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Various - Gamificação em Debate-Blucher (2018)
Various - Gamificação em Debate-Blucher (2018)
CM
MY
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K
Gamificação em debate
Organizadores
Lucia Santaella
Sérgio Nesteriuk
Fabricio Fava
Gamificação em debate
Gamificação em debate
© 2018 Lucia Santaella, Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava (organizadores)
Editora Edgard Blücher Ltda.
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar Gamificação em debate / organização de Lucia Santaella,
04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava. – São Paulo : Blucher, 2018.
Tel.: 55 11 3078 5366 212 p. : il.
contato@blucher.com.br
www.blucher.com.br Bibliografia
ISBN 978-85-212-1315-4 (impresso)
ISBN 978-85-212-1316-1 (e-book)
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed.
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 1. Jogo – Aspectos culturais 2. Jogo – Aspectos
Academia Brasileira de Letras, março de 2009. psicológicos 3. Jogos educativos 4. Jogos de empresas
5. Jogos eletrônicos I. Santaella, Lucia. II. Nesteriuk,
Sérgio. III. Fava, Fabricio.
1. O sentido da gamificação 11
Referências 19
5. N
arrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa
história? 67
Narrativas, games e gamificação 69
Metodologia 73
Análise e discussão dos dados 75
Narrativa na literatura da gamificação 76
Considerações finais 79
Referências 80
6. A
pontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades
gamificadas 83
Caráter geral do jogo 86
Breves conclusões 90
Referências 92
7. B
rain digital games e funções executivas: delineando interfaces
entre os games e a estimulação neuropsicológica 95
Brain digital games: um panorama da revisão de literatura internacional e nacional 96
Estimulando as funções executivas por meio dos brain digital games 101
Gamebook Guardiões da Floresta 103
Método de investigação e resultados 104
Minigames e funções executivas 105
É o GGF um brain digital game? 109
Referências 111
Conteúdo 7
8. F
undamentos da gamificação na geração e na mediação do
conhecimento 115
Conceitos sobre gamificação 116
Aprendizagem e gamificação 118
Gamificação para a motivação e o engajamento 119
Narrativa explorada na gamificação 121
Elementos dos jogos na gamificação 122
Exploração das mecânicas dos jogos na gamificação 123
Considerações finais 124
Referências 124
10. Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 137
Crise e teoria crítica do capital em jogo 137
Gamificação de espaços públicos e reinvenção da política 140
Jogo como operação da linguagem: ambiguidade, negação e abertura 142
Referências 144
Conclusão 157
Referências 158
13. D
esign e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de
gamificação 177
Gamificação: conceituação em construção e debate 178
Gamificação, motivação e educação 180
Gamificação na educação a distância 181
Considerações finais 183
Referências 184
Lucia Santaella
Sérgio Nesteriuk
Fabricio Fava
1
HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
O sentido da gamificação
Delmar Domingues
1
Os primeiros jogos eletrônicos surgiram como resultado de esforços acadêmico-milita-
res, sem a preocupação de fazer deles um meio de entretenimento. Isso só veio a ocorrer em
meados dos anos 1970, quando Nolan Bushnell ajudou a formatar a indústria de games
como a conhecemos hoje. A partir de então, os games se tornaram uma das maiores forças
de entretenimento, rivalizando com outras formas de lazer, como a televisão, o cinema, os
shows, as viagens etc. Desse modo, a sociedade passou a compreender os games como um
fenômeno cultural e social, cujas consequências nocivas atraíram a atenção da mídia.
Por algum tempo, proliferaram notícias sobre a violência dos jogos, bem como os
efeitos colaterais de jogatinas intensas. Alguns games, por solicitarem um tipo de ha-
bilidade motora praticada por meio de movimentos do tipo “estímulo-resposta”, leva-
ram os seus jogadores a adquirir lesões por esforços repetitivos (LER). Numa situação
ainda mais dramática, Chuang, um jovem de Taiwan, morreu após jogar ininterrupta-
mente Diablo 3 durante dois dias, sem parar para comer (FIGUEIREDO, 2012). Mas
a má fama dos jogos não se resumia às consequências para a saúde dos jogadores. Vi-
deogames também eram taxados de violentos. Em um caso notório, em 20 de abril de
1999, os estadunidenses Eric Harris e Dylan Klebold invadiram o colégio Columbine
High School em Littleton, Colorado, e mataram a tiros treze estudantes. Na ocasião,
foi divulgado com algum alarde o fato de ambos jogarem Doom, um game que retrata
soldados treinados para matar.
Por outro lado, embora não seja fenômeno recente, a valorização cultural dos jogos di-
gitais, assim como a conscientização sobre seus benefícios, vem se intensificando nos últi-
mos anos. Steve Johnson (2005) “surpreendeu” a todos ao afirmar que os videogames são
capazes de desenvolver diversas habilidades cognitivas nos seus jogadores. Segundo o autor,
alguns games possuem estruturas narrativas complexas, exigindo dos seus usuários sofisti-
cação intelectual para resolver problemas de curto a longo prazo, já que necessitam que seus
jogadores tomem decisões de nível tático e estratégico.
Nessa onda de valorização dos jogos digitais, dois fenômenos passaram a chamar a
atenção: a consolidação de uma indústria de jogos voltados para outras finalidades mais
“sérias” que o entretenimento – não à toa estes passaram a ser denominados serious games ‒
e, em épocas um pouco mais recentes, o advento da gamificação. É importante ressaltar que
12 Gamificação em debate
partida para o projeto. O modelo de Frank, por outro lado, prefere sugerir focos de atenção:
o que se pretende com o desenvolvimento do projeto.
Não é difícil perceber que os componentes de Hosse (2014) podem ser válidos para
outros formatos de serious games. Argumenta-se aqui que, se fosse um jogo educativo –
outra categoria de serious games –, em vez de se estabelecer um objetivo social, seria defi-
nido um objetivo de aprendizagem. Se a categoria de serious games fosse um advergame, o
objetivo seria promocional, e assim por diante.
Segundo Hosse (2014), a ordem dos focos não é rigorosa, já que o desenvolvimento
projetual de games é, muitas vezes, caótico. Ainda assim, independentemente da ordem do
fatores, o primeiro foco – definição de um objetivo social ou político – estabelece o que se
pretende com o projeto do game for change: sobre o que o jogador vai refletir, quais são as
atitudes que estão em jogo para que ele mude de comportamento, qual é o objetivo de
persuasão do projeto. O segundo foco – a escolha e a abstração de um sistema físico – iden-
tifica um conjunto, um arranjo concreto, que esteja alinhado com o objeto de persuasão, e
que sirva como um modelo físico no processo de criação do sistema de jogo. Por fim, o
terceiro foco diz respeito ao desenvolvimento com base nos pressupostos projetuais de um
jogo, a saber: objetivos claros; escolhas, o que se refere ao nível de liberdade que o jogo
oferece ao usuário; desafio adequado; feedback imediato (sua atual posição em relação à meta
do jogo); conexão social – um componente opcional, já que nem todo jogo tem um caráter
social –, que trata da possibilidade de o jogo oferecer conexões com outras pessoas; e poli-
mento, que solicita a utilização de reforços audiovisuais para que o jogador compreenda o
contexto do jogo.
Do exposto pelo modelo de Hosse, percebe-se que a estrutura do projeto de games for
change – e, por extensão, de outros serious games – assemelha-se à dos projetos de jogos
para entretenimento; a diferença seria o conteúdo, o aspecto retórico do jogo. Mildner e
Mueller (2016), de modo semelhante, enfatizam que o design de serious games é seme-
lhante ao de jogos de entretenimento. Eles diferem somente pelo fato de haver a integração
dos tais conteúdos “sérios” na estrutura clássica de um jogo. Na visão desses autores, como
para jogos para entretenimento, o projeto parte de uma ideia (conceito), mas que é restrita
em alguns aspectos para atender à mecânica específica desse tipo de jogo.
Desse modo, se o processo de design de jogos não difere muito dos métodos projetuais
de outros produtos de nossa sociedade, o design de serious games também segue percurso
similar ao processo metodológico dos jogos para entretenimento. Boa parte dos autores de
design (BOMFIM, 1995; BONSIEPE, 1978; JONES, 1992; LÖBACH, 2001) divide o
processo de design em três ou quatro fases significativas que, a despeito do total de etapas,
se assemelham bastante. Normalmente, define-se uma fase de pesquisa e conceituação ou
pré-produção; uma fase de seleção de alternativas e produção de protótipos; uma fase de
implementação das soluções; e uma fase de avaliação (não necessariamente nessa ordem).
Nos últimos anos, muitos autores entendem que a etapa de avaliação não corresponde a uma
quarta fase, pois é contínua, já que permeia todo o design dentro de um processo iterativo.
Tais processos são utilizados indiscriminadamente para o design de jogos para entreteni-
mento e para o de serious games.
O sentido da gamificação 15
Outra semelhança entre jogos para entretenimento e serious games diz respeito ao que
se entende como elementos de jogos. Autores como Schell (2008), Bates (2001), Fullerton,
Swain e Hoffman (2004), O’Luanaigh (2006), Rouse III (2001) e Schuytema (2008), den-
tre outros, possuem visões particulares sobre o tema. Há semelhanças e diferenças na forma
como entendem quais são os chamados elementos de jogos, mas muitas das diferenças di-
zem respeito à compreensão do que seja um jogo. Por exemplo, Schell (2008) define os
elementos com base na compreensão de que jogo é um produto, um artefato. Para esse autor,
os elementos de um jogo compõem uma tétrade composta por mecânica, história, estética
e tecnologia. Por outro lado, para Fullerton, Swain e Hoffman (2004), os elementos do jogo
são definidos dentro de uma abordagem formal, ou seja, o jogo é um conceito, não um
produto. Para esses autores, os elementos de jogo são: objetivo, procedimentos, regras, re-
cursos, conflito, limites e saídas. Importante afirmar, no entanto, que, independentemente
da abordagem, os elementos são condizentes tanto para o projeto de jogos para entreteni-
mento quanto para os serious games.
Assim, entende-se que jogos para entretenimento e serious games apresentam sentidos/
percursos projetuais muito semelhantes: são regidos por métodos equivalentes, distintos
somente no que diz respeito à sua retórica ou conteúdo. A diferença está no que Hosse
(2014) denomina “definição do objetivo” (o primeiro foco de seu modelo). No caso dos
serious games, os objetivos são todos retóricos, mas distintos dependendo do tipo de jogo
“sério”: no caso dos games for change, os objetivos são sociais ou políticos; nos jogos edu-
cativos, são objetivos de aprendizagem; os advergames possuem objetivos promocionais. Já
no caso dos jogos voltados para o entretenimento, os objetivos são menos retóricos e mais
intrínsecos: o jogar pelo jogar.
Ou seja, há um componente “invasor” ao universo dos jogos que não são para o puro
entretenimento: o objetivo retórico. Compreende-se, assim, a dificuldade de fazer o jogador
entrar no “círculo mágico” quando o jogo tenha outras finalidades que não o entretenimento.
Independentemente disso, serious games são jogos, estão dentro de uma estrutura de jogo;
o que possuem são objetivos distintos. No caso da gamificação, não podemos dizer o mesmo.
A gamificação, como mencionado, recebe os elementos lúdicos em contextos não
relacionados a jogos. O sentido é inverso. É preciso fazer essa distinção, principalmente
porque muitos educadores entendem que os jogos educativos são uma ferramenta de
gamificação na educação, para ficar só no exemplo dessa modalidade de serious games.
No entanto, do ponto de vista projetual, o produto da gamificação recebe os elementos
de jogo para dentro de sua estrutura. Por exemplo, em um treinamento corporativo,
quando funcionários de uma empresa passam pelo processo de aprendizagem de um
procedimento, operação, comportamento etc., e nesse processo são inseridos elementos
de design de jogos, tal aprendizado pode se tornar mais lúdico, visando uma motivação
menos extrínseca ao objetivo do aprendizado.
O processo de gamificação tem semelhanças com o design de serious games. Alves
(2014) traça um roteiro para o “design da solução de aprendizagem gamificada” divi-
dido nos seguintes passos: conhecimento dos objetivos do negócio e da aprendizagem;
definição dos comportamentos e das tarefas que serão alvo dessa solução; conhecimento
16 Gamificação em debate
gamificação não alcançam os resultados esperados pois simplesmente aplicam alguns ele-
mentos de design de jogos no fenômeno, sem projetar de modo preliminar a experiência de
jogo. Segundo Burke (2015, p. 134), “o desafio da gamificação é projetar/desenhar a expe-
riência do jogador, não a tecnologia”.
Desse modo, se o sentido da gamificação segue o percurso inverso ao do projeto de
serious games, tal fato não implica em realizar essa ação sem que haja planejamento. No
modelo de Burke (2015), esse movimento/sentido se localiza fundamentalmente na quarta
fase: o desenvolvimento de um modelo de engajamento. Nessa fase do modelo de Burke,
cinco elementos do design de jogos são deslocados para a estrutura a ser gamificada: cola-
boração/competição, resultados intrínsecos/extrínsecos, partida multijogador/por jogador
individual, partida por campanha/sem fim, gameplay emergente/roteirizado.
O primeiro fator descreve se a seção de gamificação será competitiva ou colaborativa.
O segundo descreve os programas de recompensa que a seção proporcionará: qual o retorno
que o jogador terá na seção gamificada (embora soluções gamificadas almejem sempre as
recompensas intrínsecas, entende-se que recompensas extrínsecas possam contribuir com a
atividade). O terceiro fator verifica se a partida é multiplayer ou singleplayer. O quarto fator
especifica se o jogo terá um final, e, com base nesse aspecto, se o jogo terá fases (levels) ou
não. Por fim, o quinto fator prevê se a seção terá um caráter emergente ou narrativo. Jogos
emergentes costumam ter ênfase em regras; são mais mecânicos, voltados à solução de de-
safios em si. Nos jogos narrativos, os desafios são encaixados dentro de uma história.
Evidentemente, a tais fatores podem se acrescentar outros elementos de design de jogos
não citados por Burke, mas que também são considerados quando se projeta um jogo. Por
exemplo, o fator sorte; as habilidades envolvidas (cognitivas, físicas, sociais etc.); e o sistema
de feedback (positivo ou negativo), dentre outros fatores que definem uma partida. Não é de
estranhar que Burke não tenha considerado outros fatores além dos cinco mencionados por
ele. O processo de design de jogos é naturalmente complexo, e os elementos que o consti-
tuem são muito difusos, dificultando a sua estruturação. Cada autor acrescenta ou suprime
um elemento diferente na estruturação de um jogo. Assim, há também uma dificuldade em
se estabelecer quais e quantos elementos legitimam e validam o que constitui o fenômeno
da gamificação.
Há uma série de iniciativas que são taxadas de gamificadas, mas que, na realidade, só
aplicam um ou poucos aspectos ludológicos no processo, não proporcionando a força ne-
cessária para caracterizá-las como soluções gamificadas. Por exemplo, o aplicativo de ensino
de línguas Duolingo é costumeiramente definido como uma solução de gamificação, pois
utiliza alguns elementos de design de jogos: divisão do processo de aprendizado em fases e
utilização de um processo de recompensas. Acredita-se que a aplicação de tais elementos
seria suficiente para tornar o processo de aprendizagem um fator de motivação intrínseca.
O problema é que o aplicativo faz o jogador/aluno regredir de fase quando abandona as
aulas por muitos dias. Ao retornar ao aplicativo, o aluno surpreende-se, por exemplo, ao
notar que não está mais na fase 2, mas voltou para a fase 1, simplesmente porque ficou al-
guns dias sem “jogar”. Nesse caso, todo o esforço para obter motivação intrínseca é diluído,
já que o jogador se frustra, e o impulso para voltar às aulas é definido por um fator
18 Gamificação em debate
Referências
ALVES, F. Gamification: como criar experiências de aprendizagem engajadoras. Um guia completo: do
conceito à prática. São Paulo: DVS, 2014.
BATES, B. Game Design: the art and business of creating games. Roseville: Prima, 2001.
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DVS, 2015.
20 Gamificação em debate
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DECI, E. L.; RYAN, R. M. The ‘what’ and ‘why’ of goal pursuits: human needs and the self-determination
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Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2012/07/jovem-morre-apos-jogar-dia-
blo-3-durante-40-horas-seguidas.html>. Acesso em: 28 out. 2016.
FULLERTON, T.; SWAIN, C.; HOFFMAN, S. Game Design Workshop: designing, prototyping and
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<http://g1.globo.com/Noticias/Games/0,,MUL1339026-9666,00-EMPRESA+LANCA+BICICL
ETA+ERGOMETRICA+PARA+GAME+DO+BEM+NO+WII.html>. Acesso em: 8 nov. 2016.
HOSSE, I. R. O design de games for change. São Paulo: Universidade Anhembi Morumbi, 2014.
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2001.
______. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
JOHNSON, S. Surpreendente!: A televisão e os games nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro:
Campus, 2005.
JONES, J. C. Design methods. Nova York: John Wiley & Sons, 1992.
LÖBACH, B. Design industrial: bases para configuração dos produtos industriais. São Paulo: Blucher, 2001.
MILDNER, P.; ‘FLOYD’ MUELLER, F. Design of serious games. In: DÖRNER, R.; GÖBEL, S.;
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ROUSE III, R. Game design: theory & practice. Plano: Wordware, 2001.
SCHELL, J. The art of game design. Burlington: Morgan Kaufmann, 2008.
SCHUYTEMA, P. Design de games: uma abordagem prática. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
Precursores pré-digitais da gamificação1
Mathias Fuchs
2
Tradução: Sérgio Nesteriuk
1
Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em FUCHS, M. et al. Rethinking gamification. Lüneburg: Meson
Press, 2014. Disponível em: <http://meson.press/wp-content/uploads/2015/03/9783957960016-rethinking-gamifi-
cation.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018.
2
Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns
falantes da língua portuguesa. Hype é uma gíria inglesa que significa, entre outros: propaganda exagerada, “jogada de
marketing”, “golpe publicitário” e furor causado pela mídia [N.T.].
3
Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns
falantes da língua portuguesa. Buzzword é uma gíria que significa, entre outros: “palavra da moda”, chavão, “expres-
são mágica” ou “palavra de ordem” [N.T.].
22 Gamificação em debate
6
Devo ao meu colega Paolo Ruffino agradecer o pedido de esclarecimento sobre os “elementos de jogo” mencionados.
Em um e-mail de 21 de janeiro de 2014, Ruffino comenta: “Deterding et al. falam sobre o uso de elementos de design
de jogos. Eles se referem a um conhecimento e [a uma] prática específicos: design de jogos – um campo nascido prin-
cipalmente com a consolidação dos games como indústria”. Ruffino destaca um ponto relevante aqui. Reconheço que
estou tentando recontextualizar a gamificação aqui, não só no uso de exemplos pré-digitais, mas também ao olhar
para jogos antes que o design de jogos digitais existisse. Dito isso, minha compreensão de gamificação é próxima do
que outros autores rotulam como playification (MOSCA, 2012) ou ludification (RAESSENS, 2006).
7
Expressão francesa utilizada com o sentido de “antes de o termo existir” ou “antes de sua consolidação” [N.T.].
8
O mesmo também pode ser observado nas mitologias africanas e afro-brasileira [N.T.].
24 Gamificação em debate
queima de jogos precedeu a queima de livros e que, em ambos os casos, não era o meio físico
em si que se destinava a ser destruído, mas uma prática cultural e um grupo praticante.
Na Europa Ocidental, os jogos de azar que envolviam benefícios monetários eram mui-
tas vezes proibidos. Relatórios sobre bares que foram acusados de serem casas de jogo foram
usados em muitos casos para fechá-los ou para penalizar os proprietários desses estabeleci-
mentos. Uma ação coletiva de 1612 em Ernsdorf uniu o prefeito e os membros do coral da
paróquia para processar o proprietário que servisse bebidas alcoólicas para “atrair jogadores
e malandros para visitar sua pousada” (SCHMIDT, 2005, p. 255, tradução nossa). Em 1670,
uma lista de todos os habitantes suspeitos de jogar foi postada na mesma aldeia de Ernsdorf.
Nove anos depois, o presidente da corte foi convidado a retirar pinos de boliche das crianças
no dia de suas aulas de catecismo (SCHMIDT, 2005).
No entanto, a política real dentro da ética cristã desenvolveu meios de jogar e ser pie-
dosa ao mesmo tempo. Gerhard Tersteegen pode ser chamado de especialista em gamifica-
ção para a prática religiosa no século XVIII. Sua Loteria Piedosa9 era um jogo composto por
365 cartas que continham palavras de sabedoria e conselhos para os crentes. Ao selecionar
aleatoriamente uma carta do baralho, o jogador piedoso realizaria duas atividades ao mesmo
tempo: jogar um jogo de cartas aleatório e praticar um ato de devoção do espírito cristão.
O livro de orações gamificadas de Tersteegen foi bem-sucedido em virtude da popularidade
da prática de loteria profana do século XVIII, que foi apropriada e adaptada aos propósitos
de Tersteegen. O sermonista anuncia seu jogo como uma loteria sem o perigo de perder. Se,
no entanto, você conseguir o prêmio (for sorteado), seu preço será insuperável:
Contudo, nem todos estavam felizes com a ludificação de conteúdo sério proposta por
Tersteegen. Um de seus críticos contemporâneos, Heinrich Konrad Scheffler, zombou da
Loteria piedosa em sua composição de 1734 sobre a estranha prática religiosa como uma
forma de não agradar a Deus: “Praxis pietatis curiosa”10 (apud BRÜCKNER, 2010, p. 261).
O pregador itinerante Tersteegen enfrentou um problema que não é diferente dos pro-
blemas de hoje para vender produtos com baixo valor de uso como algo desejável ‒ ou traba-
lho chato como diversão. A prática comum do século XVIII de prescrever uma oração por dia
deve ter sido extremamente cansativa para os crentes praticantes. Quando o beato radical
Tersteegen inseriu o elemento de chance, conseguiu o que os evangelizadores de hoje mais
buscam: aumentar a fidelidade do cliente por meio de elementos divertidos. “Gamification is
9
A Loteria piedosa foi parte do livro Geistliches Blumengärtlein de Gerhard Tersteegen, em sua quarta edição publicada
no ano de 1769.
10
Aqui o autor se refere a um hinário (coleção de canções) publicado por Scheffler. Além da ironia à Tersteegen, o título
também faz uma provável referência a um dos hinários protestantes mais conhecidos da época: Praxis pietatis mélica,
do compositor alemão Johann Crüger.
Precursores pré-digitais da gamificação 25
driving loyalty” (GOLDSTEIN, 2013), “Motivation + big data + gamification = loyalty 3.0”
(PAHARIA, 2013), “Gamification = recognition, growth + fun” (DEMONTE, 2013). Mais
de 200 anos antes da introdução da noção de gamificação, práticas semelhantes já estavam em
uso, estabelecendo fidelidade ao ocultar o objetivo primário da empresa e oferecendo “mecâ-
nicas periféricas ou secundárias” (CIOTTI, 2013, tradução nossa) que estipulam pseudo-
-objetivos e redirecionam a atenção dos clientes, também conhecidos como jogadores.
11
Quando os músicos do século XVIII usaram jogos de cartas e dados para facilitar os processos de composição, visaram
algo semelhante às tentativas de gamificação contemporâneas do marketing: queriam implementar uma camada de diver-
são e entretenimento que levasse o público a acreditar que estava compondo. Na verdade, o público não compunha, eles
eram apenas instrumentais no início de processos algorítmicos. O marketing atual, por sua vez, tenta implementar uma
camada de diversão e entretenimento acima do nível funcional do marketing e quer que os clientes acreditem que desejam
o que lhes é dito para desejarem. Em ambos os casos, o serviço de sistemas lúdicos é baseado em regras como dispositivos
persuasivos para um assunto que não é jogado. É por isso que falo de gamificação no contexto da música e no contexto
do marketing recente, mesmo que o objeto da gamificação seja diferente em ambos os casos.
12
Os exemplos para os métodos de composição aleatória fornecidos aqui não reivindicam as primeiras tentativas de fazê-
-lo. Há uma história de composição aleatória no século XVIII, na era digital (NIERHAUS, 2009) e muito antes disso. Já
no século XVII, os compositores começaram a pensar em uma peça de música como um sistema de unidades que po-
deria ser manipulado de acordo com os processos do acaso. Por volta de 1650, o jesuíta Athanasius Kircher inventou a
arca musurgica, uma caixa cheia de cartas com poucas frases musicais. Ao tirar as cartas em combinação, pode-se
reunir composições polifônicas em quatro partes.
26 Gamificação em debate
do século XVIII era diferente do pensamento musical clássico e, para um compositor bar-
roco tardio, a principal conquista era produzir o mais efetivamente possível algo que se
ajustasse às regras do artesanato musical. A sutileza estética não era o ponto em questão.
Maximilian Stadler foi outro compositor que trabalhou com um conjunto de dados.
Table for composing minuets and trios to infinity, by playing with two dice foi publicada em
1780 e poderia muito bem ter sido a inspiração para os dados de Mozart. Stadler foi amigo
de Mozart, Haydn e Beethoven e não seria surpreendente se Mozart tivesse pegado algu-
mas das ideias de Stadler ao se encontrarem em Viena. Na época, as ideias inovadoras não
eram protegidas por direitos autorais, e Mozart teria se apropriado de materiais, ideias e
conceitos de alguns colegas compositores. Mas também é possível que Joseph Haydn, outro
amigo comum, tenha influenciado Stadler, Mozart ou ambos ao apresentar seu Game of
harmony, or an easy method for composing an infinite number of minuet-trios, without any
knowledge of counterpoint, que foi publicado em 1790 (ou 1793) em Nápoles por Luigi
Marescalchi. A peça, que se acredita ter sido escrita na década de 1780, é muito próxima ao
conceito e à terminologia da tabela de Stadler. À la infinite é o que Stadler tinha em mente
e Haydn, se realmente escreveu a obra, se refere a ela como infinito numero. Mais uma vez,
foi o método fácil ‒ maniera facile ‒ que serviu de motivação fundamental para os compo-
sitores do século XVIII usarem a gamificação em seus processos de composição.
Leonard Meyer observa que a prática de métodos aleatórios e lúdicos na composição e
na performance musical está, por boas razões, bem presente no século XVIII, mas é difícil
de ser encontrada na prática musical do século XIX:
Compositores do século XVIII construíram jogos de dados musicais, enquanto os composito-
res do século XIX não o fizeram [...] o que restringia a escolha das figuras eram as reivindica-
ções de gosto, a expressão coerente e a propriedade, tendo em vista o gênero do trabalho, e não
a necessidade interna de um processo subjacente e gradual que se desenvolvia [como na música
do século XIX] (MEYER, 1989, p. 193, tradução nossa).
Há dois pontos aqui que quero frisar ao comparar a gamificação da música e da dança
com a gamificação da prática religiosa dessas mesmas décadas:
2. Quero mostrar aqui que certas constelações históricas têm sido um terreno fértil para o
processo de gamificação pré-digital, e a segunda metade do século XVIII certamente foi
uma delas. A intenção é também explicar por que certos momentos da história se
14
“Com base em nossa pesquisa, propomos uma definição de ‘gamificação’ como o uso de elementos de design de jogos
em contextos de não jogo” (DETERDING et al., 2011, p. 10, tradução nossa).
15
“Gamificar é tirar coisas que não são jogos e tentar fazê-las parecer mais com jogos” (SCHELL, 2010, tradução nossa).
16
O videoclipe da música Californication, da banda Red Hot Chilli Peppers (1999), é um exemplo perfeito de gamificação
da música pop.
28 Gamificação em debate
prestam para promover a gamificação e propor algumas boas razões pelas quais nossa
década parece ser um desses momentos.
17
O livro de Johann Sebastian Halle foi publicado por Joachim Pauli em 1783, em Berlim (HUBER, 2006).
18
A autobiografia de Johan Wolfgang von Goethe chamada “Da minha vida: poesia e verdade” (original em alemão:
“Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit”) foi escrita entre 1808 e 1831. É considerada um reflexo sobre a vida de
Goethe entre os anos de 1750 e 1770. A frase sobre “jogos científicos” é citada por Kaiser (1967).
Precursores pré-digitais da gamificação 29
Gamificando a aprendizagem
Em 1883, Samuel Langhorne Clemens, também conhecido como Mark Twain, estava
tentando criar uma maneira fácil para suas filhas se lembrarem dos monarcas ingleses e as
datas em que começaram e terminaram seus cargos. Twain (2009) descreveu o problema
que enfrentou em seus cadernos: “Eram todas as datas, todas pareciam iguais e elas não as
memorizariam” (tradução nossa). Então Twain desenvolveu um método lúdico de lembrar
datas, nomes e números, mapeando-os em posições de um pedaço de terra. Ele mediu 817
pés22 ‒ cada pé representando um ano ‒ e depois colocou estacas no chão no local correspon-
dente onde reis e rainhas começaram a reinar. Suas filhas lembraram as datas por lembrarem
das posições espaciais. “Quando você pensa em Henrique III, você vê um grande e longo
caminho direto? Eu vejo, e no final, onde ele se junta a Eduardo I, eu sempre vejo uma pe-
quena pereira com sua fruta verde pendurada” (TWAIN, 2009, tradução nossa), ele escreveu.
Quando as filhas de Twain aprenderam sobre os monarcas em dois dias (elas haviam
tentado por todo o verão), ele sabia que havia descoberto um método eficiente para a
aprendizagem gamificada. Depois de alguns anos de brincadeiras, Twain patenteou o
Memory-Builder: a game for acquiring and retaining all sorts of facts and date, um jogo de ta-
buleiro igualmente dividido por anos. O jogo incluía pinos e os jogadores colocavam um
alfinete no compartimento apropriado para mostrar que conheciam a data do evento em
questão. A pontuação era obtida com base no tamanho do evento e em quão especifica-
mente os jogadores acertavam a data.
A invenção de Mark Twain introduziu dois elementos de jogo em uma relação ensino-
-aprendizagem. Por um lado, afirmou o aprendizado como uma atividade divertida proje-
tando-o dentro de um jogo de tabuleiro. Por outro, usou dados históricos como informações
espaciais. Informação e conhecimento sobre o tempo e a ordem cronológica foram reestru-
turados como uma relação espacial. Em termos derridianos, há algum tipo de jogo que
ocorre em nível semiótico e em nível do tabuleiro do jogo. De acordo com Derrida, há
uma différance, um movimento ativo envolvendo “espaçamento” e “temporalização”. A pre-
sença de um elemento não pode compensar a ausência do outro. Existe uma lacuna ou in-
tervalo que escapa à identidade completa. “Constituindo-se, dividindo-se dinamicamente,
esse intervalo é o que poderia ser chamado de espaçamento; o tempo se torna espacial ou o
espaço se torna temporal (temporalização)” (DERRIDA, 1972, p. 143, tradução nossa). O
jogo de tabuleiro de Mark Twain, portanto, joga em dois níveis: o jogo é obviamente uma
abordagem lúdica para ensinar história, pois difere das formas tradicionais e bastante solenes
da sala de aula. O segundo nível do jogo é um metanível de espaçamento e temporalização,
conforme descrito por Derrida. As instruções para o jogo Memory-Builder indicam que:
22
Cerca de 250 m [N.T.].
Precursores pré-digitais da gamificação 31
obviamente, contrário ao conceito dos heróis tradicionais dos filmes ocidentais: o xerife, o
solitário sincero que procura vingança ou o gângster inteligente são todas personagens do
tipo homo faber. Eles poderiam resolver seus respectivos problemas por meio de tomadas de
decisão e ações individualizadas. A proposição de Isabel Exner para o surgimento do homo
aleator em “No country for old men” não é exclusivamente cinematográfica nem está relacio-
nada com a história dos filmes americanos e suas histórias criminosas. Exner sugere que o
acaso se tornou “o princípio fundamental de funcionamento da ordem prevalecente [...] que
já integrou a descoberta de Michel Serre de que ‘a probabilidade, o risco, o terror e até o
caos têm potencial para consolidar o sistema’” (EXNER, 2010, p. 61, tradução nossa).
Considerações finais
Este capítulo não pode fornecer ao leitor uma história completa da gamificação ou
dos documentos históricos relacionados à sua prática para provar que o que chamamos
hoje de gamificação já aconteceu nos séculos anteriores. Também não pretende resumir
todas as possíveis diferenças que possam existir entre os jogos de séculos passados e os
jogos digitais de nossos dias. No entanto, minha principal hipótese é que podemos detec-
tar semelhanças em aspectos do hype, no modismo e na seriedade dos jogos e de um
processo que transforma contextos de não jogo em playgrounds para atividades e experi-
ências lúdicas ao longo de séculos. Tais playgrounds puderam ser identificados no apren-
dizado, na prática religiosa, na música, na magia, na dança, no teatro e no estilo de vida e
podem igualmente ser vistos hoje em dia quando olhamos para a teoria do teatro e en-
contramos Game Theatre (RAKOW, 2013), para blogs religiosos e encontramos Gamifying
Religion (TOLER, 2013), para as informações dos serviços de saúde e encontramos Fun
ways to cure cancer (SCOTT, 2013) ou Dice games against swine flu (MARSH; BOFFEY,
2009) ou, ainda, quando investigamos o gerenciamento coletivo de água e encontramos
Games to save water (MEINZEN-DICK, 2013).
