mulheres, estima-se que, nos últimos doze
meses, 18,6 milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica no Brasil.
12
Figura 6
Figura 7
Figura 9
2 Em agosto de 2022, após o precedente fixado pelo STJ, a Polícia Civil de Minas Gerais publicou a
Resolução 8.225 para, alterando resolução anterior, estabelecer que mulheres transexuais e travestis,
vítimas de violência doméstica ou familiar baseada no gênero, fossem atendidas em delegacia
especializada, independentemente de mudança do nome no registro civil ou da realização de cirurgia
de redesignação sexual. Entre os anos de 2020 e 2022, a Polícia Civil de Minas contabilizou o
atendimento de 224 mulheres transexuais vítimas de violência doméstica.
16
especificação precisa do que se considera cada um desses espaços de relação
interpessoal:
18
Figura 10
Fonte: Netflix.
19
fortalecê-las ou fragilizá-las em sua decisão de iniciar e continuar uma busca
por ajuda e soluções.
Destaca-se que a rota crítica não é um processo linear, tendo em vista a sua
complexidade, sujeito a avanços e retrocessos. Ademais, não há que se falar em rota
crítica una, mas várias rotas críticas ao longo da história da mulher que decide romper
o padrão de violência vivenciado. O desencadeamento da rota crítica implica, em
muitas situações, o incremento do risco para a mulher, o que deve ser explorado no
momento da avaliação do risco, durante o preenchimento do Formulário Nacional de
Avaliação de Risco.
21
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.
22
A criação de unidades policiais especializadas no atendimento à mulher foi o
marco da institucionalização do enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil e
publicização da resolução dos conflitos domésticos, antes tidos como de solução
privada (ANDRADE; MATOS, 2017). A criação das Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMs) aconteceu no final da década de 1980, muito antes
da edição de uma lei específica para proteção da mulher, que surgiu somente em
2006. É, portanto, um dispositivo de política pública (FRUGOLI et al., 2019) e um
instrumento de controle social formal (RIFIOTIS, 2004), que executa atividades de
acolhimento e de polícia judiciária, responsável pela promoção de direitos e da
cidadania das mulheres.
A especialização do atendimento à mulher em unidades policiais próprias
(DEAMs) ou em delegacias territoriais implica na construção de um aparato policial
específico, que considera o marcador de gênero. Dessa forma, garante-se a
facilitação da denúncia por parte das vítimas e a compreensão de seu relato de acordo
com o contexto e as particularidades deste tipo de violência. A atuação especializada
dos policiais em termos de gênero representa um ganho político para a cidadania da
mulher (BANDEIRA, 2014).
Quando a mulher em situação de violência procura uma unidade policial, ela
deseja colocar um limite na violência, mas não necessariamente um fim na relação.
Alguns fatores são apontados pela literatura como obstáculos ao registro da denúncia,
tais como: dependência emocional, dependência econômica, medo de sofrer nova
agressão, de ser humilhada, de não ser ouvida ou de ser mal atendida, receio de ser
exposta, vergonha, julgamento da família e da sociedade, não reconhecimento da
condição de vítima, não acolhimento de seu discurso, perda de status social. Por outro
lado, não é demais lembrar que quando a mulher resolve procurar auxílio policial pode
já existir uma vivência crônica de violência (RIFIOTIS, 2004).
Há também o fato de que as mulheres decidem agir ativamente contra a
violência sofrida quando os atos de agressão estendem-se aos filhos. O percentual
de mulheres mães que solicitam atendimento policial é significativo (PIRES, 2022;
LUDUVICE; ZANELLO, 2023). Crianças e adolescentes são, no mínimo, vítimas
indiretas da violência de gênero contra a mulher. É preciso atentar-se para este fator,
tendo em vista a necessidade de adoção de medidas de proteção, tal como inscrito
no Estatuto da Criança e do Adolescente, com investigação específica para apuração
dos atos criminosos quando crianças e adolescentes são vítimas. Considera-se,
23
nestes casos, a doutrina da proteção integral e os princípios do melhor interesse e da
prioridade absoluta.
O atendimento policial especializado parte do princípio de conciliar a
necessidade de acolhimento, escuta ativa, orientação e direcionamento para a rede
de apoio, com a adoção de atividades de polícia judiciária. A atividade policial é
administrativa, consistente na reunião de elementos informativos de autoria,
materialidade, dinâmica, motivação e circunstâncias do fato criminoso. A investigação
criminal nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher deve se revestir
de tecnicidade, visando à reunião de informações que viabilizem, no futuro, a
responsabilização criminal do autor por meio de uma condenação criminal.
A narrativa da vítima possui especial importância, considerando que alguns
atos criminosos são sutis e não deixam vestígios, sendo a mulher em situação de
violência a principal fonte de obtenção de informações para a investigação. Existe um
ônus probatório para a mulher que sofre violência de gênero, na medida em que a
prova de determinados fatos, em certas circunstâncias, é de difícil comprovação,
especialmente diante da escolha de se empregar violência sem deixar evidências,
concluindo que o sistema criminaliza somente os excessos (SAFFIOTI, 2001).
A lógica introduzida pela Lei Maria da Penha é de subversão da “hermenêutica
da suspeita”, ou seja, a palavra da vítima ganha especial relevância, afastando-se
quaisquer dúvidas sobre sua moralidade, condição de vítima ou credibilidade de seu
relato.
O discurso da vítima, diferentemente da linguagem policial, que geralmente é
objetiva, é tomado por emoções e sentimentos (RIFIOTIS, 2004). Nas hipóteses de
violência crônica, esse discurso, inclusive, pode não ser linear, considerando a
confusão de fatos e datas ao longo do tempo. Tal circunstância não deve gerar
descrédito na exposição dos fatos pela vítima, sendo adequado que o policial ofereça
a segurança e a tranquilidade necessárias para que a vítima consiga articular sua fala.
Se necessário, verifique junto ao Portal do Sistema Integrado de Defesa Social
(SIDS/REDS) outras ocorrências entre os envolvidos para traçar a linha do tempo de
fatos já noticiados3.
3 Para obter a linha temporal dos fatos, adicione o nome dos envolvidos entre aspas no campo
“Parâmetros de pesquisa”, no menu “Consultas” → “Registros Históricos” e altere, no campo
“Ordenação”, selecionando no tópico “Nome do campo a ser ordenado” o critério “Data do fato” e, no
tópico “Sentido da ordem”, a opção “Decrescente”. A consulta de acordo com esses parâmetros
24
Há que se fazer um ajuste, portanto, na linguagem policial para o atendimento
às mulheres em situação de violência, com o escopo de ouvi-las sem julgamento, sem
pressa, considerando, ainda, circunstâncias que atingem a clareza da comunicação,
como idade, deficiência ou profundo abalo emocional.
permitirá encontrar a linha do tempo de REDS envolvendo as partes. É possível, inclusive, gerar um
arquivo em formato “.PDF” ou em “.CSV”.
25
Policiais civis e servidores administrativos que realizem o atendimento à mulher
em situação de violência devem conhecer a rede de proteção à mulher do seu
município: casas abrigo, centros de referência especializados, CREAS, CRAS, CAPS,
CAPSAD, Defensoria Pública, varas criminais com competência para a violência
doméstica ou Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
Promotorias de Justiça especializadas ou não, PMMG, especialmente se houver
Patrulha da Prevenção da Violência Doméstica (PPVD/PMMG) na localidade, Núcleos
de Assistência Judiciária, unidades de saúde. O domínio sobre a rede e a articulação
com seus diversos atores é útil para determinar o encaminhamento mais adequado
ao caso concreto.
Há casos em que a situação é tão grave que a mulher corre risco de morte caso
retorne para casa, razão pela qual necessita de uma medida de proteção imediata,
devendo ser encaminhada a um local seguro e sigiloso. Não havendo instituição de
abrigamento na localidade ou que atenda o município, necessário o acionamento do
Município, geralmente por meio das secretarias de assistência social, para
desenvolvimento de solução para o quadro crítico que demande abrigamento
provisório. É possível que o município forneça local seguro para abrigamento da
ofendida e de seus dependentes, seja por meio do custeio de estadia, fornecimento
de passagem para local seguro, aluguel social, entre outras alternativas, de acordo
com a política pública estabelecida na cidade.
A Lei nº 13.894/2019 alterou o inciso V do art. 11 da Lei Maria da Penha,
especificando que a mulher deve ser informada de seus direitos e sobre os serviços
disponíveis durante o atendimento policial, inclusive os de assistência judiciária para
o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de
divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável. Mais uma vez,
o domínio sobre a rede local e os serviços disponibilizados à mulher em situação de
violência doméstica e familiar revela-se fundamental.
