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HODSON, D.

Realçando o papel da ética e da política na educação científica: algumas considerações


teóricas e práticas sobre questões sociocientíficas. In: CONRADO, D.M., and NUNES-NETO, N.
Questões sociocientíficas: fundamentos, propostas de ensino e perspectivas para ações sociopolíticas
[online]. Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 27-57. ISBN 978-85-232-2017-4.

Francislene Karina Martins

Enquanto analisa a educação científica sob a perspectiva das Questões Sociocientíficas (QSC), Hodson observa que “A
ciência é, em grande parte, um produto do seu tempo e lugar”. Tal observação pode ser considerada tanto um alívio
quanto uma responsabilidade. Para quem carrega dentro de si uma perspectiva de mundo mais positiva, é um alívio que
possamos desvincular a ciência da obrigação de seguir sem desvios todas as normas e valores associados à prática
científica (precisão, crítica, confiabilidade, entre outros). Para quem experimenta uma perspectiva de mundo mais
realista, o mesmo fragmento pode ser uma responsabilidade, já que caracteriza a ciência como produto de uma
sociedade inserida em um sistema capitalista, que se utilizou da manipulação de suas normas para priorizar a busca por
interesses particulares, manutenção de desigualdades sociais e degradação ambiental em detrimento do lucro.

Nesse sentido, o autor se utilizou de uma concepção mais realista da sociedade para defender um currículo baseado em
uma abordagem orientada por QSC, cuja finalidade é permitir que os estudantes observem a sociedade de maneira
crítica, se apropriem do conhecimento acerca dos valores que sustentam a ciência e que os preparem para agir de forma
coerente, responsável e eficiente em questões de interesse econômico, ambiental e social. Ou seja, o propósito é que os
estudantes se tornem ativistas sociais, engajados em ações coletivas com a finalidade de promover mudanças.

De maneira geral, para que tal propósito seja alcançado de maneira eficiente, é preciso que alguns aspectos sejam
analisados de maneira consciente, começando pela escolha da QSC. Esta escolha precisa dialogar com os interesses dos
estudantes, mas também precisa estar em consonância com questões atuais - sejam elas locais, nacionais ou globais. A
partir daí a prática deve ser estabelecida de acordo com os movimentos a seguir:

1. Sobre a ciência: a ciência precisa ser compreendida pelos estudantes quanto a sua natureza e julgada enquanto
produção humana impactada por fatores sociais. Aliado a isso, os conceitos científicos estudados precisam ser
determinados pelas QSC e não o contrário.

2. Aspectos associados à linguagem: é fundamental saber como a comunicação se dá no campo das ciências puras e
aplicadas, mas esse conhecimento precisa estar vinculado a compreensão também de como a comunicação e divulgação
científica acontece por meio das mídias de maneira geral. Portanto o letramento científico anda de mãos dadas com o
letramento midiático.

3. Ciência como prática social: o propósito é analisar criticamente aspectos da ciência e tecnologia como produtos
sociais. Ou seja, não são apenas subordinados a interesses comerciais, como são também muitas vezes violados para que
esses interesses sejam alcançados.

4. Dimensões políticas das QSC: para que os aspectos políticos de determinada QSC sejam reconhecidos de maneira
clara é preciso que a formação seja construída por meio de estágios que começam na avaliação de impactos e terminam
na ação.

5. Questões controversas: faz-se necessário desenvolver nos estudantes uma conexão forte com valores individuais
alinhados à justiça, liberdade e equidade. A partir de tais valores é possível que questões controversas da ciência, tanto
internas (valores conflitantes dentro da própria comunidade científica) quanto externas (valores conflitantes da
produção científica com questões de relevância social), provoquem nos estudantes um senso de justiça que os move em
direção à ação.

6. Agindo: a ação é a finalidade da abordagem! É fundamental que os estudantes se sintam pessoalmente empoderados
para efetuar a mudança e saber como proceder. O autor deixa claro que ações diretas ou individuais são relevantes, mas
não são eficientes para provocar mudanças efetivas. As mudanças residem nas ações indiretas, que são as mobilizações
coletivas de base comunitária, no ativismo social. Nesse sentido, é possível que o aprendizado ocorra sobre a ação -
quando assistimos de maneira mais passiva, através da ação - no envolvimento direto com projetos voltados para a
ação, e a partir da ação - colocando o ativismo social no lugar de atividade reflexiva, educadora e transformadora.
Pensando na perspectiva da ação de professores, é fundamental que estes estejam conscientes de que cada escolha feita
ao longo desse processo é uma decisão política! A primeira decisão a ser tomada é a definição da QSC, que será o
veículo de direcionamento dos estudantes para todas as etapas seguintes. Nesse sentido, é fundamental que professores e
educadores estejam conscientes também do meio no qual estão inseridos. A definição de uma QSC vai além do proposto
pelo autor, que é uma questão que precisa dialogar com interesses dos estudantes e atualidades. QSC precisam dialogar
especialmente com necessidades locais urgentes. Uma questão coletiva que atinge uma pessoa ou grupo de pessoas
diretamente é o maior combustível que move indivíduos em direção ao ativismo.

É fundamental também trazer a abordagem para a realidade do nosso país. No Brasil, existem questões urgentes que
atingem comunidades inteiras muito de perto, especialmente quando falamos de grupos marginalizados (povos
tradicionais, comunidades pobres e periféricas). Nesses casos, ações diretas e individuais podem ser ao mesmo tempo
mobilizações coletivas. Dentro de comunidades, a linha que separa o eu de nós é muito tênue. Essa divisão se torna mais
acentuada conforme avançamos em direção a grupos sociais com mais acesso e possibilidades. A limpeza de uma praça,
de uma rua, em uma região sem saneamento básico por exemplo, pode influenciar diretamente na redução de casos de
doenças como a dengue naquela mesma região. Essa mesma ação direta pode inclusive vir a ser uma ação individual
com potencial de crescimento, que pode ser utilizada como QSC na promoção de uma educação política popular em
espaços não formais. O movimento para ação coletiva pode portanto partir de ações individuais, desde que sabiamente
articuladas e nunca esvaziadas de sentido social.

Clóvis Júnior - Arte e povo poder, 2012

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