É a amplitude das aplicações, e não o exemplo individual, que suporta a hipótese de que
a gamificação ocorre como uma tendência global, uma nova forma de ideologia ou um
dispositif ‒ se assim você quiser.25 Isso não depende exclusivamente da digitalização da so-
ciedade ou do sucesso econômico dos jogos digitais. O que tentei demonstrar aqui é uma
perspectiva histórica sobre a compreensão da gamificação como forma de viver (e morrer),
fazer música, vender e comprar, engajar em processos econômicos e em estruturas de poder,
se comunicar e introduzir novos modos e hábitos para uma década ou século inteiro. Esta
pode ser a década de 2010, mas também pode ser o século XVIII, o “Século do Jogar” ‒
como Bernoulli chamou, em 1751, o século em que viveu.
A segunda metade do século XVIII compartilhou “redes pragmáticas relevantes”
(LACHMAYER, 2006, p. 35, tradução nossa) com nossos dias. Os contemporâneos de
Wolfgang Amadeus Mozart, Schikaneder, Tersteegen, Casanova, Bernoulli, Schwarzkopf e Stadler
25
O termo é utilizado por Michel Foucault como referência aos diversos meios, mecanismos e estruturas que objetivam
manter o exercício do poder dentro do corpo social, manifestos por meio de dois fatores principais: a vigilância e a
punição [N.T.].
Precursores pré-digitais da gamificação 33
Referências
BAUER, G. Mozart, Kavalier und Spieler. In: LACHMAYER, H. (ed.). Mozart. Experiment Aufklärung.
Ostfildern: Hatje Cantz, 2006. p. 377-388.
26
O termo agôn corresponde aos jogos agonísticos, em que jogadores, partindo de uma mesma condição, disputam para
ver quem é o melhor; alea, aos jogos que dependem exclusivamente da sorte, isto é, nos quais a participação do joga-
dor não é determinante; mimicry é associado ao mimetismo e corresponde às atividades nas quais o jogador assume o
papel de alguma personagem; e, por fim, ilinx se baseia na vertigem, ou seja, em atividades nas quais o jogador passa
por algum tipo momentâneo de desorientação física ou mental. Caillois (2011) afirma ainda que essas categorias não
se manifestam necessariamente de forma “pura”, podendo haver combinação entre categorias em um mesmo jogo ou
atividade lúdica [N.T.].
27
Aqui o autor faz referência à designer de jogos Jane McGonical, que produziu o serious game SuperBetter (2012), cujo
conceito de criação é baseado em seu livro Reality is broken: why games make us better and how they can change the
world (2011) [N.T.].
34 Gamificação em debate
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Gamificação, motivação e a essência
do jogo
3
Alan Richard da Luz
A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo dos animais, crianças
e adultos. Procuram determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe um lugar no
sistema da vida. A extrema importância deste lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade
da função do jogo, são geralmente considerados coisa assente, constituindo o ponto de partida
de todas as investigações científicas desse gênero. [...] A intensidade do jogo e seu poder de
fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade,
nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica
primordial do jogo (HUIZINGA, 2014, p. 4-5).
A partir dessas palavras escritas em 1938, autores de todo o mundo e das mais variadas
áreas do conhecimento vêm mapeando as motivações por trás do fenômeno do jogo e sua
40 Gamificação em debate
influência em nossas vidas. Temos exemplos de muitas definições diferentes e ótimas com-
pilações de definições do que é um jogo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012), e esses mesmos
autores tentam mapear o que nos atrai no jogo. Trago para este capítulo uma lista meio
particular e baseada em minhas leituras e relações entre esses autores, todos de grande
importância para responder à pergunta-título desta seção: por que gostamos de jogos?
Apresento cinco grandes motivos, de uma lista que não se esgota aqui, estruturados de
maneira a nos servir no que diz respeito aos processos de gamificação. São eles:
Games são experiências de aprendizado, onde o jogador melhora suas habilidades conforme
joga. A qualquer momento, o jogador terá um repertório específico de habilidades e métodos
para superar os desafios do jogo. Parte da atração de um bom jogo é que ele continuamente
desafia e faz novas demandas ao repertório do jogador ( JUUL, 2011, p. 56, tradução nossa).
O desafio em si está ligado ao fato de os jogos serem interações lúdicas significativas. Somos
eficientes máquinas de semiose e, ao dar sentido (e significado) a uma ação qualquer, essa ação
passa a ter importância para nós. Imagine você chutando uma bola em uma parede para passar
o tempo. A atividade sem sentido logo se torna entediante, mas se alguém se aproxima e diz algo
como “duvido que você consiga chutar a bola na parede dez vezes sem deixá-la cair no chão”, a
atividade passa a ter sentido e sua ação passa a significar algo. O desafio cria uma cadeia de
significação à ação de chutar a bola na parede e isso se torna um motivador.
O feedback é um dos elementos dos jogos mais explorado na gamificação, pois é aquilo
em que os jogos mais diferem da nossa vida cotidiana. Os feedbacks que recebemos por es-
tudar, trabalhar, aprender a cozinhar, correr etc. são indiretos e muitas vezes muito tardios
(você precisa correr durante um mês para ver diferença na balança, por exemplo). Os jogos
nos fornecem feedback instantâneo e mensurável, nos dando a clara noção de estarmos ou
não melhorando (ou piorando).
As informações em tempo real e as referências quantitativas são a razão pela qual os jogadores
se tornam cada vez melhores em praticamente qualquer jogo do qual participam: seu desempenho
Gamificação, motivação e a essência do jogo 41
O significado épico (epic meaning) é algo que nos torna especiais, que transforma nossas
buscas em coisas cheias de significados grandiosos e heroicos. Os jogos estão cheios deles,
pois podem incluir objetivos como salvar uma nação da destruição, vencer o melhor lutador
do mundo, derrotar o melhor time de futebol do planeta. Gostamos de nos sentir especiais
e os jogos nos proporcionam isso. Os significados épicos potencializam o sentido dos desa-
fios e nos dão a sensação de que podemos fazer muito mais.
A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser
definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou
a representação de alguma coisa. [...] A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela,
ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma
bruxa malvada ou um tigre (HUIZINGA, 2014, p. 16-17).
O significado épico surge mesmo nos jogos informais (brincadeiras), pois nos trans-
porta para fora da realidade, libera nossa imaginação e faz todos os significados serem mais
“positivos”. Outra função indireta dos significados épicos é que eles amenizam os efeitos da
frustração pelos pequenos fracassos no decorrer do processo. Perder uma vida em um desa-
fio dentro de um videogame é muito mais aceitável, pois estamos nos submetendo a um
esforço sobre-humano se esse desafio tiver significado épico. Isso reforça o feedback positivo
e diminui o feedback negativo.
O último elemento da minha lista, o prazer autotélico ou prazer intrínseco, diz respeito
ao fato de jogarmos porque isso é divertido e está diretamente ligado ao fato de o jogo ser
uma atividade essencialmente voluntária, não podendo estar sujeito a ordens e, como o
próprio Huizinga (2014, p. 11) diz, sendo “ele próprio a liberdade”, pois nos arrebata do
mundo real. Entramos em um jogo pelas características listadas até aqui e isso cria um
prazer intrínseco ao próprio jogo, autoalimentado. O jogo é um fim em si mesmo.
Essa é uma pequena lista de motivos pelos quais jogamos, e, como já dito, ela não
se esgota. Entretanto, neste momento, podemos enxergá-la de outro modo, como fare-
mos a seguir.
prazer autotélico
significado
desafio
épico
aprendizado feedback
Devemos ler esse gráfico da seguinte maneira: o significado épico alimenta o desafio,
que nos motiva a aprender novas habilidades para que o superemos, das quais tomamos
conhecimento pelos feedbacks do sistema e, no caso de serem positivos, buscamos o próximo
significado épico, completando o ciclo. Esse ciclo garante o prazer autotélico, do qual ele
depende.
Agora, imagine esse gráfico não como um círculo, mas como uma espiral que vai na sua
direção, pois a cada ciclo o desafio deve ser maior, garantindo o aprendizado de novas ha-
bilidades. Qualquer quebra em um dos elementos tira o prazer intrínseco do jogo. Se o
desafio não aumenta, não precisamos aprender novas atividades e deixamos de ter esse
prazer. Se não temos feedback adequado, não visualizamos o quanto aprendemos. Se não
enxergamos o significado épico, nossa busca se torna sem sentido etc. Qualquer elemento
que falte ou não seja suficiente tira o momentum para a dinâmica.
Essa escalada do desafio para que o jogo continue interessante e a autotelia se encaixam
em outra estrutura muito conhecida e aplicada no mundo dos jogos: a teoria do fluxo (Flow
Theory) de Mihaly Csikszentmihalyi (1990). Podemos sobrepor o motorzinho do prazer
autotélico ao gráfico do canal de fluxo (Figura 3.2) e perceber como o jogo se autoalimenta
e mantém o jogador motivado e imerso.
Gamificação, motivação e a essência do jogo 43
o
ação
x
str
fru
desafio
flu téd
io
habilidades
No fim do lance, tudo pode e deve voltar ao ponto de partida, sem que nada de novo tenha
surgido: nem colheitas, nem objetos manufaturados, nem obra-prima, nem capital acrescido.
44 Gamificação em debate
O jogo é ocasião de gasto total: de tempo, de energia, de engenho, de destreza e muitas vezes
de dinheiro [...] Quanto aos profissionais, pugilistas, ciclistas, jockeys ou atores que ganham a
vida no ringue, na pista, no hipódromo ou nos palcos e que devem preocupar-se com o salário,
as percentagens ou os bônus, claro que neste aspecto não se devem encarar como jogadores mas
como trabalhadores (CAILLOIS, 1990, p. 25).
A motivação extrínseca não é um problema apenas nos jogos, mas em qualquer ativi-
dade que gere prazer intrínseco e autotelia. Teorias da psicologia que envolvem a autode-
terminação e a autopercepção já dão conta de fenômenos que surgem desses cenários.
O fenômeno da superjustificação
As teorias a respeito da superjustificação partem do princípio de que um sujeito envol-
vido em uma atividade (qualquer uma), ao inferir que não existem motivações externas para
sua agência, deduz que realiza a tarefa automotivado e que esta tem um fim em si mesma.
Se esse mesmo sujeito identifica algum tipo de motivação externa à atividade em si, ele não
consegue estabelecer a relação de fim em si para essa atividade e deduz que a faz apenas pela
motivação extrínseca.
Quando um indivíduo observa outra pessoa se engajar em alguma atividade, ele infere que o
outro está intrinsecamente motivado para se envolver naquela atividade na medida em que não
percebe contingências extrínsecas salientes, inequívocas e suficientes às quais possa atribuir o
comportamento do outro. A teoria da autopercepção propõe que uma pessoa se envolve em um
processo similar de inferência sobre seu próprio comportamento e seu significado (LEPPER;
GREENE; NISBETT, 1973, p. 129, tradução nossa).
condição de que um dos grupos faria os desenhos para ganhar um prêmio (um certificado
dourado com um laço), outro grupo não teria nenhum prêmio esperado, mas receberia o
mesmo prêmio que o primeiro de maneira inesperada, e o terceiro grupo, como controle,
não receberia nenhum prêmio.
O resultado comprovou a hipótese da superjustificação ao demonstrar que as crianças
que tinham a antecipação do prêmio mostraram menos interesse intrínseco na atividade que
as crianças que não receberiam o prêmio (controle) ou mesmo que aquelas que receberam
o prêmio de maneira inesperada (segundo grupo). Como esperado, as crianças do primeiro
grupo perderam rapidamente o interesse na tarefa e gastaram menos tempo desenhando.
Os autores argumentam que os resultados do experimento comprovam ser possível o fenô-
meno da superjustificação.
Os autores ainda chamam a atenção para o fato de que a recompensa, mesmo simbólica,
produziu o efeito da superjustificação nas crianças:
A manipulação bastante limitada empregada neste estudo, envolvendo uma recompensa sim-
bólica diferente daquelas rotineiramente empregadas nas salas de aula, foi suficiente para pro-
duzir diferenças significativas no comportamento subsequente das crianças (LEPPER; GREENE;
NISBETT, 1973, p. 134, tradução nossa).
a) que o nível de interesse intrínseco seja mínimo ao ponto de se exigir a adoção de uma
recompensa extrínseca;
b) que a atividade seja tal que seu envolvimento só seja percebido após um longo tempo ou
após a conquista de um certo domínio.
Esse tipo de prática gera muitas críticas, tanto de consumidores, que se frustram, quanto
da comunidade de desenvolvimento de games, que a considera uma banalização do pro-
cesso. Não que a aplicação da tríade PBL seja ruim ou um mal em si, mas aplicar somente
esse dispositivo, sem cuidados com toda a filosofia da gamificação, cria mais problemas que
soluções:
Pessoas curiosas sobre gamificação começam a acreditar que a soma total da metodologia de
gamificação é meramente o processo de adicionar pontos, insígnias e classificação aos produtos.
Com justiça, isso os leva a acreditar que gamificação é uma moda superficial sem muito impac-
to (CHOU, 2014, p. 17, tradução nossa).
1
A tríade pontos, insígnias e classificação é a mais corrente e usada na gamificação, a ponto de gerar a criação do acrô-
nimo que praticamente se tornou sinônimo de gamificação.
Gamificação, motivação e a essência do jogo 47
Somente incorporar essas mecânicas e elementos de jogo aos processos não os torna moti-
vadores e divertidos; por isso, inclusive, definições de gamificação que levam apenas esse
aspecto em consideração (como a mencionada por mim no início deste tópico) são limitadas
e injustas.
As técnicas associadas a esquemas como o PBL, e que utilizam como motor central
apenas recompensas extrínsecas, apoiam-se em laços muito frágeis baseados no comporta-
mento humano. Por vezes, a aplicação desses esquemas se torna inclusive behaviorista. As
recompensas estreitam nosso foco (“vou fazer isso para ganhar aquilo”), o que é interessante
quando as metas são claras e objetivas, mas pouco útil quando existe a necessidade de uso
da criatividade para solução dos problemas. Um dos motivos para isso pode ser o modo
como usamos o cérebro. Enquanto as motivações extrínsecas são mais pragmáticas e focam
nos resultados (faça isso para ganhar aquilo), as motivações intrínsecas são mais sensoriais e
focam no processo (você faz porque é divertido fazer).
Outro problema associado às motivações extrínsecas é o aspecto behaviorista delas.
Behaviorismo é o campo da psicologia que estuda, em parte, o condicionamento pelo com-
portamento, como o reflexo condicional de Petrovich Pavlov no behaviorismo clássico, que
acredita que todo comportamento surge de um estímulo e, portanto, podemos condicionar
qualquer comportamento com o estímulo correto.
Se pensarmos bem, a recompensa extrínseca pode exercer um papel behaviorista ao
estabelecer que se você faz a tarefa, ganha prêmio; se não faz, não ganha prêmio; tentando
assim condicionar seu comportamento pelo estabelecimento de recompensas externas à
atividade em si. Porém, o laço aqui é frágil, pois existe a chance de se perder a motivação se
a recompensa for tirada do processo (o processo não se torna autotélico).
Isso porque quando fazemos algo por motivadores extrínsecos, nossos olhos estão no objetivo,
e tentamos usar o caminho mais rápido e de menor esforço para alcançá-lo. Como consequên-
cia, muitas vezes abandonamos nossas habilidades para ser criativos, pensar de maneira expan-
siva e refinar nosso trabalho (CHOU, 2014, p. 354, tradução nossa).
de se desenvolver, mas que o ambiente deve dar suporte a isso; por isso, o foco não deveria
estar na motivação em si, mas na criação de um ambiente fértil para o prazer autotélico
(RYAN; DECI, 2000).
Talvez nenhum fenômeno individual reflita melhor o potencial positivo da natureza humana
que a motivação intrínseca, a tendência inerente para procurar novidades e desafios, aumentar
e estender a própria capacidade, explorar e aprender. Desenvolvimentistas reconhecem que,
desde o nascimento, as crianças, em seus estados mais saudáveis, são ativas, inquisitivas, curiosas
e brincalhonas [playful], mesmo na ausência de recompensas específicas (RYAN; DECI, 2000,
p. 70, tradução nossa).
Para os autores, necessitamos de três elementos para que esse ambiente seja propício:
Segundo Ryan e Deci (apud WERBACH; HUNTER, 2012), qualquer atividade que
traga duas dessas necessidades humanas tende a ser naturalmente de motivação intrínseca.
Jogos são perfeitas ilustrações das lições das teorias de autodeterminação. Por que as pessoas
jogam? Como já dissemos, ninguém as força. Mesmo um simples jogo de Sudoku ativa as ne-
cessidades intrínsecas por autonomia (que puzzle eu resolvo e como o resolvo depende apenas
de mim), competência (eu descobri como!), e afinidade (posso compartilhar o feito com meus
amigos) (WERBACH; HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa).
externa). Por outro lado, um adolescente que faz o dever de casa porque sabe que isso
contribui para seu desenvolvimento pessoal e refletirá na sua carreira futura também o faz
sob motivação extrínseca (regulação integrada, interna), porém com um grau de escolha e
autonomia diferentes do caso anterior. Enquanto, no primeiro caso, o locus da causalidade é
externo, no segundo é mais próximo do interno.
O comportamento motivado extrinsecamente por regulação introjetada acontece para
se evitar a culpa ou a ansiedade ou por orgulho. Quando a regulação é integrada, o compor-
tamento acontece por conta de uma congruência com valores e necessidades internos da
pessoa (RYAN; DECI, 2000). Ao projetar uma plataforma de gamificação baseada em
motivações extrínsecas como PBL, deve-se tomar cuidado para que essas recompensas le-
vem em conta o ambiente da atividade, para que se relacionem aos três elementos básicos
da motivação intrínseca.
Considerações finais
Cada processo de gamificação é único, e estabelecer os seus parâmetros e requisitos é
trabalho árduo que exige profundo conhecimento do processo em si e das possíveis estra-
tégias de gamificação (e do que é a gamificação de verdade). O que tento introduzir aqui é
que a gamificação não pode ser enxergada como algo distinto e distante do que é o jogar, e
que não pensar na filosofia do jogo em si e na psicologia da motivação nos faz perder
oportunidades de sucesso.
Gamificação usa os três motivadores intrínsecos para gerar resultados poderosos. Níveis e acu-
mulação de pontos podem ser marcadores de competência e domínio. Dar aos jogadores esco-
lhas e uma gama de experiências conforme progridem alimenta o desejo por autonomia e
agência. As interações sociais como compartilhamento no Facebook ou as insígnias que você
pode mostrar para os amigos respondem à necessidade humana por afinidade (WERBACH;
HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa).
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A emergência da gamificação na
cultura do jogo
4
Fabricio Fava
1. Nos jogos propriamente ditos (sejam eles com objetivo de entretenimento ou nos cha-
mados serious games):2 nesse contexto, temos, por exemplo, o jogo FoldIt (2008), no qual
os jogadores podem contribuir para a pesquisa científica lidando com paradigmas de
resolução de problemas ainda sem solução. Outro exemplo é The Big Easy Budget
(2016),3 que utiliza dados abertos da cidade de Nova Orleans e permite que os jogado-
res experimentem o papel de prefeito e busquem formas de criar um orçamento melhor para
a cidade. Pode-se citar, ainda, America’s Army: desenvolvido pelo exército norte-americano,
2
Apesar de a diversão ser um fator importante, os serious games têm uma preocupação maior com aspectos como
aprendizado e avaliação, podendo ser aplicados para treinamento (militar, de pilotos, médico etc.), educação, medicina
(reabilitação física ou cognitiva) etc.
3
Jogo disponível em: <bigeasybudgetgame.com/>. Acesso em: 4 abr. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 53
o game simula situações vivenciadas por soldados durante missões de combate e tem
sido responsável por dois fatos interessantes (SINGER, 2010): o primeiro é que, por
causa dele, 30% dos jovens americanos passaram a ter uma melhor impressão sobre o
exército; o segundo é que tem funcionado como uma ferramenta de recrutamento com
melhor retorno de investimento que todas as outras formas de publicidade juntas,
mesmo tendo um gasto médio anual de US$ 3,28 milhões ante os US$ 8 bilhões gastos
com propaganda para tal fim.
Muitas ações também têm utilizado os videogames no contexto de ensino e aprendiza-
gem buscando ampliar o envolvimento e a motivação dos alunos a partir de uma expe-
riência lúdica. Essas soluções têm adotado os jogos como ferramentas de ensino e os
resultados parecem bastante promissores, como é o caso de Minecraft, que possui uma
comunidade online4 na qual os professores podem trocar experiências, ideias e inspira-
ções sobre o uso do jogo em suas escolas. As estratégias de uso dos games na educação
têm crescido, principalmente com o aumento da penetração dos dispositivos móveis. São
inúmeros os aplicativos e as plataformas projetados com fins de aprendizagem, como é
o caso de Duolingo, para aprendizagem de idiomas; Udemy, com cursos diversos, como
programação, culinária ou comunicação oral; e Instinct, para o ensino de música.
A publicidade é outro segmento que sempre buscou soluções capazes de gerar experi-
ências emocionais e interativas que criassem uma conexão entre produtos e pessoas. Essa
estratégia é utilizada desde antes das tecnologias digitais, como no caso da cervejaria
Carslberg, que publicou um anúncio de contracapa de revista com instruções para torná-
-lo um abridor de garrafas.5 O uso dos advergames, ou jogos publicitários, tem se mos-
trado uma ferramenta interessante e recursiva para esse propósito, como é o caso da ação
NewsBraker Live para o site de notícias msnbc.com. Baseada no jogo Breakout,6 a promo-
ção transformou os espectadores das salas de alguns cinemas norte-americanos em
controles humanos.
Os jogos digitais também estão ocupando cada vez mais os espaços artísticos por meio
do que vem sendo chamado de game arte. No Brasil, uma seleção de jogos como forma
de expressão artística pode ser observada anualmente no Festival Internacional de Lin-
guagem Eletrônica (FILE). O artista e professor norte-americano Andrew Hieronymi,
por exemplo, apresentou em 2006 a instalação Move,7 que permitia que os participantes
experimentassem algumas ações realizadas pelos avatares8 nos videogames.
4
O portal Minecraft in Education pode ser acessado em: <www.minecraftedu.com>. Acesso em: 19 ago. 2015.
5
Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=f6R9lPYdU9I> Acesso em: 10 mar. 2014.
6
Em Breakout o jogador controla uma paleta na parte inferior da tela e, por meio dela, deve rebater uma bola com o
objetivo de quebrar uma sequência de blocos dispostos na parte superior da tela.
7
Instalação artística de Andrew Hieronymi permite a experimentação de seis diferentes ações próprias dos videogames:
pular, evitar, perseguir, jogar, esconder e coletar. Disponível em: <users.design.ucla.edu/~ahierony/move/> Acesso em:
10 jul. 2014.
8
Avatares são a representação do jogador dentro do jogo. Eles são projetados para gerar uma experiência de identifica-
ção como o personagem.
54 Gamificação em debate
2. Nos simuladores: embora alguns simuladores sejam comercializados como jogos, eles
essencialmente não são considerados como tal. O uso dos simuladores é normalmente
adotado para fins de aprendizagem, principalmente em atividades que envolvem um alto
valor financeiro ou oferecem risco de vida às pessoas. As principais delas são o treina-
mento de pilotos, médicos ou militares, como é o caso de VirtSim.9
3. No design inspirado nos jogos: isso refere-se à busca por recursos e soluções de design
inspirados na lógica dos games, no sentido de provocar, de alguma maneira, experiências
de envolvimento e diversão, mas que não são caracterizados efetivamente como jogos.
O caso mais conhecido certamente é o projeto The Fun Theory,10 de iniciativa da
Volkswagen, dedicado a trabalhar o pensamento de que a diversão é uma maneira im-
portante de influenciar a mudança de comportamento das pessoas para melhor. Outro
exemplo interessante ocorreu em uma estação de metrô em Moscou, onde, com o intuito
de promover os Jogos de Inverno de Sochi e levar o esporte à vida cotidiana, encorajando
as pessoas a terem uma vida mais saudável, o Comitê Olímpico Russo instalou um
terminal de autoatendimento que liberava um passe do transporte caso o usuário reali-
zasse 30 movimentos de agachamento em menos de dois minutos.
Mais recentemente, uma plataforma interativa denominada PRAMA11 chamou a aten-
ção ao favorecer a prática de exercícios físicos baseada em jogos na academia Asphalt
Green, sediada em Nova York. Auxiliada por sensores que respondem à pressão e ao
toque e marcações espaciais, numéricas e luminosas dispostas nas paredes e no solo, a
solução permite a realização de diversas atividades e contribui para a perda de peso e o
desenvolvimento de habilidades de velocidade, força e equilíbrio, entre outras.
O design lúdico também pode ser encontrado, por exemplo, no Google, que, desde 1998,
passou a criar e exibir em sua página inicial diferentes e divertidas intervenções de de-
sign em seu logotipo chamadas de Doodles.12 Inicialmente, os Doodles eram imagens
estáticas, mas, a partir de 2010, eles passaram a ganhar frequência e complexidade com
o uso de animações e interação, como o produzido em celebração ao jogo Pac-Man.13
Aplicativos para dispositivos móveis também estão entre as soluções de design que se
apropriam da lógica e das características dos games como mecanismo de geração de
envolvimento. Um exemplo bastante conhecido é o Foursquare (2009), um aplicativo de
rede social baseado em geolocalização que ganhou bastante repercussão já no ano de seu
lançamento (AGUIARI, 2011) com um modelo de interação baseado em mecânicas de
jogos. Os usuários tinham por objetivo informar o local (restaurante, universidade, praça,
concerto musical) em que se encontravam e/ou localizar pessoas próximas a eles. A cada
9
VirtSim é um conceito de treinamento virtual imersivo desenvolvido pela Motion Capture. Por meio de um criador de
cenários, os usuários do VirtSim podem criar e modificar ambientes de treinamento para uso personalizado. Disponível
em: <www.motionreality.com/virtsim-military> Acesso em: 10 ago. 2015.
10
Disponível em: <www.thefuntheory.com>. Acesso em: 28 jan. 2018.
11
Disponível em: <www.pavigym.com/uk/products/product/prama/>. Acesso em: 7 abr. 2016.
12
Disponível em: <www.google.com/doodles>. Acesso em: 3 ago. 2015.
13
Disponível em: <www.google.com/doodles/30th-anniversary-of-pac-man>. Acesso em: 28 jan. 2018.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 55
vez que a presença em determinado local era informada – por meio de check-ins –, o
usuário acumulava pontos que geravam um ranking de classificação entre a sua rede de
contatos. A pontuação adquirida era atualizada semanalmente, estimulando a continui-
dade no uso do aplicativo. A constância com que o usuário frequentava determinado
local tornava-o o prefeito do lugar, conferindo-lhe status entre a comunidade. Além
disso, usuários mais ativos acumulavam uma espécie de troféu (badge) como recompensa
pela sua interação.
A emergência da gamificação
O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi possui um dos trabalhos mais relevantes na ten-
tativa de compreender a questão da felicidade como um processo de provimento de experi-
ências. No livro Beyond boredom and anxiety (1975), o autor desenvolve uma extensa pesquisa
sobre atividades que são agradáveis em si mesmas. Sua hipótese era que a compreensão
dessas atividades poderia oferecer pistas para uma forma de motivação capaz de tornar-se
um importante recurso humano.
O resultado é um modelo teórico do divertimento: a teoria da experiência de fluxo (flow
experience), composta por oito elementos de satisfação. O fluxo refere-se, basicamente, ao
sentimento de foco total em uma atividade, em que o indivíduo experimentaria um alto
grau de prazer e satisfação. Resultantes desse tipo de experiência estão o envolvimento, a
motivação intrínseca, uma abertura à informação, a fusão de ação e consciência e a alteração
da noção do tempo.
Em seus estudos, Csikszentmihalyi percebeu uma carência de experiências de fluxo em
atividades cotidianas. Elas normalmente eram favorecidas por atividades criativas, como
arte e ciência. Os games, todavia, seriam um meio eficaz de vivenciá-las: “jogos são ativida-
des de fluxo, e jogar é fluxo por excelência” (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, p. 36-37,
tradução nossa). Percebendo os jogos como um meio importante de promoção de experi-
ências de envolvimento, Csikszentmihalyi já indicava uma necessidade de se pensar a vida
para funcionar como os jogos.
O contexto, no entanto, não se mostrava propício para promover tal ideia. Só mais
recentemente pôde-se notar alguns fatores que favoreceram essa nova realidade: (a) estudos
sobre a psicologia positiva ganharam força (CSIKSZENTMIHALYI, 1990; ISEN, 1993;
NORMAN, 2008); (b) o crescimento da indústria dos videogames promoveu uma conso-
lidação dos modelos de interação e práticas de design de jogos (SALEN; ZIMMERMAN,
2004; SCHUYTEMA, 2008; SCHELL, 2011); (c) princípios e técnicas de projeto para a
promoção de experiências do usuário estão mais bem definidos (NIELSEN, 1993;
56 Gamificação em debate
14
Jogadores casuais jogam pelo puro prazer de jogar, por isso possuem baixas habilidade, motivação pessoal para explo-
ração de ambientes e tolerância para erros (FAVA, 2010).
A emergência da gamificação na cultura do jogo 57
(DETERTING et al., 2011). Embora não seja um consenso, o termo gamification acabou
se firmando e ganhando notoriedade quando empresas como Bunchball e Badgeville pas-
saram a utilizá-lo para descrever suas plataformas de comportamento. A primeira delas foi
a Nitro, desenvolvida pela Bunchball em 2007, que, embora ainda não mencionasse o termo
gamificação, permitia a integração de mecânicas de jogos em redes sociais, aplicativos mó-
veis e sites. O exemplo que marcou a aplicação desse conceito, no entanto, foi o Foursquare
(2009), que mencionamos anteriormente. A utilização da mecânica de jogos ajudou esse
aplicativo, lançado em 2009, a atingir cerca de 5 milhões de usuários apenas no primeiro
ano. No ano seguinte, esse número já havia triplicado (AGUIARI, 2011).
Os resultados positivos alcançados por meio da adoção de soluções de design gamifica-
das – sobretudo a partir do sucesso do Foursquare – levaram a um grande entusiasmo acerca
desse conceito. As possibilidades de aplicação da lógica do envolvimento com os jogos di-
gitais parecem não se limitar a contextos específicos e passaram a ser adotadas para os mais
diversos objetivos. Uma enorme variedade de aplicações da gamificação começou a ser
usada visando atingir os mais diversos objetivos, como é o caso da Nike+, rede para incen-
tivar as pessoas a praticarem atividades físicas e que atualmente possui quase 30 milhões de
usuários;15 do My Starbucks Rewards, programa de fidelidade de rede de cafés Starbucks, que
possui mais de 10 milhões de usuários e ajudou no crescimento de 18% da receita líquida
da empresa em um trimestre;16 do Opower, que trabalha com empresas fornecedoras de
energia e, por meio da gamificação, ajudou a motivar os consumidores de seus parceiros a
reduzir mais de 9,5 terawatts/hora de energia;17 da SAP Community Network, rede de de-
senvolvimento da SAP que teve um aumento superior a 1.000% no registro de atividades
como criação de conteúdo, comentários e feedbacks com o uso de componentes dos jogos;18
e da Khan Academy, uma plataforma de ensino online que tem motivado o aprendizado de
estudantes ao redor do planeta.19
Proliferaram-se também uma série de ações para discussão e promoção do conceito:
publicações, como Games-Based Marketing (ZICHERMANN; LINDER, 2010), For the
Win (WERBACH; HUNTER, 2012) e Gamify (BURKE, 2014); eventos e conferências,
como GSummit, Gamification World e Gamification Research Network; e cursos online,
como Gamification (2012),20 disponibilizado na plataforma de ensino Coursera,21 e Gami-
fication Design (2014, 2015), mantido pelo portal iversity.22
15
Disponível em: <openforum.hbs.org/challenge/understand-digital-transformation-of-business/data/run-with-data-on-
-nike>. Acesso em: 9 mar. 2016.
16
Disponível em: <www.marketingmag.ca/brands/why-starbucks-is-winning-at-loyalty-152974>. Acesso em: 10 mar. 2016.
17
Dado disponível e constantemente atualizado em: <opower.com>. Acesso em: 7 mar. 2016.
18
Disponível em: <www.bunchball.com/sites/default/files/case_studygamification_sap_community_network-july2013.
pdf>. Acesso em: 10 mar. 2016.
19
Disponível em: <www.khanacademy.org>. Acesso em: 4 mar. 2016.
