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Gamificação em debate
Organizadores
Lucia Santaella
Sérgio Nesteriuk
Fabricio Fava

Gamificação em debate
Gamificação em debate
© 2018 Lucia Santaella, Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava (organizadores)
Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar Gamificação em debate / organização de Lucia Santaella,
04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava. – São Paulo : Blucher, 2018.
Tel.: 55 11 3078 5366 212 p. : il.
contato@blucher.com.br
www.blucher.com.br Bibliografia
ISBN 978-85-212-1315-4 (impresso)
ISBN 978-85-212-1316-1 (e-book)
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed.
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 1. Jogo – Aspectos culturais 2. Jogo – Aspectos
Academia Brasileira de Letras, março de 2009. psicológicos 3. Jogos educativos 4. Jogos de empresas
5. Jogos eletrônicos I. Santaella, Lucia. II. Nesteriuk,
Sérgio. III. Fava, Fabricio.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer


meios sem autorização escrita da editora. 18-0711 CDD 793.01

Todos os direitos reservados Índice para catálogo sistemático:


pela Editora Edgard Blücher Ltda. 1. Jogo : Pesquisas
Conteúdo
Apresentação 9

1. O sentido da gamificação 11
Referências 19

2. Precursores pré-digitais da gamificação 21


Gamificando práticas religiosas 23
Gamificando a música e a dança 25
Gamificando as artes mágicas 28
Gamificando o estilo de vida no “Século do Jogar” 29
Gamificando a aprendizagem 30
Gamificando o ato de matar 31
Considerações finais 32
Referências 33

3. Gamificação, motivação e a essência do jogo 39


Por que gostamos de jogos? Por que jogamos? 39
O “motorzinho” de todo jogo 41
Perigos da motivação extrínseca 43
O fenômeno da superjustificação 44
Recompensas extrínsecas e behaviorismo 46
Possibilidades para o uso das recompensas extrínsecas 48
Considerações finais 49
Referências 50
6 Gamificação em debate

4. A emergência da gamificação na cultura do jogo 51


Onipresença da lógica dos games 52
A emergência da gamificação 55
Definições e expectativas acerca da gamificação 56
Críticas à gamificação 61
Ambiente de oportunidades 63
Referências 63

5. N
 arrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa
história? 67
Narrativas, games e gamificação 69
Metodologia 73
Análise e discussão dos dados 75
Narrativa na literatura da gamificação 76
Considerações finais 79
Referências 80

6. A
 pontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades
gamificadas 83
Caráter geral do jogo 86
Breves conclusões 90
Referências 92

7. B
 rain digital games e funções executivas: delineando interfaces
entre os games e a estimulação neuropsicológica 95
Brain digital games: um panorama da revisão de literatura internacional e nacional 96
Estimulando as funções executivas por meio dos brain digital games 101
Gamebook Guardiões da Floresta 103
Método de investigação e resultados 104
Minigames e funções executivas 105
É o GGF um brain digital game? 109
Referências 111
Conteúdo 7

8. F
 undamentos da gamificação na geração e na mediação do
conhecimento 115
Conceitos sobre gamificação 116
Aprendizagem e gamificação 118
Gamificação para a motivação e o engajamento 119
Narrativa explorada na gamificação 121
Elementos dos jogos na gamificação 122
Exploração das mecânicas dos jogos na gamificação 123
Considerações finais 124
Referências 124

9. Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 127


O design 127
Design enquanto processo 127
Design enquanto pensamento 128
Design Thinking Canvas 129
Resultados 132
Conclusões e desdobramentos 134
Referências 135

10. Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 137
Crise e teoria crítica do capital em jogo 137
Gamificação de espaços públicos e reinvenção da política 140
Jogo como operação da linguagem: ambiguidade, negação e abertura 142
Referências 144

11. Gamificação em educação: revisão de literatura 147


Introdução 147
Gamificação 148
Gamificação em educação 149
Revisões de literatura 152
Modelos teóricos 154
8 Gamificação em debate

Conclusão 157
Referências 158

12. Design educacional em jogo 163


Regras do jogo 164
Contando os pontos e mapeando os caminhos escolhidos 174
Referências 176

13. D
 esign e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de
gamificação 177
Gamificação: conceituação em construção e debate 178
Gamificação, motivação e educação 180
Gamificação na educação a distância 181
Considerações finais 183
Referências 184

14. Gamificação e educação: estudo de caso 187


Referências 197

15. O hiato entre o game e a gamificação 199


Natureza da gamificação 199
Fatores inimitáveis dos games 200
Dupla imersão 201
Finalidade sem fim 202
Narrativa em ato 204
Referências 205
Apresentação
Com a expansão e a consolidação dos games como a maior indústria do entretenimento
e um dos mais significativos produtos culturais do século XXI, pudemos observar também
uma crescente diversidade de seus gêneros e desígnios que extrapolam o campo do diverti-
mento. É o caso dos chamados serious games, jogos pensados para propósitos como educação.
Gamificação (gamification) é o termo utilizado atualmente para designar o uso de ele-
mentos de jogos (analógicos e digitais) em sistemas e artefatos que tradicionalmente não
possuem aspectos ou fins lúdicos. Embora não tenha o intuito de ser um jogo em si, o ato
de gamificar pode alterar as relações da experiência do sujeito-jogador com as molduras
perceptivas de sua própria realidade imediata.
Se, como afirma Huizinga (2014),1 o jogo (play) é uma força atávica e definidora da
própria cultura, podemos entendê-lo também como um fenômeno complexo, metamórfico
e interdisciplinar. A premissa deste livro nasce do entendimento de que muitas das discus-
sões e das práticas atuais da gamificação limitam a noção de jogo a uma abordagem beha-
viorista: uma mera estratégia para engajar pessoas e aumentar sua produtividade em
determinados ambientes.
Gamificação em debate busca expandir essa noção por meio de investigações sobre con-
ceitos, críticas, práticas, ferramentas e métodos atinentes ao jogo a fim de promover novas
discussões que explorem, em extensão e profundidade, as singularidades e as potencialidades
da gamificação no mundo contemporâneo.

Lucia Santaella
Sérgio Nesteriuk
Fabricio Fava

1
HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
O sentido da gamificação
Delmar Domingues
1
Os primeiros jogos eletrônicos surgiram como resultado de esforços acadêmico-milita-
res, sem a preocupação de fazer deles um meio de entretenimento. Isso só veio a ocorrer em
meados dos anos 1970, quando Nolan Bushnell ajudou a formatar a indústria de games
como a conhecemos hoje. A partir de então, os games se tornaram uma das maiores forças
de entretenimento, rivalizando com outras formas de lazer, como a televisão, o cinema, os
shows, as viagens etc. Desse modo, a sociedade passou a compreender os games como um
fenômeno cultural e social, cujas consequências nocivas atraíram a atenção da mídia.
Por algum tempo, proliferaram notícias sobre a violência dos jogos, bem como os
efeitos colaterais de jogatinas intensas. Alguns games, por solicitarem um tipo de ha-
bilidade motora praticada por meio de movimentos do tipo “estímulo-resposta”, leva-
ram os seus jogadores a adquirir lesões por esforços repetitivos (LER). Numa situação
ainda mais dramática, Chuang, um jovem de Taiwan, morreu após jogar ininterrupta-
mente Diablo 3 durante dois dias, sem parar para comer (FIGUEIREDO, 2012). Mas
a má fama dos jogos não se resumia às consequências para a saúde dos jogadores. Vi-
deogames também eram taxados de violentos. Em um caso notório, em 20 de abril de
1999, os estadunidenses Eric Harris e Dylan Klebold invadiram o colégio Columbine
High School em Littleton, Colorado, e mataram a tiros treze estudantes. Na ocasião,
foi divulgado com algum alarde o fato de ambos jogarem Doom, um game que retrata
soldados treinados para matar.
Por outro lado, embora não seja fenômeno recente, a valorização cultural dos jogos di-
gitais, assim como a conscientização sobre seus benefícios, vem se intensificando nos últi-
mos anos. Steve Johnson (2005) “surpreendeu” a todos ao afirmar que os videogames são
capazes de desenvolver diversas habilidades cognitivas nos seus jogadores. Segundo o autor,
alguns games possuem estruturas narrativas complexas, exigindo dos seus usuários sofisti-
cação intelectual para resolver problemas de curto a longo prazo, já que necessitam que seus
jogadores tomem decisões de nível tático e estratégico.
Nessa onda de valorização dos jogos digitais, dois fenômenos passaram a chamar a
atenção: a consolidação de uma indústria de jogos voltados para outras finalidades mais
“sérias” que o entretenimento – não à toa estes passaram a ser denominados serious games ‒
e, em épocas um pouco mais recentes, o advento da gamificação. É importante ressaltar que
12 Gamificação em debate

tais aplicações já eram realizadas esporadicamente, em iniciativas isoladas, mas não em


volume suficiente a ponto de serem consideradas uma tendência.
Em comum, os serious games e a gamificação pretendem que, por meio de sua apli-
cação, os seus usuários “sintam” um impulso de fazer uma tarefa que de outro modo não
estariam tão atraídos em realizar. Ou seja, o que se pretende é que os seus usuários se
sintam motivados a executar uma atividade sem grandes dificuldades, algo que os jogos
normalmente fazem muito bem. Como diz Huizinga (2014, p. 33), o jogo é “uma ativi-
dade voluntária”, e normalmente o jogador a exerce plenamente, sem esforços. Ele joga
porque quer, porque há uma satisfação inerente ao ato, à qual a psicologia se refere como
motivação intrínseca.
A psicologia procura entender, por meio do conceito de motivação, o que leva as
pessoas a conquistarem algo. Pretende-se compreender o que motiva as pessoas a fazer
uma tarefa, a optar por um caminho na sua vida, a buscar algo. Há uma distinção comum
entre motivação intrínseca e extrínseca. Deci e Ryan (2000) afirmam que a motivação
intrínseca é exercida por meio de uma força interior, normalmente pertencente à própria
tarefa – ou seja, quando o que leva uma pessoa a cozinhar é o próprio prazer de cozinhar,
não a necessidade de comer algo. Por outro lado, se a pessoa cozinha porque precisa co-
mer, a motivação é extrínseca. O ato de jogar é comumente reconhecido como uma ati-
vidade de motivação intrínseca; por definição, um ato exercido voluntariamente. Talvez
jogos de azar não devessem ser considerados jogos, porque não são exercidos com base
em uma motivação intrínseca.
Percebe-se que há uma conexão entre o conceito de motivação intrínseca e o de diver-
são. As pessoas se divertem quando exercem uma atividade de caráter espontâneo, parado-
xalmente reconhecida como uma “distração”, ou seja, é um “desvio” do mundo das coisas
sérias da vida. A pessoa se diverte se deslocando das tarefas árduas do dia a dia para exercer
algo que é da sua própria vontade. Por isso, os jogos de azar entram no panteão da vilania
dos jogos, pois fazem um deslocamento no sentido contrário: o jogador não joga para se
divertir, mas para adquirir algum tipo de remuneração (moedas, dinheiro, fichas), que o
habilita a comprar posteriormente outros bens.
Em algumas línguas, como inglês ou coreano, a palavra para “diversão” descreve o estado
próprio de divertir-se, mas também o de estar entretido ou interessado. Muito se tem asso-
ciado também o conceito de diversão com o estado de imersão, particularmente no universo
dos videogames. Segundo Murray (2000), a sensação de estarmos cercados completamente
por outra realidade nos coloca em um estado de imersão que toma toda a nossa atenção,
todo o nosso interesse, nos entretêm plenamente. Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)
cunhou a expressão “suspensão voluntária da descrença” para descrever o estado em que o
público, o espectador ou, décadas depois, o interator deixa de desconfiar de algo que esteja
sendo contado, explanado para ele, como se estivesse dentro da história. Ao “acreditar” no
que está sendo narrado ou exposto, o público se coloca em um estado de imersão, absorto
que está naquele universo ficcional. De modo semelhante, Huizinga (2001) expressou o
conceito de “círculo mágico”, que descreve a área em que o jogador se entrega voluntaria-
mente para jogar, sem notar o que está ao seu redor. Por fim, o psicólogo Mihaly
O sentido da gamificação 13

Csikszentmihalyi (2008) desenvolveu a “teoria do estado do fluxo”, com o intuito de des-


crever o momento em que um indivíduo chega em um estado pleno de satisfação e motiva-
ção intrínseca, como se o jogador entrasse em um túnel composto por desafios possíveis de
serem atingidos; um fluxo cuja progressão não é interrompida.
Evidentemente, os jogos não possuem exclusividade na manifestação de tais estados.
Qualquer pessoa pode se sentir imersa, se divertir ou se sentir motivada “intrinsecamente”
com qualquer tipo de atividade. Por outro lado, os jogos – até mesmo por serem voluntários
por definição – tornaram-se uma ferramenta para transmitir tais estados a outras atividades
consideradas mais “sérias”. Tanto os serious games quanto a gamificação são exemplos disso.
Mas há diferenças em ambos.
Entende-se a gamificação como o processo em que se aplicam elementos lúdicos em
contextos não relacionados a jogos. Nesse sentido, conceitos e processos de um design de
jogo, como progressão, organização em níveis, componentes da mecânica de um jogo, den-
tre outros, são aplicados em produtos ‒ materiais ou imateriais ‒ que não foram estrutura-
dos como tal. No sentido oposto ao processo de gamificação, os serious games (incluindo
os chamados games for change) são objetos lúdicos por natureza, originalmente estruturados
como jogos, mas que seguem o vetor contrário: direcionam elementos pertencentes ao “uni-
verso não lúdico”, do mundo “sério”, para uma estrutura nativa de jogo.
Percebe-se que o movimento projetual da gamificação segue o sentido contrário ao dos
serious games. Em comum, como exposto, tanto o processo de gamificação quanto o de
desenvolvimento de serious games intencionam influenciar o comportamento do seu usu-
ário no sentido de engajá-lo como um “jogador”, direcionando a sua motivação de uma
qualidade extrínseca para uma motivação de caráter intrínseco. É importante ressaltar, no
entanto, que, a despeito de serem projetados dentro de uma estrutura de jogo, tal fato não
garante que os serious games sejam atrativos; ao contrário, eles têm sido taxados de “chatos”
e vêm falhando na tentativa de prover motivação.
De certa maneira, historicamente, a inserção do conteúdo de educação nos jogos vem
aniquilando o que eles possuem de mais precioso: a ludicidade espontânea. Resnick (2004)
afirma que os jogos educativos – um dos formatos dos serious games – fornecem normal-
mente o entretenimento como uma recompensa, desde que o jogador esteja disposto a so-
frer pela educação fornecida. Ou seja, é preciso absorver o conteúdo para poder se divertir
depois, processo que remete ao popular lema “primeiro a obrigação, depois a diversão”.
Frank (2007 apud HOSSE, 2014, p. 50) propôs um modelo de design para serious
games de treinamento militar no qual se sugerem três focos de atenção: “criar um jogo
motivador; cuidar para que o conteúdo do jogo seja relevante para os objetivos de treina-
mento e desenvolver o jogo levando em conta o contexto de uso”. Com base nesse modelo,
Hosse (2014) propôs um segundo modelo para o design de games for change – que podem
ser considerados uma ramificação dos serious games – que sirva de auxílio aos designers
dessa categoria de jogos: “a definição de um objetivo social, a escolha e a abstração de um
sistema físico e o desenvolvimento de um jogo motivador” (HOSSE, 2014, p. 51). O mo-
delo de Hosse (2014) é mais adequado a um processo de design, pois estabelece pontos de
14 Gamificação em debate

partida para o projeto. O modelo de Frank, por outro lado, prefere sugerir focos de atenção:
o que se pretende com o desenvolvimento do projeto.
Não é difícil perceber que os componentes de Hosse (2014) podem ser válidos para
outros formatos de serious games. Argumenta-se aqui que, se fosse um jogo educativo –
outra categoria de serious games –, em vez de se estabelecer um objetivo social, seria defi-
nido um objetivo de aprendizagem. Se a categoria de serious games fosse um advergame, o
objetivo seria promocional, e assim por diante.
Segundo Hosse (2014), a ordem dos focos não é rigorosa, já que o desenvolvimento
projetual de games é, muitas vezes, caótico. Ainda assim, independentemente da ordem do
fatores, o primeiro foco – definição de um objetivo social ou político – estabelece o que se
pretende com o projeto do game for change: sobre o que o jogador vai refletir, quais são as
atitudes que estão em jogo para que ele mude de comportamento, qual é o objetivo de
persuasão do projeto. O segundo foco – a escolha e a abstração de um sistema físico – iden-
tifica um conjunto, um arranjo concreto, que esteja alinhado com o objeto de persuasão, e
que sirva como um modelo físico no processo de criação do sistema de jogo. Por fim, o
terceiro foco diz respeito ao desenvolvimento com base nos pressupostos projetuais de um
jogo, a saber: objetivos claros; escolhas, o que se refere ao nível de liberdade que o jogo
oferece ao usuário; desafio adequado; feedback imediato (sua atual posição em relação à meta
do jogo); conexão social – um componente opcional, já que nem todo jogo tem um caráter
social –, que trata da possibilidade de o jogo oferecer conexões com outras pessoas; e poli-
mento, que solicita a utilização de reforços audiovisuais para que o jogador compreenda o
contexto do jogo.
Do exposto pelo modelo de Hosse, percebe-se que a estrutura do projeto de games for
change – e, por extensão, de outros serious games – assemelha-se à dos projetos de jogos
para entretenimento; a diferença seria o conteúdo, o aspecto retórico do jogo. Mildner e
Mueller (2016), de modo semelhante, enfatizam que o design de serious games é seme-
lhante ao de jogos de entretenimento. Eles diferem somente pelo fato de haver a integração
dos tais conteúdos “sérios” na estrutura clássica de um jogo. Na visão desses autores, como
para jogos para entretenimento, o projeto parte de uma ideia (conceito), mas que é restrita
em alguns aspectos para atender à mecânica específica desse tipo de jogo.
Desse modo, se o processo de design de jogos não difere muito dos métodos projetuais
de outros produtos de nossa sociedade, o design de serious games também segue percurso
similar ao processo metodológico dos jogos para entretenimento. Boa parte dos autores de
design (BOMFIM, 1995; BONSIEPE, 1978; JONES, 1992; LÖBACH, 2001) divide o
processo de design em três ou quatro fases significativas que, a despeito do total de etapas,
se assemelham bastante. Normalmente, define-se uma fase de pesquisa e conceituação ou
pré-produção; uma fase de seleção de alternativas e produção de protótipos; uma fase de
implementação das soluções; e uma fase de avaliação (não necessariamente nessa ordem).
Nos últimos anos, muitos autores entendem que a etapa de avaliação não corresponde a uma
quarta fase, pois é contínua, já que permeia todo o design dentro de um processo iterativo.
Tais processos são utilizados indiscriminadamente para o design de jogos para entreteni-
mento e para o de serious games.
O sentido da gamificação 15

Outra semelhança entre jogos para entretenimento e serious games diz respeito ao que
se entende como elementos de jogos. Autores como Schell (2008), Bates (2001), Fullerton,
Swain e Hoffman (2004), O’Luanaigh (2006), Rouse III (2001) e Schuytema (2008), den-
tre outros, possuem visões particulares sobre o tema. Há semelhanças e diferenças na forma
como entendem quais são os chamados elementos de jogos, mas muitas das diferenças di-
zem respeito à compreensão do que seja um jogo. Por exemplo, Schell (2008) define os
elementos com base na compreensão de que jogo é um produto, um artefato. Para esse autor,
os elementos de um jogo compõem uma tétrade composta por mecânica, história, estética
e tecnologia. Por outro lado, para Fullerton, Swain e Hoffman (2004), os elementos do jogo
são definidos dentro de uma abordagem formal, ou seja, o jogo é um conceito, não um
produto. Para esses autores, os elementos de jogo são: objetivo, procedimentos, regras, re-
cursos, conflito, limites e saídas. Importante afirmar, no entanto, que, independentemente
da abordagem, os elementos são condizentes tanto para o projeto de jogos para entreteni-
mento quanto para os serious games.
Assim, entende-se que jogos para entretenimento e serious games apresentam sentidos/
percursos projetuais muito semelhantes: são regidos por métodos equivalentes, distintos
somente no que diz respeito à sua retórica ou conteúdo. A diferença está no que Hosse
(2014) denomina “definição do objetivo” (o primeiro foco de seu modelo). No caso dos
serious games, os objetivos são todos retóricos, mas distintos dependendo do tipo de jogo
“sério”: no caso dos games for change, os objetivos são sociais ou políticos; nos jogos edu-
cativos, são objetivos de aprendizagem; os advergames possuem objetivos promocionais. Já
no caso dos jogos voltados para o entretenimento, os objetivos são menos retóricos e mais
intrínsecos: o jogar pelo jogar.
Ou seja, há um componente “invasor” ao universo dos jogos que não são para o puro
entretenimento: o objetivo retórico. Compreende-se, assim, a dificuldade de fazer o jogador
entrar no “círculo mágico” quando o jogo tenha outras finalidades que não o entretenimento.
Independentemente disso, serious games são jogos, estão dentro de uma estrutura de jogo;
o que possuem são objetivos distintos. No caso da gamificação, não podemos dizer o mesmo.
A gamificação, como mencionado, recebe os elementos lúdicos em contextos não
relacionados a jogos. O sentido é inverso. É preciso fazer essa distinção, principalmente
porque muitos educadores entendem que os jogos educativos são uma ferramenta de
gamificação na educação, para ficar só no exemplo dessa modalidade de serious games.
No entanto, do ponto de vista projetual, o produto da gamificação recebe os elementos
de jogo para dentro de sua estrutura. Por exemplo, em um treinamento corporativo,
quando funcionários de uma empresa passam pelo processo de aprendizagem de um
procedimento, operação, comportamento etc., e nesse processo são inseridos elementos
de design de jogos, tal aprendizado pode se tornar mais lúdico, visando uma motivação
menos extrínseca ao objetivo do aprendizado.
O processo de gamificação tem semelhanças com o design de serious games. Alves
(2014) traça um roteiro para o “design da solução de aprendizagem gamificada” divi-
dido nos seguintes passos: conhecimento dos objetivos do negócio e da aprendizagem;
definição dos comportamentos e das tarefas que serão alvo dessa solução; conhecimento
16 Gamificação em debate

dos jogadores; reconhecimento do tipo de conhecimento que precisará ser ensinado;


garantia da presença de diversão; utilização das ferramentas apropriadas; e desenvolvi-
mento de protótipos.
É interessante notar que Alves insere a gamificação como um processo de design, algo
que não é de se estranhar em tempos de design thinking, que aplica os conceitos de design
em outros processos que não os do design. Burke (2015, p. 99) afirma que “em uma solução
gamificada, a experiência do jogador é projetada como uma jornada, e acontece em um
espaço de jogo que pode abrigar tanto o mundo físico como o virtual”. O autor ressalta que
o foco é o projeto não nos moldes do design de experiência do usuário para interfaces
homem-computador, mas algo que depende de disciplinas como filosofia de projeto (de-
sign thinking), ciências comportamentais e sistemas emergentes. O processo pregado por
Burke (2015) envolve os seguintes passos: resultados comerciais e métricas de sucesso;
público-alvo; objetivos do jogador; modelo de engajamento; espaço de jogo e jornada;
economia do jogo; jogar, testar e repetir. Os três primeiros passos visam entender as moti-
vações dos participantes para posteriormente projetar uma experiência que possa engajá-
-los nos objetivos, ou seja, a intenção desses passos é levantar dados para projetar uma
experiência que esteja centrada no jogador. Os passos seguintes correspondem ao projeto
propriamente dito.
O primeiro passo do processo – resultados comerciais e métricas de sucesso – solicita
que o projeto defina com objetividade a necessidade comercial do empreendimento.
Percebe-se que o foco de Burke (2015) é a aplicação da gamificação para fins corporativos
e comercias, mas o modelo dele poderia ser transposto para outras necessidades que não
sejam mercadológicas. Nesse caso, em vez de se definir a necessidade comercial, os propo-
nentes definiriam necessidades específicas para a área em que a gamificação está sendo
aplicada. Por exemplo, se estivesse sendo aplicada em ambientes educacionais, poderíamos
estabelecer “necessidades pedagógicas”.
De qualquer forma, não importando para qual fim a gamificação fosse aplicada, tais
necessidades – comerciais, pedagógicas etc. – viriam acompanhadas de métricas objetivas e
específicas. Por exemplo, num processo de melhoria do desempenho de alunos em uma
dada disciplina, pode-se estabelecer a necessidade de “aumentar o índice de aprovação em
X% em Y meses”. No passo seguinte – público-alvo –, define-se a quem se destina a ação:
nesse caso, seriam os alunos. Por fim, o terceiro passo prega que se estabeleçam os objetivos
do jogador (membros envolvidos na ação de gamificação), como “desenvolver métodos que
engajem os alunos na disciplina”.
Percebe-se que os três primeiros passos descritos são premissas para a ação. Até o mo-
mento, não há motivos para achar que a gamificação seja o melhor processo para obter os
resultados pretendidos; é apenas mais uma ferramenta, mas o objetivo poderia ser atingido
por outras técnicas ou outros métodos. Cabe avaliar, então, se a gamificação é o processo
mais adequado. Burke (2015) afirma que a gamificação é só uma das ferramentas, das mais
contemporâneas inclusive, mas, segundo o autor, não se deveria investir em uma tendência
ou tecnologia sem antes identificar os resultados que se deseja alcançar. A gamificação não
deve ser o objetivo, mas um meio adequado para o objetivo expresso. Alguns projetos de
O sentido da gamificação 17

gamificação não alcançam os resultados esperados pois simplesmente aplicam alguns ele-
mentos de design de jogos no fenômeno, sem projetar de modo preliminar a experiência de
jogo. Segundo Burke (2015, p. 134), “o desafio da gamificação é projetar/desenhar a expe-
riência do jogador, não a tecnologia”.
Desse modo, se o sentido da gamificação segue o percurso inverso ao do projeto de
serious games, tal fato não implica em realizar essa ação sem que haja planejamento. No
modelo de Burke (2015), esse movimento/sentido se localiza fundamentalmente na quarta
fase: o desenvolvimento de um modelo de engajamento. Nessa fase do modelo de Burke,
cinco elementos do design de jogos são deslocados para a estrutura a ser gamificada: cola-
boração/competição, resultados intrínsecos/extrínsecos, partida multijogador/por jogador
individual, partida por campanha/sem fim, gameplay emergente/roteirizado.
O primeiro fator descreve se a seção de gamificação será competitiva ou colaborativa.
O segundo descreve os programas de recompensa que a seção proporcionará: qual o retorno
que o jogador terá na seção gamificada (embora soluções gamificadas almejem sempre as
recompensas intrínsecas, entende-se que recompensas extrínsecas possam contribuir com a
atividade). O terceiro fator verifica se a partida é multiplayer ou singleplayer. O quarto fator
especifica se o jogo terá um final, e, com base nesse aspecto, se o jogo terá fases (levels) ou
não. Por fim, o quinto fator prevê se a seção terá um caráter emergente ou narrativo. Jogos
emergentes costumam ter ênfase em regras; são mais mecânicos, voltados à solução de de-
safios em si. Nos jogos narrativos, os desafios são encaixados dentro de uma história.
Evidentemente, a tais fatores podem se acrescentar outros elementos de design de jogos
não citados por Burke, mas que também são considerados quando se projeta um jogo. Por
exemplo, o fator sorte; as habilidades envolvidas (cognitivas, físicas, sociais etc.); e o sistema
de feedback (positivo ou negativo), dentre outros fatores que definem uma partida. Não é de
estranhar que Burke não tenha considerado outros fatores além dos cinco mencionados por
ele. O processo de design de jogos é naturalmente complexo, e os elementos que o consti-
tuem são muito difusos, dificultando a sua estruturação. Cada autor acrescenta ou suprime
um elemento diferente na estruturação de um jogo. Assim, há também uma dificuldade em
se estabelecer quais e quantos elementos legitimam e validam o que constitui o fenômeno
da gamificação.
Há uma série de iniciativas que são taxadas de gamificadas, mas que, na realidade, só
aplicam um ou poucos aspectos ludológicos no processo, não proporcionando a força ne-
cessária para caracterizá-las como soluções gamificadas. Por exemplo, o aplicativo de ensino
de línguas Duolingo é costumeiramente definido como uma solução de gamificação, pois
utiliza alguns elementos de design de jogos: divisão do processo de aprendizado em fases e
utilização de um processo de recompensas. Acredita-se que a aplicação de tais elementos
seria suficiente para tornar o processo de aprendizagem um fator de motivação intrínseca.
O problema é que o aplicativo faz o jogador/aluno regredir de fase quando abandona as
aulas por muitos dias. Ao retornar ao aplicativo, o aluno surpreende-se, por exemplo, ao
notar que não está mais na fase 2, mas voltou para a fase 1, simplesmente porque ficou al-
guns dias sem “jogar”. Nesse caso, todo o esforço para obter motivação intrínseca é diluído,
já que o jogador se frustra, e o impulso para voltar às aulas é definido por um fator
18 Gamificação em debate

extrínseco ao jogo: a “obrigação” de ter de aprender a língua, e não a euforia do usuário-


-jogador típica de quem vai completar o jogo.
Após a definição do modelo de engajamento, Burke (2015) especifica mais três fases no
processo de gamificação: definição do espaço de jogo e jornada; definição da economia do
jogo; e o processo de jogar, testar e repetir. Os dois primeiros fatores são desdobramentos
do processo natural de projeto de um jogo, ou seja, uma vez estabelecidos os elementos de
design de jogos transportados para a estrutura gamificada, definem-se outros fatores que já
são típicos de jogos, como o ambiente e a economia. Por fim, finaliza-se o processo com a
etapa de controle de qualidade, desencadeada por rodadas de testes. É importante ressaltar,
no entanto, que todo o processo de construção de um projeto de gamificação só é justificá-
vel se for realmente “sentido” como algo intrínseco pelo jogador. Caso contrário, pode gerar
frustração no usuário ou caracterizar apenas um objeto de marketing, já que a aplicação de
gamificação e sua venda como tal são tendências no mercado.
Se olharmos com atenção, perceberemos que o modelo de projeto de games for change
de Hosse se assemelha em muitos aspectos ao modelo de gamificação de Burke. Os pri-
meiros passos dizem respeito à definição do objetivo do projeto: definição de um objetivo
social (Hosse) vs. objetivos do jogador (Burke). O segundo passo de Hosse ‒ escolhas e
abstração de um sistema físico – corresponde à construção do modelo de engajamento de
Burke. Os passos seguintes de ambos implicam no desenvolvimento do jogo, aplicativo
ou solução. O primeiro procura entender as motivações dos participantes para que, em
seguida, seja projetada a experiência (games for change ou projeto de gamificação) que
vai engajá-los nos objetivos determinados. O que difere no segundo passo são os elemen-
tos que penetram em cada estrutura. No caso dos serious games, elementos estranhos aos
jogos são aplicados na estrutura de um jogo. No caso do projeto de gamificação, elemen-
tos de jogos são inseridos numa estrutura estranha a jogos, como uma seção de treina-
mento ou de educação.
É interessante notar, no entanto, que um projeto de gamificação pode ser composto não
só por elementos de design de jogos, mas também por um jogo já completo, desde que ele
atenda ao objetivo que se pretende no processo de gamificação. Se o objetivo for melhorar
a aprendizagem da matemática, pode-se, por exemplo, inserir os tais elementos de jogo
numa aula – um processo habitual da gamificação – ou, dentro de uma dinâmica, propor a
utilização de um jogo educativo de matemática já desenvolvido anteriormente, ou seja, os
serious games podem ser utilizados como instrumentos de um processo de gamificação. Por
outro lado, não é tão simples imaginar o sentido contrário, ou seja, aplicar total ou parcial-
mente o processo de gamificação em um contexto de utilização de um serious game, afinal,
estes já são “gamificados” por natureza.
Há, contudo, processos ludológicos que estão no limiar entre ambas as manifestações, e
não é possível dizer se o método seguiu o processo de desenvolvimento de um serious game
ou de gamificação. Por exemplo, a empresa alemã Bigben Interactive lançou uma bicicleta
ergométrica para fazer exercícios e jogar videogame, a Cyberbike (GLOBO.COM, 2009).
O hardware é na verdade um acessório do console Nintendo Wii; é como se a bicicleta fosse
um joystick para um jogo. Quanto mais o jogador pedalar, mais um helicóptero do jogo
O sentido da gamificação 19

adquire velocidade. A missão do game é “despoluir o planeta”, usando a habilidade de pe-


dalar para resolver enigmas e encontrar itens escondidos. A proposta é que seja possível
praticar exercícios enquanto se joga videogame.
Há uma distinção importante em relação às duas atividades: a jogatina de videogames e
a prática de exercícios físicos. Normalmente, quem joga uma partida de videogame não per-
cebe o tempo passar. Há motivação intrínseca na atividade, e a percepção é que o tempo “voa”.
Por outro lado, o tempo parece não passar para quem pratica uma atividade física. O praticante
acha que passou horas a fio na atividade, mas, ao consultar o visor da bicicleta ergométrica,
nota que o tempo está muito aquém de sua percepção. Talvez o que explique esse fenômeno
seja o fato de boa parte dos praticantes realizar atividades físicas por motivações externas:
adquirir um corpo em forma ou obter benefícios para a sua saúde.
O projeto da Cyberbike pode estar inserido em um processo de gamificação ou de se-
rious games, dependendo do ponto de partida. Pode-se entender que elementos de jogo
foram inseridos numa atividade que é naturalmente física, ou pode-se imaginar o contrário,
que o jogo objetiva propiciar saúde. No primeiro caso, estaríamos dentro de um processo de
gamificação. No segundo, há o processo de desenvolvimento de um serious game. Nesse
“sentido”, serious games e gamificação possuem o mesmo objetivo: propiciar motivação
intrínseca para atividades cuja motivação é extrínseca a um determinado objetivo. Se os
sentidos projetuais são inversos, os sentidos motivacionais são os mesmos.
Há iniciativas que partem naturalmente de um processo de gamificação: empresas que
desejam estimular seus funcionários a aprender um procedimento ou operação, escolas que
almejam alunos mais engajados com a aprendizagem etc. Nesses casos, os aspectos ludológicos
invadem uma estrutura que não é de jogo, e o processo de gamificação é aplicado. Há situa-
ções, no entanto, nas quais faz mais sentido utilizar uma estrutura nativa de jogo. Por exemplo,
quando se pretende obter ampla cobertura na conscientização sobre um objetivo social ou
político. Um game for change publicado na web pode cumprir esse papel. Nesse caso, utiliza-
-se o processo de design de serious games (ou mais especificamente do design de games for
change). No final das contas, este é o fator que deve ser considerado: qual é o objetivo que se
pretende. Se o meio de se alcançar esse objetivo tem base em um processo de gamificação ou
na construção de um serious game, o próprio processo se encarregará de apontar.

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Precursores pré-digitais da gamificação1
Mathias Fuchs
2
Tradução: Sérgio Nesteriuk

“O século em que vivemos pode


ser referido nos livros de história como [...]
O Século do Jogar.”
Daniel Bernoulli, 1751

Se acreditarmos no que os analistas de mercado norte-americanos de renome nos dizem,


então devemos aceitar que nada influenciará tanto nossas vidas como a mobilidade, as mídias
sociais e a gamificação ‒ e diz-se que a última tem o maior impacto. A gamificação deverá
movimentar um mercado de US$ 5,5 bilhões em 2018 (MARKETSANDMARKETS,
2013) e US$ 11,1 bilhões em 2020 (MARKETSANDMARKETS, 2016). Em 2011, a Gar-
tner previu que “até 2015, mais de 50% das organizações que gerenciam os processos de
inovação gamificarão esses processos” (GARTNER, 2011, tradução nossa). No entanto, um
ano depois, a mesma empresa afirmou: “A gamificação hoje é hype2 e está pautada pela novi-
dade. Até 2014, 80% dos aplicativos de gamificação fracassarão” (FLEMING, 2012).
Mas, independentemente de a gamificação mudar pouca coisa, algo ou tudo, ninguém
pode negar que se tornou uma buzzword3 que descreve o que muitos temem ou esperam
que aconteça agora. O processo de permeação total de nossa sociedade com métodos, me-
táforas, valores e atributos de jogos (FUCHS, 2011; NORDMEDIA 2013) foi nomeado
gamificação em 2002 (MARCZEWSKI, 2012) e, desde então, tem sido popularizado pelas
empresas de marketing dos EUA e seus respectivos departamentos de relações públicas.

1
Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em FUCHS, M. et al. Rethinking gamification. Lüneburg: Meson
Press, 2014. Disponível em: <http://meson.press/wp-content/uploads/2015/03/9783957960016-rethinking-gamifi-
cation.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018.
2
Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns
falantes da língua portuguesa. Hype é uma gíria inglesa que significa, entre outros: propaganda exagerada, “jogada de
marketing”, “golpe publicitário” e furor causado pela mídia [N.T.].
3
Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns
falantes da língua portuguesa. Buzzword é uma gíria que significa, entre outros: “palavra da moda”, chavão, “expres-
são mágica” ou “palavra de ordem” [N.T.].
22 Gamificação em debate

Embora tenha havido tentativas de se diferenciar entre fenômenos relacionados a jogos


(game-related) e ao jogar (play-related), ou entre processos que possam ser vistos como conduzi-
dos por ludus ou paidia (CAILLOIS, 2011), o termo gamificação manteve-se como a palavra-
-chave. As criações terminológicas gregas, italianas, portuguesas, espanholas, suecas e alemãs
foram introduzidas e discutidas no mundo acadêmico, mas παιγνιδοποίηση, ludicizzazione, ga-
mificação/ludificação, gamificación e o alemão-latino Ludifizierung não puderam competir com
o termo anglo-americano gamification. A razão para isso pode ser que a “liga californiana de
evangelistas da gamificação”, como Zichermann (2011), McGonigal (2011) e companhia, já
havia semeado o termo no campo semântico em um momento em que os estudiosos europeus
de jogos não estavam certos se a ludificação que eles observavam era mais uma maldição que um
presente. A criação terminológica de Flavio Escribano, ludictatorship, aponta nessa direção.
Al Gore, político dos EUA, não parecia estar preocupado com o que a gamificação pode-
ria trazer à nossa sociedade quando, na oitava edição anual do Games for Change Festival, em
junho de 2013, declarou: “Os jogos são o novo normal”. Por um lado, esse parece ser o pres-
suposto democrata ou mesmo democrático de que todos deveriam ter o direito de jogar. Por
outro lado, declara o “jogo total” por meio da implicação oculta de que aqueles que não podem
ou não querem jogar não devem ser considerados normais. Embora 2002 tenha sido o ano em
que o termo gamification foi inventado, foi apenas no início da década de 2010 que a gami-
ficação se tornou uma buzzword. Deterding et al. (2011), Schell (2010),4 Reilhac (2010)5 e
outros apresentaram diferentes “sabores” da gamificação, alguns deles orientados pelo design,
outros por um caráter mais psicológico ou valorativo. Para Sebastian Deterding e seus colegas:
É sugerido que as aplicações “gamificadas” fornecem informações sobre novos fenômenos de
jogo complementares aos fenômenos lúdicos. Com base em nossa pesquisa, propomos uma
definição de “gamificação” como o uso de elementos de design de jogos em contextos de não
jogo (DETERDING et al., 2011, p. 9, tradução nossa).

Todas as definições de gamificação propostas desde 2002 baseiam-se na ideia de que os


jogos digitais são uma referência sem a qual a gamificação não poderia ser concebida. Exis-
tem, no entanto, predecessores da gamificação muito antes de os computadores se tornarem
populares. Uma década antes de os computadores programáveis, como Z3, Colossus e
ENIAC, serem introduzidos, em 1934, uma atitude lúdica trabalhista foi mencionada e
enaltecida por Pamela Lyndon Travers, autora de Mary Poppins ‒ romance adaptado para
filme pela Disney no ano de 1964. Na obra, a personagem principal de Travers diz:
Em todo o trabalho que deve ser feito
Existe um elemento de diversão
Você encontra a diversão e o ímpeto!
O trabalho é um jogo!
(TRAVERS, 1934, p. 25, tradução nossa).
4
“Gamificação é pegar coisas que não são jogos e tentar fazê-las parecer mais com jogos” (SCHELL, 2010, tradução nossa).
5
“Não há dúvida de que os games são a forma emergente dos nossos tempos e que o processo de gamificação está
transformando nosso mundo, contaminando-o como nunca antes” (REILHAC, 2010, tradução nossa).
Precursores pré-digitais da gamificação 23

Isso é, obviamente, o que hoje chamaríamos de gamificação do trabalho. É precisamente


o uso de elementos de jogo em contextos de não jogo, como as definições de Zichermann,
Reilhac, Schell e Deterding et al. sugerem.6
Este capítulo pretende apresentar exemplos de gamificação avant la lettre7 e comparar
essas formas pré-digitais de ludificação com abordagens recentes que se baseiam fortemente
em ideias, conceitos e dispositivos históricos. Em particular, serão analisados os seguintes
campos de gamificação pré-digital: prática religiosa, música, magia, educação, estilo de vida
e ato de matar.

Gamificando práticas religiosas


Os deuses da mitologia grega sabiam como fazer truques uns com os outros. Os avata-
res indianos experimentaram luxúria e alegria, e até mesmo os deuses guerreiros da mitolo-
gia nórdica se divertiram de vez em quando. A personagem Loki presente na Edda é um
brincalhão e um bufão.8 No entanto, pouca diversão pode ser observada pelo deus cristão
ou na santíssima trindade. Os protagonistas da mitologia judaico-cristã nunca riem, nunca
fazem amor e raramente jogam. Einstein comentou a resistência de Deus para jogar com
sua famosa frase: “Deus não joga dados”. Se jogos ou apostas são relatados na Bíblia, geral-
mente são atos atribuídos a bandidos e vilões. A máxima ofensa contra a piedade e o exem-
plo por excelência de como não se comportar na presença de Cristo pode ser observada nos
soldados próximos à cruz que se atrevem a jogar enquanto Cristo está morrendo. Em con-
sonância com a sanção negativa da brincadeira está a proibição de qualquer prática de jogo
de azar na cultura cristã. O jogar, que se apresenta como o passatempo dos deuses em outras
religiões, estava bastante associado à figura do diabo no cristianismo. Quem poderia ter
inventado tamanho estorvo como o jogo? Reinmar von Zweter (apud WOLFERZ, 1916,
p. 13, tradução nossa), um poeta do século XIII, não teve dúvidas sobre isso quando escreveu
em um espírito verdadeiramente cristão: “O diabo criou o jogo de dados”.
Sua ira sobre o jogo de dados ilustra bem a rejeição do jogo em geral. Quase todos os
séculos na história da Europa Ocidental apresentaram sanções legais sobre jogos de azar,
proibição e mesmo destruição de certos jogos (Ritschl, 1884). Em 10 de agosto de 1452,
Capistrano, um sermonista da cidade de Erfurt, na Alemanha, disse ter coletado jogos que
classificou como “itens pecaminosos de luxo” e empilhou-os em um impressionante monte
de 3.640 jogos de tabuleiro, cerca de 40 mil jogos de dados, inúmeros jogos de carta e 72
trenós. Os jogos foram queimados publicamente (DIRX, 1981). É assustador ver que a

6
Devo ao meu colega Paolo Ruffino agradecer o pedido de esclarecimento sobre os “elementos de jogo” mencionados.
Em um e-mail de 21 de janeiro de 2014, Ruffino comenta: “Deterding et al. falam sobre o uso de elementos de design
de jogos. Eles se referem a um conhecimento e [a uma] prática específicos: design de jogos – um campo nascido prin-
cipalmente com a consolidação dos games como indústria”. Ruffino destaca um ponto relevante aqui. Reconheço que
estou tentando recontextualizar a gamificação aqui, não só no uso de exemplos pré-digitais, mas também ao olhar
para jogos antes que o design de jogos digitais existisse. Dito isso, minha compreensão de gamificação é próxima do
que outros autores rotulam como playification (MOSCA, 2012) ou ludification (RAESSENS, 2006).
7
Expressão francesa utilizada com o sentido de “antes de o termo existir” ou “antes de sua consolidação” [N.T.].
8
O mesmo também pode ser observado nas mitologias africanas e afro-brasileira [N.T.].
24 Gamificação em debate

queima de jogos precedeu a queima de livros e que, em ambos os casos, não era o meio físico
em si que se destinava a ser destruído, mas uma prática cultural e um grupo praticante.
Na Europa Ocidental, os jogos de azar que envolviam benefícios monetários eram mui-
tas vezes proibidos. Relatórios sobre bares que foram acusados de serem casas de jogo foram
usados em muitos casos para fechá-los ou para penalizar os proprietários desses estabeleci-
mentos. Uma ação coletiva de 1612 em Ernsdorf uniu o prefeito e os membros do coral da
paróquia para processar o proprietário que servisse bebidas alcoólicas para “atrair jogadores
e malandros para visitar sua pousada” (SCHMIDT, 2005, p. 255, tradução nossa). Em 1670,
uma lista de todos os habitantes suspeitos de jogar foi postada na mesma aldeia de Ernsdorf.
Nove anos depois, o presidente da corte foi convidado a retirar pinos de boliche das crianças
no dia de suas aulas de catecismo (SCHMIDT, 2005).
No entanto, a política real dentro da ética cristã desenvolveu meios de jogar e ser pie-
dosa ao mesmo tempo. Gerhard Tersteegen pode ser chamado de especialista em gamifica-
ção para a prática religiosa no século XVIII. Sua Loteria Piedosa9 era um jogo composto por
365 cartas que continham palavras de sabedoria e conselhos para os crentes. Ao selecionar
aleatoriamente uma carta do baralho, o jogador piedoso realizaria duas atividades ao mesmo
tempo: jogar um jogo de cartas aleatório e praticar um ato de devoção do espírito cristão.
O livro de orações gamificadas de Tersteegen foi bem-sucedido em virtude da popularidade
da prática de loteria profana do século XVIII, que foi apropriada e adaptada aos propósitos
de Tersteegen. O sermonista anuncia seu jogo como uma loteria sem o perigo de perder. Se,
no entanto, você conseguir o prêmio (for sorteado), seu preço será insuperável:

Esta é uma loteria para os crentes,


e nada pode ser perdido.
No entanto, nada seria melhor,
do que ser sorteado (TERSTEEGEN, 1769, p. 11, tradução nossa).