A Lei nº 13.505/2017 alterou a Lei Maria da Penha e instituiu que é direito da
mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial
especializado, ininterrupto e prestado por servidores, preferencialmente do sexo
feminino, e previamente capacitados. Recentemente, a Lei nº 14.541/2023 dispôs sobre
a criação e o funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento
à Mulher. Instituiu a novel lei que, além das funções de atendimento policial
especializado para as mulheres e de polícia judiciária, as DEAMs funcionarão como
ponto focal de assistência psicológica e jurídica à mulher vítima de violência, o que será
26
realizado mediante convênio com a Defensoria Pública, os órgãos do Sistema Único de
Assistência Social e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
A nova legislação destaca o papel central das DEAMs no enfrentamento à
violência contra a mulher. Além disso, indica expressamente que as DEAMs têm como
finalidade o atendimento de todas as mulheres que tenham sido vítimas de violência
doméstica e familiar, crimes contra a dignidade sexual e feminicídios. O atendimento
às mulheres nas delegacias será realizado em sala reservada e, preferencialmente,
por policias do sexo feminino. Neste ponto, reforça-se a necessidade de atendimento
em local adequado, de modo a impedir os atendimentos em recepção ou em locais
que não se dê privacidade ao ato.
Outro ponto de destaque sobre o atendimento é que ele deve ser eficaz e
humanitário. Onde não houver DEAM, a delegacia de abrangência territorial deve
priorizar o atendimento da mulher vítima de violência por policial feminina
especializada. Segundo a lei, os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública
(FNSP)4. destinados aos Estados poderão ser utilizados para a criação de Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher, em conformidade com as normas técnicas
de padronização estabelecidas pelo Poder Executivo5.
Para a execução da lei, necessária a destinação de verba específica para a
implantação do atendimento ininterrupto das DEAMs no Estado de Minas Gerais.
Atualmente, Minas Gerais conta com 69 DEAMs no interior, 4 DEAMs na capital e 1
Delegacia de Plantão Especializada de Atendimento à Mulher, sendo esta com
atendimento ininterrupto, incluindo feriados e finais de semana. A Casa da Mulher
Mineira é unidade policial especializada no atendimento às mulheres em situação de
violência que procuram atendimento por demanda espontânea, em Belo Horizonte.
Além disso, por meio da Delegacia Virtual6 é possível o registro de ocorrências
policiais das infrações penais de ameaça, lesão corporal, vias de fato, bem como o
descumprimento de medida protetiva de urgência. É possível, ainda, a solicitação de
medidas protetivas de urgência e a realização da avaliação de risco por meio do
Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR). Este atendimento é ininterrupto
e pode ser acionado de qualquer lugar, de forma online.
27
Ao receber a ocorrência no PCNET, cujo REDS é assinalado com o código
“DV”, o/a delegado/a de polícia deve adotar de imediato as providências para
estabelecer contato com a ofendida e formalizar o EAMP com pronto envio ao Poder
Judiciário. Sugere-se o contato telefônico com a vítima, a fim de agilizar a formalização
do procedimento policial.
Ressalta-se a importância do atendimento ininterrupto, visto que o atendimento
policial é determinante para o acesso da mulher à rede de proteção e à justiça, já que
a polícia é porta de entrada de grande parte dos casos de violência doméstica. As
delegacias de polícia devem estar preparadas para receber qualquer ocorrência de
violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive 24h por dia no caso das
delegacias de plantão, seja em razão de condução em flagrante delito, seja em virtude
da demanda espontânea da vítima para solicitação do REDS, solicitação de medidas
protetivas por meio do EAMP e encaminhamento para atendimento da rede de apoio
e para os exames periciais necessários.
Sugere-se a priorização na ordem do atendimento dessas vítimas, colocando-as
juntamente com as preferências legais (criança, adolescente, idoso, pessoa com
deficiência, gestante etc.). Ressalta-se que há prioridade legal no atendimento de
mulheres em situação de violência por policiais femininas com treinamento especializado.
Nas equipes de plantão não especializado os policiais devem estar preparados
para o atendimento dessas demandas específicas, com aptidão para elaborar as
peças policiais específicas, orientar as vítimas sobre a rede de apoio local, inclusive
com telefones e endereços, bem como reduzir a termo as declarações da ofendida
com todas as informações necessárias à apuração do fato criminoso. Esse primeiro
contato com a vítima é essencial para a correta condução dos trabalhos de prevenção
e repressão da violência.
Tanto no atendimento especializado como nos atendimentos por delegacias de
polícia não especializada, todas as informações necessárias à formalização do EAMP
e à condução do inquérito devem ser repassadas nesse primeiro contato, bem como
devem ser apreendidos os objetos que tenham pertinência com a investigação,
atentando-se para os procedimentos da cadeia de custódia. O primeiro atendimento
bem executado evita a necessidade de novas intimações e reinquirições da ofendida,
o que impede, por consequência, a revitimização.
28
A Lei nº 13.505/2017 trouxe ainda diretrizes para a oitiva da mulher em situação
de violência, que deverá ser humanizada, respeitosa e deverá ocorrer em espaço
adequado, a fim de evitar a revitimização dessa mulher que chega à delegacia de
polícia abalada emocionalmente, devendo ser considerada a sua especial situação de
vulnerabilidade.
A legislação determina que a mulher não deve, em momento algum, ficar na
presença do seu agressor, até porque a violência acabou de ocorrer, os ânimos estão
exaltados e o agressor pode voltar a agredir a mulher mesmo na delegacia de polícia
ou na presença de policiais. Tal providência visa preservar a integridade física e
psicológica da mulher em situação de violência. Vítima e agressor, portanto, não
devem compartilhar o mesmo espaço físico, ser conduzidos na mesma viatura policial
ou usar o mesmo elevador simultaneamente. Deve-se, evitar, ainda, o contato visual
ou auditivo nas dependências da unidade policial, principalmente durante a tomada
das declarações da ofendida, a fim de que a presença do agressor não limite seu
depoimento ou a intimide.
A lei dispõe ainda que o depoimento da mulher deve ser gravado, devendo a
mídia e a degravação integrarem o inquérito. Em relação a esta determinação legal,
há uma grande dificuldade em cumpri-la, visto que a maior parte das unidades policiais
ainda não possui aparato tecnológico para a execução desta atividade. Contudo,
sempre que possível esta providência deve ser adotada considerando os ganhos em
termos de humanização no depoimento, a eliminação de perdas de conteúdo,
sentidos, detalhes, intensidade e emoção no discurso da ofendida.
O PCNET já prevê recurso tecnológico para inserção de oitiva da ofendida
realizada por videoconferência ou para anexar a oitiva realizada na unidade policial e
gravada por vídeo.
Figura 11
Fonte: PCnet.
29
Orienta-se, ainda, que as lesões corporais sejam fotografadas, com autorização
da ofendida e formalização da anuência por escrito, garantindo-se privacidade no ato
e que tal providência seja adotada por uma mulher. As fotografias devem ser
encartadas nos autos, para os quais o/a delegado/a de polícia deve atribuir sigilo, caso
apresente conteúdo íntimo. Para juntada no PCNET, inserir em “Termos Ordinatórios”
/ “Juntada”.
A seguir, a transcrição integral do artigo 10-A, da Lei nº 11.340/2006, incluído
pela Lei nº 13.505/2017:
30
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado
ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas
protetivas de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida
e requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha
de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão
ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VI-A - verificar se o agressor possui registro de porte ou posse de arma
de fogo e, na hipótese de existência, juntar aos autos essa informação,
bem como notificar a ocorrência à instituição responsável pela
concessão do registro ou da emissão do porte, nos termos da Lei nº
10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento);
VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao
Ministério Público.
Fonte: PCnet.
34
3 ATENDIMENTO E INVESTIGAÇÃO POLICIAL COM PERSPECTIVA DE
GÊNERO
36
disparos de arma de fogo, feminicídio. As agressões podem evoluir em intensidade,
frequência ou gravidade. É neste momento que a vítima procura auxílio policial.
Nesta fase, o descontrole do agressor chega ao limite. Toda a tensão
acumulada na primeira fase se materializa em violência verbal, física, psicológica,
patrimonial ou sexual. Tais violências tendem a se intensificar na sua frequência e
escala. A mulher sente-se paralisada e impossibilitada de reação, mesmo tendo
consciência de que o agressor está descontrolado e com poder destrutivo em relação
à sua vida e/ou de terceiros.
A vítima, neste estágio, sofre consequências psicológicas intensas, como, por
exemplo: ansiedade, oscilação de peso, insônia, fadiga, solidão, medo, raiva,
confusão, dor, pena de si mesma, além da vergonha. Tendo em vista o pico das
agressões, é neste momento que a vítima costuma buscar ajuda médica e apoio de
amigos e/ou familiares, além de tomar outras decisões, como a de registrar um boletim
de ocorrência, pedir o divórcio ou, até mesmo, cometer autoextermínio.