20
Ministrado pelo professor Kevin Werbach, da Universidade da Pensilvânia. Na primeira edição, teve a participação de mais
de 140 mil alunos, tornando-se o curso mais popular oferecido pela universidade na plataforma de ensino Coursera.
21
Disponível em: <www.coursera.org/course/gamification>. Acesso em: 4 ago. 2015.
22
Disponível em: <iversity.org/en/courses/gamification-design>. Acesso em: 5 ago. 2015.
58 Gamificação em debate
Figura 4.1 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamification.
Fonte: <google.com/trends/explore#q=gamification>. Acesso em: 9 abr. 2016.
Observação: a projeção do gráfico não indica o volume de pesquisas absoluto, mas uma
representação relativa calculada de acordo com a popularidade dos termos procurados por
região e dentro de certo intervalo de tempo.
As pesquisas no Google feitas com a palavra traduzida para o português, gamificação,
começam a ser quantificadas em março de 2013 e ganham relevância a partir de outubro.
É possível observar uma tendência de crescimento ao logo do tempo, embora marcada
por uma variação recorrente na curva de interesse (Figura 4.2).
Figura 4.2 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamificação.
Fonte: <google.com/trends/explore#q=gamificação>. Acesso em: 9 abr. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 59
Além disso, o relatório Hype cycle for emerging technologies, proposto anualmente pela
companhia de pesquisa e consultoria em tecnologia da informação Gartner Inc., apresenta
uma análise de maturidade de quase 2 mil tecnologias emergentes. Seus resultados acerca
de estimativas de uso da tecnologia são sintetizados em um esquema que ilustra a expecta-
tiva, o período de maturidade e sua previsão de adoção. A menção ao termo gamification
aparece pela primeira vez no gráfico de 2011 (Figura 4.3).
Expectativas
Internet TV
Streams de atividade Pagamentos sem contato (NFC)
Computação em nuvem privada
Transmissão sem fio
Realidade aumentada
Social analytics Computação em nuvem
Compra coletiva Tablet
Gamificação Assistentes virtuais
Impressão 3D
Reconhecimento de imagem Bancos de dados em memória principal (IMDB)
Context-enriched services
Reconhecimento de gesto
Tradução automática da fala
Internet das coisas (IoT) Serviços de comunicação máquina a máquina (M2M)
Respostas de perguntas em linguagem natural (NLQA) Aplicativos de
Robôs móveis Redes Mesh: sensores geolocalização
Big data e extreme information
Processamento e informação de gestão (SIG)
Social TV Reconhecimento de voz
Análise de vídeo (VCA) para Análise preditiva
atendimento ao cliente Plataformas
web/na nuvem Lojas de aplicativos
Interface cérebro-computador (BCI)
Métodos de autenticação biométrica
Computação quântica
Idea management
Aperfeiçoamento humano Desktop virtual online QR code/color code
Manufatura aditiva Mundos virtuais Consumerização
Observando esses gráficos, não é de se estranhar o otimismo nas projeções feitas por
diversos institutos de pesquisa em meados de 2011 em relação ao crescimento da gami-
ficação ao longo dos anos: “até 2015, mais de 50% das organizações irão gamificar seus
processos de inovação” (GARTNER, 2011a); “até 2014, mais de 70% das maiores orga-
nizações do mundo terão pelo menos uma aplicação gamificada” (GARTNER, 2011b);
“o mercado da gamificação, estimado em U$100 milhões em 2011, atingirá U$2.8 bilhões
até 2016” (M2 RESEARCH, 2011); “o mercado de gamificação irá crescer de U$ 421,3
milhões em 2013 para U$ 5,502 bilhões até 2018” (MARKETSANDMARKETS, 2013).
60 Gamificação em debate
23
Disponível em: <webinknow.com/2013/07/jetblue-badges-gamification-marketing-fails-to-take-off.html>. Acesso em:
15 mar. 2016.
24
No método de gestão à vista, informações relevantes como indicadores, status e tendências são divulgadas a colabora-
dores e gestores, permitindo o acompanhamento de dados e facilitando os processos de comunicação e engajamento
dos colaboradores.
25
Disponível em: <articles.latimes.com/2011/oct/19/local/la-me-1019-lopez-disney-20111018>. Acesso em: 17 mar. 2016.
26
Disponível em: <cmo.com/articles/2012/10/24/game-over-for-gamification.html>. Acesso em: 17 mar. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 61
2012
2011
Platô de produtividade
2014
Rampa da consolidação
Vale da desilusão
Gatilho tecnológico
Figura 4.4 – Gráfico isolando a posição que a gamificação ocupa na curva de tecnologias emergentes propos-
ta pela Gartner ao longo dos anos (tradução nossa).
Fonte: <edulearning2.blogspot.com.br/2014/09/gartner-hype-cycle-2014-gamification-on.html>. Acesso em: 18 mar. 2016.
Uma análise breve acerca desse movimento descendente na curva de expectativas pos-
sibilita inferir alguns pontos, como: o momento da gamificação está passando; a publicidade
em torno de sua aplicação se mostrava muito otimista; e a aplicação do conceito seria
apenas uma estratégia de marketing. Seguimos agora no sentido de tecer algumas reflexões
sobre esses pontos, relativizando-as com manifestações de alguns críticos desse conceito.
Críticas à gamificação
Jesse Schell (2010), na apresentação intitulada Design outside the box,27 por exemplo,
discute a aplicação indiscriminada da gamificação ilustrando diversos cenários possíveis a
partir de uma disseminação massificada desse modelo. O professor alertou para o fato de
que a integração de tecnologias dos jogos com a vida das pessoas pode levar a um fenômeno
que ele chamou de Gamepocalypse, em que as empresas passariam a oferecer elementos
motivadores para qualquer tipo de problema. Schell exemplifica essa noção imaginando um
cenário no qual um fabricante de escovas de dente, por exemplo, inclui em seus produtos
um dispositivo que recompensa uma pessoa que atinge um tempo determinado de escovação
27
O vídeo da palestra pode ser acessado na galeria de vídeos do site do evento: <www.dicesummit.org/video_gallery/
video_gallery_2010.asp>. Acesso em: 30 mar. 2016.
62 Gamificação em debate
ou pela quantidade de vezes que ela escova os dentes diariamente. Essa preocupação se
estende ao uso desse tipo de incentivo para produtos maléficos, como o cigarro.
Críticos de jogos argumentam que a gamificação ignora a realidade cotidiana aprovei-
tando-se de fantasias. Heather Chaplin (2011) aponta que a aplicação da gamificação não
modifica ou melhora um problema, mas a percepção do usuário quanto à situação em que
se encontra. John Teti (2012), por sua vez, afirma que, em vez de tornar o trabalho gratifi-
cante, ela faz o trabalho parecer gratificante.
No texto Gamification is bullshit!, Ian Bogost (2011a) critica um evento da área e utiliza
o conceito de bullshit (besteira, bobagem) para se referir ao modo como o termo gamificação
é empregado:
Gamification é bobagem de marketing, inventada por consultores como um meio para capturar
os animais selvagens e cobiçados que são os videogames e domesticá-los para uso no deserto
acinzentado e sem esperança do mercado corporativo, em que a bobagem já reina de qualquer
maneira (BOGOST, 2011a, tradução nossa).
Vale ressaltar que Bogost não desconsidera o potencial dos games para a mudança de
atitudes e crenças, na medida em que defende o seu poder de persuasão por meio da repre-
sentação baseada em regras e interações (BOGOST, 2007) – em vez de formas de comuni-
cação por voz, escrita, imagem ou vídeo. Para ele, no entanto, a gamificação não tem a ver
com o design de jogos (BOGOST, 2011b), pois, enquanto este trata de dificultar a tarefa
dos jogadores, exigir deles uma variedade de habilidades e questionar a experiência a partir
do uso de narrativas complexas, aquela não se propõe a atingir esses objetivos, mas estaria
interessada unicamente em maximizar a atividade dos usuários. Nesse sentido, a gamifica-
ção reduziria o ato de jogar a uma experiência de estímulo-resposta.
Bogost propõe a substituição do termo gamification por exploitationware, pois acreditar
que este
captura as reais intenções de uma estratégia de gamificação: um jogo de fazer dinheiro, escolhido
para capitalizar um momento cultural, por meio de serviços sobre os quais eles [os consultores de
marketing] têm experiência questionável e para trazer resultados que durem apenas o tempo sufi-
ciente para preencher suas contas bancárias antes que a próxima tendência boba apareça
(BOGOST, 2011a, tradução nossa).
Ambiente de oportunidades
Kam Star, fundador da Playgen, um estúdio de desenvolvimento de serious games e
soluções gamificadas baseado em Londres, apresentou um estudo que pode nos auxiliar a
formular uma opinião mais concreta sobre a gamificação. Na palestra Why 76% of gamification
efforts fail and how to be in the successful 24% (STAR, 2014), proferida no Adobe Summit
2014, Kam apresenta os resultados de um levantamento realizado em mais de 3.500 publi-
cações. Destas, 300 descreviam casos em que foram aplicadas estratégias de gamificação.
O primeiro ponto descoberto foi que, dentre esses trabalhos, 94% reportaram aumento de
motivação em relação à prática de atividade ou uso de serviços.
A expressividade desse número poderia nos levar a uma inferência de que a gamificação
é uma estratégia certeira. Ao analisar os dados das pesquisas, no entanto, 51% delas não
apresentaram diferenças significativas; 25% reportaram diminuição nos resultados; e apenas
24% demonstraram melhorias de produtividade ou uso de serviços (alguns bastante signi-
ficativos, com até 300% de aumento).
Um resultado positivo de apenas 24% pode não parecer alto, mas é considerável se o
compararmos aos números da própria indústria de videogames: somente 20% dos jogos
que vão para o mercado dão lucro para os estúdios de criação.28 Se considerarmos o re-
torno de investimento dos jogos que entram em produção, esse número é ainda menor:
4%, resultado semelhante aos 7% que representam o retorno de investimento da indústria
de cinema inglesa.29
O que nos chama a atenção, na verdade, é que esses 24% indiciam um caminho ligado
à gamificação que acreditamos merecer um olhar mais atento: a promoção da experiência
lúdica como via de transformação de comportamentos e hábitos humanos. Conforme
observamos, as críticas à gamificação tendem a recair em sua aplicação a partir de uma
abordagem behaviorista, baseada em estímulo e resposta. Acreditamos, no entanto, que a
gamificação não se limita a um processo que premia comportamentos pela aplicação de
elementos dos jogos. Para que o seu projeto funcione, o design de jogos deve ser apreendido
de maneira mais ampla, como uma prática sistêmica.
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Narrativa e gamificação, ou
com quantos pontos se faz uma
5
boa história?
Fábio Medeiros
Dulce Márcia Cruz
Os games são uma forma de expressão cultural que fascina e envolve milhões de joga-
dores há várias décadas. Se os jogadores eram (ou talvez ainda sejam, no senso comum)
identificados como meninos sedentários e solitários, sentados em sofás com joysticks nas
mãos, no século XXI essa imagem já não corresponde à realidade. Jogadores têm qualquer
idade ou gênero, se reúnem em grupos massivos para vencer desafios, tocam e cantam
músicas juntos, praticam atividades físicas que vão de yoga e dança a movimentos de lutas
e corridas, ou mesmo caminham pela cidade jogando games, tudo isso por meio de seus
consoles, computadores ou smartphones. Os games, aproveitando-se da sua característica
transmidiática, estão se misturando às rotinas diárias convencionais, tornando nubladas as
fronteiras entre o mundo físico e o digital.
A popularização dos games, por sua vez, criou condições para que o modo de pensar dos
seus criadores, os designers de jogos, se tornasse atraente como uma proposta de mudança
da realidade, que ficou conhecida como gamification ou gamificação. Gamificação é o uso
ou a aplicação de elementos, sistemáticas e mecânicas de jogo em situações de não jogo ou
contextos fora de jogo, com o objetivo de elevar o nível de engajamento dos indivíduos
numa dada circunstância planejada para isso (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011).
Ativa defensora do uso de jogos na realidade, Jane McGonigal (2012) relaciona quatro
recompensas intrínsecas dos games que ajudariam a construir a nossa felicidade se fossem
adotadas em vários setores da sociedade: o trabalho gratificante, a experiência ou esperança
de ser bem-sucedido, a busca pela conexão social e a chance de ser parte de algo maior que
nós mesmos. McGonigal destaca que cada uma dessas recompensas varia muito de pessoa
para pessoa, mas, se utilizadas, poderiam ser a base para melhorar a experiência humana
representando “motivações mais poderosas além de nossas necessidades básicas” e “formas
de se envolver profundamente com o mundo a nossa volta – com o ambiente, com outras
pessoas e com causas e projetos maiores do que nós mesmos” (MCGONIGAL, 2012 p. 58).
Tal força para conseguir engajamento e motivação dos jogadores pode estar presente nas
68 Gamificação em debate
quatro características comuns aos jogos que são apontadas por McGonigal (2012): a volun-
tariedade para participação, o sistema de feedback, a definição de regras e a proposição de
metas ou objetivos.
Essas características atuam como um ciclo, direcionando as ações dos jogadores e
mantendo-os informados sobre o objetivo, enquanto dão retorno sobre seu desempenho
e as decisões tomadas. Esse ciclo do jogo também tem sido considerado por alguns auto-
res (GEE, 2014; JOHNSON, 2005) semelhante ao processo de ensino e aprendizagem
formal, em que os alunos são informados sobre o que devem aprender e, baseados nisso,
realizam avaliações para identificar seu desempenho. Porém, a diferença é que enquanto
os jogadores mantêm uma relação positiva com seus erros, utilizando-os para crescimento
e aprendizagem no desenvolver do jogo, os estudantes identificam as falhas como um
fracasso a ser evitado.
A discrepância entre os dois grupos na percepção sobre os resultados de suas ações se
dá principalmente pelos ciclos de feedback e pelos riscos vinculados às suas escolhas.
Enquanto nos games os jogadores obtêm respostas frequentes sobre como estão se saindo
em relação aos seus objetivos, na escola os estudantes demoram mais e têm menos opor-
tunidades de avaliação e retorno sobre seu desempenho. Ali, o peso e o risco de fracasso
sem possibilidade de reabilitação envolvidos em cada avaliação são altos, e os momentos
em que elas acontecem são sempre acompanhados de ansiedade. Enquanto isso, nos ga-
mes, o jogador perde muito pouco ao errar, pelo contrário, tomar uma decisão errada é
visto justamente como parte do processo de aprendizagem para dominar o jogo (LEE;
HAMMER, 2011).
Essa aproximação da gamificação com a educação foi apontada por Fadel et al. (2014,
p. 6) ao lembrar que, mesmo antes de ser nomeada dessa forma, essa estratégia motiva-
cional já vinha sendo aplicada na educação há muito tempo: “a criança podia ter seu
trabalho reconhecido com estrelinhas (recompensa) ou as palavras iam se tornando cada
vez mais difíceis de serem soletradas no ditado da professora (níveis adaptados às habili-
dades dos usuários)”.
Uma crítica feita à gamificação é que ela seria uma perversão dos games, uma ação de
marketing com intuito de levantar empresas e instituições pelo uso de pontos, distintivos e
rankings para animar e direcionar seus colaboradores e/ou clientes. Em um texto que gerou
polêmica, com o provocativo título “Gamification is bullshit”, Bogost (2011) acusa a gami-
ficação de estar se resumindo ao uso de regras, mecânicas e dinâmicas, perdendo sua essên-
cia de jogo.
E qual seria essa “essência” do jogo que estaria sendo perdida na gamificação? Segundo
Jesse Schell, no clássico The art of game design: a book of lenses (2012), os quatro elementos
essenciais dos games seriam: a estética, que está relacionada com a experiência sensorial do
usuário, aquilo que ele ouve, vê e sente; a mecânica, com suas regras e seus procedimentos,
o sistema que faz o jogo funcionar; a história, que tem sua base na narrativa, a sequência de
eventos que ocorre no game; e a tecnologia, que engloba tanto os materiais como a mídia
utilizados. Tais elementos que constituem os games são vistos por Schell numa relação
flexível, sem uma hierarquia, todos importantes e integrantes da experiência de jogar,
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 69
mesmo que alguns sejam mais visíveis para o jogador que outros. O menos visível seria a
tecnologia, em contraponto ao mais visível, a estética, enquanto a mecânica e a história
estariam num patamar intermediário.
Nesse sentido, considerando o potencial que as histórias têm de fortalecer o engaja-
mento e a motivação para efetivar o comprometimento dos jogadores, se poderia supor que
elas estariam auxiliando a gamificação em seus objetivos? Em outras palavras, se a narrativa
é um elemento fundamental dos games, da mesma maneira poderia ser entendida para a
efetividade da gamificação, possibilitando relacionar de maneira fluida a realidade vivida
com a experiência de jogo e tornando o processo gamificado tão interessante quanto um
game? Se sim, como os pesquisadores da educação estão utilizando esse conceito, conside-
rando as possibilidades de alcançar tais engajamento e motivação nas práticas educativas?
A partir dessas questões, o objetivo deste capítulo é fazer uma revisão bibliográfica para
verificar de que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação, e de que
forma os elementos narrativos vêm sendo incluídos pelos pesquisadores da área como inte-
grantes da proposta de ludificação da realidade. Para alcançar esse objetivo, foi feita uma
pesquisa exploratória da produção acadêmica constante nas bases de dados Scopus e Science
Direct, buscando os elementos da narrativa presentes nas propostas de gamificação.
O capítulo está estruturado em: primeiramente, uma discussão sobre a relação entre
games, narrativas e gamificação, discutindo algumas definições dos dois primeiros conceitos
e, superficialmente, como o terceiro tem alcançado popularidade em vários campos de co-
nhecimento; na sequência, são descritos a metodologia e os critérios para o levantamento
de literatura nas duas bases de dados; e, por fim, uma análise sintética dos resultados encon-
trados e algumas considerações finais.
• Enredo é o fio condutor da narrativa, que utiliza fatos verossímeis organizados numa
ordem lógica (começo, meio e fim) e tem como componente essencial o conflito. É o
conflito que cria a tensão que vai organizar os fatos e prender a atenção do leitor nos
momentos de exposição, complicação e clímax.
• Os personagens são os que fazem as ações acontecerem na narrativa, pertencem à his-
tória e participam efetivamente do enredo.
70 Gamificação em debate
• O tempo na narrativa é quando acontece a história, sendo sua duração variada, com o
tempo cronológico seguindo a ordem natural dos fatos, e o tempo psicológico, a imagi-
nação do narrador ou dos personagens.
• O espaço é o lugar onde acontece a ação, podendo variar bastante dependendo de como
é feita a narrativa. Estabelece uma interação entre os personagens e situa as suas ações
em determinado lugar.
• O ambiente é o espaço onde vivem os personagens e permite situar personagens no seu
contexto.
• O narrador conduz a história, podendo contar os fatos de fora da narrativa ou ativa-
mente, em primeira pessoa, como testemunha ou personagem.
Quando a narrativa começou a ser produzida nos ambientes digitais, suas caracterís-
ticas se transformaram em enredos multiformes, nos quais interatores passam a desenvol-
ver as ações e construir as histórias dentro de um espaço navegável, nos mais variados
ambientes e tempos, como bem demonstrou Murray (2003). Para a autora, o ambiente
digital, por meio de suas características participativas, imersivas, espaciais e enciclopédi-
cas, passou a oferecer um cenário para viver fantasias originadas em universos ficcionais
de modo intensificado e ativo. Como Murray, que vem da literatura para estudar a nova
forma de cultura representada pelos jogos digitais, muitos pesquisadores se debruçaram
sobre a questão de serem eles um produto literário ou se situarem no terreno dos jogos.
Para Gonzalo Frasca (2003), num artigo que gerou bastante polêmica, ludologistas são os
pesquisadores que focam seus estudos na mecânica dos jogos, e narratologistas, os que
argumentam que os jogos são intimamente ligados às histórias. Por certo tempo, discus-
sões foram travadas nos game studies para tentar chegar a um acordo. Kinder (2002, p.
122) propôs que os games são um tipo especial de narrativa porque envolvem geralmente
uma disputa entre participantes competindo por diversão, dinheiro, fama ou alguns outros
desafios, ou seja, seriam em sua maioria construídos como um conflito dramático, como
outras formas narrativas. Para Juul (2003), em vez de contar uma boa história, a qualidade
dos games estaria na liberdade que o jogador tem para explorar e compreender a estrutura
de um mundo irreal e para aprender a manipulá-lo.
Ryan (2006) defendia que uma grande diferenciação entre jogos de qualquer espécie e
games é que esses últimos integraram os jogos numa estrutura narrativa, então não basta
ganhar pontos, é preciso salvar o mundo, cumprir a missão, derrotar o inimigo final. Num
outro texto, Ryan (2001) afirma que, dos três componentes tradicionais da narrativa (ce-
nário, personagens, ação), apenas os dois primeiros fornecem elementos de design ou de
construção úteis. O terceiro, a ação, é deixado para o usuário. Da mesma maneira, para
Kinder (2002), as três principais distinções entre games e narrativas seriam as seguintes:
enquanto os games requisitam participação ativa dos jogadores, a maioria das narrativas
encoraja leituras passivas; enquanto o mundo dos games é propositadamente removido da
realidade, a maioria das narrativas é produzida para representar e influenciar a vida real; e
enquanto regras, objetivos e resultados são claros nos games, eles são geralmente ambíguos
nas narrativas.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 71
A qualidade diferente da narrativa interativa nos games já tinha sido apontada por
Murray em seus estudos pioneiros sobre ambientes digitais imersivos. Mas trazer essas
características para a realidade é um dos componentes da gamificação e um diferencial para
se entender que se trata de uma transposição, e não uma imersão, como entendia Murray
(2003). A autora propunha que, ao pensar o jogo, o designer de jogos criaria a coreografia
para que o interator dançasse, sentindo os prazeres da imersão, da agência e da transforma-
ção possíveis no ambiente digital.
A gamificação pretende estender essa dança e esses prazeres para o mundo real.
Deterding et al. (2011) afirmam que o uso de elementos do design de jogos em contextos
externos aos jogos pode tornar a gamificação valiosa para a mudança de rotinas, ao tornar
as atividades mais divertidas, motivadoras e engajadoras. Mas os objetivos da gamificação
também parecem mais prosaicos e voltados para um engajamento pensado em termos
pragmáticos, como os de Hamari, Koivisto e Sarsa (2014, p. 3026, tradução nossa) ao
destacar o aspecto do “processo de aprimorar serviços com possibilidades de ações (mo-
tivacionais) com o intuito de evocar experiências comuns a jogos e que promovam resul-
tados comportamentais esperados”.
Nessa linha, se percebe que a proposta principal da gamificação é reproduzir em con-
textos reais as experiências vividas nos games de modo a promover emoções poderosas,
podendo-se pressupor que, por meio da prática extensiva dessas atividades, até mesmo
emoções negativas transformam-se em positivas, como afirmam Lee e Hammer (2011), ou
que os jogadores desenvolverão qualidades pessoais, como persistência, criatividade e resi-
liência, que transcenderão para fora do jogo, como defende McGonigal (2012).
Justamente esse aspecto engajador e motivador da gamificação é o que parece ter con-
quistado corações e mentes de profissionais interessados em criar e manter tais emoções
para atingir seus objetivos, seja para aumentar a produção de seus funcionários ou a fideli-
zação de seus clientes, seja para implementar estratégias que animem e facilitem a aprendi-
zagem. Tanto nas áreas de administração e marketing como na educação, muitas têm sido
as investidas para verificar se o fato de utilizar os games como referência pode expandir seus
poderes para melhorar a aprendizagem, a realidade, o trabalho e a vida das pessoas, como
propõe McGonigal (2012).
Um indicativo da popularidade do conceito é a quantidade de artigos acadêmicos e li-
vros publicados em língua inglesa desde que o termo foi utilizado pela primeira vez em
2003 por Nick Pelling, um designer de jogos inglês que fundou uma consultoria para criar
interfaces similares a games em aparatos eletrônicos (WERBACH; HUNTER, 2012).
Outro indício desse interesse pôde ser percebido quando, ao se colocar a palavra gamifica-
tion na ferramenta de busca do site Amazon.com, foram encontrados 540 resultados em
novembro de 2016.
No Brasil, as coletâneas têm sido o modo mais comum de tratar do tema, com livros
organizados em capítulos reunindo tanto pesquisadores acadêmicos como autores de vários
campos de conhecimento, alguns experientes no trato com os games e outros nem tanto,
mas todos eles atraídos pelo objeto de estudo e seu caráter emergente. Uma leitura panorâ-
mica dessa produção evidencia que boa parte da discussão se baseia ainda na revisão
72 Gamificação em debate
conceitual. Uma pequena porcentagem traz resultados, mas, em sua maioria, os textos
tratam de pesquisas ainda em fases iniciais ou em etapa de revisão de literatura (FADEL
et al., 2014).
Da mesma maneira, em eventos como o SBGames, um dos mais importantes na área
e que reúne pesquisas acerca da indústria, do design e da cultura dos jogos digitais, uma
busca pelo termo “gamificação” nos dados compilados pela equipe da professora Suely
Fragoso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre os anais do
evento até 2014 gerou 13 artigos. No entanto, a adição das palavras narrativa e educação
resultou em apenas um artigo, dedicado à proposta de uma plataforma de construção de
narrativas colaborativas.
A ideia da gamificação como uma panaceia, uma solução fácil e rápida para resolver os
problemas relacionados à motivação, tem demonstrado um grande apelo não só em áreas
como o marketing e a administração, mas especialmente na educação. Na internet, sites
dedicados a discutir problemas educacionais difundem e explicam o conceito e sua aplica-
ção. Como exemplo, vale citar o site Gamificação na educação, dividido em subitens (“Como
usar a gamificação na educação”, “Por que aplicar a gamificação na educação”, “O futuro da
educação está na tecnologia”, “As vantagens da tecnologia na escola”) e ilustrado com um
detalhado infográfico colorido que sintetiza as principais características, acompanhado de
fotos de crianças sorridentes.1 Num outro site conhecido por seu engajamento na inovação
da educação, o Porvir, pode ser lido outro título otimista: “O uso dos jogos na educação tem
feito dos games uma das tendências de ensino mais importantes da década”.2
Mas nem tudo são elogios. Também na internet, é possível encontrar críticas a vários
aspectos da gamificação. Um texto de 2011 encontrado no site da Wharton School, da
Universidade da Pensilvânia, com o título “A gamificação tem futuro?”, discute alguns
resultados do congresso “Demais! A gamificação levada a sério”.3 No site, famosos designers
de jogos defendem a proposta, mas também discutem a polêmica já citada que foi iniciada
por Ian Bogost (2011). Bogost também afirmou que, para utilizar os games de maneira
mais séria, haveria a necessidade de mudar drasticamente as práticas corporativas da
maioria das companhias.
As críticas apontam a necessidade de se investigar um pouco mais como o termo vem
sendo pensado e quais as implicações da utilização da gamificação na educação em seus
diversos aspectos. Como uma área carente e muito suscetível ao encantamento das soluções
mágicas, principalmente pela extrema dificuldade para que uma inovação seja ali aceita, a
educação tem se mostrado um campo fértil de discussão e possivelmente de experiências
das possibilidades da gamificação.
Um dos pioneiros dessa discussão é o livro de João Mattar (2010), que inclui a gamifi-
cação na revisão de literatura sobre games e educação. Já o e-book editado por Fadel et al.
(2014) traz a gamificação como tema principal a partir de uma diversidade de autores e
1
Disponível em: <https://www.bhbit.com.br/gamificacao-na-educacao/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
2
Disponível em: <http://porvir.org/8-principios-da-gamificacao-produtiva/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
3
Disponível em: <http://www.knowledgeatwharton.com.br/article/a-gamificacao-tem-futuro/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 73
abordagens discutindo seu papel na educação. Nesta obra, Fadel et al. (2014) apontam uma
preocupação com os fatores motivacionais intrínsecos e sua manutenção mesmo com a
incidência de recompensas extrínsecas por meio do conhecimento dos processos de design
de jogos e sua relação com as ações educacionais. Num capítulo do mesmo livro, Lynn
Alves et al. (2014) colocam em discussão a visão da gamificação como uma “pílula mágica”
para resolver as mazelas da educação e ressaltam a importância de levar em consideração a
infraestrutura, o reconhecimento dos docentes, os melhores salários e os processos de for-
mação permanentes para que seja possível resgatar o desejo de aprender na escola.
Na linha dos estudos voltados para o mapeamento sistemático, bons exemplos são os
trabalhos de Borges et al. (2013) e Figueiredo, Paz e Junqueira (2015). O primeiro excluiu
da discussão alguns assuntos relacionados, como design gamificado, serious games e jogos
digitais em contextos educacionais. Utilizando apenas o termo gamification para realizar
a busca em cinco bases de dados (Scopus, Elsevier, Springer, ACM Digital Library e
IEEE Xplore), encontrou 357 artigos, sendo considerados relevantes para a educação 26
deles. Com a pesquisa, foi possível constatar que a maioria dos estudos é publicada em
conferências, derivada de pesquisas realizadas no ensino superior cuja intenção principal
é o envolvimento dos alunos por meio de atividades de aprendizagem gamificadas. Foi
destacado também na pesquisa que nenhum dos trabalhos relatava experiências empíricas
ou validações de implementações, sendo a maioria dos documentos avaliações e propostas
de soluções.
Já a revisão sistemática realizada por Figueiredo, Paz e Junqueira (2015) teve como
fonte os anais do Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames)
entre os anos de 2009 e 2014, o Portal de Teses e Dissertações da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 2000 a 2013, além de produções
bibliográficas publicadas no período. A conclusão do estudo é que “não existem, no Bra-
sil, fundamentos sólidos do que é uma prática pedagógica gamificada, tampouco se en-
contra uma perspectiva teórica interdisciplinar que consiga abarcar os diversos elementos
implicados nesse novo fenômeno sociocultural” (FIGUEIREDO; PAZ; JUNQUEIRA,
2015, p. 1161).
Esses dois trabalhos mostram que não é necessário repetir uma revisão sistemática
geral, mas que já estamos no estágio de começar a investigar questões específicas. Pela sua
importância na definição dos games, gostaríamos de saber se as narrativas são um tema
abordado nas pesquisas da área da gamificação em educação. Para isso, a próxima etapa é
delimitar o escopo e descrever a metodologia para a pesquisa.
Metodologia
Na revisão de literatura foram adotadas as seis etapas indicadas por Botelho et al. (2014),
na seguinte sequência: (a) identificação do tema e definição da pergunta de pesquisa; (b)
estabelecimento/definição dos critérios de inclusão e de exclusão; (c) identificação dos es-
tudos pré-selecionados e selecionados; (d) categorização dos estudos selecionados; (e) aná-
lise e interpretação dos resultados; e (f ) apresentação da revisão/síntese do conhecimento.
74 Gamificação em debate
QP1 – De que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação?
QP2 – Como os elementos da narrativa (personagens, espaço, tempo, narrador e história) são abordados e
em que etapas da pesquisa?
QP3 – Quais são os exemplos concretos de aplicação da narrativa nessa metodologia no campo
educacional?
A busca foi feita inicialmente nas bases de dados Scopus e Science Direct, já utilizadas
em revisões anteriores sobre gamificação, utilizando primeiramente os termos em português
(gamificação, educação e narrativa). Na base Science Direct, não encontramos nenhum
artigo com os termos gamificação e educação no título, no resumo ou nas palavras-chave.
A busca na Base Scopus gerou um artigo sobre gamificação na área de educação em saúde,
porém, como não foi encontrada a palavra narrativa em nenhuma parte do texto, ele foi
descartado. Em virtude dessa parca produção acadêmica em português nas bases procura-
das, optamos pelos termos em inglês (gamification, education e narrative/storytelling).
Visando encontrar artigos que tivessem como tema a gamificação na educação, os dois
primeiros termos foram considerados quando apareciam no título, no resumo ou nas
palavras-chave. Os dois últimos foram utilizados quando se encontravam em qualquer
ponto do artigo, já que a intenção era identificar como a narrativa é abordada nesta área
e as buscas com os termos relacionados à narrativa diretamente no resumo, no título ou
nas palavras-chave não traziam resultados expressivos. Como há revisões (HAMARI;
KOIVISTO; SARSA 2014; GRUND, 2015; STOTT; NEUSTAEDTER, 2013) que
registraram, estudando períodos anteriores, o aumento da produção acadêmica sobre
gamificação a partir de 2012, foram consideradas nesta pesquisa apenas as publicações
entre esse ano e outubro de 2016.
Os termos education e gamification foram ambos encontrados no título, no resumo ou
nas palavras-chave de 44 artigos da base Science Direct e de 652 artigos da base Scopus.
Pelo gráfico a seguir, é possível perceber a evolução significativa das pesquisas em gamifi-
cação e educação nas duas bases de dados durante o período estudado.