Contudo, nem todos estavam felizes com a ludificação de conteúdo sério proposta por
Tersteegen. Um de seus críticos contemporâneos, Heinrich Konrad Scheffler, zombou da
Loteria piedosa em sua composição de 1734 sobre a estranha prática religiosa como uma
forma de não agradar a Deus: “Praxis pietatis curiosa”10 (apud BRÜCKNER, 2010, p. 261).
O pregador itinerante Tersteegen enfrentou um problema que não é diferente dos pro-
blemas de hoje para vender produtos com baixo valor de uso como algo desejável ‒ ou traba-
lho chato como diversão. A prática comum do século XVIII de prescrever uma oração por dia
deve ter sido extremamente cansativa para os crentes praticantes. Quando o beato radical
Tersteegen inseriu o elemento de chance, conseguiu o que os evangelizadores de hoje mais
buscam: aumentar a fidelidade do cliente por meio de elementos divertidos. “Gamification is

9
A Loteria piedosa foi parte do livro Geistliches Blumengärtlein de Gerhard Tersteegen, em sua quarta edição publicada
no ano de 1769.
10
Aqui o autor se refere a um hinário (coleção de canções) publicado por Scheffler. Além da ironia à Tersteegen, o título
também faz uma provável referência a um dos hinários protestantes mais conhecidos da época: Praxis pietatis mélica,
do compositor alemão Johann Crüger.
Precursores pré-digitais da gamificação 25

driving loyalty” (GOLDSTEIN, 2013), “Motivation + big data + gamification = loyalty 3.0”
(PAHARIA, 2013), “Gamification = recognition, growth + fun” (DEMONTE, 2013). Mais
de 200 anos antes da introdução da noção de gamificação, práticas semelhantes já estavam em
uso, estabelecendo fidelidade ao ocultar o objetivo primário da empresa e oferecendo “mecâ-
nicas periféricas ou secundárias” (CIOTTI, 2013, tradução nossa) que estipulam pseudo-
-objetivos e redirecionam a atenção dos clientes, também conhecidos como jogadores.

Gamificando a música e a dança


Contemporâneos de Gerhard Tersteegen, Johann Philipp Kirnberger, Carl Philipp Ema-
nuel Bach e Maximilian Stadler trabalharam em algo que poderia ser chamado de gamificação
da música11 ao introduzir um gerador lúdico para composição musical.12 Ever-Ready Minuet
e Polonaise Composer, de Kirnberger, foram publicados pela primeira vez em 1757 e, nova-
mente, em uma versão revisada em 1783. A peça precedeu o Game of Musical Dice de 1792,
que foi duvidosamente atribuído a Wolfgang Amadeus Mozart. Se Mozart fosse o autor do
Game of Musical Dice, sua intenção seria mais provavelmente apresentar e vender outro truque
de virtuosismo, e não questionar a natureza da composição. Provavelmente também é justo
dizer que Mozart não hesitou em se apropriar de materiais e conceitos de colegas composi-
tores e poli-los de maneira pessoal para torná-los mercadorias de sucesso. A ideia do sistema
gamificado de Kirnberger e de Mozart era propor que a música pudesse ser concebida como
um jogo que segue certas regras e é afetado por um elemento de chance, ou alea – como
Caillois (2011) o nomearia. Essa ideia é completamente anticlássica e antirromântica, mas foi
epistemicamente coerente com o pensamento do século XVIII. Por conseguinte, não é sur-
preendente que sistemas como o minueto ever-ready, o compositor de polonesas e o dado
musical tenham sido artifícios de vários compositores do século XVIII.
Em 1758, Carl Philipp Emanuel Bach apresenta A method for making six bars of double
counterpoint at the octave without knowing the rules, no qual introduziu um jogo para com-
posições curtas como demonstração de seu método e uma ferramenta para composição
baseada em regras. Não seria apropriado criticar o filho de Johann Sebastian Bach pela
qualidade medíocre das composições em contraponto produzidas. O espírito de composição

11
Quando os músicos do século XVIII usaram jogos de cartas e dados para facilitar os processos de composição, visaram
algo semelhante às tentativas de gamificação contemporâneas do marketing: queriam implementar uma camada de diver-
são e entretenimento que levasse o público a acreditar que estava compondo. Na verdade, o público não compunha, eles
eram apenas instrumentais no início de processos algorítmicos. O marketing atual, por sua vez, tenta implementar uma
camada de diversão e entretenimento acima do nível funcional do marketing e quer que os clientes acreditem que desejam
o que lhes é dito para desejarem. Em ambos os casos, o serviço de sistemas lúdicos é baseado em regras como dispositivos
persuasivos para um assunto que não é jogado. É por isso que falo de gamificação no contexto da música e no contexto
do marketing recente, mesmo que o objeto da gamificação seja diferente em ambos os casos.
12
Os exemplos para os métodos de composição aleatória fornecidos aqui não reivindicam as primeiras tentativas de fazê-
-lo. Há uma história de composição aleatória no século XVIII, na era digital (NIERHAUS, 2009) e muito antes disso. Já
no século XVII, os compositores começaram a pensar em uma peça de música como um sistema de unidades que po-
deria ser manipulado de acordo com os processos do acaso. Por volta de 1650, o jesuíta Athanasius Kircher inventou a
arca musurgica, uma caixa cheia de cartas com poucas frases musicais. Ao tirar as cartas em combinação, pode-se
reunir composições polifônicas em quatro partes.
26 Gamificação em debate

do século XVIII era diferente do pensamento musical clássico e, para um compositor bar-
roco tardio, a principal conquista era produzir o mais efetivamente possível algo que se
ajustasse às regras do artesanato musical. A sutileza estética não era o ponto em questão.
Maximilian Stadler foi outro compositor que trabalhou com um conjunto de dados.
Table for composing minuets and trios to infinity, by playing with two dice foi publicada em
1780 e poderia muito bem ter sido a inspiração para os dados de Mozart. Stadler foi amigo
de Mozart, Haydn e Beethoven e não seria surpreendente se Mozart tivesse pegado algu-
mas das ideias de Stadler ao se encontrarem em Viena. Na época, as ideias inovadoras não
eram protegidas por direitos autorais, e Mozart teria se apropriado de materiais, ideias e
conceitos de alguns colegas compositores. Mas também é possível que Joseph Haydn, outro
amigo comum, tenha influenciado Stadler, Mozart ou ambos ao apresentar seu Game of
harmony, or an easy method for composing an infinite number of minuet-trios, without any
knowledge of counterpoint, que foi publicado em 1790 (ou 1793) em Nápoles por Luigi
Marescalchi. A peça, que se acredita ter sido escrita na década de 1780, é muito próxima ao
conceito e à terminologia da tabela de Stadler. À la infinite é o que Stadler tinha em mente
e Haydn, se realmente escreveu a obra, se refere a ela como infinito numero. Mais uma vez,
foi o método fácil ‒ maniera facile ‒ que serviu de motivação fundamental para os compo-
sitores do século XVIII usarem a gamificação em seus processos de composição.
Leonard Meyer observa que a prática de métodos aleatórios e lúdicos na composição e
na performance musical está, por boas razões, bem presente no século XVIII, mas é difícil
de ser encontrada na prática musical do século XIX:
Compositores do século XVIII construíram jogos de dados musicais, enquanto os composito-
res do século XIX não o fizeram [...] o que restringia a escolha das figuras eram as reivindica-
ções de gosto, a expressão coerente e a propriedade, tendo em vista o gênero do trabalho, e não
a necessidade interna de um processo subjacente e gradual que se desenvolvia [como na música
do século XIX] (MEYER, 1989, p. 193, tradução nossa).

Argumentaria aqui que a gamificação fornece métodos de coerência e propriedade no


contexto da música ‒ como demonstrado por Meyer ‒, mas também em outros contextos,
como a aprendizagem (confira a seção a seguir), a prática religiosa (confira a seção anterior)
e a dança. É por isso que o século XVIII é uma época em que exemplos de gamificação
pré-digitais podem ser encontrados em muitos casos. Os processos conduzidos pelo desen-
volvimento progressivo das estruturas subjacentes são muito mais difíceis de serem defini-
dos. O retorno lúdico do século XVIII não só se tornou evidente na paixão pelos jogos, nos
modos sociais ludificados, na prática religiosa ou na música, mas também definiu a forma
como as pessoas estavam acostumavam a dançar até então. Em Sociology of dance on stage
and in ballroms, Reingard Witzmann percebe que a dança foi concebida como um jogo na
Viena de Mozart. No final do último ato de Le Nozze di Figaro, Mozart chama os atores da
ópera-bufa de volta ao palco para proclamar o que poderia ser chamado de o lema do século:
“Sposi, Amici, al Ballo, al Gioco!” (WITZMANN, 2006, p. 403).13
13
“Cônjuges, amigos, vamos dançar, vamos jogar!” (tradução nossa).
Precursores pré-digitais da gamificação 27

Há dois pontos aqui que quero frisar ao comparar a gamificação da música e da dança
com a gamificação da prática religiosa dessas mesmas décadas:

1. Gostaria de reforçar o conceito de gamificação como “permeação da sociedade com


métodos, metáforas, valores e atributos de jogos” (FUCHS, 2011; NORDMEDIA
2013) em oposição à ideia de que a gamificação pode ser totalmente compreendida
como a transferência de elementos do design de jogos para contextos não relacionados
ao jogo, sem considerar o contexto histórico e social. Essa última ideia é sintomática
para a maioria das tentativas acadêmicas de definir a gamificação (DETERDING et
al., 2011;14 SCHELL, 2010;15 WERBACH; HUNTER, 2012). Se entendo Deterding
et al., Shell, Werbach e Hunter corretamente, então uma única instância de adaptação
de elementos de design de jogos para contextos não relacionados ao jogo já poderia ser
qualificada como gamificação. Difiro dessa compreensão da gamificação e seria extre-
mamente irresoluto em teorizar ações socialmente isoladas, como marketing de loja de
conveniência ou otimização de vendas de voos, como relevantes para o fenômeno da
gamificação se forem deslocadas de uma visão histórica e de uma perspectiva social que
inclua uma análise cultural em escala global.
A maneira como quero usar a noção de gamificação está de acordo com várias “ficações”
e “izações” que foram introduzidas nas ciências sociais nos últimos vinte anos: globali-
zação (ROBERTSON, 1992; RITZER, 2011), McDonaldização (RITZER, 1993),
Californicação,16 ludificação (RAESSENS, 2006), americanização (KOOIJMAN,
2013) e Disneyficação (BRYMAN 1999; HARTLEY; PEARSON, 2000) são todas
baseadas no pressuposto de que observamos grandes mudanças sociais conduzidas por
aparelhos que influenciam vários setores da sociedade ao mesmo tempo. Claro, a McDo-
naldização não pode ser atribuída a uma sociedade apenas pela existência de alguns
restaurantes de fast food em países diferentes dos EUA. É uma maneira de viver baseada
em uma estrutura econômica, uma estrutura de poder, uma série de neologismos e mu-
danças na linguagem falada, a introdução de um conjunto de maneiras e hábitos e uma
mudança perceptual que fazem da McDonaldização o que ela é (KOOIJMAN, 2013).
Em analogia, gostaria de afirmar que “elementos de design de jogos aplicados a contex-
tos de não jogo” não fazem per se uma sociedade gamificada. É a permeação de muitos
setores sociais com métodos, metáforas e valores que provêm da esfera de jogo que
produz a gamificação.

2. Quero mostrar aqui que certas constelações históricas têm sido um terreno fértil para o
processo de gamificação pré-digital, e a segunda metade do século XVIII certamente foi
uma delas. A intenção é também explicar por que certos momentos da história se

14
“Com base em nossa pesquisa, propomos uma definição de ‘gamificação’ como o uso de elementos de design de jogos
em contextos de não jogo” (DETERDING et al., 2011, p. 10, tradução nossa).
15
“Gamificar é tirar coisas que não são jogos e tentar fazê-las parecer mais com jogos” (SCHELL, 2010, tradução nossa).
16
O videoclipe da música Californication, da banda Red Hot Chilli Peppers (1999), é um exemplo perfeito de gamificação
da música pop.
28 Gamificação em debate

prestam para promover a gamificação e propor algumas boas razões pelas quais nossa
década parece ser um desses momentos.

Gamificando as artes mágicas


Em 1762, Wolfgang Schwarzkopf publicou um livro na cidade alemã de Nuremberg
que apresentou uma nova e esclarecedora abordagem sobre o que antes se dizia ser magia
negra ou feitiço pré-moderno. Schwarzkopf deu ao livro o título de Playground of rare
sciences e reuniu uma descrição de habilidades matemáticas e mecânicas com ensaios sobre
jogos de cartas, jogos de dados e uma seção enciclopédica de truques de prestidigitadores.
Esse livro foi uma das muitas tentativas científicas do século XVIII de recuperar a magia e
o encantamento como atividades lúdicas ‒ e separá-las de qualquer conotação de atividades
diabólicas e irracionais. No livro Rare Künste: Zur Kultur und Mediengeschichte der Zau-
berkunst, Brigitte Felderer e Ernst Strouhal descrevem como a história cultural da magia
sofreu uma mudança dramática no século XVIII ao abandonar a magia negra medieval em
favor de uma atividade lúdica (FELDERER; STROUHAL, 2006). Essa nova forma de
entretenimento educativo baseava-se em um conceito erudito de ciência popular, em uma
pesquisa empírica socialmente incorporada e em uma crença pós-religiosa no fato de que o
novo tipo de magia tinha muito mais em comum com a ciência que com práticas ritualísti-
cas ou obscuras do passado. Como James George Frazer aponta em seu Golden Bough:
“A magia é muito mais próxima da ciência que da religião. Diferentemente do que a religião
nos diz, magia e ciência são ambas baseadas no pressuposto de que causas idênticas resultam
em efeitos idênticos” (FRAZER, 1989, p. 70, tradução nossa).
Como consequência, fez muito sentido para as editoras do século XVIII falar sobre
“magia natural” ‒ como Schellenberg fez em 1802 ‒ ou “magia da natureza” ‒ como fez
Halle em 1783.17 O padrão recorrente de legitimação para o ato de falar sobre magia como
um jogo e como ciência é a figura retórica de que a magia é útil na vida cotidiana da socie-
dade; e isso é entretenimento: “Revised to take account of entertainment and serious appli-
cations” (HALLE, 1783, apud HUBER, 2006, p. 335) ou “Useful for social life”
(SCHELLENBERG, 1802, apud HUBER, 2006, p. 335). Essa linha de argumentação
pode ser acompanhada via o bonmot de Goethe de “jogos científicos como a mineralogia e
os gostos” (KAISER, 1967, p. 37, tradução nossa)18 até os dias de hoje. Este provavelmente
não é o melhor lugar para desenvolver esta ideia, mas especularei que a noção de serious
games pode ser seguida desde os esforços programáticos do século XVIII para declarar a
magia como um jogo e, assim, introduzir a ideia de que a ciência pode ser divertida e de que
o entretenimento pode ser cientificamente relevante. Hoje chamamos esse projeto de
entretenimento educativo (edutainment).

17
O livro de Johann Sebastian Halle foi publicado por Joachim Pauli em 1783, em Berlim (HUBER, 2006).
18
A autobiografia de Johan Wolfgang von Goethe chamada “Da minha vida: poesia e verdade” (original em alemão:
“Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit”) foi escrita entre 1808 e 1831. É considerada um reflexo sobre a vida de
Goethe entre os anos de 1750 e 1770. A frase sobre “jogos científicos” é citada por Kaiser (1967).
Precursores pré-digitais da gamificação 29

Gamificando o estilo de vida no “Século do Jogar”


Em 1751, Daniel Bernoulli tentou captar o Zeitgeist de seu século dizendo: “O século
em que vivemos pode ser referido nos livros de história como: ‘Pensamento Livre e o Século
do Jogo’” (apud BAUER, 2006, p. 377). Bernoulli expressou uma percepção sobre a gami-
ficação do estilo de vida baseada em observações realizadas em Viena, mas que foi válida
para as principais capitais europeias, como Paris, Roma, Londres, Haia, Roma e Nápoles.
A cultura do jogo foi um fenômeno pan-europeu baseado em tipos amplamente distribuí-
dos de jogos e regras de jogo. L’Hombre, por exemplo, é um jogo de cartas originário da
Espanha que, poucos anos depois de ter sido levado por Maria Teresa,19 esposa do rei Luís
XIV, foi jogado em todos os países europeus com pequenas variações locais.20 Isso foi pos-
sível graças a uma nova classe social itinerante que se estendeu além da aristocracia e que
tinha nos jogos uma espécie de língua franca europeia.
Viajantes frequentes como Mozart ou Johann Wolfgang von Goethe poderiam esperar
encontrar uma comunidade de jogos em quase todas as cidades da Europa com a qual seria
possível compartilhar experiências e habilidades sociais. Instruções para jogos do século
XVIII como uma forma de “Passatempo agradável com jogos encantadores e alegres para
serem jogados socialmente” (BAUER, 2006, p. 383), foram traduzidas para a maioria das
línguas europeias e tornaram-se populares entre pessoas de diferentes classes sociais
(BAUER, 2006). Loterias poderiam ser encontradas em todos os lugares e se tornaram uma
fonte de renda para alguns e um sério problema econômico para outros. Jogos de cassino
(jeux de contrepartie) ou jogos de azar, como Pharo ou Hasard, foram temporariamente
banidos e proibidos de serem jogados.
O século XVIII também foi o momento em que os apartements pour le Jeu, salas de jogos,
foram introduzidos nas casas da aristocracia, bem como nas casas da burguesia. Móveis
especiais para guardar ou exibir os jogos foram projetados.21 A forma como a gamificação
do estilo de vida social mudou do século XVII para o século XVIII se deu por maior dis-
ponibilidade, canais de distribuição transeuropeus e uma aceitação que transcendeu classe
e grupo social. É por essa razão que a proposição de Bernoulli de chamar o século XVIII
de o “Século do Jogar” faz muito sentido. Dito isso, Bernoulli não conseguiu ver como outra
onda da gamificação mudaria outro século: o século XXI está prestes a repetir a mania dos
jogos do século XVIII. Hoje, vemos uma disponibilidade onipresente, canais de distribuição
globais e a aceitação de jogos digitais que transcendem classe e grupo social, faixa etária,
etnia, gênero e subcultura.
19
NT: Maria Teresa de Áustria, infanta da Espanha, nasceu em Madrid e se casou com Luís XIV, rei da França, em 1660,
com 21 anos. Assim, é bem provável, que tenha aprendido e praticado o jogo por alguns anos antes de sua mudança
para a França e que este tenha se tornado não só um passatempo recorrente na corte como também uma forma de
aproximação com sua origem. Não confundir com sua filha, Maria Teresa de França, nascida sete anos após o casamen-
to e falecida aos cinco anos de idade.
20
Na Espanha, o jogo foi chamado de “Juego del tresillo” e “Rocambor”. O baralho (conjunto de cartas) espanhol era
usado sem as cartas oito e nove. NT: Uma destas variações do jogo de cartas é conhecida em língua portuguesa pelo
nome de “zanga”.
21
Salomon Kleiners, Apartement pour les Jeu, da primeira metade do século XVIII, conforme encontrado por Lachmayer
(2006).
30 Gamificação em debate

Gamificando a aprendizagem
Em 1883, Samuel Langhorne Clemens, também conhecido como Mark Twain, estava
tentando criar uma maneira fácil para suas filhas se lembrarem dos monarcas ingleses e as
datas em que começaram e terminaram seus cargos. Twain (2009) descreveu o problema
que enfrentou em seus cadernos: “Eram todas as datas, todas pareciam iguais e elas não as
memorizariam” (tradução nossa). Então Twain desenvolveu um método lúdico de lembrar
datas, nomes e números, mapeando-os em posições de um pedaço de terra. Ele mediu 817
pés22 ‒ cada pé representando um ano ‒ e depois colocou estacas no chão no local correspon-
dente onde reis e rainhas começaram a reinar. Suas filhas lembraram as datas por lembrarem
das posições espaciais. “Quando você pensa em Henrique III, você vê um grande e longo
caminho direto? Eu vejo, e no final, onde ele se junta a Eduardo I, eu sempre vejo uma pe-
quena pereira com sua fruta verde pendurada” (TWAIN, 2009, tradução nossa), ele escreveu.
Quando as filhas de Twain aprenderam sobre os monarcas em dois dias (elas haviam
tentado por todo o verão), ele sabia que havia descoberto um método eficiente para a
aprendizagem gamificada. Depois de alguns anos de brincadeiras, Twain patenteou o
Memory-Builder: a game for acquiring and retaining all sorts of facts and date, um jogo de ta-
buleiro igualmente dividido por anos. O jogo incluía pinos e os jogadores colocavam um
alfinete no compartimento apropriado para mostrar que conheciam a data do evento em
questão. A pontuação era obtida com base no tamanho do evento e em quão especifica-
mente os jogadores acertavam a data.
A invenção de Mark Twain introduziu dois elementos de jogo em uma relação ensino-
-aprendizagem. Por um lado, afirmou o aprendizado como uma atividade divertida proje-
tando-o dentro de um jogo de tabuleiro. Por outro, usou dados históricos como informações
espaciais. Informação e conhecimento sobre o tempo e a ordem cronológica foram reestru-
turados como uma relação espacial. Em termos derridianos, há algum tipo de jogo que
ocorre em nível semiótico e em nível do tabuleiro do jogo. De acordo com Derrida, há
uma différance, um movimento ativo envolvendo “espaçamento” e “temporalização”. A pre-
sença de um elemento não pode compensar a ausência do outro. Existe uma lacuna ou in-
tervalo que escapa à identidade completa. “Constituindo-se, dividindo-se dinamicamente,
esse intervalo é o que poderia ser chamado de espaçamento; o tempo se torna espacial ou o
espaço se torna temporal (temporalização)” (DERRIDA, 1972, p. 143, tradução nossa). O
jogo de tabuleiro de Mark Twain, portanto, joga em dois níveis: o jogo é obviamente uma
abordagem lúdica para ensinar história, pois difere das formas tradicionais e bastante solenes
da sala de aula. O segundo nível do jogo é um metanível de espaçamento e temporalização,
conforme descrito por Derrida. As instruções para o jogo Memory-Builder indicam que:

1. O tabuleiro representa qualquer século.


2. Além disso, representa todos os séculos.

22
Cerca de 250 m [N.T.].
Precursores pré-digitais da gamificação 31

Isso é o que deveria se chamar, nas palavras de Derrida, de espaçamento dinâmico ou


potencial ambíguo e lúdico de espacialização de dados históricos. Nesse artefato de apren-
dizagem, o jogador encontra a história gamificada, e não como um corpo sólido de conhe-
cimento baseado apenas em números.

Gamificando o ato de matar


Nesta seção do texto, quero apresentar um pequeno número de exemplos de como os
atos de matar e de selecionar vítimas podem ser gamificados. Não vou diferenciar entre a
ação militar que mata por meio do chamado processo legal durante a guerra e as atividades
ilegais promovidas por gangues ou criminosos individuais. Parece-me que é impossível di-
ferenciar esses dois sem uma dose de cinismo. Minha intenção é mostrar como a seleção
das vítimas pode ser influenciada por um sistema de jogos com regras próprias e um resul-
tado para o jogo. Os exemplos que gostaria de escolher são o processo de dizimação no
exército romano e em outras forças militares e um exemplo extraído da literatura que se
baseia em jogos aleatórios.
O prefeito romano Marco Licínio Crasso, quando enviado ao sul da Itália em 71 a.C.
durante a Guerra de Espártaco, notou que Lúcio Múmio Acaico, um de seus oficiais, con-
tratou os rebeldes e perdeu uma batalha. Muitas das suas tropas desertaram em vez de lutar.
Crasso, em resposta a esse constrangimento, ordenou que suas legiões fossem dizimadas.
A dizimação é um processo aleatório resultante do que a lei romana considerava justo, com
a seleção de um acusado em cada dez para ser morto. A lógica na elaboração de um proce-
dimento tão desumano, que nos parece completamente injusto, é lúdica. A base da matança
aleatória refere-se a um conceito de Fortuna,23 cega e ao mesmo tempo justa. A mecânica
gamificada de matar não pode, portanto, ser chamada de injusta, fraude, corrupção ou sem
sentido ‒ se alguém acredita no aparato do jogo, essa mecânica deve ser vista como o último
estágio da lógica inerente ao jogo. Tentei sugerir em outra publicação que esse círculo lógico
torna a gamificação um caso perfeito de ideologia no sentido da compreensão do termo por
Sohn-Rethel, isto é, a falsa consciência necessária (FUCHS, 2014).
A ideia de usar alea não é uma conquista exclusivamente militar. O crime pequeno às
vezes pode chegar a métodos semelhantes para resolver problemas. Assim fez Anton Chigurh
em No country for old men (MCCARTHY, 2005)24 ao obrigar suas vítimas a vê-lo atirar uma
moeda ao ar e serem mortos ou não dependendo do resultado do “cara ou coroa”. A
perfídia de delegar uma decisão vital ao acaso está em consonância com a lógica da lei
marcial romana para dizimar as legiões. A motivação da personagem de Chigurh para
permitir uma fuga das consequências fatais de suas caçadas humanas tem sido muito espe-
culada. Isabel Exner descreve o assassino como um homo aleator que introduz uma forma de
violência “desindividualizada” (EXNER, 2010, p. 61, tradução nossa) Este “novo homem” é,
23
Deusa romana do acaso, da sorte (boa ou má) e do destino. Sua correspondente na mitologia grega é Tique [N.T.].
24
No Brasil, uma primeira edição do livro escrito por Cormac McCarthy foi lançada em 2006 com o título Onde os velhos
não têm vez. Em 2007, foi lançada uma versão cinematográfica, dirigida pelos irmãos Cohen, que recebeu outro título
no país: Onde os fracos não têm vez [N.T.].
32 Gamificação em debate

obviamente, contrário ao conceito dos heróis tradicionais dos filmes ocidentais: o xerife, o
solitário sincero que procura vingança ou o gângster inteligente são todas personagens do
tipo homo faber. Eles poderiam resolver seus respectivos problemas por meio de tomadas de
decisão e ações individualizadas. A proposição de Isabel Exner para o surgimento do homo
aleator em “No country for old men” não é exclusivamente cinematográfica nem está relacio-
nada com a história dos filmes americanos e suas histórias criminosas. Exner sugere que o
acaso se tornou “o princípio fundamental de funcionamento da ordem prevalecente [...] que
já integrou a descoberta de Michel Serre de que ‘a probabilidade, o risco, o terror e até o
caos têm potencial para consolidar o sistema’” (EXNER, 2010, p. 61, tradução nossa).

Considerações finais
Este capítulo não pode fornecer ao leitor uma história completa da gamificação ou
dos documentos históricos relacionados à sua prática para provar que o que chamamos
hoje de gamificação já aconteceu nos séculos anteriores. Também não pretende resumir
todas as possíveis diferenças que possam existir entre os jogos de séculos passados e os
jogos digitais de nossos dias. No entanto, minha principal hipótese é que podemos detec-
tar semelhanças em aspectos do hype, no modismo e na seriedade dos jogos e de um
processo que transforma contextos de não jogo em playgrounds para atividades e experi-
ências lúdicas ao longo de séculos. Tais playgrounds puderam ser identificados no apren-
dizado, na prática religiosa, na música, na magia, na dança, no teatro e no estilo de vida e
podem igualmente ser vistos hoje em dia quando olhamos para a teoria do teatro e en-
contramos Game Theatre (RAKOW, 2013), para blogs religiosos e encontramos Gamifying
Religion (TOLER, 2013), para as informações dos serviços de saúde e encontramos Fun
ways to cure cancer (SCOTT, 2013) ou Dice games against swine flu (MARSH; BOFFEY,
2009) ou, ainda, quando investigamos o gerenciamento coletivo de água e encontramos
Games to save water (MEINZEN-DICK, 2013).
É a amplitude das aplicações, e não o exemplo individual, que suporta a hipótese de que
a gamificação ocorre como uma tendência global, uma nova forma de ideologia ou um
dispositif ‒ se assim você quiser.25 Isso não depende exclusivamente da digitalização da so-
ciedade ou do sucesso econômico dos jogos digitais. O que tentei demonstrar aqui é uma
perspectiva histórica sobre a compreensão da gamificação como forma de viver (e morrer),
fazer música, vender e comprar, engajar em processos econômicos e em estruturas de poder,
se comunicar e introduzir novos modos e hábitos para uma década ou século inteiro. Esta
pode ser a década de 2010, mas também pode ser o século XVIII, o “Século do Jogar” ‒
como Bernoulli chamou, em 1751, o século em que viveu.
A segunda metade do século XVIII compartilhou “redes pragmáticas relevantes”
(LACHMAYER, 2006, p. 35, tradução nossa) com nossos dias. Os contemporâneos de
Wolfgang Amadeus Mozart, Schikaneder, Tersteegen, Casanova, Bernoulli, Schwarzkopf e Stadler
25
O termo é utilizado por Michel Foucault como referência aos diversos meios, mecanismos e estruturas que objetivam
manter o exercício do poder dentro do corpo social, manifestos por meio de dois fatores principais: a vigilância e a
punição [N.T.].
Precursores pré-digitais da gamificação 33

foram profundamente envolvidos em uma “supranacionalidade” europeia (LACHMAYER,


2006, p. 35, tradução nossa) que reuniu uma multiplicidade de línguas, estilos, jogos e
fontes de conhecimento que, de alguma forma, se assemelham à nossa world wide web ‒ sem
ser mundial. Ainda alimentados pela ingenuidade de um desejo de acesso não filtrado a uma
variedade de formas de conhecimento científicas, semicientíficas, populares ou supersticio-
sas, os eruditos ‒ e não tão iluminados ‒ do século XVIII estavam buscando visões de
progresso. A brincadeira em nível pessoal, que incluía agôn, alea, mimicry e ilinx (CAILLOIS,
2011),26 foi um motor condutor de excentricidade e virtualidade em vez de um realismo
plano. A ludicidade era condutora de identidades multifacetadas e estritamente contraditó-
ria a um desenvolvimento monossequencial de caráter e carreira, que nos últimos séculos se
tornou requisito para a inclusão social. Pode ser que voltemos ao estado lúdico mozartiano
e que a gamificação da nossa sociedade crie um cenário para uma pluralidade inteligente de
expressão, experiência e conhecimento em nível global. Nada muito sério além da criação e
da ruptura de mitos ao mesmo tempo.
Poderia, no entanto, também ser verdade que nossa década se assemelha à segunda metade
do século XVIII de uma maneira que Doris Lessing descreveu certa vez com estas palavras:
“Este país torna-se cada dia mais como o século XVIII, cheio de ladrões e aventureiros, tra-
paceiros e uma selvageria robusta e não hipotética, lado a lado, com pessoas que ensinam aos
outros a moralidade” (FIELDING, 1992, p. 762, tradução nossa). A cultura rococó desenvol-
veu um estilo jocoso, florido, gracioso e, ao mesmo tempo, cheio de uma grosseria sofisticada.
E isso não é idêntico ao estado em que nosso discurso sobre gamificação está. Queremos ser
o SuperBetter27 e queremos desfrutar do “escapismo de autoexpansão” (KOLLAR, 2013,
tradução nossa). Estamos um pouco preocupados com isso e especulamos sobre uma pró-
xima “revolução” (ZICHERMANN; LINDER, 2013), mas gritamos em voz alta: “Gami-
ficação é besteira!” (BOGOST, 2011, tradução nossa). Nós finalmente descobrimos que “a
gamificação está transformando nosso mundo, contaminando-o como nunca antes” (REI-
LHAC, 2010, tradução nossa).
Isso é tão rococó!

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Ostfildern: Hatje Cantz, 2006. p. 377-388.

26
O termo agôn corresponde aos jogos agonísticos, em que jogadores, partindo de uma mesma condição, disputam para
ver quem é o melhor; alea, aos jogos que dependem exclusivamente da sorte, isto é, nos quais a participação do joga-
dor não é determinante; mimicry é associado ao mimetismo e corresponde às atividades nas quais o jogador assume o
papel de alguma personagem; e, por fim, ilinx se baseia na vertigem, ou seja, em atividades nas quais o jogador passa
por algum tipo momentâneo de desorientação física ou mental. Caillois (2011) afirma ainda que essas categorias não
se manifestam necessariamente de forma “pura”, podendo haver combinação entre categorias em um mesmo jogo ou
atividade lúdica [N.T.].
27
Aqui o autor faz referência à designer de jogos Jane McGonical, que produziu o serious game SuperBetter (2012), cujo
conceito de criação é baseado em seu livro Reality is broken: why games make us better and how they can change the
world (2011) [N.T.].
34 Gamificação em debate

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Gamificação, motivação e a essência
do jogo
3
Alan Richard da Luz

Se o processo de gamificação envolve utilizar elementos dos jogos para estimular o


engajamento em atividades do cotidiano, entender melhor como funcionam as dinâmicas
de motivação que envolvem os jogos é fundamental e pode nos mostrar como escapar de
certas armadilhas encontradas em muitas estratégias de gamificação.
Por não ser um especialista em gamificação, mas nas mecânicas que envolvem o jogo,
minha abordagem aqui está mais voltada e influenciada por esta ótica: a da fundamentação
do que é o jogo em si e quais são seus mecanismos de motivação e recompensa. Muitos
processos de gamificação não levam em conta essas premissas e, com isso, fracassam em
diferentes níveis. Compreender o que é o jogar pode nos ajudar a diagnosticar e penetrar na
caixa-preta desses mesmos mecanismos.

Por que gostamos de jogos? Por que jogamos?


Desde que Huizinga escreveu o tratado Homo Ludens, nós nos perguntamos de maneira
séria e científica o porquê de nossa paixão e de nossa conexão com todas as formas de jogo,
formais ou não. Por muitos motivos, os jogos são importantes para o nosso desenvolvimento
e a necessidade do jogo em nossas vidas é patente.

A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo dos animais, crianças
e adultos. Procuram determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe um lugar no
sistema da vida. A extrema importância deste lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade
da função do jogo, são geralmente considerados coisa assente, constituindo o ponto de partida
de todas as investigações científicas desse gênero. [...] A intensidade do jogo e seu poder de
fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade,
nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica
primordial do jogo (HUIZINGA, 2014, p. 4-5).

A partir dessas palavras escritas em 1938, autores de todo o mundo e das mais variadas
áreas do conhecimento vêm mapeando as motivações por trás do fenômeno do jogo e sua
40 Gamificação em debate

influência em nossas vidas. Temos exemplos de muitas definições diferentes e ótimas com-
pilações de definições do que é um jogo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012), e esses mesmos
autores tentam mapear o que nos atrai no jogo. Trago para este capítulo uma lista meio
particular e baseada em minhas leituras e relações entre esses autores, todos de grande
importância para responder à pergunta-título desta seção: por que gostamos de jogos?
Apresento cinco grandes motivos, de uma lista que não se esgota aqui, estruturados de
maneira a nos servir no que diz respeito aos processos de gamificação. São eles:

1. Aprendizado: jogamos porque gostamos de aprender.


2. Desafio: desafios criam espaços de significação em determinadas atividades antes sem
sentido, e isso nos atrai.
3. Feedback: os jogos, ao contrário da vida, nos dão feedbacks rápidos e claros.
4. Significado épico: empresto aqui o termo de Jane McGonigal (2001), pois realmente
gostamos de nos sentir importantes em nossas buscas.
5. Prazer autotélico: jogamos porque jogar é gostoso por si só.

O primeiro e o segundo estão intimamente conectados, pois o aprendizado tem a ver


com os desafios propostos. Gostamos de nos sentir desafiados e precisamos aprender novas
habilidades para superar esses desafios. Isso traz uma sensação de realização na qual os jogos
são imbatíveis.

Games são experiências de aprendizado, onde o jogador melhora suas habilidades conforme
joga. A qualquer momento, o jogador terá um repertório específico de habilidades e métodos
para superar os desafios do jogo. Parte da atração de um bom jogo é que ele continuamente
desafia e faz novas demandas ao repertório do jogador ( JUUL, 2011, p. 56, tradução nossa).

O desafio em si está ligado ao fato de os jogos serem interações lúdicas significativas. Somos
eficientes máquinas de semiose e, ao dar sentido (e significado) a uma ação qualquer, essa ação
passa a ter importância para nós. Imagine você chutando uma bola em uma parede para passar
o tempo. A atividade sem sentido logo se torna entediante, mas se alguém se aproxima e diz algo
como “duvido que você consiga chutar a bola na parede dez vezes sem deixá-la cair no chão”, a
atividade passa a ter sentido e sua ação passa a significar algo. O desafio cria uma cadeia de
significação à ação de chutar a bola na parede e isso se torna um motivador.
O feedback é um dos elementos dos jogos mais explorado na gamificação, pois é aquilo
em que os jogos mais diferem da nossa vida cotidiana. Os feedbacks que recebemos por es-
tudar, trabalhar, aprender a cozinhar, correr etc. são indiretos e muitas vezes muito tardios
(você precisa correr durante um mês para ver diferença na balança, por exemplo). Os jogos
nos fornecem feedback instantâneo e mensurável, nos dando a clara noção de estarmos ou
não melhorando (ou piorando).

As informações em tempo real e as referências quantitativas são a razão pela qual os jogadores
se tornam cada vez melhores em praticamente qualquer jogo do qual participam: seu desempenho
Gamificação, motivação e a essência do jogo 41

é constantemente avaliado e lhes é devolvido na forma de barras de progresso, pontos, níveis e


conquistas. Os jogadores conseguem visualizar com facilidade e exatidão onde e quando estão
fazendo progressos. Esse tipo de feedback instantâneo e positivo leva os jogadores a trabalhar
com mais afinco e a se tornarem bem-sucedidos em desafios mais difíceis (MCGONIGAL, 2012,
p. 163).

O significado épico (epic meaning) é algo que nos torna especiais, que transforma nossas
buscas em coisas cheias de significados grandiosos e heroicos. Os jogos estão cheios deles,
pois podem incluir objetivos como salvar uma nação da destruição, vencer o melhor lutador
do mundo, derrotar o melhor time de futebol do planeta. Gostamos de nos sentir especiais
e os jogos nos proporcionam isso. Os significados épicos potencializam o sentido dos desa-
fios e nos dão a sensação de que podemos fazer muito mais.

A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser
definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou
a representação de alguma coisa. [...] A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela,
ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma
bruxa malvada ou um tigre (HUIZINGA, 2014, p. 16-17).

O significado épico surge mesmo nos jogos informais (brincadeiras), pois nos trans-
porta para fora da realidade, libera nossa imaginação e faz todos os significados serem mais
“positivos”. Outra função indireta dos significados épicos é que eles amenizam os efeitos da
frustração pelos pequenos fracassos no decorrer do processo. Perder uma vida em um desa-
fio dentro de um videogame é muito mais aceitável, pois estamos nos submetendo a um
esforço sobre-humano se esse desafio tiver significado épico. Isso reforça o feedback positivo
e diminui o feedback negativo.
O último elemento da minha lista, o prazer autotélico ou prazer intrínseco, diz respeito
ao fato de jogarmos porque isso é divertido e está diretamente ligado ao fato de o jogo ser
uma atividade essencialmente voluntária, não podendo estar sujeito a ordens e, como o
próprio Huizinga (2014, p. 11) diz, sendo “ele próprio a liberdade”, pois nos arrebata do
mundo real. Entramos em um jogo pelas características listadas até aqui e isso cria um
prazer intrínseco ao próprio jogo, autoalimentado. O jogo é um fim em si mesmo.
Essa é uma pequena lista de motivos pelos quais jogamos, e, como já dito, ela não
se esgota. Entretanto, neste momento, podemos enxergá-la de outro modo, como fare-
mos a seguir.

O “motorzinho” de todo jogo


Todo jogo possui algo como um pequeno motor que é baseado nos elementos motiva-
cionais listados no item anterior. Mas, para entendermos esse motor, devemos visualizar
esses elementos de maneira diferente (Figura 3.1):
42 Gamificação em debate

prazer autotélico

significado
desafio
épico

aprendizado feedback

Figura 3.1 – Ciclo do prazer autotélico.

Devemos ler esse gráfico da seguinte maneira: o significado épico alimenta o desafio,
que nos motiva a aprender novas habilidades para que o superemos, das quais tomamos
conhecimento pelos feedbacks do sistema e, no caso de serem positivos, buscamos o próximo
significado épico, completando o ciclo. Esse ciclo garante o prazer autotélico, do qual ele
depende.
Agora, imagine esse gráfico não como um círculo, mas como uma espiral que vai na sua
direção, pois a cada ciclo o desafio deve ser maior, garantindo o aprendizado de novas ha-
bilidades. Qualquer quebra em um dos elementos tira o prazer intrínseco do jogo. Se o
desafio não aumenta, não precisamos aprender novas atividades e deixamos de ter esse
prazer. Se não temos feedback adequado, não visualizamos o quanto aprendemos. Se não
enxergamos o significado épico, nossa busca se torna sem sentido etc. Qualquer elemento
que falte ou não seja suficiente tira o momentum para a dinâmica.
Essa escalada do desafio para que o jogo continue interessante e a autotelia se encaixam
em outra estrutura muito conhecida e aplicada no mundo dos jogos: a teoria do fluxo (Flow
Theory) de Mihaly Csikszentmihalyi (1990). Podemos sobrepor o motorzinho do prazer
autotélico ao gráfico do canal de fluxo (Figura 3.2) e perceber como o jogo se autoalimenta
e mantém o jogador motivado e imerso.
Gamificação, motivação e a essência do jogo 43

o
ação

x
str
fru

desafio

flu téd
io

habilidades

Figura 3.2 – Gráfico do canal de fluxo.

Imagine a espiral do motor do jogo na direção da seta de progressão desafio/habilidades


do gráfico de fluxo. Qualquer quebra em um dos elementos motivacionais dos jogos nos
coloca na área da frustração ou na do tédio, tirando o prazer intrínseco do jogo. O motor
que descrevi no tópico anterior, associado à curva de progressão do fluxo, garante esse
prazer autotélico em um jogo.