Na fase seguinte, a vítima vivencia a experiência de uma lua de mel, ou seja, o
agressor demonstra arrependimento e se compromete a mudar seu comportamento,
oferecendo promessas, presentes e afeto. É o momento em que o agressor manipula
emocionalmente a vítima e ela acredita em seu potencial de mudança (BRASIL, 2016).
Esta fase se caracteriza pelo arrependimento do agressor. Com o intuito de se redimir
das violências e de conseguir a reconciliação, o agressor torna-se amável.
Neste ponto, o agressor envolve a vítima com carinho e atenção, desculpando-
se pelas agressões, prometendo mudanças e não repetição de práticas violentas. É
um período de relativa calma. A mulher se sente feliz ao constatar os esforços,
mudanças de atitude, além de recordar os momentos agradáveis que vivenciaram.
Com os sentimentos de remorso demonstrado pelo agressor, a vítima se sente
responsável por ele, estreitando, assim, a relação de dependência entre os
envolvidos. Neste estágio, uma sensação mista de medo, confusão, culpa e ilusão
invadem os sentimentos da mulher.
Contudo, o ciclo de violência doméstica contra a mulher se renova, gerando a
recorrência dos atos violentos (LUCENA et al., 2016). Compreende-se o momento
mais perverso do ciclo, ao retornar à repetição sucessiva das retromencionadas fases,
continuamente, ao longo de meses ou anos, culminando, em situações limites, em até
um eventual feminicídio.
De acordo com Lucena et al. (2016, p. 6):
37
O ciclo da violência inicia-se de uma forma lenta e silenciosa, que progride
em intensidade e consequências. O agressor muitas vezes não lança mão
inicialmente de agressões físicas, mas coíbe a liberdade individual da vítima
e fomenta humilhações e constrangimento.
42
9. Proteger sua intimidade, garantindo a confidencialidade das atuações.
10. Oferecer tratamento humanizado, evitando a revitimização.
11. Reconhecer o direito a se opor à realização de inspeções sobre o seu
corpo quando não houver ordem judicial. E nos casos em que seja manifesto
o seu acordo, têm direito a
serem acompanhadas por pessoas da sua confiança. Nas provas periciais
tentar-se-á sua realização por profissional especializada/o e formada/o com
perspectiva de gênero.
7 Disponível em https://www.mprj.mp.br/documents/20184/227964/dir_nac_invest_crim.pdf.
43
necessário estabelecer um vínculo de confiança e demonstrar que estão em local de
segurança e de acolhimento.
No caso de mulheres em situação de vulnerabilidade social ou econômica,
necessário extrair tais informações e verificar qual serviço da rede de apoio deve ser
acionado para prestar os atendimentos de ordem psicossocial. Verificar, inclusive, se
é o caso de abrigamento provisório, adotando-se as medidas necessárias à acolhida
em termos de moradia transitória.
Tratando-se de mulheres em situação de rua, acionar os equipamentos
municipais para acolhida e assistência. Nestes casos, colher o maior número de
informações sobre os fatos, sobre suas relações de parentesco e qualificação, bem
como sobre o local onde pode ser encontrada, evitando, assim, a perda de referências
sobre a localização dessas mulheres.
Neste ponto, é importante que o policial tenha compreensão de que as
mulheres em situação de rua estão em situação crítica de vulnerabilidade, tanto nas
questões afetas ao gênero, como de ordem socioeconômica. São mulheres que
podem estar implicadas na dependência química e/ou em sofrimento mental. A
eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação é medida essencial.
Tais mulheres estão em situação de maior risco, inclusive de feminicídio.
Na hipótese de mulheres em situação de violência com orientação sexual
homoafetiva ou bissexual, inserir tal informação nos autos. Como sabido, a Lei Maria
da Penha aplica-se independentemente da orientação sexual da mulher (artigo 5º,
parágrafo único, Lei nº 11.340/2006).
Nos casos de atendimento de mulheres transexuais, travestis e transgêneros,
informar tal circunstância nos autos, perguntando sempre a forma como preferem ser
chamadas e indicando nos autos seu nome social. A aplicação da Lei Maria da Penha
se dará independentemente de alteração do registro civil, realização de cirurgia de
redesignação sexual, tratamento hormonal ou de exteriorização de características
femininas. Aqui, o que determina a aplicação da lei, é a autodeclaração.
Nestas duas últimas situações, são inadmissíveis gracejos, críticas ou
menosprezo à mulher em situação de violência em virtude de sua orientação sexual
ou identidade de gênero ou ao seu agressor.
Em se tratando de vítimas com deficiência, realizar o atendimento em
conformidade com o impedimento de longo prazo que possuam (físico, mental,
intelectual ou sensorial), com clareza, pausas necessárias, tempo de duração
44
adequado, linguagem, bem como por meio de aplicativos ou canais que facilitem o
atendimento. Para mulheres com deficiência auditiva (surdas/mudas), sugere-se os
aplicativos: ProDeaf Móvel, o Hand Talk, Uni LIBRAS ou a Central de Interpretação de
Libras (CIL/BH), pelo telefone (31) 3270-3625 ou via Whatsapp (31) 98217-5358. Os
aplicativos acionam intérpretes para intermediação do atendimento por chamada de
vídeo.
O atendimento não inclusivo de pessoas com deficiência pode acarretar em ato
de discriminação em razão da deficiência. Desse modo, todo comportamento
negligente, discriminatório, opressor, desumano ou degradante deve ser evitado. O
mesmo se aplica para discriminações de ordem racial, religiosa, de orientação sexual,
etária (mulheres idosas, crianças ou adolescentes), imigrantes.
Em todo caso, na hipótese de a mulher desejar estar acompanhada por pessoa
de sua confiança, permitir sua participação durante o atendimento para que a vítima
se sinta mais segura. Orientar que o/a acompanhante não pode intervir na fala da
vítima, conduzindo suas declarações, com gentileza e educação.
Importante ressaltar que a violência institucional é tipificada na nova lei de
abuso de autoridade, Lei nº 13.869/2019, vejamos:
45
▪ Desvalorizar a gravidade dos fatos narrados, estimulando a vítima a não
registrar a ocorrência ou oferecer representação criminal;
▪ Questionar a veracidade dos fatos, colocando dúvida sobre a ocorrência
do fato criminoso, o que acontece principalmente nos crimes sexuais;
▪ Lançar questionamento sobre o interesse financeiro, emocional ou social
da vítima com o registro da ocorrência;
▪ Alegar uso abusivo da lei, dar credibilidade à versão do agressor e
desprezar a narrativa da ofendida;
▪ Culpabilizar a mulher pela violência sofrida, recriminá-la moralmente pela
continuidade da relação, apesar das agressões, questionar o por quê de
ela não ter adotado nenhuma providência antes e só agora resolveu
procurar a polícia;
▪ Praticar racismo institucional, discriminando grupos étnicos, raciais, por cor
ou procedência nacional;
▪ Expor a situação de violência perante terceiros, no ambiente da unidade
policial, falando alto ou realizando atendimento em local não privativo,
como recepções e salas de espera. Recomenda-se que a mulher em
situação de violência seja chamada pelo nome no interior da unidade
policial ou pelo termo “solicitante”;
▪ Realizar julgamento sobre a conduta da mulher, suas decisões, reações
diante da violência, seus hábitos, suas crenças, sua profissão, sua forma
de vestir ou de se expressar;
▪ Minimizar a violência sofrida pela mulher, comparando-a com outros casos;
▪ Dizer o que a vítima deveria ter feito na situação de violência,
menosprezando o poder de decisão da mulher e colocando-a em maior
situação de vulnerabilidade;
▪ Fazer piadas ou gracejos durante o atendimento da mulher, solicitar seu
número telefônico ou rede social para fins pessoais. Os demais servidores
que não estejam executando o atendimento devem se atentar para deixar
o ambiente agradável e propício ao atendimento, evitando falas altas e
algazarras.
▪ Aplicar o Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) como se
fosse um interrogatório policial. A entrevista com a ofendida deve ocorrer
em ambiente de cordialidade, de forma pausada, explicando que se trata
de procedimento que visa conscientizá-la sobre o nível de risco, motivo
pelo qual importante a realização daquelas perguntas.
47
As Diretrizes Nacionais visam colaborar para o aprimoramento da
investigação policial, do processo judicial e do julgamento das mortes
violentas de mulheres de modo a evidenciar as razões de gênero como
causas dessas mortes. O objetivo é reconhecer que, em contextos e
circunstâncias particulares, as desigualdades de poder estruturantes das
relações de gênero contribuem para aumentar a vulnerabilidade e o risco que
resultam nessas mortes e, a partir disso, aprimorar a resposta do Estado, em
conformidade com as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo
governo brasileiro.