Ao estreitar os resultados para artigos que incluíam as palavras narrative ou storytelling,
o número de artigos relevantes na base Scopus foi de 64, e na base Science Direct, de 12
artigos. Esses números representam 11% de todos os arquivos sobre gamificação e educação
encontrados nas duas bases. Com isso, verificou-se um aumento gradativo na produção
acadêmica sobre gamificação e educação, mas pouca inserção do termo narrativa nessas
produções, como demonstra o gráfico.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 75
200 Scopus
150
Science Direct
100
Scopus
50 (narrativa)
Science Direct
0 (narrativa)
2012 2013 2014 2015 2016
Deterding 4
Sem conceituação 2
Definição própria 2
Vários autores 2
Werbach e Hunter 1
Inicialmente, a partir da leitura foi possível identificar que quatro artigos utilizaram
a definição de Deterding et al. (2011) sobre gamificação, dois não conceituaram o termo
e outros dois utilizaram uma definição própria. Um artigo, de Cybulski et al. (2015),
utilizou a definição vinculada à gamificação de projetos em administração de empresas
76 Gamificação em debate
[A gamificação é o] uso ou criação de um jogo para fins que não são apenas entretenimento e
a transformação de um sistema já existente num jogo. Em casos como esses, os jogos são inse-
ridos num sistema, substituindo ou aprimorando estruturas já existentes, ou o sistema é conver-
tido num jogo. Nessas situações é comum usar variações do termo, como gamificar, gamificado
ou “a gamificação de” como palavras de ação ou frases para se referir à aplicação desses concei-
tos (SEABORN; FELS, 2015, p. 18, tradução nossa).
14
12
10
8
6
4
2
0
Fator Mecânica Interação Linguagem Qualidade Parte da
Motivador Gamificação
Figura 5.2 – Incidência de termos que caracterizam a narrativa nos artigos selecionados.
saudáveis num ambiente escolar. Foram criados um cenário ambientado numa ilha pirata e
missões semanais com níveis de dificuldade progressivos. As atividades aconteciam em
vários espaços do colégio e também pela utilização de videogames. Na medida em que a
história ia progredindo, os participantes avançavam em graduações com nomes relacionados
ao tema náutico, como marujo, bucaneiro, oficial e capitão.
Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) e Sattoe et al. (2015) citam a narrativa como um ele-
mento da gamificação. Sattoe et al. também aludem à personificação como a característica
da narrativa normalmente utilizada na gamificação. Ribeiro et al. (2014) destacam a narra-
tiva como um produto da gamificação que favorece a participação e permite atingir os ob-
jetivos desejados para a atividade proposta.
A interação é associada à narrativa em 64% dos artigos selecionados, destacando-se essa
característica como fator relevante para aumentar engajamento, interesse ou satisfação pela
participação nas atividades e em aprender conteúdos escolares (DOMINGUEZ, 2013;
GONZÁLEZ et al., 2016; FERNANDES et al., 2012).
A pesquisa de Damiano et al. (2015) deixa clara a utilização de um termo para cada
elemento narrativo, como “localizações” para espaço e “épocas” para tempo. O objeto da
pesquisa de Damiano et al. é um sistema 3D imersivo, em que o participante caminha por
um cenário virtual como num videogame, estabelecendo as relações semânticas entre os
conceitos trabalhados por meio dos próprios corredores do labirinto. Como foi necessário
desenvolver toda a ambientação, a construção do sistema ficou muito próxima de um
game completo, o que exigiu uma reflexão e uma definição dos elementos narrativos que
seriam utilizados.
Domínguez et al. (2013) também criaram uma relação entre espaço e tempo, mas uti-
lizando o termo “contexto ficcional” para descrever como jogadores podem ficar interessa-
dos por tópicos fora do jogo, citando como exemplo a disciplina história, por meio da
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 79
prática dos games. Nesse caso, o termo foi considerado relacionado a esses dois elementos
(tempo e espaço) em virtude da situação em que foi aplicado.
A personificação é citada em referência à interpretação de personagens e é a mais utili-
zada ao descrever esse elemento narrativo, sendo comumente associada à representação de
papéis, porém sem mais discussões. Sattoe et al. (2015) citam a gamificação como um
exemplo de atividade que pode ser executada em contextos terapêuticos para mudança de
comportamento de indivíduos e/ou famílias e para melhorar as condições de autorregulação
de crianças com condições crônicas.
O narrador não é citado, mas foi considerado ao se inserir um termo como storytelling
ou “contação de histórias” em alguns dos artigos (RIBEIRO et al., 2014; ALI-HASSAN
et al., 2015; DOMÍNGUEZ et al., 2013; KOLAY, 2016), pois deixa implícita a existência
de alguém narrando a história. Porém, a discussão não é estendida para a compreensão do
papel do narrador, sobre ele como um elemento da gamificação ou da narrativa a ser utili-
zado pelos games.
Considerações finais
A presente pesquisa revelou que os últimos três anos foram prolíficos na produção de
pesquisas com experiências empíricas sobre o uso da gamificação no ambiente educacional.
Contudo, ainda são incipientes, precisam de discussão e continuidade para que o uso da
gamificação na educação avance para mais que pontos, níveis e rankings. Um dos caminhos
possíveis e promissores para esse salto qualitativo das práticas e das discussões sobre gami-
ficação passa pelo incremento com leituras e pesquisas das narrativas, que já são muito
abordadas nos game studies, mas dialogam pouco com a gamificação.
Em todos os casos analisados, a narrativa esteve associada a motivação e engajamento,
não havendo discussão sobre a aplicação mais técnica dos elementos narrativos na gamifi-
cação, que por vezes ficaram com um papel ornamental. Fortalecendo a percepção sobre a
utilização da narrativa sem preocupação técnica ou teórica, esta pesquisa revelou a história
ou enredo como o elemento narrativo mais frequente em discussões sobre gamificação na
educação, tendo-se citado algum termo relacionado à história em todos os artigos analisa-
dos. Os outros elementos foram pouco citados, e ainda assim sem aprofundamento. Le-
vando em consideração a abordagem nas pesquisas analisadas e a escassez de artigos que
mencionassem os elementos narrativos, percebe-se que há pouco estudo sobre a narrativa e
sua influência na gamificação.
Vale ressaltar que a proposta foi desestabilizar o conceito de gamificação, trazendo
contribuições do design de jogos e do uso de jogos de realidade alternativa, como defende
McGonigal (2012), para repensar como seria a gamificação com um olhar voltado para a
narrativa, com uma aplicação mais densa que a visão behaviorista, de estímulos e respostas.
Como os próprios autores defendem que a gamificação é um termo em construção, enten-
demos que são necessários ainda muitos estudos que consigam realizar um diálogo entre
áreas que são tão próximas como distintas.
80 Gamificação em debate
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82 Gamificação em debate
1
Cultura é um termo difícil de ser definido, não pela falta de explicações ou definições sobre ele, mas, ao contrário, jus-
tamente pela abundância de definições existentes, já que praticamente todas as disciplinas que trabalham no campo
das ciências humanas possuem suas próprias definições e interpretações sobre o que é cultura. Portanto, para tornar
este rio caudaloso de definições mais navegável, o termo “cultura” será aqui entendido como “um produto da agricul-
tura. Cultura é um colher (colere) das coisas extraídas da natureza” (FLUSSER, 2007, p. 23). Sendo um ser cultural, o
homem realiza o processo civilizatório pelo ato de extrair – colher – coisas da natureza, trazendo-as para perto do
mundo humano marcado pelas trocas simbólicas. A “cultura” é o processo que o homem criou – e continua aperfeiço-
ando – para tornar o mundo um fenômeno compreensível, seja por rituais de magia – arte – ou por rituais em que deve
imperar a razão – ciência.
84 Gamificação em debate
Ainda:
Nós acreditamos que o termo gamificação realmente demarca um distinto grupo de fenômenos
novos, composto por conceitos diferentes dos já anteriormente estabelecidos […]. A partir
dessa observação, nós propomos a seguinte definição: “Gamificação” é o uso de elementos de
game design em contextos que não fazem parte de jogos” (DETERDING et al., 2011, p. 2,
tradução nossa).
4
Schiller desenvolveu a ética e a estética kantianas em direção a um idealismo pós-kantiano, tendo como principal pre-
ocupação o papel da arte e da beleza na história do homem e em sua vida racional. Para Schiller, a estética, e não a
religião (como supunha Kant), é a constituinte central no processo de educação moral do homem. A arte e a beleza
refinam os sentimentos humanos, tornando-nos mais inclinados a agir eticamente.
5
Gadamer, filósofo alemão que foi um pupilo de Heidegger e o maior expoente moderno do campo da hermenêutica,
segue a trilha iniciada por Schiller no que diz respeito ao fato de a arte colocar algo em jogo, sendo ela mesma o
jogo por excelência. A discussão que Gadamer conduz em relação a arte e jogo não se confunde com qualquer tipo
de argumento que diga que a arte é algo trivial ou apenas um passatempo. Pelo contrário, a consciência estética que
surge do jogo estético é algo muito maior que suas evidências mais imediatas. Para Gadamer, além da arte, a estru-
tura do jogo em si tem afinidades óbvias com outros importantes conceitos, como “diálogo” e “verdade”. Em Ver-
dade e método (2008), Gadamer trata da experiência com a arte, que constitui um jogo em si. Ele não se preocupa
com julgamentos sobre a arte ou as intenções dos artistas. A obra de arte passa a ser o ponto central da experiência,
não o público. Dessa maneira, “jogo” se torna um termo bastante adequado para a compreensão estética, já que
tende a dominar os jogadores.
86 Gamificação em debate
Isso posto, apresento a seguir algumas concepções e ideias sobre o universo dos jogos
que podem servir como alicerces conceituais para discussões mais encorpadas a respeito do
conceito de gamificação, especialmente com relação a suas aplicações estéticas, desviando o
foco e a importância usuais que são dados à aplicabilidade do termo no campo do marketing
e do treinamento empresarial. Neste ponto, é importante situar o que entendo como esté-
tica, visto que este é um conceito-chave no presente texto. Para tal tarefa, recorro a outro
filósofo, desta vez o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), influência cons-
tante em meu trabalho e minhas pesquisas.
Peirce atribuiu ao termo um significado completamente novo e original, concebendo a
estética como uma ciência normativa que tem por papel “descobrir o que deve ser o ideal
supremo da vida humana” (SANTAELLA, 2005, p. 38). A estética para Peirce diz respeito
a “estados de coisas que, mais cedo ou mais tarde, todos tenderão a concordar que são dignos
de admiração. O que é admirável não pode ser determinado de antemão. São metas ou
ideais que descobrimos porque nos sentimos atraídos por ele, empenhando-nos na sua re-
alização concreta” (SANTAELLA, 2005, p. 38). Ora, o que seria um uso estético da gami-
ficação ou, ainda, uma estética da gamificação? A resposta certamente aponta para um
cenário distinto do criado e propagandeado pelos autores dos best sellers sobre o assunto.
Com essas questões, busco abrir um horizonte novo de debates, em que o caráter geral da
gamificação possa ser compreendido como uma ferramenta capaz de estruturar novas pos-
sibilidades existenciais.6
6
De fato, essa é uma preocupação que acompanha minhas pesquisas há algum tempo, tendo sido um dos temas
centrais das investigações que conduzi em um estágio de pós-doutorado realizado em 2014 no Gamification Lab da
Leuphana Universität, na cidade de Luneburgo, Alemanha, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e com
o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para um aprofundamento dessa dis-
cussão, ver Poltronieri (2014).
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 87
é indissociável de uma existência estética, e essa é a razão central para o uso de sua filosofia
no presente contexto.
Isso posto, começo por dizer que, de maneira geral, o caráter do jogo, quando tratado
conceitualmente, se revela por meio de atividades lúdicas que a princípio se desenvolvem
de maneira desinteressada, sendo independentes do comportamento, do estado de ânimo
ou da própria subjetividade de quem participa como jogador. O jogo possui um caráter
independente, não estando condicionado a quem o joga e muito menos sendo determinado
pelo jogador. Seu caráter autônomo dispensa a presença de outro sujeito para existir.
Os jogadores apenas asseguram a representação da instância maior que é o jogo em si
(GADAMER, 2008). Para tornar mais clara essa questão relacionada ao caráter do jogo,
ressalto que este, essencialmente, é puro movimento desprovido de alvo, de meta, que se
estabelece em forma de eterno retorno, de um ritual no qual não existe nenhuma lei de
causalidade. É movimento por si mesmo, independente inclusive de quem o executa ou
observa. Não há necessidade sequer de um sujeito fixo para sua existência e sua manutenção,
visto que o jogo é a realização do movimento como tal (GADAMER, 2008).
Schiller (2002, p. 79) chama de jogo “tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objeti-
vamente contingente, ainda assim não constrange nem interior nem exteriormente”, definindo
ainda o belo como um mero jogo entre um impulso sensível, identificado como “vida” – todo
ser material e toda presença imediata nos sentidos –, e um impulso formal, que se sintetiza
como “forma”, compreendendo todas as possibilidades formais e suas relações com o pen-
samento. O lúdico pode ser chamado, portanto, de “forma viva”, designando todas as qua-
lidades relacionadas com o que observamos e criamos. Jogo, assim, deve ser entendido como
um estado do homem, em que este se encontra livre e se relaciona com a liberdade de forma
desimpedida. De forma lúdica, portanto.
Esse estado de pura liberdade torna o homem completo, senhor de suas qualidades
sensíveis e formais. O campo de visão humano é ampliado no processo lúdico de jogar,
principalmente quando este leva em conta aspectos estéticos, pois “com o agradável, com o
bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga” (SCHILLER,
2002, p. 169, grifo nosso). Destaca-se a palavra “perfeição” que, em Schiller, aparece subor-
dinada a seriedade. O jogo lúdico estético não está a serviço do que é utilitário ou necessá-
rio, mas simpatiza com o que existe por si só, e que a si só basta, não sendo ao mesmo tempo
necessário a nada mais nem dependente de nada mais. No campo do jogo, a beleza deve ser
a linha guia do homem, pois
o homem deve somente jogar com a beleza, e somente com a beleza deve jogar. Pois, para dizer
tudo de vez, o homem joga somente quando é homem no sentido pleno da palavra, e somente é
homem pleno quando joga (SCHILLER, 2002, p. 80, grifos nossos).
A beleza é a linha guia do jogador. O jogo é o alicerce que sustenta as culturas humanas,
encontrando na experiência estética sua maior, mais livre e indefinida forma de expressão,
práxis e contemplação, servindo de modelo para todo o arquitetar que a linguagem e o
pensamento formalizam e materializam. Os gregos antigos já adotavam em sua sociedade
88 Gamificação em debate
esses altos ideais, porém o faziam por procedimentos de reflexão: projetavam em seus deu-
ses tais ideais para que eles fossem refletidos, idealmente, nos homens comuns. Schiller
(2002) chama a atenção para esse fato ao notar que os gregos transpunham para o Olimpo
o que deveria ser realizado na terra. Dessa maneira, fizeram desaparecer da fronte dos
deuses ditosos a seriedade e o trabalho, que marcam indelevelmente o semblante dos mor-
tais. Os gregos, libertando os seus deuses das correntes de toda finalidade, dever ou preocu-
pação, fizeram do ócio e da indiferença o invejável destino do estamento divino, projetando
nos imortais a existência mais livre, sublime e lúdica.
Por conta dessas características, Aristóteles aproximou o jogo à felicidade e à virtude,
pois essas atividades são escolhidas por si mesmas, não sendo necessárias como as que
constituem o trabalho (2000, X, 6, 1176 b 6). Schiller também observa que o impulso lúdico
que o jogo apresenta une mente e matéria, inteligível e sensível, espírito e corpo, já que esse
impulso é exercido acima das necessidades naturais da vida e independentemente dos inte-
resses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta, sobretudo, como
jogo estético.
O jogo também é identificado como condição essencial para a vida em seu sentido
biológico, na forma de movimentos absolutamente supérfluos produzidos por crianças e
animais que brincam quando seus instintos primários já foram saciados. A atividade lúdica
do brincar é realizada pelo simples prazer que proporciona, sendo um exercício incontrolá-
vel. O jogo com a beleza é, para o poeta alemão, uma afirmação espiritual, trazendo, antes
de qualquer coisa, a liberdade em seu grau mais elevado. De acordo com Schiller, a realiza-
ção do jogo com a beleza se dá pela via da contemplação, pois o ato de contemplar traz em
si o pressuposto de um distanciamento da matéria, para que se perceba que esta também é
uma forma de mente, de espírito, o que torna possível o desimpedido comércio sígnico
entre a forma e a matéria sensível, entre o sentimento e a inteligência, que se reencontram
finalmente em sua origem comum. Percebemos, pela contemplação, a presença do outro.
Assim, a personalidade do jogador se descola e ele não mais exerce sua vontade sobre as
coisas, mas dialoga com elas.
Há no jogo o princípio da comunicação, uma troca de códigos compartilhados. Con-
templar é o primeiro nível para adentrar o jogo libertador com a beleza. Ao mesmo tempo
que o homem se separa do mundo por esse processo, ele também se vê no mundo, pelo fato
de a contemplação ser um procedimento de reflexão. O processo de contemplar/refletir
constitui a primeira relação de libertação do homem com o mundo a sua volta. Em vez de
agarrar seu objeto de conhecimento de forma voraz, a contemplação o afasta e faz dele sua
propriedade verdadeira e inalienável. Sobre esse processo, diz Schiller (2002, p. 126):
“há trégua momentânea nos sentidos, o próprio tempo eternamente mutável repousa en-
quanto os raios dispersos da consciência convergem e uma imagem do infinito, a forma, se
reflete no fundo perecível”. O jogo estético liberta porque faz o homem refletir, unindo o
sensível ao intelectual.
Schiller nos diz que o homem, enquanto apenas sente, é dominado pela imensidão
objetual da natureza. Porém, torna-se seu legislador quando passa a se ver refletido nela,
livre das imposições que o mundo brutal impõe. O homem que joga torna a natureza objeto
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 89
7
Segundo a doutrina das ideias de Platão (428 a.C.-348 a.C.) as almas dos homens outrora podiam contemplar as ideias –
essência de tudo – de maneira irrestrita. Depois, como punição, as almas foram aprisionadas no corpo. Porém, elas
possuem uma capacidade de reminiscência, ou seja, têm uma lembrança obscura, que pode ser rememorada, do seu
antigo contato livre com as ideias.
8
O mundo sensível também faz referência a Platão. É no mundo sensível, uma cópia do mundo das ideias, que o homem
passa a viver após a proibição do acesso livre ao mundo das formas ideais.
90 Gamificação em debate
O jogo estético é livre por nenhuma necessidade pender sobre a beleza, que supera a
realidade pela simples aparência. A aparência aqui referida não depende de nada que não
seja si mesma. Não é simulacro ou derivada de alguma outra coisa, não precisando prestar
satisfações a algo externo a si, pois não é ilusória nem almeja substituir o que já existe.
Devemos aceitar a aparência em sua qualidade de aparência, porque ela encarna o humano
em sua plenitude, revelando a operação criadora da liberdade, que dá à existência o sentido
e a finalidade que a natureza exterior não possui.
Para o olhar desavisado, o jogo estético pode parecer frívolo e desnecessário, visto que
a vida, em seu sentido estritamente biológico, não parece sentir necessidade da beleza para
sua manutenção. Contudo, uma visão mais abrangente revela que o homem é um ser imerso
em cultura, em processo de cultivo insaciável. Está na essência humana não aceitar a reali-
dade natural, pois esta não é familiar às culturas humanas. É o jogo estético, em sua aparente
superficialidade, que aproxima a natureza do homem, permitindo, pela cultura, colocar em
jogo a realidade, desprendendo-a da natureza. Nasce do jogo uma nova espécie de ser, jo-
gador essencialmente livre que pode manipular desimpedidamente as coisas, dando a elas
significados anteriormente não estabelecidos.
Esse jogador compreende que o impulso inerente ao jogo é, antes de tudo, uma ativi-
dade que forma o sujeito e, assim, o mundo, pois este se submete aos ânimos do homem
e se transmuta em aparência, resultado do jogo libertador. Ser um jogador é ser um cul-
tivador, ou ainda uma espécie de alquimista que, pelo jogo lúdico, transforma as proprie-
dades da matéria por meio da forma. Embora o jogo tenha esse aspecto desinteressado,
essencial para a liberdade que é assegurada, o jogador deve levar a atividade a sério para
que o jogo seja consumado.
Gadamer (2008, p. 154) nos assegura que “o que é mero jogo não é sério”, mas completa
dizendo que “é mais importante o fato de que no jogar se dá uma seriedade própria, até
mesmo sagrada”, apontando que é necessário ao jogador entrar no jogo. Quem não dedica
ao jogar a seriedade que o ato merece não se constitui plenamente como jogador e perma-
nece condicionado, visto que o jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele
que joga entra efetivamente no jogo. Este, com sua natureza independente, permanece
presente mesmo onde é ignorado, ou melhor, onde não é levado a sério: onde não atuam
jogadores. Mesmo nesses lugares, onde tentativas arbitrárias de divisão entre a racionalidade
e a sensibilidade procuram esconder o aspecto lúdico da existência humana, o jogo está
presente: “O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá, onde nenhum ser-para-si
da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportem
ludicamente” (GADAMER, 2008, p. 155).
Breves conclusões
As estratégias de gamificação constituem uma camada comunicacional que se coloca
sobre a dinâmica independente que o conceito de jogo traz, tendo como propósito alterar
ideologicamente a existência humana e tornando objeto de seus interesses o movimento
independente do jogo, de forma a conduzi-lo para se tornar meio e fim de determinados
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 91
propósitos. Embora Kapp (2012) afirme que a gamificação utiliza elementos provenientes
de uma “estética dos jogos”, considero que o uso da palavra estética aparece aqui completa-
mente deslocado, tendo um sentido predefinido, fechado. Uma estética baseada em jogos
pressupõe um caminho que tem como meta final a liberdade, por meio do percurso de uma
trilha aberta, lúdica, em que descobrir possibilidades é a tônica principal.
O conceito de gamificação parece distanciar-se da identificação de si como represen-
tante de um conjunto de atividades realmente lúdicas. O estudo da literatura disponível
mostra que a palavra gamificação é compreendida como índice de um conjunto de estraté-
gias que visam a fins práticos bastante específicos, excluindo as considerações estéticas que
aponto ao longo deste texto. Desconsiderando esses aspectos estéticos – que incluem tam-
bém quesitos éticos – o jogo esvazia-se, pois é destituído da seriedade necessária apontada
por Gadamer. O que sobra é um mero artefato instrumental, composto por conjuntos de
regras que têm por objetivo o cerceamento da liberdade. Em vez de jogo, o que se estabelece
é o antijogo.
O espaço para a contemplação que os “jogadores” das atuais estruturas gamificadas têm
é limitado, pois a real ênfase dos procedimentos de gamificação está concentrada na mecâ-
nica das atividades propostas – sejam elas educacionais, empresariais, ações de marketing
etc. –, o que transforma a atividade lúdica do jogar em uma constante demanda por com-
pletar ações. Sempre ocupado em cumprir objetivos e metas, em colecionar distintivos e
prêmios que são, na verdade, afagos distribuídos por conta de atividades predeterminadas
cumpridas, o jogador não tem tempo para se afastar, olhar a situação em que está inserido
como um todo e, finalmente, contemplar. Sem poder contemplar, não é possível ao jogador
se abrir para o mundo e deste participar efetivamente.
A gamificação como antijogo ocupa o tempo do homem com tarefas que têm por ob-
jetivo afastá-lo do mundo, aproximando-o de realidades projetadas pelos algoritmos9 que
estabelecem as regras da mecânica por trás das atividades a serem cumpridas nos jogos
propostos. Em vez de promover saltos em direção à liberdade, a maioria das atividades
gamificadas prende os jogadores em labirintos algorítmicos, sendo a gamificação uma es-
tratégia de controle adequada – do ponto de vista das corporações – para tempos em que as
interações humanas são cada vez mais mediadas por algoritmos que, inacessíveis à compre-
ensão dos jogadores, ditam regras de conduta, pontos a serem acumulados e posts em redes
sociais que devem ser vistos, dentre outras possibilidades pré-codificadas.
Conclui-se que quem estipula os algoritmos detém o poder atualmente. Destarte, faz
sentido pensar em gamificação como um conjunto de estratégias com a intenção de
programar algoritmicamente a liberdade dos jogadores e, consequentemente, modificar a
maneira como eles estão no mundo. O processo de gamificação não visa unicamente
instruir ou educar as pessoas, muito menos fazer com que coletem pontos em atividades
9
Um algoritmo é uma sequência finita de instruções básicas, executável dentro de um tempo também finito, que tem
por objetivo resolver um problema lógico, qualquer que seja sua instância (SALVETTI; BARBOSA, 1998). A palavra
origina-se do nome do matemático islâmico Al-Khowarizmi e denota um conjunto de regras ou instruções que resulta-
rão na solução de um problema. Um algoritmo oferece um processo de decisão, ou um método computável para resol-
ver um problema (BLACKBURN, 2016).
92 Gamificação em debate
divertidas. Seu papel mais profundo, enquanto modelo comunicacional, é alterar ideolo-
gicamente os jogadores.
Repensar as sedutoras estratégias empregadas pela gamificação com vistas ao que foi
aqui exposto como teoria sobre os jogos me parece uma tarefa necessária, embora este seja
um entre inúmeros caminhos possíveis para recontextualizar o conceito de gamificação e
empregá-lo de maneiras mais interessantes. Acredito que as definições que apresentei pos-
sam ser exploradas por um conjunto maior de pesquisadores, embora sejam polêmicas,
principalmente se contrastadas com algumas das teorias sobre gamificação em voga atual-
mente. Um caminho interessante a ser explorado é a aproximação da gamificação com a arte
ou com o conceito de jogo do ponto de vista estético, o que pode inserir elementos verda-
deiramente lúdicos no cotidiano cada vez mais gamificado que atualmente vivenciamos. A
arte enquanto jogo verdadeiramente estético é um dos principais pontos debatidos por
Gadamer (2008), e uma introdução ao tema, embora seja um texto pré-gamificação, pode
ser encontrada em Poltronieri (2009).
Mesmo que a real vocação das atividades gamificadas seja exercer controle sobre os
jogadores por meio de suas estratégias ideológicas, creio que ainda assim o conceito de jogo
como um movimento dialógico estético que estabelece bases éticas para um processo de
compreensão e diálogo pode ser benéfico para que o debate sobre o tema seja pautado por
questões que ultrapassem o caráter gamificado meramente instrumental que se observa
atualmente.
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Brain digital games e funções
executivas: delineando interfaces entre
7
os games e a estimulação
neuropsicológica1
Lynn Alves
1
A realização deste trabalho foi possível por conta do financiamento das agências de fomento Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela parceria constante da UNEB. Mas o sonho
se concretizou graças a todos os desenvolvedores e pesquisadores do Comunidades Virtuais envolvidos no projeto que,
com sua paixão pelo universo dos games, construíram um sentido para o Gamebook. Agradeço às interlocutoras deste
trabalho, Jessica Vieira, Larissa Cerqueira e Maria de Fátima Dórea; e a crianças, adolescentes, pais, professores e pes-
quisadores partícipes dessa jornada.
2
Mais informações no site <http://comunidadesvirtuais.pro.br/guardioes-gamebook/>.
96 Gamificação em debate
associada a músicas, e o EEG mapeia e registra suas reações. O artigo de Sourina et al. (2011)
não apresenta os resultados das investigações com os sujeitos, mas descreve o que vem sendo
desenvolvido no Cognitive Human Computer Interaction Lab (CHCI Lab).
O segundo artigo, de autoria de Giedd (2012), traz uma breve análise do crescimento
da interação dos adolescentes com distintas mídias e de como essa dinâmica vem afetando
o comportamento e a plasticidade cerebral desses sujeitos. Para Cosenza e Guerra (2011),
o sistema nervoso é extremamente plástico nos primeiros anos de vida até a adolescência.
Essa plasticidade nervosa vai diminuindo e permanece por toda a vida.
Uma característica marcante do sistema nervoso é então a sua permanente plasticidade. E o que
entendemos por plasticidade é sua capacidade de fazer e desfazer ligações entre os neurônios
como consequência das interações constantes com o ambiente externo e interno do corpo.
O treino e a aprendizagem podem levar à criação de novas sinapses e à facilitação [sic] do fluxo
da informação dentro de um circuito nervoso (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 36).
uma das habilidades mais úteis para crianças e adolescentes adquirirem será a habilidade de
efetivamente utilizar este universo de informação – para criticamente avaliar os dados, dis-
cernir sinais de barulhos, sintetizar conteúdos e aplicar tudo isso à resolução de problemas no
mundo real.
Mesmo quando estamos dividindo a atenção pela utilização de canais sensoriais diferentes, o
desempenho não é o mesmo, e aspectos importantes da informação podem ser perdidos. Isso
ocorre, principalmente, se a demanda de um dos canais é aumentada. Podemos, por exemplo,
dirigir um carro e ouvir rádio ao mesmo tempo. Mas, se prestamos mais atenção ao rádio, po-
demos provocar um acidente e, se o tráfego está pesado, provavelmente não conseguiremos nos
lembrar do que o rádio transmitiu naquele momento. Ao tentar dividir a atenção, o cérebro
sempre processará melhor uma informação de cada vez.
Dessa forma, tanto Giedd quanto Cosenza e Guerra apontam revezes para a atenção
dividida/difusa, isto é, a interação com mais de uma informação simultaneamente pode
comprometer essa função. Autores como Green e Bavelier (2015) e Rivero et al. (2012)
indicam que a interação com os jogos digitais contribui para melhora da atenção, mesmo
quando o sujeito lida com mais de uma informação simultaneamente.
Já no terceiro artigo analisado, os autores Choudhury e McKinney (2013) debatem dois
pontos que têm gerado muita discussão em torno dos usos e desusos da interação dos
adolescentes com as tecnologias digitais. O primeiro refere-se ao pânico generalizado sobre
o comportamento dos adolescentes; o segundo relaciona-se com o crescente alarme sobre
os intensos consumo, vício e compartilhamento das mídias na sociedade moderna.
Em agosto de 2016, no Brasil, tivemos dois lançamentos que trouxeram à tona o debate
sobre os aspectos negativos das tecnologias, especialmente os jogos. O primeiro foi o jogo
digital para dispositivos móveis Pokémon GO, que trouxe os diferenciais da realidade au-
mentada e do controle da geolocalização e dos dados dos seus jogadores. Tais inovações
promoveram grandes inquietações e debates nas diferentes mídias digitais (redes sociais,
jornais online, TV, entre outros), e verdadeiras teorias da conspiração foram espalhadas.
O segundo foi o filme Nerve, que trata de um jogo em tempo real que se assemelha a um
reality show e tem como pano de fundo a discussão sobre o vício. A polarização sobre os
jogos digitais e as tecnologias, de maneira geral, é constantemente atualizada, sendo neces-
sário interagir para conhecer e construir pontos de vista críticos e não apocalípticos.
Para além dessa questão, Choudhury e McKinney (2013) também discutem o conceito
de neuroplasticidade, que consiste na capacidade do cérebro e do sistema nervoso de mu-
dança constante para responder aos estímulos do ambiente, bem como as próprias ativida-
des do cérebro. A neurociência vem sendo demandada para responder as questões que
envolvem a interação com as tecnologias digitais e as propaladas mudanças cognitivas que
vêm ocorrendo partindo dessas mediações. Contudo, segundo os autores, são necessários
mais estudos para assegurar essas conclusões. Essas posições são reforçadas também na carta
assinada por 75 pesquisadores vinculados a centros de investigações nos Estados Unidos
(48), no Canadá (3), na Suíça (8), na Suécia (3), na Inglaterra (2), na Escócia (1), na Ale-
manha (7), na Holanda (2) e na Noruega (1), em outubro de 2014 (STANFORD CENTER
ON LONGEVITY, 2014). Os referidos investigadores assinaram a carta do Centro de
Stanford sobre Longevidade se posicionando contra os créditos de que os brain games
100 Gamificação em debate
6
Ver <http://www.arc.gov.au/>.
Brain digital games e funções executivas 101
com o mundo frente às mais diversas situações que encontramos. Por meio delas, organizamos
nosso pensamento, levando em conta as experiências e conhecimentos armazenados em nossa
memória, assim como nossas expectativas em relação ao futuro, sempre respeitando os valores
e propósitos individuais. Dessa forma, podemos estabelecer estratégias comportamentais e di-
7
Para Soares (2000, p. 72), letramento “é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um con-
texto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras pa-
lavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais
ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”.
102 Gamificação em debate
rigir nossas ações de forma objetiva, mas flexível, que permita, ao final, chegar ao objetivo de-
sejado. Além disso, são as funções executivas que suportam uma supervisão de todo o processo,
evitando erros e limitando nossas ações dentro dos padrões éticos do grupo cultural a que
pertencemos. Por tudo isso, elas são essenciais para garantir o sucesso na escola, no trabalho e
na vida cotidiana (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 87-88).