Perigos da motivação extrínseca


Um jogo bem equilibrado gera prazer intrínseco. Estimular o jogador com prazer ex-
trínseco é perigoso, pois pode comprometer esse motor do jogo. Desde Huizinga (2014),
publicado originalmente em 1938, discute-se a aplicação das motivações extrínsecas em um
jogo, e tanto ele quanto Roger Caillois concordavam que, ao se oferecer recompensas ex-
trínsecas, um jogo simplesmente deixa de ser jogo, pois é imprescindível que ele seja auto-
télico e a recompensa externa tira o aspecto voluntário da atividade, tornando-a uma busca
pela, recompensa, e não mais um fim em si mesma: “[o jogo] é uma atividade desligada de
todo e qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo
uma certa ordem e certas regras” (HUIZINGA, 2014, p. 16).
Caillois (1990, p. 25) deixa claro que, apesar de jogos de azar serem ricos culturalmente,
não podem ser encarados como jogos em virtude de sua natureza de recompensa extrínseca;
para ele, a natureza livre e voluntária do jogo é “indiscutível” (1990, p. 26). Ele afirma que
os jogadores profissionais, que deixam de ser “jogadores” por serem “profissionais”, pois o
jogo não deve produzir nenhuma riqueza.

No fim do lance, tudo pode e deve voltar ao ponto de partida, sem que nada de novo tenha
surgido: nem colheitas, nem objetos manufaturados, nem obra-prima, nem capital acrescido.
44 Gamificação em debate

O jogo é ocasião de gasto total: de tempo, de energia, de engenho, de destreza e muitas vezes
de dinheiro [...] Quanto aos profissionais, pugilistas, ciclistas, jockeys ou atores que ganham a
vida no ringue, na pista, no hipódromo ou nos palcos e que devem preocupar-se com o salário,
as percentagens ou os bônus, claro que neste aspecto não se devem encarar como jogadores mas
como trabalhadores (CAILLOIS, 1990, p. 25).

A motivação extrínseca não é um problema apenas nos jogos, mas em qualquer ativi-
dade que gere prazer intrínseco e autotelia. Teorias da psicologia que envolvem a autode-
terminação e a autopercepção já dão conta de fenômenos que surgem desses cenários.

O fenômeno da superjustificação
As teorias a respeito da superjustificação partem do princípio de que um sujeito envol-
vido em uma atividade (qualquer uma), ao inferir que não existem motivações externas para
sua agência, deduz que realiza a tarefa automotivado e que esta tem um fim em si mesma.
Se esse mesmo sujeito identifica algum tipo de motivação externa à atividade em si, ele não
consegue estabelecer a relação de fim em si para essa atividade e deduz que a faz apenas pela
motivação extrínseca.

Quando um indivíduo observa outra pessoa se engajar em alguma atividade, ele infere que o
outro está intrinsecamente motivado para se envolver naquela atividade na medida em que não
percebe contingências extrínsecas salientes, inequívocas e suficientes às quais possa atribuir o
comportamento do outro. A teoria da autopercepção propõe que uma pessoa se envolve em um
processo similar de inferência sobre seu próprio comportamento e seu significado (LEPPER;
GREENE; NISBETT, 1973, p. 129, tradução nossa).

Ou seja, nosso nível de envolvimento em atividades é alimentado pela percepção de


que a motivação é intrínseca a ela, criando um moto-contínuo que pode levar ao prazer
autotélico.

A hipótese da superjustificação – a proposição de que o interesse intrínseco de uma pessoa em


uma atividade pode ser minado induzindo-a a se envolver com um fim explícito de atingir al-
gum objetivo extrínseco. Se a justificação externa oferecida para induzir uma pessoa a se envol-
ver em uma atividade é desnecessariamente alta e psicologicamente “supersuficiente”, a pessoa
pode vir a inferir que suas ações foram basicamente motivadas pelas contingências externas da
situação, em vez de qualquer interesse intrínseco na atividade em si. Resumindo, uma pessoa
induzida a fazer uma atividade inerentemente desejável como um meio para algum fim poste-
rior deixará de enxergar a atividade como um fim em si mesma (LEPPER; GREENE; NISBETT,
1973, p. 133, tradução nossa).

A motivação extrínseca, então, pode se tornar vilã no processo de reforço cognitivo em


atividades naturalmente intrínsecas, como os autores demonstram ao submeter três grupos
de crianças que gostavam da atividade de desenhar a uma atividade de desenho sob a
Gamificação, motivação e a essência do jogo 45

condição de que um dos grupos faria os desenhos para ganhar um prêmio (um certificado
dourado com um laço), outro grupo não teria nenhum prêmio esperado, mas receberia o
mesmo prêmio que o primeiro de maneira inesperada, e o terceiro grupo, como controle,
não receberia nenhum prêmio.
O resultado comprovou a hipótese da superjustificação ao demonstrar que as crianças
que tinham a antecipação do prêmio mostraram menos interesse intrínseco na atividade que
as crianças que não receberiam o prêmio (controle) ou mesmo que aquelas que receberam
o prêmio de maneira inesperada (segundo grupo). Como esperado, as crianças do primeiro
grupo perderam rapidamente o interesse na tarefa e gastaram menos tempo desenhando.
Os autores argumentam que os resultados do experimento comprovam ser possível o fenô-
meno da superjustificação.
Os autores ainda chamam a atenção para o fato de que a recompensa, mesmo simbólica,
produziu o efeito da superjustificação nas crianças:

A manipulação bastante limitada empregada neste estudo, envolvendo uma recompensa sim-
bólica diferente daquelas rotineiramente empregadas nas salas de aula, foi suficiente para pro-
duzir diferenças significativas no comportamento subsequente das crianças (LEPPER; GREENE;
NISBETT, 1973, p. 134, tradução nossa).

Os autores ainda pedem cuidado com a generalização do argumento da superjustifica-


ção, alertando para o fato de que a recompensa extrínseca do experimento era essencial-
mente supérflua e que há outros experimentos que comprovam a eficácia das recompensas
extrínsecas como mecanismos de motivação em certos contextos. O argumento se estende
limitando o resultado do experimento a atividades que atendam a duas condições:

a) que o nível de interesse intrínseco seja mínimo ao ponto de se exigir a adoção de uma
recompensa extrínseca;
b) que a atividade seja tal que seu envolvimento só seja percebido após um longo tempo ou
após a conquista de um certo domínio.

O experimento comprova a possibilidade da superjustificação, e as condições em que ela


ocorre têm consequências para os processos descritos neste capítulo. Mas devemos olhar a
recompensa extrínseca também sob o olhar da teoria da autodeterminação, como explico
mais à frente.
Os dois casos em que a teoria da superjustificação entende a eficácia da recompensa
extrínseca, atividade demasiadamente enfadonha e atividade de pouco interesse intrínseco
inicial, são aplicações clássicas de gamificação, como certas tarefas do trabalho diário. Po-
rém, a gamificação em um curso de línguas, por exemplo, pode ter resultados variados, já
que, enquanto algumas pessoas não têm interesse na atividade e uma recompensa extrínseca
ajuda na motivação do avanço do curso, certas pessoas têm interesse genuíno e podem
sentir prazer intrínseco aprendendo essa nova língua.
46 Gamificação em debate

Recompensas extrínsecas e behaviorismo


A gamificação é um campo novo, no qual ainda estamos experimentando definições e
cercando fronteiras. Em resumo extremo, a gamificação seria a aplicação de elementos dos
jogos em atividades do dia a dia para gerar motivação e interesse. Na falta de clareza desses
conceitos, muitas vezes se assumem os aspectos mais superficiais do que seria o jogo e o
jogar. Esquecem-se por vezes itens fundamentais, como a diversão. Uma definição interes-
sante é trazida por Yu-Kai Chou (2014, p. 8, tradução nossa): “Em minha própria visão,
gamificação é a habilidade de gerar elementos de diversão e engajamento encontrados tipi-
camente em jogos e aplicá-los sabiamente a atividades produtivas do mundo real”.
Esse aspecto de “novidade” em relação à gamificação produz como efeito processos em
que se exploram os aspectos mais visíveis e transportáveis do jogo:

muitos profissionais de gamificação focam somente no desenvolvimento da camada mais


superficial dos jogos. Eu considero isso a casca da experiência de jogo. Isso é muitas vezes
manifestado na forma do que chamamos de PBLs: Points, Badges and Leaderboards [Pontos,
Insígnias e Classificação].1 Muitos profissionais de gamificação parecem acreditar que, se
você adiciona pontos a algo chato, coloca algumas insígnias e oferece uma classificação com-
petitiva, aquele produto chato irá automaticamente se tornar excitante (CHOU, 2014, p. 17,
tradução nossa).

Esse tipo de prática gera muitas críticas, tanto de consumidores, que se frustram, quanto
da comunidade de desenvolvimento de games, que a considera uma banalização do pro-
cesso. Não que a aplicação da tríade PBL seja ruim ou um mal em si, mas aplicar somente
esse dispositivo, sem cuidados com toda a filosofia da gamificação, cria mais problemas que
soluções:

Pessoas curiosas sobre gamificação começam a acreditar que a soma total da metodologia de
gamificação é meramente o processo de adicionar pontos, insígnias e classificação aos produtos.
Com justiça, isso os leva a acreditar que gamificação é uma moda superficial sem muito impac-
to (CHOU, 2014, p. 17, tradução nossa).

Além do problema da banalização desse processo, o acréscimo da estrutura PBL sem a


profundidade e a reflexão necessárias leva também a questões como a externalização das
recompensas (como a superjustificação já citada neste capítulo) e aos processos comporta-
mentais (como o behaviorismo).
Como o próprio Chou argumenta, se você perguntar a qualquer jogador qual aspecto
do jogo o motiva e traz diversão, dificilmente ele mencionará os relacionados ao PBL. Nesse
caso, o PBL é um conjunto que se soma ao todo do jogo; quando aplicado de maneira
isolada a qualquer atividade de não jogo, ele se torna apenas uma recompensa extrínseca.

1
A tríade pontos, insígnias e classificação é a mais corrente e usada na gamificação, a ponto de gerar a criação do acrô-
nimo que praticamente se tornou sinônimo de gamificação.
Gamificação, motivação e a essência do jogo 47

Somente incorporar essas mecânicas e elementos de jogo aos processos não os torna moti-
vadores e divertidos; por isso, inclusive, definições de gamificação que levam apenas esse
aspecto em consideração (como a mencionada por mim no início deste tópico) são limitadas
e injustas.
As técnicas associadas a esquemas como o PBL, e que utilizam como motor central
apenas recompensas extrínsecas, apoiam-se em laços muito frágeis baseados no comporta-
mento humano. Por vezes, a aplicação desses esquemas se torna inclusive behaviorista. As
recompensas estreitam nosso foco (“vou fazer isso para ganhar aquilo”), o que é interessante
quando as metas são claras e objetivas, mas pouco útil quando existe a necessidade de uso
da criatividade para solução dos problemas. Um dos motivos para isso pode ser o modo
como usamos o cérebro. Enquanto as motivações extrínsecas são mais pragmáticas e focam
nos resultados (faça isso para ganhar aquilo), as motivações intrínsecas são mais sensoriais e
focam no processo (você faz porque é divertido fazer).
Outro problema associado às motivações extrínsecas é o aspecto behaviorista delas.
Behaviorismo é o campo da psicologia que estuda, em parte, o condicionamento pelo com-
portamento, como o reflexo condicional de Petrovich Pavlov no behaviorismo clássico, que
acredita que todo comportamento surge de um estímulo e, portanto, podemos condicionar
qualquer comportamento com o estímulo correto.
Se pensarmos bem, a recompensa extrínseca pode exercer um papel behaviorista ao
estabelecer que se você faz a tarefa, ganha prêmio; se não faz, não ganha prêmio; tentando
assim condicionar seu comportamento pelo estabelecimento de recompensas externas à
atividade em si. Porém, o laço aqui é frágil, pois existe a chance de se perder a motivação se
a recompensa for tirada do processo (o processo não se torna autotélico).

Isso porque quando fazemos algo por motivadores extrínsecos, nossos olhos estão no objetivo,
e tentamos usar o caminho mais rápido e de menor esforço para alcançá-lo. Como consequên-
cia, muitas vezes abandonamos nossas habilidades para ser criativos, pensar de maneira expan-
siva e refinar nosso trabalho (CHOU, 2014, p. 354, tradução nossa).

Ao propor uma recompensa extrínseca, tiramos o foco do processo, colocando-o no


objetivo, e as atividades que geram prazer intrínseco são aquelas em que nosso foco está
justamente no processo (gostamos de jogar porque gostamos do processo de jogo em si);
portanto, a recompensa externa pode impedir o motor do prazer autotélico de se perpetuar
no processo.
Os processos behavioristas ignoram o que acontece dentro do cérebro, trabalhando
apenas com os sinais externos de nossas respostas. Percebe-se isso nas técnicas de motivação
criadas na década de 1950 nos ambientes de trabalho, como presentes e bônus. Pare para
pensar no quanto isso realmente lhe motiva. As teorias cognitivistas mais recentes tentam
entender o que acontece dentro do cérebro e, com isso, visam tornar a atividade intrinseca-
mente prazerosa, o que torna todo o processo mais sólido e estável.
Teorias como a da autodeterminação, de Ryan e Deci (na qual se apoia a teoria da su-
perjustificação), nos dizem que o ser humano é naturalmente proativo e com intenso desejo
48 Gamificação em debate

de se desenvolver, mas que o ambiente deve dar suporte a isso; por isso, o foco não deveria
estar na motivação em si, mas na criação de um ambiente fértil para o prazer autotélico
(RYAN; DECI, 2000).

Talvez nenhum fenômeno individual reflita melhor o potencial positivo da natureza humana
que a motivação intrínseca, a tendência inerente para procurar novidades e desafios, aumentar
e estender a própria capacidade, explorar e aprender. Desenvolvimentistas reconhecem que,
desde o nascimento, as crianças, em seus estados mais saudáveis, são ativas, inquisitivas, curiosas
e brincalhonas [playful], mesmo na ausência de recompensas específicas (RYAN; DECI, 2000,
p. 70, tradução nossa).

Para os autores, necessitamos de três elementos para que esse ambiente seja propício:

1. Competência: o domínio em saber lidar com o ambiente externo.


2. Afinidade: conexão social e desejo universal de estar em contato.
3. Autonomia: necessidade de estar no controle de uma situação e de estar fazendo algo
que é significativo para sua vida, de acordo com seus valores.

Segundo Ryan e Deci (apud WERBACH; HUNTER, 2012), qualquer atividade que
traga duas dessas necessidades humanas tende a ser naturalmente de motivação intrínseca.

Jogos são perfeitas ilustrações das lições das teorias de autodeterminação. Por que as pessoas
jogam? Como já dissemos, ninguém as força. Mesmo um simples jogo de Sudoku ativa as ne-
cessidades intrínsecas por autonomia (que puzzle eu resolvo e como o resolvo depende apenas
de mim), competência (eu descobri como!), e afinidade (posso compartilhar o feito com meus
amigos) (WERBACH; HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa).

Possibilidades para o uso das recompensas extrínsecas


O uso de recompensas extrínsecas em processos de gamificação deve ser profundamente
integrado aos outros elementos de jogo presentes. Elas vão funcionar muito bem, por exem-
plo, para atrair seu público para a atividade em si, mas, uma vez dentro e engajado na ativi-
dade, deve-se pensar em uma transição para processos mais focados na experiência e que
possam ser mais duradouros, prazerosos e divertidos.
Muitos processos de gamificação focam apenas nos esquemas baseados em PBL pois
eles funcionam muito bem no curto prazo (atraindo o público) e geram bons números a se
apresentar, porém se perdem no tempo e desestimulam o público via processos de superjus-
tificação ou falta de estímulo para a experiência em si.
Novamente segundo as teorias da autodeterminação, a recompensa extrínseca pode
variar o grau de autonomia dado à pessoa ao ser introjetada ou integrada à atividade. Um
adolescente que faz o dever de casa para se submeter ao controle dos pais está sob uma
motivação extrínseca para se adaptar às regulações de sua família (regulação introjetada,
Gamificação, motivação e a essência do jogo 49

externa). Por outro lado, um adolescente que faz o dever de casa porque sabe que isso
contribui para seu desenvolvimento pessoal e refletirá na sua carreira futura também o faz
sob motivação extrínseca (regulação integrada, interna), porém com um grau de escolha e
autonomia diferentes do caso anterior. Enquanto, no primeiro caso, o locus da causalidade é
externo, no segundo é mais próximo do interno.
O comportamento motivado extrinsecamente por regulação introjetada acontece para
se evitar a culpa ou a ansiedade ou por orgulho. Quando a regulação é integrada, o compor-
tamento acontece por conta de uma congruência com valores e necessidades internos da
pessoa (RYAN; DECI, 2000). Ao projetar uma plataforma de gamificação baseada em
motivações extrínsecas como PBL, deve-se tomar cuidado para que essas recompensas le-
vem em conta o ambiente da atividade, para que se relacionem aos três elementos básicos
da motivação intrínseca.

Considerações finais
Cada processo de gamificação é único, e estabelecer os seus parâmetros e requisitos é
trabalho árduo que exige profundo conhecimento do processo em si e das possíveis estra-
tégias de gamificação (e do que é a gamificação de verdade). O que tento introduzir aqui é
que a gamificação não pode ser enxergada como algo distinto e distante do que é o jogar, e
que não pensar na filosofia do jogo em si e na psicologia da motivação nos faz perder
oportunidades de sucesso.

Não supersimplifique as maneiras como os elementos de jogo ou sistemas gamificados podem


produzir respostas motivacionais. E não supergeneralize como as pessoas respondem a certos
estímulos. Gamificação não é design de recompensas. [...] Muitos sites e plataformas gamifica-
dos assumem que uma recompensa virtual é inerentemente atraente. Não é. Ela pode ser um
pálido substituto para o que as pessoas realmente querem (WERBACH; HUNTER, 2012, loc.
823, tradução nossa).

A teoria da autodeterminação também oferece pistas interessantes sobre o que eles


chamam de “internalização” do sistema de regulação das recompensas extrínsecas. Isso
ocorre quando essa motivação é introjetada ou integrada ao self (como já exemplificado no
item anterior), o que traz a autonomia e o senso de escolha de volta à atividade, facilitando
a motivação intrínseca. Isso pode ser feito tanto pelo viés da afinidade (vou fazer porque é
importante para alguém com quem me importo ou por querer pertencer a um grupo), da
competência (para adquirir respeito por fazer bem a atividade) ou da autonomia (a escolha
disso é minha). Podemos, então, tornar a motivação extrínseca mais orgânica e natural
atingindo esses pontos, melhorando o ambiente (RYAN; DECI, 2000, 2017).
Abordar apenas as recompensas de um sistema é como tratar uma doença apenas pelos
seus sintomas: o paciente melhora, mas a doença continua lá. Pensar na teoria da autode-
terminação pode ser um bom ponto de partida, e verificar se você traz em seu processo as
três necessidades básicas humanas gera plataformas gamificadas mais duradouras.
50 Gamificação em debate

Gamificação usa os três motivadores intrínsecos para gerar resultados poderosos. Níveis e acu-
mulação de pontos podem ser marcadores de competência e domínio. Dar aos jogadores esco-
lhas e uma gama de experiências conforme progridem alimenta o desejo por autonomia e
agência. As interações sociais como compartilhamento no Facebook ou as insígnias que você
pode mostrar para os amigos respondem à necessidade humana por afinidade (WERBACH;
HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa).

Portanto, pensar na plataforma de gamificação com o olhar do design de jogos, da filo-


sofia ou da psicologia cognitiva pode trazer benefícios para seus processos de gamificação,
pois mostra de maneira clara como metodologias, modelos e estruturas da gamificação se
complementam nas definições do que é o jogo, na filosofia do jogar e na cognição do pro-
cesso. Entender essas definições é compreender as bases dos processos de gamificação e a
real natureza do que torna o jogo algo tão poderoso. A intenção aqui não é responder o que
é melhor ou pior nesses processos, mas proporcionar uma reflexão mais profunda visando à
construção de plataformas mais duradouras e inteligentes.

Referências
CAILLOIS, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Perspectiva, 1990.
CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the psychology of optimal experience. New York: Harper and Row, 1990.
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Media, 2014.
FLANAGAN, M.; NISSENBAUM, H. Values at play: valores nos jogos digitais. São Paulo: Blucher, 2016.
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
JUUL, J. Half-real: videogames between real rules and fictional worlds. Cambridge: MIT Press, 2011.
LEPPER, M. R.; GREENE, D.; NISBETT, R. E. Undermining children’s intrinsic interest with extrin-
sic reward: a test of the “overjustification” hypothesis. Journal of Personality and Social Psychology, v. 28,
n. 1, p. 129-137, 1973.
MCGONIGAL, J. A realidade em jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar
o mundo. Rio de Janeiro: Bestseller, 2012.
RYAN, R. M.; DECI, E. L. Self-determination theory: basic psychological needs in motivation, develop-
ment, and wellness. New York: Guilford Press, 2017.
______. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development, and
well-being. American Psychologist, Rochester, v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000.
SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Regras do jogo: fundamentos do design de jogos. São Paulo: Blucher,
2012. 4 v.
WERBACH, K.; HUNTER, D. For the win: how game thinking can revolutionize your business [digital].
Philadelphia: Wharton Digital Press, 2012.
A emergência da gamificação na
cultura do jogo
4
Fabricio Fava

Posto em relevância principalmente pelo interesse na integração do aspecto lúdico


(ludens)1 à nossa cultura, o jogo é uma atividade voluntária que “se realiza tendo em vista
uma satisfação que consiste nessa própria realização” (HUIZINGA, 2007, p. 12). O jogador
associa ao jogo a sensação de prazer que experimenta enquanto joga, e a busca por uma
experiência de envolvimento faz dos jogos parte integrante de nossa vida cotidiana. Mais
que isso, eles a ampliam, tornando-se “uma necessidade tanto para o indivíduo, como fun-
ção vital, quanto para a sociedade, [...] como função cultural” (HUIZINGA, 2007, p. 12).
Sob essa ótica, é possível traçarmos relações análogas entre jogo e cultura: Marshall
McLuhan (1969), por exemplo, aponta que, para se ajustar à sociedade, os homens precisam
se render aos imperativos coletivos, assim como os jogadores devem consentir transformar-se
em bonecos temporariamente para que o jogo funcione; o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi
(1990), por sua vez, pensa que tanto os jogos quanto a cultura apresentam diretrizes para que
as pessoas se envolvam em um processo e ajam com o mínimo de dúvida ou confusão.
Ambos os autores, no entanto, pontuam que os jogos agem fora de nosso ambiente de
trabalho: “os jogos [...] são contra-irritantes ou meios de ajustamento às pressões e tensões
das ações especializadas de qualquer grupo social. Como extensões da resposta popular às
tensões do trabalho, os jogos são modelos fiéis de uma cultura” (MCLUHAN, 1969, p. 264);
“os jogos preenchem os intervalos do enredo cultural. Eles incentivam a ação e a concen-
tração durante o ‘tempo livre’, quando as instruções culturais oferecem pouca orientação”
(CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 122, tradução nossa).
Atualmente, contudo, apesar da existência dessa lógica dual de oposição entre as
noções de brincadeira e seriedade, tempo livre e trabalho, lazer e responsabilidade, jogo e
cultura, surgem cenários que demonstram uma tendência de estreitamento de relações
entre elas. Fato que pode ser observado, por exemplo, a partir da emergência da geração
Y (BUNCHBALL, 2012), formada por indivíduos considerados nativos digitais, cons-
tantemente conectados em redes online e imersos, desde a infância, na linguagem e na
metáfora dos jogos.
1
Atualmente, o estudo do aspecto lúdico parece ganhar evidência em relação a outras funções, como raciocínio (sa-
piens) e fabricação (faber), observadas ao longo dos anos para designar a espécie humana.
52 Gamificação em debate

As características, os comportamentos e as motivações dessa geração têm apresentado


reflexos importantes nos ambientes de trabalho e ensino, e a demanda pelo divertimento
parece ganhar cada vez mais importância. O número de norte-americanos que não se sen-
tem engajados em seu ambiente de trabalho, por exemplo, é de 71% (GALLUP, 2011),
enquanto 90% gostariam de ter colegas de trabalho que tornassem o ambiente mais diver-
tido (SOCIALCAST, 2011).
Esses locais estão sendo ocupados por pessoas que não conhecem o mundo sem celula-
res, videogames ou internet (TRYBUS, 2009). Ao final da década de 2010, espera-se que
um em cada cinco cidadãos americanos se aposentasse e fosse substituído por outro com
idade entre 18 e 40 anos e que tivesse crescido com os games (TRYBUS, 2009). São pessoas
que já representam 25% da força de trabalho (BUNCHBALL, 2012) e que despendem
várias horas diárias interagindo com jogos digitais em um nível de envolvimento que rara-
mente é observado em ambientes de trabalho ou estudo (REEVES; READ, 2009). Pondo
em contexto o cenário brasileiro, há de se considerar a expressividade dos números, uma vez
que assistimos em média a 4h30 de TV por dia (SECOM, 2014), enquanto jogamos video-
games por 2h10 (NPD GROUP, 2015).
Diante dessas considerações, chegamos à implicação de que as experiências vividas por
intermédio do jogo estão redefinindo nossas expectativas sobre o mundo físico (que deno-
minamos “real”): os games adentram cada vez mais os espaços de nossas atividades cotidia-
nas; inspiram-nos de tal maneira que os ambientes acadêmicos e as metodologias de
trabalho nos parecem cada vez menos interessantes; e transformam as relações sociais de
modo que a “realidade” se mostra cada vez mais entediante.

Onipresença da lógica dos games


A onipresença dos games pode ser verificada na aplicação de sua lógica e suas mecâni-
cas nos mais diversos contextos. Isto é, os jogos são vistos como um complexo fenômeno
cultural, não apenas como validação do entretenimento, mas especialmente no que diz
respeito à promoção de mudanças e engajamento para o bem social. Sua ubiquidade pode
ser percebida em pelo menos três aspectos distintos:

1. Nos jogos propriamente ditos (sejam eles com objetivo de entretenimento ou nos cha-
mados serious games):2 nesse contexto, temos, por exemplo, o jogo FoldIt (2008), no qual
os jogadores podem contribuir para a pesquisa científica lidando com paradigmas de
resolução de problemas ainda sem solução. Outro exemplo é The Big Easy Budget
(2016),3 que utiliza dados abertos da cidade de Nova Orleans e permite que os jogado-
res experimentem o papel de prefeito e busquem formas de criar um orçamento melhor para
a cidade. Pode-se citar, ainda, America’s Army: desenvolvido pelo exército norte-americano,

2
Apesar de a diversão ser um fator importante, os serious games têm uma preocupação maior com aspectos como
aprendizado e avaliação, podendo ser aplicados para treinamento (militar, de pilotos, médico etc.), educação, medicina
(reabilitação física ou cognitiva) etc.
3
Jogo disponível em: <bigeasybudgetgame.com/>. Acesso em: 4 abr. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 53

o game simula situações vivenciadas por soldados durante missões de combate e tem
sido responsável por dois fatos interessantes (SINGER, 2010): o primeiro é que, por
causa dele, 30% dos jovens americanos passaram a ter uma melhor impressão sobre o
exército; o segundo é que tem funcionado como uma ferramenta de recrutamento com
melhor retorno de investimento que todas as outras formas de publicidade juntas,
mesmo tendo um gasto médio anual de US$ 3,28 milhões ante os US$ 8 bilhões gastos
com propaganda para tal fim.
Muitas ações também têm utilizado os videogames no contexto de ensino e aprendiza-
gem buscando ampliar o envolvimento e a motivação dos alunos a partir de uma expe-
riência lúdica. Essas soluções têm adotado os jogos como ferramentas de ensino e os
resultados parecem bastante promissores, como é o caso de Minecraft, que possui uma
comunidade online4 na qual os professores podem trocar experiências, ideias e inspira-
ções sobre o uso do jogo em suas escolas. As estratégias de uso dos games na educação
têm crescido, principalmente com o aumento da penetração dos dispositivos móveis. São
inúmeros os aplicativos e as plataformas projetados com fins de aprendizagem, como é
o caso de Duolingo, para aprendizagem de idiomas; Udemy, com cursos diversos, como
programação, culinária ou comunicação oral; e Instinct, para o ensino de música.
A publicidade é outro segmento que sempre buscou soluções capazes de gerar experi-
ências emocionais e interativas que criassem uma conexão entre produtos e pessoas. Essa
estratégia é utilizada desde antes das tecnologias digitais, como no caso da cervejaria
Carslberg, que publicou um anúncio de contracapa de revista com instruções para torná-
-lo um abridor de garrafas.5 O uso dos advergames, ou jogos publicitários, tem se mos-
trado uma ferramenta interessante e recursiva para esse propósito, como é o caso da ação
NewsBraker Live para o site de notícias msnbc.com. Baseada no jogo Breakout,6 a promo-
ção transformou os espectadores das salas de alguns cinemas norte-americanos em
controles humanos.
Os jogos digitais também estão ocupando cada vez mais os espaços artísticos por meio
do que vem sendo chamado de game arte. No Brasil, uma seleção de jogos como forma
de expressão artística pode ser observada anualmente no Festival Internacional de Lin-
guagem Eletrônica (FILE). O artista e professor norte-americano Andrew Hieronymi,
por exemplo, apresentou em 2006 a instalação Move,7 que permitia que os participantes
experimentassem algumas ações realizadas pelos avatares8 nos videogames.

4
O portal Minecraft in Education pode ser acessado em: <www.minecraftedu.com>. Acesso em: 19 ago. 2015.
5
Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=f6R9lPYdU9I> Acesso em: 10 mar. 2014.
6
Em Breakout o jogador controla uma paleta na parte inferior da tela e, por meio dela, deve rebater uma bola com o
objetivo de quebrar uma sequência de blocos dispostos na parte superior da tela.
7
Instalação artística de Andrew Hieronymi permite a experimentação de seis diferentes ações próprias dos videogames:
pular, evitar, perseguir, jogar, esconder e coletar. Disponível em: <users.design.ucla.edu/~ahierony/move/> Acesso em:
10 jul. 2014.
8
Avatares são a representação do jogador dentro do jogo. Eles são projetados para gerar uma experiência de identifica-
ção como o personagem.
54 Gamificação em debate

2. Nos simuladores: embora alguns simuladores sejam comercializados como jogos, eles
essencialmente não são considerados como tal. O uso dos simuladores é normalmente
adotado para fins de aprendizagem, principalmente em atividades que envolvem um alto
valor financeiro ou oferecem risco de vida às pessoas. As principais delas são o treina-
mento de pilotos, médicos ou militares, como é o caso de VirtSim.9

3. No design inspirado nos jogos: isso refere-se à busca por recursos e soluções de design
inspirados na lógica dos games, no sentido de provocar, de alguma maneira, experiências
de envolvimento e diversão, mas que não são caracterizados efetivamente como jogos.
O caso mais conhecido certamente é o projeto The Fun Theory,10 de iniciativa da
Volkswagen, dedicado a trabalhar o pensamento de que a diversão é uma maneira im-
portante de influenciar a mudança de comportamento das pessoas para melhor. Outro
exemplo interessante ocorreu em uma estação de metrô em Moscou, onde, com o intuito
de promover os Jogos de Inverno de Sochi e levar o esporte à vida cotidiana, encorajando
as pessoas a terem uma vida mais saudável, o Comitê Olímpico Russo instalou um
terminal de autoatendimento que liberava um passe do transporte caso o usuário reali-
zasse 30 movimentos de agachamento em menos de dois minutos.
Mais recentemente, uma plataforma interativa denominada PRAMA11 chamou a aten-
ção ao favorecer a prática de exercícios físicos baseada em jogos na academia Asphalt
Green, sediada em Nova York. Auxiliada por sensores que respondem à pressão e ao
toque e marcações espaciais, numéricas e luminosas dispostas nas paredes e no solo, a
solução permite a realização de diversas atividades e contribui para a perda de peso e o
desenvolvimento de habilidades de velocidade, força e equilíbrio, entre outras.
O design lúdico também pode ser encontrado, por exemplo, no Google, que, desde 1998,
passou a criar e exibir em sua página inicial diferentes e divertidas intervenções de de-
sign em seu logotipo chamadas de Doodles.12 Inicialmente, os Doodles eram imagens
estáticas, mas, a partir de 2010, eles passaram a ganhar frequência e complexidade com
o uso de animações e interação, como o produzido em celebração ao jogo Pac-Man.13
Aplicativos para dispositivos móveis também estão entre as soluções de design que se
apropriam da lógica e das características dos games como mecanismo de geração de
envolvimento. Um exemplo bastante conhecido é o Foursquare (2009), um aplicativo de
rede social baseado em geolocalização que ganhou bastante repercussão já no ano de seu
lançamento (AGUIARI, 2011) com um modelo de interação baseado em mecânicas de
jogos. Os usuários tinham por objetivo informar o local (restaurante, universidade, praça,
concerto musical) em que se encontravam e/ou localizar pessoas próximas a eles. A cada

9
VirtSim é um conceito de treinamento virtual imersivo desenvolvido pela Motion Capture. Por meio de um criador de
cenários, os usuários do VirtSim podem criar e modificar ambientes de treinamento para uso personalizado. Disponível
em: <www.motionreality.com/virtsim-military> Acesso em: 10 ago. 2015.
10
Disponível em: <www.thefuntheory.com>. Acesso em: 28 jan. 2018.
11
Disponível em: <www.pavigym.com/uk/products/product/prama/>. Acesso em: 7 abr. 2016.
12
Disponível em: <www.google.com/doodles>. Acesso em: 3 ago. 2015.
13
Disponível em: <www.google.com/doodles/30th-anniversary-of-pac-man>. Acesso em: 28 jan. 2018.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 55

vez que a presença em determinado local era informada – por meio de check-ins –, o
usuário acumulava pontos que geravam um ranking de classificação entre a sua rede de
contatos. A pontuação adquirida era atualizada semanalmente, estimulando a continui-
dade no uso do aplicativo. A constância com que o usuário frequentava determinado
local tornava-o o prefeito do lugar, conferindo-lhe status entre a comunidade. Além
disso, usuários mais ativos acumulavam uma espécie de troféu (badge) como recompensa
pela sua interação.

O aplicativo Foursquare é um exemplo notório da manifestação mais evidente da ubi-


quidade dos games: a gamificação. Estratégias gamificadas se apropriam da lógica (game
thinking) e dos elementos do design de jogos na tentativa de provocar o tipo de envolvi-
mento proporcionado pela interação com os games a atividades desempenhadas em con-
textos não relacionados a eles. A seguir, discutiremos a emergência desse conceito.

A emergência da gamificação
O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi possui um dos trabalhos mais relevantes na ten-
tativa de compreender a questão da felicidade como um processo de provimento de experi-
ências. No livro Beyond boredom and anxiety (1975), o autor desenvolve uma extensa pesquisa
sobre atividades que são agradáveis em si mesmas. Sua hipótese era que a compreensão
dessas atividades poderia oferecer pistas para uma forma de motivação capaz de tornar-se
um importante recurso humano.
O resultado é um modelo teórico do divertimento: a teoria da experiência de fluxo (flow
experience), composta por oito elementos de satisfação. O fluxo refere-se, basicamente, ao
sentimento de foco total em uma atividade, em que o indivíduo experimentaria um alto
grau de prazer e satisfação. Resultantes desse tipo de experiência estão o envolvimento, a
motivação intrínseca, uma abertura à informação, a fusão de ação e consciência e a alteração
da noção do tempo.
Em seus estudos, Csikszentmihalyi percebeu uma carência de experiências de fluxo em
atividades cotidianas. Elas normalmente eram favorecidas por atividades criativas, como
arte e ciência. Os games, todavia, seriam um meio eficaz de vivenciá-las: “jogos são ativida-
des de fluxo, e jogar é fluxo por excelência” (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, p. 36-37,
tradução nossa). Percebendo os jogos como um meio importante de promoção de experi-
ências de envolvimento, Csikszentmihalyi já indicava uma necessidade de se pensar a vida
para funcionar como os jogos.
O contexto, no entanto, não se mostrava propício para promover tal ideia. Só mais
recentemente pôde-se notar alguns fatores que favoreceram essa nova realidade: (a) estudos
sobre a psicologia positiva ganharam força (CSIKSZENTMIHALYI, 1990; ISEN, 1993;
NORMAN, 2008); (b) o crescimento da indústria dos videogames promoveu uma conso-
lidação dos modelos de interação e práticas de design de jogos (SALEN; ZIMMERMAN,
2004; SCHUYTEMA, 2008; SCHELL, 2011); (c) princípios e técnicas de projeto para a
promoção de experiências do usuário estão mais bem definidos (NIELSEN, 1993;
56 Gamificação em debate

ISBISTER; SCHAFFER, 2009); e (d) a penetração da internet e a ascensão dos aparelhos


eletrônicos pessoais influenciaram o crescimento do grupo de jogadores casuais.14
Diante desse cenário, notou-se um aumento na produção crítica científica que pensava a
inserção da lógica dos games no contexto de nossa vida cotidiana. Pesquisas como Total
Engagement (REEVES; READ, 2009), Fun Inc. (CHATFIELD, 2010); Reality is broken
(MCGONIGAL, 2011); e The gameful world (WALZ; DETERDING, 2015) são apenas uma
amostra desse movimento. Todas partem da ideia de que as pessoas parecem cada vez mais in-
teressadas em atividades que geram o tipo de experiência de envolvimento semelhante às pro-
porcionadas pela interação com os games e a realidade parece não as motivar efetivamente.
A percepção do envolvimento para a resolução de problemas e como possibilidade de
mudança de comportamento que os jogos proporcionam às pessoas tem refletido em trans-
formações individuais e sociais e motivado um movimento que está ganhando cada vez mais
evidência: a gamificação.

Definições e expectativas acerca da gamificação


Em suas primeiras formas de uso, gamificar referia-se a transformar em jogo algo não
visto como jogo (MARCZEWSKI, 2012). Atualmente, o termo se refere a algo além disso:
a aplicação do pensamento (game thinking) e de mecânicas de jogos – como inclusão de
elementos de competição, colaboração e pontuação – em atividades não relacionadas ao
contexto dos games (BUNCHBALL, 2010). A gamificação se utiliza desses elementos para
engajar os usuários e ajudá-los a resolver problemas (ZICHERMANN; CUNNINGHAM,
2011) ou para direcionar a um comportamento desejado (SHAW, 2011).
Apesar da abrangência dessa conceituação, alguns autores propõem definições para o
termo direcionadas aos seus interesses de estudo, como Karl Kapp, autor de The gamifica-
tion of learning and instruction, que situa o conceito no contexto de aprendizagem: “gamifi-
cação é a utilização de mecânica, estética e pensamento baseados em jogos para engajar
pessoas, motivar a ação, promover aprendizagem e resolver problemas” (KAPP, 2012, p. 10,
tradução nossa); ou Brian Burke, consultor de tendências tecnológicas e autor de Gamify,
que considera as tecnologias digitais ao defini-la: “uso de design de experiências digitais e
mecânicas de jogos para motivar e engajar as pessoas para que elas atinjam seus objetivos”
(BURKE, 2014, p. XVI, tradução nossa).
O primeiro uso do termo gamification da forma como o conhecemos hoje aparente-
mente ocorreu em 2003 (WERBACH; HUNTER, 2012), quando o desenvolvedor de
jogos britânico Nick Pelling ofereceu em seu site o serviço de consultoria para a criação de
interfaces baseadas em jogos para dispositivos eletrônicos.
É interessante mencionar que existe uma série de outros termos usados para se referir
ao uso das técnicas de design de jogos em experiências de não jogo: productivity games, sur-
veillance entertainment, funware, playful design, behavioral games, game layer, applied gaming

14
Jogadores casuais jogam pelo puro prazer de jogar, por isso possuem baixas habilidade, motivação pessoal para explo-
ração de ambientes e tolerância para erros (FAVA, 2010).
A emergência da gamificação na cultura do jogo 57

(DETERTING et al., 2011). Embora não seja um consenso, o termo gamification acabou
se firmando e ganhando notoriedade quando empresas como Bunchball e Badgeville pas-
saram a utilizá-lo para descrever suas plataformas de comportamento. A primeira delas foi
a Nitro, desenvolvida pela Bunchball em 2007, que, embora ainda não mencionasse o termo
gamificação, permitia a integração de mecânicas de jogos em redes sociais, aplicativos mó-
veis e sites. O exemplo que marcou a aplicação desse conceito, no entanto, foi o Foursquare
(2009), que mencionamos anteriormente. A utilização da mecânica de jogos ajudou esse
aplicativo, lançado em 2009, a atingir cerca de 5 milhões de usuários apenas no primeiro
ano. No ano seguinte, esse número já havia triplicado (AGUIARI, 2011).
Os resultados positivos alcançados por meio da adoção de soluções de design gamifica-
das – sobretudo a partir do sucesso do Foursquare – levaram a um grande entusiasmo acerca
desse conceito. As possibilidades de aplicação da lógica do envolvimento com os jogos di-
gitais parecem não se limitar a contextos específicos e passaram a ser adotadas para os mais
diversos objetivos. Uma enorme variedade de aplicações da gamificação começou a ser
usada visando atingir os mais diversos objetivos, como é o caso da Nike+, rede para incen-
tivar as pessoas a praticarem atividades físicas e que atualmente possui quase 30 milhões de
usuários;15 do My Starbucks Rewards, programa de fidelidade de rede de cafés Starbucks, que
possui mais de 10 milhões de usuários e ajudou no crescimento de 18% da receita líquida
da empresa em um trimestre;16 do Opower, que trabalha com empresas fornecedoras de
energia e, por meio da gamificação, ajudou a motivar os consumidores de seus parceiros a
reduzir mais de 9,5 terawatts/hora de energia;17 da SAP Community Network, rede de de-
senvolvimento da SAP que teve um aumento superior a 1.000% no registro de atividades
como criação de conteúdo, comentários e feedbacks com o uso de componentes dos jogos;18
e da Khan Academy, uma plataforma de ensino online que tem motivado o aprendizado de
estudantes ao redor do planeta.19
Proliferaram-se também uma série de ações para discussão e promoção do conceito:
publicações, como Games-Based Marketing (ZICHERMANN; LINDER, 2010), For the
Win (WERBACH; HUNTER, 2012) e Gamify (BURKE, 2014); eventos e conferências,
como GSummit, Gamification World e Gamification Research Network; e cursos online,
como Gamification (2012),20 disponibilizado na plataforma de ensino Coursera,21 e Gami-
fication Design (2014, 2015), mantido pelo portal iversity.22

15
Disponível em: <openforum.hbs.org/challenge/understand-digital-transformation-of-business/data/run-with-data-on-
-nike>. Acesso em: 9 mar. 2016.
16
Disponível em: <www.marketingmag.ca/brands/why-starbucks-is-winning-at-loyalty-152974>. Acesso em: 10 mar. 2016.
17
Dado disponível e constantemente atualizado em: <opower.com>. Acesso em: 7 mar. 2016.
18
Disponível em: <www.bunchball.com/sites/default/files/case_studygamification_sap_community_network-july2013.
pdf>. Acesso em: 10 mar. 2016.
19
Disponível em: <www.khanacademy.org>. Acesso em: 4 mar. 2016.
20
Ministrado pelo professor Kevin Werbach, da Universidade da Pensilvânia. Na primeira edição, teve a participação de mais
de 140 mil alunos, tornando-se o curso mais popular oferecido pela universidade na plataforma de ensino Coursera.
21
Disponível em: <www.coursera.org/course/gamification>. Acesso em: 4 ago. 2015.
22
Disponível em: <iversity.org/en/courses/gamification-design>. Acesso em: 5 ago. 2015.
58 Gamificação em debate

Por consequência desse cenário, acabou-se criando uma publicidade excessiva em


torno da gamificação e de suas aplicações. Para termos uma perspectiva quantificada do
crescimento desse interesse, até outubro de 2010 o termo gamification não era represen-
tado no Trends do Google – ferramenta que gera gráficos de popularidade de termos
pesquisados ao longo do tempo no próprio Google. A partir desse período, o quadro
mostra uma tendência de crescimento nos resultados de busca para o termo até meados
do ano de 2014, quando houve certa estabilização, mas com um grau de interesse ainda
elevado (Figura 4.1).

2005 2007 2009 2011 2013 2015

Figura 4.1 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamification.
Fonte: <google.com/trends/explore#q=gamification>. Acesso em: 9 abr. 2016.

Observação: a projeção do gráfico não indica o volume de pesquisas absoluto, mas uma
representação relativa calculada de acordo com a popularidade dos termos procurados por
região e dentro de certo intervalo de tempo.
As pesquisas no Google feitas com a palavra traduzida para o português, gamificação,
começam a ser quantificadas em março de 2013 e ganham relevância a partir de outubro.
É possível observar uma tendência de crescimento ao logo do tempo, embora marcada
por uma variação recorrente na curva de interesse (Figura 4.2).