48
3.2 EMPREGO DE TÉCNICAS DE COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA E SOFT
SKILLS PARA O PROFISSIONAL DA SEGURANÇA PÚBLICA
1. Comunicação
2. Liderança
3. Flexibilidade e resiliência
4. Trabalho em equipe
5. Criatividade
6. Proatividade
7. Empatia
8. Ética no trabalho
9. Pensamento crítico
10. Atitude positiva Fonte: Blog Feedz.
8 Para obter o arquivo completo da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica (2011),
acesse: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/hp/acervo/outras-
referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-
as-mulheres.
51
de entrada das mulheres na rede de serviços, mas também pelo seu papel de
prevenção e de repressão à violência contra as mulheres.
Atentamos ao fato de que as orientações do atendimento com base nestes
princípios deverão nortear toda a atividade da Polícia Civil, dos servidores da
segurança pública atuantes em unidades especializadas ou não.
Tendo em mente essas novas diretrizes e desafios, as ações de prevenção,
registro de ocorrência, formalização do EAMP e investigação devem ser feitas por
meio de acolhimento. Essa postura exige a adoção de comunicação não violenta e
escuta ativa, profissional e observadora, de forma a propiciar o rompimento do
silêncio, do isolamento destas mulheres e, em especial, dos atos de violência, aos
quais estão submetidas.
Por estar imerso em uma cultura machista, nenhum homem, mulher ou agente
público está livre de pensar ou agir de forma preconceituosa, pois a ação individual
em relação ao outro é intencionalmente orientada ao que o indivíduo pensa em relação
ao outro e ao que ele representa coletivamente.
O pensamento contempla uma diversidade de saberes, crenças, valores e
virtudes que nos guiam na direção do certo/errado, do permitido/proibido e do
bem/mal. Logo, o primeiro passo para um atendimento não-revitimizador é o
reconhecimento de que determinadas crenças não são suficientes ou mesmo
apropriadas para respeitar a condição singular de cada mulher que vivencia situação
de violência, porque essas crenças tendem a generalizar essa mulher.
As pessoas que praticam a comunicação não violenta encontraram maior
autenticidade em sua comunicação, maior compreensão, aprofundamento da
conexão e resolução de conflitos. Partindo deste pressuposto, ao iniciar o
atendimento, o servidor deverá certificar-se de que a sala de espera/atendimento
comporta ambientes separados para a mulher vítima e para o/a agressor/a. A
organização do espaço de espera e atendimento é uma atitude simples e de baixo
custo que gera impactos significativos no acolhimento e na Classificação da DEAM,
conforme veremos a seguir ao tratar sobre essa iniciativa estratégica da PCMG.
Durante a oitiva, o primeiro passo é acolher e observar com neutralidade e
atenção o que está realmente sendo relatado em uma determinada situação, levando
sempre em consideração a palavra da mulher, em ambiente adequado, com sala
reservada, para manter a privacidade da mulher e do seu depoimento.
52
Acolher é estabelecer e firmar, durante a escuta, uma comunicação empática
que permita que o profissional perceba e reconheça (e até sinta) as emoções do outro
como se fossem suas, sem julgamento. A empatia é a disposição para colocar-se no
lugar do outro. Um dos efeitos positivos da comunicação empática é que o profissional
provavelmente tratará a vítima (e demais envolvidos) como gostaria de ser tratado/a
se estivesse no lugar dela/es.
O policial deverá ouvir a narrativa da mulher sem fazer qualquer apontamento,
sem preconceito, discriminação ou juízo de valor sobre os fatos. Escutar ativamente
envolve perceber a comunicação verbal e a não verbal. Quem escuta ativamente
mantém neutralidade e não-julgamento: não concorda ou discorda do que foi dito, mas
confirma que foi escutado corretamente.
Posteriormente deverá recapitular o que a vítima disse, de modo a situá-la no
tempo e espaço, auxiliando-a a ordenar as ideias e fatos, bem como com a intenção
de confirmar o que foi dito, se foi realmente compreendido por quem presta o
atendimento.
No momento do atendimento não temos informações suficientes para emitir
qualquer opinião diante da complexidade que envolve a violência doméstica. Não
temos informações suficientes do histórico pessoal, familiar e afetivo que envolve
aquela mulher, não temos conhecimento de seus dramas, traumas, de todas as
experiências que explicam seu aqui e agora. Por essa razão, é necessário vigilância
para que não sejamos emissários de conselhos ou soluções mágicas para a resolução
do problema, pois o nosso ponto de vista é extremamente restrito no momento.
Portanto, evite mediar conflitos ou fazer reconciliações, mesmo que você as
vislumbre como alternativas para a solução do problema. Essas intervenções, quando
viáveis, devem ser realizadas por instituição e profissional especializados e fora do
contexto do atendimento policial.
É importante empregar uma linguagem que possibilite conexão, que aproxime
as pessoas. Atenção ao vocabulário, linguagem e forma de comunicação (verbal e
não verbal), a fim de não dar espaço, no atendimento, para conflitos e confrontos
interpessoais. Esses conflitos podem surgir da falta de comunicação e despreparo,
devido ao uso coercitivo ou manipulador da linguagem que visa induzir a sentimentos
de culpa, medo, depreciação. O confronto desqualifica a fala da mulher, seja indicando
que a fala dela contém inverdades, contradições, lacunas ou exageros. Essa atitude
obstaculiza qualquer possibilidade de estabelecimento de vínculo entre o/a policial ou
servidor administrativo e a vítima.
53
É preciso muita atenção a tais posturas, pois, a suspeição quanto à fala da
vítima revela outras formas de violência: induzir sutilmente a responsabilização e a
culpabilização da mulher pela própria violência, eximindo ou minimizando a
responsabilidade do autor pela suposta violência cometida; estimular a desistência da
denúncia em nome dos impactos que o ato poderá ter na vida do suposto agressor,
no convívio com os/as filhos/as, no futuro profissional, na perda do emprego, na
inclusão do seu nome em “ficha criminal”, na sua possível condenação, ou seja, sujar
a imagem e a reputação social e familiar do autor da violência por um problema que
poderia ser resolvido de outro modo. Figura 16
Algumas formas de se comunicar
podem gerar comportamentos e trocas
violentas. Por exemplo, comparações,
julgamentos moralizantes e exigências.
Neste processo é importante ter em vista
as interpretações carregadas de vieses
e estereótipos que reforçam tal conduta,
por exemplo, dizer que mulheres gostam
Fonte: Blog Feedz .
de apanhar, ou que estão num
relacionamento abusivo porque querem, ou que a mulher provocou a agressão.
A escuta ativa requer prática: em uma sociedade onde estamos habituados a
ouvir para responder, para escutar ativamente é preciso reeducar os hábitos de
comunicação, para não interromper a fala da outra pessoa, não ter o ímpeto de
concordar ou discordar do que foi dito, de acrescentar algo ou de dar respostas ou
soluções às demandas trazidas.
A escuta ativa implica em ouvir sem querer se antecipar com uma resposta,
mas apenas ouvir. Uma recomendação de leitura sobre o assunto é o texto “A
Escutatória”, de Rubem Alves. No início do texto, o autor já emite a seguinte
provocação: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso
de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir”. E
continua: “A gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite
melhor...Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.Como se
aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...”9.
54
A escuta ativa, também conhecida como escuta dinâmica, faz parte da
comunicação não violenta e é essencial no atendimento a mulheres em situação de
violência.
Confira a seguir os principais aspectos da escuta ativa e pratique no seu dia a
dia de trabalho:
▪ O foco deve estar centrado na vítima, para que ela se sinta segura e você
compreenda o assunto em toda a sua amplitude.
▪ Escute a vítima atentamente, não pensando em outras coisas.
▪ Não faça outras atividades enquanto fala ou escuta uma vítima.
▪ Não selecione na fala da vítima somente aquilo que o agrada, recusando
toda comunicação que seja uma crítica ou que não satisfaça uma
expectativa. Deixe que a fala dela seja livre e faça complementos sobre
aspectos importantes para a investigação, se perceber que há pontos não
esclarecidos.
▪ Procure ouvir a vítima com empatia, se colocando no lugar dela,
procurando sentir como ela sente a questão.
▪ Durante a escuta não julgue a vítima com suas perspectivas pessoais. Não
emita opiniões pessoais ou conselhos.
▪ Antes de iniciar o procedimento de escuta desligue o celular ou acione o
modo silencioso, evite conversas paralelas com colegas de trabalho e não
fique olhando para o relógio ou para o celular.
▪ Procure escutar com tranquilidade, sem apressar a fala da vítima,
pensando no próximo compromisso ou no próximo atendimento.
▪ Não conclua os pensamentos da vítima antes que ela termine de falar.
▪ Adote postura corporal e verbal que demonstre uma postura de
cooperação com a vítima. Adote semblantes compreensivos.
▪ Atente-se para a modulação da voz durante o atendimento, não grite, não
fale alto.
▪ Ao longo do diálogo, faça confirmações sobre o que você entendeu da fala
da vítima.