8
Ver <http://www.cogmed.com.br/>.
9
Projeto Questões artísticas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas desenvolvido pelos
alunos Bruna Telles, João Mossmann, Débora Barbosa, Paulo Barros, Vitor Valadares, Richard Silva, Ramon Fischer e
Vinícius Brochetto; e projeto Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas,
desenvolvido pelos alunos Vinicius Brochetto, Vitor Valadares, Richard Silva, João Mossmann, Débora Barbosa e
Caroline de Oliveira Cardoso.
BROCHETTO, V. et al. Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas.
10
Ver <https://www.lumosity.com/>.
11
Ver <https://www.elevateapp.com/>.
Brain digital games e funções executivas 103
Dentro dessa perspectiva, é importante referenciar as pesquisas que vêm sendo desen-
volvidas pelo grupo coordenado pelo Dr. Gazzaley12 na Universidade da Califórnia, em San
Francisco, e o grupo Akili, formado por pesquisadores da área de neurociência e designers
de jogos, com financiamento e parceria das indústrias farmacêuticas Pfizer e Shire, do
National Institute of Mental Health e da fundação Autism Speaks, que vem desenvolvendo
o Project Evo.
Scott Kollins, professor de Psiquiatria e diretor do Programa de Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade da Escola de Medicina da Universidade de Duke, nos Estados
Unidos, liderou um projeto-piloto com a plataforma Evo que envolveu pesquisadores do
Centro de Pesquisa Clínica da Flórida e da SUNY Upstate Medical University de Nova
York. Ele testou oitenta crianças com idades entre 8 e 12 anos. Destas, quarenta haviam sido
diagnosticadas com TDAH, mas não tomavam medicação; as outras 40 não tinham diag-
nóstico psiquiátrico.13
Assim, apesar do crescimento das produções e das pesquisas na área, é importante
consolidar esse campo de investigação com evidências que subsidiem práticas de desenvol-
vimento, de pesquisa, clínicas e pedagógicas.
Logo, este capítulo intenciona ampliar essas contribuições a partir da avaliação do GGF
para estimular as FE de crianças na faixa etária de 8 a 12 anos, no espaço escolar, do ponto
de vista das pesquisadoras vinculadas ao projeto.14 Ressaltamos que o processo de desenvol-
vimento do gamebook já foi descrito e discutido em Nery e Alves (2014), Nery (2015),
Alves (2016), Alves e Bonfim (2016) e Cayres e Alves (2016), não sendo, portanto, objeto
deste capítulo.
pelo jogo de desejos e de interesses de outros. Ele [o pesquisador] também implica os outros
por meio do seu olhar e de sua ação singular no mundo. Ele compreende, então, que as ciências
humanas são, essencialmente, ciências de interações entre sujeito e objeto de pesquisa. O pes-
quisador realiza que (sic) sua própria vida social e afetiva está presente na sua pesquisa socioló-
gica e que o imprevisto está no coração da sua prática (BARBIER, 2002, p. 14).
15
A classificação utilizada aqui considerou a indicada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), extinta em outubro
de 2015. Ver <http://www.maispr.com.br/destaque/2016/02/governo-define-que-classe-media-tem-renda-entre-
-r-291-e-r-1-019/> Acesso em: 12 ago. 2016.
Brain digital games e funções executivas 105
no mosaico, já que cada dispositivo16 subsidiou leitura, análise e discussão dos dados, dando
um significado para o fenômeno investigado.
Ao realizarmos a primeira atividade na escola com a turma do 4º ano, da professora Jane, por
questões técnicas, decidimos que a interação seria apenas com os minigames, isto é, com o
ambiente de Tenda do Queixão, no qual estão os oito minigames. Essa interação era desarticu-
lada da narrativa do Gamebook e as crianças não demostraram muito interesse em jogar. Na
semana seguinte, quando foi possível interagir com o ambiente desde o início da narrativa, as
crianças ficaram imersas e comentaram a diferença (depoimento de Larissa Cerqueira em
VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).
O interator, seja ele navegador, protagonista, explorador ou construtor, faz uso desse repertório de
passos e de ritmos possíveis para improvisar uma dança particular dentre as muitas danças possíveis
previstas pelo autor. Talvez se possa dizer que o interator é o autor de uma performance em particular
16
Para Ardoino (2003, p. 80), os dispositivos se constituem em “uma organização de meios materiais e/ou intelectuais,
fazendo parte de uma estratégia de conhecimento de um objeto”.
17
Ver <http://www.peak.net/>.
18
Ver <https://www.cognifit.com/br>.
106 Gamificação em debate
dentro de um sistema de história eletrônico, ou o arquiteto de uma parte específica do mundo vir-
tual, mas precisamos distinguir essa autoria derivativa da autoria original do próprio sistema.
Dentro dessa perspectiva, o GGF pode atuar como um espaço lúdico e prazeroso para
desenvolver a habilidade de persistir mesmo diante das dificuldades. As dificuldades pro-
postas por esse ambiente podem atuar como motor propulsor para fortalecer a capacidade
de persistir mesmo diante do novo e do desafio. Afinal, o ato de aprender não envolve só
ganhos e momentos prazerosos. Perdemos e ressignificamos velhos aprendizados e concei-
tos para dar origem aos novos.
Jessica Vieira (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) sinaliza que
que, em boa parte dos casos, quando conseguem menos de três estrelas como recompensa con-
tinuam tentando até conquistar a pontuação máxima.
Autores como Lewis, Swartz e Lyons (2016) apontam que existem limitadas evidências
da eficácia da recompensa por um longo tempo. A manutenção da ação da recompensa pode
estar relacionada com a motivação interna do sujeito. Os autores dialogam com a teoria da
autodeterminação (Self Determination Theory – SDT) para explicar a motivação interna. A
perspectiva SDT sugere que as recompensas externas podem diminuir a motivação interna,
mas é um fenômeno complexo que não pode ser explicado de forma tão simplista, pois, a
depender da recompensa, o comportamento pode ser internalizado e continuado. Para os
teóricos dessa perspectiva, a autonomia, a competência e a conexão entre as pessoas são
condições que podem promover níveis significativos de motivação, engajamento, desempe-
nho, persistência e criatividade.19
Essa perspectiva pode ser evidenciada nas distintas situações apontadas pelas pesquisa-
doras, inclusive no que se refere à questão do desempenho no GGF. Para Larissa Cerqueira
(VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016), “O que mais os motivava era a vontade de
finalizar o jogo e poder dizer aos seus colegas do seu feito”.
O GGF também foi apontado pelas pesquisadoras como um espaço profícuo para a
estimulação das FE, apesar das dificuldades de nível técnico, isto é, do ambiente, e dos
próprios sujeitos em compreender as consignas. Em muitos momentos, os leitores-jogado-
res adotavam a prática de tentativa e erro, que se constitui em uma estratégia mais simples
de aprendizagem.
Na perspectiva de Jessica Vieira, o GGF tem
um grande potencial para a estimulação das funções executivas, uma vez que os minigames
encaixados com a narrativa requerem dos sujeitos estratégias para a resolução de atividades
onde há a exigência de tais habilidades. De acordo com a literatura da área de neuropsicologia,
a reabilitação neuropsicológica ou estimulação pode ser feita por meio de “treinos” cognitivos,
e acredito que o jogo consiga alcançar esse objetivo.
O Gamebook apresenta ferramentas, como os minigames, que criam como um todo um am-
biente que mantém as crianças engajadas e ao mesmo tempo estimula as habilidades executivas.
Desta forma, considerando os aspectos neuronais de plasticidade, acredito que esses processos
da jogabilidade contribuam para uma promoção das funções executivas nas crianças.
Podemos constatar no discurso das pesquisadoras que o fato de haver uma narrativa que
integre os minigames, contextualizando-os, possibilita a imersão e o engajamento dos lei-
tores-jogadores. Assim, os desafios presentes nos minigames estimulam as funções execu-
tivas na medida em que provocam cognitivamente os sujeitos a solucionarem problemas.
19
Ver <http://selfdeterminationtheory.org/theory/>.
108 Gamificação em debate
Assim como tradicionalmente não consideramos letrado alguém que sabe ler, mas não sabe
escrever, não deveríamos supor que alguém seja letrado para as mídias porque sabe consumir,
mas não se expressar. Historicamente, restrições ao letramento advêm das tentativas de contro-
lar diversos segmentos da população – algumas sociedades adotaram o letramento universal,
outras restringiram o letramento a classes sociais específicas, além das restrições por questões
de raça ou sexo. Podemos também encarar as atuais lutas sobre letramento como tendo o efeito
de determinar quem tem o direito de participar de nossa cultura e sob quais condições.
Como foi dito, a dificuldade e o desprazer em ler os textos no universo dos jogos não se
limitam aos ambientes voltados para fins educacionais, mas a qualquer jogo que exija a
prática da leitura em uma perspectiva que envolva a interpretação e a compreensão. Assim,
no universo dos jogos digitais, nos gamebooks e nos appbooks, os seus jogadores, leitores e
leitores-jogadores precisam ter construído um sentido e um significado para o universo no
qual estão imersos, sendo capazes de compreender as consignas, mas também de explorar
telas e inventários, compreender suas funcionalidades, vencer desafios e missões, alcançar os
objetivos e ser recompensados no final. O que se observa é que o fato de as crianças terem
dificuldades em atribuir sentido ao texto escrito, que orienta sobre o que fazer na missão,
pode levar à não compreensão do que se espera do leitor-jogador e, consequentemente, ao
game over. Ou ainda, o fato de não ser letrado na mecânica do swipe (na qual o jogador
precisa passar o dedo na tela) também pode imobilizá-lo, levando à frustração, já que não
consegue avançar.
Tal fato não pode ser considerado um déficit em uma FE, mas uma questão relacionada
com a apropriação do universo letrado do ambiente:
Como Jessica (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) pontua, o fato de não con-
seguir decifrar o código linguístico leva a frustração, desmotivação e intolerância, especial-
mente se os sujeitos se defrontam com o sucesso do outro. Os aspectos registrados
interferiram de forma negativa na interação das crianças e dos pré-adolescentes com o
GGF, impactando no alcance dos objetivos propostos e gerando frustração, intolerância e,
muitas vezes, desistência. Assim, a experiência do leitor-jogador que se defrontou com os
problemas ficou comprometida, desestimulando-o a retornar ao ambiente.
As pesquisadoras registram ainda três pontos bastante interessantes: o primeiro refere-se
à concepção que as crianças têm dos encontros realizados no espaço escolar para interagir
Brain digital games e funções executivas 109
com o GGF. Para eles, é a “aula de tablet”! Percebe-se que, mesmo que sejam momentos
lúdicos, de entretenimento, de lazer e prazer, sem a rigidez e a obrigação das tarefas escola-
res, o fato de ter um enquadre com local, horário, carga horária, dia da semana e atividade
previamente definida dentro da escola evidencia, para os leitores-jogadores, que a prática é
escolar e uma aula.
A mediação da professora de uma turma, que se destacou por ameaçar que, se os alunos
não se comportassem, não iriam para a “aula de tablet”, foi o segundo ponto. E a escola
continua aprisionando não apenas a inteligência, a ludicidade e o prazer de aprender, mas
os corpos. Por mais que já tenha sido discutida e criticada a partir de Foucault (2004), a
rigidez disciplinar que se instaura no ambiente escolar, inibindo os sujeitos do processo de
ensinar e aprender, de romperem as amarras que os aprisionam na construção de sentidos
para os distintos objetos do conhecimento, ainda é imposta aos alunos a desconexão com o
corpo, esquecendo que toda a aprendizagem passa por ele.
Logo, como são tão restritivas as possibilidades de brincar ao ar livre e deixar o corpo
percorrer livremente os espaços sem as amarras, ao serem confrontados entre a “aula de tablet”
e a aula de Educação Física, os leitores-jogadores não hesitaram: este foi o terceiro ponto.
Apesar da proposta trazida pelo gamebook, os sujeitos da pesquisa ainda vêm o momento de
interação como uma obrigação, o qual é chamado de “Aula de tablet”; mesmo que eles demons-
trem gostar desse momento, ainda é algo obrigatório para eles. Nas últimas interações, houve o
choque de horários da aula de educação física e a realização do jogo; os sujeitos tiveram certa
resistência em sair da aula para realizar a interação. Tendo em vista esse ponto, penso que esse
posicionamento ocorreu pois a aula de educação física é o único momento, ofertado a eles no
qual podem sair daquele espaço fechado (sala de aula) e agir livremente como uma real brinca-
deira que eles realizariam em casa ou na rua com os amigos. Naquele momento, eles poderiam
se ver mais “livres” (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.;
DOREA, M. F., 2016).
A escolha das crianças e dos pré-adolescentes evidencia que a interação com a tecnolo-
gia digital, os dispositivos móveis, os aplicativos e a conexão em tempo real com o mundo
podem ser atrativos, mas esses sujeitos sinalizam que esses prazeres podem e devem convi-
ver com outras práticas nas quais é necessário estar com o outro, explorar o espaço físico,
sentir o corpo, praticar esportes. Enfim, viver para além do digital, deixar o corpo livre, sem
docilizá-lo, libertando a inteligência aprisionada que, na perspectiva de Fernadez (1991, p.
27), se caracteriza pela “criatividade encapsulada, a curiosidade anulada, a renúncia a pensar,
conhecer e crescer”.
usuários a solucionarem problemas que exigem a atuação das FE. Dentro dessa perspectiva,
o GGF é um brain digital game. Todavia, é muito mais que isso, na medida em que enlaça
o leitor-jogador na sua narrativa, engajando-o e colocando-o no lugar do protagonista da
história, uma história que se inter-relaciona com os minigames que estimulam e desafiam
as FE e que provocam o imaginário desse sujeito a fim de que produza novas narrativas,
interagindo com distintas linguagens. Além disso, o GGF valoriza a cultura nacional, colo-
cando os personagens míticos do folclore brasileiro como heróis e rompendo com ideias
maniqueístas, por exemplo, de que o lobisomem é sempre mau.
Ainda ressalta a importância da proteção e da preservação da fauna e da flora das nossas
matas, não apenas representadas pela Floresta Amazônica, colocando o leitor-jogador como
corresponsável nesse processo.
Essa gama de possibilidades pode ser explorada no espaço clínico, no espaço escolar, nas
brinquedotecas ou simplesmente na interação com o GGF em casa, promovendo o desen-
volvimento de distintas funções executivas.
A flexibilidade cognitiva e a memória de trabalho compõem o conjunto de funções
que lastreiam o desenvolvimento cognitivo do ser humano, que, ao longo da sua existên-
cia, vivencia situações que podem potencializá-las. Uma destas é a interação com os arte-
fatos digitais, especialmente aqueles produzidos com esses objetivos. Mas é importante
ressaltar que as situações e as provocações cognitivas que ocorrem no universo in game
atuam como gatilhos para promover a atuação do sujeito out game. É dentro desse con-
texto que se insere o GGF.
Vale ressaltar também que, no espaço escolar, é possível extrapolar o universo criado no
GGF, incentivando os usuários à construção de novas narrativas em uma perspectiva trans-
midiática, favorecendo a estimulação das FE como planejamento, memória operacional e
flexibilidade cognitiva, entre outras, na medida em que se propõe aos sujeitos a criação de
outras leituras em torno da narrativa do GGF, como histórias em quadrinhos, fanfiction,20
contos, novos jogos etc.
Assim, considerando a escuta sensível, estabelecida a partir da minha imersão como
coordenadora do projeto e a interlocução com as pesquisadoras, foi possível apresentar uma
avaliação preliminar das contribuições do GGF no espaço escolar, apontando evidências
iniciais dessa mídia para a estimulação das FE, bem como para produzir novas versões que
se aproximem mais do desejo e do interesse dos leitores-jogadores.
Por fim, os resultados apontam e ratificam a premissa de Diamond et al. (2007) de que
é possível criar espaços de estimulação, inclusive na escola, que poderão contribuir para a
diminuição do déficit das FE dos sujeitos em processo de escolarização. Contudo, é funda-
mental continuar a realização da investigação, consolidando esses dados e contribuindo de
forma significativa para a aprendizagem dos alunos da rede pública de Salvador, especial-
mente para os alunos da Escola Municipal Roberto Santos.21
20
O termo fanfiction ou fanfic refere-se “originalmente, a qualquer narração em prosa com histórias e personagens ex-
traídos dos conteúdos dos meios de comunicação de massa” (JENKINS, 2008, p. 355).
21
A pesquisa ainda se encontra em andamento, e cinquenta crianças e quatro professores já interagiram com o GGF. O
nosso objetivo é envolver todas as crianças da escola na investigação.
Brain digital games e funções executivas 111
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Fundamentos da gamificação na
geração e na mediação do
8
conhecimento
Raul Inácio Busarello
• Sair da rotina
• Incentivar o comportamento
• Adaptação do conteúdo
• Aguçar a curiosidade
aprendizagem
mecânicas
narrativa de jogos
• Viver a história Mecânica: orienta as ações
• Domínio da história e gamificação Dinâmica: interação com
dos elementos interativos mecânicas
• Histórias são Estética: emoções na
engajadoras e mídias interação
para movimentação
Aprendizagem e gamificação
A aprendizagem é motivadora quando a atividade se torna divertida (AMORY et al.,
1999). Muitos dos elementos da gamificação são baseados em psicologias educacionais,
gerando outro nível de interesse e uma nova maneira de agrupar os elementos de aprendi-
zagem em um ambiente promotor de engajamento e de motivação para os alunos (KAPP,
2012). De-Marcos et al. (2014) salientam que o uso da gamificação tem potencial em
processos educacionais nos quais se encontram, com frequência, alunos desmotivados nas
atividades de aprendizagem. Simões, Redondo e Vilas (2013) entendem que, no dia a dia,
os indivíduos não são confrontados com atividades motivacionais, e a gamificação tem
potencial para induzir a motivação nessas rotinas.
Fundamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 119
De acordo com Garris, Ahlers e Driskell (2002), os jogos desencadeiam repetidos ciclos
de julgamento do jogador, comportamento do jogo e feedback. Esses ciclos dizem respeito a
um círculo de dependências com a intenção de: (1) buscar o comportamento desejável do
aluno; (2) possibilitar que os alunos primeiramente experimentem reações emocionais e
cognitivas desejáveis; e (3) que cada resultado da interação com o sistema e com os feedbacks
seja gerado pelo jogo.
Considerações finais
Este capítulo partiu de uma revisão e uma reflexão teóricas que objetivaram a discussão
do conceito de gamificação, partindo de cinco tópicos que a fundamentam. Entende-se,
dessa maneira, que a gamificação compreende uma estratégia de resolução de problemas,
investindo na elevação e na manutenção dos níveis de motivação e engajamento. Utiliza,
para isso, bases e sistemáticas comuns aos jogos e teorias sobre narrativa. Por outro lado,
busca envolver a experiência completa do indivíduo, transportando-o para um universo
controlado. Nesse ambiente, envolve o indivíduo em novas regras, acelerando a geração e a
aplicação do conhecimento.
A gamificação surte efeitos positivos no processo de aprendizagem, enfatizando o en-
gajamento do sujeito e contribuindo para o melhor aproveitamento da mediação e da cons-
trução do conhecimento. Concentra esforços na autonomia do aluno em um ambiente
controlado, em que os conteúdos de domínios específicos são subdivididos e tratados como
etapas em um contexto envolvente, correlacionando aspectos cognitivos, sociais e emocio-
nais. Por outro lado, o foco da gamificação está em explorar as motivações internas dos
alunos e, nesse caso, a aplicação pura e simples de mecânicas básicas dos jogos no processo
pode acarretar resultados negativos. Basicamente, para que seja efetiva, deve-se investir em
situações fora do cotidiano, favorecendo a aplicação da curiosidade, da satisfação e da con-
fiança do aluno.
Os elementos comuns aos jogos, como narrativas, metas, regras, feedbacks, desafios, es-
tímulos e a possibilidade de realização de um caminho próprio, contribuem para a constru-
ção da experiência dentro do ambiente gamificado, favorecendo a participação voluntária
do indivíduo. Dessa maneira, a aplicação de mecânicas e dinâmicas específicas, comparti-
lhadas com os jogos, contribuem para a participação no sistema gamificado.
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Gamificação e o processo de concepção
de bens de consumo
9
André Neves
Clarissa Sóter
Simone Barros
O design
No contexto deste capítulo, tratamos o design como atividade pela qual se projetam
todos os tipos de artefatos, incluindo utensílios, vestimentas, peças gráficas, livros, máqui-
nas, ambientes, softwares, games etc.
Especificando o conceito, adotamos a abordagem moderna da filosofia, com o design
referindo-se a objetividade, propósito, se interpondo entre ideias clássicas de sujeito e ob-
jeto. Entendemos o design, portanto, como o oposto à criação arbitrária, sem objetivo.
Como segunda etapa do canvas do DTC, tem-se a fase de concepção, ponto realmente
criativo do processo. Essa fase é dividida em cinco: diferencial; proposta de valor; ideias;
solução; e experiência de uso. Todos os blocos são compostos por cartas construídas com
base em métodos que facilitam o processo criativo, inspirados nos dados obtidos durante a
fase de observação.
No deck de ideias, destacamos duas técnicas que foram adaptadas para possibilitar a
ideação: caixa morfológica e brainwriting, ambas populares para a geração de ideias no
campo do design.
No caso da adaptação da caixa morfológica, as cartas vindas das outras fases do processo
(persona, atividade e proposta de valor) são adicionadas a mais duas cartas de referências,
uma de um elemento da natureza (biônica) e outra de um elemento produzido pelo homem
(cinética). A intenção é fazer a equipe pensar “fora da caixa” do que foi visto até então e
influenciar as ideias para as questões tecnológicas e biológicas.
A outra ferramenta de ideação é a técnica brainwriting, com um formulário de papel
contendo uma adaptação do método 6-3-5 (seis pessoas, três ideias cada, cinco rodadas) de
Bernd Rohrbach. Nesse processo de geração de ideias, o número de participantes é livre e
as cartas desenvolvidas durante a fase de observação também são usadas para fornecer in-
formações fundamentais.
Deve ser selecionada a ideia com maior potencial para atender às expectativas tecnológi-
cas, econômicas, sociais e culturais do usuário. Para isso, são usadas heurísticas básicas do de-
sign thinking, que mencionamos anteriormente: a desejabilidade, a factabilidade e a viabilidade.
Posteriormente, tem-se a fase de configuração, na qual ciclos iterativos evoluem a ideia
até que ela obtenha forma, podendo ser repetidos até que um resultado satisfatório seja
alcançado. São dois blocos: função e forma. O primeiro serve para representar como o sis-
tema funciona e deve se basear nas atividades determinadas para a persona. No segundo são
usadas cartas de referência que representem o repertório estético da persona e sirvam para
orientar a configuração morfológica do artefato projetado.
Uma parcela do mercado ainda defende que o trabalho de design termina com a confi-
guração do artefato, ou seja, na fase de configuração descrita. Porém, no DTC, considera-
mos ser atribuição da equipe de criação a definição de estratégias para direcionar o
lançamento dos artefatos, principalmente pelo fato de a metodologia ser baseada em mo-
delos de negócio.
Então, tem-se a última etapa da metodologia, a fase de publicação do artefato, que
consideramos bilateral pois envolve um planejamento que interfere no produto, mas ao
mesmo tempo é induzido por ele. Nesse sentido, três grupos de estratégias ligadas ao lan-
çamento do produto são definidos ainda durante o projeto: aquisição – estratégias que en-
volvem diretamente atração de usuários; retenção – estratégias com a finalidade de manter
o usuário fiel ao artefato; e monetização – estratégias relacionadas aos diferentes modelos de
negócio a serem explorados em torno do artefato.
Acreditamos, com essa última fase, dar ênfase a um dos principais fatores de sucesso de
um artefato: suas estratégias previstas e adotadas para atrair a atenção de potenciais usuá-
rios. Destacamos a importância da participação da equipe de design nessa fase, pois há uma
132 Gamificação em debate
influência do produto nas estratégias de aquisição. O inverso também pode ocorrer, pois, a
partir de algumas estratégias de aquisição, pode ser necessário incluir características no
artefato para viabilizar seu lançamento.
Outro conceito extraído do design thinking é a necessidade de tornar o produto econo-
micamente viável. Algumas dessas estratégias podem demandar ajustes no produto, por isso
sugerimos que essas definições sejam realizadas durante o processo de design, e não depois
de seu lançamento.
Resultados
Em novembro de 2013, o DTC foi disponibilizado em formato de aplicativo digital na
Apple Store. Foram realizados 1.015 downloads nos primeiros dois meses do lançamento e,
ao longo de 2014, 4.353 usuários baixaram o aplicativo. Em 2015, o volume de procura teve
uma média de 10 downloads diários, que se mantém até os dias de hoje, repetindo um total
de 3.500 downloads por ano.
O DTC tem sido utilizado, principalmente, nos seguintes países: Brasil, EUA, México,
Espanha, Alemanha, Chile, Colômbia, Portugal e França. No Reino Unido, na Austrália e
na China há também um bom número de usuários. Além desses, foram realizados downloads
em outros noventa países.
Na categoria Business da Apple Store, o aplicativo do DTC esteve entre os cinco me-
lhores do ranking em dois países, foi o décimo melhor em dez países e ficou entre os cem
melhores aplicativos em cinquenta países, números bastante significativos por se tratar de
um aplicativo com um fim muito específico.
Ao longo desses dez anos de construção do DTC, muitos projetos foram desenvolvidos
junto a alunos de graduação, mestrado e doutorado, bem como muitos desses projetos par-
ticiparam diretamente como validação e melhoria da metodologia, principalmente aqueles
que testaram o DTC em diferentes contextos e/ou testaram ferramentas sugeridas pelo
DTC para determinadas fases do projeto.
De uma maneira resumida, expomos aqui alguns resultados práticos da aplicação do
DTC em projetos cujos resultados deveriam ser, e foram, inovadores, assim como estudos
provenientes das pesquisas científicas executadas, a maioria tendo como orientador o pro-
fessor doutor André Neves. É importante frisar que muitos outros projetos poderiam ser
citados, bem como muitos outros resultados. Destacamos alguns aqui para deixar explícita
a relevância da nossa metodologia para o mercado de inovação, seu percurso no âmbito dos
projetos acadêmicos e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos do design.
Assim, temos no âmbito da graduação em Design os resultados da disciplina Design
Contemporâneo, entre 2012 e 2014, como primeiro exemplo. Nessa disciplina, grupos de
alunos foram orientamos a explorar os principais métodos e técnicas contemporâneos do
design para, posteriormente, desenvolverem produtos inovadores a partir do uso do DTC.
O foco foi a observação de oportunidades locais e a utilização de tecnologias disponíveis.
Os resultados dos projetos foram bastante relevantes em termos de bens de consumo
materiais e imateriais, a saber: um aplicativo para fidelização de clientes em restaurantes;
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 133
uma rede social para cinéfilos; um app que detecta bactérias presentes no ambiente; uma
geladeira com mudança cromática que alerta para a falta de alguns itens; um sapato des-
montável e customizável para diferentes ocasiões; uma jukebox digital; um colar para refres-
car o visitante dos mercados públicos do Recife por meio de mecanismos robóticos; um site/
app para divulgar e vender o trabalho de artistas de rua baseado na interação em redes so-
ciais; e um artefato de LED que auxilia profissionais de educação física, entre outros.
Já com estudantes da graduação em Portugal, usamos a metodologia em dois projetos,
um de baixa complexidade ‒ puxadores de móveis infantis ‒ e um de alta complexidade ‒
mobiliários urbanos para abrigar antenas de comunicação. Ambos os projetos foram execu-
tados em parceria com empresas locais, para responder a demandas reais e com foco em
inovação. A intenção foi aplicar a metodologia para projeto de produtos tangíveis e com
apelo sustentável.
Essa experiência serviu como experimento de validação do DTC em outra realidade,
fora do contexto da UFPE (onde a metodologia já era empregada), e teve resultados satis-
fatórios quanto à tentativa de inovar pelo viés da sustentabilidade.
No projeto de puxadores para móveis infantis, obtivemos: puxadores desenvolvidos com
PET reciclado e com sistema de LED para economizar energia; puxadores feitos de ma-
deira reciclada e que acompanhavam o crescimento das crianças; e puxadores maleáveis de
borracha reaproveitada com função sensorial, entre outros. No projeto dos mobiliários ur-
banos, apresentaram-se: estruturas para aproveitamento de água da chuva; estruturas com
painéis de energia solar; e móveis para hortas comunitárias, entre outros.
Na disciplina Tópicos em Design de Artefatos Digitais, do mestrado em Design, tam-
bém houve a divisão de grupos com o objetivo de desenvolvimento de um artefato digital.
Os resultados foram mais maduros, pois houve a discussão das fases do DTC e das técnicas
de design envolvidas.
Os resultados tiveram um viés mais social: app para monitorar idosos em situação de
isolamento; sistema para incentivar doação de sangue; e plataforma para organizar pacotes
turísticos para idosos, entre outros.
Recentemente, aplicamos o DTC em uma disciplina de Metodologia de Design para
alunos do mestrado profissional da Faculdade Cesar, em Recife. Dessa vez, utilizamos um
canvas de formato reduzido (sem prototipagem) em busca de ideação para inovação, sob as
temáticas desenvolvimento social e igualdade de gênero. Os resultados foram uma rede de
empoderamento e ajuda para mulheres em situação de risco e uma rede de educação por
meio da construção de instrumentos musicais com crianças trabalhadoras de canaviais.
No âmbito acadêmico, mencionamos estudos que, ao longo desses dez anos, contribuí-
ram para a construção da metodologia e validaram sua aplicabilidade em diferentes contex-
tos. Por exemplo, a aplicação de uma versão prévia ao DTC, por Alves (2011), chamada
Persona Card Games no desenvolvimento de jogos de tabuleiro e estampas de camiseta, com
o objetivo de comprovar que a metodologia poderia ser utilizada em diferentes áreas do
design sem perder suas características e suas propriedades. Esse estudo ajudou a nortear as
especificações do DTC.
134 Gamificação em debate
Outro projeto, cujos modelo proposto e discussões também serviram como validação
prévia do DTC, teve por objetivo auxiliar a indústria de jogos e entretenimento digital do
estado de Pernambuco, destacando a importância da pesquisa com usuários. A partir de
entrevistas com designers e gerentes de criação, Oliveira (2010) sugeriu a aplicação do
método de personas acrescido de maior conteúdo imagético e reuso de dados, que chamou
de Card Persona.
Um terceiro exemplo acadêmico foi realizado por Araújo (2015), em que discutiu pla-
nos de negócios tradicionais e modelos de negócios que utilizam um canvas. Dentro dessa
perspectiva, o trabalho faz uso de métodos de design, mais especificamente da técnica de
personas, para construir as informações e preencher o tabuleiro de clientes, verificando, ao
final, uma significativa evolução na profundidade analítica da fase. Assim, o trabalho se
tornou importante ao estudar e demonstrar como as técnicas de design podem auxiliar a
construção da informação dentro desses modelos de negócio baseados em canvas, o que
ajudou a evolução do DTC nesse sentido.
Em 2014, foi desenvolvido um modelo de gerenciamento de projetos a partir do uso de
conceitos de gamificação em atividades cotidianas no ambiente de trabalho. Os resultados obti-
dos comprovaram a hipótese inicial de que o uso de elementos provenientes dos jogos ajudaria
na motivação e na retenção de pesquisadores. Essa pesquisa, de Beem (2014), serviu para validar
o conceito sobre a gamificação dos processos de design, uma forte característica do DTC.
Em 2015, foi detectada uma dificuldade referente à captação de recursos para financiar os
projetos em jogos digitais, uma possível deficiência na aplicação de modelos de negócios. A
pesquisadora responsável, então, fez uma crítica aos estudos da área de jogos por focarem na
criação dos jogos em si e não na forma como estes serão inseridos no mercado e se tornarão
rentáveis. Como resultado desse esforço, Vargas (2015) desenvolveu uma ferramenta de apli-
cação prática para construção de modelos de negócios para o mercado de jogos. Essa pesquisa
serviu para validar o canvas e definir o escopo da metodologia DTC lançada em formato app.
Mais recentemente, uma das estudantes do mestrado propôs a elaboração de um am-
biente de trocas e conexões para dar suporte às ações dos pesquisadores e facilitar as ações
de formação e produção de dispositivos educacionais. Para isso, Simona (2016) utilizou o
DTC em uma aplicação web (multiplataforma) para professores e pesquisadores e demons-
trou o vasto escopo de alcance do DTC nos mais diferentes tipos de projeto.
Ao final desses exemplos, lembramos que muitos outros projetos poderiam ser citados aqui,
e muitos outros resultados poderiam ser discutidos. Destacamos alguns para mostrar a relevân-
cia da metodologia para o mercado de inovação, seu sucesso no âmbito dos projetos acadêmicos
e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos de pesquisa e prática do design.