2005 2007 2009 2011 2013 2015

Figura 4.2 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamificação.
Fonte: <google.com/trends/explore#q=gamificação>. Acesso em: 9 abr. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 59

Além disso, o relatório Hype cycle for emerging technologies, proposto anualmente pela
companhia de pesquisa e consultoria em tecnologia da informação Gartner Inc., apresenta
uma análise de maturidade de quase 2 mil tecnologias emergentes. Seus resultados acerca
de estimativas de uso da tecnologia são sintetizados em um esquema que ilustra a expecta-
tiva, o período de maturidade e sua previsão de adoção. A menção ao termo gamification
aparece pela primeira vez no gráfico de 2011 (Figura 4.3).
Expectativas
Internet TV
Streams de atividade Pagamentos sem contato (NFC)
Computação em nuvem privada
Transmissão sem fio
Realidade aumentada
Social analytics Computação em nuvem
Compra coletiva Tablet
Gamificação Assistentes virtuais
Impressão 3D
Reconhecimento de imagem Bancos de dados em memória principal (IMDB)
Context-enriched services
Reconhecimento de gesto
Tradução automática da fala
Internet das coisas (IoT) Serviços de comunicação máquina a máquina (M2M)
Respostas de perguntas em linguagem natural (NLQA) Aplicativos de
Robôs móveis Redes Mesh: sensores geolocalização
Big data e extreme information
Processamento e informação de gestão (SIG)
Social TV Reconhecimento de voz
Análise de vídeo (VCA) para Análise preditiva
atendimento ao cliente Plataformas
web/na nuvem Lojas de aplicativos
Interface cérebro-computador (BCI)
Métodos de autenticação biométrica
Computação quântica
Idea management
Aperfeiçoamento humano Desktop virtual online QR code/color code
Manufatura aditiva Mundos virtuais Consumerização

Leitores de livros dgitais (e-readers)


a partir de julho
de 2011
Gatilho Pico de Vale da Rampa da consolidação Platô de
tecnológico expectativas desilusão produtividade
superestimadas
tempo
Anos para adoção mainstream
obsoleto antes
menos de 2 anos 2 a 5 anos 5 a 10 anos mais de 10 anos do platô

Figura 4.3 – Gráfico de tecnologias emergentes da Gartner (2011, tradução nossa).


Fonte: <www.businessinsider.com/gartners-hype-cycle-2011-social-analytics-and-activity-streams-reach-the-peak-2011-8>. Acesso
em: 13 abr. 2015.

Observando esses gráficos, não é de se estranhar o otimismo nas projeções feitas por
diversos institutos de pesquisa em meados de 2011 em relação ao crescimento da gami-
ficação ao longo dos anos: “até 2015, mais de 50% das organizações irão gamificar seus
processos de inovação” (GARTNER, 2011a); “até 2014, mais de 70% das maiores orga-
nizações do mundo terão pelo menos uma aplicação gamificada” (GARTNER, 2011b);
“o mercado da gamificação, estimado em U$100 milhões em 2011, atingirá U$2.8 bilhões
até 2016” (M2 RESEARCH, 2011); “o mercado de gamificação irá crescer de U$ 421,3
milhões em 2013 para U$ 5,502 bilhões até 2018” (MARKETSANDMARKETS, 2013).
60 Gamificação em debate

Certamente, com essa propagação, as estratégias gamificadas passaram a ser adotadas


de forma indiscriminada, e a percepção de que a gamificação não era sinônimo de diversão
e motivação tornou-se cada vez mais aparente. Muitas aplicações não tiveram os resultados
esperados, inclusive aquelas adotadas por grandes companhias.
A empresa de aviação americana JetBlue, por exemplo, criou um programa de fidelidade
chamado JetBlue Badges, que oferecia medalhas (badges) para certas atividades realizadas
por seus clientes, mas falhou na dinâmica de interação.23 As medalhas exibiam muito con-
teúdo de parceiros de marketing, além de exigirem vários dados e acesso às plataformas
online de redes sociais dos usuários.
Disneyland e Paradise Pier, hotéis da rede Disney, adotaram a gamificação para men-
surar a produtividade de seus funcionários. Um monitor exibia um ranking com nomes e
dados de eficiência dos trabalhadores utilizando um sistema de cores para categorizar o
percentual do ritmo de cada membro da equipe. Bastante semelhante à estratégia de gestão
à vista,24 o equipamento logo foi apelidado de chicote elétrico (electronic whip). O problema
era que o sistema estimulava a competição de forma não saudável,25 deixando as pessoas
sentindo-se expostas, controladas.
A desenvolvedora de softwares Adobe lançou uma campanha gamificada para ensinar
a utilizar um de seus principais produtos: o editor de imagens Photoshop. De acordo com
o gerente sênior Petar Karafezov, a estratégia apresentou resultados positivos, mas não
atingiu o objetivo esperado: “fomos capazes de ensinar as pessoas a usar o Photoshop de
uma maneira diferente e com mais sucesso, mas isso não resultou em um aumento ime-
diato na receita”.26
O movimento de crescimento na aplicação da gamificação aliado ao aparecimento dos
resultados negativos se reflete nos gráficos divulgados pela Gartner nos anos que se suce-
deram. Isolamos a posição da gamificação na curva de maturidade entre 2011 e 2014 (Fi-
gura 4.4), e é possível observar que o ápice de expectativas (Peak of Inflated Expectations) é
atingido em 2013. Um ano depois, passa a ocupar uma posição bastante próxima ao vale da
desilusão (Trough of Disillusionment).

23
Disponível em: <webinknow.com/2013/07/jetblue-badges-gamification-marketing-fails-to-take-off.html>. Acesso em:
15 mar. 2016.
24
No método de gestão à vista, informações relevantes como indicadores, status e tendências são divulgadas a colabora-
dores e gestores, permitindo o acompanhamento de dados e facilitando os processos de comunicação e engajamento
dos colaboradores.
25
Disponível em: <articles.latimes.com/2011/oct/19/local/la-me-1019-lopez-disney-20111018>. Acesso em: 17 mar. 2016.
26
Disponível em: <cmo.com/articles/2012/10/24/game-over-for-gamification.html>. Acesso em: 17 mar. 2016.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 61

Pico de expectativas superestimadas


2013

2012

2011

Platô de produtividade

2014

Rampa da consolidação

Vale da desilusão

Gatilho tecnológico

Figura 4.4 – Gráfico isolando a posição que a gamificação ocupa na curva de tecnologias emergentes propos-
ta pela Gartner ao longo dos anos (tradução nossa).
Fonte: <edulearning2.blogspot.com.br/2014/09/gartner-hype-cycle-2014-gamification-on.html>. Acesso em: 18 mar. 2016.

Uma análise breve acerca desse movimento descendente na curva de expectativas pos-
sibilita inferir alguns pontos, como: o momento da gamificação está passando; a publicidade
em torno de sua aplicação se mostrava muito otimista; e a aplicação do conceito seria
apenas uma estratégia de marketing. Seguimos agora no sentido de tecer algumas reflexões
sobre esses pontos, relativizando-as com manifestações de alguns críticos desse conceito.

Críticas à gamificação
Jesse Schell (2010), na apresentação intitulada Design outside the box,27 por exemplo,
discute a aplicação indiscriminada da gamificação ilustrando diversos cenários possíveis a
partir de uma disseminação massificada desse modelo. O professor alertou para o fato de
que a integração de tecnologias dos jogos com a vida das pessoas pode levar a um fenômeno
que ele chamou de Gamepocalypse, em que as empresas passariam a oferecer elementos
motivadores para qualquer tipo de problema. Schell exemplifica essa noção imaginando um
cenário no qual um fabricante de escovas de dente, por exemplo, inclui em seus produtos
um dispositivo que recompensa uma pessoa que atinge um tempo determinado de escovação

27
O vídeo da palestra pode ser acessado na galeria de vídeos do site do evento: <www.dicesummit.org/video_gallery/
video_gallery_2010.asp>. Acesso em: 30 mar. 2016.
62 Gamificação em debate

ou pela quantidade de vezes que ela escova os dentes diariamente. Essa preocupação se
estende ao uso desse tipo de incentivo para produtos maléficos, como o cigarro.
Críticos de jogos argumentam que a gamificação ignora a realidade cotidiana aprovei-
tando-se de fantasias. Heather Chaplin (2011) aponta que a aplicação da gamificação não
modifica ou melhora um problema, mas a percepção do usuário quanto à situação em que
se encontra. John Teti (2012), por sua vez, afirma que, em vez de tornar o trabalho gratifi-
cante, ela faz o trabalho parecer gratificante.
No texto Gamification is bullshit!, Ian Bogost (2011a) critica um evento da área e utiliza
o conceito de bullshit (besteira, bobagem) para se referir ao modo como o termo gamificação
é empregado:

Gamification é bobagem de marketing, inventada por consultores como um meio para capturar
os animais selvagens e cobiçados que são os videogames e domesticá-los para uso no deserto
acinzentado e sem esperança do mercado corporativo, em que a bobagem já reina de qualquer
maneira (BOGOST, 2011a, tradução nossa).

Vale ressaltar que Bogost não desconsidera o potencial dos games para a mudança de
atitudes e crenças, na medida em que defende o seu poder de persuasão por meio da repre-
sentação baseada em regras e interações (BOGOST, 2007) – em vez de formas de comuni-
cação por voz, escrita, imagem ou vídeo. Para ele, no entanto, a gamificação não tem a ver
com o design de jogos (BOGOST, 2011b), pois, enquanto este trata de dificultar a tarefa
dos jogadores, exigir deles uma variedade de habilidades e questionar a experiência a partir
do uso de narrativas complexas, aquela não se propõe a atingir esses objetivos, mas estaria
interessada unicamente em maximizar a atividade dos usuários. Nesse sentido, a gamifica-
ção reduziria o ato de jogar a uma experiência de estímulo-resposta.
Bogost propõe a substituição do termo gamification por exploitationware, pois acreditar
que este

captura as reais intenções de uma estratégia de gamificação: um jogo de fazer dinheiro, escolhido
para capitalizar um momento cultural, por meio de serviços sobre os quais eles [os consultores de
marketing] têm experiência questionável e para trazer resultados que durem apenas o tempo sufi-
ciente para preencher suas contas bancárias antes que a próxima tendência boba apareça
(BOGOST, 2011a, tradução nossa).

Será a gamificação, portanto, um conceito realmente superestimado? Ou seria uma


solução de design usada de maneira indiscriminada e cujos projeto e aplicação necessitam
de amadurecimento? Sob o ponto de vista do marketing, o pensamento de Bogost faz
bastante sentido, principalmente se considerarmos o fato de que, em 2015, a Gartner deixou
de considerar a gamificação como uma tendência tecnológica e passou a vê-la como uma
tendência de marketing.
A emergência da gamificação na cultura do jogo 63

Ambiente de oportunidades
Kam Star, fundador da Playgen, um estúdio de desenvolvimento de serious games e
soluções gamificadas baseado em Londres, apresentou um estudo que pode nos auxiliar a
formular uma opinião mais concreta sobre a gamificação. Na palestra Why 76% of gamification
efforts fail and how to be in the successful 24% (STAR, 2014), proferida no Adobe Summit
2014, Kam apresenta os resultados de um levantamento realizado em mais de 3.500 publi-
cações. Destas, 300 descreviam casos em que foram aplicadas estratégias de gamificação.
O primeiro ponto descoberto foi que, dentre esses trabalhos, 94% reportaram aumento de
motivação em relação à prática de atividade ou uso de serviços.
A expressividade desse número poderia nos levar a uma inferência de que a gamificação
é uma estratégia certeira. Ao analisar os dados das pesquisas, no entanto, 51% delas não
apresentaram diferenças significativas; 25% reportaram diminuição nos resultados; e apenas
24% demonstraram melhorias de produtividade ou uso de serviços (alguns bastante signi-
ficativos, com até 300% de aumento).
Um resultado positivo de apenas 24% pode não parecer alto, mas é considerável se o
compararmos aos números da própria indústria de videogames: somente 20% dos jogos
que vão para o mercado dão lucro para os estúdios de criação.28 Se considerarmos o re-
torno de investimento dos jogos que entram em produção, esse número é ainda menor:
4%, resultado semelhante aos 7% que representam o retorno de investimento da indústria
de cinema inglesa.29
O que nos chama a atenção, na verdade, é que esses 24% indiciam um caminho ligado
à gamificação que acreditamos merecer um olhar mais atento: a promoção da experiência
lúdica como via de transformação de comportamentos e hábitos humanos. Conforme
observamos, as críticas à gamificação tendem a recair em sua aplicação a partir de uma
abordagem behaviorista, baseada em estímulo e resposta. Acreditamos, no entanto, que a
gamificação não se limita a um processo que premia comportamentos pela aplicação de
elementos dos jogos. Para que o seu projeto funcione, o design de jogos deve ser apreendido
de maneira mais ampla, como uma prática sistêmica.

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28
Disponível em: <escapistmagazine.com/news/view/87636-Analyst-Claims-Only-Four-Percent-Of-Games-Earn-Money-
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29
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Narrativa e gamificação, ou
com quantos pontos se faz uma
5
boa história?
Fábio Medeiros
Dulce Márcia Cruz

Os games são uma forma de expressão cultural que fascina e envolve milhões de joga-
dores há várias décadas. Se os jogadores eram (ou talvez ainda sejam, no senso comum)
identificados como meninos sedentários e solitários, sentados em sofás com joysticks nas
mãos, no século XXI essa imagem já não corresponde à realidade. Jogadores têm qualquer
idade ou gênero, se reúnem em grupos massivos para vencer desafios, tocam e cantam
músicas juntos, praticam atividades físicas que vão de yoga e dança a movimentos de lutas
e corridas, ou mesmo caminham pela cidade jogando games, tudo isso por meio de seus
consoles, computadores ou smartphones. Os games, aproveitando-se da sua característica
transmidiática, estão se misturando às rotinas diárias convencionais, tornando nubladas as
fronteiras entre o mundo físico e o digital.
A popularização dos games, por sua vez, criou condições para que o modo de pensar dos
seus criadores, os designers de jogos, se tornasse atraente como uma proposta de mudança
da realidade, que ficou conhecida como gamification ou gamificação. Gamificação é o uso
ou a aplicação de elementos, sistemáticas e mecânicas de jogo em situações de não jogo ou
contextos fora de jogo, com o objetivo de elevar o nível de engajamento dos indivíduos
numa dada circunstância planejada para isso (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011).
Ativa defensora do uso de jogos na realidade, Jane McGonigal (2012) relaciona quatro
recompensas intrínsecas dos games que ajudariam a construir a nossa felicidade se fossem
adotadas em vários setores da sociedade: o trabalho gratificante, a experiência ou esperança
de ser bem-sucedido, a busca pela conexão social e a chance de ser parte de algo maior que
nós mesmos. McGonigal destaca que cada uma dessas recompensas varia muito de pessoa
para pessoa, mas, se utilizadas, poderiam ser a base para melhorar a experiência humana
representando “motivações mais poderosas além de nossas necessidades básicas” e “formas
de se envolver profundamente com o mundo a nossa volta – com o ambiente, com outras
pessoas e com causas e projetos maiores do que nós mesmos” (MCGONIGAL, 2012 p. 58).
Tal força para conseguir engajamento e motivação dos jogadores pode estar presente nas
68 Gamificação em debate

quatro características comuns aos jogos que são apontadas por McGonigal (2012): a volun-
tariedade para participação, o sistema de feedback, a definição de regras e a proposição de
metas ou objetivos.
Essas características atuam como um ciclo, direcionando as ações dos jogadores e
mantendo-os informados sobre o objetivo, enquanto dão retorno sobre seu desempenho
e as decisões tomadas. Esse ciclo do jogo também tem sido considerado por alguns auto-
res (GEE, 2014; JOHNSON, 2005) semelhante ao processo de ensino e aprendizagem
formal, em que os alunos são informados sobre o que devem aprender e, baseados nisso,
realizam avaliações para identificar seu desempenho. Porém, a diferença é que enquanto
os jogadores mantêm uma relação positiva com seus erros, utilizando-os para crescimento
e aprendizagem no desenvolver do jogo, os estudantes identificam as falhas como um
fracasso a ser evitado.
A discrepância entre os dois grupos na percepção sobre os resultados de suas ações se
dá principalmente pelos ciclos de feedback e pelos riscos vinculados às suas escolhas.
Enquanto nos games os jogadores obtêm respostas frequentes sobre como estão se saindo
em relação aos seus objetivos, na escola os estudantes demoram mais e têm menos opor-
tunidades de avaliação e retorno sobre seu desempenho. Ali, o peso e o risco de fracasso
sem possibilidade de reabilitação envolvidos em cada avaliação são altos, e os momentos
em que elas acontecem são sempre acompanhados de ansiedade. Enquanto isso, nos ga-
mes, o jogador perde muito pouco ao errar, pelo contrário, tomar uma decisão errada é
visto justamente como parte do processo de aprendizagem para dominar o jogo (LEE;
HAMMER, 2011).
Essa aproximação da gamificação com a educação foi apontada por Fadel et al. (2014,
p. 6) ao lembrar que, mesmo antes de ser nomeada dessa forma, essa estratégia motiva-
cional já vinha sendo aplicada na educação há muito tempo: “a criança podia ter seu
trabalho reconhecido com estrelinhas (recompensa) ou as palavras iam se tornando cada
vez mais difíceis de serem soletradas no ditado da professora (níveis adaptados às habili-
dades dos usuários)”.
Uma crítica feita à gamificação é que ela seria uma perversão dos games, uma ação de
marketing com intuito de levantar empresas e instituições pelo uso de pontos, distintivos e
rankings para animar e direcionar seus colaboradores e/ou clientes. Em um texto que gerou
polêmica, com o provocativo título “Gamification is bullshit”, Bogost (2011) acusa a gami-
ficação de estar se resumindo ao uso de regras, mecânicas e dinâmicas, perdendo sua essên-
cia de jogo.
E qual seria essa “essência” do jogo que estaria sendo perdida na gamificação? Segundo
Jesse Schell, no clássico The art of game design: a book of lenses (2012), os quatro elementos
essenciais dos games seriam: a estética, que está relacionada com a experiência sensorial do
usuário, aquilo que ele ouve, vê e sente; a mecânica, com suas regras e seus procedimentos,
o sistema que faz o jogo funcionar; a história, que tem sua base na narrativa, a sequência de
eventos que ocorre no game; e a tecnologia, que engloba tanto os materiais como a mídia
utilizados. Tais elementos que constituem os games são vistos por Schell numa relação
flexível, sem uma hierarquia, todos importantes e integrantes da experiência de jogar,
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 69

mesmo que alguns sejam mais visíveis para o jogador que outros. O menos visível seria a
tecnologia, em contraponto ao mais visível, a estética, enquanto a mecânica e a história
estariam num patamar intermediário.
Nesse sentido, considerando o potencial que as histórias têm de fortalecer o engaja-
mento e a motivação para efetivar o comprometimento dos jogadores, se poderia supor que
elas estariam auxiliando a gamificação em seus objetivos? Em outras palavras, se a narrativa
é um elemento fundamental dos games, da mesma maneira poderia ser entendida para a
efetividade da gamificação, possibilitando relacionar de maneira fluida a realidade vivida
com a experiência de jogo e tornando o processo gamificado tão interessante quanto um
game? Se sim, como os pesquisadores da educação estão utilizando esse conceito, conside-
rando as possibilidades de alcançar tais engajamento e motivação nas práticas educativas?
A partir dessas questões, o objetivo deste capítulo é fazer uma revisão bibliográfica para
verificar de que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação, e de que
forma os elementos narrativos vêm sendo incluídos pelos pesquisadores da área como inte-
grantes da proposta de ludificação da realidade. Para alcançar esse objetivo, foi feita uma
pesquisa exploratória da produção acadêmica constante nas bases de dados Scopus e Science
Direct, buscando os elementos da narrativa presentes nas propostas de gamificação.
O capítulo está estruturado em: primeiramente, uma discussão sobre a relação entre
games, narrativas e gamificação, discutindo algumas definições dos dois primeiros conceitos
e, superficialmente, como o terceiro tem alcançado popularidade em vários campos de co-
nhecimento; na sequência, são descritos a metodologia e os critérios para o levantamento
de literatura nas duas bases de dados; e, por fim, uma análise sintética dos resultados encon-
trados e algumas considerações finais.

Narrativas, games e gamificação


Narrativas são manifestações que estão presentes por toda a história da humanidade em
diversos meios. Desenhos em pedras nas cavernas; histórias transmitidas oralmente sobre
os mitos e as origens da criação; os livros sagrados com várias narrativas literais ou metafó-
ricas; quadrinhos, novelas, filmes e séries que demonstram situações bem próximas do real
ou fantasiosas são todas formas de representar narrativas.
Os estudos sobre a narrativa se constituem num campo de conhecimento já consolidado
e que não é escopo deste capítulo detalhar. Porém, para situar o conceito, utilizaremos como
base as ideias de Gancho (2002), que divide em seis os elementos que compõem a narrativa:
enredo, personagens, tempo, espaço, ambiente e narrador.

• Enredo é o fio condutor da narrativa, que utiliza fatos verossímeis organizados numa
ordem lógica (começo, meio e fim) e tem como componente essencial o conflito. É o
conflito que cria a tensão que vai organizar os fatos e prender a atenção do leitor nos
momentos de exposição, complicação e clímax.
• Os personagens são os que fazem as ações acontecerem na narrativa, pertencem à his-
tória e participam efetivamente do enredo.
70 Gamificação em debate

• O tempo na narrativa é quando acontece a história, sendo sua duração variada, com o
tempo cronológico seguindo a ordem natural dos fatos, e o tempo psicológico, a imagi-
nação do narrador ou dos personagens.
• O espaço é o lugar onde acontece a ação, podendo variar bastante dependendo de como
é feita a narrativa. Estabelece uma interação entre os personagens e situa as suas ações
em determinado lugar.
• O ambiente é o espaço onde vivem os personagens e permite situar personagens no seu
contexto.
• O narrador conduz a história, podendo contar os fatos de fora da narrativa ou ativa-
mente, em primeira pessoa, como testemunha ou personagem.

Quando a narrativa começou a ser produzida nos ambientes digitais, suas caracterís-
ticas se transformaram em enredos multiformes, nos quais interatores passam a desenvol-
ver as ações e construir as histórias dentro de um espaço navegável, nos mais variados
ambientes e tempos, como bem demonstrou Murray (2003). Para a autora, o ambiente
digital, por meio de suas características participativas, imersivas, espaciais e enciclopédi-
cas, passou a oferecer um cenário para viver fantasias originadas em universos ficcionais
de modo intensificado e ativo. Como Murray, que vem da literatura para estudar a nova
forma de cultura representada pelos jogos digitais, muitos pesquisadores se debruçaram
sobre a questão de serem eles um produto literário ou se situarem no terreno dos jogos.
Para Gonzalo Frasca (2003), num artigo que gerou bastante polêmica, ludologistas são os
pesquisadores que focam seus estudos na mecânica dos jogos, e narratologistas, os que
argumentam que os jogos são intimamente ligados às histórias. Por certo tempo, discus-
sões foram travadas nos game studies para tentar chegar a um acordo. Kinder (2002, p.
122) propôs que os games são um tipo especial de narrativa porque envolvem geralmente
uma disputa entre participantes competindo por diversão, dinheiro, fama ou alguns outros
desafios, ou seja, seriam em sua maioria construídos como um conflito dramático, como
outras formas narrativas. Para Juul (2003), em vez de contar uma boa história, a qualidade
dos games estaria na liberdade que o jogador tem para explorar e compreender a estrutura
de um mundo irreal e para aprender a manipulá-lo.
Ryan (2006) defendia que uma grande diferenciação entre jogos de qualquer espécie e
games é que esses últimos integraram os jogos numa estrutura narrativa, então não basta
ganhar pontos, é preciso salvar o mundo, cumprir a missão, derrotar o inimigo final. Num
outro texto, Ryan (2001) afirma que, dos três componentes tradicionais da narrativa (ce-
nário, personagens, ação), apenas os dois primeiros fornecem elementos de design ou de
construção úteis. O terceiro, a ação, é deixado para o usuário. Da mesma maneira, para
Kinder (2002), as três principais distinções entre games e narrativas seriam as seguintes:
enquanto os games requisitam participação ativa dos jogadores, a maioria das narrativas
encoraja leituras passivas; enquanto o mundo dos games é propositadamente removido da
realidade, a maioria das narrativas é produzida para representar e influenciar a vida real; e
enquanto regras, objetivos e resultados são claros nos games, eles são geralmente ambíguos
nas narrativas.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 71

A qualidade diferente da narrativa interativa nos games já tinha sido apontada por
Murray em seus estudos pioneiros sobre ambientes digitais imersivos. Mas trazer essas
características para a realidade é um dos componentes da gamificação e um diferencial para
se entender que se trata de uma transposição, e não uma imersão, como entendia Murray
(2003). A autora propunha que, ao pensar o jogo, o designer de jogos criaria a coreografia
para que o interator dançasse, sentindo os prazeres da imersão, da agência e da transforma-
ção possíveis no ambiente digital.
A gamificação pretende estender essa dança e esses prazeres para o mundo real.
Deterding et al. (2011) afirmam que o uso de elementos do design de jogos em contextos
externos aos jogos pode tornar a gamificação valiosa para a mudança de rotinas, ao tornar
as atividades mais divertidas, motivadoras e engajadoras. Mas os objetivos da gamificação
também parecem mais prosaicos e voltados para um engajamento pensado em termos
pragmáticos, como os de Hamari, Koivisto e Sarsa (2014, p. 3026, tradução nossa) ao
destacar o aspecto do “processo de aprimorar serviços com possibilidades de ações (mo-
tivacionais) com o intuito de evocar experiências comuns a jogos e que promovam resul-
tados comportamentais esperados”.
Nessa linha, se percebe que a proposta principal da gamificação é reproduzir em con-
textos reais as experiências vividas nos games de modo a promover emoções poderosas,
podendo-se pressupor que, por meio da prática extensiva dessas atividades, até mesmo
emoções negativas transformam-se em positivas, como afirmam Lee e Hammer (2011), ou
que os jogadores desenvolverão qualidades pessoais, como persistência, criatividade e resi-
liência, que transcenderão para fora do jogo, como defende McGonigal (2012).
Justamente esse aspecto engajador e motivador da gamificação é o que parece ter con-
quistado corações e mentes de profissionais interessados em criar e manter tais emoções
para atingir seus objetivos, seja para aumentar a produção de seus funcionários ou a fideli-
zação de seus clientes, seja para implementar estratégias que animem e facilitem a aprendi-
zagem. Tanto nas áreas de administração e marketing como na educação, muitas têm sido
as investidas para verificar se o fato de utilizar os games como referência pode expandir seus
poderes para melhorar a aprendizagem, a realidade, o trabalho e a vida das pessoas, como
propõe McGonigal (2012).
Um indicativo da popularidade do conceito é a quantidade de artigos acadêmicos e li-
vros publicados em língua inglesa desde que o termo foi utilizado pela primeira vez em
2003 por Nick Pelling, um designer de jogos inglês que fundou uma consultoria para criar
interfaces similares a games em aparatos eletrônicos (WERBACH; HUNTER, 2012).
Outro indício desse interesse pôde ser percebido quando, ao se colocar a palavra gamifica-
tion na ferramenta de busca do site Amazon.com, foram encontrados 540 resultados em
novembro de 2016.
No Brasil, as coletâneas têm sido o modo mais comum de tratar do tema, com livros
organizados em capítulos reunindo tanto pesquisadores acadêmicos como autores de vários
campos de conhecimento, alguns experientes no trato com os games e outros nem tanto,
mas todos eles atraídos pelo objeto de estudo e seu caráter emergente. Uma leitura panorâ-
mica dessa produção evidencia que boa parte da discussão se baseia ainda na revisão
72 Gamificação em debate

conceitual. Uma pequena porcentagem traz resultados, mas, em sua maioria, os textos
tratam de pesquisas ainda em fases iniciais ou em etapa de revisão de literatura (FADEL
et al., 2014).
Da mesma maneira, em eventos como o SBGames, um dos mais importantes na área
e que reúne pesquisas acerca da indústria, do design e da cultura dos jogos digitais, uma
busca pelo termo “gamificação” nos dados compilados pela equipe da professora Suely
Fragoso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre os anais do
evento até 2014 gerou 13 artigos. No entanto, a adição das palavras narrativa e educação
resultou em apenas um artigo, dedicado à proposta de uma plataforma de construção de
narrativas colaborativas.
A ideia da gamificação como uma panaceia, uma solução fácil e rápida para resolver os
problemas relacionados à motivação, tem demonstrado um grande apelo não só em áreas
como o marketing e a administração, mas especialmente na educação. Na internet, sites
dedicados a discutir problemas educacionais difundem e explicam o conceito e sua aplica-
ção. Como exemplo, vale citar o site Gamificação na educação, dividido em subitens (“Como
usar a gamificação na educação”, “Por que aplicar a gamificação na educação”, “O futuro da
educação está na tecnologia”, “As vantagens da tecnologia na escola”) e ilustrado com um
detalhado infográfico colorido que sintetiza as principais características, acompanhado de
fotos de crianças sorridentes.1 Num outro site conhecido por seu engajamento na inovação
da educação, o Porvir, pode ser lido outro título otimista: “O uso dos jogos na educação tem
feito dos games uma das tendências de ensino mais importantes da década”.2
Mas nem tudo são elogios. Também na internet, é possível encontrar críticas a vários
aspectos da gamificação. Um texto de 2011 encontrado no site da Wharton School, da
Universidade da Pensilvânia, com o título “A gamificação tem futuro?”, discute alguns
resultados do congresso “Demais! A gamificação levada a sério”.3 No site, famosos designers
de jogos defendem a proposta, mas também discutem a polêmica já citada que foi iniciada
por Ian Bogost (2011). Bogost também afirmou que, para utilizar os games de maneira
mais séria, haveria a necessidade de mudar drasticamente as práticas corporativas da
maioria das companhias.
As críticas apontam a necessidade de se investigar um pouco mais como o termo vem
sendo pensado e quais as implicações da utilização da gamificação na educação em seus
diversos aspectos. Como uma área carente e muito suscetível ao encantamento das soluções
mágicas, principalmente pela extrema dificuldade para que uma inovação seja ali aceita, a
educação tem se mostrado um campo fértil de discussão e possivelmente de experiências
das possibilidades da gamificação.
Um dos pioneiros dessa discussão é o livro de João Mattar (2010), que inclui a gamifi-
cação na revisão de literatura sobre games e educação. Já o e-book editado por Fadel et al.
(2014) traz a gamificação como tema principal a partir de uma diversidade de autores e

1
Disponível em: <https://www.bhbit.com.br/gamificacao-na-educacao/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
2
Disponível em: <http://porvir.org/8-principios-da-gamificacao-produtiva/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
3
Disponível em: <http://www.knowledgeatwharton.com.br/article/a-gamificacao-tem-futuro/>. Acesso em: 30 nov. 2016.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 73

abordagens discutindo seu papel na educação. Nesta obra, Fadel et al. (2014) apontam uma
preocupação com os fatores motivacionais intrínsecos e sua manutenção mesmo com a
incidência de recompensas extrínsecas por meio do conhecimento dos processos de design
de jogos e sua relação com as ações educacionais. Num capítulo do mesmo livro, Lynn
Alves et al. (2014) colocam em discussão a visão da gamificação como uma “pílula mágica”
para resolver as mazelas da educação e ressaltam a importância de levar em consideração a
infraestrutura, o reconhecimento dos docentes, os melhores salários e os processos de for-
mação permanentes para que seja possível resgatar o desejo de aprender na escola.
Na linha dos estudos voltados para o mapeamento sistemático, bons exemplos são os
trabalhos de Borges et al. (2013) e Figueiredo, Paz e Junqueira (2015). O primeiro excluiu
da discussão alguns assuntos relacionados, como design gamificado, serious games e jogos
digitais em contextos educacionais. Utilizando apenas o termo gamification para realizar
a busca em cinco bases de dados (Scopus, Elsevier, Springer, ACM Digital Library e
IEEE Xplore), encontrou 357 artigos, sendo considerados relevantes para a educação 26
deles. Com a pesquisa, foi possível constatar que a maioria dos estudos é publicada em
conferências, derivada de pesquisas realizadas no ensino superior cuja intenção principal
é o envolvimento dos alunos por meio de atividades de aprendizagem gamificadas. Foi
destacado também na pesquisa que nenhum dos trabalhos relatava experiências empíricas
ou validações de implementações, sendo a maioria dos documentos avaliações e propostas
de soluções.
Já a revisão sistemática realizada por Figueiredo, Paz e Junqueira (2015) teve como
fonte os anais do Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames)
entre os anos de 2009 e 2014, o Portal de Teses e Dissertações da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 2000 a 2013, além de produções
bibliográficas publicadas no período. A conclusão do estudo é que “não existem, no Bra-
sil, fundamentos sólidos do que é uma prática pedagógica gamificada, tampouco se en-
contra uma perspectiva teórica interdisciplinar que consiga abarcar os diversos elementos
implicados nesse novo fenômeno sociocultural” (FIGUEIREDO; PAZ; JUNQUEIRA,
2015, p. 1161).
Esses dois trabalhos mostram que não é necessário repetir uma revisão sistemática
geral, mas que já estamos no estágio de começar a investigar questões específicas. Pela sua
importância na definição dos games, gostaríamos de saber se as narrativas são um tema
abordado nas pesquisas da área da gamificação em educação. Para isso, a próxima etapa é
delimitar o escopo e descrever a metodologia para a pesquisa.

Metodologia
Na revisão de literatura foram adotadas as seis etapas indicadas por Botelho et al. (2014),
na seguinte sequência: (a) identificação do tema e definição da pergunta de pesquisa; (b)
estabelecimento/definição dos critérios de inclusão e de exclusão; (c) identificação dos es-
tudos pré-selecionados e selecionados; (d) categorização dos estudos selecionados; (e) aná-
lise e interpretação dos resultados; e (f ) apresentação da revisão/síntese do conhecimento.
74 Gamificação em debate

As seguintes questões nortearam a revisão bibliográfica para verificar a incidência da


narrativa nas pesquisas relacionadas à gamificação na educação:

Quadro 5.1 – Questões de pesquisa

QP1 – De que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação?

QP2 – Como os elementos da narrativa (personagens, espaço, tempo, narrador e história) são abordados e
em que etapas da pesquisa?

QP3 – Quais são os exemplos concretos de aplicação da narrativa nessa metodologia no campo
educacional?

A busca foi feita inicialmente nas bases de dados Scopus e Science Direct, já utilizadas
em revisões anteriores sobre gamificação, utilizando primeiramente os termos em português
(gamificação, educação e narrativa). Na base Science Direct, não encontramos nenhum
artigo com os termos gamificação e educação no título, no resumo ou nas palavras-chave.
A busca na Base Scopus gerou um artigo sobre gamificação na área de educação em saúde,
porém, como não foi encontrada a palavra narrativa em nenhuma parte do texto, ele foi
descartado. Em virtude dessa parca produção acadêmica em português nas bases procura-
das, optamos pelos termos em inglês (gamification, education e narrative/storytelling).
Visando encontrar artigos que tivessem como tema a gamificação na educação, os dois
primeiros termos foram considerados quando apareciam no título, no resumo ou nas
palavras-chave. Os dois últimos foram utilizados quando se encontravam em qualquer
ponto do artigo, já que a intenção era identificar como a narrativa é abordada nesta área
e as buscas com os termos relacionados à narrativa diretamente no resumo, no título ou
nas palavras-chave não traziam resultados expressivos. Como há revisões (HAMARI;
KOIVISTO; SARSA 2014; GRUND, 2015; STOTT; NEUSTAEDTER, 2013) que
registraram, estudando períodos anteriores, o aumento da produção acadêmica sobre
gamificação a partir de 2012, foram consideradas nesta pesquisa apenas as publicações
entre esse ano e outubro de 2016.
Os termos education e gamification foram ambos encontrados no título, no resumo ou
nas palavras-chave de 44 artigos da base Science Direct e de 652 artigos da base Scopus.
Pelo gráfico a seguir, é possível perceber a evolução significativa das pesquisas em gamifi-
cação e educação nas duas bases de dados durante o período estudado.
Ao estreitar os resultados para artigos que incluíam as palavras narrative ou storytelling,
o número de artigos relevantes na base Scopus foi de 64, e na base Science Direct, de 12
artigos. Esses números representam 11% de todos os arquivos sobre gamificação e educação
encontrados nas duas bases. Com isso, verificou-se um aumento gradativo na produção
acadêmica sobre gamificação e educação, mas pouca inserção do termo narrativa nessas
produções, como demonstra o gráfico.
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 75

Artigos sobre gamificação e educação nas bases de


dados Scopus e Science Direct
250

200 Scopus

150
Science Direct

100
Scopus
50 (narrativa)
Science Direct
0 (narrativa)
2012 2013 2014 2015 2016

Figura 5.1 – Quantidade de artigos publicados por ano.

Análise e discussão dos dados


Entre os 12 artigos da base de dados Science Direct, havia um documento com vários
resumos de um evento de medicina geriátrica em que os termos estavam em pôsteres dife-
rentes, não permitindo criar relações entre os tópicos, sendo então descartado. Os outros 11
artigos foram selecionados e analisados qualitativamente, sendo feita a verificação da loca-
lização dos termos utilizados na busca e posterior análise do conteúdo, identificando a
forma como a narrativa foi abordada em cada documento.

Quadro 5.2 – Definições de gamificação utilizadas

Definição de gamificação Número de artigos

Deterding 4

Sem conceituação 2

Definição própria 2

Vários autores 2

Werbach e Hunter 1

Inicialmente, a partir da leitura foi possível identificar que quatro artigos utilizaram
a definição de Deterding et al. (2011) sobre gamificação, dois não conceituaram o termo
e outros dois utilizaram uma definição própria. Um artigo, de Cybulski et al. (2015),
utilizou a definição vinculada à gamificação de projetos em administração de empresas
76 Gamificação em debate

de Werbach e Hunter (2012), ressaltando a utilização do comportamento competitivo e


da satisfação pessoal para aumentar o valor do negócio como parte relevante da concei-
tuação de gamificação.
Seaborn e Fels (2015) fizeram uma pesquisa sobre o uso da gamificação em diversas
áreas, e uma parte de seu artigo foi devotada ao trajeto da conceituação de gamificação,
inserindo-se a visão de diferentes autores (DETERDING et al., 2011; MCGONIGAL,
2012; ZICHERMANN; LINDER, 2010; HUOTARI; HAMARI 2012; WERBACH;
HUNTER, 2012). A partir dessa revisão, Seaborn e Fels (2015, p. 17, tradução nossa, grifo
nosso) afirmam que “na interseção dos conceitos providos por esses autores, [...] uma defi-
nição-padrão de gamificação está emergindo: o uso intencional de elementos de jogos para uma
experiência similar a jogo em tarefas e contextos fora do jogo”. As autoras também incluem
outros conceitos sobre gamificação que divergem de alguma forma dessa definição constru-
ída anteriormente:

[A gamificação é o] uso ou criação de um jogo para fins que não são apenas entretenimento e
a transformação de um sistema já existente num jogo. Em casos como esses, os jogos são inse-
ridos num sistema, substituindo ou aprimorando estruturas já existentes, ou o sistema é conver-
tido num jogo. Nessas situações é comum usar variações do termo, como gamificar, gamificado
ou “a gamificação de” como palavras de ação ou frases para se referir à aplicação desses concei-
tos (SEABORN; FELS, 2015, p. 18, tradução nossa).

Seaborn e Fels (2015) identificaram o uso do termo gamificação em textos na área


de educação se referindo à aprendizagem baseada em jogos digitais e serious games em
geral, tornando o termo mais abrangente e colocando esses conceitos como subdivisões
da gamificação.
Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) buscam, por meio de uma revisão de literatura, encon-
trar os benefícios que motivam pessoas a utilizarem serviços gamificados e definem gami-
ficação a partir de um conjunto de autores, de maneira bem similar a Seaborn e Fels (2015).
A pesquisa de Hamari, Koivisto e Sarsa encontra relatos do uso da gamificação em áreas
como saúde, educação, comércio, endomarketing, serviços governamentais, engajamento
público etc. e aponta diversos motivos para o fracasso de um serviço gamificado, como jo-
gadores com interesses divergentes e tipos de serviços com características mais racionais ou
de uso esporádico e, por isso, menos propensos à inserção de práticas divertidas, como jogos,
narrativas ou entretenimento.

Narrativa na literatura da gamificação


O mesmo artigo que traz a definição de gamificação vinculada ao contexto empresarial
(WERBACH; HUNTER, 2012) aborda a narrativa de maneira diferente dos outros.
Cybulski et al. (2015) identifica a narrativa como uma prática linguística capaz de tornar os
discursos mais claros, contextualizando as informações de modo a ficarem mais próximas
da realidade dos participantes e tornando mais fácil reinterpretar os dados e criar analogias
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 77

mais compreensíveis. A ideia de manter um diálogo claro, contextualizando os saberes para


que os alunos compreendam e transponham os conhecimentos para a sua realidade, é con-
siderada um princípio primordial no campo da educação e mandatória para que a aprendi-
zagem ocorra de maneira mais efetiva (ZABALA, 1998).
Os termos mais frequentes associados à narrativa são relacionados ao potencial motivador
do jogo, como “despertar o interesse”, “aumentar o engajamento” e “melhorar a satisfação dos
participantes”. Todos os artigos destacam esse potencial motivador da gamificação utilizando
aspectos da narrativa. Seaborn e Fels (2015) citaram a maior satisfação dos participantes em
ambientes gamificados, mas o engajamento não apresentou diferenças significativas.
A narrativa foi considerada por Sattoe et al. (2015) e Hamari, Koivisto e Sarsa (2014), em
seus respectivos artigos, parte da gamificação, ou seja, um de seus elementos constitutivos.
Porém, cada artigo cita a narrativa apenas uma vez, o primeiro como exemplo de atividade de
aprendizagem, o outro na hora de conceituar gamificação, e não se aprofundam no tema.

Incidência de termos que caracterizam a narrativa

14
12
10
8
6
4
2
0
Fator Mecânica Interação Linguagem Qualidade Parte da
Motivador Gamificação

Figura 5.2 – Incidência de termos que caracterizam a narrativa nos artigos selecionados.

A mecânica de jogo é vista como o elemento definidor da gamificação, e é evidenciada


em todos os artigos. Em alguns casos, os termos relacionados diretamente à mecânica, como
níveis, pontos e progressão, também foram associados à narrativa, mostrando uma correla-
ção. Essa abordagem sugere a identificação da narrativa como integrante da gamificação,
um critério a ser levado em consideração em todas as etapas da produção e da experiência
(SCHELL, 2012). Cruz Junior e Cruz (2016) demarcam a utilização de mecânicas com
pontos, níveis e rankings nas gamificações de sites sobre jogos, que são chamadas de siste-
mas de recompensas, criados com a intenção de criar ciclos equilibrados de tarefa e recom-
pensa, cada vez mais intensos.
A narrativa foi associada à mecânica de maneira evidente na pesquisa de González et al.
(2016), que acompanhou a gamificação de ações voltadas para educação física e hábitos
78 Gamificação em debate

saudáveis num ambiente escolar. Foram criados um cenário ambientado numa ilha pirata e
missões semanais com níveis de dificuldade progressivos. As atividades aconteciam em
vários espaços do colégio e também pela utilização de videogames. Na medida em que a
história ia progredindo, os participantes avançavam em graduações com nomes relacionados
ao tema náutico, como marujo, bucaneiro, oficial e capitão.
Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) e Sattoe et al. (2015) citam a narrativa como um ele-
mento da gamificação. Sattoe et al. também aludem à personificação como a característica
da narrativa normalmente utilizada na gamificação. Ribeiro et al. (2014) destacam a narra-
tiva como um produto da gamificação que favorece a participação e permite atingir os ob-
jetivos desejados para a atividade proposta.
A interação é associada à narrativa em 64% dos artigos selecionados, destacando-se essa
característica como fator relevante para aumentar engajamento, interesse ou satisfação pela
participação nas atividades e em aprender conteúdos escolares (DOMINGUEZ, 2013;
GONZÁLEZ et al., 2016; FERNANDES et al., 2012).
A pesquisa de Damiano et al. (2015) deixa clara a utilização de um termo para cada
elemento narrativo, como “localizações” para espaço e “épocas” para tempo. O objeto da
pesquisa de Damiano et al. é um sistema 3D imersivo, em que o participante caminha por
um cenário virtual como num videogame, estabelecendo as relações semânticas entre os
conceitos trabalhados por meio dos próprios corredores do labirinto. Como foi necessário
desenvolver toda a ambientação, a construção do sistema ficou muito próxima de um
game completo, o que exigiu uma reflexão e uma definição dos elementos narrativos que
seriam utilizados.