▪ Se houver necessidade emergencial de resolver algum assunto externo ao
diálogo (atender um telefonema urgente, tirar uma dúvida com um colega),
seja respeitoso e peça licença para interromper o diálogo com a vítima.
55
A postura assertiva do/a policial deve se pautar na exposição e na orientação
legal, direta, clara, honesta e apropriada à forma singular como cada mulher vivencia
e percebe a sua situação, ressaltando que a denúncia/rompimento da relação podem
trazer vantagens e ganhos muito maiores que “a queixa pela queixa”, com o cuidado
de não criar expectativas falsas ou irrealistas em relação à solução do problema.
Para finalizar, vale pontuar o estratégico papel técnico, ético e político que
desempenha o servidor da segurança pública na garantia da segurança e da
integridade física e psicológica das mulheres vítimas de violência doméstica. A
conquista desses objetivos depende, fundamentalmente, da intencionalidade das
suas condutas e posturas durante o contato com as vítimas.
É importante destacar que não se atentar para os desafios acima é o mesmo
que revitimizar a mulher e, ao revitimizá-la, o/a policial se distancia do papel protetivo
da polícia e, assim, passa a fazer parte dos fatores de risco de reiteração das
violências vivenciadas pela vítima.
56
4 VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO LGBTQIA
Após tratar sobre a violência de gênero contra a mulher, nesta unidade serão
abordadas as violências contra a população LGBTQIA+, as quais são pautadas na
discriminação em razão da identidade de gênero e da orientação sexual.
Conhecer melhor os conceitos relacionados ao gênero e à orientação sexual,
entender que pessoas que não se identificam com a cisgeneridade e a
heterossexualidade são historicamente vítimas das mais diversas formas de violência,
reconhecer a vulnerabilidade destas pessoas e compreender a necessidade de um
atendimento adequado é fundamental para os que profissionais da segurança pública
possam prestar um serviço de qualidade à população, trabalhando na prevenção e
redução da violência, bem como na responsabilização dos agressores, uma vez que
o Brasil é reconhecido internacionalmente por ser um dos países mais hostis aos
corpos e subjetividades trans.
57
L – Lésbica: Mulheres, cis ou trans, que são atraídas afetiva e/ou sexualmente
por outras mulheres cis ou trans.
G – Gay: Homens, cis ou trans, que são atraídos afetiva e/ou sexualmente por
outros homens cis ou trans.
B – Bissexual: São homens e mulheres que se relacionam afetiva e
sexualmente com pessoas de ambos os gêneros.
T – Transexual/Transgênero: Pessoas que se reconhecem com gênero
diferente do atribuído ao nascimento. Vale lembrar que o que determina se uma
pessoa é transexual é a identidade, independente da realização de qualquer processo
cirúrgico.
Q – Queer: O Q (“queer”), em inglês que na tradução significa estranho, foi
acrescido para representar pessoas que não se identificam por padrões impostos pela
sociedade ou não sabem definir o seu gênero.
I – Intersexo: pessoas cujo desenvolvimento sexual e corporal – expressado
em hormônios, genitais, cromossomos, e/ou outras características biológicas – não se
encaixa ao gênero feminino ou masculino por ter nascido com os dois órgãos sexuais.
A – Assexual: São pessoas que não sentem nenhuma atração sexual por
outras pessoas, independente de gênero ou da orientação sexual.
Sinal +: contempla todas as diversas possibilidades e orientação sexual e/ou
de identidade de gênero que existam.
SAIBA MAIS!
Já foram utilizadas outras siglas para identificar a População LGBTQIA+, que evoluíram ao longo
dos anos de forma a representar todas as pessoas.
A primeira sigla a se tornar conhecida foi a GLS: que significa gays, lésbicas e simpatizantes. Essa
sigla logo caiu em desuso, pois simpatizante poderia ser qualquer pessoa que “simpatize’ com o
movimento, ainda que heterossexual, não sendo estes protagonistas do movimento.
Posteriormente, a sigla passou a ser GLBT: que significa gays, lésbicas, bissexuais e
transgêneros.
Em seguida, utilizou-se a sigla LGBT: que significa lésbicas, gays, bissexuais e travestis, alterada
por pressões das mulheres lésbicas, pois entenderam que sofriam dupla opressão, por ser mulher e
em decorrência da orientação sexual.
Há alguns anos foram acrescidos o Q (Queer), o I (Intersexuais) e o A (Assexuais) além do sinal +,
que abriga outras orientações sexuais e identidades de gênero que existem, fazendo com que todos
se sintam representados.
58
Após os conceitos iniciais e um breve histórico sobre as siglas que já existiram,
necessário discorrer sobre dois pontos fundamentais em relação à População
LGBTQIA+, que é a Identidade de Gênero e a Orientação Sexual.
A imagem a seguir ilustra a diferença entre identidade de gênero, sexo biológico
e orientação sexual.
Figura 17
Por sua vez, o gênero diz respeito às construções sociais do que é ser homem
ou ser mulher, bem como às relações entre os grupos sociais que preenchem
de sentido o que é “masculino” e o que é “feminino”. O conceito de gênero
tem sido amplamente utilizado pelo feminismo como categoria analítica útil
para destacar esses papéis e as possibilidades das mulheres para além de
qualquer determinismo biológico. As críticas feministas mostraram que
gêneros masculino e feminino são construções sociais assimétricas em que
há dominação e desigualdades entre homens e mulheres. Nesse sentido, o
gênero é visto como a roupagem cultural que se associa à natureza dos
corpos. Nas sociedades ocidentais considera-se, por exemplo, que a
feminilidade está associada à delicadeza, à fragilidade, ao cuidado e à vida
doméstica no âmbito privado. A masculinidade, por outro lado, é construída
com referência à força, à virilidade e à atuação na esfera pública. Essa divisão
de estereótipos não representa apenas uma descrição das relações
existentes, mas é um modo de normatizar os corpos: espera-se que homens
e mulheres se encaixem e se adequem a esses modelos do que é a
masculinidade e a feminilidade (LOPES, 2016, p. 18).
62
Há posicionamento que o conceito de travesti e mulher trans se equivalem.
Durante muito tempo, o termo era considerado pejorativo ou associado à prostituição.
Contudo, atualmente o conceito vem sendo ressignificado e passou a ter mais peso
político. Há pessoas que afirmam com orgulho que são travestis devido à história do
termo.
ATENÇÃO!!!
Drag Queen/Drag King são artistas que se vestem, de maneira estereotipada, conforme gênero
masculino ou feminino, para fins artísticos ou de entretenimento. A sua personagem não tem relação
com sua identidade de gênero ou orientação sexual.
Desta forma, não se confunde com pessoas transexuais ou travestis.
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/identidade-de-genero-mostra-como-as-
pessoas-se-reconhecem-no-mundo/ Figura 18
Após uma breve exposição sobre sexo biológico, gênero, identidade de gênero
e expressão de gênero, é fundamental trazer informações sobre sexualidade e
orientação sexual para melhor compreensão das especificidades da população
LGBTQIA+.
A sexualidade pode ser definida como a necessidade de receber e expressar
afeto e contato que proporcionem sensações prazerosas para cada um. A
sexualidade, portanto, não se restringe ao sexo e considera uma múltipla combinação
de fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Ela engloba o toque, o abraço,
o gesto, a palavra que transmite prazer etc.
Já a orientação sexual tem relação com o modo que as pessoas se sentem em
relação à afetividade e à sexualidade. Trata-se da atração ou ligação afetiva que se
sente por outra pessoa.
Pessoas que gostam de outras do gênero oposto são chamadas de
heterossexuais ou heteroafetiva. Já quando o interesse é por uma pessoa do mesmo
gênero, a pessoa é denominada como homossexual ou homoafetiva.
Há ainda as pessoas que se sentem atraídas por ambos os gêneros. São os
bissexuais.
SINTETIZANDO:
Exemplo 1: Uma mulher, trans ou cis, pode ser lésbica se sua orientação
sexual se direcionar a uma outra mulher (trans ou cis); assim como
heterossexual, se sua orientação se direcionar a um homem (trans ou cis).
Exemplo 2: Uma pessoa não binária pode sentir desejo afetivo e/ou sexual
por outra pessoa não binária ou por alguém que se identifica com o gênero
binário masculino ou feminino, ou ainda de gênero fluido.
65
https://www.youtube.com/watch?v=zjUKJIzjU3Q&t=4s
O quadro abaixo traz um resumo dos conceitos estudados para melhor fixação
da temática.
Figura 19
68
Figura 21
69
cometido contra alguém por uma intempérie momentânea. O mesmo vale
para os crimes em geral. (Dossiê ANTRA, 2017)
Figura 23
Fonte: https://www.medicina.ufmg.br/pessoas-transgenero-ainda-enfrentam-
barreiras-nos-servicos-de-saude/.