Conclusões e desdobramentos
O volume expressivo de downloads do aplicativo e o grande fluxo de pessoas na fanpage e
no site do DTC indicam que este vem despertando o interesse de diferentes áreas. Além disso,
os relatos deixados por parte desses usuários apontam para projetos que envolvem não apenas
produtos digitais, mas serviços ou produtos físicos, nas mais diferentes esferas do design.
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 135
Os resultados das disciplinas nas quais aplicamos o DTC demostram que metodologias
lúdicas como a que propomos podem ser aplicadas no ensino do design, nos mais diferentes
contextos. Assim, também os trabalhos dos alunos de áreas externas ao design demonstram
que a metodologia resulta em ideias de produtos inovadores e cumpre com sua função de
“gamificar” o processo, tornando o ambiente de concepção do produto mais interessante,
divertido e multidisciplinar.
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Iconomia: violência e valor nos jogos
de produção dos ícones
10
Gilson Schwartz
As formas assumidas por essa “época sem futuro” (STIEGLER, 2016, tradução nossa) e,
portanto, sem autênticas vontades individuais ou coletivas marcam o comportamento coti-
diano das pessoas inseridas nisso que nos acostumamos a chamar de “redes sociais” (como se
alguma rede ou tecnologia pudesse existir sem ser social, sem negatividade), mas reorganizam
o mundo e obrigam a espécie humana a se alienar de uma nova forma e a buscar novos modos
de emancipação, inteligência e autêntica diversificação cultural e instrumental.
A economia política que aproxima a negatividade da produção intelectual, cultural ou
simbólica é a mesma que justifica uma nova oportunidade revolucionária. Do jazz à inter-
net, algum canibalismo sistêmico é sempre possível, antropofagicamente. Os games, como
o cinema e outras artes industriais, criam oportunidades de horror ainda mais profundo ao
atualizar a crítica adorniana ao jargão fascista, mas também oferecem e recuperam um le-
gado já significativo como estruturante da modernidade e da pós-modernidade, que é a
evolução da competência coletiva de operar com a metanarratividade pela negatividade da
racionalidade técnica e instrumental.
Este, aliás, parece o projeto inspirador da ars industrialis que articula o legado da obra
de Bernard Stiegler a uma necessária atualização da economia política que seja capaz de
extrapolar a negatividade do capital digital, intelectual e iconômico. Essa nova economia
política adorniana é também esfera de valorização da imaginação simondoniana, sócio-
-técnica e aberta a novos modelos de resistência (e reexistência) criativa frente à marcha
acelerada rumo à automação informacional, à precarização do trabalho vivo e à alienação de
massa pelo consumo insustentável realimentado de males infinitos e consciências progra-
madas para seres perpetuamente pacíficos e infelizes.
Discutir essa guinada adorniana/simondoniana da economia política – que eu denomino
“iconômica” – é condição para fazer a crítica à economia política da convergência dos letra-
mentos midiáticos, informacionais e criativos que reverberam nas redes digitais e nos convi-
dam a pensar a diferença e o risco de supressão da diversidade, bem como o potencial de
emancipação em novas dimensões da organização digital da economia, da ciência e da cultura.
Os games, mais que um “caso” ou “segmento” de mercado, carregam, além da dimensão
mercantil e técnica, a condição icônica; têm uma evidente dimensão tecnológica, mas tam-
bém uma dimensão audiovisual, icônica e utópica. Assim, mais que preço ou precificação,
estamos entrando numa dimensão de apreço, de apreciação em cadeias de valor biopolítico
em que, de fato, a vida no planeta está em jogo e a consciência da metanarrativa é crucial
para evitar o game over.
No universo dos games e da gamificação, ganha foro de expansão infinita um horizonte
de valor que é o da “iconomia”. Mais que o valor de mercado, é o próprio nomos (lei) que
passa a ser definido por associação a ícones, na dimensão do intangível, programados por
um código visual, imaterial, real e simbólico ao mesmo tempo. Nesse contexto pós-humano,
a opção shakespeariana fica entre “programar” e “ser programado” (RUSHKOFF, 2010).
A trilha aberta pela gamificação pressupõe uma economia política dos ícones que terá
como resultado um panorama interdisciplinar voltado a essa emergência contemporânea em
territórios urbanos globalizados e marcados pela errância periférica de indivíduos, comuni-
dades e nações, numa rede digital que aparece como se não tivesse um centro.
Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 139
A convergência entre “inclusão digital” e uma nova esperança na força criativa dos in-
divíduos tornou-se comum tanto a pensadores liberais que fazem apologia ao sistema capi-
talista, como Richard Florida (que já celebrava a emergência da “classe criativa” em sua obra
de 2002), quanto a teóricos de um novo marxismo autonomista (destacam-se os italianos
que definem os horizontes do capitalismo a partir do “trabalho imaterial” ou “pós-fabril”,
como Maurizio Lazzarato e Antonio Negri em 2001 e, mais recentemente, em 2016, uma
síntese crítica em Christian Fuchs).
Há um solo comum às abordagens que se apresentam como antípodas: trata-se de uma
convergência entre trabalho e lazer, o consumo fora da fábrica e do controle industrial
torna-se parte produtiva do sistema econômico. É o fim da classe operária, substituída por
uma massa intelectualizada que consagra a convergência entre capital e conhecimento.
A criatividade humana individual torna-se a força motriz na vanguarda do desenvolvimento
econômico e o principal motor produtivo. O trabalho contemporâneo torna-se, desse modo,
um processo de autoexploração (BROUILLETE, 2010). Uma combinação da perspectiva
radical com a ultraliberal compõe o discurso de movimentos na periferia do sistema.
Tropicalizado, o discurso da convergência digital no mundo do trabalho, que se confunde
com a autorrealização de uma vontade livre, serve muito bem ao projeto de tornar o Brasil um
importante espaço de consumo global no rescaldo da privatização do setor de telecomunica-
ções. Contudo, visto a partir da periferia do sistema capitalista global, há uma tendência real
para a emergência de uma cultura participativa liderada pela convergência digital?
Quais são os protagonistas sociais do novo quadro da participação política? Qual é o
papel das culturas populares e dos ativistas na promoção dessa convergência entre uma
ideologia participativa e a pregação em torno de um novo modelo pós-fabril que, aparente-
mente, nos leva para além do dualismo estrutural entre centro e periferia, capital e trabalho,
Estado e mercado?
Será que o paradigma do MIT confirmado pela geopolítica da dominação econômica da
internet e pelo controle corporativo das infraestruturas de telecomunicações permite de fato
a emergência de uma nova confiança na apropriação da renda e na criação de riqueza em um
mundo sem barreiras ao empreendedorismo e à capacitação contínua e descentralizada?
Será que a juventude, beneficiando-se dessas tecnologias convergentes via “startu-
pismo”, “artivismo” e a ocupação libertária de novos espaços públicos, pode assumir um
protagonismo que desembocará numa “primavera política global”, mudando efetivamente
as “regras do jogo”?
A gamificação veio para reconfigurar o espaço de jogo e o tempo da partida, trazendo
para primeiro plano esse elogio da disrupção associado por Stiegler a formas inovadoras,
emergentes e simbólicas de fascismo. Como nos anos que se seguiram à crise de 1929, há
um florescimento de posições radicais e o extremismo ideológico ganha contornos instru-
mentais que a democracia apenas faz aprofundar ainda mais, acentuando a dimensão do
agon (referente a diferentes tipos de disputa) que é essencial ao lúdico (já identificado em
Homo Ludens (2008), de Joan Huizinga).
Para examinar oportunidades, espaços e tempos dos games na sociedade contemporâ-
nea e pós-humana, ou seja, como os games afetam as relações entre pensar, fazer e brincar
140 Gamificação em debate
A democracia é um jogo que institui um tabuleiro em que as regras podem ser mudadas,
a ágora é um jogo político em que a cidadania sujeita seus destinos a um conflito que
pressupõe cooperação construída pela mediação, ou seja, pela destreza retórica e filosófica
dos cidadãos. O amor ao saber (filo-sofia) nasce, portanto, da luta pela razão num espaço
que é ao mesmo tempo de criação e aplicação de regras (nomoi). Nesse mundo, o mito, a
violência e a guerra pela primeira vez estão sujeitos a códigos, à clara identificação de res-
ponsabilidades e limites, como num jogo no qual há vencedores e perdedores apenas se
todos reconhecerem a legitimidade do código e seu espaço de aplicação.
Seja na criação e na aplicação de leis, seja na organização de jogos, o funcionamento da
“pólis” implica necessariamente a preparação de cada cidadão para entender e participar
desses espaços e tempos. Entendimento e participação que, se ainda dependem de um ato
de fé na inspiração divina dos atos humanos, produzem, ao mesmo tempo, a exigência
fundamental de educar cada indivíduo para essa lógica de conflito e superação. As regras de
um jogo exigem habilidades na prática de interpretação das próprias regras.
No lugar do instinto, da força e da violência fascistas, o cidadão educado é aquele que
joga com as normas, os conceitos e os direitos. O cidadão é quem aprendeu a respeitar a
tradição, imitar os bons exemplos e, ao mesmo tempo, reinventar a tradição, jogando seu
destino e sua inserção social num espaço de jogo entendido como um direito humano. Jogar
(ou “gamificar” o espaço público) é quase um sinônimo de julgar.
Quem julga, ou seja, faz ou emite juízos, domina a lógica e a retórica, joga com os
conceitos e os direitos para que se saiba em cada situação como fazer a conexão entre
pensamento, linguagem e sobrevivência, tanto do indivíduo quanto do ser social. Pensar é
jogar com (o) juízo, o que pressupõe confiar numa racionalidade necessariamente limitada
(e não plenamente calculista ou calculável) que se constrói coletivamente e para a qual se
educa com um olho na tradição e outro na salvação.
O berço da cultura democrática ocidental revela-se como o campo de jogos que nos
aproximam do “logos”. A “Paideia” (ideal grego da educação) revela-se como trabalho do
Estado para conformar a “paidía”, a brincadeira infantil, em jogo civilizado pelo reconheci-
mento mútuo e agonístico no espaço político e comunicacional da “ágora”.
Uma visão mais detalhada sobre a dimensão lúdica e a força do jogo em outras culturas
iria muito além do possível neste capítulo, mas é possível avançar retomando as indicações
que, em 1938, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicou em sua obra
Homo Ludens: Proeve Eener Bepaling van het Spel-Element der Cultuur [Homo Ludens: o jogo
como elemento da cultura, 2008], cuja pretensão foi estabelecer a dimensão lúdica como
constitutiva de toda cultura. O regime nazista manteve-o preso de 1942 até sua morte.
dos gregos, um valor tão excepcional, que as pessoas “deixaram de ter consciência de seu
caráter lúdico”. Com os jogos na fronteira da convergência digital, é o mesmo ethos.
Trata-se de identificar nos jogos essa mesma ambiguidade, seu caráter transdutivo –
termo consagrado pela obra de Gilbert Simondon (1924-1989) que tem reverberação prag-
mática na obra madura de Wittgenstein. O fato é que, em muitas línguas, é impossível
encontrar uma palavra que seja a “síntese única” de todas as atividades que se poderiam
considerar como “jogo”.
Divertir-se, engajar-se num movimento rápido, ser da ordem do ligeiro ou temporário, fu-
gaz, despreocupado, e ainda assim estar fazendo algo, brincar é jogar com a atenção, é pensar em
movimento ou ainda no próprio mover-se, brincar é um pensar em ação sem que tenha ocorrido
uma “pré-ocupação”, é o tempo da surpresa, do inusitado, do susto e da perplexidade.
O indivíduo cultivado, como o cidadão da “pólis” que sabe e pode pedir a palavra na “ágora”,
está numa posição social elevada, integra uma elite dos que “brincam” ou “jogam” com o destino
(individual e coletivo) em tudo que fazem, como se vivessem num mundo mais elevado.
O jogo é oposto à seriedade, mas se algo sério simplesmente não é jogo, o significado
de “jogo” não se esgota na negação da seriedade. A gamificação não se refere a tudo o que
“não é sério” e, portanto, a gamificação de coisas sérias é possível. Há uma assimetria nessa
negação que lembra a ambivalência psicanalítica da negação – para Freud (2014), negar um
objeto ou relação está muito longe de aniquilar sua existência real, simbólica ou imaginária.
A criança quando brinca o faz com a maior seriedade. Em todas as religiões e nas so-
ciedades tidas como “primitivas”, bem como no teatro e na brincadeira infantil, há uma
suspensão do juízo ou criação de um espaço-tempo mágico em que são vivenciadas carac-
terísticas que se poderiam associar a um esquema lúdico: ordem, tensão, movimento, mu-
dança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Nem por isso são atividades desprovidas de
consequências seríssimas sobre o desenvolvimento psicoafetivo de qualquer indivíduo.
O jogo surge para Huizinga (2008) como entidade autônoma, ora indicando um rudi-
mento de racionalidade instrumental, ora remetendo os participantes a uma dimensão
poética, desprovida de sentido e racionalidade, mas reforçando em cada um a consciência
de estar “integrado a uma ordem cósmica”, como se o jogo fosse via de acesso a um ato
sagrado, um culto (jogo como elemento da cultura).
Todo jogo é feito de seus lances, de cada jogador lançar-se, colocar-se num movimento,
aceitar a imersão num processo regrado e ao mesmo tempo aberto ao inusitado, surpreen-
dente e ardiloso, compreensível ou supostamente milagroso. É ao mesmo tempo ceder ao
simbolismo, à representação e à projeção da angústia imediata (frente à morte, à reprodução
ou à sorte) numa ordem que se permite ser interrogada, questionada, provocada.
É justamente esse conceito de jogo como operação ao mesmo tempo delimitadora e de
abertura para o novo (inclusive para novas regras ou violações de regras no limite da des-
truição do próprio jogo) que se torna relevante para pensar e operar a gamificação. Callois
(1990) consagrou certo esquematismo ao classificar os jogos em quatro categorias:
1. Jogo de competição (agon): o jogador é ativo.
2. Jogo de azar (alea): o jogador é passivo, conta com tudo menos consigo mesmo, é aban-
donado ao destino, com suspensão da vontade; a única forma de jogo alheia aos animais.
144 Gamificação em debate
3. Jogo mimético (simulação ou mímica): como no teatro ou nos jogos de papéis (role-
-playing game – RPG), o ator faz crer que é alguma coisa, é evasão do mundo e criação
de mundos.
4. Jogo de vertigem (ilinx): provoca uma modificação no estado de consciência, como no
balanço, numa ciranda ou numa cama elástica.
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Gamificação em educação: revisão
de literatura
11
João Mattar
Introdução
O campo de estudos sobre gamificação em educação cresceu vertiginosamente nos úl-
timos quinze anos, o que pode ser atestado pela quantidade de publicações mencionadas
neste capítulo. Isso torna, naturalmente, qualquer tentativa de realizar uma revisão de lite-
ratura um desafio bastante complexo.
As buscas para esta revisão foram feitas no Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério da Educação
(MEC), incluindo o Google Acadêmico, no final do ano de 2016, e atualizadas em 28 de
fevereiro de 2017. Foram a princípio utilizados no título os termos gamificação e educa-
ção (e suas traduções em inglês), posteriormente combinados com palavras que definem
as diversas áreas e subáreas do conhecimento classificadas pela Capes. Além disso, as
buscas foram refinadas com a combinação de palavras como revisão, mapeamento, litera-
tura ou sistemática.
Como critérios de exclusão, foram separados os trabalhos que se referiam à aplicação da
gamificação a alguma área específica (alguns deles são mencionados na seção seguinte) ou
algum nível de escolaridade específico (Educação Básica, Superior ou corporativa). Além
disso, foram também excluídos os trabalhos que exploravam especificamente o uso de games
em educação. Textos meramente teóricos também não foram considerados, apesar de terem
sido avaliados alguns que desenvolvem modelos teóricos testados empiricamente para a
aplicação da gamificação à educação.
Para ampliar as buscas, foram consultadas algumas das referências mencionadas nos
textos selecionados. Além disso, foram pesquisadas mais publicações sobre o tema dos au-
tores dos textos selecionados e avaliados alguns textos que citavam os artigos escolhidos.
Apesar de alguns textos teóricos ou voltados para áreas ou níveis de escolaridade espe-
cíficos serem mencionados neste capítulo (quando possuíam características que mereciam
destaque), além de algumas pesquisas individuais, a revisão focou basicamente nos resulta-
dos da busca que apresentavam mapeamentos ou revisões de literatura na área. Assim, este
148 Gamificação em debate
Gamificação
O termo gamificação passa a ser utilizado com mais intensidade a partir da década de
2010, apesar de a prática ser bem mais antiga. Deterding et al. (2011, p. 10, tradução nossa)
a definem como “o uso de elementos de design de games em contextos que não são de games”,
enquanto Sheldon (2012, p. 75, tradução nossa) propõe uma definição similar: “gamificação
é a aplicação de mecânicas de games a atividades que não são de games”. Há várias outras
definições disponíveis na literatura, em alguns casos considerando a utilização de games no
processo de ensino e aprendizagem como parte do conceito mais amplo de gamificação
(KAPP, 2012). Neste capítulo, seguiremos as definições de Deterding et al. (2011) e Shel-
don (2012), ou seja, a revisão de literatura realizada não levará em consideração o uso de
games em educação.
As publicações gerais sobre gamificação cresceram exponencialmente nos últimos anos,
inclusive em língua portuguesa (VIANNA et al, 2013; BUSARELLO, 2016). Uma busca
por livros na Amazon contendo no título a palavra gamification retorna 247 resultados (em
27 de fevereiro de 2017), com destaque para Zichermann e Cunningham (2011), Paharia
(2013), Zichermann e Linder (2013), Chou (2015) e Burke (2016).
Existem pesquisas sobre o uso de gamificação nas mais diversas áreas do conhecimento:
ciências exatas e da Terra, como matemática (ATTALI; ARIELI-ATTALI, 2015), física
(STUDART, 2015) e química (FERNANDES; CASTRO, 2015); ciências da saúde, como
educação física (VAN DER HOST, 2016), nutrição (BERGER; SCHRADER, 2016),
enfermagem (DAY-BLACK, 2015) e medicina (CARVALHO et al., 2013); quase todas as
subáreas das ciências sociais aplicadas, como turismo (LOURISELA, 2015), arquitetura
(AYDIN, 2014), tecnologia da informação (CASTRO; MONTICELLI, 2015), direito
(KIMBRO, 2015), economia (HAMARI; HUOTARI; TOLVANEN, 2015), administra-
ção (BAINES; PETRIDIS; RIDGWAY, 2015) e mercadologia (HUOTARI; HAMARI,
2011, 2012, 2017); e ciências humanas, como história ( JANIEC, 2015), ciência política
(MAHNIC, 2014) e letras (FLORES, 2015).
Apesar de a maioria dos estudos indicados nesta seção terem relação com o ensino
em áreas específicas, a seção seguinte explora as publicações e as pesquisas sobre gamifi-
cação em educação de uma perspectiva geral, que propositalmente não foram menciona-
das nesta seção.
Gamificação em educação: revisão de literatura 149
Gamificação em educação
Em educação, o uso da gamificação tem crescido intensamente, popularizado por vários
livros (SHELDON, 2012; KAPP, 2012; KAPP; BLAIR; MESCH, 2014; ALVES, 2014;
FADEL et al., 2014; MATERA, 2015; FARBER, 2017).
Sheldon (2012, p. 27, tradução nossa) faz sugestões para elaborar disciplinas como se
fossem jogos, mostrando em vários momentos como transformou um plano de ensino tradi-
cional em um game, com a observação: “Esta disciplina foi projetada como um jogo multiu-
suário”. Uma das propostas é converter as notas em um sistema de pontos, em que os alunos
começam com zero. A avaliação por pares é também sugerida. O livro apresenta ainda vários
cases de gamificação enviados por professores de diversas escolas e instituições de ensino.
Para Kapp (2012), a gamificação não é um fenômeno novo, não funciona para todas as
situações, não significa trivialização da aprendizagem nem é sinônimo de simplesmente
oferecer pontos e prêmios. Ele considera que os serious games seriam parte do processo de
gamificação na educação.
Seu livro descreve diversos elementos de games: abstrações de conceitos e da realidade;
objetivos; regras; conflito, competição e colaboração (conflitos envolveriam acabar com o
adversário: competição, vencê-lo); tempo; estruturas de recompensa (recompensas espera-
das geram mais dopamina que recompensas não esperadas, e a incerteza do jogo pode
transformar a experiência emocional da aprendizagem, aumentando o engajamento, a co-
dificação e a lembrança); feedback; níveis (fases, escolha de dificuldade na entrada e experi-
ências/habilidades conquistadas ao jogar); narrativa (envolvendo personagens, enredo,
tensão e resolução e a jornada do herói); curva de interesse; estética; replay ou jogar nova-
mente; motivação (e a complexa relação entre motivação extrínseca e intrínseca); avatares
(e seus aspectos psicológicos); e perspectiva do jogador (primeira ou terceira pessoa).
Apresenta também alguns modelos e teorias que podem servir de fundamento para o
design de jogos para a educação, conforme o Quadro 11.1.
Ensino intrinsecamente motivador (Thomas Malone)2 Inclui elementos de desafio, fantasia e curiosidade
Princípios de design instrucional para motivação Inclui elementos de controle sobre a aprendizagem,
intrínseca (Marc Lepper) desafio, curiosidade e contextualização
Taxonomia das motivações intrínsecas para a Inclui elementos motivacionais internos e externos
aprendizagem (combinação dos modelos de Malone como desafio, curiosidade, controle, fantasia,
e Lepper) cooperação, competição e reconhecimento
Fonte: adaptado de Kapp (2012). Importante ressaltar novamente que o autor considera a utilização de games em educação
um tipo de gamificação.
Kapp faz também uma revisão de meta-análises de estudos sobre os resultados do uso
de games na aprendizagem (não exatamente gamificação no sentido mais restrito que esta-
mos adotando neste capítulo): Randel et al. (1992), Wolfe (1997), Vogel et al. (2006), Ke
(2008) e Sitzmann (2011). Alguns pontos são comuns à maioria dessas meta-análises: ati-
tudes mais positivas em relação à aprendizagem e maior conhecimento foram detectados
em grupos que utilizavam games, comparando-se com grupos que utilizavam métodos de
ensino mais tradicionais; e games geram resultados positivos se têm objetivos de aprendizagem
1
Ver <http://www.arcsmodel.com/>.
2
Ver <https://www.learning-theories.com/intrinsically-motivating-instruction-malone.html>.
Gamificação em educação: revisão de literatura 151
uma disciplina online de introdução à programação com Python. Foram comparadas três
condições: (a) sem gamificação, (b) com elementos de games (mas sem elementos sociais) e
(c) com gamificação e elementos sociais (que significava desafiar um oponente). Os alunos
do segundo grupo tiveram notas 23% maiores e aumento de 25% em retenção quando
comparados com o primeiro grupo, e o grupo com gamificação e elementos sociais teve
notas quase 40% superiores e 50% de retenção em relação ao primeiro grupo. Como con-
clusão, é possível afirmar que a gamificação gera efeitos positivos na aprendizagem e que os
elementos sociais amplificam significativamente seu efeito. Estudos sobre gamificação em
educação a distância são naturalmente essenciais, pelo crescimento dos dois campos, mere-
cendo uma revisão separada.
Revisões de literatura
A revisão de literatura que buscou estudos de mapeamento, revisão ou meta-análises
sobre gamificação em educação, com os critérios de exclusão já indicados, retornou onze
textos: Borges et al. (2013), Nah et al. (2014), Hamari, Koivisto e Sarsa (2014), Caponetto,
Earp e Ott (2014), Surendeleg et al. (2014), Garland (2015), Dicheva et al. (2015), Dicheva
e Dichev (2015), Figueiredo, Paz e Junqueira (2015), Barreto et al. (2016) e Jackson (2016).
Borges et al. (2013, 2014) realizaram um mapeamento sistemático da área, analisando
inicialmente 357 estudos, escolhendo 48 relacionados à área e 26 que satisfizeram os crité-
rios de inclusão e exclusão. O mapa das pesquisas indicou que a maior parte dos estudos se
concentra em investigar como a gamificação pode ser utilizada em educação para motivar
os alunos e aprimorar suas habilidades e a aprendizagem.
Nah et al. (2014), em uma revisão de quinze textos datados de 2012 a 2013, identifica-
ram oito elementos de design de jogos que são amplamente utilizados nos contextos edu-
cacional e de aprendizagem: pontos, níveis/fases, badges, placares, prêmios e recompensas,
barras de progresso, narrativa e feedback.
Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) realizaram uma revisão da literatura em diversas bases
de dados de estudos empíricos sobre gamificação. Vinte e quatro artigos, revisados por
pares, foram selecionados. A variedade de contextos em que foram realizados os estudos era
ampla, sendo a gamificação em educação ou aprendizagem o contexto mais comum para as
implementações. Todos os estudos em contextos de educação/aprendizagem consideraram
os resultados da gamificação predominantemente positivos, por exemplo, em termos de
aumento da motivação e do envolvimento nas tarefas, bem como da diversão com elas. No
entanto, apontaram também para resultados negativos aos quais é necessário prestar aten-
ção, como os efeitos do aumento da competição e as dificuldades para avaliar as tarefas.
Caponetto, Earp e Ott (2014) realizaram uma revisão de literatura de 119 textos, pu-
blicados entre 2011 e início de 2014. Os resultados da análise apontam para a crescente
popularidade das técnicas de gamificação, tendo o conceito se tornado mais claramente
definido para pesquisadores e praticantes, diferenciando-se claramente do conceito de
aprendizagem baseada em games, o que sugere que certo nível de convergência taxonômica
e epistemológica está sendo construída. É interessante também notar que a maior parte dos
Gamificação em educação: revisão de literatura 153
e no envolvimento dos alunos. Os elementos identificados como mais usados foram: pontos,
badges, competição, nível, placar, realizações, recompensas, desafios e rankings. O Quadro
11.2 apresenta aspectos positivos e negativos identificados.
A competição também tem o potencial de Nem todo aluno é motivado da mesma maneira pela
compensar a falta de habilidades em algumas gamificação, pois as motivações podem variar de um
atividades para outro
A gamificação facilita o debate entre os alunos e Alunos com exatamente o número de pontos
promove compensações por responder a questões necessários para passar na disciplina eram menos
dos colegas motivados
Por fim, Jackson (2016), em sua dissertação de mestrado, realiza uma revisão de litera-
tura demonstrando que a gamificação pode ser incorporada com eficiência à educação para
motivar os alunos e melhorar a aprendizagem. Entretanto, a integração apropriada requer
uma análise detalhada dos alunos envolvidos, do material do curso, dos objetivos de apren-
dizagem e da estrutura holística da experiência, e a consideração de quais elementos e
mecanismos específicos guiarão com mais eficiência o aluno por uma experiência de apren-
dizagem significativa.
Modelos teóricos
Para o desenvolvimento de pesquisas na área, são necessários modelos teóricos testados
empiricamente. Bedwell et al. (2012) desenvolveram uma taxonomia dos elementos de games
Gamificação em educação: revisão de literatura 155
caso, a verdadeira causa do problema (má eficácia do design instrucional) permanece, e ele-
mentos de jogo no curso não farão nada para melhorar a aprendizagem.
Em outras palavras, a relação entre elementos de games e resultados de aprendizagem
é mediada por comportamentos/atitudes. As características de games afetam os resultados
de aprendizagem, mas apenas porque afetam um comportamento/atitude, e o comporta-
mento/atitude, por sua vez, afeta os resultados de aprendizagem. Portanto, a gamificação
pode não ter êxito em melhorar o aprendizado se qualquer uma das duas relações causais
da mediação não se sustentar: o professor deve assegurar que os elementos do jogo levem
ao comportamento e que este leve à aprendizagem. Se qualquer uma dessas relações for
falsa, a gamificação não produzirá os resultados pretendidos.
De maneira geral, esse modelo indica que a gamificação pode afetar a aprendizagem por
meio de dois processos. Em ambos, a gamificação pretende influenciar um comportamento
ou uma atitude relacionada à aprendizagem. No entanto, a relação entre esse comporta-
mento e os resultados difere dependendo da natureza dessa construção.
De um lado, a gamificação afeta o aprendizado pela moderação quando um designer
instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que aumentará os resulta-
dos da aprendizagem, tornando a instrução preexistente melhor de alguma forma. Por
exemplo, uma narrativa pode ser incorporada a um plano de aula existente para aumentar a
motivação dos alunos. O efeito final desse aumento motivacional é então contingente à
presença de instrução efetiva.
De outro lado, a gamificação afeta o aprendizado pela mediação quando um designer
instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que, por sua vez, melhore
os resultados da aprendizagem. Por exemplo, essa mesma narrativa pode ser usada para
aumentar a quantidade de tempo que os alunos gastam em casa com o material do curso; e
esse aumento do tempo deve causar maior aprendizado diretamente. Um ou ambos os
processos podem estar presentes em qualquer exemplo particular de aprendizagem gamifi-
cada eficaz e, criticamente, cada um exige diferentes designs de investigação e estratégias
analíticas para os suportar.
Esse modelo foi testado empiricamente em Landers e Landers (2014), que relacionam
elementos de jogo específicos comuns a placares (conflito/desafio, regras/objetivos e avalia-
ção) com comportamento focal do aprendiz e tempo na tarefa, explorando pesquisas edu-
cacionais sobre competição e pesquisas psicológicas sobre a teoria de estabelecimento de
objetivos. O processo de mediação da teoria da aprendizagem gamificada foi testado expe-
rimentalmente solicitando-se aos alunos a conclusão de um projeto baseado em uma wiki
online, sendo que um grupo utilizou uma versão gamificada com um placar e outro utilizou
uma versão de controle sem placar.
A atribuição aleatória a placares suportou um efeito causal. Os alunos com placares
interagiram com seu projeto, em média, 29,61 vezes mais que aqueles em uma condição de
controle. O método estatístico de bootstrapping foi usado para apoiar a mediação do efeito
da gamificação sobre os resultados acadêmicos por essa quantidade de tempo. O processo
mediador da teoria da instrução gamificada mostrou-se suportado. A conclusão da pesquisa
Gamificação em educação: revisão de literatura 157
foi que os placares podem ser usados para melhorar o desempenho no curso em determi-
nadas circunstâncias.
Conclusão
É possível tirar várias conclusões da revisão de literatura realizada. Em primeiro lugar,
cabe ressaltar que, apesar de ser uma área nova, houve um rápido crescimento dos estudos
sobre gamificação em educação, sendo possível afirmar que a fase inicial de euforia e oti-
mismo já foi superada, e caminhamos agora para a elaboração de teorias mais sólidas e
testadas empiricamente.
Em geral, as pesquisas apontam para resultados positivos da aplicação de estratégias de
gamificação à educação. Entretanto, é essencial diferenciar os estudos que procuram men-
surar o aumento da motivação, mais comuns, daqueles que procuram mensurar resultados
de aprendizagem, mais difíceis de se realizar. Mesmo da perspectiva da motivação, há ainda
muita discussão na literatura a respeito dos efeitos da gamificação sobre as motivações ex-
trínseca e intrínseca dos alunos, além do fato de que diferentes alunos são motivados de
maneiras distintas.
Praticamente todos os estudos apontam para a importância do design da gamificação,
incluindo a análise do contexto e dos alunos, a definição dos objetivos de aprendizagem (e
das regras do jogo), a elaboração do conteúdo e outros procedimentos, que podem ser
adaptados do design educacional.
Apesar de algumas críticas à simples identificação da gamificação com recompensas e
prêmios, o estabelecimento de um sistema de pontos para substituir as notas na educação
tradicional parece ser uma das contribuições importantes da gamificação. Nesse sentido,
faz-se necessário um trabalho detalhado com a construção dos placares (aproveitando seu
desenvolvimento no design de jogos) para apresentar aos alunos seu progresso nas ativida-
des, com indicações de sua classificação. Justifica-se também um trabalho específico na
elaboração de estruturas de feedback e recompensa para os alunos, incluindo, por exemplo,
badges. Cabe, entretanto, notar o desafio para a avaliação de tarefas nessas novas configu-
rações educacionais, sendo necessário combinar diferentes tipos de avaliação: autoavaliação,
avaliação por pares, avaliação automática do computador, avaliação do professor, avaliação
por projetos (encomendados por terceiros), avaliação de especialistas externos e avaliação
da multidão (como em redes sociais abertas).
A gamificação em educação tem também muito a aproveitar do know-how do level
design, ou design de níveis ou fases, uma das marcas do design de jogos. Assim, as experi-
ências gamificadas podem oferecer níveis distintos na entrada e conforme o aluno vai pro-
gredindo nas atividades. As conquistas são outro recurso que pode ser aproveitado do design
de jogos.
A narrativa é também um elemento essencial no design de jogos que pode contribuir
intensamente para a gamificação da educação, envolvendo personagens, enredo, desafios e
tensão. Nesse sentido, a combinação entre conflitos (em que o adversário precisa ser destru-
ído), competição (em que o adversário precisa ser simplesmente derrotado) e colaboração é
158 Gamificação em debate
uma das áreas em que o design de jogos tem mais a contribuir com a educação, com a res-
salva de que a competição pode gerar efeitos negativos na aprendizagem, como indicado em
muitos estudos.