Incidência de termos que se referem aos


elementos componentes da narrativa
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
História Narrador Personagens Espaço Tempo

Figura 5.3 – Elementos da narrativa presentes nos artigos selecionados.

Domínguez et al. (2013) também criaram uma relação entre espaço e tempo, mas uti-
lizando o termo “contexto ficcional” para descrever como jogadores podem ficar interessa-
dos por tópicos fora do jogo, citando como exemplo a disciplina história, por meio da
Narrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 79

prática dos games. Nesse caso, o termo foi considerado relacionado a esses dois elementos
(tempo e espaço) em virtude da situação em que foi aplicado.
A personificação é citada em referência à interpretação de personagens e é a mais utili-
zada ao descrever esse elemento narrativo, sendo comumente associada à representação de
papéis, porém sem mais discussões. Sattoe et al. (2015) citam a gamificação como um
exemplo de atividade que pode ser executada em contextos terapêuticos para mudança de
comportamento de indivíduos e/ou famílias e para melhorar as condições de autorregulação
de crianças com condições crônicas.
O narrador não é citado, mas foi considerado ao se inserir um termo como storytelling
ou “contação de histórias” em alguns dos artigos (RIBEIRO et al., 2014; ALI-HASSAN
et al., 2015; DOMÍNGUEZ et al., 2013; KOLAY, 2016), pois deixa implícita a existência
de alguém narrando a história. Porém, a discussão não é estendida para a compreensão do
papel do narrador, sobre ele como um elemento da gamificação ou da narrativa a ser utili-
zado pelos games.

Considerações finais
A presente pesquisa revelou que os últimos três anos foram prolíficos na produção de
pesquisas com experiências empíricas sobre o uso da gamificação no ambiente educacional.
Contudo, ainda são incipientes, precisam de discussão e continuidade para que o uso da
gamificação na educação avance para mais que pontos, níveis e rankings. Um dos caminhos
possíveis e promissores para esse salto qualitativo das práticas e das discussões sobre gami-
ficação passa pelo incremento com leituras e pesquisas das narrativas, que já são muito
abordadas nos game studies, mas dialogam pouco com a gamificação.
Em todos os casos analisados, a narrativa esteve associada a motivação e engajamento,
não havendo discussão sobre a aplicação mais técnica dos elementos narrativos na gamifi-
cação, que por vezes ficaram com um papel ornamental. Fortalecendo a percepção sobre a
utilização da narrativa sem preocupação técnica ou teórica, esta pesquisa revelou a história
ou enredo como o elemento narrativo mais frequente em discussões sobre gamificação na
educação, tendo-se citado algum termo relacionado à história em todos os artigos analisa-
dos. Os outros elementos foram pouco citados, e ainda assim sem aprofundamento. Le-
vando em consideração a abordagem nas pesquisas analisadas e a escassez de artigos que
mencionassem os elementos narrativos, percebe-se que há pouco estudo sobre a narrativa e
sua influência na gamificação.
Vale ressaltar que a proposta foi desestabilizar o conceito de gamificação, trazendo
contribuições do design de jogos e do uso de jogos de realidade alternativa, como defende
McGonigal (2012), para repensar como seria a gamificação com um olhar voltado para a
narrativa, com uma aplicação mais densa que a visão behaviorista, de estímulos e respostas.
Como os próprios autores defendem que a gamificação é um termo em construção, enten-
demos que são necessários ainda muitos estudos que consigam realizar um diálogo entre
áreas que são tão próximas como distintas.
80 Gamificação em debate

Referências
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Apontamentos sobre novos rumos
estéticos para as sociedades
6
gamificadas
Fabrizio Augusto Poltronieri

Nos dias atuais, entende-se o termo gamificação como sinônimo de um conjunto de


estratégias utilizadas especialmente por gurus do marketing, consultores e designers a par-
tir, principalmente, de 2010, com o intuito de promover vendas e fidelizar consumidores
utilizando mecanismos advindos do universo dos jogos. A expressão também é amplamente
usada no âmbito empresarial, buscando o desenvolvimento ou o aprimoramento de habili-
dades como a solução de enigmas e quebra-cabeças no competitivo ambiente dos negócios
(FUCHS et al., 2014). Assim, “gamificação” encontra-se como uma das palavras-chave no
processo de repensar estruturas sociais – e até mesmo sociedades inteiras – em que o uso de
aparelhos digitais – plataformas por excelência para a disseminação dos produtos da indús-
tria contemporânea da mídia e do entretenimento – é ubíquo e novos negócios são criados
diariamente, tirando vantagem, principalmente, da onipresença desses aparelhos.
Entretanto, um olhar mais crítico torna possível perceber que o conceito de gamificação
deveria ser considerado como um processo mais amplo, em que jogos e atividades lúdicas
são compreendidos como componentes essenciais da cultura.1 Nesse quadro, o conceito de
gamificação pode ser recontextualizado, passando a incluir mais que um conjunto de fazeres
práticos voltados para a fidelização de consumidores ou a satisfação dos departamentos de
marketing e abrindo um caminho para que os campos das ciências humanas e da arte te-
nham voz nas discussões que cercam o assunto. Este texto explora essa segunda faceta,
buscando revestir o conceito de gamificação de historicidade e provocar o início de um
processo que leve a pensar possíveis caminhos para “sociedades gamificadas” a partir da

1
Cultura é um termo difícil de ser definido, não pela falta de explicações ou definições sobre ele, mas, ao contrário, jus-
tamente pela abundância de definições existentes, já que praticamente todas as disciplinas que trabalham no campo
das ciências humanas possuem suas próprias definições e interpretações sobre o que é cultura. Portanto, para tornar
este rio caudaloso de definições mais navegável, o termo “cultura” será aqui entendido como “um produto da agricul-
tura. Cultura é um colher (colere) das coisas extraídas da natureza” (FLUSSER, 2007, p. 23). Sendo um ser cultural, o
homem realiza o processo civilizatório pelo ato de extrair – colher – coisas da natureza, trazendo-as para perto do
mundo humano marcado pelas trocas simbólicas. A “cultura” é o processo que o homem criou – e continua aperfeiço-
ando – para tornar o mundo um fenômeno compreensível, seja por rituais de magia – arte – ou por rituais em que deve
imperar a razão – ciência.
84 Gamificação em debate

compreensão do conceito de jogo. Também é meu objetivo relacionar gamificação e cultura


de uma maneira mais abrangente, entendendo o ato de jogar como essencial para a forma-
ção e a compreensão da cultura.
Porém, em primeiro lugar, é necessário nos determos um pouco mais no que está sendo
dito a respeito do termo nos dias atuais. Kapp (2012, p. 10, tradução nossa) diz que “a ga-
mificação utiliza elementos da mecânica, da estética e das estratégias dos jogos para atrair
pessoas, motivar a ação, promover o ensino e solucionar problemas”. Essa definição, como
outras,2 é reducionista, entre outras razões, por desconsiderar as técnicas empregadas no
campo da gamificação, especialmente quando esta se refere a programas de marketing. Os jogos
são e sempre foram elementos indissociáveis da cultura e, portanto, do homem. Insisto na
importância da cultura porque esta é um elemento indissociável da história da humanidade
e de seu desenvolvimento efetivo. A história da cultura não é uma série de progressos, mas
uma dança ao redor do mundo concreto, objetivo, que adiciona a este camadas de comple-
xidade (FLUSSER, 2009), de forma que só podemos compreender o mundo a partir da
perspectiva dessa dança, cuja dinâmica está intimamente relacionada aos jogos.
Os debates mais comuns a respeito do conceito de gamificação apontam para socieda-
des capitalistas que parecem ter descoberto a importância cultural do jogar somente depois
da massificação dos diversos aparelhos de videogame.3 Vejamos outras duas definições sobre
o termo encontradas na literatura disponível:

Como resultado de uma série de mudanças demográficas, tecnológicas e na paisagem compe-


titiva empresarial, empresas inteligentes, assim como ONGs e governos, estão cada vez mais
apostando em jogos como uma forma de reinventar radicalmente suas organizações, fidelizan-
do clientes como nunca antes na história, alinhando seus funcionários e apresentando inova-
ções de maneiras virtualmente impossíveis há apenas uma década. Essas organizações percebe-
ram que sua força reside em combinar inteligência, motivação e – mais importante – fidelização
de consumidores. Esse conceito é chamado de gamificação – isto é, a implementação de estra-
tégias de jogos e programas de fidelidade para cativar usuários (ZICHERMANN; LIN-
DER, 2013, p. xi, tradução nossa).

Ainda:

Nós acreditamos que o termo gamificação realmente demarca um distinto grupo de fenômenos
novos, composto por conceitos diferentes dos já anteriormente estabelecidos […]. A partir
dessa observação, nós propomos a seguinte definição: “Gamificação” é o uso de elementos de
game design em contextos que não fazem parte de jogos” (DETERDING et al., 2011, p. 2,
tradução nossa).

É possível perceber que há um grande esforço, incluindo empenho acadêmico, em fazer


com que o campo de estudos sobre gamificação seja tratado de forma separada de áreas que
2
Ver, por exemplo, Kumar e Herger (2013).
3
Para uma discussão mais profunda a respeito das relações entre aparelhos e gamificação, ver Poltronieri (2014).
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 85

já se ocupam das questões relacionadas a jogos há muito tempo. A cultura e as linguagens


estão imersas nos jogos, e tratá-las de maneira isolada, como se os fenômenos descritos nas
citações anteriores não representassem uma continuidade do longo papel dos jogos nos
diversos processos civilizatórios que se deram e continuam em curso, é um dos pontos que,
a meu ver, tornam as definições e as discussões sobre gamificação tão pobres.
Outro ponto que me causa desconforto é a falta de critérios teóricos para tratar do
conceito de jogo no campo dos estudos, mesmo acadêmicos, específicos sobre gamificação
e também, de modo mais geral, nos game studies. Embora todos os textos sobre o tema, em
algum momento, citem o conceito de jogo como o elemento desencadeador de uma “reali-
dade gamificada”, é bastante reduzido o número de textos que trazem, ou indicam, uma
abordagem sistemática a respeito do que é jogo e porque jogar é algo necessário ao ser
humano. Este texto visa suprir parte dessa carência teórica, apontando para uma teoria dos
jogos que se baseia na estética com a intenção de assegurar ao ato de jogar uma importância
fundamental para o homem.
Aproveito o gancho para também abordar o quase sempre recorrente tema “estética”.
Assim como o termo “jogo”, “estética” aparece como uma palavra-chave em muitos escritos
e debates sobre gamificação, mas poucos se detêm na abordagem das implicações do uso
desse termo, embora esteja claro, na maior parte dos casos, que a estética é compreendida
como pura e simplesmente sinônimo de beleza. A situação se torna grave não apenas por
isso, mas também porque a palavra “beleza” acaba traduzindo-se por um juízo individual de
gosto por parte de quem a utiliza. Procuro aqui também assegurar alguma legitimidade a
essa questão por meio de uma discussão que parte de elementos filosóficos, principalmente
das concepções sobre jogo e estética trazidas por Johann Christoph Friedrich Schiller4
(1759-1805) e Hans-Georg Gadamer5 (1900-2002).
Recorro ao auxílio de filósofos para realizar tais tarefas por considerar que a filosofia
pode ajudar no cumprimento de uma tarefa crítica, tendo seus conceitos a função de legis-
ladores. A principal tarefa da filosofia, neste cenário, é estabelecer critérios de avaliação
sobre determinadas pretensões ao conhecimento. Não quero com isso dizer que este texto
pretende ocupar o espaço de uma “filosofia da gamificação”, mas que ele busca legitimar,
principalmente, o conceito de jogo por meio de recursos filosóficos.

4
Schiller desenvolveu a ética e a estética kantianas em direção a um idealismo pós-kantiano, tendo como principal pre-
ocupação o papel da arte e da beleza na história do homem e em sua vida racional. Para Schiller, a estética, e não a
religião (como supunha Kant), é a constituinte central no processo de educação moral do homem. A arte e a beleza
refinam os sentimentos humanos, tornando-nos mais inclinados a agir eticamente.
5
Gadamer, filósofo alemão que foi um pupilo de Heidegger e o maior expoente moderno do campo da hermenêutica,
segue a trilha iniciada por Schiller no que diz respeito ao fato de a arte colocar algo em jogo, sendo ela mesma o
jogo por excelência. A discussão que Gadamer conduz em relação a arte e jogo não se confunde com qualquer tipo
de argumento que diga que a arte é algo trivial ou apenas um passatempo. Pelo contrário, a consciência estética que
surge do jogo estético é algo muito maior que suas evidências mais imediatas. Para Gadamer, além da arte, a estru-
tura do jogo em si tem afinidades óbvias com outros importantes conceitos, como “diálogo” e “verdade”. Em Ver-
dade e método (2008), Gadamer trata da experiência com a arte, que constitui um jogo em si. Ele não se preocupa
com julgamentos sobre a arte ou as intenções dos artistas. A obra de arte passa a ser o ponto central da experiência,
não o público. Dessa maneira, “jogo” se torna um termo bastante adequado para a compreensão estética, já que
tende a dominar os jogadores.
86 Gamificação em debate

Isso posto, apresento a seguir algumas concepções e ideias sobre o universo dos jogos
que podem servir como alicerces conceituais para discussões mais encorpadas a respeito do
conceito de gamificação, especialmente com relação a suas aplicações estéticas, desviando o
foco e a importância usuais que são dados à aplicabilidade do termo no campo do marketing
e do treinamento empresarial. Neste ponto, é importante situar o que entendo como esté-
tica, visto que este é um conceito-chave no presente texto. Para tal tarefa, recorro a outro
filósofo, desta vez o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), influência cons-
tante em meu trabalho e minhas pesquisas.
Peirce atribuiu ao termo um significado completamente novo e original, concebendo a
estética como uma ciência normativa que tem por papel “descobrir o que deve ser o ideal
supremo da vida humana” (SANTAELLA, 2005, p. 38). A estética para Peirce diz respeito
a “estados de coisas que, mais cedo ou mais tarde, todos tenderão a concordar que são dignos
de admiração. O que é admirável não pode ser determinado de antemão. São metas ou
ideais que descobrimos porque nos sentimos atraídos por ele, empenhando-nos na sua re-
alização concreta” (SANTAELLA, 2005, p. 38). Ora, o que seria um uso estético da gami-
ficação ou, ainda, uma estética da gamificação? A resposta certamente aponta para um
cenário distinto do criado e propagandeado pelos autores dos best sellers sobre o assunto.
Com essas questões, busco abrir um horizonte novo de debates, em que o caráter geral da
gamificação possa ser compreendido como uma ferramenta capaz de estruturar novas pos-
sibilidades existenciais.6

Caráter geral do jogo


Devo alertar que tratarei essencialmente do conceito de jogo como concebido filosofi-
camente por Schiller em A educação estética do homem numa série de cartas (2002). De acordo
com Duflo (1999), ainda vivemos, de certa forma, sob a herança intelectual de Schiller no
campo dos estudos sobre jogos, já que suas cartas ocupam um lugar verdadeiramente fun-
dador na história da noção de jogo na filosofia, visto que o caráter inaugural do pensamento
de Schiller permanece inegável e duas de suas consequências mais imediatas são centrais
para a contemporaneidade. A primeira é o fato de que Schiller estabeleceu uma nova fase
de reflexões sobre o tema, após a qual um pensamento sobre o conceito de jogo se tornou
possível e legítimo, demonstrando a importância filosófica das questões que o cercam.
A segunda consequência é que todo o discurso sobre o conceito de jogo de alguma maneira
ainda se baseia nessa virada inaugural de Schiller, remetendo, muitas vezes, diretamente aos
quadros teóricos estabelecidos pelo poeta e filósofo alemão. Para Schiller, o conceito de jogo

6
De fato, essa é uma preocupação que acompanha minhas pesquisas há algum tempo, tendo sido um dos temas
centrais das investigações que conduzi em um estágio de pós-doutorado realizado em 2014 no Gamification Lab da
Leuphana Universität, na cidade de Luneburgo, Alemanha, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e com
o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para um aprofundamento dessa dis-
cussão, ver Poltronieri (2014).
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 87

é indissociável de uma existência estética, e essa é a razão central para o uso de sua filosofia
no presente contexto.
Isso posto, começo por dizer que, de maneira geral, o caráter do jogo, quando tratado
conceitualmente, se revela por meio de atividades lúdicas que a princípio se desenvolvem
de maneira desinteressada, sendo independentes do comportamento, do estado de ânimo
ou da própria subjetividade de quem participa como jogador. O jogo possui um caráter
independente, não estando condicionado a quem o joga e muito menos sendo determinado
pelo jogador. Seu caráter autônomo dispensa a presença de outro sujeito para existir.
Os jogadores apenas asseguram a representação da instância maior que é o jogo em si
(GADAMER, 2008). Para tornar mais clara essa questão relacionada ao caráter do jogo,
ressalto que este, essencialmente, é puro movimento desprovido de alvo, de meta, que se
estabelece em forma de eterno retorno, de um ritual no qual não existe nenhuma lei de
causalidade. É movimento por si mesmo, independente inclusive de quem o executa ou
observa. Não há necessidade sequer de um sujeito fixo para sua existência e sua manutenção,
visto que o jogo é a realização do movimento como tal (GADAMER, 2008).
Schiller (2002, p. 79) chama de jogo “tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objeti-
vamente contingente, ainda assim não constrange nem interior nem exteriormente”, definindo
ainda o belo como um mero jogo entre um impulso sensível, identificado como “vida” – todo
ser material e toda presença imediata nos sentidos –, e um impulso formal, que se sintetiza
como “forma”, compreendendo todas as possibilidades formais e suas relações com o pen-
samento. O lúdico pode ser chamado, portanto, de “forma viva”, designando todas as qua-
lidades relacionadas com o que observamos e criamos. Jogo, assim, deve ser entendido como
um estado do homem, em que este se encontra livre e se relaciona com a liberdade de forma
desimpedida. De forma lúdica, portanto.
Esse estado de pura liberdade torna o homem completo, senhor de suas qualidades
sensíveis e formais. O campo de visão humano é ampliado no processo lúdico de jogar,
principalmente quando este leva em conta aspectos estéticos, pois “com o agradável, com o
bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga” (SCHILLER,
2002, p. 169, grifo nosso). Destaca-se a palavra “perfeição” que, em Schiller, aparece subor-
dinada a seriedade. O jogo lúdico estético não está a serviço do que é utilitário ou necessá-
rio, mas simpatiza com o que existe por si só, e que a si só basta, não sendo ao mesmo tempo
necessário a nada mais nem dependente de nada mais. No campo do jogo, a beleza deve ser
a linha guia do homem, pois

o homem deve somente jogar com a beleza, e somente com a beleza deve jogar. Pois, para dizer
tudo de vez, o homem joga somente quando é homem no sentido pleno da palavra, e somente é
homem pleno quando joga (SCHILLER, 2002, p. 80, grifos nossos).

A beleza é a linha guia do jogador. O jogo é o alicerce que sustenta as culturas humanas,
encontrando na experiência estética sua maior, mais livre e indefinida forma de expressão,
práxis e contemplação, servindo de modelo para todo o arquitetar que a linguagem e o
pensamento formalizam e materializam. Os gregos antigos já adotavam em sua sociedade
88 Gamificação em debate

esses altos ideais, porém o faziam por procedimentos de reflexão: projetavam em seus deu-
ses tais ideais para que eles fossem refletidos, idealmente, nos homens comuns. Schiller
(2002) chama a atenção para esse fato ao notar que os gregos transpunham para o Olimpo
o que deveria ser realizado na terra. Dessa maneira, fizeram desaparecer da fronte dos
deuses ditosos a seriedade e o trabalho, que marcam indelevelmente o semblante dos mor-
tais. Os gregos, libertando os seus deuses das correntes de toda finalidade, dever ou preocu-
pação, fizeram do ócio e da indiferença o invejável destino do estamento divino, projetando
nos imortais a existência mais livre, sublime e lúdica.
Por conta dessas características, Aristóteles aproximou o jogo à felicidade e à virtude,
pois essas atividades são escolhidas por si mesmas, não sendo necessárias como as que
constituem o trabalho (2000, X, 6, 1176 b 6). Schiller também observa que o impulso lúdico
que o jogo apresenta une mente e matéria, inteligível e sensível, espírito e corpo, já que esse
impulso é exercido acima das necessidades naturais da vida e independentemente dos inte-
resses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta, sobretudo, como
jogo estético.
O jogo também é identificado como condição essencial para a vida em seu sentido
biológico, na forma de movimentos absolutamente supérfluos produzidos por crianças e
animais que brincam quando seus instintos primários já foram saciados. A atividade lúdica
do brincar é realizada pelo simples prazer que proporciona, sendo um exercício incontrolá-
vel. O jogo com a beleza é, para o poeta alemão, uma afirmação espiritual, trazendo, antes
de qualquer coisa, a liberdade em seu grau mais elevado. De acordo com Schiller, a realiza-
ção do jogo com a beleza se dá pela via da contemplação, pois o ato de contemplar traz em
si o pressuposto de um distanciamento da matéria, para que se perceba que esta também é
uma forma de mente, de espírito, o que torna possível o desimpedido comércio sígnico
entre a forma e a matéria sensível, entre o sentimento e a inteligência, que se reencontram
finalmente em sua origem comum. Percebemos, pela contemplação, a presença do outro.
Assim, a personalidade do jogador se descola e ele não mais exerce sua vontade sobre as
coisas, mas dialoga com elas.
Há no jogo o princípio da comunicação, uma troca de códigos compartilhados. Con-
templar é o primeiro nível para adentrar o jogo libertador com a beleza. Ao mesmo tempo
que o homem se separa do mundo por esse processo, ele também se vê no mundo, pelo fato
de a contemplação ser um procedimento de reflexão. O processo de contemplar/refletir
constitui a primeira relação de libertação do homem com o mundo a sua volta. Em vez de
agarrar seu objeto de conhecimento de forma voraz, a contemplação o afasta e faz dele sua
propriedade verdadeira e inalienável. Sobre esse processo, diz Schiller (2002, p. 126):
“há trégua momentânea nos sentidos, o próprio tempo eternamente mutável repousa en-
quanto os raios dispersos da consciência convergem e uma imagem do infinito, a forma, se
reflete no fundo perecível”. O jogo estético liberta porque faz o homem refletir, unindo o
sensível ao intelectual.
Schiller nos diz que o homem, enquanto apenas sente, é dominado pela imensidão
objetual da natureza. Porém, torna-se seu legislador quando passa a se ver refletido nela,
livre das imposições que o mundo brutal impõe. O homem que joga torna a natureza objeto
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 89

de seus procedimentos de informação, dando forma ao informe. A beleza transparece como


resultado desse jogo, por ser fruto de uma ética que não permite a degeneração do natural.
Ao contrário: o jogador nada de mal pode à natureza impor, pois ele está nela refletido.
Destruí-la é destruir-se. É aniquilar o jogo. O jogo estético não parte do princípio ganhar/
perder. É mais sofisticado, tendo a premissa, livre, de que é necessário criar o belo, obra da
livre contemplação com a qual penetramos o mundo platônico7 das ideias, sem deixar o
mundo sensível.8
Com relação ao jogador, é necessário, obviamente, que exista um jogo atuando como
elemento mediador. Para o ato de jogar, porém, não há a necessidade de que outra subjeti-
vidade participe efetivamente. Mas é indispensável que exista algum tipo de elemento que
contrabalanceie os atos e os lances do jogador (GADAMER, 2008). É o que ocorre na
práxis e na fruição estética.
O jogo, como algo que se resolve em si mesmo, é livre de tensionamento, de qualquer
tipo de atrito com um outro interno ou externo, é algo que “vai como que por si mesmo”
(GADAMER, 2008, p. 158). Do ponto de vista do jogador, a ausência de tensão no jogo
estético traduz-se como alívio pleno, relaxamento da necessidade constante de mediar con-
flitos entre objetos que se chocam constantemente. A separação entre o sujeito – jogador – e
o objeto do jogo pela contemplação faz com que o primeiro seja abandonado a si próprio,
não tendo nada que diga ou imponha a ele o que deve ser feito. Gadamer (2008, p. 158) diz
que o jogador é dispensado até mesmo da “tarefa da iniciativa que perfaz o verdadeiro es-
forço da existência”.
O jogo estético para Schiller (2002) é simultaneamente um estado de ânimo e de ação.
Por ser os dois ao mesmo tempo, serve-nos como prova decisiva de que a passividade não
exclui a atividade, nem a matéria exclui a forma, nem a limitação, a infinitude. A experiên-
cia com o jogo estético é libertadora, pois é a experiência da vida e permite a quem contem-
pla também ser autor do que é contemplado, em uma eterna retroalimentação. Não há
divisão entre produtor e fruidor. Existem apenas jogadores, levando Gadamer (2008) a
afirmar que o jogo estético não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si, tendo
seu real valor por constituir uma experiência que transforma aquele que a experimenta.
Nota-se a mudança que ocorre no jogador ao deparar com a experiência propiciada pelo
jogo. O verdadeiro sujeito da relação é o jogo, e não o jogador. É o jogo que aciona o verbo,
o elemento de ação, de transformação. O jogo estético é o que permanece na relação, embora
também seja alterado, constituindo um enorme repositório que reflete a sua própria história,
da qual é a peça central. Embora exista a ligação entre jogo e jogador, é indispensável frisar
que “o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam”
(GADAMER, 2008, p. 155).

7
Segundo a doutrina das ideias de Platão (428 a.C.-348 a.C.) as almas dos homens outrora podiam contemplar as ideias –
essência de tudo – de maneira irrestrita. Depois, como punição, as almas foram aprisionadas no corpo. Porém, elas
possuem uma capacidade de reminiscência, ou seja, têm uma lembrança obscura, que pode ser rememorada, do seu
antigo contato livre com as ideias.
8
O mundo sensível também faz referência a Platão. É no mundo sensível, uma cópia do mundo das ideias, que o homem
passa a viver após a proibição do acesso livre ao mundo das formas ideais.
90 Gamificação em debate

O jogo estético é livre por nenhuma necessidade pender sobre a beleza, que supera a
realidade pela simples aparência. A aparência aqui referida não depende de nada que não
seja si mesma. Não é simulacro ou derivada de alguma outra coisa, não precisando prestar
satisfações a algo externo a si, pois não é ilusória nem almeja substituir o que já existe.
Devemos aceitar a aparência em sua qualidade de aparência, porque ela encarna o humano
em sua plenitude, revelando a operação criadora da liberdade, que dá à existência o sentido
e a finalidade que a natureza exterior não possui.
Para o olhar desavisado, o jogo estético pode parecer frívolo e desnecessário, visto que
a vida, em seu sentido estritamente biológico, não parece sentir necessidade da beleza para
sua manutenção. Contudo, uma visão mais abrangente revela que o homem é um ser imerso
em cultura, em processo de cultivo insaciável. Está na essência humana não aceitar a reali-
dade natural, pois esta não é familiar às culturas humanas. É o jogo estético, em sua aparente
superficialidade, que aproxima a natureza do homem, permitindo, pela cultura, colocar em
jogo a realidade, desprendendo-a da natureza. Nasce do jogo uma nova espécie de ser, jo-
gador essencialmente livre que pode manipular desimpedidamente as coisas, dando a elas
significados anteriormente não estabelecidos.
Esse jogador compreende que o impulso inerente ao jogo é, antes de tudo, uma ativi-
dade que forma o sujeito e, assim, o mundo, pois este se submete aos ânimos do homem
e se transmuta em aparência, resultado do jogo libertador. Ser um jogador é ser um cul-
tivador, ou ainda uma espécie de alquimista que, pelo jogo lúdico, transforma as proprie-
dades da matéria por meio da forma. Embora o jogo tenha esse aspecto desinteressado,
essencial para a liberdade que é assegurada, o jogador deve levar a atividade a sério para
que o jogo seja consumado.
Gadamer (2008, p. 154) nos assegura que “o que é mero jogo não é sério”, mas completa
dizendo que “é mais importante o fato de que no jogar se dá uma seriedade própria, até
mesmo sagrada”, apontando que é necessário ao jogador entrar no jogo. Quem não dedica
ao jogar a seriedade que o ato merece não se constitui plenamente como jogador e perma-
nece condicionado, visto que o jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele
que joga entra efetivamente no jogo. Este, com sua natureza independente, permanece
presente mesmo onde é ignorado, ou melhor, onde não é levado a sério: onde não atuam
jogadores. Mesmo nesses lugares, onde tentativas arbitrárias de divisão entre a racionalidade
e a sensibilidade procuram esconder o aspecto lúdico da existência humana, o jogo está
presente: “O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá, onde nenhum ser-para-si
da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportem
ludicamente” (GADAMER, 2008, p. 155).

Breves conclusões
As estratégias de gamificação constituem uma camada comunicacional que se coloca
sobre a dinâmica independente que o conceito de jogo traz, tendo como propósito alterar
ideologicamente a existência humana e tornando objeto de seus interesses o movimento
independente do jogo, de forma a conduzi-lo para se tornar meio e fim de determinados
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 91

propósitos. Embora Kapp (2012) afirme que a gamificação utiliza elementos provenientes
de uma “estética dos jogos”, considero que o uso da palavra estética aparece aqui completa-
mente deslocado, tendo um sentido predefinido, fechado. Uma estética baseada em jogos
pressupõe um caminho que tem como meta final a liberdade, por meio do percurso de uma
trilha aberta, lúdica, em que descobrir possibilidades é a tônica principal.
O conceito de gamificação parece distanciar-se da identificação de si como represen-
tante de um conjunto de atividades realmente lúdicas. O estudo da literatura disponível
mostra que a palavra gamificação é compreendida como índice de um conjunto de estraté-
gias que visam a fins práticos bastante específicos, excluindo as considerações estéticas que
aponto ao longo deste texto. Desconsiderando esses aspectos estéticos – que incluem tam-
bém quesitos éticos – o jogo esvazia-se, pois é destituído da seriedade necessária apontada
por Gadamer. O que sobra é um mero artefato instrumental, composto por conjuntos de
regras que têm por objetivo o cerceamento da liberdade. Em vez de jogo, o que se estabelece
é o antijogo.
O espaço para a contemplação que os “jogadores” das atuais estruturas gamificadas têm
é limitado, pois a real ênfase dos procedimentos de gamificação está concentrada na mecâ-
nica das atividades propostas – sejam elas educacionais, empresariais, ações de marketing
etc. –, o que transforma a atividade lúdica do jogar em uma constante demanda por com-
pletar ações. Sempre ocupado em cumprir objetivos e metas, em colecionar distintivos e
prêmios que são, na verdade, afagos distribuídos por conta de atividades predeterminadas
cumpridas, o jogador não tem tempo para se afastar, olhar a situação em que está inserido
como um todo e, finalmente, contemplar. Sem poder contemplar, não é possível ao jogador
se abrir para o mundo e deste participar efetivamente.
A gamificação como antijogo ocupa o tempo do homem com tarefas que têm por ob-
jetivo afastá-lo do mundo, aproximando-o de realidades projetadas pelos algoritmos9 que
estabelecem as regras da mecânica por trás das atividades a serem cumpridas nos jogos
propostos. Em vez de promover saltos em direção à liberdade, a maioria das atividades
gamificadas prende os jogadores em labirintos algorítmicos, sendo a gamificação uma es-
tratégia de controle adequada – do ponto de vista das corporações – para tempos em que as
interações humanas são cada vez mais mediadas por algoritmos que, inacessíveis à compre-
ensão dos jogadores, ditam regras de conduta, pontos a serem acumulados e posts em redes
sociais que devem ser vistos, dentre outras possibilidades pré-codificadas.
Conclui-se que quem estipula os algoritmos detém o poder atualmente. Destarte, faz
sentido pensar em gamificação como um conjunto de estratégias com a intenção de
programar algoritmicamente a liberdade dos jogadores e, consequentemente, modificar a
maneira como eles estão no mundo. O processo de gamificação não visa unicamente
instruir ou educar as pessoas, muito menos fazer com que coletem pontos em atividades

9
Um algoritmo é uma sequência finita de instruções básicas, executável dentro de um tempo também finito, que tem
por objetivo resolver um problema lógico, qualquer que seja sua instância (SALVETTI; BARBOSA, 1998). A palavra
origina-se do nome do matemático islâmico Al-Khowarizmi e denota um conjunto de regras ou instruções que resulta-
rão na solução de um problema. Um algoritmo oferece um processo de decisão, ou um método computável para resol-
ver um problema (BLACKBURN, 2016).
92 Gamificação em debate

divertidas. Seu papel mais profundo, enquanto modelo comunicacional, é alterar ideolo-
gicamente os jogadores.
Repensar as sedutoras estratégias empregadas pela gamificação com vistas ao que foi
aqui exposto como teoria sobre os jogos me parece uma tarefa necessária, embora este seja
um entre inúmeros caminhos possíveis para recontextualizar o conceito de gamificação e
empregá-lo de maneiras mais interessantes. Acredito que as definições que apresentei pos-
sam ser exploradas por um conjunto maior de pesquisadores, embora sejam polêmicas,
principalmente se contrastadas com algumas das teorias sobre gamificação em voga atual-
mente. Um caminho interessante a ser explorado é a aproximação da gamificação com a arte
ou com o conceito de jogo do ponto de vista estético, o que pode inserir elementos verda-
deiramente lúdicos no cotidiano cada vez mais gamificado que atualmente vivenciamos. A
arte enquanto jogo verdadeiramente estético é um dos principais pontos debatidos por
Gadamer (2008), e uma introdução ao tema, embora seja um texto pré-gamificação, pode
ser encontrada em Poltronieri (2009).
Mesmo que a real vocação das atividades gamificadas seja exercer controle sobre os
jogadores por meio de suas estratégias ideológicas, creio que ainda assim o conceito de jogo
como um movimento dialógico estético que estabelece bases éticas para um processo de
compreensão e diálogo pode ser benéfico para que o debate sobre o tema seja pautado por
questões que ultrapassem o caráter gamificado meramente instrumental que se observa
atualmente.

Referências
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BLACKBURN, S. The oxford dictionary of philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2016.
DETERDING, S. et al. From game design elements to gamefulness: defining “gamification”. In: INTERNA-
TIONAL ACADEMIC MINDTREK CONFERENCE: ENVISIONING FUTURE MEDIA
ENVIRONMENTS, 15., 2011, New York. Proceedings… New York: The Association for Computing
Machinery, 2011. p. 9-15.
DUFLO, C. O jogo: de Pascal a Schiller. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007.
______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2009.
FUCHS, M.; FIZEK, S.; RUFFINO, P.; SCHRAPE, N. (org.). Rethinking gamification. Luneburgo:
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GADAMER, H.-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis:
Vozes, 2008.
KAPP, K. The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and
education. San Francisco: Pfeiffer, 2012.
Apontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 93

KUMAR, J.; HERGER, M. Gamification at work: designing engaging business software. Copenhagen:
The Interaction Design Foundation, 2013.
POLTRONIERI, F. Communicology, apparatus, and post-history: Vilém Flusser’s concepts applied to
videogames and gamification. In: FUCHS, M.; FIZEK, S.; RUFFINO, P.; SCHRAPE, N. (org.).
Rethinking gamification. Luneburgo: Meson Press, 2014. p. 165-200.
______. O jogo do parangolé. In: SANTAELLA, L.; FEITOSA, M. (org.). Mapa do jogo: a diversidade
cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009. p. 163-178.
SALVETTI, D. D.; BARBOSA, L. M. Algoritmos. São Paulo: Makron Books, 1998.
SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras,
2005.
SCHILLER, F. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 2002.
ZICHERMANN, G.; LINDER, J. The gamification revolution: how leaders leverage game mechanics to
crush the competition. New York: McGraw-Hill, 2013.
Brain digital games e funções
executivas: delineando interfaces entre
7
os games e a estimulação
neuropsicológica1
Lynn Alves

A discussão sobre as contribuições dos ambientes interativos ‒ aqui incluídos games e


aplicativos com ou sem a mediação dos suportes de realidade virtual, realidade aumentada
e realidade misturada para avaliação neuropsicológica ‒ vem crescendo de forma significa-
tiva em distintos cenários. Observamos notícias na mídia televisiva e na internet, bem como
nas redes sociais, de pesquisas e aplicações dessas tecnologias, mediando processos de esti-
mulação, reabilitação e avaliação tanto motora quanto cognitiva. Contudo, no que se refere
à sistematização e à socialização desses resultados por meio dos suportes considerados
acadêmicos, ainda encontramos números limitados de publicações.
Dentro dessa perspectiva, este capítulo objetiva socializar os resultados parciais da
pesquisa que vem sendo realizada na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por
meio do centro de pesquisa Comunidades Virtuais, com crianças na faixa etária de 8 a 12
anos, que, em interlocução e acompanhamento com neuropsicólogas e estudantes de
psicologia, sob a minha coordenação, criam um espaço de estimulação para as funções
executivas mediadas pelo Gamebook Guardiões da Floresta (GGF).2 Para tanto, o capítulo
foi dividido em quatro seções.
Na primeira, apresentamos uma revisão sistemática que identificou o número de publi-
cações existentes que discutem a relação brain digital games, persistência e as funções

1
A realização deste trabalho foi possível por conta do financiamento das agências de fomento Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela parceria constante da UNEB. Mas o sonho
se concretizou graças a todos os desenvolvedores e pesquisadores do Comunidades Virtuais envolvidos no projeto que,
com sua paixão pelo universo dos games, construíram um sentido para o Gamebook. Agradeço às interlocutoras deste
trabalho, Jessica Vieira, Larissa Cerqueira e Maria de Fátima Dórea; e a crianças, adolescentes, pais, professores e pes-
quisadores partícipes dessa jornada.
2
Mais informações no site <http://comunidadesvirtuais.pro.br/guardioes-gamebook/>.
96 Gamificação em debate

executivas (FE)3 memória de trabalho e flexibilidade cognitiva, detalhando os principais


achados de cada publicação encontrada.
O levantamento dessas referências foi realizado na plataforma Thompson Reuters no
dia 13 de maio de 2016, identificando as produções nos bancos de dados Web of Science,
Conference Proceedings e Current Contents Connect, utilizando os descritores indicados
anteriormente. É importante destacar que esses termos foram definidos por terem relação
direta com o objeto de estudo desta pesquisa, que tem o objetivo de avaliar as contribuições
do GGF a partir do ponto de vista das pesquisadoras que interagem com esta mídia no
espaço clínico e escolar. A interação ocorre desde a estimulação das FE já mencionadas até
outros aspectos identificados pelas investigadoras.
Ressaltamos ainda que as FE memória de trabalho e flexibilidade cognitiva foram se-
lecionadas por serem consideradas pelos pesquisadores da área o core das FE, incluindo
ainda o controle inibitório. Essa expressão é utilizada por Diamond et al. (2007) para se
referir às funções basilares para as FE. Já a persistência foi incluída por se caracterizar como
um aspecto fundamental na interação com os jogos, além de envolver conteúdos relaciona-
dos com motivação e engajamento do sujeito.
A segunda seção apresenta e discute o ambiente do GGF, evidenciando outras investi-
gações no cenário internacional e nacional que vêm criando espaços interativos e digitais
que podem ser considerados brain digital games.
Método de investigação e resultados se constituem na terceira seção, na qual é delimi-
tado o processo metodológico realizado com o objetivo de avaliar as contribuições do GGF
mediante a escuta sensível das pesquisadoras, partícipes que vêm atuando no espaço escolar,
estimulando as FE, com a mediação do ambiente referenciado.
E, finalmente, na conclusão intitulada “É o GGF um brain digital game?”, evidencia-
mos os resultados da investigação, apontando também as possibilidades futuras.

Brain digital games: um panorama da revisão de literatura internacional e nacional


Ao iniciar uma investigação, é fundamental levantar o que já foi produzido sobre o
tema, objetivando estabelecer o contexto e situar a pesquisa no cenário já existente. Assim,
tendo como plataforma a Thompson Reuters, iniciamos a busca para o descritor brain
digital games, acompanhado de asterisco,4 no período de 2011 a 2016. Foram encontrados
22 artigos, sendo que apenas quatro foram incluídos neste estudo por apresentarem resul-
tados de pesquisas nas quais os jogos digitais mediaram estimulação, reabilitação e/ou
aprendizagem envolvendo FE com crianças e adolescentes.
Para a combinação persistência e brain games, incluindo asterisco, foram encontrados
apenas três artigos por conta do número limitado de investigações publicadas. Nessa
busca, não definimos um limite de tempo para as pesquisas. Ressaltamos que os artigos
3
O conceito de funções executivas será aprofundado posteriormente.
4
O uso do asterisco na busca de descritores possibilita que sejam encontradas quaisquer ocorrências que tenham o
termo vinculado, por exemplo, funções executivas*: será levantado tudo no banco de dados procurado que vincule
esses verbetes.
Brain digital games e funções executivas 97

encontrados se referem ao período de 2013 a 2015, evidenciando a preocupação recente


de pesquisadores com o tema. Nesse grupo, apenas o artigo de Shute, Ventura e Ke
(2015), denominado The power of play: the effects of Portal 2 and Lumosity on cognitive and
noncognitve skills, tratava da relação persistência e brain games. Contudo, ele não será
analisado nesta pesquisa, pois envolveu estudantes universitários, e o foco da nossa inves-
tigação são crianças e adolescentes.
É importante destacar que, quando utilizamos os descritores em posição diferente, isto
é, brain game, com asterisco, e persistência, sem asterisco, sem definição de tempo, encon-
tramos dez publicações no período de 2010 a 2015, sendo que a única que tratava de jogos
digitais era o artigo The power of play: the effects of Portal 2 and Lumosity on cognitive and
noncognitve skills, já referenciado.
Outro ponto que destacamos é a polissemia do termo brain game, que pode ser usado
para se referir tanto a futebol quanto aos jogos digitais que se propõem a constituir-se em
espaço de treinamento e estimulação para FE. Por exemplo, na busca mencionada, encon-
tramos dois artigos que tratavam de danos cerebrais causados pela prática do futebol
(ROBERSON, 2014; MARCHI et al., 2013); um falava sobre games (SHUTE; VENTURA;
KE, 2015); e sete se referiam a aspectos relacionados a biologia e comportamentos psicoló-
gicos vinculados a funções e estruturas cerebrais (BAYARRI et al., 2010; BAULT et al.,
2015; BONIOLO; TESTA, 2012; DEVAINE et al., 2014; DICKHAUT et al., 2010;
KURZBAN et al., 2013; RUDY, 2015).
Diante do exposto, é fundamental explicitar que, neste capítulo, a expressão brain games
será utilizada para se referir aos ambientes interativos, especialmente jogos digitais e/ou
eletrônicos que utilizam distintas plataformas, com fins comerciais ou produzidos para ce-
nários de aprendizagem escolar ou terapêuticos que medeiam processos de estimulação,
reabilitação, treinamento e/ou avaliação de funções executivas.
Assim, a análise limitou-se apenas a quatro artigos, publicações que estão localizadas
em três continentes: duas na América do Norte (Estados Unidos e Canadá), uma na Aus-
trália e uma em Singapura, territorializando três áreas: saúde (psiquiatria); interação cogni-
tiva humano-computador, utilizando a mediação de tecnologias da medicina como
eletroencefalograma (EEG); e educação. Essa configuração indica as possibilidades de in-
terface da área de jogos digitais com distintos campos do conhecimento, constituindo-se
em espaços de aprendizagem para aspectos cognitivos, motores, afetivos, sociais, culturais,
entre outros. Entretanto, o levantamento que realizamos indicou que as investigações em
torno da relação jogos digitais e FE com crianças e adolescentes no cenário nacional e in-
ternacional ainda são bastante incipientes.
Na pesquisa realizada por Sourina et al. (2011), os autores descrevem o método factral-
-based, que consiste na interação com o EEG para estados de recognição do cérebro (emocio-
nal e níveis de concentração). Para tanto, os pesquisadores criaram um algoritmo para
reconhecer e mapear, em tempo real, sete tipos de emoções (satisfação, prazer, felicidade,
frustração, tristeza, medo e o que denominam de emoções neutras) dos usuários por meio da
mediação de um avatar, de música, de storytelling e de serious games, dentre outras tecnologias.
Assim, na interação com essas aplicações, o usuário ouve músicas, vê a reação facial do avatar
98 Gamificação em debate

associada a músicas, e o EEG mapeia e registra suas reações. O artigo de Sourina et al. (2011)
não apresenta os resultados das investigações com os sujeitos, mas descreve o que vem sendo
desenvolvido no Cognitive Human Computer Interaction Lab (CHCI Lab).
O segundo artigo, de autoria de Giedd (2012), traz uma breve análise do crescimento
da interação dos adolescentes com distintas mídias e de como essa dinâmica vem afetando
o comportamento e a plasticidade cerebral desses sujeitos. Para Cosenza e Guerra (2011),
o sistema nervoso é extremamente plástico nos primeiros anos de vida até a adolescência.
Essa plasticidade nervosa vai diminuindo e permanece por toda a vida.