72
A maior parte das vítimas é jovem, entre 13 e 29 anos, a maioria é negra,
empobrecida e reivindica ou expressa publicamente o gênero feminino. Homens trans
e pessoas transmasculinas são minoria em crimes de assassinatos/homicídio
violentos. Entre as vítimas, a prostituição é a fonte de renda mais frequente, sendo
fator de alto risco quando a pessoa trans apresenta aparência e estética não-
normativas. Verifica-se que uma pessoa trans que não fez modificações corporais e
não expressa sua inconformidade de gênero explicitamente não confronta a
sociedade cis, não estará exposta às mesmas violências que as demais.
Constatou-se que os crimes ocorrem majoritariamente em locais públicos,
principalmente, em via pública, em ruas desertas e à noite, os casos acontecem em
sua maioria com uso excessivo de violência e requintes de crueldade, além da maior
parte dos suspeitos não costuma ter relação direta, social ou afetiva com a vítima.
De acordo com os dados apresentados, as mulheres trans e travestis são mais
vulneráveis a todas as formas de violência, razão pela qual devem ser propostas
ações afirmativas para as mesmas, conforme motivos apresentados no Dossiê
Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras- 2022, quais
sejam:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) afirma que todo ser
humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento, ou qualquer outra condição.
A Constituição Federal de 1988 prevê que a República Federativa do Brasil
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos fundamentos a
dignidade da pessoa humana. São objetivos fundamentais trazidos na Carta Magna
construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Além disso, prevê que todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza.
No ano de 2006, em reunião realizada na Indonésia com representantes de 25
países, foi elaborado o documento “Princípios de Yogyakarta”, que reconhece as
violações de direitos por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero como
violações de direitos humanos. É um dos documentos mais importantes no âmbito
internacional relacionado à temática e encontra-se disponível no material complementar.
74
De acordo com o referido documento, a discriminação com base na orientação
sexual ou na identidade de gênero inclui qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero que tenha o
objetivo ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade perante a lei ou proteção igual
da lei, ou ainda o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os
direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Consta no documento que a discriminação baseada na orientação sexual ou
identidade de gênero pode ser, e comumente é, agravada por discriminação
decorrente de outras circunstâncias, inclusive aquelas relacionadas ao gênero, raça,
idade, religião, necessidades especiais, situação de saúde e status econômico.
Dentre os princípios trazidos na normativa, o Princípio 5 (cinco) refere-se à
Segurança Pessoal e tem grande importância para os policiais e servidores
administrativos da Polícia Civil, afirmando que toda pessoa, independente de sua
orientação sexual ou identidade de gênero, tem o direito à segurança pessoal e
proteção do Estado contra a violência ou dano corporal, infligido por funcionários
governamentais ou qualquer indivíduo ou grupo. Para efetivação dos direitos previstos
no referido princípio, os Estados deverão:
75
4.5 CRIMINALIZAÇÃO DA LGBTFOBIA
Nesses termos, estabeleceu que, até que sobrevenha uma lei emanada do
Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização
definidos no artigo 5º, XLI e XLII, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou
supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de
gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua
dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica
aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei do Racismo, constituindo
também na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar
motivo torpe.
Neste julgamento, foi feita uma ressalva, com relação à liberdade religiosa.
Ainda hoje é comum que algumas religiões Figura 25
77
Nessa linha, os fiéis e ministros podem ensinar segundo sua orientação
doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os fatos
de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de
sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem
discurso de ódio, ou seja, aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a
hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de
identidade de gênero.
A decisão enfatizou que o conceito de racismo projeta-se para além de
aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta de uma construção de
índole histórico e cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e
destinada ao controle ideológico, à denominação política, à subjugação social e à
negação da alteridade da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem
grupo vulnerável e por não pertencerem ao estamento que detém posição de
hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes,
degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em
consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e
lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
No mesmo sentido foi a decisão do Mandado de Injunção 4733/DF, proposta
pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e transgêneros (ABGLT)
Assim, o plenário decidiu, por maioria de votos, que, até que se edite uma
norma regulamentando a matéria que versa sobre homofobia e transfobia, será
aplicada a Lei nº 7.716/1989 (crimes contra o racismo). Resaltando que, nos cultos
religiosos, dada a liberdade religiosa, essa decisão não alcança nem restringe, desde
que não incite discursos de ódio, seja em forma de discriminação ou preconceito.
78
Essa criminalização da homofobia/transfobia pelo Supremo Tribunal Federal
representou uma importante conquista para a Comunidade LGBTQIA+, pois tipificou
uma conduta criminosa envolvendo o gênero e orientação sexual das pessoas com
uma possível punição prevista na Lei 7716/1989. Enquanto isso, aguarda-se uma
legislação por parte do Congresso Nacional.
A Cartilha Direitos da População LGBT do MPPE traz alguns exemplos de
LGBTfobia, que ocorre quando a pessoa:
79
Nestes casos, a motivação do delito está relacionada com a inconformidade do
autor com a sexualidade ou comportamento social da vítima. Assim, o autor pratica a
violência sexual contra mulheres lésbicas ou bissexuais ou homens transexuais como
forma de curar sua sexualidade ou identidade de gênero, ou pratica a violência sexual
em razão da vítima ser profissional do sexo, se realizar com várias pessoas, controle
de fidelidade, modo de vestir, dentre outros comportamentos na sociedade.
De acordo com Rogério Sanches Cunha:
80
As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.
Nestes casos, aplica-se todos os direitos garantidos pela Lei Maria da Penha,
como atendimento pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher na PCMG,
nos termos da Resolução 8.225/2022, solicitação de medidas protetivas,
encaminhamento a Casas Abrigo, acompanhamento policial para retirada de
pertences, encaminhamento ao hospital, acompanhamento jurídico, dentre outros.
Figura 26
Em 2016 foi publicado o Decreto nº
8.727/2016 que estabelece o uso do nome
social e reconhecimento da identidade de
gênero de pessoas travestis ou
transexuais no âmbito da administração
pública federal, autárquica e fundacional.
Segundo estabelece o decreto Fonte: Portal ANOREG.
federal, nome social é aquele que a pessoa travesti ou transexual se identifica e é
socialmente reconhecida. Já a identidade de gênero é a dimensão da identidade de
uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de
masculinidade e feminilidade e com isso se traduz em sua prática social, sem guardar
relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.
81
O documento Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e gênero de
travestis e demais pessoas trans no Brasil, elaborado pela Antra, explica:
83
A requalificação civil é quando a pessoa altera nome e gênero na certidão de
nascimento e, portanto, em todos os outros documentos. Em março de 2018, uma
decisão do STF (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275) passou a garantir que
essa alteração seja feita administrativamente em um cartório de registro de pessoas
naturais, sem a necessidade de ação judicial e sem a necessidade de cirurgia de
redesignação sexual ou apresentação de laudos. A decisão foi proferida na Ação
Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria Geral da República para
que o artigo 58 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) fosse interpretado de
acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição
Federal, permitindo a alteração do nome e gênero no registro civil por meio de
averbação no registro original.
Com a decisão, não é mais necessária qualquer autorização judicial para que
seja realizada a alteração do registro civil ou ainda a comprovação de realização de
procedimentos cirúrgicos ou acompanhamento médico ou psicológico, sendo
necessário apenas o procedimento no cartório de registro civil.
É um grande avanço porque reconhece a autodeterminação de nome e gênero,
independente da genitália, garantindo um direito da personalidade do sujeito, sem
precisar de advogado ou acessar o Judiciário em um processo moroso.
Qualquer pessoa travesti ou transexual acima de 18 anos pode solicitar a
alteração, em qualquer cartório de registro civil do território nacional, sem a presença
de advogado ou defensor público. Para menores de 18 anos, a mudança será possível
somente via judicial.
De acordo com a decisão do STF, podem ser alterados somente o nome,
somente o gênero ou ambos. Podem ser alterados também os agnomes indicativos
de gênero (ex: filho, júnior, neto).
O Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça dispõe que:
84
Pessoas Naturais) a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim
de adequá-los à identidade autopercebida.
§ 1º A alteração referida no caput deste artigo poderá abranger a inclusão ou
a exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência.
§ 2º A alteração referida no caput não compreende a alteração dos nomes de
família e não pode ensejar a identidade de prenome com outro membro da
família.
A Resolução do CNJ não prevê a isenção de custas para pessoas trans que
não possam arcar com essas despesas de alteração de nome. Tal fato dificulta ou até
mesmo inviabiliza a efetivação deste direito, considerando a grande vulnerabilidade
social que a maior parte da população transexual está inserida.
85
5 ATENDIMENTO E INVESTIGAÇÃO POLICIAL COM PERSPECTIVA DE
GÊNERO
IMPORTANTE!!!
As técnicas de comunicação não violenta e soft skills para o profissional de segurança pública
abordadas no tópico referente à violência doméstica e familiar contra a mulher podem e devem ser
aplicadas no atendimento da população LGBTQIA+ sempre que cabível.