Há naturalmente limitações nesta revisão de literatura. Alguns trabalhos importantes
podem não ter sido identificados por não possuírem as palavras ou expressões utilizadas
para a busca no seu título. Outros podem parecer estudos específicos por seus títulos e re-
sumos (e foram, por isso, excluídos da revisão), mas no final serem genéricos. Além disso,
estudos em áreas ou níveis escolares específicos, descartados nesta revisão, certamente têm
contribuições para as reflexões aqui realizadas, bem como os estudos sobre a utilização de
games em educação. Cabe ainda notar que o conceito de gamificação é fluido, podendo
algumas estratégias de gamificação estar indicadas em artigos que, a princípio, focariam na
aprendizagem baseada em games.
Diversos trabalhos futuros foram delineados pela revisão de literatura. São necessários
mais estudos empíricos na área, fundamentados em modelos teóricos e multidisciplinares,
que também precisam ser desenvolvidos. Especificamente, a área se desenvolverá com estu-
dos que procurem determinar quais elementos de design de jogos geram resultados (e que
tipos de resultados) em que tipos de cursos (e duração), alunos e contextos. Cabe também
diferenciar, nas futuras pesquisas, entre a gamificação do conteúdo educacional e a gamifi-
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considerando as armas que o design de jogos pode nos oferecer para lidar com esses de-
safios educacionais.
Nosso capítulo/jogo tem cinco fases que correspondem a grandes desafios do design
educacional: a intencionalidade pedagógica, a superação do modelo comportamental, a
transformação do demonstrativo em vivencial, a iteratividade e as novas formas de imersão/
presença. Convidamos você a tomar algumas decisões diante desses desafios.
Regras do jogo
O objetivo deste capítulo/jogo é encontrar caminhos para um design educacional mais
avançado, menos reativo e mais conscientizador. O design de jogos pode nos dar muitas
pistas de como criar processos mais interativos e exploratórios, mas não é possível apenas
trocar um processo de design educacional pelos processos de criar um jogo: é possível
comparar e contextualizar, aproveitando o que cada processo tem a ensinar e transformar.
Então, é preciso coletar e conhecer o potencial das armas que o design de jogos nos pode
dar e usá-las com parcimônia e coerência para potencializar o design educacional
Antes de começar nosso jogo, é preciso tecer algumas considerações sobre mecânicas e
dinâmicas e como podemos ampliar novas ações do design educacional com as tecnologias
e as lógicas dos games.
Um dos frameworks mais conhecidos de design de jogos é conhecido como mecânica-
-dinâmica-estética (mechanics-dynamics-aesthetics ‒ MDA) e foi desenvolvido por Hunicke,
LeBlanc e Zubek em 2004. O MDA considera como mecânicas os elementos ligados às
regras, às leis e à física: restrições e padrões programáveis. As dinâmicas se relacionam aos
movimentos, às ações e aos comportamentos que emergem a partir de regras e padrões, ou
seja, ao sistema e aos fluxos. Já a estética, nessa perspectiva de Hunicke, LeBlanc and Zubek
(2004), se refere às respostas emocionais evocadas no jogador, que os autores classificam em
oito tipos principais: sensação/excitação ‒ o jogo como sensação de prazer, que vem de uma
experiência complemente nova; fantasia ‒ quando o jogo faz acreditar num mundo imagi-
nário; narrativa ‒ quando o jogo funciona como um drama; desafio ‒ o jogo como um
obstáculo a ser superado; confraria ‒ o jogo funciona como um local de encontro, troca,
como uma comunidade; descoberta ‒ o jogo como um território desconhecido a ser explo-
rado; expressão ‒ o jogo como espaço de expressão de ideias e da representação de si; e
submissão ‒ quando o jogo é um passatempo e apenas o jogador se submete às regras.
Outra questão muito comum que aparece em relação a game e gamificação é a questão
da motivação e o engajamento. Chou (2015) estudou por dez anos as diversas mecânicas e
estruturas de games e propôs um framework para ajudar a pensar nessas motivações que
permeiam os processos de gamificação. Esse autor critica os modelos que reduzem a moti-
vação a pontuações e ranqueamentos e apresenta um framework chamado Octalysis, que
tem uma forma de octógono por meio do qual são apresentadas as oito faces da motivação:
significado, realização, posse, escassez, empoderamento, influência social, imprevisibilidade
e repúdio. O significado e o repúdio são o topo e a base desse octógono. Podemos dizer que
somos motivados por um propósito que nos dê significado e por aquilo que negamos e
Design educacional em jogo 165
evitamos, como se fosse nossa sombra, com a qual precisamos trabalhar e conviver, numa
relação de conflito que nos motiva.
O lado esquerdo do octógono de Chou destaca-se pelas motivações intrínsecas (reali-
zação pessoal, posse e escassez), com o foco no indivíduo e na sua evolução com a raciona-
lização dos processos, como a ideia de cumprir etapas, vencer desafios, superar obstáculos,
progredir e avançar, e com a coleção de objetos, mesmo que sejam simbólicos, que é a lógica
da posse e do ganho e, principalmente, de obter aquilo que é mais raro para ser diferente e,
geralmente, melhor que os outros por ter conseguido algo que é escasso.
O lado direito do octógono de Chou aponta as questões de motivações extrínsecas
(empoderamento, influência ou pressão social e a imprevisibilidade), ou seja, focadas no
nosso impacto e na relação social como o empoderamento e a capacidade de criação, o
quanto a sua ação afeta a ação dos outros ou é afetada por ela e o grau de surpresa, risco e
curiosidade que a ação provoca.
Neste texto, vamos combinar algumas regras e motivações e esperamos “tocar” você,
leitor, e convidá-lo a pensar em novos designs educacionais.
Regra principal: o objetivo do capítulo/jogo é tornar o design educacional mais viven-
cial e potencializar a aprendizagem
Temos alguns desafios principais a serem superados: lidar com intencionalidade, superar
o paradigma comportamental, pensar em formatos mais experienciais, aproveitar a iterati-
vidade e lidar com novos espaços imersivos. Durante o processo haverá algumas quests para
incorporar os desafios, bem como armas e poderes do design de jogos/gamificação para usar
nessas quests, com o objetivo de promover um design educacional gamificado. Convidamos
o leitor a identificar os elementos das dinâmicas e se posicionar, escolhendo ou não “armas”
e “poderes” que julgar mais adequados. As armas são estruturas mais concretas e os poderes
são movimentos e fluxos. Também vamos discutir, ao longo do processo, as controvérsias de
cada escolha para tensionar ainda mais. Topa o desafio?
Qual dessas armas e poderes você escolheria? E se pudesse escolher mais de um? Usando
qual deles a intencionalidade ficaria bem marcada, mas isso não seria artificial? Em qual ela fi-
caria implícita e incorporada no contexto, mas isso não seria uma distração ou até algo alienante?
Muitos jogos criados com intencionalidade educativa são profundamente indutivos e
explícitos quanto ao que se deve aprender e geralmente, por isso, são chatos, porque querem
mostrar, direcionar e induzir o tempo todo, para garantir que a pessoa está entendendo,
aprendendo, seguindo a trilha.
É muito comum no design educacional dividir os processos e criar uma lógica narrativa,
sequencial e/ou evolutiva, do mais simples para o mais complexo. Isso, em geral, ajuda a
entender o processo e o deixa mais claro, mas, muitas vezes, o artificializa, pois nos contex-
tos reais os problemas não são separados e organizados, não há redução ou didatismo.
É preciso trabalhar com muitas variáveis ao mesmo tempo.
Podemos, então, ocultar a intencionalidade? O aprendiz precisa conhecer a intenciona-
lidade pedagógica? Não podemos trazer problemas reais ou interessantes e deixar o aluno/
jogador resolver sem perceber que está aprendendo? Distraí-lo ou torná-lo inconsciente de
seus processos metacognitivos é algo indesejável e até perigoso, pois é uma forma de alienar
e de tornar uma pessoa facilmente manipulável. Aprender de forma consciente do seu
processo é algo transformador e que gera maior autonomia em quem aprende, tornando-o
mais responsável por suas escolhas. Assim, é interessante promover situações contextuais e
vivenciais, nas quais eles devem escolher, se posicionar e trabalhar com complexidade seme-
lhante à do mundo real, mas conscientes disso.
Escolher armas de evolução e divisão é algo que artificializa, mas pode ter alguns ganhos
antes de viver a complexidade maior, por isso, pode ser um primeiro passo.
Usar competição e pontuação é uma forma de motivação externa que pode ser engaja-
dora em alguns momentos e para determinado público, mas que não se mantém ou pode se
afastar da conscientização sobre o que e para que aprender.
Design educacional em jogo 167
Quest 2: como dar feedbacks sem cair nas armadilhas dos modelos mais comportamentais?
Contexto: imagine que você tem de criar a gamificação de um curso sobre gestão e precisa
criar feedbacks para o desempenho de quem está realizando o curso.
Armas de design de jogos/gamificação dos processos
• Arma 3 – puzzles: criar pequenos puzzles sobre as diversas tarefas envolvidas nos pro-
cessos de gestão. Na medida em que se resolvessem esses minidesafios, haveria um feedback
específico para o cumprimento de cada tarefa.
• Arma 4 – jogo de representação de papéis (role playing game – RPG): criar um RPG
como vivência dos processos de gestão no qual se teria de escolher as características
como gestor, seus pontos fortes e fracos e seus poderes; submeteria-se a desafios nos
quais responderia a cada situação conforme o perfil definido.
• Arma 5 – sistema de badges (distintivos ou medalhas): criar um mapa de competências
do processo de gestão e um sistema de badges que significariam cada competência
mapeada para esse gestor, e ele ganharia essas medalhas conforme agisse da forma espe-
rada ou tivesse uma solução mais criativa ou inovadora.
• Arma 6 ‒ banco de casos: trazer situações reais de gestão para a vivência gamificada por
meio de bancos de “casos” colaborativos alimentados por empresas e gestores que dese-
jam compartilhar seus desafios com o curso para explicitar e melhorar seus processos.
• Arma 7 ‒ visualização de dados abertos: elaborar ferramentas de visualização de pro-
cessos com dados vindos de sistemas reais abertos (como empresas públicas) em que o
gestor deve interpretar os gráficos gerados e propor soluções.
168 Gamificação em debate
Uma das características que difere o jogo de outros produtos educacionais é a agência
do jogador, ou seja, ele sempre é convidado a participar e a interagir de alguma forma.
Uma metodologia educacional que usa gamificação como estratégia pedagógica tem de
ser uma metodologia ativa. Mas qual tipo de agência ele tem? O jogador é mais ativo, e
até criativo, quanto maior a complexidade dessa agência, que deve estar relacionada dire-
tamente com a jogabilidade.
O desafio é alinhar competência com agência e jogabilidade. Por exemplo, um gestor
deve desenvolver muitas competências complexas, que envolvem análise contextual, múlti-
plas variáveis e decisões complexas, mas num modelo mais comportamental em que se
criam atividades reativas, ou seja, com uma pergunta e algumas repostas esperadas, na qual
o jogador só reage, criando-se um feedback para cada uma delas. O que acontece nesse caso
é que o agente, na verdade, tenta responder antecipando o que se espera que ele responda,
muitas vezes até seguindo um padrão do “politicamente correto” e do “comportamento es-
perado”, e nem sempre se posiciona como faria numa situação de conflito real.
Um dos grandes desafios da aprendizagem é preparar o aprendiz para o mundo real,
e não para realidades artificiais e simuladas. E como trazer o “mundo real” para a gamifi-
cação? Como trabalhar com dados reais? Há muitas gamificações que podem ser feitas a
partir de dados abertos e que até podem alimentar o sistema com a colaboração de quem
joga/aprende.
O desafio é criar um modelo de feedback que respeite novas entradas e possibilite a
criação de novos padrões de soluções. Os feedbacks geralmente são programados e criados a
partir de antecipações, mas, em sistemas colaborativos e mais criativos, a proposta é dar uma
nova situação. Como trazer o novo, a especulação, a promoção de novos caminhos, muitas
vezes trazendo soluções mais criativas além daquelas previstas e esperadas por quem criou
a ação gamificada?
Criar badges/medalhas a partir de tipos de ação pode ser interessante. Por exemplo: na
badge, pode ser valorizada uma postura questionadora, e isso pode ser valorizado na análise
das competências do gestor sem se limitar a um tipo específico de questão formulada ou a
um tipo específico de tarefa ou problema com resposta esperada. Os badges/medalhas são
indicadores de que a pessoa conseguiu estabelecer a relação. Assim, é possível criar indica-
dores para posturas como argumentação, contextualização, questionamentos, proatividade
etc. e dar feedback a partir de símbolos que significam essas posturas. Dessa maneira, o foco
é em como a pessoa contribuiu, e não um simples treinamento de habilidades por repetição,
memorização ou compreensão redutora.
Também é possível que o mesmo símbolo tenha níveis de aprofundamento diferentes,
tornando o marcador/indicador ainda mais complexo. Por exemplo, podemos ter um
badge que a pessoa recebe quando colabora. Mas pode haver diversos níveis de colabora-
ção: algo mais pontual, mais contextual, ou mesmo uma colaboração intensa que cause
transformação na ideia. Assim, o mapa de competências simbolizadas por badges/meda-
lhas pode funcionar de forma muito semelhante às rubricas, mas com uma representação
mais simbólica.
Design educacional em jogo 169
Desafio 4: iteratividade
A iteratividade é outro grande desafio do design educacional ligado à gamificação. Muito
do que se ensina e se aprende sobre o design educacional está apoiado em matrizes, tabelas e
roteiros nos quais se constrói o planejamento didático e depois se tenta traduzir o que foi plane-
jado em materiais que, juntos, vão compor um curso. No design de jogos, também temos
frameworks que nos ajudam a descrever a lógica por trás dos jogos e desenhar suas mecânicas.
Mas, como já descrevemos, também temos as dinâmicas e as estéticas, que dão vida às regras.
Assim, podemos ter os parâmetros iniciais que descrevem nossos escopos e nossos limites, mas,
para dar vida ao design, temos de trabalhar com os conflitos, com o “não planejado”, com o que
“dá errado” durante o processo. Esse é o grande desafio do processo de design, especialmente no
caso do design gamificado: planejar, descrever, jogar, errar, refazer, jogar, refazer, jogar, refazer.
• Arma 11 ‒ sandbox: criar espaços de experimentação sobre ou dentro das ações gamifi-
cadas. Um ambiente em que se possa criar sem medo, experimentar algumas mecânicas
para aprender a lógica, testar ou mesmo questionar. Um local “seguro” e que não faz
parte da aventura controlada ou avaliada.
Design educacional em jogo 171
• Arma 12 ‒ visibilidade para erros/conflitos: quando se encontra um erro, ele pode ser
consertado ou provocar uma desestabilização no sistema e na mecânica para que, como
um todo, seja repensado. Sistemas nos quais se marcam ou se apontam erros e inconsis-
tências são armas importantes.
• Arma 13 ‒ teste beta e grupos para colaborar: testar versões iniciais com comunidade
de jogadores é algo bem interessante. Na educação, podemos fazer cursos-piloto ou
testar materiais dentro de comunidades de práticas
• Poder 4 ‒ lidar com a imprevisibilidade: o grande poder é conseguir lidar com o novo,
o desconhecido, tendo-se alguns palpites pelo planejamento, porém esperando que sem-
pre haverá surpresas e fazendo dessas surpresas não o erro desagradável, mas uma nova
via criativa de algo que não havia sido previsto e pode ser incorporado como uma am-
pliação do processo.
Um recurso mais prático de produzir que a realidade virtual, mas que também pode
criar o efeito da teleimersão, é o chamado vídeo 360. Com câmeras e/ou lentes especiais
(que em algum momento também deverão se tornar disponíveis em dispositivos móveis), é
possível filmar um local ou um evento de todos os ângulos. Posteriormente, esse vídeo 360
pode ser assistido por meio de visores de realidade virtual ou usando simples adaptadores
de baixo custo para celulares, como o Google Cardboard e similares, o que provoca um alto
efeito imersivo. Mesmo sem ter a interatividade, essencial para ser caracterizado como rea-
lidade virtual, o vídeo 360 tem alta imersividade e pode propiciar a sensação de teleimersão.
Outra tendência tecnológica que em breve deve impactar as áreas de game e educação é a
IoT. A ideia é que objetos e dispositivos comuns em nosso dia a dia passem e ser acessíveis via
internet. Será possível não apenas receber informações desses dispositivos a distância, como
também atuar sobre eles. Os alunos poderão interagir com equipamentos de laboratório e até
executar experimentos a distância, dados sobre a atuação dos alunos poderão ser coletados du-
rante o desenvolvimento de atividades, a lousa poderá ser compartilhada e receber contribuições
de alunos locais e a distância, e até mesmo as carteiras poderão ter inteligência e interatividade.
Com essa tecnologia, a mistura entre real e virtual atingirá seu grau máximo, fazendo com que
o chamado ensino híbrido (blended learning) passe a ser a norma, e não mais a exceção.
Meio é a “massagem”
Experimentação Puzzles
(criar impacto)
Bancos de casos
Visualização de dados
Mundos controlados
Padrões estereotipados
(continua)
Design educacional em jogo 175
Universos fantásticos
Sandbox
Teste beta
Realidade virtual
Realidade aumentada
Teleimersão
IoT
Mod games
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Design e educação a distância: ensaio
crítico sobre o processo de gamificação
13
Priscilla Garone
Sérgio Nesteriuk
resultados. Por fim, todas as três dimensões implicam a seleção de elementos e processos
que melhorarão aspectos de uma tarefa por meio da gamificação.
Alves e Teixeira (2014) explicam que, para gamificar um objeto de aprendizagem, é
necessário associar questões de instrução, cognição, aprendizagem e motivação, e, conse-
quentemente, o processo de design se torna mais complexo. A gamificação deve fazer parte
da concepção projetual, pois seu planejamento determina a experiência do estudante com o
conteúdo, que deve auxiliá-lo no aprendizado por meio da exploração de qualidades cogni-
tivas, sociais, culturais e motivacionais, incentivando-o ao estudo e à reflexão crítica.
Os autores indicam ainda a necessidade de aplicações do processo de gamificação no âm-
bito educacional, com estudo de caso, para conhecer as repercussões práticas.
Ramirez e Squire (2014) afirmam que os educadores são responsáveis por sistemas que
geram recompensas por participação e há décadas tentam uma abordagem mais social,
participativa e sensível às necessidades dos estudantes. O interesse de muitos educadores na
gamificação decorre da insatisfação com os sistemas de notas e avaliação. Segundo os auto-
res, a gamificação é um processo contínuo, e projetar um ambiente de aprendizagem gami-
ficado deve ser encarado do mesmo modo. O processo de motivação é uma propriedade
emergente, definida por pessoa, tarefa e contexto, portanto deve ser constantemente estu-
dado. É preciso uma abordagem participativa, na qual todos possam ajudar na definição de
emblemas, realizações ou estruturas.
Groff et al. (2015) citam a aversão dos designers de jogos ao termo avaliação, por o
considerarem sinônimo de não diversão. Em termos gerais, avaliação é a criação de manei-
ras de identificar o que o aluno aprendeu e, por isso, o design de jogos baseados em avalia-
ção merece um segundo olhar. A estrutura deveria ser vista, então, como um processo na
ordem “aprender para jogar”, e não “jogar para aprender”, de forma que os objetivos estejam
alinhados com as tarefas e os resultados, para entender de que formas efetivas o jogo con-
tribui para a aprendizagem do aluno, sobretudo como forma de estímulo.
1
Ver <www.nickyee.com/daedalus>.
2
Ver <cms.mit.edu/games/education/proto.html>.
182 Gamificação em debate
Considerações finais
Inserir o design de jogos na educação a distância de modo sistêmico ainda é um
grande desafio. Trata-se de um campo profissional recente no Brasil, e essa pode ser uma
3
Ver <http://trivantis.com>.
4
Ver <http://www.q2l.org>.
5
Ver <education.mit.edu>.
6
Ver <http://getkahoot.com>.
184 Gamificação em debate
das razões pelas quais a atuação do designer é, muitas vezes, incompreendida. Entretanto,
mesmo em ocasiões em que o escopo do projeto é preconcebido unicamente por profes-
sores e pelo designer instrucional, é preciso que os designers de games sejam inseridos no
processo e dialoguem com as partes envolvidas para realizar alterações que melhor ade-
quem a proposta ao contexto e aos estudantes, para motivá-los a desempenhar as tarefas
por meio da solução gamificada.
Não obstante, constatou-se que a literatura consultada aponta uma variedade de méto-
dos para o desenvolvimento de projetos de gamificação, e diversos autores listam ações que
podem ser aplicadas à solução. Destacam-se as ideias de Faiella e Ricciardi (2015) em
função da especificidade de seu conteúdo, que visa à reflexão de que a aplicação da gamifi-
cação na educação exige parcimônia e deve ocorrer de maneira a considerar as particulari-
dades do contexto de aplicação e dos estudantes.
Tais asserções fortalecem o ponto de vista de que não existe solução única aplicável a
todo e qualquer contexto, e que a atividade do designer de games é complexa e não pode ser
abreviada ou limitada apenas às etapas finais do projeto. A gamificação é uma estratégia que
deve ser empregada e desenvolvida perante estudos e de forma consciente por parte de toda
a equipe envolvida, desde a definição dos objetivos educacionais de determinado recurso.
Espera-se que as ideias e reflexões aqui apresentadas ampliem os horizontes do design
de jogos, com vistas a aplicações futuras no contexto educacional, especialmente na moda-
lidade a distância.
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Gamificação e educação:
estudo de caso
14
David de Oliveira Lemes
Murilo Henrique Barbosa Sanches
Um bom jogo pode engajar as pessoas de uma maneira tão profunda que temporaria-
mente as noções de tempo e espaço ou dos próprios afazeres fica em segundo plano. Em
educação, para o aprendizado acontecer efetivamente, altos níveis de engajamento são es-
senciais. Então, parece natural tentar abstrair as características positivas dos jogos e inseri-las
em experiências de ensino. Antes vistos como inimigos do aprendizado, como elementos de
distração, os jogos estão sendo reconsiderados por trazerem um elemento primordial para
o aprendizado: o engajamento.
Pelo poder de incentivar comportamentos e mostrar-se como uma alternativa a méto-
dos tradicionais, a gamificação chamou a atenção de diversos setores. Recentemente, designers
de games de diversas partes do mundo têm se dedicado a aplicar princípios de jogos em
campos variados, como saúde, educação, políticas públicas, esportes, aumento de produtivi-
dade etc. (VIANNA et al., 2013).
Existem diversas experiências que vêm conseguindo resultados positivos. O projeto
Code.org, por exemplo, é uma instituição sem fins lucrativos dedicada a expandir o acesso
das pessoas à ciência da computação, que acredita que qualquer estudante em qualquer es-
cola deveria ter a oportunidade de aprender a programar. O Code.org utiliza uma lingua-
gem de programação visual pensada na acessibilidade do ensino e nos últimos três anos
treinou mais de 10 mil professores e tem mais de 6 milhões de usuários. Já o Duolingo,
conhecida plataforma de aprendizado de idiomas, lançado em 2011, vem percorrendo um
caminho de sucesso, tendo em 2016 mais de 120 milhões de usuários. O método do Duo-
lingo tem diversos elementos gamificados e acabou atraindo muito mais atenção e tendo
mais efetividade que a maior parte das plataformas e dos aplicativos de idiomas do mercado.
O Duolingo conta com uma “Incubadora” colaborativa de novos idiomas, um ambiente para
professores avaliarem seus alunos e que, em uma atualização ocorrida em 2016, trouxe a
função de grupos, na qual usuários competem por desempenho.
Essas experiências mostram que o ensino tradicional tem diversos benefícios ao aderir
a essa tendência. A possibilidade de transformar as salas de aula em um ambiente interativo
e prazeroso nunca esteve tão presente. Deve-se considerar ainda que a geração atual não é
188 Gamificação em debate
tão responsiva à educação tradicional; ela se motiva e interage com jogos, tecnologia e
narrativa. Os alunos consomem diversos conteúdos de suas casas a partir de vídeos, aplica-
tivos em smartphones, podcasts e tablets, entre outros recursos. O limite que a antiga e limi-
tada enciclopédia física impunha não existe mais. Contudo, dentre todas essas experiências,
uma se destaca: a Quest to Learn (Q2L).
A Q2L é uma escola pública nova-iorquina que trabalha com alunos do Ensino Fun-
damental II e do Ensino Médio, sendo conhecida e frequentemente citada por ser a pri-
meira escola do mundo a ter todo o ensino baseado em jogos.
A escola foi fundada em 2009, após anos de planejamento curricular em uma parceria
entre o Institute of Play, organização não governamental (ONG) que tem como objetivo
utilizar o design de jogos e os jogos como ferramenta de mudanças pessoais e sociais, e a
New Visions for Public Schools, uma organização focada na reforma e na melhoria da
educação recebida nas escolas públicas, de maneira experimental e contendo apenas 76
alunos do sexto ano. Todo ano era adicionada uma turma nova, até serem concluídas todas
as séries oferecidas do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. No ano letivo de 2014,
segundo o Quality Review Report do Departamento de Educação do Estado de Nova York,
havia sido atingido o número de 478 alunos na instituição, dos quais 15% são negros, 35%
hispânicos, 40% brancos e 10% asiáticos. E, em relação ao gênero, 70% do público é mas-
culino e 30% é feminino. A solução de problemas é incentivada durante as aulas, e foi
pensada para a aprendizagem de habilidades do século XXI, as quais especialistas dizem que
são necessárias para a formação e uma carreira de sucesso, como pensamento sistêmico,
colaboração e alfabetização digital.
A Q2L foi criada como uma tentativa de ir na contramão da tendência educacional norte-
-americana, pois, atualmente, 3 milhões de jovens desistem do Ensino Médio todos os anos,
75% dos estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio não conse-
guem escrever corretamente, 46% dos universitários não se graduam e quase 70% dos alunos do
8º ano do Ensino Fundamental têm dificuldades de leitura e em cálculo matemático.
A crise educacional tem diversas origens, mas as que se destacam são a falta de engaja-
mento e motivação que os alunos têm em relação à escola, e o modelo tradicional de edu-
cação não mostrava uma solução clara ao problema. O engajamento começa alto no Ensino
Infantil (80%), então cai para 60% no Ensino Fundamental, 40% no Ensino Médio e, por
fim, para 30% na vida adulta, quando os alunos são inseridos no mercado de trabalho.
A partir dessa constatação, o Institute of Play e outras organizações menores, em parceria
com a prefeitura de Nova York, desenvolveram o projeto de criação da Q2L. Brian Waniewski,
diretor do Institute of Play, afirma: “Somos uma reação ao declínio dos EUA na preparação
dos jovens” (CABRAL, 2013). Nas palavras do Institute of Play:
Nosso mundo está mudando tão rapidamente que nós podemos apenas começar a imaginar o
que o futuro nos trará. Contudo, estamos falhando em ensinar nossas crianças as habilidades e
o conhecimento que eles precisam para obter sucesso no mundo de hoje.
Jogos são uma importante ferramenta na escola, certamente, mas eles representam muito
mais que um recurso. Eles são a base de uma teoria de aprendizagem que é situada “como um
jogo”. Como resultado, nós projetamos a escola em torno de uma abordagem ao ensino que
obtém dos jogos o que eles fazem de melhor: deixar o jogador em um espaço baseado em
inquérito, problemas complexos que são construídos para entregar o aprendizado na hora
certa e usar dados obtidos para ajudar os jogadores a entender como está seu desempenho, o
que eles precisam trabalhar mais e aonde ir depois. É uma abordagem que cria, acima de tudo,
uma necessidade de saber, de perguntar por que, como e com quem? (SALEN, 2011, p. 11-12,
tradução nossa).
Segundo Salen, é isso que torna a escola uma experiência única: por “situada” ela quer
dizer que os estudantes são convidados a “assumir” as identidades e os comportamentos de
designers, inventores, historiadores, matemáticos e cientistas em contextos que são reais ou
significativos para eles, ou ambos. Por “como um jogo”, quer dizer uma abordagem de en-
sino que extrai as qualidades intrínsecas dos jogos e seu design para engajar alunos em uma
exploração profunda do assunto.
Na metodologia da escola existem sete princípios que devem ser levados em conta na
hora de desenvolver experiências de ensino gamificadas:
a. Todos são participantes: todos devem participar e contribuir; alunos diferentes podem
contribuir com inteligências e pontos de vista diferentes.
b. Desafio: o desafio deve ser constante e adaptado para motivar sempre. O aluno necessita
de incentivo para resolver desafios complexos.
c. Aprendizado na prática: o aprendizado é ativo, os alunos aprendem na prática, testando
e jogando.
d. Feedback imediato e contínuo: os alunos conseguem ter feedback do seu desenvolvimento
a partir de parâmetros de jogos, como pontuação, rankings, níveis etc.
e. Entender a falha como uma oportunidade: a falha é entendida como uma nova chance
de aprender; como em um jogo, existe a opção de tentar novamente.
f. Tudo está conectado: os alunos podem dividir seus conhecimentos e habilidades com
outros por meio de comunidades, grupos etc.
g. Sensação de estar jogando: a experiência de ensino deve engajar o aluno e dar suporte a
suas ideias e sua criatividade.
É importante perceber que esses princípios devem ser entendidos como um sistema em
que um depende do outro, cada um separadamente não consegue atingir resultados tão
satisfatórios. Um erro comum de análise é achar que escolas como a Q2L utilizam apenas
jogos de videogame comerciais em sala de aula, quando na verdade elas se utilizam de
princípios de jogos para elaborar experiências de ensino que funcionam como um jogo.
190 Gamificação em debate
A Q2L possui cinco disciplinas integradas: The Way Things Work (“como as coisas
funcionam”); Being, Space, and Place (“ser, espaço e lugar”); Codeworlds (“mundos codifi-
cados”); Wellness (“bem-estar”); e Sports for the Mind (“esportes para a mente”), com o
complemento de uma rede social interna. Elas são interdisciplinares e integram as discipli-
nas tradicionais. Cada uma dessas disciplinas ajuda os alunos a desenvolverem habilidades
em design de jogos e uma visão de que o mundo é formado por diversos sistemas. Por criar
espaços interdisciplinares, os alunos terão maior facilidade em transferir seu conhecimento
a novos contextos e situações, pois eles entendem como um conteúdo aparece em mais de
um lugar. E quando os alunos conseguem entender conceitos e transferi-los para outras
áreas, é uma prova de que realmente aprenderam aquilo.
• The Way Things Work: integração entre matemática e ciências. Nessa disciplina, os
alunos experimentam, projetam e resolvem diversos problemas específicos que incorpo-
ram conteúdos e habilidades de ciências, matemática e alfabetização (dependendo da
série). São utilizados argumentação científica, design experimental, comunicação e co-
laboração. A professora Leah Hirsch, em depoimento, conta sua experiência com a
matéria em uma turma do 6º ano com a qual ela utilizou o jogo Dr.Smallz durante doze
semanas. No jogo, os alunos conhecem a história de Dr. Smallz, que, para salvar a vida
de um paciente, diminui de tamanho e entra em seu corpo, porém ele sofre de amnésia.
194 Gamificação em debate
A missão dos alunos é ajudar o doutor a descobrir onde ele está dentro do corpo, utili-
zando conhecimentos de estrutura e funcionamento de órgãos e sistemas. À medida que
o aluno progride, aparecem desafios que vão o levar a descobrir qual doença o paciente
possui. Por fim, o jogador deve descobrir a melhor maneira de tirar o doutor de dentro
do corpo humano. Dr.Smallz cobre tópicos como células e organelas, processos celulares,
microbiologia e sistemas do corpo humano.
• Being, Space and Place: leva os alunos a perceberem tempo, espaço e geografia humana
como elementos que baseiam o desenvolvimento de ideias, expressões e valores. No 7º ano,
por exemplo, são abordados geografia, história, cultura, política e desenvolvimento econô-
mico dos Estados Unidos. No começo do ano, os alunos interpretam espiões ingleses e
examinam e vivenciam os acontecimentos da Revolução Americana e, no fim do ano, são
curadores que analisam os acontecimentos relativos à Guerra Civil Americana.
• Codeworlds: integra matemática com ELA (sigla para English, Language and Arts),
podendo incluir ainda noções de programação em suas aulas. Codeworlds ajuda o aluno
a entender a importância da matemática e da programação no seu dia a dia. No 8º ano,
por exemplo, o foco está nas funções. Os alunos aprendem como modelar situações reais
a partir da escrita e da resolução de equações. O primeiro trimestre coloca os alunos no
papel de um produtor de filmes, em que eles devem aprender sobre taxas de transporte
para aprender as estruturas de relações lineares. No fim, os alunos apresentam o orça-
mento e o calendário de uma produção de filme de dez dias, restringidos por uma série
de obstáculos. Já o segundo semestre se passa no universo fictício de Troika. Aqui, eles
acordam em um hospital abandonado em uma cidade pós-apocalíptica tomada pela
guerra. Eles devem resolver equações algébricas para escapar do hospital e continuar a
missão. A partir desse ponto, a introdução ao estudo de geometria ajuda o herói a resol-
ver problemas, incluindo o estudo de números irracionais e do teorema de Pitágoras.