Uma característica marcante do sistema nervoso é então a sua permanente plasticidade. E o que
entendemos por plasticidade é sua capacidade de fazer e desfazer ligações entre os neurônios
como consequência das interações constantes com o ambiente externo e interno do corpo.
O treino e a aprendizagem podem levar à criação de novas sinapses e à facilitação [sic] do fluxo
da informação dentro de um circuito nervoso (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 36).

Para além da discussão da plasticidade, Giedd (2012) divide o artigo em seções e


apresenta os seguintes aspectos: educação na idade digital, entretenimento, sexo, violên-
cia, economia da atenção, revolução social digital e interações sociais na era do Facebook.
O autor destaca a ênfase que vem sendo atribuída aos excessos no uso das tecnologias
digitais para o cérebro, mas, em todo o artigo, ressalta a relevância de construirmos um
ponto de equilíbrio. Assim, Giedd (2012, p. 7, tradução nossa) conclui sua reflexão pon-
tuando que “devemos ser a força para otimizar o lado bom e minimizar o lado ruim dos
impactos da era digital”.
Esse destaque sintoniza-se com a ideia discutida por Eco (2015) de não adotarmos
posturas nem apocalípticas nem integradas, mas construirmos um olhar crítico da interação
das distintas gerações com o universo das tecnologias digitais. Logo, não cabem perspectivas
maniqueístas que dividem em bem e mal a relação dos sujeitos com a tecnologia.
Para Giedd (2012, p. 3, tradução nossa),

uma das habilidades mais úteis para crianças e adolescentes adquirirem será a habilidade de
efetivamente utilizar este universo de informação – para criticamente avaliar os dados, dis-
cernir sinais de barulhos, sintetizar conteúdos e aplicar tudo isso à resolução de problemas no
mundo real.

Como o artigo se insere na interface tecnologias digitais e neurologia, o autor traz


críticas que são feitas à habilidade de multitarefa, que é evidenciada como um aspecto
positivo na interação dos jovens com as tecnologias, mas que, em contraponto, divide a
atenção, tornando-se ineficaz. Os estudos utilizando a mediação do Functional Magnetic
Ressonance Imaging (fMRI)5 também foram referenciados para confirmar a ineficácia
dessa habilidade.
5
Originário do inglês Magnetic Resonance Imaging (MRI), caracteriza-se como uma técnica específica do uso da imagem
por ressonância magnética que é capaz de detectar variações no fluxo sanguíneo em resposta à atividade neural.
Brain digital games e funções executivas 99

Segundo Cosenza e Guerra (2011, p. 47):

Mesmo quando estamos dividindo a atenção pela utilização de canais sensoriais diferentes, o
desempenho não é o mesmo, e aspectos importantes da informação podem ser perdidos. Isso
ocorre, principalmente, se a demanda de um dos canais é aumentada. Podemos, por exemplo,
dirigir um carro e ouvir rádio ao mesmo tempo. Mas, se prestamos mais atenção ao rádio, po-
demos provocar um acidente e, se o tráfego está pesado, provavelmente não conseguiremos nos
lembrar do que o rádio transmitiu naquele momento. Ao tentar dividir a atenção, o cérebro
sempre processará melhor uma informação de cada vez.

Dessa forma, tanto Giedd quanto Cosenza e Guerra apontam revezes para a atenção
dividida/difusa, isto é, a interação com mais de uma informação simultaneamente pode
comprometer essa função. Autores como Green e Bavelier (2015) e Rivero et al. (2012)
indicam que a interação com os jogos digitais contribui para melhora da atenção, mesmo
quando o sujeito lida com mais de uma informação simultaneamente.
Já no terceiro artigo analisado, os autores Choudhury e McKinney (2013) debatem dois
pontos que têm gerado muita discussão em torno dos usos e desusos da interação dos
adolescentes com as tecnologias digitais. O primeiro refere-se ao pânico generalizado sobre
o comportamento dos adolescentes; o segundo relaciona-se com o crescente alarme sobre
os intensos consumo, vício e compartilhamento das mídias na sociedade moderna.
Em agosto de 2016, no Brasil, tivemos dois lançamentos que trouxeram à tona o debate
sobre os aspectos negativos das tecnologias, especialmente os jogos. O primeiro foi o jogo
digital para dispositivos móveis Pokémon GO, que trouxe os diferenciais da realidade au-
mentada e do controle da geolocalização e dos dados dos seus jogadores. Tais inovações
promoveram grandes inquietações e debates nas diferentes mídias digitais (redes sociais,
jornais online, TV, entre outros), e verdadeiras teorias da conspiração foram espalhadas.
O segundo foi o filme Nerve, que trata de um jogo em tempo real que se assemelha a um
reality show e tem como pano de fundo a discussão sobre o vício. A polarização sobre os
jogos digitais e as tecnologias, de maneira geral, é constantemente atualizada, sendo neces-
sário interagir para conhecer e construir pontos de vista críticos e não apocalípticos.
Para além dessa questão, Choudhury e McKinney (2013) também discutem o conceito
de neuroplasticidade, que consiste na capacidade do cérebro e do sistema nervoso de mu-
dança constante para responder aos estímulos do ambiente, bem como as próprias ativida-
des do cérebro. A neurociência vem sendo demandada para responder as questões que
envolvem a interação com as tecnologias digitais e as propaladas mudanças cognitivas que
vêm ocorrendo partindo dessas mediações. Contudo, segundo os autores, são necessários
mais estudos para assegurar essas conclusões. Essas posições são reforçadas também na carta
assinada por 75 pesquisadores vinculados a centros de investigações nos Estados Unidos
(48), no Canadá (3), na Suíça (8), na Suécia (3), na Inglaterra (2), na Escócia (1), na Ale-
manha (7), na Holanda (2) e na Noruega (1), em outubro de 2014 (STANFORD CENTER
ON LONGEVITY, 2014). Os referidos investigadores assinaram a carta do Centro de
Stanford sobre Longevidade se posicionando contra os créditos de que os brain games
100 Gamificação em debate

podem reduzir ou reverter o declínio cognitivo, especialmente de pessoas idosas, conside-


rando que não existiam evidências científicas convincentes até a data da assinatura da carta.
No julgamento dos signatários, reivindicações exageradas e enganosas exploram a ansiedade
dos idosos sobre o declínio cognitivo iminente. Os investigadores encorajam a continuidade
da investigação e da validação cuidadosa neste campo (ALVES; SANTOS, 2016).
Choudhury e McKinney (2013), como Giedd (2012), também apresentam críticas rela-
cionadas à habilidade de realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, evidenciadas em estu-
dos que relataram o crescimento de erros de desempenho, já que há mudanças contínuas no
foco e no tempo para realizá-las. A mediação das técnicas de neuroimagem para diminuir as
ambiguidades dos resultados das pesquisas realizadas foi também pontuada por esses autores.
Em síntese, para os autores, as pesquisas não apontam resultados conclusivos no que se
refere tanto aos aspectos positivos quanto negativos. Existem muitos debates, mas poucas
evidências e pesquisas específicas no universo digital. Green e Bavelier (2015) são os pes-
quisadores mais citados nos estudos que investigam a relação entre a neurociência e os jogos
digitais, inclusive no artigo produzido por Choudhury e McKinney (2013). Segundo aque-
les, os dados apresentados são impressionantes, mas são necessárias mais evidências, aqui
compreendidas como “dados e informações que comprovam achados e suportam opiniões
[...] evidência pode ser vista como um conhecimento objetivo, direcionado para a verdade
e isento de vieses. De fato, ela representa uma maneira de justificar ou validar proposições”
(DRUMMOND, 2014, p. 6).
A neurociência utiliza as evidências para analisar os medos relacionados ao universo
digital, mas também para apontar uma reformulação positiva. Os autores Choudhury e
McKinney (2013, p. 208, tradução nossa) analisam esses discursos e apontam que “a análise
da lacuna entre evidência empírica e representação desses estudos demonstra como os fatos
neurocientíficos e medos surgem a partir de um processo de bricolagem”.
O quarto artigo analisado foi produzido por Beavis et al. (2015), pesquisadores da área
de educação que realizaram um levantamento com 270 sujeitos, com o objetivo de investi-
gar o nível de interação dos estudantes com os jogos digitais dentro e fora da sala de aula.
Para os autores, é necessário investigar as percepções dos estudantes, dando voz a
esses sujeitos, já que ainda é dada pouca atenção a esse aspecto, apesar do crescimento das
pesquisas que investigam o game based learning (GBL), ou aprendizagem baseada em
games. É interessante destacar que, no Brasil, as pesquisas realizadas na área de games,
no período de 1994 a 2010, tiveram um grande número de investigações na área de
educação (24 dissertações e 5 teses) e, considerando nossa tradição na pesquisa qualita-
tiva, os sujeitos são sempre escutados e valorizados (ALVES, 2013a).
A pesquisa foi realizada com estudantes da Educação Básica na faixa etária de 9 a
14 anos, em seis escolas de Queensland envolvidas no projeto Australian Research
Council,6 durante três anos, para pesquisar o uso de jogos digitais para promover o

6
Ver <http://www.arc.gov.au/>.
Brain digital games e funções executivas 101

letramento7 e a aprendizagem. É importante ressaltar que o letramento aqui não é com-


preendido apenas como a habilidade de ler e compreender o material impresso; seu en-
tendimento está mais focado na interação e na construção de sentidos com as distintas
mídias digitais.
Os resultados dessa pesquisa apresentam dados sobre o perfil dos alunos e suas intera-
ções com os jogos digitais, indicando os que mais interagem, assim como as habilidades que
são desenvolvidas. Embora essa pesquisa não traga contribuições diretas para o objeto de
estudo deste capítulo, seu resultado foi incluído por possibilitar visualizar quem são as
crianças e os adolescentes jogadores da Austrália e como essa prática tensiona as ações da
escola. Os resultados não divergem do que encontramos no Brasil, isto é, a diferença de
letramento entre professores e alunos no que se refere ao universo digital, especialmente aos
jogos digitais, bem como a dificuldade em equilibrar os aspectos lúdicos e os conteúdos
desses jogos voltados para fins educacionais. Os sujeitos relataram que os games são bons
para ensinar a resolver problemas ou a fazer coisas interessantes.
Assim, a análise desses artigos possibilitou perceber a necessidade de realizar, de forma
mais criteriosa, investigações que evidenciem as contribuições dos brain digital games para
o desenvolvimento das FE, conectando o caráter lúdico, que é elemento essencial e fundante
dos jogos analógicos ou digitais, exercitando uma escuta sensível e diferenciada dos sujeitos
(BARBIER, 2002) e interagindo com outras tecnologias, a exemplo das de imagem, como
o fMRI, para que possamos ter resultados mais conclusivos e realizar inferências mais efe-
tivas seja na pesquisa, seja no desenvolvimento e, consequentemente, nas práticas de esti-
mulação, intervenção e reabilitação.
As pesquisas de base experimental também podem dialogar com seus sujeitos, experi-
mentando uma escuta sensível que possibilite “sentir o universo afetivo, imaginário e cog-
nitivo do outro para ‘compreender do interior’ as atitudes e os comportamentos, o sistema
de ideias, de valores, de símbolos e de mitos” (BARBIER, 2002, p. 94). Tal perspectiva pode
enriquecer a leitura e a análise dos dados produzidos durante as investigações, contribuindo
para evidenciar a mediação dos brain digital games para estimular as FE, delimitando um
pequeno grupo a ser escutado.

Estimulando as funções executivas por meio dos brain digital games


As FE podem ser compreendidas pela possibilidade de nossa interação

com o mundo frente às mais diversas situações que encontramos. Por meio delas, organizamos
nosso pensamento, levando em conta as experiências e conhecimentos armazenados em nossa
memória, assim como nossas expectativas em relação ao futuro, sempre respeitando os valores
e propósitos individuais. Dessa forma, podemos estabelecer estratégias comportamentais e di-

7
Para Soares (2000, p. 72), letramento “é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um con-
texto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras pa-
lavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais
ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”.
102 Gamificação em debate

rigir nossas ações de forma objetiva, mas flexível, que permita, ao final, chegar ao objetivo de-
sejado. Além disso, são as funções executivas que suportam uma supervisão de todo o processo,
evitando erros e limitando nossas ações dentro dos padrões éticos do grupo cultural a que
pertencemos. Por tudo isso, elas são essenciais para garantir o sucesso na escola, no trabalho e
na vida cotidiana (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 87-88).

No Brasil, existem poucas investigações que aprofundam a discussão sobre a estimula-


ção das FE mediadas por tecnologias digitais, principalmente jogos, entre eles os denomi-
nados brain digital games. Destacam-se os trabalhos de Rivero, Quirino e Starling-Alves
(2012), que fazem uma revisão sistemática sobre o tema; de Rodrigues, Rivero e Bertalia
(2011), que discutem o impacto do videogame no desenvolvimento cognitivo dos adoles-
centes; de Oliveira, Ishitani e Cardoso (2013), que realizaram uma revisão sistemática sobre
jogos de computador e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), que
compromete as FE; de Ramos (2013), que realizou uma pesquisa com cem alunos e quatro
professores do Ensino Fundamental em Florianópolis que participaram de um programa
de neuroeducação baseado no uso de jogos cognitivos eletrônicos; e de Neiva e Abreu (no
prelo), que analisa a mediação do Cogmed, um treinamento de memória operacional,8 em
um programa de reabilitação em redes no ambiente escolar.
O pesquisador João Mossmann desenvolve um projeto de doutorado orientado pelo
professor Eliseo Reategui e vinculado ao Programa de Informática Educativa da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que envolve questões técnicas e artísti-
cas do jogo educativo As incríveis aventuras de Apollo & Rosetta no espaço, produzido em
parceria com os orientandos de iniciação científica da Feevale, em Nova Hamburgo (RS),
sob a coordenação da professora Débora Nice F. Barbosa.9 O referido jogo educativo tem
o objetivo de estimular especialmente o controle inibitório em crianças do Ensino Fun-
damental, tomando como referência a perspectiva dos exergames (jogos ativos) (MOSSMANN
et al., 2016).
E, finalmente, os trabalhos do Comunidades Virtuais, que já apontam os resultados do
GGF (ALVES, 2016; TOURINHO; BONFIM; ALVES, 2016; GUIMARÃES et al.,
2016; VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016; ROCHA; NERY; ALVES, 2014), inclu-
sive a dissertação de Nery (2015), que descreve o processo de investigação para produzir a
modelagem computacional dessa mídia. Outro trabalho do grupo, realizado por Alves e
Santos (2016), analisa as métricas utilizadas nos aplicativos Lumosity10 e Elevate11, que es-
timulam as FE.

8
Ver <http://www.cogmed.com.br/>.
9
Projeto Questões artísticas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas desenvolvido pelos
alunos Bruna Telles, João Mossmann, Débora Barbosa, Paulo Barros, Vitor Valadares, Richard Silva, Ramon Fischer e
Vinícius Brochetto; e projeto Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas,
desenvolvido pelos alunos Vinicius Brochetto, Vitor Valadares, Richard Silva, João Mossmann, Débora Barbosa e
Caroline de Oliveira Cardoso.
BROCHETTO, V. et al. Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas.
10
Ver <https://www.lumosity.com/>.
11
Ver <https://www.elevateapp.com/>.
Brain digital games e funções executivas 103

Dentro dessa perspectiva, é importante referenciar as pesquisas que vêm sendo desen-
volvidas pelo grupo coordenado pelo Dr. Gazzaley12 na Universidade da Califórnia, em San
Francisco, e o grupo Akili, formado por pesquisadores da área de neurociência e designers
de jogos, com financiamento e parceria das indústrias farmacêuticas Pfizer e Shire, do
National Institute of Mental Health e da fundação Autism Speaks, que vem desenvolvendo
o Project Evo.
Scott Kollins, professor de Psiquiatria e diretor do Programa de Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade da Escola de Medicina da Universidade de Duke, nos Estados
Unidos, liderou um projeto-piloto com a plataforma Evo que envolveu pesquisadores do
Centro de Pesquisa Clínica da Flórida e da SUNY Upstate Medical University de Nova
York. Ele testou oitenta crianças com idades entre 8 e 12 anos. Destas, quarenta haviam sido
diagnosticadas com TDAH, mas não tomavam medicação; as outras 40 não tinham diag-
nóstico psiquiátrico.13
Assim, apesar do crescimento das produções e das pesquisas na área, é importante
consolidar esse campo de investigação com evidências que subsidiem práticas de desenvol-
vimento, de pesquisa, clínicas e pedagógicas.
Logo, este capítulo intenciona ampliar essas contribuições a partir da avaliação do GGF
para estimular as FE de crianças na faixa etária de 8 a 12 anos, no espaço escolar, do ponto
de vista das pesquisadoras vinculadas ao projeto.14 Ressaltamos que o processo de desenvol-
vimento do gamebook já foi descrito e discutido em Nery e Alves (2014), Nery (2015),
Alves (2016), Alves e Bonfim (2016) e Cayres e Alves (2016), não sendo, portanto, objeto
deste capítulo.

Gamebook Guardiões da Floresta


O GGF se constitui em uma mídia híbrida com elementos de games e de appbook (livro
com narrativa interativa), que objetiva estimular as FE como memória de trabalho, plane-
jamento, flexibilidade cognitiva, atenção sustentada, monitoramento e controle inibitório
em crianças com e sem indicação de TDAH, na faixa etária de 8 a 12 anos.
Esse ambiente interativo, que apresenta desafios, missões, objetivos, sistema de regras e
feedback de forma lúdica, interativa e imersiva, contribui para uma perspectiva diferenciada
para a estimulação das FE, indo além de uma medida biologizante, com ênfase na medica-
lização, para uma possibilidade lúdica. Outro ponto de destaque do GGF é o desafio feito
aos leitores-jogadores para pensar e solucionar um problema sério e importante para a so-
ciedade: a questão do desmatamento florestal.
12
O Dr. Gazzaley é diretor-fundador do Imaging Center da Universidade da Califórnia (San Francisco), professor
associado de Neurologia, Fisiologia e Psiquiatria e investigador principal do Neuroscape, um laboratório de neuro-
ciência cognitiva.
13
Em correspondência por e-mail, o Dr. Kollins informou que os dados descritos foram parte de uma apresentação no
American Academy of Child and Adolescent Psychiatry’s 62nd Annual Meeting, realizado de 26 a 31 de outubro de
2015 na cidade de Santo Antônio – México.
14
É importante ressaltar que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UNEB com o parecer de número 484.384
09/12/2013.
104 Gamificação em debate

Dentro dessa perspectiva, o GGF convida os leitores-jogadores a irem além do papel


de consumidores para explorarem o universo mítico, construindo novos sentidos para os
personagens do folclore brasileiro e despertando para as sérias questões ambientais que
afetam nosso planeta.
Nessa aventura e o leitor-jogador vai ser desafiado a solucionar problemas relacionados
com a preservação da floresta. Esse desafio estimulará as funções executivas como flexibili-
dade cognitiva e memória de trabalho, entre outras. A expressão leitor-jogador é utilizada
para diferenciar a audiência do GGF, já que não é só um jogo, mas uma mídia híbrida que
envolve o ato de jogar e o de ler uma narrativa interativa.

Método de investigação e resultados


A abordagem da investigação foi de base qualitativa, caracterizando-se por uma pes-
quisa-ação que, na perspectiva de Barbier (2002), orienta-se para uma participação cres-
cente das populações envolvidas, obrigando o pesquisador a implicar-se. Para o autor, essa
implicação é percebida pela estrutura social na qual o investigador está inserido e

pelo jogo de desejos e de interesses de outros. Ele [o pesquisador] também implica os outros
por meio do seu olhar e de sua ação singular no mundo. Ele compreende, então, que as ciências
humanas são, essencialmente, ciências de interações entre sujeito e objeto de pesquisa. O pes-
quisador realiza que (sic) sua própria vida social e afetiva está presente na sua pesquisa socioló-
gica e que o imprevisto está no coração da sua prática (BARBIER, 2002, p. 14).

A investigação foi construída no diálogo com as pesquisadoras Jessica Vieira, Maria de


Fátima Dórea e Larissa Cerqueira, estudantes de psicologia do terceiro semestre da UNEB
que estão mediando a interação do grupo de crianças e pré-adolescentes matriculados no
4º ano e 5º ano da Escola Municipal Roberto Santos que sejam letrados, isto é, que já te-
nham o domínio básico da leitura e da escrita, sendo capazes de ler e entender o que está
sendo lido. Assim, tendo as investigadoras como interlocutoras, avaliamos as contribuições
da mediação do GGF para a estimulação das FE (memória de trabalho e flexibilidade
cognitiva) e da persistência em crianças na faixa etária de 8 a 12 anos.
A referida escola atende a crianças do 1º ano ao 5º ano do Ensino Fundamental, de
baixa classe média,15 isto é, apresentando renda per capita entre R$ 291 e R$ 441 por mês,
e está localizada no entorno da UNEB, no bairro do Cabula.
Para tanto, foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: interação e
análise do GGF, análise dos relatórios das pesquisadoras relacionadas e entrevista semies-
truturada. Assim, foram criados dispositivos de análise, como roteiros elegendo aspectos
relevantes para as análises do GGF, relatório e entrevista. Todos esses dados se constituíram

15
A classificação utilizada aqui considerou a indicada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), extinta em outubro
de 2015. Ver <http://www.maispr.com.br/destaque/2016/02/governo-define-que-classe-media-tem-renda-entre-
-r-291-e-r-1-019/> Acesso em: 12 ago. 2016.
Brain digital games e funções executivas 105

no mosaico, já que cada dispositivo16 subsidiou leitura, análise e discussão dos dados, dando
um significado para o fenômeno investigado.

Minigames e funções executivas


Os oito minigames apresentados no GGF possuem uma mecânica clássica, isto é, pre-
sente em vários jogos, especialmente naqueles que objetivam estimular as FE e que se de-
nominam brain digital games, a exemplo de Lumosity, Peak,17 Elevate, CogniFit18 e Cogmed,
entre outros. A diferença básica entre esses jogos e o GGF é a narrativa. Enquanto neste
todos os minigames apresentados vinculam-se diretamente à história, promovendo o enga-
jamento e a experiência do jogador, os indicados anteriormente apresentam de forma iso-
lada uma série de minigames para estimular as funções executivas do tipo casuais, isto é,
jogos com regras mais simples, fáceis de aprender e que não exigem um grande investimento
para interação e solução dos desafios. Os jogos desse tipo são produzidos para jogadores
sem muita experiência e que podem jogar em qualquer lugar, a qualquer hora e em qualquer
plataforma (no caso dos jogos indicados, os interessados podem jogar em smartphones e
tablets, por exemplo).
Essa diferença foi o ponto destacado como mais positivo pelas crianças e pré-adoles-
centes que interagiram com o GGF:

Ao realizarmos a primeira atividade na escola com a turma do 4º ano, da professora Jane, por
questões técnicas, decidimos que a interação seria apenas com os minigames, isto é, com o
ambiente de Tenda do Queixão, no qual estão os oito minigames. Essa interação era desarticu-
lada da narrativa do Gamebook e as crianças não demostraram muito interesse em jogar. Na
semana seguinte, quando foi possível interagir com o ambiente desde o início da narrativa, as
crianças ficaram imersas e comentaram a diferença (depoimento de Larissa Cerqueira em
VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).

Sentir-se parte do enredo, identificar-se com Lyu, personagem jogável representada


por uma menina de 8 anos que tem o desafio de salvar os pais e ajudar os guardiões a
proteger a Floresta Amazônica, possibilitou aos leitores-jogadores vivenciarem o papel de
interator, de protagonista da história, e fazerem escolhas, mesmo que controladas pelo
sistema do ambiente.
Para Murray (2003, p. 149):

O interator, seja ele navegador, protagonista, explorador ou construtor, faz uso desse repertório de
passos e de ritmos possíveis para improvisar uma dança particular dentre as muitas danças possíveis
previstas pelo autor. Talvez se possa dizer que o interator é o autor de uma performance em particular

16
Para Ardoino (2003, p. 80), os dispositivos se constituem em “uma organização de meios materiais e/ou intelectuais,
fazendo parte de uma estratégia de conhecimento de um objeto”.
17
Ver <http://www.peak.net/>.
18
Ver <https://www.cognifit.com/br>.
106 Gamificação em debate

dentro de um sistema de história eletrônico, ou o arquiteto de uma parte específica do mundo vir-
tual, mas precisamos distinguir essa autoria derivativa da autoria original do próprio sistema.

Participação, imersão e interatividade são palavras-chave quando pensamos no universo


dos games e, no caso específico do GGF, os jogadores são fisgados pelo universo mítico, inte-
ragindo e construindo sentidos para o ambiente, mesmo que sua autoria seja vigiada. O con-
teúdo presente na narrativa (personagens do folclore brasileiro: Saci Pererê, Lobisomem, Iara
e Curupira, entre outros, assim como a proteção da Floresta Amazônica) é próximo do uni-
verso escolar, permitindo que os leitores-jogadores estabeleçam relação entre o que já sabem
sobre o tema e o que visualizam e vivenciam no ambiente do GGF. Por exemplo, na perspec-
tiva de Larissa Cerqueira, o GGF “tem uma função lúdica, criando um momento e um espaço
abertos para que os jogos tragam conteúdos direcionados a uma temática que é discutida pela
escola, como fauna, flora e lendas da floresta, em específico a Floresta Amazônica”.
Na análise das pesquisadoras que foram interlocutoras das reflexões aqui realizadas, a
competição foi outro aspecto despertado entre os leitores-jogadores e os mobilizava a con-
tinuar jogando para conquistar mais estrelas. Assim, estavam sempre a questionar os seus
pares sobre o nível em que se encontravam, sinalizando a importância do sistema de recom-
pensa como motivador para manter o engajamento e a persistência, além de indicar um
ponto positivo do GGF, que é trazer de volta os leitores-jogadores para a interação, mesmo
depois de terem concluído todos os desafios propostos.
Segundo DiCerbo (2014, p. 18, tradução nossa):

A persistência é definida como a tarefa de continuar apesar dos obstáculos ou dificuldades. Na


literatura cognitiva, a persistência é geralmente classificada como um elemento de função exe-
cutiva e pensada para ser relacionada e autorregulada à atenção, à cognição e ao comportamento
(Anderson, 2002). Persistência pode não parecer uma habilidade distintamente do século 21,
uma vez que houve uma revisão histórica da literatura sobre a medição da persistência escrita
em 1939 (Ryans, 1939). No entanto, muitas vezes é enumerada em listas e discussões de habi-
lidades e atributos do século 21 (Fadel, 2011; Pellegrino & Hilton, 2012), porque os empregos
no século 21 são cada vez mais complexos, exigindo a aplicação sustentada de esforços para
concluir as tarefas multifacetadas (Andersson & Bergman, 2011).

Dentro dessa perspectiva, o GGF pode atuar como um espaço lúdico e prazeroso para
desenvolver a habilidade de persistir mesmo diante das dificuldades. As dificuldades pro-
postas por esse ambiente podem atuar como motor propulsor para fortalecer a capacidade
de persistir mesmo diante do novo e do desafio. Afinal, o ato de aprender não envolve só
ganhos e momentos prazerosos. Perdemos e ressignificamos velhos aprendizados e concei-
tos para dar origem aos novos.
Jessica Vieira (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) sinaliza que

de maneira geral, os sujeitos mostram-se bastante tolerantes e persistentes no jogo. Quando


possuem dificuldade, eles nos procuram para tirar as dúvidas e não desistem facilmente. Percebe-se
Brain digital games e funções executivas 107

que, em boa parte dos casos, quando conseguem menos de três estrelas como recompensa con-
tinuam tentando até conquistar a pontuação máxima.

Autores como Lewis, Swartz e Lyons (2016) apontam que existem limitadas evidências
da eficácia da recompensa por um longo tempo. A manutenção da ação da recompensa pode
estar relacionada com a motivação interna do sujeito. Os autores dialogam com a teoria da
autodeterminação (Self Determination Theory – SDT) para explicar a motivação interna. A
perspectiva SDT sugere que as recompensas externas podem diminuir a motivação interna,
mas é um fenômeno complexo que não pode ser explicado de forma tão simplista, pois, a
depender da recompensa, o comportamento pode ser internalizado e continuado. Para os
teóricos dessa perspectiva, a autonomia, a competência e a conexão entre as pessoas são
condições que podem promover níveis significativos de motivação, engajamento, desempe-
nho, persistência e criatividade.19
Essa perspectiva pode ser evidenciada nas distintas situações apontadas pelas pesquisa-
doras, inclusive no que se refere à questão do desempenho no GGF. Para Larissa Cerqueira
(VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016), “O que mais os motivava era a vontade de
finalizar o jogo e poder dizer aos seus colegas do seu feito”.
O GGF também foi apontado pelas pesquisadoras como um espaço profícuo para a
estimulação das FE, apesar das dificuldades de nível técnico, isto é, do ambiente, e dos
próprios sujeitos em compreender as consignas. Em muitos momentos, os leitores-jogado-
res adotavam a prática de tentativa e erro, que se constitui em uma estratégia mais simples
de aprendizagem.
Na perspectiva de Jessica Vieira, o GGF tem

um grande potencial para a estimulação das funções executivas, uma vez que os minigames
encaixados com a narrativa requerem dos sujeitos estratégias para a resolução de atividades
onde há a exigência de tais habilidades. De acordo com a literatura da área de neuropsicologia,
a reabilitação neuropsicológica ou estimulação pode ser feita por meio de “treinos” cognitivos,
e acredito que o jogo consiga alcançar esse objetivo.

Fátima Dórea também aponta aspectos relacionados com a plasticidade cerebral:

O Gamebook apresenta ferramentas, como os minigames, que criam como um todo um am-
biente que mantém as crianças engajadas e ao mesmo tempo estimula as habilidades executivas.
Desta forma, considerando os aspectos neuronais de plasticidade, acredito que esses processos
da jogabilidade contribuam para uma promoção das funções executivas nas crianças.

Podemos constatar no discurso das pesquisadoras que o fato de haver uma narrativa que
integre os minigames, contextualizando-os, possibilita a imersão e o engajamento dos lei-
tores-jogadores. Assim, os desafios presentes nos minigames estimulam as funções execu-
tivas na medida em que provocam cognitivamente os sujeitos a solucionarem problemas.
19
Ver <http://selfdeterminationtheory.org/theory/>.
108 Gamificação em debate

A concretização das missões e, consequentemente, o alcance dos objetivos, exigem outra


habilidade dos sujeitos imersos no universo do GGF: serem letrados. Para Jenkins (2008, p. 229):

Assim como tradicionalmente não consideramos letrado alguém que sabe ler, mas não sabe
escrever, não deveríamos supor que alguém seja letrado para as mídias porque sabe consumir,
mas não se expressar. Historicamente, restrições ao letramento advêm das tentativas de contro-
lar diversos segmentos da população – algumas sociedades adotaram o letramento universal,
outras restringiram o letramento a classes sociais específicas, além das restrições por questões
de raça ou sexo. Podemos também encarar as atuais lutas sobre letramento como tendo o efeito
de determinar quem tem o direito de participar de nossa cultura e sob quais condições.

Como foi dito, a dificuldade e o desprazer em ler os textos no universo dos jogos não se
limitam aos ambientes voltados para fins educacionais, mas a qualquer jogo que exija a
prática da leitura em uma perspectiva que envolva a interpretação e a compreensão. Assim,
no universo dos jogos digitais, nos gamebooks e nos appbooks, os seus jogadores, leitores e
leitores-jogadores precisam ter construído um sentido e um significado para o universo no
qual estão imersos, sendo capazes de compreender as consignas, mas também de explorar
telas e inventários, compreender suas funcionalidades, vencer desafios e missões, alcançar os
objetivos e ser recompensados no final. O que se observa é que o fato de as crianças terem
dificuldades em atribuir sentido ao texto escrito, que orienta sobre o que fazer na missão,
pode levar à não compreensão do que se espera do leitor-jogador e, consequentemente, ao
game over. Ou ainda, o fato de não ser letrado na mecânica do swipe (na qual o jogador
precisa passar o dedo na tela) também pode imobilizá-lo, levando à frustração, já que não
consegue avançar.
Tal fato não pode ser considerado um déficit em uma FE, mas uma questão relacionada
com a apropriação do universo letrado do ambiente:

Crianças que se mostram intolerantes geralmente possuem dificuldades na interpretação do


que está sendo pedido. Também há aquelas que são desmotivadas quando há muitos problemas
em relação ao seu usuário e o dispositivo que está utilizando, quando percebem que outras
crianças estão mais avançadas e ela não consegue (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA,
J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).

Como Jessica (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) pontua, o fato de não con-
seguir decifrar o código linguístico leva a frustração, desmotivação e intolerância, especial-
mente se os sujeitos se defrontam com o sucesso do outro. Os aspectos registrados
interferiram de forma negativa na interação das crianças e dos pré-adolescentes com o
GGF, impactando no alcance dos objetivos propostos e gerando frustração, intolerância e,
muitas vezes, desistência. Assim, a experiência do leitor-jogador que se defrontou com os
problemas ficou comprometida, desestimulando-o a retornar ao ambiente.
As pesquisadoras registram ainda três pontos bastante interessantes: o primeiro refere-se
à concepção que as crianças têm dos encontros realizados no espaço escolar para interagir
Brain digital games e funções executivas 109

com o GGF. Para eles, é a “aula de tablet”! Percebe-se que, mesmo que sejam momentos
lúdicos, de entretenimento, de lazer e prazer, sem a rigidez e a obrigação das tarefas escola-
res, o fato de ter um enquadre com local, horário, carga horária, dia da semana e atividade
previamente definida dentro da escola evidencia, para os leitores-jogadores, que a prática é
escolar e uma aula.
A mediação da professora de uma turma, que se destacou por ameaçar que, se os alunos
não se comportassem, não iriam para a “aula de tablet”, foi o segundo ponto. E a escola
continua aprisionando não apenas a inteligência, a ludicidade e o prazer de aprender, mas
os corpos. Por mais que já tenha sido discutida e criticada a partir de Foucault (2004), a
rigidez disciplinar que se instaura no ambiente escolar, inibindo os sujeitos do processo de
ensinar e aprender, de romperem as amarras que os aprisionam na construção de sentidos
para os distintos objetos do conhecimento, ainda é imposta aos alunos a desconexão com o
corpo, esquecendo que toda a aprendizagem passa por ele.
Logo, como são tão restritivas as possibilidades de brincar ao ar livre e deixar o corpo
percorrer livremente os espaços sem as amarras, ao serem confrontados entre a “aula de tablet”
e a aula de Educação Física, os leitores-jogadores não hesitaram: este foi o terceiro ponto.

Apesar da proposta trazida pelo gamebook, os sujeitos da pesquisa ainda vêm o momento de
interação como uma obrigação, o qual é chamado de “Aula de tablet”; mesmo que eles demons-
trem gostar desse momento, ainda é algo obrigatório para eles. Nas últimas interações, houve o
choque de horários da aula de educação física e a realização do jogo; os sujeitos tiveram certa
resistência em sair da aula para realizar a interação. Tendo em vista esse ponto, penso que esse
posicionamento ocorreu pois a aula de educação física é o único momento, ofertado a eles no
qual podem sair daquele espaço fechado (sala de aula) e agir livremente como uma real brinca-
deira que eles realizariam em casa ou na rua com os amigos. Naquele momento, eles poderiam
se ver mais “livres” (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.;
DOREA, M. F., 2016).

A escolha das crianças e dos pré-adolescentes evidencia que a interação com a tecnolo-
gia digital, os dispositivos móveis, os aplicativos e a conexão em tempo real com o mundo
podem ser atrativos, mas esses sujeitos sinalizam que esses prazeres podem e devem convi-
ver com outras práticas nas quais é necessário estar com o outro, explorar o espaço físico,
sentir o corpo, praticar esportes. Enfim, viver para além do digital, deixar o corpo livre, sem
docilizá-lo, libertando a inteligência aprisionada que, na perspectiva de Fernadez (1991, p.
27), se caracteriza pela “criatividade encapsulada, a curiosidade anulada, a renúncia a pensar,
conhecer e crescer”.

É o GGF um brain digital game?


A discussão em torno do que é um brain digital game iniciou este capítulo, apontando
para a existência de diferentes ambientes, sejam games, aplicativos ou outros artefatos que
vêm se colocando nessa categoria, na medida em que criam situações que provocam os
110 Gamificação em debate

usuários a solucionarem problemas que exigem a atuação das FE. Dentro dessa perspectiva,
o GGF é um brain digital game. Todavia, é muito mais que isso, na medida em que enlaça
o leitor-jogador na sua narrativa, engajando-o e colocando-o no lugar do protagonista da
história, uma história que se inter-relaciona com os minigames que estimulam e desafiam
as FE e que provocam o imaginário desse sujeito a fim de que produza novas narrativas,
interagindo com distintas linguagens. Além disso, o GGF valoriza a cultura nacional, colo-
cando os personagens míticos do folclore brasileiro como heróis e rompendo com ideias
maniqueístas, por exemplo, de que o lobisomem é sempre mau.
Ainda ressalta a importância da proteção e da preservação da fauna e da flora das nossas
matas, não apenas representadas pela Floresta Amazônica, colocando o leitor-jogador como
corresponsável nesse processo.
Essa gama de possibilidades pode ser explorada no espaço clínico, no espaço escolar, nas
brinquedotecas ou simplesmente na interação com o GGF em casa, promovendo o desen-
volvimento de distintas funções executivas.
A flexibilidade cognitiva e a memória de trabalho compõem o conjunto de funções
que lastreiam o desenvolvimento cognitivo do ser humano, que, ao longo da sua existên-
cia, vivencia situações que podem potencializá-las. Uma destas é a interação com os arte-
fatos digitais, especialmente aqueles produzidos com esses objetivos. Mas é importante
ressaltar que as situações e as provocações cognitivas que ocorrem no universo in game
atuam como gatilhos para promover a atuação do sujeito out game. É dentro desse con-
texto que se insere o GGF.
Vale ressaltar também que, no espaço escolar, é possível extrapolar o universo criado no
GGF, incentivando os usuários à construção de novas narrativas em uma perspectiva trans-
midiática, favorecendo a estimulação das FE como planejamento, memória operacional e
flexibilidade cognitiva, entre outras, na medida em que se propõe aos sujeitos a criação de
outras leituras em torno da narrativa do GGF, como histórias em quadrinhos, fanfiction,20
contos, novos jogos etc.
Assim, considerando a escuta sensível, estabelecida a partir da minha imersão como
coordenadora do projeto e a interlocução com as pesquisadoras, foi possível apresentar uma
avaliação preliminar das contribuições do GGF no espaço escolar, apontando evidências
iniciais dessa mídia para a estimulação das FE, bem como para produzir novas versões que
se aproximem mais do desejo e do interesse dos leitores-jogadores.
Por fim, os resultados apontam e ratificam a premissa de Diamond et al. (2007) de que
é possível criar espaços de estimulação, inclusive na escola, que poderão contribuir para a
diminuição do déficit das FE dos sujeitos em processo de escolarização. Contudo, é funda-
mental continuar a realização da investigação, consolidando esses dados e contribuindo de
forma significativa para a aprendizagem dos alunos da rede pública de Salvador, especial-
mente para os alunos da Escola Municipal Roberto Santos.21
20
O termo fanfiction ou fanfic refere-se “originalmente, a qualquer narração em prosa com histórias e personagens ex-
traídos dos conteúdos dos meios de comunicação de massa” (JENKINS, 2008, p. 355).
21
A pesquisa ainda se encontra em andamento, e cinquenta crianças e quatro professores já interagiram com o GGF. O
nosso objetivo é envolver todas as crianças da escola na investigação.
Brain digital games e funções executivas 111

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Fundamentos da gamificação na
geração e na mediação do
8
conhecimento
Raul Inácio Busarello

A tendência da sociedade contemporânea de se interessar por jogos influencia o desen-


volvimento de novos produtos e sistemas. Nesse campo, o envolvimento de qualquer agente
tem base em estruturas de recompensa, reforço e feedback suportadas por mecânicas e siste-
máticas que potencializam o envolvimento do indivíduo (ZICHERMANN; CUNNINGHAM,
2011). Furió et al. (2013) consideram que o ato de jogar, além de proporcionar prazer, é um
meio de o indivíduo desenvolver habilidades cognitivas, estimulando a atenção e a memória.
Jogos são capazes de promover contextos lúdicos e ficcionais na forma de narrativas,
imagens e sons, favorecendo o processo de aprendizagem (DOMÍNGUEZ et al., 2013).
No aspecto narrativo, os jogos permitem que o indivíduo vivencie um fragmento de espaço
e tempo característicos da vida real em um contexto ficcional e controlado (COLLANTES,
2013). Em todos esses contextos, há regras e objetivos definidos pelos quais os jogadores
basearão suas ações. Dessa forma, no processo do jogo, o desenvolvimento dos aconteci-
mentos pode ser mensurado, e os resultados, definidos – perder, ganhar, empatar, superar
etc. As experiências oferecidas pelos jogos, como resolver enigmas e receber respostas, ati-
vam no cérebro o sistema de dopamina que está associado à sensação de prazer (CLEMENTI,
2014). Além disso, em um jogo, o indivíduo tem a oportunidade de superar desafios e
perder, mas não de forma permanente. Ou seja, o jogador tem a oportunidade de refazer a
tarefa, buscando seu êxito. Isso serve como motivador para uma busca constante de melho-
rias e maneiras novas de encontrar soluções.
Para Kapp (2012), os elementos utilizados nos jogos ou em atividades divertidas têm o
intuito de promover o engajamento e o aprendizado, culminando em comportamentos
positivos em relação a essas práticas, que resultam no conceito de gamificação. Johnson et
al. (2014) complementam, colocando que essa tendência tem feito com que aspectos rela-
cionados ao ato de jogar sejam utilizados como estratégias motivacionais em outros setores,
como forças armadas, comércio, indústria, educação e meio corporativo.
A gamificação surge, nesse sentido, como o princípio da apropriação de elementos dos
jogos em contextos, produtos e serviços não focados em jogos, mas com a intenção de
116 Gamificação em debate

promover a motivação e estimular o comportamento do indivíduo (DETERDING, 2012).


Para Vianna et al. (2013), a gamificação desperta emoções positivas e explora aptidões,
atreladas a recompensas virtuais ou físicas ao se executar determinada tarefa. Por isso, é
aplicada em situações e circunstâncias que exijam a criação ou a adaptação da experiência
do usuário a um produto, serviço ou processo. No caso da aprendizagem, ambientes gami-
ficados contribuem para a criação de desafios emocionantes e recompensas a estudantes por
sua dedicação e sua eficiência e oferecem um espaço para que líderes apareçam espontane-
amente ( JOHNSON et al., 2014).
Nesse contexto, este capítulo parte de uma revisão e de uma reflexão teóricas, tendo
como objetivo discutir o conceito de gamificação a partir de elementos que fundamentam
sua utilização no processo de geração e mediação do conhecimento, explicitados um es-
quema em forma de pentágono que apresenta os cinco tópicos que constituem a base do
fenômeno da gamificação. Dessa forma, neste capítulo evidenciam-se questões conceituais
sobre o fenômeno da gamificação, abordando tanto as particularidades das suas estruturas
de base quanto a sua relação com o conhecimento.