88
genital, razão pela qual devem sofrer abordagem policial pelo policial correspondente
ao sexo/identidade de gênero.
Vale mencionar que em uma situação de abordagem da população LGBTQIA+,
o policial deve agir de forma não discriminatória e respeitar a autodeclaração da
pessoa abordada, de forma a garantir o respeito e a dignidade da pessoa, sem deixar
de observar todos os procedimentos de segurança, levando os riscos que a pessoa
oferece, como ocorre em toda atuação policial.
Recomenda-se que policiais civis femininas realizem prioritariamente a busca
e abordagem em mulheres transexuais e travestis. Caso o nome social informado seja
diferente do nome de registro, reforça-se a necessidade de evitar a repetição em voz
alta do nome de registro da mulher transexual ou travesti, chamando-a pelo nome
social feminino. Deve ainda utilizar termos femininos, como senhora, ela, dela, dentre
outros.
No que tange à abordagem de homens transexuais, os documentos que tratam
sobre o procedimento apresentam divergências, com a possibilidade da busca ser
realizada por profissionais masculinos, profissionais femininos ou ainda que o
abordado seja consultado sobre a forma de revista mais adequada para si.
A Resolução SEJUSP nº 173, de 21 de julho de 2021, disciplina o procedimento
de revista nas unidades do Sistema Prisional do Estado de Minas Gerais, nos termos
do art. 14:
89
poderão ser revistadas por 2 (dois) servidores do sexo masculino, caso não
existam 2 (duas) servidoras habilitadas para o procedimento.
No âmbito da Polícia Civil, orienta-se que, sempre que possível, a pessoa a ser
abordada seja consultada sobre a forma de revista mais adequada para si. Caso não
seja viável, que seja realizada prioritariamente por profissionais femininos.
Acrescenta-se o fato de que muitos homens transexuais utilizam binder (faixa ou
colete de compressão das mamas) e packer (prótese peniana) e, caso seja necessária
sua retirada para revista/busca, o procedimento deve ser realizado de forma discreta,
em local fechado e seguro, sem exposição dos acessórios.
Reforçam-se as orientações de utilização do nome social informado pelo
homem trans, independente do nome de registro, bem como o uso de pronomes
masculinos, como senhor, ele, dele, dentre outros.
Caso necessária a revista de pertences da população LGBTQIA+, esta deve
ser realizada de forma discreta, sem exposição dos mesmos e sem comentários
ofensivos ou preconceituosos em relação aos objetos/acessórios.
90
dos outros homens, com o intuito também de protegê-lo de constrangimentos e/ou
violência transfóbica.
Em relação aos homens trans, reforça-se que a anatomia de seus corpos
demanda esse cuidado para protegê-los de agressões, violências ou outras violações
de direitos humanos.
Em Minas Gerais, a alocação da população LGBTIA+ nas unidades prisionais
do Estado está disciplinada na Resolução nº 173/2021:
Outro tópico que merece ser trazido ao debate é a utilização dos banheiros por
parte das pessoas transexuais.
Em relação às pessoas lésbicas, gays e bissexuais, quando cisgêneras, isto é,
a identidade de gênero corresponde ao gênero atribuído no nascimento, não há
discussão, devendo utilizar o banheiro correspondente ao sexo que coincide com a
identidade de gênero.
91
No que tange aos intersexuais e pessoas de gênero fluido, estas devem possuir
o direito a escolher o banheiro que será utilizado, pois transitam entre a identidade de
gênero masculina e feminina.
O ponto mais sensível gira entorno da seguinte questão: As pessoas
transexuais e travestis devem usar o banheiro do gênero que se identificam ou o
banheiro de acordo com o seu gênero atribuído ao nascimento?
Há quem defenda que as mulheres não estariam seguras compartilhando
banheiros com transexuais já que poderiam ser vítimas de abusos por parte delas e
até mesmo poderia ter homens se passando por transexuais para cometer delitos
dentro dos banheiros femininos.
Não há nenhum dado concreto que possa levar à afirmação de que as mulheres
estariam mais vulneráveis compartilhando o banheiro com pessoas trans, muito pelo
contrário, as pessoas transexuais que são cotidianamente humilhadas e expulsas dos
banheiros públicos em uma atitude totalmente preconceituosa. E quanto à invasão do
banheiro por homens se passando por transexuais para cometer delitos, além de não
ter nenhum dado concreto que isso aconteceria, o agressor deverá ser punido com as
penas do delito que vier a cometer.
93
6 ASPECTOS PRÁTICOS DO ATENDIMENTO POLICIAL DE MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
94
• Constar se houve atendimento médico prévio, apontando na oitiva a unidade
de saúde que realizou o atendimento e, se possível, o número do prontuário
de atendimento médico. Caso a vítima possua relatórios de atendimento
médico, juntar aos autos, informando o consentimento dela na juntada do
documento. Caso a vítima autorize acesso ao seu prontuário médico,
constar a manifestação de vontade na oitiva, pois facilitará a requisição
policial junto à unidade de saúde.
• Constar se a vítima deseja oferecer representação criminal ou requerimento
de queixa, informando de todas as providências subsequentes necessárias.
Esclarecer sobre o prazo de oferecimento de representação criminal ou
requerimento de queixa, caso a vítima não deseje adotar tais providências
no momento (prazo decadencial de seis meses). Orientar que, nos casos de
ação penal privada, a vítima precisará constituir advogado ou solicitar
atendimento na Defensoria Pública para proposição da queixa-crime.
Informar que o atendimento policial não supre esse requisito.
• Esclarecer a vítima sobre todos os procedimentos de encaminhamento da
medida protetiva, análise e deferimento pelo magistrado, bem como sobre
os procedimentos de investigação.
• Orientar a vítima sobre a necessidade de comparecimento ao exame de
corpo de delito. Em todo caso de lesão corporal, expedir a guia de exame
de corpo de delito, mesmo que a vítima manifeste que não deseja ser
submetida ao exame. A realização do exame, em si, ficará a cargo da
ofendida, mas a providência de polícia judiciária deve ser adotada, qual seja,
o encaminhamento para o IML ou local de realização do exame de corpo de
delito.
• Sugere-se que todas as unidades policiais, especializadas ou não, realizem
o “acolhimento integral”, que consiste no procedimento unificado de
atendimento, por meio do qual o servidor da PCMG confecciona o REDS e
também fica responsável pela formalização do termo das declarações da
ofendida no PCNET e os demais procedimentos relacionados ao EAMP. Tal
prática tem se mostrado eficiente para reduzir o tempo de espera das
vítimas e para evitar a revitimização.
• Caso não conste o Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) no
REDS, preenchê-lo no PCNET. Orienta-se que o FONAR não seja tratado
como procedimento investigatório, já que sua finalidade é detectar o nível
de risco para fins de atendimento na rede de enfrentamento à violência,
assim não se deve copiar o FONAR nas declarações da ofendida.
95
• Perguntar se ela deseja as medidas protetivas de urgência, esclarecendo
em que consistem. Perguntar se a vítima deseja representar criminalmente
contra o investigado, explicando de forma compreensível em que consiste a
representação criminal.
• Nos casos de ação penal privada (ex.: calúnia, difamação, injúria, dano
simples), orientar a vítima sobre a necessidade de oferecimento de queixa-
crime no prazo decadencial de seis meses, por meio de advogado
constituído ou da Defensoria Pública.
• Perguntar qual seu atual tipo de relação com o investigado (vínculo
doméstico, familiar ou afetivo). Tratando-se de vínculo afetivo, consignar o
tempo de relacionamento e o tipo de relacionamento (namoro, noivado,
casamento, união estável, se apenas moram juntos etc.). Havendo filhos,
consignar o nome e a idade (cadastrar os filhos no EAMP, na peça Termo
de Requerimento da Ofendida, campo “dependentes”, após cadastramento
dos filhos no campo “pessoas” / “envolvidos”); verificar se existe filho com
deficiência; verificar se a vítima é dependente financeiramente do agressor,
se residem em casa própria ou de aluguel; verificar se a vítima é pessoa
com deficiência ou se a agressão agravou a deficiência.
• Quanto aos fatos, sempre descrever com detalhes, não utilizar expressões
vagas. Narrar os fatos com coerência lógica e cronológica, com indicação
do lugar, do horário, ao menos aproximado, da presença de testemunhas
individualizadas/identificáveis, se houve atendimento médico e o local de
atendimento, bem como as expressões utilizadas, a dinâmica e as
circunstâncias da agressão física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial.
• Descrever na oitiva da ofendida de forma detalhada a dinâmica,
circunstâncias e motivação da infração penal, efetuando as perguntas de
esclarecimento de forma respeitosa. Cada fato deve ser descrito de modo
individualizado e com especificação do contexto de cada um. Devem ser
evitadas narrativas generalizadas e que não apontem o modo da ação
criminosa como, por exemplo, “QUE foi ameaçada por seu ex-marido”.