O currículo contém bastante conteúdo que envolve matemática. Isso se dá pela impor-
tância do desenvolvimento do raciocínio matemático. Os alunos são incentivados a
trabalhar diversas vezes em uma ideia ou solução, criando modelos e testando-os ou
mesmo utilizando ideias ou soluções previamente criadas como forma de aprendizado
e de entender outros pontos de vista. A partir desse ponto, a pesquisa e o trabalho em
grupo são incentivados.
• Wellness: é uma disciplina e uma prática incentivadas por toda a escola, em que os
alunos aprendem realmente o que é ser saudável. Por “saudável”, entendem-se a saúde
física, mental e emocional e sua relação com os grupos de convivência escolares, fami-
liares e com a sociedade em geral. A base da disciplina é distribuída em ciências, sexua-
lidade, saúde, nutrição, mediação de conflitos etc. A disciplina incentiva o bem-estar
pessoal, que consequentemente afeta as relações entre a comunidade, com objetivo de
tornar a convivência na comunidade a melhor possível.
• Sports for the mind: prepara os alunos para o século XXI com conhecimentos conside-
rados pela Q2L necessários para o desenvolvimento do aluno. No 6º ano, recebem aulas
de design de jogos, no 7º, aulas de programação, no 8º, ferramentas para trabalhar com
mundos virtuais, e no 9º, visualização de informações e gerenciamento de conhecimento.
Gamificação e educação: estudo de caso 195
• Being Me: é uma rede social fechada desenvolvida especialmente para os alunos. Dife-
rentemente das redes sociais comuns, ela só permite alunos e professores, não contém
propagandas e anúncios nem outros elementos que possam causar distração. Ela permite
que os alunos postem seus trabalhos e criem blogs ou grupos de discussão, entre outras
várias funções. A rede conta com diversas atividades e possui rankings e pontuações
dentro de uma interface totalmente gamificada.
ou Boss Level criado é arquivado e documentado para que, mesmo anos depois, um profes-
sor possa buscar, utilizar e talvez até modificar a atividade.
Os Mission Packs são trimestres e semestres estruturados como um jogo e organizados
em missões com séries de objetivos. Normalmente, utilizam-se de narrativa como elemento
motivador, levam os alunos a interpretar diversos papéis, assim participando ativamente do
aprendizado, e são organizados em guias de utilização que ajudam o professor a inserir as
missões na sala de aula. O Institute of Play disponibiliza quatro guias de séries e temáticas
diferentes para download: Dr.Smallz (Ciências, 6º e 7º anos), Shark Tank (Matemática,
9º ano), I Spy Greece (Estudos Sociais, 6º ano) e Self on the Stand (Inglês e Artes, 9º ano).
Shark Tank, por exemplo, insere os alunos no papel de empreendedores, e eles devem desen-
volver modelos de negócio e apresentá-los a investidores fictícios, lidando com brainstorming,
gráficos, cálculos de estima de lucro, coleta de dados etc. Isso ajuda os alunos a entender
como se comunicar profissionalmente, selecionar dados confiáveis e úteis e cobre os tópicos
de estatística, modelos lineares e equações.
Em adição às tradicionais feiras culturais e de ciências, foi criado o Design, Art and
Code, que é uma experiência de uma semana que ocorre anualmente, na qual os alunos do
7º ao 9º ano desenvolvem suas habilidades em arte, design visual e programação. O objetivo
é despertar o interesse dos alunos nas áreas e gerar conhecimento útil para a vida adulta.
Os participantes trabalham com experts para aprender conceitos e princípios fundamentais
das áreas, tanto com aulas focadas em teoria quanto em prática. Ao longo da semana, o
aluno escolhe se vai focar em design e arte ou em programação. São introduzidos a concei-
tos de design de ambientes 2D e 3D, criação de jogos e de arte ou ao básico de linguagens
de programação como HTML 5 e Java. Nenhuma experiência ou conhecimento prévio é
exigido, é tudo preparado de maneira que um leigo compreenda.
O ano letivo é composto de 180 dias, divididos em três trimestres de aproximadamente
12 semanas. Caso o aluno seja novo na escola, ele participa de uma adaptação de duas se-
manas para compreender a metodologia utilizada. As aulas começam às 8h e terminam as
16h10, menos às quartas-feiras, quando terminam às 14h. Dependendo do tipo de aula, elas
podem durar entre sessenta e oitenta minutos. Por ser um ambiente focado em tecnologia
e jogos, as pessoas são levadas a pensar que a Q2L serve de apoio ao sedentarismo, porém
a escola tem um programa de atividades físicas que engloba esportes como vôlei, basquete,
tênis de mesa e beisebol, entre muitos outros.
Por ser uma escola pública nova-iorquina, também é realizado um exame pelo qual
todas as escolas devem passar, e além dessa prova existem as avaliações ao fim de cada tri-
mestre, em que o aluno precisa produzir algo que prove que assimilou os conhecimentos
necessários. Além disso, os professores são capazes de avaliar os alunos enquanto eles jogam
ou praticam uma atividade, pois existe um feedback contínuo.
Os gastos essenciais, como salários dos professores, luz e equipamentos, são pagos pelo
estado. A estrutura extra que a escola possui é paga por instituições beneficentes e filantró-
picas. O custo por aluno pode chegar à casa dos US$ 24 mil por ano, um terço maior que o
custo médio nacional.
Gamificação e educação: estudo de caso 197
Um dos objetivos principais para nossos alunos é que quando eles se graduarem na Quest to
Learn sejam verdadeiros pensadores sistêmicos e designers, entendendo que os desafios impor-
tantes no mundo não podem ser solucionados de maneiras simples, e devem ser abordados de
diferentes perspectivas e ângulos.
Referências
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198 Gamificação em debate
Natureza da gamificação
É certo que a gamificação está relacionada aos games. Mas de que maneira? A gamifi-
cação busca extrair dos games especialmente seus atributos lúdicos que levam a participação,
engajamento e entusiasmo do indivíduo em relação àquilo que faz. Diante disso, o primeiro
campo a absorver e aplicar os princípios da gamificação foi o mundo empresarial, pois as
corporações visam, antes de tudo, ao comprometimento produtivo de seus membros, por
meio do incentivo à cooperação e à competitividade. Para isso, utilizam estratégias de inte-
ração baseadas na lógica dos games. De acordo com Kenski (2011), essas estratégias envol-
vem a definição de tarefas “que estejam de acordo com o objetivo da empresa, a criação de
regras e a aplicação de sistemas de monitoramento. As recompensas pelas interações dos
usuários podem variar desde incentivos virtuais [...] até prêmios físicos”. Um grande incre-
mento para a gamificação nas empresas veio com as redes sociais, que criaram “um solo
fértil para o uso de mecanismos de games na divulgação de marcas, já que existe uma ten-
dência natural de recomendação e interação do público com empresas com as quais tem
afinidade” (KENSKI, 2011).
Outro campo que tem buscado aplicar estratégias de gamificação às suas atividades é a
educação. Com isso, visa-se tornar aulas e demais atividades mais produtivas e eficientes,
porque mais atraentes. Também com base nos princípios da sociabilidade e da competitivi-
dade humanas, grande parte das estratégias procura incorporar com eficácia o potencial dos
200 Gamificação em debate
dispositivos móveis para inovar nas formas de interação entre estudantes e professores,
tendo por meta o aprendizado produtivo.
Em suma, conforme já exposto em Santaella (2013), a ideia por trás da gamificação é
que tudo pode virar um jogo, e seu ambiente pode ser uma sala de aula, uma sala de treina-
mento de uma multinacional, a mesa do presidente de um banco ou mesmo um restaurante
cadastrado no serviço online Foursquare. Este, de fato, já contém alguns traços que são
próprios dos games: fornecer aos clientes algumas vantagens de fidelidade, como descontos
ou o status de mais assíduo frequentador e o título de prefeito do lugar.
Assim, a gamificação busca trazer para as atividades desempenhadas pelas pessoas ele-
mentos ou “valores” que fazem parte do jogo: “alcance de novos níveis, acúmulo de pontos
ou de símbolos de status (badges), simbologia clara de êxitos quando objetivos importantes
são alcançados (feedback), barras de progresso para atividades reais” (DORNELLES, 2011).
Ou seja, busca aplicar o design thinking dos games para contextos extragames, de modo a
tornar esses contextos mais divertidos e atrativos.
A antecipação de vivências, a rapidez na aplicação de treinamento e o envolvimento
propiciado pelos ambientes lúdicos têm levado o mundo corporativo a inserir os games no
seu dia a dia. Em quaisquer campos em que se aplicam, os jogos digitais levam seus usuários
a aprender sem perceber, de forma natural, além de desenvolver a habilidade para se traba-
lhar em equipe.
A partir dessa introdução, o rumo que este artigo pretende tomar é um pouco diferen-
ciado daquilo que tem sido abordado na literatura sobre gamificação. Aqui, a mira estará
voltada para aquilo que os games têm de insubstituível, intransferível e intraduzível e que,
portanto, não pode ser absorvido por quaisquer estratégias de gamificação.
Dupla imersão
No uso corrente dicionarizado, imergir é sinônimo de mergulhar. Quando transposto para
o mundo das linguagens, o significado adquire outras conotações, como prender a atenção,
entregar-se ao momento, pactuar com o conteúdo recebido etc. Tais conotações já existiam
antes da chegada da internet e da interação que ela exige para que se possa participar daquilo
que ela oferece. Com a internet, entretanto, aos significados já existentes de imersão acrescen-
tou-se algo novo, a saber, a aliança da imersão com a interatividade. Esta também é uma pa-
lavra que já existia antes da internet para significar “ação entre”, “ação recíproca”.
Contudo, a chegada da internet também potencializou o sentido de interatividade.
Dediquei a essa questão um estudo detalhado em Santaella (2004), o que permite me limi-
tar agora aos seus pontos mais fundamentais. A interatividade apresenta graus que foram
estudados por vários autores. Entre eles, Kretz (1985) estabeleceu seis gradações para a
interatividade: (a) interatividade zero em romances, discos e DVDs que são acompanhados
linearmente, do começo ao fim; (b) interatividade linear, quando romances, discos e DVDs
são folheados e saltados em avanços e recuos; (c) interatividade arborescente, quando a se-
leção se faz pela escolha em um menu ‒ hipermídia arborescente, jornais ou revistas; (d)
interatividade linguística, que utiliza acesso por palavras-chave, formulários etc.; (e) intera-
tividade de criação, que permite ao usuário compor uma mensagem por correspondência; e
(f ) interatividade de comando contínuo, que permite a modificação e o deslocamento de
objetos sonoros ou visuais por meio da manipulação do usuário, como nos videogames.
Um dos pontos-chave da interatividade digital encontra-se no fato de que a informação
que chega aos usuários implica em um feedback imediato. Os sistemas usados na internet
são muitos, exibindo diferentes capacidades tecnológicas e de interação, tanto síncronas
quanto assíncronas. Além disso, a proliferação exuberante de sites, blogs e redes de relacio-
namento naturalizou a interatividade. Entretanto, é nos games que a vocação interativa do
universo digital atinge o seu ápice. Vejamos por que.
Antes de tudo, pelo fato de que, no universo digital, a interatividade está entrelaçada
com a imersão. Ademais, nesse território, há vários níveis de imersão que, em outro trabalho,
sistematizei em quatro (SANTAELLA, 2004). O nível mais profundo é o da imersão per-
ceptiva, que é experienciada nos ambientes de realidade virtual. O próximo nível é atingido
por meio de telepresença, quando um sistema robótico permite que alguém se sinta como
se estivesse presente em um local distante. Ao terceiro grau chamo de imersão representa-
tiva, obtida em ambientes construídos com linguagem VRML (virtual reality modeling
language)1. Enquanto na realidade virtual o participante experimenta a sensação de estar
dentro, atuando na cena virtual, na imersão representativa a pessoa está de algum modo, na
maioria das vezes por meio de um avatar, representada no ambiente virtual da tela. O último
grau de imersão, mais frequente e menos profundo, ocorre quando o usuário está conectado
na rede. Entrar na rede significa necessariamente imergir em um mundo paralelo e imate-
rial, feito de bits de dados e de partículas de luz.
1
Padrão de formato de arquivo usado para aplicações de realidade virtual (RV), também conhecida como virtual reality (VR).
202 Gamificação em debate
Ora, muito antes da cultura digital ter trazido à baila os conceitos de imersão e interativi-
dade, esses conceitos já eram centrais em qualquer tipo de jogo. Presente em qualquer jogo, a
interatividade está conectada à exigência de que o jogador realize uma ação, como mover uma
peça em um tabuleiro ou pressionar uma tecla em um teclado, pois essa ação é projetada para ter
um significado específico no mundo do jogo. Essa performance implica a interação do jogador
com o estado do jogo. Nos games, contudo, a interatividade já é, por princípio, aquilo que conduz
as ações recíprocas do jogador com os processos que o design interativo determina.
Quanto à imersão – em um sentido psicológico e perceptivo, não necessariamente no
sentido cibernético –, ela também é uma condição a ser preenchida por qualquer tipo de
jogo, por mais rudimentar que ele seja. O ato de jogar pressupõe um agenciamento, um
jogador que tem de estar concentrado, envolvido e absorvido na sua ação, imerso nos passos
da máquina de estados que caracteriza qualquer jogo. Isso significa que, no caso de jogos
computacionais, dois tipos de imersão estão operando ao mesmo tempo, a imersão psicoló-
gica e perceptiva mais profunda, que é exigida por qualquer jogo, e a imersão que é especí-
fica de um ambiente cibernético. Esse engajamento duplo certamente intensifica o processo
de imersão na experiência subjetiva do jogador, e pode muito bem ser uma das razões pelas
quais jogos computacionais são tão inelutavelmente atraentes e hipnóticos.
De fato, no caso dos videogames, a concentração intensa que está neles implicada re-
sulta do fato de que, tão logo alguém se torna um agente em um game, essa pessoa imedia-
tamente entra em um mundo paralelo, autossuficiente, cuja autossuficiência é suportada
pela autorreferencialidade de suas regras. Quando digo mundo paralelo, isso não deve ser
entendido apenas no sentido de um mundo que é artificialmente construído, como é co-
mum acontecer nos jogos computacionais, nos quais todo o ambiente virtual tem de ser
desenhado e arquitetado. Quero me referir, isso sim, à condição criada pelo jogo de colocar
o jogador em outro plano da realidade.
Isso ocorre em qualquer tipo de jogo e, no caso dos games, foi sobejamente explorado
por muitos de seus teóricos e comentadores, ou seja, a entrada do gamer em um contexto
fictício. Entretanto, chamo atenção para algo ainda mais primário que isso. O que importa
em um game não é o realismo ou a fantasia de seu cenário e seu conteúdo. Não importa se
ele está bem perto de um gênero de ficção científica ou se é tão insensato quanto um dese-
nho animado. O que importa é o grau de intimidade que a penetração no universo digital
propicia. Segundo Murray (2003, p. 102), “a experiência de ser transportado para um lugar
primorosamente simulado, é prazerosa em si mesma, independentemente do conteúdo da
fantasia. Referimo-nos a essa experiência como imersão”. Assim, quanto mais a conexão
entre games e jogadores é íntima, mais cresce o processo imersivo, pois os games mapeiam
o jogador dentro do jogo. Eis aí, portanto, um atributo que os games têm de inimitável: a
imersão em potência dupla.
resolve-se porque Kant separou o fim, ou seja, a utilidade a que algo se presta, de sua fina-
lidade, quer dizer, o prazer que é capaz de provocar. O fim diz respeito à utilidade, às neces-
sidades práticas da vida, enquanto a finalidade se esgota em si mesma, daí ser capaz de
provocar prazer desinteressado, quando a única finalidade reside no próprio prazer.
É certo que, para Kant, a finalidade sem fim refere-se ao julgamento do belo ou do
gosto. É a beleza que provoca prazer desinteressado e que, portanto, não funciona como
meio para satisfazer um fim externo. Por isso, pode parecer inadequado transpor para o
universo dos games o complexo contexto em que o julgamento kantiano do belo é pen-
sado. Contudo, é viável considerar que, embora o que esteja em pauta nos games não seja
o belo, guardadas as devidas diferenças, a cifra da finalidade sem fim parece também lhe
caber com justeza.
Não dever ser por acaso que alguns autores estabelecem a comparação da liberdade do
ato de jogar com a autonomia da arte. Para Kwastek (2013), o jogo é voluntário e desinte-
ressado, ou seja, não visa a outros fins a não ser ele mesmo e o prazer que provoca. Embora
o jogo implique desafios e superações, metas e compensações, não existe uma finalidade
externa que atraia o jogador a não ser a busca de um fim que se esgota no próprio jogo
(MCGONIGAL, 2012).
Upton (2015) é outro autor que estabelece a comparação entre a experiência estética
e a experiência de jogar. Para isso, o autor levanta seis elementos que são próprios do ato
de jogar: escolha, variedade, consequência, previsibilidade, incerteza e satisfação. Com
isso, Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 51) pretende compreender “quais característi-
cas são essenciais e quais são negociáveis em um jogo, para expandir as possibilidades de
efeitos estéticos que ele pode produzir”. Quando discute o elemento da satisfação, o autor
esclarece que o efeito do prazer não reside apenas em ganhar o jogo, mas, sobretudo, no
jogar em si.
Bastante conhecida e sobejamente citada no contexto dos games é a teoria do fluxo, de
Csikszentmihalyi (2008). Voltamos a ela pela relação que apresenta com o efeito estético e,
consequentemente, com a finalidade sem fim. Para que o estado mental e mesmo corporal
do fluxo seja atingido, é necessário um total desprendimento da percepção e da atenção de
qualquer incidente externo, quer dizer, exige-se uma concentração na atividade que se de-
senrola como um fim em si mesma, um ato que se realiza pelo puro prazer de sua realização.
Tanto na contemplação ou participação estética quanto no ato de jogar, a experiência em si
se expande a tal ponto que aquele espaço-tempo parece ser o único universo existente. Essa
experiência só é possível porque o ato em si é alimentado pela imaginação criadora. No caso
dos games, segundo Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 67), a dilatação imaginativa da
experiência é conquistada por meio da antecipação: antecipar com precisão os resultados
das ações é o objetivo maior, ou metaobjetivo, de todos os jogos.
As considerações anteriores parecem dar crédito à proposta deste artigo quando tor-
nam evidente que, enquanto o game é um território em que impera a finalidade sem fim,
na gamificação, mesmo que haja o prazer promulgado por estratégias similares aos games,
não existe a possibilidade do prazer desinteressado, pois há sempre finalidades externas
ao prazer.
204 Gamificação em debate
Narrativa em ato
A terceira parte do livro Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal (Santaella,
2001) foi dedicada ao discurso verbal cuja classificação se distribui em: (a) descrição; (b)
narração; e (c) dissertação. Comparado com os outros dois tipos de discurso, o narrativo é
aquele com que o falante tem mais intimidade, advinda da facilidade para seu desempenho
graças à estrutura sintática narrativa das línguas indo-europeias: sujeito-predicado-comple-
mento. Portanto, a maior parte das frases verbais já contém um núcleo narrativo.
Além da facilidade, narrativas atraem a imaginação e a sensibilidade, sendo capazes de
produzir projeções identificatórias nos seus leitores ou espectadores, como é o caso da lite-
ratura, dos quadrinhos, do cinema e de alguns vídeos que primam pela narratividade de seus
discursos. A narrativa, o ato de contar histórias, acompanha a humanidade desde tempos
imemoriais. Pode-se até afirmar que a ficção faz parte integrante da vida humana. Algumas
das inscrições nas cavernas já eram flagrantes narrativos, fragmentos congelados de uma
narrativa subjacente. Então, os mitos e os ritos, responsáveis pela representação e reencena-
ção mágica do mundo, são formas narrativas que, no Ocidente, se tornaram mais complexas
na epopeia, canto falado dos feitos heroicos do homem, em contraponto às tragédias, tramas
de submissão do ser humano aos incontornáveis enigmas do destino.
As narrativas orais, os contos maravilhosos e as novelas medievais culminaram na his-
tória crepuscular do fidalgo Don Quixote, desencontrado em um mundo transmutado que
não podia mais dar acolhida aos seus ideais. Quebrada a casca do ovo da novela, dela
emergiu a história secular do romance e da dramaturgia do herói e do anti-herói numa
explosão de gêneros: fantasia, aventura, ficção científica, detetive, mistério, horror, guerra
etc. Então, a narrativa encontrou morada no cinema, nos quadrinhos, no rádio e nas teleno-
velas. Por fim, hoje, ela também habita confortavelmente as mais variadas formas, sempre
interativas, dos games.
Para os games convergem adaptações, traduções e misturas dos mais distintos tipos de
narrativas, especialmente das fantasias medievais e dos filmes. De fato, a conversação dos
games com outras mídias, especialmente filmes, é bastante frequente. Muitos designers de
games configuram elementos da história a partir de filmes existentes ou gêneros literários
porque os games são muito aptos para se apropriar deles. Os games não apenas recontam
as histórias, mas expandem nossa experiência prévia delas e o modo de interpretá-las, por
meio da imersão e da interação (SANTAELLA, 2012). E aqui tocamos o ponto em que os
games são inconfundíveis, inclusive no quesito narrativo.
Costuma-se ter uma visão bastante reducionista da narrativa como ato de contar ou
desenvolver uma história. De resto, é desse reducionismo que derivaram as polêmicas e as
discórdias entre os especialistas em games, tomados de um lado como narratologistas
( JUUL, 2005; AARSETH, 2004) e, de outro, como ludologistas (MURRAY, 2003). Para
os primeiros, games são narrativas, ou seja, contêm histórias. Para os ludologistas, games são
jogos, sem obrigatoriamente necessitarem de uma história. Para eles, o que importa nos
games é o gameplay, o ato de jogar. Entretanto, uma visão um pouco mais alargada de nar-
rativa é suficiente para dissolver essa oposição.
O hiato entre o game e a gamificação 205
Onde houver ação e reação entre agentes, ou seja, onde houver agenciamento no tempo,
ações que se desenrolam temporalmente, lá estará a narrativa. Portanto, sem deixar, eviden-
temente, de incluir o gameplay, todo game é por natureza narrativo, mesmo que o ato de
jogar não se desenvolva no formato de uma história.
Ryan (2009) também parece defender argumentos similares. Para ela, não há separação
entre gameplay e narratividade, uma vez que os elementos narrativos vão se construindo na
medida em que as ações vão sendo desempenhadas no jogo pela mediação de um avatar.
Se levarmos em conta o conceito mais amplo de narrativa, ou seja, ações sob o domínio
da sequencialidade temporal, pode-se considerar que, ao incorporar as estratégias que são
próprias dos games – desafio, superação, conquista, recompensa ‒, a gamificação também
apresenta uma estrutura narrativa, na qual o desempenho de ações se desenrola no tempo.
Qual a crucial diferença, todavia, entre a narrativa do game e a narrativa da gamificação?
No primeiro, desenvolve-se um tipo único de narrativa que estou aqui chamando de narra-
tiva em ato. O que isso significa?
Nas narrativas tradicionais, feitas para leitores e espectadores, o objetivo é atingir um
fim em que a narrativa se consuma, a saber, a finalidade é chegar ao fim da história. Assim,
também na gamificação tudo se processa para atingir a eficácia de uma meta. Nos games,
contudo, o objetivo não é necessariamente terminar o jogo, mas jogar, executando ações que
se repetem em inúmeras variações. Então, o que importa é estar no jogo. E a interatividade
nesse caso não se reduz a uma possível troca ou competição entre parceiros, pois, nos games,
interatividade se define como ações capazes de mudar o estado interno do jogo por meio de
feedback instantâneo.
A narrativa em ato implica um tipo de agenciamento que se realiza em um mundo que
se altera dinamicamente de acordo com a participação do jogador, um mundo dominado
por regras, mas, ao mesmo tempo, imprevisível no sentido de que só pode ser construído na
espacialidade e na temporalidade da jornada lúdica.
Aí estão os três atributos – dupla imersão, finalidade sem fim e narrativa em ato – que
fazem do game aquilo que ele é, sua marca registrada. Há outros atributos que os games
podem compartilhar com uma série de atividades que lhe são próximas e distintas. A prin-
cipal delas é a gamificação, que busca extrair dos games justamente aquilo que eles são ca-
pazes de desenvolver no agente em termos de estímulo, eficácia da ação, prazer no que se
faz e satisfação com os resultados. O mistério do game e a força de atração irresistível que
ele provoca no jogador são justamente aquilo que ele tem de inimitável.
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206 Gamificação em debate
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______. Transmídia mania. Revista MSG, n. 10, ano 4, 2012. p. 34-35.
______. Gamificação: a ubiquidade dos games. In: Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na edu-
cação. São Paulo: Paulus, 2013. p. 219-229.
______. Game arte no contexto da arte digital. No prelo.
SOUZA, A. A. Os games enquanto jornadas fenomenológicas: a experiência estética semiótica nos jogos
digitais. 2017. 250 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) ‒ Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
UPTON, B. The aesthetic of play. Cambridge: MIT Press, 2015.
Sobre os autores
André Neves
Professor associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação
em Desenho Industrial pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestrado e douto-
rado em Ciências da Computação pela UFPE e pós-doutorado pela Universidade da Beira
Interior (UBI), em Portugal. Tem experiência na área de ciências da computação com ênfase
em design de sistemas de computação, atuando principalmente na investigação, desenvol-
vimento e aplicação de métodos e técnicas de design como instrumento de inovação em
tecnologia da informação e comunicação.
Clarissa Sóter
Doutora em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em
Design e Sustentabilidade, especialista em design da informação e bacharel em Design.
É professora substituta em Design na UFPE, docente do mestrado profissional em Design
da CESAR School, empreendedora criativa e consultora freelancer de design, inovação e
empreendedorismo.
Delmar Galisi
Doutor em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
possui graduação e mestrado em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo
(USP). Desde 2003, é coordenador do curso de Design de Games da Universidade Anhembi
Morumbi. Há mais de 20 anos, atua como professor, pesquisador e consultor em design de
games. Desenvolveu jogos para educação, saúde e treinamento corporativo.
Fábio Medeiros
Mestrando em Educação e Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Psicologia pela UFSC.
Trabalha no Senac-SC como analista de capacitação docente e formador da proposta pe-
dagógica do uso de metodologias ativas e tecnologias digitais em ambientes de aprendiza-
gem. Atua com psicologia organizacional e do trabalho e em todos os macroprocessos de
RH, em educação. É game designer de jogos educacionais digitais e analógicos.
Fabricio Fava
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), com pesquisa em gamificação. Possui experiência acadêmica e profissio-
nal nas áreas multidisciplinares de comunicação e design. Desenvolve projetos de games e
arte interativa com publicações em eventos internacionais. Interessa-se pelos processos de
criação em design thinking, design lúdico e design de interação.
Sobre os autores 209
Fabrizio Poltronieri
Professor e pesquisador do Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade de Montfort,
na Inglaterra, onde leciona no Mestrado de Artes Digitais e supervisiona doutorados nas áreas
de arte e tecnologia. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo (PUC-SP), é artista premiado do campo das estéticas tecnológicas, com obras
em coleções como a do Museu Victoria & Albert, em Londres. Autor do livro Explorations in
art and technology e vencedor do Prêmio Itaú Rumos nas edições de 2011 e 2018.
Gilson Schwartz
Livre-docente em Economia do Audiovisual. Professor na Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e no Programa de Pós-Graduação Inter-
disciplinar Diversitas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo (FFLCH-USP). Foi associado do Instituto de Economias em
Desenvolvimeto do Japão, da Escola de Comunicações Annenberg, da Universidade do Sul
da Califórnia e da Universidade de Warwick. Colaborou como articulista, editorialista e
analista econômico do jornal Folha de S.Paulo e da revista Época Negócios. Criador do
grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento do Instituto de Estudos Avançados da Uni-
versidade de São Paulo (IEA-USP). Coordenador do Games for Change América Latina.
João Mattar
Tem mestrado em Tecnologia Educacional pela Universidade do Estado de Boise, dou-
torado em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universi-
dade Stanford. Atualmente é professor, pesquisador e orientador no Programa de
Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias (PPGENT) no Centro Universitário
Internacional (UNINTER) e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligên-
cia e Design Digital (TIDD) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Lucia Santaella
Pesquisadora 1A do CNPq com livre-docência em Ciências da Comunicação pela
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professora
emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e coordena o Programa de
Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. Recebeu o Prêmio Jabuti
em 2002, 2009, 2011 e 2014, o Prêmio Sergio Motta (Líber) em Arte e Tecnologia em 2005
e o Prêmio Luiz Beltrão na categoria Maturidade Acadêmica em 2010. Professora convi-
dada nas universidades Livre de Berlin, de Valência, de Kassel, de Évora, Nacional das
Artes de Buenos Aires e Michoacana de San Hidalgo, no México. Orientou cerca de 250
mestres e doutores e supervisionou 6 pós-doutorados. Publicou e organizou 60 livros.
Possui cerca de 400 artigos publicados em periódicos científicos no Brasil e no exterior.
210 Gamificação em debate
Lynn Alves
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pós-doutorado
na área de jogos eletrônicos e aprendizagem pela Universidade de Turim, na Itália. Atual-
mente é professora e pesquisadora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciência (IHAC)
da UFBA. Tem experiência na área de educação e jogos digitais, realizando investigações
sobre cultura digital e suas interfaces, especialmente sobre os temas jogos eletrônicos, inte-
ratividade, mobilidade e educação.
Mathias Fuchs
Possui formação em ciências da computação e em composição musical. Game artista e
líder do projeto de investigação sobre gamificação financiado pelo German Research
Council (2018-2021). Membro do Instituto para a Cultura e a Estética da Mídia (ICAM,
na sigla em inglês). Atua como professor na Universidade Leuphana de Lüneburg e é asso-
ciada à Universidade de Salford, na Inglaterra, à Academia Sibelius, em Helsinki, à Univer-
sidade de Artes Aplicadas e à Academia de Música, ambas em Viena.
Paula Carolei
Professora assistente do núcleo da universidade aberta da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), coordenadora do curso de graduação Tecnologia em Design Educacional
e professora da disciplina intercampi Jogos, Games e Gamificação na Unifesp. Tem gradu-
ação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Educa-
ção pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorado em Educação pela
USP. Trabalha com tecnologia educacional desde 1993 e pesquisa gamificação em espaços
educativos formais e não formais e novos modelos de design educacional desde 2006.
Raul Bussarelo
Doutor e mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Comunicação Social, pós-graduado em Design
Gráfico e Estratégia Corporativa e especialista em cinema. Atua nas áreas de novas mídias,
storytelling, acessibilidade, experiência e gamificação. Em 2009 foi premiado pelo Museu de
Arte de Santa Catarina (MASC) e em 2013, pela Conferência Latino-Americana de
Tecnologia de Aprendizagem (LACLO). É diretor de criação da Pimenta Cultural, mentor
de startups e professor de universitário. Autor do livro Gamification: princípios e estratégias
(Pimenta Cultural, 2016).
Romero Tori
Professor associado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP),
onde também coordena o Laboratório de Tecnologias Interativas (Interlab). Engenheiro de
computação com mestrado, doutorado e título de livre docente pela USP em Tecnologias
Interativas. Bolsista de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq) em desenvolvimento tecnológico e extensão inovadora na área
de tecnologias educacionais. Coordenou e tem desenvolvido diversas pesquisas de tecnolo-
gias na educação. Autor do livro Educação sem distância.
Sérgio Nesteriuk
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
É um dos pioneiros dos estudos em games no Brasil, tendo iniciado suas pesquisas em 1996.
Foi produtor artístico e cultural do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) e
diretor de educação da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA). Como
realizador, já foi agraciado com prêmios do Rumos Itaú Cultural, do Programa de Ação
Cultural (ProAC) e do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro
do Fundo Setorial do Audiovisual (Prodav-FSA). Consultor de projetos e júri de prêmios
e editais nas áreas de games, animação e transmídia. Consultor ad hoc da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Curador do festival de jogos do
BIG Festival, um dos maiores festivais de jogos independentes do mundo. Coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi.
Simone Barros
Tem pós-doutorado em Design de Moda pela Universidade da Beira Interior (UBI),
em Portugal. É doutora em Design, mestre em Educação e tem graduação em Comunica-
ção Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora adjunta nível 1
do Departamento de Design e do Programa de Pós-Graduação em Design e Ergonomia
da UFPE. Atua principalmente nos seguintes temas: design, moda, figurino e comunicação.