Conceitos sobre gamificação


A gamificação parte do princípio de se pensar e agir como em jogo, mas em contexto
fora de jogo. Para isso, utiliza sistemáticas, mecânicas e dinâmicas do ato de jogar em
outras ações e contextos. A gamificação é formada por quatro princípios – a base nos
jogos, as mecânicas, as estéticas e o pensamento de jogo – com foco no engajamento de
pessoas, na motivação de ações, na promoção do aprendizado e na solução de problemas
(KAPP, 2012). A gamificação abrange a utilização de mecanismos e sistemáticas de jogos
para a resolução de problemas e para a motivação e o engajamento de determinado pú-
blico (VIANNA et al., 2013). De forma análoga, Zichermann e Cunningham (2011)
entendem que a gamificação explora os níveis de engajamento do indivíduo para a reso-
lução de problemas. Do ponto de vista emocional, a gamificação é um processo de me-
lhoria de serviços, objetos ou ambientes com base em experiências de elementos de jogos
e comportamento dos indivíduos (HAMARI; KOIVISTO; SARSA, 2014). Para Busarello
(2016, p. 18), gamificação

é um sistema utilizado para a resolução de problemas através da elevação e manutenção dos


níveis de engajamento por meio de estímulos à motivação intrínseca do indivíduo. Utiliza ce-
nários lúdicos para simulação e exploração de fenômenos com objetivos extrínsecos, apoiados
em elementos utilizados e criados em jogos.

Assim, a gamificação tem como princípio despertar emoções positivas e explorar


aptidões atreladas a recompensas virtuais ou físicas durante a execução de determinada
tarefa; por isso, é aplicada em situações e circunstâncias que exijam a criação ou a
Fundamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 117

adaptação da experiência do usuário a um produto, serviço ou processo (VIANNA et al.,


2013). Sua utilização, segundo Campigotto, McEwen e Demmans (2013), contribui para
a criação de um ambiente ímpar de aprendizagem, com eficácia na retenção da atenção
do aluno.
De acordo com Seaborn e Fels (2015), os conceitos de jogos e de gamificação são
distintos, e o segundo não se limita apenas à utilização das mecânicas do primeiro. Kapp
(2012) apresenta a diferença entre os serious games e a gamificação: o primeiro consiste
em uma experiência desenvolvida por meio de mecânicas e da forma de se pensar como
em jogos, com finalidade de educar indivíduos sobre um conteúdo específico. As ativida-
des concentram-se na utilização de pontos, recompensas e distintivos; contudo, o pensar
como em jogo é aplicado de forma cuidadosa, com a intenção de se resolver problemas e
encorajar a aprendizagem, usando, para isso, todos os elementos de jogos que forem
apropriados a práticas determinadas. A gamificação, por outro lado, busca estimular os
objetivos intrínsecos do indivíduo, utilizando as bases aplicadas nos jogos em contextos
fora do jogo.
A natureza de cooperação das atividades com base em jogos colabora para o maior
foco dos indivíduos para resolverem problemas. De-Marcos et al. (2014) complemen-
tam que a gamificação utiliza, além dos elementos de jogo, técnicas de design de jogos,
com o intuito de envolver indivíduos e resolver problemas em contextos de não jogo.
Segundo Seaborn e Fels (2015), gamificação corresponde ao ato de se vivenciar uma
experiência quando a interação gamificada acontece a partir do objeto, das ferramentas
deste e do contexto. Para as autoras, “gamificação é uma abordagem de desenvolvimento
para elevar a motivação, o engajamento e a satisfação em um contexto de não jogo,
mediado por computador” (SEABORN; FELS, 2015, p. 29, tradução nossa). Diferen-
temente do jogo, o propósito da gamificação não é apenas entretenimento. O engaja-
mento e a motivação são objetivos explícitos da gamificação, entendendo-se o primeiro
como o responsável por reter a atenção do indivíduo e envolvê-lo no processo criado
(KAPP, 2012).
Na visão de Simões, Redondo e Vilas (2013), a gamificação possui um grande poten-
cial para tornar o processo de aprendizagem mais atraente e motivador, em virtude de
deixá-lo divertido e agradável para o aluno, aumentando, dessa forma, o nível de compro-
misso do indivíduo. Sua utilização contribui para a criação de um ambiente diferenciado
de aprendizagem, levando à retenção da atenção do aluno (CAMPIGOTTO; MCEWEN;
DEMMANS, 2013).
Nesse contexto, identifica-se que a gamificação parte de cinco tópicos estruturais:
aprendizagem, narrativa, motivação e engajamento, pensar como jogos e mecânicas
de jogos:
118 Gamificação em debate

• Sair da rotina
• Incentivar o comportamento
• Adaptação do conteúdo
• Aguçar a curiosidade

aprendizagem

mecânicas
narrativa de jogos
• Viver a história Mecânica: orienta as ações
• Domínio da história e gamificação Dinâmica: interação com
dos elementos interativos mecânicas
• Histórias são Estética: emoções na
engajadoras e mídias interação
para movimentação

motivação e pensar como


engajamento em jogos
intrínseca • extrínseca
Fantasia
Interesse Meta Regras e metas
Desafio
Satisfação Regras Estimulos sensoriais
Fantasia
Envolvimento Feedback Desafios
Curiosidade
Confiança Participação Mistérios
Controle

Figura 8.1 – Variáveis que contemplam a gamificação. Fonte: Busarello (2016).

Os tópicos do gráfico são explorados nas próximas seções.

Aprendizagem e gamificação
A aprendizagem é motivadora quando a atividade se torna divertida (AMORY et al.,
1999). Muitos dos elementos da gamificação são baseados em psicologias educacionais,
gerando outro nível de interesse e uma nova maneira de agrupar os elementos de aprendi-
zagem em um ambiente promotor de engajamento e de motivação para os alunos (KAPP,
2012). De-Marcos et al. (2014) salientam que o uso da gamificação tem potencial em
processos educacionais nos quais se encontram, com frequência, alunos desmotivados nas
atividades de aprendizagem. Simões, Redondo e Vilas (2013) entendem que, no dia a dia,
os indivíduos não são confrontados com atividades motivacionais, e a gamificação tem
potencial para induzir a motivação nessas rotinas.
Fundamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 119

Como teoria de aprendizagem (BIRÓ, 2014), a gamificação primeiramente utiliza um


sistema de avaliação baseado no envolvimento em comunidade (CLEMENTI, 2014).
Como segundo ponto, pode suportar uma série de diferentes caminhos de aprendizagem,
sem perder o foco no objetivo principal. O seu terceiro aspecto é a visualidade em processos
da aprendizagem, ou seja, a clareza dos avanços dentro do processo de aprendizagem rela-
cionados aos caminhos escolhidos pelo aluno.
De forma geral, compreende-se que a gamificação, ao estabelecer diferentes caminhos
para a aprendizagem, é capaz de adaptar o conteúdo de um domínio específico para diferentes
perfis de alunos, apresentando distintos métodos para que o indivíduo possa adquirir co-
nhecimento (BIRÓ, 2014). Para a gamificação, o conhecimento deve ser externo e, de forma
parcial, comum aos alunos. O aluno, por sua vez, é o agente mais importante no processo
de aprendizagem, uma vez que a escolha do percurso para o conhecimento parte dele pró-
prio. Para isso, o ambiente de aprendizagem deve ter como base traços dos alunos e prever
suas atitudes. O professor é o agente promotor dos níveis de engajamento no processo, in-
fluenciando a motivação do aluno no ambiente. Nesse sentido, Kapp (2012) explicita que a
essência da gamificação está na geração de um ambiente que promova a diversidade de
caminhos de aprendizagem e os sistemas de decisão e recompensa por parte dos alunos,
sempre buscando elevar os níveis motivacionais e de engajamento dentro do processo.

Gamificação para a motivação e o engajamento


A gamificação distingue-se por uma abordagem para acelerar a curva de experiência do
aluno, favorecendo o aprendizado de conteúdos e sistemas complexos (KAPP, 2012).
De-Marcos et al. (2014) identificam que a gamificação está baseada em teorias psicológicas
que utilizam modelos motivacionais. Nesse aspecto, Domínguez et al. (2013) reconhecem
que a motivação no ato de jogar abrange as áreas cognitiva, emocional e social do indivíduo.
Como os limites entre essas áreas não são definidos, geralmente as mecânicas e as dinâmi-
cas utilizadas no processo de gamificação abrangem todas elas ao mesmo tempo.
O ato de jogar envolve a área cognitiva do indivíduo ao passo que sua sistemática esta-
belece um conjunto complexo de regras orientadas a partir de tarefas e etapas menores.
Essas etapas são desenvolvidas como ciclos de especialização compostos por tarefas curtas
e rápidas, em que o indivíduo repetidamente busca tentativas de sua conclusão. Esse pro-
cesso, com base em tentativa e erro, eleva o nível de habilidade necessário para que o indi-
víduo resolva aquele determinado ciclo. Para que permaneça envolvido nesse processo, o
sistema deve fornecer as informações necessárias para que o sujeito desenvolva o conheci-
mento adequado e a habilidade para interagir ao longo dele.
A área emocional, por sua vez, denota a competência do indivíduo e se concentra
principalmente nos conceitos de sucesso e fracasso (DOMÍNGUEZ et al., 2013). A
sistemática de jogos parte do princípio de que, para aumentar os sentimentos positivos
do indivíduo, o sucesso na realização das tarefas deve ser reconhecido de forma imediata
pelos jogadores. Do contrário, a realização de tarefas pode contribuir para o aumento da
ansiedade do indivíduo.
120 Gamificação em debate

A área social denota o relacionamento, ou seja, a interação dos indivíduos durante a


utilização do sistema (CLEMENTI, 2014). Essa dimensão aborda tanto a socialização
como a colaboração e a concorrência. Do ponto de vista social, estimular a concorrência
pode gerar tanto resultados construtivos como destrutivos (HANUS; FOX, 2015). Uma
concorrência é construtiva quando as competições são experiências divertidas e estruturadas
de forma a elevar as relações interpessoais positivas dos participantes. Do contrário, a con-
corrência torna-se destrutiva quando o resultado da competição é prejudicial para ao menos
um dos integrantes.
No caso da gamificação aplicada ao processo de aprendizagem, salienta-se que esses
conceitos devem ser utilizados na concepção de ideias educacionais e em objetos de apren-
dizagem, buscando torná-los mais motivadores. Ambientes que interagem com as emoções
e os desejos dos usuários são eficazes para elevar os níveis de engajamento (ZICHERMANN;
CUNNINGHAM, 2011). Esses autores salientam que, por meio dos mecanismos da ga-
mificação, é possível alinhar os interesses dos criadores dos artefatos e dos objetos com as
motivações dos usuários.
Determinadas recompensas extrínsecas podem destruir as motivações intrínsecas, afe-
tando o aspecto motivacional do indivíduo (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011).
Dessa forma, deve-se ter cautela ao utilizar motivações extrínsecas para aumentar os níveis
da motivação intrínseca (HANUS; FOX, 2015). O esforço ao realizar competições e buscar
recompensas tende a diminuir a motivação intrínseca, principalmente quando o indivíduo
encontra-se motivado para realizar uma determinada tarefa. De modo geral, ao se oferecer
recompensas esperadas para pessoas interessadas em um dado assunto ou contexto, isso
pode fazer o sujeito mudar da motivação “querer realizar” para a motivação “fazer para
conquistar a recompensa”. Entretanto, os autores reconhecem que receber uma recompensa
pela realização de uma atividade desinteressante pode distrair o indivíduo da tarefa, tor-
nando a prática interessante. Recompensas extrínsecas são menos efetivas que as intrínsecas,
contudo as duas formas de motivação determinam o comportamento do indivíduo (GAR-
RIS; AHLERS; DRISKELL, 2002).
Busarello et al. (2014) consideram que o complicador na criação de ambientes e ar-
tefatos que utilizam a gamificação é saber como estimular efetivamente os dois tipos de
motivação, tanto de forma conjunta como separadamente. Para a gamificação, a combi-
nação efetiva das motivações intrínseca e extrínseca aumenta o nível de motivação e en-
gajamento do sujeito. Isso sugere que a utilização da gamificação deve ser vista com
cautela, pois, se por um lado pode auxiliar na motivação do aluno que por alguma razão
se encontra entediado na tarefa educacional, por outro pode prejudicar os níveis motiva-
cionais do aluno que já está motivado para tal atividade. Além disso, há três elementos-
-chave que tornam motivacionais os sistemas baseados em jogos (BUSARELLO, 2016):
o desafio, que está associado à percepção do indivíduo, influenciando na forma como este
percebe as partes do sistema; a fantasia, que se traduz em um ambiente que evoca imagens
mentais de coisas não presentes na experiência real daquele indivíduo envolvido; e a
curiosidade, que é estimulada quando se apresentam bons níveis de informações comple-
xas em um ambiente excitante.
Fundamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 121

De acordo com Garris, Ahlers e Driskell (2002), os jogos desencadeiam repetidos ciclos
de julgamento do jogador, comportamento do jogo e feedback. Esses ciclos dizem respeito a
um círculo de dependências com a intenção de: (1) buscar o comportamento desejável do
aluno; (2) possibilitar que os alunos primeiramente experimentem reações emocionais e
cognitivas desejáveis; e (3) que cada resultado da interação com o sistema e com os feedbacks
seja gerado pelo jogo.

Narrativa explorada na gamificação


Ao acompanhar uma narrativa, o indivíduo tem a experiência de uma história em que
não está incluído como ator (COLLANTES, 2013). Ou seja, o indivíduo participa “ao vivo”
da história de outro agente, mas sem a possibilidade de interferência no seu curso. Já no caso
do jogo, o indivíduo “vive” a história quando o desenvolvimento da narrativa depende da
agência deste para sua resolução. Ao jogar, o sujeito experimenta diretamente a imersão,
agindo como protagonista. As possibilidades da narrativa no meio digital contribuem para
a construção de histórias participativas, uma vez que o espectador deve agir ativamente no
curso da trama (MURRAY, 2003). Percebe-se que as características advindas dos jogos
favorecem essa atividade do indivíduo. No caso da narrativa hipermídia, identifica-se que o
espectador pode viver a história como nos jogos.
Kapp (2012) identifica que jogos educativos fundem as tarefas relacionadas aos domí-
nios, com a narrativa da história e elementos interativos. Isso permite que o aluno tenha
experiências viciantes com a história, por meio da relação entre o conteúdo de aprendiza-
gem e os personagens, o enredo, a tensão e a resolução. Os elementos das histórias não são
apenas engajadores, mas servem como guia para que o aluno se movimente no ambiente,
contribuindo para sua satisfação e para o alcance de seus objetivos. É possível resumir os
elementos dos jogos em: personagem, competição e regras de jogo (SCHMITZ; KLE-
MKE; SPECHT, 2012). De forma análoga, identifica-se que, na construção de uma histó-
ria, esses elementos são explorados de modos diversos. Toda história abrange um personagem
realizando ações em algum lugar, que devem respeitar as regras do ambiente narrativo e da
história criada (FIELD, 2009). Murray (2003) identifica, igualmente, que, no processo de
imersão, o usuário está disposto a obedecer às regras daquele novo universo, e isso envolve
tanto os aspectos das regras de navegação como da própria história. No caso do jogo, a
narrativa se desenvolve por meio de uma sequencialidade articulada de ações que determi-
nam o tempo e levam a transposições sucessivas de situações e estados (COLLANTES,
2013). Essa mesma característica de divisão sequencial é percebida na forma clássica de
narrativa linear, com a divisão em três atos de uma história: apresentação, confrontação e
resolução (FIELD, 2009).
Vianna et al. (2013) compreendem que a utilização de elementos da gamificação con-
tribui para o despertar de emoções do sujeito por meio da vivência de uma experiência de
forma intensificada. Por ser o jogo uma forma narrativa, Gordon (2006) destaca que am-
bientes narrativos exploram histórias de experiências, e essas experiências são fundamentais
para constituir a memória, a comunicação e o próprio conhecimento dos indivíduos.
122 Gamificação em debate

Elementos dos jogos na gamificação


Os elementos dos jogos são muitas vezes abstratos e difíceis de serem especificados
(SEABORN; FELS, 2015). Entende-se que, em qualquer contexto de jogo, o indivíduo
assume um personagem e todas as suas ações são coerentes com esse papel assumido. O joga-
dor aceita as regras estabelecidas pelo jogo para atingir algum objetivo por meio da supera-
ção de uma série de obstáculos. Essa relação em que o sujeito se transforma em outro,
adaptado às condições impostas no jogo, também pode ser explorada na gamificação. Nesse
aspecto, identifica-se que os jogos são constituídos por metas claras, divididas em objetivos
de curto prazo (DE-MARCOS et al., 2014). Isso sugere uma sensação de progressão con-
tínua e certa frequência de recompensas.
Collantes (2013), ao comparar a estrutura dos jogos com a das narrativas, estabelece
que, ao se desenvolverem os acontecimentos em uma história, cria-se um mundo indepen-
dente da realidade do indivíduo, apesar de muitas vezes esse novo universo se referir à vida
real. Da mesma forma, nos jogos são vividas realidades independentes que seguem uma
lógica própria e uma natureza diferente da realidade cotidiana. A existência da narrativa
tanto no jogo como na história é fundamentada em regras próprias com caráter generativo,
ou seja, com capacidade de gerar outras novas regras. Utilizar a história como um elemento
no contexto gamificado fornece relevância e significado para as experiências vividas pelo
indivíduo, fornecendo contextos para a aplicação das tarefas (KAPP, 2012). A união dos
jogos com conceitos das narrativas fornece material para a criação de histórias interativas
que possibilitam o engajamento do indivíduo, levando-o a prosseguir na tarefa.
Zichermann e Cunningham (2011) indicam que os mecanismos encontrados em
jogos funcionam como um motor motivacional no indivíduo, contribuindo para o pro-
cesso de engajamento nos mais variados aspectos e ambientes. Para Vianna et al. (2013),
há quatro características de mecânicas dos jogos que são essenciais ao se desenvolver um
artefato com base em gamificação: (1) a meta é o motivo pelo qual o indivíduo realiza a
atividade ‒ resume-se no propósito designado para tal atividade, o qual o indivíduo per-
segue constantemente; (2) as regras têm a função de determinar a forma como o indivíduo
deve se comportar e agir para cumprir os desafios do ambiente ‒ favorecem a liberação
da criatividade e do pensamento estratégico, uma vez que buscam ajustar o nível de
complexidade do sujeito às atividades que devem ser realizadas; (3) o sistema de feedback
define as respostas do sistema ao indivíduo ‒ são as ferramentas por meio das quais o
indivíduo se orienta sobre sua posição com relação aos elementos que regulam a interação
dentro do universo; e (4) a participação voluntária estabelece que só há a real interação
entre o indivíduo e o sistema quando o primeiro está disposto a se relacionar com os
elementos do segundo ‒ para isso, o indivíduo deve aceitar a meta, as regras e o sistema
de feedback propostos pelo ambiente.
Elementos como narrativa, interatividade, suporte gráfico, recompensas, competitivi-
dade e ambiente virtual, entre outros, são construídos para criar uma relação de proximidade
com metas, regras, feedback e participação voluntária (VIANNA et al., 2013). Garris, Ahlers
e Driskell (2002) indicam a interatividade, as dinâmicas visuais, as regras, os objetivos, os
Fundamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 123

papéis interpretados, as formas de controle, os múltiplos caminhos para o objetivo, os desa-


fios e os riscos, a estratégia, a competição e as mudanças como tópicos com potencial de
serem explorados em contextos gamificados. Entretanto, dentro de suas pesquisas, abordam
seis grandes categorias que são aplicadas em qualquer contexto que envolva a sistemática
de jogos com propósitos instrucionais: (1) fantasia: define um ambiente que promove situ-
ações – cognitivas, físicas ou sociais – que não existem; (2) regras e metas: as regras são a
base para a estruturação das metas de um jogo, em que as restrições e regras do mundo
normal são substituídas por aquelas no tempo e no espaço fixos do novo universo; (3) estí-
mulos sensoriais: ao interagir em um mundo imaginativo, formado por outra realidade –
com diferentes regras –, as sensações e as percepções dos indivíduos são distorcidas para se
associarem a esse novo universo; (4) desafios: os indivíduos têm interesse em resolver desa-
fios que não sejam nem tão fáceis nem tão difíceis de serem superados; (5) mistério: a
curiosidade é um dos elementos motivadores para a aprendizagem, uma vez que parece ser
uma tendência humana para se entender o mundo; e (6) sensação de controle: tem como
referência a capacidade de fazer regulações ou comandar algo, além do exercício de autori-
dade sobre alguma coisa.
Dentre outros elementos de destaque nos jogos, e incorporados nas estratégias de
gamificação, destaca-se a possibilidade de o indivíduo se recuperar ao cometer erros,
podendo repetir várias vezes uma dada tarefa (HANUS; FOX, 2015). No processo de
aprendizagem, essa liberdade de fracassar nas atividades permite aos alunos aumentar seu
envolvimento por meio de experimentações sem medo. Nessa perspectiva, Simões, Redondo
e Vilas (2013) entendem que, em um contexto educacional, aspectos dos jogos, como
repetição de experimentos, ciclos rápidos de resposta, níveis crescentes de dificuldade,
diferentes possibilidades de caminhos, reconhecimento e recompensa, são significativos
para a aprendizagem.

Exploração das mecânicas dos jogos na gamificação


Entende-se que, para manter a motivação do indivíduo em qualquer ambiente, deve-se
fornecer a ele estímulos de alta qualidade e com diferentes formatos (LI; GROSSMAN;
FITZMAURICE, 2012). Vianna et al. (2013) salientam que, para se chegar a isso, na
construção de qualquer artefato, é preciso apropriar-se dos elementos mais eficientes de um
jogo – mecânicas, dinâmicas e estética – para a criação e a adaptação das experiências do
indivíduo. Zichermann e Cunningham (2011) colocam que, no caso dos elementos dos
jogos, os comportamentos intrínsecos estão baseados em três relações: as mecânicas, que
compõem os elementos para o funcionamento do jogo e permitem as orientações nas ações
do jogador; as dinâmicas, que são as interações entre o jogador e as mecânicas do jogo; e as
estéticas, que dizem respeito às emoções do jogador durante a interação com o jogo. Essa
relação resulta das relações anteriores entre as mecânicas e as dinâmicas, que levam à criação
das emoções do jogador.
Para Clementi (2014), as dinâmicas são o esboço do sistema, enquanto as mecânicas
são os processos que levam às ações dos indivíduos, além de cada dinâmica levar ao
124 Gamificação em debate

desenvolvimento de uma mecânica. Por outro lado, a mecânica de um jogo é expressa na


sua funcionalidade, representando o aspecto fundamental para qualquer contexto gami-
ficado (MUNTEAN, 2011). Todavia, Kapp (2012) alerta que nem todas as mecânicas dos
jogos devem ser utilizadas em um contexto gamificado, como emblemas, pontos e recom-
pensas. Muitas dessas estão atreladas a motivações externas, o que pode prejudicar o en-
gajamento e a motivação do indivíduo. Por outro lado, os elementos com poder em um
ambiente gamificado são: narrativa, visualização de personagens e resolução de problemas.
Esses são os fundamentos pelos quais um sistema gamificado é construído, favorecendo
que o engajamento e a aprendizagem sejam passados para outro nível.

Considerações finais
Este capítulo partiu de uma revisão e uma reflexão teóricas que objetivaram a discussão
do conceito de gamificação, partindo de cinco tópicos que a fundamentam. Entende-se,
dessa maneira, que a gamificação compreende uma estratégia de resolução de problemas,
investindo na elevação e na manutenção dos níveis de motivação e engajamento. Utiliza,
para isso, bases e sistemáticas comuns aos jogos e teorias sobre narrativa. Por outro lado,
busca envolver a experiência completa do indivíduo, transportando-o para um universo
controlado. Nesse ambiente, envolve o indivíduo em novas regras, acelerando a geração e a
aplicação do conhecimento.
A gamificação surte efeitos positivos no processo de aprendizagem, enfatizando o en-
gajamento do sujeito e contribuindo para o melhor aproveitamento da mediação e da cons-
trução do conhecimento. Concentra esforços na autonomia do aluno em um ambiente
controlado, em que os conteúdos de domínios específicos são subdivididos e tratados como
etapas em um contexto envolvente, correlacionando aspectos cognitivos, sociais e emocio-
nais. Por outro lado, o foco da gamificação está em explorar as motivações internas dos
alunos e, nesse caso, a aplicação pura e simples de mecânicas básicas dos jogos no processo
pode acarretar resultados negativos. Basicamente, para que seja efetiva, deve-se investir em
situações fora do cotidiano, favorecendo a aplicação da curiosidade, da satisfação e da con-
fiança do aluno.
Os elementos comuns aos jogos, como narrativas, metas, regras, feedbacks, desafios, es-
tímulos e a possibilidade de realização de um caminho próprio, contribuem para a constru-
ção da experiência dentro do ambiente gamificado, favorecendo a participação voluntária
do indivíduo. Dessa maneira, a aplicação de mecânicas e dinâmicas específicas, comparti-
lhadas com os jogos, contribuem para a participação no sistema gamificado.

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Gamificação e o processo de concepção
de bens de consumo
9
André Neves
Clarissa Sóter
Simone Barros

O design
No contexto deste capítulo, tratamos o design como atividade pela qual se projetam
todos os tipos de artefatos, incluindo utensílios, vestimentas, peças gráficas, livros, máqui-
nas, ambientes, softwares, games etc.
Especificando o conceito, adotamos a abordagem moderna da filosofia, com o design
referindo-se a objetividade, propósito, se interpondo entre ideias clássicas de sujeito e ob-
jeto. Entendemos o design, portanto, como o oposto à criação arbitrária, sem objetivo.

Design enquanto processo


Não pretendemos, aqui, apresentar uma visão ampla e detalhada da evolução dos pro-
cessos e dos métodos de design, no entanto, descreveremos de forma sucinta essa evolução
para podermos contextualizar nossa investigação.
Iniciamos nossa descrição a partir da década de 1960, quando as pesquisas envolvendo
os processos e os métodos de design ganharam volume. Motivados pelo aumento da com-
plexidade dos problemas e da quantidade de informação envolvida na busca de soluções e,
principalmente, pela grande e variada demanda de projetos, buscava-se abrir a caixa-preta
do processo de concepção para tornar clara e transparente a atividade de design. A intenção
aí era essencialmente permitir a reprodutibilidade da ação.
Surge, então, uma primeira geração de processos de design, estruturada de forma linear,
em que cada fase do processo ocorre após o fechamento da anterior. De uma maneira geral,
inicia-se o processo por uma ampliação de informações a respeito do problema, seguida por
fases de geração de alternativas e, depois, seleção da melhor solução.
Nesse período, os produtos eram desenvolvidos e lançados no mercado para, então, se
verificar sua aceitação; o caminho de concepção ia da “fábrica” para o usuário. Dentre os
128 Gamificação em debate

métodos utilizados no processo de design da época, destacamos o brainstorming clássico, a


caixa morfológica e o diferencial semântico. Esses processos foram influenciados, principal-
mente, pela indústria aeroespacial e têm como autores marcantes Asimov (1962), Alexander
(1964), Rittel (1984), Jones (1992), Munari (1998) e Löbach (2001).
Com o avanço das pesquisas em metodologia e o amadurecimento da atividade do
design, surge uma segunda geração de processos de design, marcada, principalmente, pelo
fato de as fases não ocorrerem mais de forma linear, mas cíclica, em que uma fase reali-
menta a outra e o designer pode voltar à fase anterior em qualquer ponto do processo.
Nessa segunda geração, surgem os métodos centrados no usuário, argumentativos, com
soluções reguladas pela satisfação, tendo usuários como parceiros na definição da solução.
Dentre os novos métodos desenvolvidos, destacamos a definição de personas, a construção
de cenários e as técnicas de imersão.
Assim, um olhar amplo da evolução dos métodos de design aponta para um caminho
que sai do ambiente hermético das fábricas e se abre para o mundo exterior. Nesse sentido,
acreditamos que uma próxima geração de métodos de design vem se instalando no contexto
global, adotando estruturas ainda mais dialógicas com o mundo real.
Em nosso trabalho de pesquisa, buscamos uma abordagem orientada aos métodos dessa
nova geração emergente, tomando o sujeito como ponto de partida e guia de nossas premis-
sas e decisões enquanto designers.

Design enquanto pensamento


Os últimos anos foram extremamente relevantes para a atividade de design no cenário
mundial, e a banalização do termo design thinking nos mais diferentes contextos trouxe à
tona uma série de questões para a área.
Por um lado, um grande número de designers e pesquisadores da área têm sido críticos
ao uso popular da expressão, considerando que desvaloriza a profissão, fazendo parecer que
qualquer pessoa, mesmo sem a formação acadêmica, poderia atuar como tal.
Tal fenômeno serviu como incentivo ao nosso grupo de pesquisa para um debate mais
amplo sobre o entendimento que temos do que venha a ser, de fato, esse “pensamento do
design”. De imediato, parece-nos óbvio que é preciso separar a profissão do designer da
atividade empírica de design. Acreditamos que sim, todos projetam artefatos, uns mais
formalmente, outros menos. Faz parte da natureza humana modificar o seu entorno para
adaptar objetos de acordo com as necessidades.
É nesse sentido que entendemos o design thinking como um modus operandi que, in-
dependentemente do nível de formalismo adotado, ocorre sempre que projetamos um
novo artefato. Esse pensamento se dá em dois passos principais: o de divergência, quando
se criam possibilidades de solução para determinado problema, e o de convergência,
quando se escolhe a melhor opção para solucioná-lo. Essa convergência se dá essencial-
mente com base em três variáveis: a desejabilidade, a factabilidade e a viabilidade da so-
lução proposta.
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 129

Nosso trabalho de investigação nos últimos dez anos se dá em torno de um projeto


comum: a construção de uma metodologia de design que utilize elementos de jogos como
forma de dar suporte a equipes multidisciplinares para entenderem e aplicarem mecanismos
mais formais do design. Além disso, há o envolvimento dos participantes, que, ao serem
convidados a projetar, o fazem de forma lúdica.
Com essa abordagem, pretendemos que atores diversos participem do processo tra-
zendo uma linguagem contemporânea e associada à ludicidade como elementos facilitado-
res de uma aproximação das técnicas e dos métodos do design ao senso comum.

Design Thinking Canvas


O Design Thinking Canvas (DTC) é uma metodologia contemporânea criada para
orientar equipes em atividades de projeto de artefatos com características inovadoras. Foi
construída nos últimos 10 anos a partir de pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Pes-
quisa em Jogos Digitais (GDRlab) do Departamento de Design da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), sob a orientação do professor doutor André Neves e validada por
dezenas de trabalhos de mestrado e doutorado.
O DTC faz parte de uma vanguarda de metodologias baseadas na observação do pro-
blema e no entendimento da necessidade natural, em constante evolução, diante da modi-
ficação das realidades tecnológicas, produtivas, simbólicas e estéticas do mercado
consumidor. A inovação mais relevante do DTC é o uso de elementos de jogos como base
para auxiliar equipes de design na execução de métodos e técnicas de design.
Originalmente, a metodologia se propôs a orientar o mercado de artefatos digitais do
estado de Pernambuco, em busca de inovação. O diálogo entre equipes multidisciplinares,
o bom uso das tecnologias digitais disponíveis e o enfrentamento das dificuldades rela-
cionadas a tempo e orçamento eram os elementos motivadores para o desenvolvimento
de uma nova forma de projetar. Hoje, o DTC é utilizado nos mais diversos campos do
design, em mais de 90 países, expressivamente na América Latina, nos Estados Unidos e
na Europa.
O princípio básico do DTC é similar aos utilizados para a construção de modelo de
negócios para empresas de Osterwalder (2012) e para construção de modelos de negócios
para produtos de Maurya (2012). Esses autores propõem um conjunto de informações que
devem ser levadas em consideração e uma estrutura para organizá-las e visualizá-las, numa
espécie de mapa descritivo formado por blocos (decks ou tabuleiros) de informações.
No DTC, esses decks são baseados em métodos e técnicas específicos do design
que se interconectam continuamente, apoiados por pontos de iteração que garantem
clareza ao longo do processo, facilitando a comunicação sobre as decisões de projeto
em equipes multidisciplinares ao criar uma plataforma de informações que podem ser
visualizadas e discutidas em qualquer momento do projeto.
130 Gamificação em debate

O DTC utiliza métodos e técnicas clássicos do design adaptados para preencher as


informações em cada bloco da plataforma – por exemplo, a técnica de persona proposta por
Cooper (2008). Além disso, todo o sistema é beneficiado pelo uso de cartas como registro
de atividades essenciais do processo de design, o que facilita o reuso de informações entre
os projetos e as equipes.
A questão da gamificação é criar expectativa, ação e recompensa típicas do ato de jogar.
Essa lógica em tríade, aliada a aspectos lúdicos e elementos como pontuação, ranking,
metas e desafios, serve como alternativa para engajar os participantes dos projetos e univer-
salizar a linguagem. Essas estratégias podem ser vistas em autores como Salen e Zimmerman
(2004), Muntean (2011) e Zichermann e Cunningham (2011).
Acreditamos que essa gamificação do processo, que oferecemos pelo uso das cartas, é o
que gera o engajamento das equipes e a facilidade de entendimento de cada etapa. A vali-
dação dessa afirmação vem com as pesquisas sobre o tema e os autores-base, mas também
se dá ao observar os alunos nos projetos com e sem as cartas.
Quanto ao processo de design propriamente, o DTC se organiza em quatro fases que
acompanham o ciclo de vida do projeto: (1) observação ‒ quando se define o cenário de uso
do produto e as características do público-alvo (persona) e se analisam possíveis oportuni-
dades e concorrentes; (2) concepção ‒ quando as ideias são geradas, avaliadas e selecionadas;
(3) configuração ‒ quando são tomadas decisões quanto à função do produto, bem como à
sua forma (estética); (4) publicação ‒ quando ocorre o lançamento e a validação do projeto
junto ao mercado consumidor.
No DTC, o registro dos dados coletados durante a fase de observação é exposto em
cartas com informações sobre o contexto para o qual o projeto se destina e os possíveis
usuários dos produtos, além de dados sobre artefatos existentes no mercado que podem
servir como referência.
Sugerimos a construção de um bloco de cenário formado por quatro cartas que expo-
nham onde o artefato será utilizado, quando será utilizado, quem fará uso desse produto e por
quê. É fundamental, também, buscar o máximo de informações a respeito dos sujeitos que
potencialmente utilizarão o artefato, para se ter uma base de conhecimento em torno do
tema do projeto. Nessa perspectiva, sugerimos um deck de persona, com cartas que repre-
sentem o usuário típico do artefato a ser projetado e suas principais atividades associadas ao
contexto do projeto.
O mais importante nessa fase de construção do contexto é inferir oportunidades a
partir da observação de problemas enfrentados pelos usuários pertencentes ao cenário para
o qual se projeta. Para isso, criamos um bloco de oportunidade, construído a partir dessa
imersão nos problemas enfrentados pela persona. Iniciamos o método listando os principais
problemas observados e anotando-os em cartas auxiliares montadas em torno de uma carta
principal, na qual descrevemos qual oportunidade será o foco do projeto.
Por fim, ainda na fase de observação, deve-se construir um bloco de concorrentes, com
cartas contendo informações a respeito de artefatos já existentes no mercado que poderiam
concorrer com o produto a ser projetado. A ideia aqui é formar uma espécie de catálogo,
composto de imagens dos similares do produto e uma breve descrição de seu funcionamento.
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 131

Como segunda etapa do canvas do DTC, tem-se a fase de concepção, ponto realmente
criativo do processo. Essa fase é dividida em cinco: diferencial; proposta de valor; ideias;
solução; e experiência de uso. Todos os blocos são compostos por cartas construídas com
base em métodos que facilitam o processo criativo, inspirados nos dados obtidos durante a
fase de observação.
No deck de ideias, destacamos duas técnicas que foram adaptadas para possibilitar a
ideação: caixa morfológica e brainwriting, ambas populares para a geração de ideias no
campo do design.
No caso da adaptação da caixa morfológica, as cartas vindas das outras fases do processo
(persona, atividade e proposta de valor) são adicionadas a mais duas cartas de referências,
uma de um elemento da natureza (biônica) e outra de um elemento produzido pelo homem
(cinética). A intenção é fazer a equipe pensar “fora da caixa” do que foi visto até então e
influenciar as ideias para as questões tecnológicas e biológicas.
A outra ferramenta de ideação é a técnica brainwriting, com um formulário de papel
contendo uma adaptação do método 6-3-5 (seis pessoas, três ideias cada, cinco rodadas) de
Bernd Rohrbach. Nesse processo de geração de ideias, o número de participantes é livre e
as cartas desenvolvidas durante a fase de observação também são usadas para fornecer in-
formações fundamentais.
Deve ser selecionada a ideia com maior potencial para atender às expectativas tecnológi-
cas, econômicas, sociais e culturais do usuário. Para isso, são usadas heurísticas básicas do de-
sign thinking, que mencionamos anteriormente: a desejabilidade, a factabilidade e a viabilidade.
Posteriormente, tem-se a fase de configuração, na qual ciclos iterativos evoluem a ideia
até que ela obtenha forma, podendo ser repetidos até que um resultado satisfatório seja
alcançado. São dois blocos: função e forma. O primeiro serve para representar como o sis-
tema funciona e deve se basear nas atividades determinadas para a persona. No segundo são
usadas cartas de referência que representem o repertório estético da persona e sirvam para
orientar a configuração morfológica do artefato projetado.
Uma parcela do mercado ainda defende que o trabalho de design termina com a confi-
guração do artefato, ou seja, na fase de configuração descrita. Porém, no DTC, considera-
mos ser atribuição da equipe de criação a definição de estratégias para direcionar o
lançamento dos artefatos, principalmente pelo fato de a metodologia ser baseada em mo-
delos de negócio.
Então, tem-se a última etapa da metodologia, a fase de publicação do artefato, que
consideramos bilateral pois envolve um planejamento que interfere no produto, mas ao
mesmo tempo é induzido por ele. Nesse sentido, três grupos de estratégias ligadas ao lan-
çamento do produto são definidos ainda durante o projeto: aquisição – estratégias que en-
volvem diretamente atração de usuários; retenção – estratégias com a finalidade de manter
o usuário fiel ao artefato; e monetização – estratégias relacionadas aos diferentes modelos de
negócio a serem explorados em torno do artefato.
Acreditamos, com essa última fase, dar ênfase a um dos principais fatores de sucesso de
um artefato: suas estratégias previstas e adotadas para atrair a atenção de potenciais usuá-
rios. Destacamos a importância da participação da equipe de design nessa fase, pois há uma
132 Gamificação em debate

influência do produto nas estratégias de aquisição. O inverso também pode ocorrer, pois, a
partir de algumas estratégias de aquisição, pode ser necessário incluir características no
artefato para viabilizar seu lançamento.
Outro conceito extraído do design thinking é a necessidade de tornar o produto econo-
micamente viável. Algumas dessas estratégias podem demandar ajustes no produto, por isso
sugerimos que essas definições sejam realizadas durante o processo de design, e não depois
de seu lançamento.

Resultados
Em novembro de 2013, o DTC foi disponibilizado em formato de aplicativo digital na
Apple Store. Foram realizados 1.015 downloads nos primeiros dois meses do lançamento e,
ao longo de 2014, 4.353 usuários baixaram o aplicativo. Em 2015, o volume de procura teve
uma média de 10 downloads diários, que se mantém até os dias de hoje, repetindo um total
de 3.500 downloads por ano.
O DTC tem sido utilizado, principalmente, nos seguintes países: Brasil, EUA, México,
Espanha, Alemanha, Chile, Colômbia, Portugal e França. No Reino Unido, na Austrália e
na China há também um bom número de usuários. Além desses, foram realizados downloads
em outros noventa países.
Na categoria Business da Apple Store, o aplicativo do DTC esteve entre os cinco me-
lhores do ranking em dois países, foi o décimo melhor em dez países e ficou entre os cem
melhores aplicativos em cinquenta países, números bastante significativos por se tratar de
um aplicativo com um fim muito específico.
Ao longo desses dez anos de construção do DTC, muitos projetos foram desenvolvidos
junto a alunos de graduação, mestrado e doutorado, bem como muitos desses projetos par-
ticiparam diretamente como validação e melhoria da metodologia, principalmente aqueles
que testaram o DTC em diferentes contextos e/ou testaram ferramentas sugeridas pelo
DTC para determinadas fases do projeto.
De uma maneira resumida, expomos aqui alguns resultados práticos da aplicação do
DTC em projetos cujos resultados deveriam ser, e foram, inovadores, assim como estudos
provenientes das pesquisas científicas executadas, a maioria tendo como orientador o pro-
fessor doutor André Neves. É importante frisar que muitos outros projetos poderiam ser
citados, bem como muitos outros resultados. Destacamos alguns aqui para deixar explícita
a relevância da nossa metodologia para o mercado de inovação, seu percurso no âmbito dos
projetos acadêmicos e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos do design.
Assim, temos no âmbito da graduação em Design os resultados da disciplina Design
Contemporâneo, entre 2012 e 2014, como primeiro exemplo. Nessa disciplina, grupos de
alunos foram orientamos a explorar os principais métodos e técnicas contemporâneos do
design para, posteriormente, desenvolverem produtos inovadores a partir do uso do DTC.
O foco foi a observação de oportunidades locais e a utilização de tecnologias disponíveis.
Os resultados dos projetos foram bastante relevantes em termos de bens de consumo
materiais e imateriais, a saber: um aplicativo para fidelização de clientes em restaurantes;
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 133

uma rede social para cinéfilos; um app que detecta bactérias presentes no ambiente; uma
geladeira com mudança cromática que alerta para a falta de alguns itens; um sapato des-
montável e customizável para diferentes ocasiões; uma jukebox digital; um colar para refres-
car o visitante dos mercados públicos do Recife por meio de mecanismos robóticos; um site/
app para divulgar e vender o trabalho de artistas de rua baseado na interação em redes so-
ciais; e um artefato de LED que auxilia profissionais de educação física, entre outros.
Já com estudantes da graduação em Portugal, usamos a metodologia em dois projetos,
um de baixa complexidade ‒ puxadores de móveis infantis ‒ e um de alta complexidade ‒
mobiliários urbanos para abrigar antenas de comunicação. Ambos os projetos foram execu-
tados em parceria com empresas locais, para responder a demandas reais e com foco em
inovação. A intenção foi aplicar a metodologia para projeto de produtos tangíveis e com
apelo sustentável.
Essa experiência serviu como experimento de validação do DTC em outra realidade,
fora do contexto da UFPE (onde a metodologia já era empregada), e teve resultados satis-
fatórios quanto à tentativa de inovar pelo viés da sustentabilidade.
No projeto de puxadores para móveis infantis, obtivemos: puxadores desenvolvidos com
PET reciclado e com sistema de LED para economizar energia; puxadores feitos de ma-
deira reciclada e que acompanhavam o crescimento das crianças; e puxadores maleáveis de
borracha reaproveitada com função sensorial, entre outros. No projeto dos mobiliários ur-
banos, apresentaram-se: estruturas para aproveitamento de água da chuva; estruturas com
painéis de energia solar; e móveis para hortas comunitárias, entre outros.
Na disciplina Tópicos em Design de Artefatos Digitais, do mestrado em Design, tam-
bém houve a divisão de grupos com o objetivo de desenvolvimento de um artefato digital.
Os resultados foram mais maduros, pois houve a discussão das fases do DTC e das técnicas
de design envolvidas.
Os resultados tiveram um viés mais social: app para monitorar idosos em situação de
isolamento; sistema para incentivar doação de sangue; e plataforma para organizar pacotes
turísticos para idosos, entre outros.
Recentemente, aplicamos o DTC em uma disciplina de Metodologia de Design para
alunos do mestrado profissional da Faculdade Cesar, em Recife. Dessa vez, utilizamos um
canvas de formato reduzido (sem prototipagem) em busca de ideação para inovação, sob as
temáticas desenvolvimento social e igualdade de gênero. Os resultados foram uma rede de
empoderamento e ajuda para mulheres em situação de risco e uma rede de educação por
meio da construção de instrumentos musicais com crianças trabalhadoras de canaviais.
No âmbito acadêmico, mencionamos estudos que, ao longo desses dez anos, contribuí-
ram para a construção da metodologia e validaram sua aplicabilidade em diferentes contex-
tos. Por exemplo, a aplicação de uma versão prévia ao DTC, por Alves (2011), chamada
Persona Card Games no desenvolvimento de jogos de tabuleiro e estampas de camiseta, com
o objetivo de comprovar que a metodologia poderia ser utilizada em diferentes áreas do
design sem perder suas características e suas propriedades. Esse estudo ajudou a nortear as
especificações do DTC.
134 Gamificação em debate

Outro projeto, cujos modelo proposto e discussões também serviram como validação
prévia do DTC, teve por objetivo auxiliar a indústria de jogos e entretenimento digital do
estado de Pernambuco, destacando a importância da pesquisa com usuários. A partir de
entrevistas com designers e gerentes de criação, Oliveira (2010) sugeriu a aplicação do
método de personas acrescido de maior conteúdo imagético e reuso de dados, que chamou
de Card Persona.
Um terceiro exemplo acadêmico foi realizado por Araújo (2015), em que discutiu pla-
nos de negócios tradicionais e modelos de negócios que utilizam um canvas. Dentro dessa
perspectiva, o trabalho faz uso de métodos de design, mais especificamente da técnica de
personas, para construir as informações e preencher o tabuleiro de clientes, verificando, ao
final, uma significativa evolução na profundidade analítica da fase. Assim, o trabalho se
tornou importante ao estudar e demonstrar como as técnicas de design podem auxiliar a
construção da informação dentro desses modelos de negócio baseados em canvas, o que
ajudou a evolução do DTC nesse sentido.
Em 2014, foi desenvolvido um modelo de gerenciamento de projetos a partir do uso de
conceitos de gamificação em atividades cotidianas no ambiente de trabalho. Os resultados obti-
dos comprovaram a hipótese inicial de que o uso de elementos provenientes dos jogos ajudaria
na motivação e na retenção de pesquisadores. Essa pesquisa, de Beem (2014), serviu para validar
o conceito sobre a gamificação dos processos de design, uma forte característica do DTC.
Em 2015, foi detectada uma dificuldade referente à captação de recursos para financiar os
projetos em jogos digitais, uma possível deficiência na aplicação de modelos de negócios. A
pesquisadora responsável, então, fez uma crítica aos estudos da área de jogos por focarem na
criação dos jogos em si e não na forma como estes serão inseridos no mercado e se tornarão
rentáveis. Como resultado desse esforço, Vargas (2015) desenvolveu uma ferramenta de apli-
cação prática para construção de modelos de negócios para o mercado de jogos. Essa pesquisa
serviu para validar o canvas e definir o escopo da metodologia DTC lançada em formato app.
Mais recentemente, uma das estudantes do mestrado propôs a elaboração de um am-
biente de trocas e conexões para dar suporte às ações dos pesquisadores e facilitar as ações
de formação e produção de dispositivos educacionais. Para isso, Simona (2016) utilizou o
DTC em uma aplicação web (multiplataforma) para professores e pesquisadores e demons-
trou o vasto escopo de alcance do DTC nos mais diferentes tipos de projeto.
Ao final desses exemplos, lembramos que muitos outros projetos poderiam ser citados aqui,
e muitos outros resultados poderiam ser discutidos. Destacamos alguns para mostrar a relevân-
cia da metodologia para o mercado de inovação, seu sucesso no âmbito dos projetos acadêmicos
e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos de pesquisa e prática do design.