CORRETO: “QUE foi ameaçada de morte por seu marido (COMO), ontem,
dia xx/xx/xxxx, por volta de xxhxx (QUANDO), enquanto voltava para casa
do trabalho, em uma rua deserta (ONDE); QUE não houve testemunha do
fato, pois estava sozinha (AUSÊNCIA DE TESTEMUNHAS); QUE seu ex-
marido disse que iria matá-la com uma faca se não conseguisse buscar uma
arma de fogo (DINÂMICA), caso não reatasse o relacionamento
(MOTIVAÇÃO)”.
• De acordo com o caso concreto, perguntar se ela recebeu atendimento
médico na época dos fatos, questionando qual o local do atendimento, se
positivo (unidade de saúde).
• Em Belo Horizonte, havendo lesão corporal, emitir guia de ECD e solicitar
que a vítima assine o documento, orientando que o exame poderá ser
realizado no Posto do IML na DEAM, em horário de expediente, ou no IML,
no Bairro Gameleira, em qualquer horário. No interior, orientar a ofendida a
procurar o local de referência para atendimento médico-legal. Em todo caso,
expedir a guia pericial (procedimento obrigatório) e explicar à ofendida a
96
importância de realização do ECD para a conclusão da investigação. Caso
a vítima se recuse a receber a guia de ECD expedida, consignar tal
circunstância em sua oitiva. Colher assinatura da ofendida com data de
recebimento da guia pericial;
• De acordo com o caso concreto, perguntar se a ofendida ainda teria
eventuais mensagens (texto, áudio, vídeo ou imagem) de celular, e-mail ou
de aplicativos de mensagens ou de redes sociais que foram enviadas pelo
investigado na época dos fatos evidenciando os crimes narrados no
procedimento policial.
• Durante o primeiro atendimento, havendo apresentação de mídia digital com
áudio ou vídeo, salvar o arquivo no computador e elaborar termo de juntada
no PCNET. Em sede de investigação, ao emitir a ordem de serviço ou a guia
pericial, realizar a juntada do referido arquivo nestas peças, a fim de permitir
a transcrição ou a degravação do material.
• Em Belo Horizonte, durante o primeiro atendimento, havendo indicação de
que há mensagens de texto (e-mail, SMS, Whatsapp ou outro aplicativo),
elaborar Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), disponível no
PCNET, no módulo EAMP, orientando a ofendida a agendar data e horário
para apresentação do celular para realização de perícia. Emitir guia de
requisição pericial, opção SEM MATERIAL, “Código 71”, informando todas
as características do aparelho celular e quem o apresentará para perícia.
Além disso, deverá ser discriminado o trecho, arquivo ou conversa de
interesse criminalístico e que deverá ser objeto de perícia. Informar à vítima
que o celular não será apreendido e tão logo seja realizada a extração de
dados pelo perito, o aparelho celular será devolvido. Orientar a ofendida a
apresentar o celular sem senha de bloqueio de tela, a fim de facilitar a
atuação pericial. No interior, proceder à apreensão do aparelho celular para
fins de realização do exame pericial ou adotar o fluxo estabelecido na
localidade para realização da perícia de forma a minimizar os impactos para
a ofendida.
• Caso a ofendida não apresente de imediato os arquivos, orientá-la a
procurar a DEAM/DPC com a mídia salva em pen drive, consignando prazo
razoável. Inserir este compromisso no termo de oitiva da ofendida.
• Caso a ofendida não possua mais o conteúdo das mensagens ou o aparelho
celular, consignar esta circunstância em sua oitiva expressamente.
• De acordo com o caso concreto, perguntar se houve testemunhas
presenciais ou que tomaram conhecimento dos fatos logo após a infração
penal e que visualizaram o estado físico ou emocional da ofendida. Nunca
perguntar se a ofendida “deseja indicar” testemunhas, pois se trata de um
ato de investigação e a indicação de testemunhas não é um ato de
liberalidade da ofendida. Indicar expressamente em que categoria se
encaixa a testemunha e o que presenciou ou tomou conhecimento. Indicar
a testemunha pelo nome completo, telefone e/ou endereço ou, caso a vítima
não saiba declinar o nome completo, com o máximo de informações
possíveis sobre sua qualificação (nome dos pais, telefone, endereço ou
qualquer outro dado que seja possível realizar pesquisa futura). Evitar
97
consignar menção a testemunhas de forma genérica (ex.: “vizinho”, “primo”,
“minha irmã”, “colega de trabalho”). Caso a testemunha esteja
acompanhando a ofendida na unidade, reduzir a termo suas declarações
prontamente. Caso não haja testemunha, fazer menção expressa no termo
de declarações de que não houve testemunha dos fatos.
• Tratando-se de descumprimento de medida protetiva de urgência, solicitar
a apresentação da decisão judicial e que a vítima exponha o modo como se
deu o descumprimento das medidas protetivas. Se o contato tiver ocorrido
por mensagem, adotar as providências indicadas neste documento. Caso a
vítima tenha mantido contato voluntário com o investigado, consignar o
modo como se deu o consentimento. Neste caso, mencionar no documento
se a vítima deseja a manutenção das medidas protetivas de urgência. Em
hipótese nenhuma, deixar de realizar o procedimento porque a ofendida não
está na posse da medida protetiva. Realizar consulta na interface do PJe no
PCnet para verificar se houve deferimento da medida protetiva e ciência do
agressor, juntando-se as peças ao procedimento policial. Para tanto,
sugere-se que os/as delegadas tenham acesso a todos os EAMPs
elaborados no âmbito de sua circunscrição. De forma imediata, expedir
ofício ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar ou Vara Criminal com
competência para violência doméstica, a fim de comunicar o
descumprimento das medidas protetivas e, não havendo informação sobre
a ciência do agressor, solicitar a certidão de intimação do investigado sobre
as medidas protetivas. Havendo elementos informativos suficientes no ato
do primeiro atendimento e tratando-se de caso grave e com risco elevado,
o/a delegado/a de polícia deverá representar pela prisão preventiva do
investigado.
• Informar a vítima que poderão ser efetuados contatos remotos, por telefone,
whatsapp ou e-mail, tanto com ela quanto com as testemunhas
mencionadas, visando à celeridade da conclusão das investigações.
98
7 CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS EM ATENDIMENTO
À MULHER DA POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS
100
8 ASPECTOS PRÁTICOS DO ATENDIMENTO POLICIAL DE PESSOAS
LGBTQIA+
ATENÇÃO!!!
Deve-se atentar para o fato de que muitas pessoas travestis e transexuais possuem um
histórico de rompimento familiar e estabelecem novos vínculos comunitários, onde são
conhecidas apenas por seu nome social - esse nome se difere de um simples “apelido”
ou “alcunha”, pois constitui parte de sua identidade. Assim, o preenchimento do nome
social é de extrema importância para tornar possível a investigação dos fatos relatados,
a localização da pessoa, e, ainda, a notificação de sua comunidade em caso de óbito,
hospitalização ou prisão em flagrante, por exemplo.
101
Além das orientações acima, o profissional de segurança pública responsável
pelo atendimento da população LGBTQIA+ e condução das investigações criminais
relacionadas à temática deve orientar-se pelas seguintes informações:
102
Figura 27
• Indicar a data, horário e local dos fatos com a maior precisão possível. Estas
informações facilitam a realização de diligências posteriores para comprovar
a materialidade delitiva e identificar a autoria, como a localização de
câmeras de segurança. Além disso, o local do fato fixa atribuição para
investigação e competência para a ação penal;
103
• Indicar as testemunhas que presenciaram os fatos, com nome, endereço e
telefone, sempre que possível. As testemunhas deverão ser passíveis de
identificação por meio da qualificação ou de sinais/características que seja
possível a sua localização.
104
9 CONCLUSÃO
106
REFERÊNCIAS
107
______. Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 19
fev. 2022.
DEEKE, Leila Platt et al. A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos
discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saúde e sociedade, v. 18, p. 248-
258, 2009.
______. Visível e invisível: a vitimização das mulheres no Brasil. 4a, ed. 2023.
Infográfico. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/visivel-
e-invisivel-a-vitimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao/. Acesso em: 12 abr. 2023.
PIRES, Amanda. Espaço territorial: uma análise sobre o local do crime no ambiente
doméstico na cidade de Belo Horizonte. In: BARROS, Lúcio Alves et al. (Org).
Insegurança social, prisões e violência: desafios à segurança pública
emancipatória.– Curitiba: CRV, 2022
111
RIFIOTIS, Theophilos. Violência, Justiça e Direitos Humanos: reflexões sobre a
judicialização das relações sociais no campo da" violência de gênero". Cadernos
Pagu, p. 261-295, 2015.
SAFFIOTI, Heleieth IB. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo
em perspectiva, v. 13, p. 82-91, 1999.
112