Conclusões e desdobramentos
O volume expressivo de downloads do aplicativo e o grande fluxo de pessoas na fanpage e
no site do DTC indicam que este vem despertando o interesse de diferentes áreas. Além disso,
os relatos deixados por parte desses usuários apontam para projetos que envolvem não apenas
produtos digitais, mas serviços ou produtos físicos, nas mais diferentes esferas do design.
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 135

Os resultados das disciplinas nas quais aplicamos o DTC demostram que metodologias
lúdicas como a que propomos podem ser aplicadas no ensino do design, nos mais diferentes
contextos. Assim, também os trabalhos dos alunos de áreas externas ao design demonstram
que a metodologia resulta em ideias de produtos inovadores e cumpre com sua função de
“gamificar” o processo, tornando o ambiente de concepção do produto mais interessante,
divertido e multidisciplinar.

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Iconomia: violência e valor nos jogos
de produção dos ícones
10
Gilson Schwartz

Crise e teoria crítica do capital em jogo


A crise capitalista que resultou da hipertrofia do jargão tecnológico levou a uma am-
pliação midiática da subjetividade e sua reconfiguração digital como nova alienação. A
crítica adorniana é, portanto, plena e legitimamente válida. O elogio da disrupção é o sin-
toma simbólico do esvaziamento do capital. Do jazz à internet e, nesta, aos games, há uma
evidente simetria de funções e mobilizações midiáticas e industriais – é mais que possível a
analogia com a sociedade do consumo impossível.
Pesquisar a economia política da diversidade digital na sociedade do espetáculo: eis uma
forma geral a partir da qual o game digital faz sentido e pode, eventualmente, apontar caminhos
de emancipação. Eis o objetivo adorniano central desse projeto de estudos interdisciplinares cujo
horizonte conceitual é a emergência de uma economia política dos ícones (ou “iconomia”).
Este capítulo propõe um rastreamento dessa percepção crítica de uma nova economia
política nos trabalhos (sobretudo na crítica à epokhé da disrupção) de Bernard Stiegler e,
num fundo mais distante, porém ainda pertinente, uma economia política da imagem ins-
pirada em Simondon, projetada sobre os desafios de monetização abertos pelos modelos de
destruição criativa típicos das economias de plataforma audiovisuais. Esse é o contexto no
qual precisamos aninhar uma visão emancipatória e crítica dos games e da própria “gami-
ficação”: que potencial transformador ou agonístico realizam as redes em que se reconfigu-
ram as indústrias, as finanças e o meio ambiente?
Além da inteligência coletiva dessa economia criativa, plasmada numa cultura audio-
visual ou do espetáculo, a produção real e simbólica dessa iconomia tornou-se indissoci-
ável da emergência de cidades globais que pressupõem novas formas de destruição do
Estado e das corporações empresariais e sindicais. As redes digitais não produzem essa
reconfiguração de modo ingênuo, caótico ou puramente espontâneo, como indicam os
dados sobre concentração e centralização de capitais transnacionais e multissetoriais, com
forte dominância financeira e do complexo industrial-militar no design do playground da
contemporaneidade.
138 Gamificação em debate

As formas assumidas por essa “época sem futuro” (STIEGLER, 2016, tradução nossa) e,
portanto, sem autênticas vontades individuais ou coletivas marcam o comportamento coti-
diano das pessoas inseridas nisso que nos acostumamos a chamar de “redes sociais” (como se
alguma rede ou tecnologia pudesse existir sem ser social, sem negatividade), mas reorganizam
o mundo e obrigam a espécie humana a se alienar de uma nova forma e a buscar novos modos
de emancipação, inteligência e autêntica diversificação cultural e instrumental.
A economia política que aproxima a negatividade da produção intelectual, cultural ou
simbólica é a mesma que justifica uma nova oportunidade revolucionária. Do jazz à inter-
net, algum canibalismo sistêmico é sempre possível, antropofagicamente. Os games, como
o cinema e outras artes industriais, criam oportunidades de horror ainda mais profundo ao
atualizar a crítica adorniana ao jargão fascista, mas também oferecem e recuperam um le-
gado já significativo como estruturante da modernidade e da pós-modernidade, que é a
evolução da competência coletiva de operar com a metanarratividade pela negatividade da
racionalidade técnica e instrumental.
Este, aliás, parece o projeto inspirador da ars industrialis que articula o legado da obra
de Bernard Stiegler a uma necessária atualização da economia política que seja capaz de
extrapolar a negatividade do capital digital, intelectual e iconômico. Essa nova economia
política adorniana é também esfera de valorização da imaginação simondoniana, sócio-
-técnica e aberta a novos modelos de resistência (e reexistência) criativa frente à marcha
acelerada rumo à automação informacional, à precarização do trabalho vivo e à alienação de
massa pelo consumo insustentável realimentado de males infinitos e consciências progra-
madas para seres perpetuamente pacíficos e infelizes.
Discutir essa guinada adorniana/simondoniana da economia política – que eu denomino
“iconômica” – é condição para fazer a crítica à economia política da convergência dos letra-
mentos midiáticos, informacionais e criativos que reverberam nas redes digitais e nos convi-
dam a pensar a diferença e o risco de supressão da diversidade, bem como o potencial de
emancipação em novas dimensões da organização digital da economia, da ciência e da cultura.
Os games, mais que um “caso” ou “segmento” de mercado, carregam, além da dimensão
mercantil e técnica, a condição icônica; têm uma evidente dimensão tecnológica, mas tam-
bém uma dimensão audiovisual, icônica e utópica. Assim, mais que preço ou precificação,
estamos entrando numa dimensão de apreço, de apreciação em cadeias de valor biopolítico
em que, de fato, a vida no planeta está em jogo e a consciência da metanarrativa é crucial
para evitar o game over.
No universo dos games e da gamificação, ganha foro de expansão infinita um horizonte
de valor que é o da “iconomia”. Mais que o valor de mercado, é o próprio nomos (lei) que
passa a ser definido por associação a ícones, na dimensão do intangível, programados por
um código visual, imaterial, real e simbólico ao mesmo tempo. Nesse contexto pós-humano,
a opção shakespeariana fica entre “programar” e “ser programado” (RUSHKOFF, 2010).
A trilha aberta pela gamificação pressupõe uma economia política dos ícones que terá
como resultado um panorama interdisciplinar voltado a essa emergência contemporânea em
territórios urbanos globalizados e marcados pela errância periférica de indivíduos, comuni-
dades e nações, numa rede digital que aparece como se não tivesse um centro.
Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 139

A convergência entre “inclusão digital” e uma nova esperança na força criativa dos in-
divíduos tornou-se comum tanto a pensadores liberais que fazem apologia ao sistema capi-
talista, como Richard Florida (que já celebrava a emergência da “classe criativa” em sua obra
de 2002), quanto a teóricos de um novo marxismo autonomista (destacam-se os italianos
que definem os horizontes do capitalismo a partir do “trabalho imaterial” ou “pós-fabril”,
como Maurizio Lazzarato e Antonio Negri em 2001 e, mais recentemente, em 2016, uma
síntese crítica em Christian Fuchs).
Há um solo comum às abordagens que se apresentam como antípodas: trata-se de uma
convergência entre trabalho e lazer, o consumo fora da fábrica e do controle industrial
torna-se parte produtiva do sistema econômico. É o fim da classe operária, substituída por
uma massa intelectualizada que consagra a convergência entre capital e conhecimento.
A criatividade humana individual torna-se a força motriz na vanguarda do desenvolvimento
econômico e o principal motor produtivo. O trabalho contemporâneo torna-se, desse modo,
um processo de autoexploração (BROUILLETE, 2010). Uma combinação da perspectiva
radical com a ultraliberal compõe o discurso de movimentos na periferia do sistema.
Tropicalizado, o discurso da convergência digital no mundo do trabalho, que se confunde
com a autorrealização de uma vontade livre, serve muito bem ao projeto de tornar o Brasil um
importante espaço de consumo global no rescaldo da privatização do setor de telecomunica-
ções. Contudo, visto a partir da periferia do sistema capitalista global, há uma tendência real
para a emergência de uma cultura participativa liderada pela convergência digital?
Quais são os protagonistas sociais do novo quadro da participação política? Qual é o
papel das culturas populares e dos ativistas na promoção dessa convergência entre uma
ideologia participativa e a pregação em torno de um novo modelo pós-fabril que, aparente-
mente, nos leva para além do dualismo estrutural entre centro e periferia, capital e trabalho,
Estado e mercado?
Será que o paradigma do MIT confirmado pela geopolítica da dominação econômica da
internet e pelo controle corporativo das infraestruturas de telecomunicações permite de fato
a emergência de uma nova confiança na apropriação da renda e na criação de riqueza em um
mundo sem barreiras ao empreendedorismo e à capacitação contínua e descentralizada?
Será que a juventude, beneficiando-se dessas tecnologias convergentes via “startu-
pismo”, “artivismo” e a ocupação libertária de novos espaços públicos, pode assumir um
protagonismo que desembocará numa “primavera política global”, mudando efetivamente
as “regras do jogo”?
A gamificação veio para reconfigurar o espaço de jogo e o tempo da partida, trazendo
para primeiro plano esse elogio da disrupção associado por Stiegler a formas inovadoras,
emergentes e simbólicas de fascismo. Como nos anos que se seguiram à crise de 1929, há
um florescimento de posições radicais e o extremismo ideológico ganha contornos instru-
mentais que a democracia apenas faz aprofundar ainda mais, acentuando a dimensão do
agon (referente a diferentes tipos de disputa) que é essencial ao lúdico (já identificado em
Homo Ludens (2008), de Joan Huizinga).
Para examinar oportunidades, espaços e tempos dos games na sociedade contemporâ-
nea e pós-humana, ou seja, como os games afetam as relações entre pensar, fazer e brincar
140 Gamificação em debate

na sociedade do conhecimento digital, é essencial levar em conta um necessário recuo inicial


para o berço da civilização ocidental, a “Paideia” grega, indissociável de uma “paidía” (brin-
cadeira infantil) e da própria “infância” do pensamento ocidental, de uma perplexidade ao
mesmo tempo maravilhada e agonística que surge dos nossos encontros com as coisas, as
pessoas e as representações simbólicas com as quais nos identificamos apenas e na medida
em que também participamos com essas “coisas” de conflitos reais.
Muito antes de Descartes e dos computadores em rede, a Antiguidade enquadrou a
educação como parte de uma cultura onde há evidente associação entre criação de valores
ou ícones e jogos, que foram desde sempre pensados como intrínsecos ao projeto da “pólis”.
Esse parece ainda o melhor antídoto para as visões ingenuamente cartesianas e calcu-
listas que em última análise serviram (e ainda servem) para a manutenção dos mecanismos
instrucionais e correcionais contemporâneos.
Frente ao fascismo panóptico digital emergente, sempre será possível buscar uma pe-
dascopia lúdica. A arquitetura da informação dos jogos inspira novas linguagens e gêneros
e pode ser também a matriz criativa para redesenhar ensino e aprendizagem, direitos hu-
manos e cidadania e territórios de condomínio e de favelização, superando os modelos fabris
e prisionais.
Desde Brinco, logo aprendo (SCHWARTZ, 2014), defendo essa atenção histórica para
o sentido sistêmico e político da “gamificação”, com ênfase no potencial criativo e libertário
do brincar digital, sem negar que essa disposição emancipatória requer uma percepção,
ainda que panorâmica, das práticas coletivas autônomas, bem como das indústrias comuni-
cacionais que se consolidaram globalmente a partir do século XX.

Gamificação de espaços públicos e reinvenção da política


A “pólis” representa uma forma de convivência e governo em que a verdade requer o
contraponto de opiniões, e a assembleia é um espaço onde a razão descobre um tempo que
já não se volta apenas aos mitos do passado, pois é um tempo agonístico que se torna visível
por uma medida que espelha o ajuste entre as partes, definindo uma geometria de propor-
ções em que o humano define a si mesmo como a medida de todas as coisas.
A criação de leis, nesse contexto, é sempre tabuleiro de conflitos (não apenas a luta de
classes, mas de categorias profissionais, setores culturais, religiosos, empresariais etc.), o jogo
de (re)criar regras é a dimensão crítica transversal a todos os jogos. Essa “gamificação” es-
sencial é também fonte da inspiração de seres humanos tocados pela divindade, ou seja, com
suposto acesso a uma medida do que é certo, verdadeiro, belo, justo e... divertido. Poucos
hoje lembram que nomos é também a palavra que designava a poesia, ou seja, a descoberta
da proporção entre coisas, palavras e sentimentos que nos colocam no mundo lutando pelo
belo, justo, eterno ou divinamente ideal. Pelo prazer, em suma.
A sabedoria alcançada pela superação do conflito (a negação que afinal nega a si pró-
pria) espelha-se em processos decisórios que não são apenas aleatórios ou ditados pelo
poder do mais forte ou do mais violento, mas podem refletir insights sobre o comportamento
humano e a correlação de forças numa sociedade que, em última análise, é também a
Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 141

expressão de uma consciência das fraquezas humanas. Permanece no horizonte da civiliza-


ção ocidental não apenas o jogo da democracia, mas a conexão entre antagonismos e a
reinvenção recorrente de governos, razões, direitos e deveres A principal regra do jogo é a
reinvenção de suas próprias regras, em revolução permanente ‒ ou disrupção alienante e
acelerada, como indica Stiegler (2016).
Torna-se assim possível uma visão que define um tempo-espaço de resolução de con-
flitos que é também cooperativo, essa distribuição lógica da razão ou “logos” é o horizonte
em que “polemos” (luta) e “filia” (amor) são repostos recíproca e continuamente, em que
cada indivíduo da democracia tem autonomia e ao mesmo tempo acredita numa unidade,
numa soberania que projeta a comunidade no tempo da história, num futuro comum.
A convergência entre as histórias do pensamento (pensar) e da indústria da comunica-
ção (fazer) conduziram finalmente a uma perspectiva atualizada sobre o surgimento e a
evolução dos games, seu uso nas escolas, nas empresas e em outros ambientes e organizações
(como as forças armadas, as redes sociais, a publicidade e as artes).
A fronteira emergente da gamificação é a formulação de políticas públicas, embora a
dimensão de jogo da atividade econômica tenha permanecido implícita aos modelos de
decisão e intervenção nos mais distintos mercados, a começar pelo financeiro (SCHWARTZ,
1990). A financeirização, tão debatida desde os escritos do marxista austríaco Rudolph
Hilferding (1910), é indissociável das possibilidades técnicas e contábeis abertas pelas so-
ciedades anônimas em acumulação de capitais, acelerada por informação e especulação nas
bolsas de valores.
Uma expansão dessa percepção entre formuladores de políticas econômicas e de outras
políticas públicas, no entanto, é fenômeno recente, ainda em curso. Que novas promessas
surgem de uma aproximação entre o brincar digital e as transformações em curso no capi-
talismo em crise? A inovação disruptiva implica em revisão estrutural dos marcos regulató-
rios ou sua urgente atualização (frente à corrupção comandada por um sistema operacional
pré-digital, por exemplo). Quais os contornos de um keynesianismo digital?
É notório que a superação da crise econômica tem sido continuamente associada ao
culto da inovação tecnológica, do capital intelectual e da criatividade como fontes de
valor. A disseminação de games e, de modo geral, da alfabetização midiática e informa-
cional (media and information literacy) tornou-se, nos últimos cinco anos, uma tendência
hegemônica em todo o mundo. Governos apostam em ecossistemas educacionais como
ferramentas de superação da crise financeira e a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) articulou globalmente um novo movimento
pela alfabetização por meio da Global Alliance for Partnerships in Media and Informa-
tion Literacy (GAPMIL), cuja assembleia inaugural aconteceu na Universidade de São
Paulo (USP) em novembro de 2016. A proposta da Unesco (criada em parceria com o
grupo de pesquisa “Cidade do Conhecimento” e a agência global de publicidade Dentsu
Aegis Network) prevê a gamificação de uma plataforma global de alfabetização midiá-
tica – projeto que só terá viabilidade e efetividade se a esfera pública configurada pela
Unesco for colaborativamente promovida pelo setor privado, pelo terceiro setor e por uma
nova cidadania global.
142 Gamificação em debate

A democracia é um jogo que institui um tabuleiro em que as regras podem ser mudadas,
a ágora é um jogo político em que a cidadania sujeita seus destinos a um conflito que
pressupõe cooperação construída pela mediação, ou seja, pela destreza retórica e filosófica
dos cidadãos. O amor ao saber (filo-sofia) nasce, portanto, da luta pela razão num espaço
que é ao mesmo tempo de criação e aplicação de regras (nomoi). Nesse mundo, o mito, a
violência e a guerra pela primeira vez estão sujeitos a códigos, à clara identificação de res-
ponsabilidades e limites, como num jogo no qual há vencedores e perdedores apenas se
todos reconhecerem a legitimidade do código e seu espaço de aplicação.
Seja na criação e na aplicação de leis, seja na organização de jogos, o funcionamento da
“pólis” implica necessariamente a preparação de cada cidadão para entender e participar
desses espaços e tempos. Entendimento e participação que, se ainda dependem de um ato
de fé na inspiração divina dos atos humanos, produzem, ao mesmo tempo, a exigência
fundamental de educar cada indivíduo para essa lógica de conflito e superação. As regras de
um jogo exigem habilidades na prática de interpretação das próprias regras.
No lugar do instinto, da força e da violência fascistas, o cidadão educado é aquele que
joga com as normas, os conceitos e os direitos. O cidadão é quem aprendeu a respeitar a
tradição, imitar os bons exemplos e, ao mesmo tempo, reinventar a tradição, jogando seu
destino e sua inserção social num espaço de jogo entendido como um direito humano. Jogar
(ou “gamificar” o espaço público) é quase um sinônimo de julgar.
Quem julga, ou seja, faz ou emite juízos, domina a lógica e a retórica, joga com os
conceitos e os direitos para que se saiba em cada situação como fazer a conexão entre
pensamento, linguagem e sobrevivência, tanto do indivíduo quanto do ser social. Pensar é
jogar com (o) juízo, o que pressupõe confiar numa racionalidade necessariamente limitada
(e não plenamente calculista ou calculável) que se constrói coletivamente e para a qual se
educa com um olho na tradição e outro na salvação.
O berço da cultura democrática ocidental revela-se como o campo de jogos que nos
aproximam do “logos”. A “Paideia” (ideal grego da educação) revela-se como trabalho do
Estado para conformar a “paidía”, a brincadeira infantil, em jogo civilizado pelo reconheci-
mento mútuo e agonístico no espaço político e comunicacional da “ágora”.
Uma visão mais detalhada sobre a dimensão lúdica e a força do jogo em outras culturas
iria muito além do possível neste capítulo, mas é possível avançar retomando as indicações
que, em 1938, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicou em sua obra
Homo Ludens: Proeve Eener Bepaling van het Spel-Element der Cultuur [Homo Ludens: o jogo
como elemento da cultura, 2008], cuja pretensão foi estabelecer a dimensão lúdica como
constitutiva de toda cultura. O regime nazista manteve-o preso de 1942 até sua morte.

Jogo como operação da linguagem: ambiguidade, negação e abertura


No seu (agora) clássico Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, Huizinga (2008)
detalha como a noção de jogo tem sua expressão na linguagem. Os gregos não distinguiam
na própria linguagem a competição como função cultural do complexo “jogo-festa-ritual”,
pois as competições (sagradas e profanas) haviam tomado um lugar tão importante na vida
Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 143

dos gregos, um valor tão excepcional, que as pessoas “deixaram de ter consciência de seu
caráter lúdico”. Com os jogos na fronteira da convergência digital, é o mesmo ethos.
Trata-se de identificar nos jogos essa mesma ambiguidade, seu caráter transdutivo –
termo consagrado pela obra de Gilbert Simondon (1924-1989) que tem reverberação prag-
mática na obra madura de Wittgenstein. O fato é que, em muitas línguas, é impossível
encontrar uma palavra que seja a “síntese única” de todas as atividades que se poderiam
considerar como “jogo”.
Divertir-se, engajar-se num movimento rápido, ser da ordem do ligeiro ou temporário, fu-
gaz, despreocupado, e ainda assim estar fazendo algo, brincar é jogar com a atenção, é pensar em
movimento ou ainda no próprio mover-se, brincar é um pensar em ação sem que tenha ocorrido
uma “pré-ocupação”, é o tempo da surpresa, do inusitado, do susto e da perplexidade.
O indivíduo cultivado, como o cidadão da “pólis” que sabe e pode pedir a palavra na “ágora”,
está numa posição social elevada, integra uma elite dos que “brincam” ou “jogam” com o destino
(individual e coletivo) em tudo que fazem, como se vivessem num mundo mais elevado.
O jogo é oposto à seriedade, mas se algo sério simplesmente não é jogo, o significado
de “jogo” não se esgota na negação da seriedade. A gamificação não se refere a tudo o que
“não é sério” e, portanto, a gamificação de coisas sérias é possível. Há uma assimetria nessa
negação que lembra a ambivalência psicanalítica da negação – para Freud (2014), negar um
objeto ou relação está muito longe de aniquilar sua existência real, simbólica ou imaginária.
A criança quando brinca o faz com a maior seriedade. Em todas as religiões e nas so-
ciedades tidas como “primitivas”, bem como no teatro e na brincadeira infantil, há uma
suspensão do juízo ou criação de um espaço-tempo mágico em que são vivenciadas carac-
terísticas que se poderiam associar a um esquema lúdico: ordem, tensão, movimento, mu-
dança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Nem por isso são atividades desprovidas de
consequências seríssimas sobre o desenvolvimento psicoafetivo de qualquer indivíduo.
O jogo surge para Huizinga (2008) como entidade autônoma, ora indicando um rudi-
mento de racionalidade instrumental, ora remetendo os participantes a uma dimensão
poética, desprovida de sentido e racionalidade, mas reforçando em cada um a consciência
de estar “integrado a uma ordem cósmica”, como se o jogo fosse via de acesso a um ato
sagrado, um culto (jogo como elemento da cultura).
Todo jogo é feito de seus lances, de cada jogador lançar-se, colocar-se num movimento,
aceitar a imersão num processo regrado e ao mesmo tempo aberto ao inusitado, surpreen-
dente e ardiloso, compreensível ou supostamente milagroso. É ao mesmo tempo ceder ao
simbolismo, à representação e à projeção da angústia imediata (frente à morte, à reprodução
ou à sorte) numa ordem que se permite ser interrogada, questionada, provocada.
É justamente esse conceito de jogo como operação ao mesmo tempo delimitadora e de
abertura para o novo (inclusive para novas regras ou violações de regras no limite da des-
truição do próprio jogo) que se torna relevante para pensar e operar a gamificação. Callois
(1990) consagrou certo esquematismo ao classificar os jogos em quatro categorias:
1. Jogo de competição (agon): o jogador é ativo.
2. Jogo de azar (alea): o jogador é passivo, conta com tudo menos consigo mesmo, é aban-
donado ao destino, com suspensão da vontade; a única forma de jogo alheia aos animais.
144 Gamificação em debate

3. Jogo mimético (simulação ou mímica): como no teatro ou nos jogos de papéis (role-
-playing game – RPG), o ator faz crer que é alguma coisa, é evasão do mundo e criação
de mundos.
4. Jogo de vertigem (ilinx): provoca uma modificação no estado de consciência, como no
balanço, numa ciranda ou numa cama elástica.

Mas, como Huizinga (2008), Callois (1990) reconhece as ambiguidades da questão e


nos convoca a ir além do contraponto entre o sério e o lúdico. É preciso estar alerta para um
comércio, uma “contaminação” entre essas esferas: cada categoria pode ser “corrompida” pela
vida ordinária.
Pode faltar mediação ou arbitragem num espaço de agon, enquanto alea pode sofrer o
contágio da superstição, a mímica pode em muitos casos perverter-se em plena identifica-
ção com o papel representado por uma imitação, e os jogos de vertigem (ilinx) muito fre-
quentemente são substituídos pelo álcool e pelas drogas.
Ambiguidade, negatividade e abertura tornam-se os vetores determinantes a reverberar
das reflexões feitas por alguns dos clássicos da filosofia do lúdico, características operacio-
nais que se associam à própria existência viva da linguagem.

Referências
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Gamificação em educação: revisão
de literatura
11
João Mattar

Introdução
O campo de estudos sobre gamificação em educação cresceu vertiginosamente nos úl-
timos quinze anos, o que pode ser atestado pela quantidade de publicações mencionadas
neste capítulo. Isso torna, naturalmente, qualquer tentativa de realizar uma revisão de lite-
ratura um desafio bastante complexo.
As buscas para esta revisão foram feitas no Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério da Educação
(MEC), incluindo o Google Acadêmico, no final do ano de 2016, e atualizadas em 28 de
fevereiro de 2017. Foram a princípio utilizados no título os termos gamificação e educa-
ção (e suas traduções em inglês), posteriormente combinados com palavras que definem
as diversas áreas e subáreas do conhecimento classificadas pela Capes. Além disso, as
buscas foram refinadas com a combinação de palavras como revisão, mapeamento, litera-
tura ou sistemática.
Como critérios de exclusão, foram separados os trabalhos que se referiam à aplicação da
gamificação a alguma área específica (alguns deles são mencionados na seção seguinte) ou
algum nível de escolaridade específico (Educação Básica, Superior ou corporativa). Além
disso, foram também excluídos os trabalhos que exploravam especificamente o uso de games
em educação. Textos meramente teóricos também não foram considerados, apesar de terem
sido avaliados alguns que desenvolvem modelos teóricos testados empiricamente para a
aplicação da gamificação à educação.
Para ampliar as buscas, foram consultadas algumas das referências mencionadas nos
textos selecionados. Além disso, foram pesquisadas mais publicações sobre o tema dos au-
tores dos textos selecionados e avaliados alguns textos que citavam os artigos escolhidos.
Apesar de alguns textos teóricos ou voltados para áreas ou níveis de escolaridade espe-
cíficos serem mencionados neste capítulo (quando possuíam características que mereciam
destaque), além de algumas pesquisas individuais, a revisão focou basicamente nos resulta-
dos da busca que apresentavam mapeamentos ou revisões de literatura na área. Assim, este
148 Gamificação em debate

capítulo cobre as revisões de literatura sobre o uso de gamificação em educação de uma


maneira geral, completadas por outros resultados da busca que mereceram algum tipo de
destaque, por divergirem ou completarem esses resultados gerais.
Este capítulo está dividido em quatro seções. A seção seguinte define o conceito de
gamificação. A terceira seção, a mais longa e importante, aborda brevemente alguns livros
e artigos específicos, apresenta em seguida os resultados da revisão de literatura sobre ga-
mificação em educação e termina com a análise de alguns modelos teóricos. A última, por
sua vez, procura resumir e consolidar esses resultados.

Gamificação
O termo gamificação passa a ser utilizado com mais intensidade a partir da década de
2010, apesar de a prática ser bem mais antiga. Deterding et al. (2011, p. 10, tradução nossa)
a definem como “o uso de elementos de design de games em contextos que não são de games”,
enquanto Sheldon (2012, p. 75, tradução nossa) propõe uma definição similar: “gamificação
é a aplicação de mecânicas de games a atividades que não são de games”. Há várias outras
definições disponíveis na literatura, em alguns casos considerando a utilização de games no
processo de ensino e aprendizagem como parte do conceito mais amplo de gamificação
(KAPP, 2012). Neste capítulo, seguiremos as definições de Deterding et al. (2011) e Shel-
don (2012), ou seja, a revisão de literatura realizada não levará em consideração o uso de
games em educação.
As publicações gerais sobre gamificação cresceram exponencialmente nos últimos anos,
inclusive em língua portuguesa (VIANNA et al, 2013; BUSARELLO, 2016). Uma busca
por livros na Amazon contendo no título a palavra gamification retorna 247 resultados (em
27 de fevereiro de 2017), com destaque para Zichermann e Cunningham (2011), Paharia
(2013), Zichermann e Linder (2013), Chou (2015) e Burke (2016).
Existem pesquisas sobre o uso de gamificação nas mais diversas áreas do conhecimento:
ciências exatas e da Terra, como matemática (ATTALI; ARIELI-ATTALI, 2015), física
(STUDART, 2015) e química (FERNANDES; CASTRO, 2015); ciências da saúde, como
educação física (VAN DER HOST, 2016), nutrição (BERGER; SCHRADER, 2016),
enfermagem (DAY-BLACK, 2015) e medicina (CARVALHO et al., 2013); quase todas as
subáreas das ciências sociais aplicadas, como turismo (LOURISELA, 2015), arquitetura
(AYDIN, 2014), tecnologia da informação (CASTRO; MONTICELLI, 2015), direito
(KIMBRO, 2015), economia (HAMARI; HUOTARI; TOLVANEN, 2015), administra-
ção (BAINES; PETRIDIS; RIDGWAY, 2015) e mercadologia (HUOTARI; HAMARI,
2011, 2012, 2017); e ciências humanas, como história ( JANIEC, 2015), ciência política
(MAHNIC, 2014) e letras (FLORES, 2015).
Apesar de a maioria dos estudos indicados nesta seção terem relação com o ensino
em áreas específicas, a seção seguinte explora as publicações e as pesquisas sobre gamifi-
cação em educação de uma perspectiva geral, que propositalmente não foram menciona-
das nesta seção.
Gamificação em educação: revisão de literatura 149

Gamificação em educação
Em educação, o uso da gamificação tem crescido intensamente, popularizado por vários
livros (SHELDON, 2012; KAPP, 2012; KAPP; BLAIR; MESCH, 2014; ALVES, 2014;
FADEL et al., 2014; MATERA, 2015; FARBER, 2017).
Sheldon (2012, p. 27, tradução nossa) faz sugestões para elaborar disciplinas como se
fossem jogos, mostrando em vários momentos como transformou um plano de ensino tradi-
cional em um game, com a observação: “Esta disciplina foi projetada como um jogo multiu-
suário”. Uma das propostas é converter as notas em um sistema de pontos, em que os alunos
começam com zero. A avaliação por pares é também sugerida. O livro apresenta ainda vários
cases de gamificação enviados por professores de diversas escolas e instituições de ensino.
Para Kapp (2012), a gamificação não é um fenômeno novo, não funciona para todas as
situações, não significa trivialização da aprendizagem nem é sinônimo de simplesmente
oferecer pontos e prêmios. Ele considera que os serious games seriam parte do processo de
gamificação na educação.
Seu livro descreve diversos elementos de games: abstrações de conceitos e da realidade;
objetivos; regras; conflito, competição e colaboração (conflitos envolveriam acabar com o
adversário: competição, vencê-lo); tempo; estruturas de recompensa (recompensas espera-
das geram mais dopamina que recompensas não esperadas, e a incerteza do jogo pode
transformar a experiência emocional da aprendizagem, aumentando o engajamento, a co-
dificação e a lembrança); feedback; níveis (fases, escolha de dificuldade na entrada e experi-
ências/habilidades conquistadas ao jogar); narrativa (envolvendo personagens, enredo,
tensão e resolução e a jornada do herói); curva de interesse; estética; replay ou jogar nova-
mente; motivação (e a complexa relação entre motivação extrínseca e intrínseca); avatares
(e seus aspectos psicológicos); e perspectiva do jogador (primeira ou terceira pessoa).
Apresenta também alguns modelos e teorias que podem servir de fundamento para o
design de jogos para a educação, conforme o Quadro 11.1.

Quadro 11.1 – Teorias de aprendizagem e seu impacto na gamificação

Teoria Impacto no design da gamificação

Modela o comportamento desejado de maneira que


Aprendizagem social (Robert Bandura)
o aprendiz o observe e processe internamente

O cenário e o ambiente devem ser autênticos e


Aprendizagem (apprenticeship) cognitiva – cognição
oferecer feedback e orientação para a atividade do
situada
aprendiz

O sistema adapta-se continuamente para manter o


aprendiz em um estado constante de interesse e o
Fluxo (Mihaly Csikszentmihalyi)
nível de desafio adequado ao aprendiz (não tão fácil
e não tão difícil)
150 Gamificação em debate

Teoria Impacto no design da gamificação

Fornece recompensas, pontos e badges apropriados,


Condicionador operante (Skinner) de maneira variável, para manter o interesse do
aprendiz

Prende a atenção do aprendiz e contém informação


relevante e nível apropriado de desafios, de maneira
Modelo ARCS (atenção, relevância, confiança e
que o aprendiz se sinta confiante de que obterá
satisfação) (John Keller)1
sucesso, oferecendo elementos motivacionais
intrínsecos e extrínsecos

Ensino intrinsecamente motivador (Thomas Malone)2 Inclui elementos de desafio, fantasia e curiosidade

Princípios de design instrucional para motivação Inclui elementos de controle sobre a aprendizagem,
intrínseca (Marc Lepper) desafio, curiosidade e contextualização

Taxonomia das motivações intrínsecas para a Inclui elementos motivacionais internos e externos
aprendizagem (combinação dos modelos de Malone como desafio, curiosidade, controle, fantasia,
e Lepper) cooperação, competição e reconhecimento

Oferece ao aprendiz oportunidades para autonomia,


Autodeterminação
sentimento de competência e ligação com os outros

Jogar de tempo em tempo para oferecer repetição


Prática distribuída
espaçada do conteúdo do jogo

Começa oferecendo bastante orientação e passa a


Suporte (scaffolding) oferecer cada vez menos, até que o aprendiz esteja
resolvendo problemas com independência

Evoca emoções do aprendiz para codificar com mais


Memória episódica
riqueza os ensinamentos do jogo na memória

Fonte: adaptado de Kapp (2012). Importante ressaltar novamente que o autor considera a utilização de games em educação
um tipo de gamificação.

Kapp faz também uma revisão de meta-análises de estudos sobre os resultados do uso
de games na aprendizagem (não exatamente gamificação no sentido mais restrito que esta-
mos adotando neste capítulo): Randel et al. (1992), Wolfe (1997), Vogel et al. (2006), Ke
(2008) e Sitzmann (2011). Alguns pontos são comuns à maioria dessas meta-análises: ati-
tudes mais positivas em relação à aprendizagem e maior conhecimento foram detectados
em grupos que utilizavam games, comparando-se com grupos que utilizavam métodos de
ensino mais tradicionais; e games geram resultados positivos se têm objetivos de aprendizagem

1
Ver <http://www.arcsmodel.com/>.
2
Ver <https://www.learning-theories.com/intrinsically-motivating-instruction-malone.html>.
Gamificação em educação: revisão de literatura 151

definidos e estão incluídos em programas de ensino que oferecem suporte, perguntas,


reflexões e retorno para os alunos.
O estudo de Sitzmann (2011) tira uma conclusão interessante de sua meta-análise.
Uma de suas hipóteses previa que os alunos aprenderiam mais com games e simulações
com maior valor de entretenimento. Entretanto, os resultados não suportaram a hipótese,
já que os alunos aprenderam o mesmo com jogos e simulações com valores de entreteni-
mento alto e baixo. Ao contrário de boa parte da literatura, o valor do entretenimento do
ensino não se mostrou uma característica que afeta a eficácia da aprendizagem, pois não
afetou o quanto os alunos aprenderam, enquanto evitar metodologias passivas de ensino
foi a característica que mais contribuiu para a aprendizagem. Pela conclusão da meta-
-análise de Sitzmann, games e simulações não precisam ser divertidos para serem educa-
cionais. Não parece haver uma correlação entre o valor de diversão de um game ou
simulação e o seu mérito educacional. A conclusão pode, naturalmente, ser expandida
para a gamificação, no sentido da utilização de elementos de games em educação: a ca-
racterística da diversão ou ludicidade, uma das mais comumente mencionadas na litera-
tura, não gera necessariamente mais aprendizagem. Isso merece estudos específicos.
Denmeade (2015) escolhe um caminho interessante: usar diversos recursos simples
do Moodle (excluindo as atividades Questionário e Lição, que são mais complexas de
elaborar) para incorporar elementos de design de jogos em cursos. Ela dá dicas de como
usar a configuração da conclusão de atividades para abrir novos espaços para o aluno
no curso, incluindo tarefas e rótulos. Insiste também na importância de trabalhar em
detalhes o Livro de Notas, por exemplo o uso de escalas com estrelas e outros símbolos,
e também de apresentar sempre para os alunos seu progresso, individual ou em grupo.
Sua orientação é criar layouts minimalistas no Moodle. Há ainda um capítulo que ex-
plora o uso de badges, da maneira como são usados em games. Por fim, há orientações
para a organização de grupos e conexões do fórum em formato de blog do Moodle com
blogs externos.
Walz e Deterding (2014) apresentam os usos de games e gamificação em várias áreas,
bem como diversas críticas ao seu poder motivador. Os autores defendem que o desen-
volvimento da gamificação estaria relacionado à interpenetração entre os games e a vida
real, em um movimento de ludificação da cultura. O livro, em vez de utilizar as pala-
vras gamificação ou ludificação, usa a expressão gameful world. Ramirez e Squire (2014),
no mesmo livro, focam em quatro características de design utilizadas em gamificação:
sistemas de pontos, conquistas, desafios e estruturas narrativas. A gamificação nas escolas
possibilitaria que os alunos assumissem mais identidades que a do bom aluno que retorna
tudo o que o professor solicita. Sistemas de pontos por conquistas e feedback em relação
ao progresso poderiam ser mais adequados que notas em provas. Cabe notar que alguns
periódicos já dedicaram números completos à gamificação em educação, como Digital
Education Review (n. 27, jun. 2015) e RIED — Revista Iberoamericana de Educación a
Distancia (v. 19, n. 2, 2016).
Krause et al. (2015) exploram a gamificação especificamente em cursos online. Um expe-
rimento controlado foi realizado com 213 alunos de Psicologia e Ciência da Computação, em
152 Gamificação em debate

uma disciplina online de introdução à programação com Python. Foram comparadas três
condições: (a) sem gamificação, (b) com elementos de games (mas sem elementos sociais) e
(c) com gamificação e elementos sociais (que significava desafiar um oponente). Os alunos
do segundo grupo tiveram notas 23% maiores e aumento de 25% em retenção quando
comparados com o primeiro grupo, e o grupo com gamificação e elementos sociais teve
notas quase 40% superiores e 50% de retenção em relação ao primeiro grupo. Como con-
clusão, é possível afirmar que a gamificação gera efeitos positivos na aprendizagem e que os
elementos sociais amplificam significativamente seu efeito. Estudos sobre gamificação em
educação a distância são naturalmente essenciais, pelo crescimento dos dois campos, mere-
cendo uma revisão separada.

Revisões de literatura
A revisão de literatura que buscou estudos de mapeamento, revisão ou meta-análises
sobre gamificação em educação, com os critérios de exclusão já indicados, retornou onze
textos: Borges et al. (2013), Nah et al. (2014), Hamari, Koivisto e Sarsa (2014), Caponetto,
Earp e Ott (2014), Surendeleg et al. (2014), Garland (2015), Dicheva et al. (2015), Dicheva
e Dichev (2015), Figueiredo, Paz e Junqueira (2015), Barreto et al. (2016) e Jackson (2016).
Borges et al. (2013, 2014) realizaram um mapeamento sistemático da área, analisando
inicialmente 357 estudos, escolhendo 48 relacionados à área e 26 que satisfizeram os crité-
rios de inclusão e exclusão. O mapa das pesquisas indicou que a maior parte dos estudos se
concentra em investigar como a gamificação pode ser utilizada em educação para motivar
os alunos e aprimorar suas habilidades e a aprendizagem.
Nah et al. (2014), em uma revisão de quinze textos datados de 2012 a 2013, identifica-
ram oito elementos de design de jogos que são amplamente utilizados nos contextos edu-
cacional e de aprendizagem: pontos, níveis/fases, badges, placares, prêmios e recompensas,
barras de progresso, narrativa e feedback.
Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) realizaram uma revisão da literatura em diversas bases
de dados de estudos empíricos sobre gamificação. Vinte e quatro artigos, revisados por
pares, foram selecionados. A variedade de contextos em que foram realizados os estudos era
ampla, sendo a gamificação em educação ou aprendizagem o contexto mais comum para as
implementações. Todos os estudos em contextos de educação/aprendizagem consideraram
os resultados da gamificação predominantemente positivos, por exemplo, em termos de
aumento da motivação e do envolvimento nas tarefas, bem como da diversão com elas. No
entanto, apontaram também para resultados negativos aos quais é necessário prestar aten-
ção, como os efeitos do aumento da competição e as dificuldades para avaliar as tarefas.
Caponetto, Earp e Ott (2014) realizaram uma revisão de literatura de 119 textos, pu-
blicados entre 2011 e início de 2014. Os resultados da análise apontam para a crescente
popularidade das técnicas de gamificação, tendo o conceito se tornado mais claramente
definido para pesquisadores e praticantes, diferenciando-se claramente do conceito de
aprendizagem baseada em games, o que sugere que certo nível de convergência taxonômica
e epistemológica está sendo construída. É interessante também notar que a maior parte dos
Gamificação em educação: revisão de literatura 153

textos avaliados apresentou a gamificação em ambientes virtuais de aprendizagem, ou seja,


em educação a distância.
Surendeleg et al. (2014) identificaram diversas lacunas na literatura sobre gamificação
em educação – por exemplo, quais elementos de games geram mais motivação e qual seu
impacto no longo prazo. Entre os principais elementos de games identificados, podem ser
mencionados: feedback, classificação (ou rankings), pontos e níveis. A conclusão sugere que
o impacto da gamificação deve ser explorado em habilidades para a vida toda. É preciso
explorar a possibilidade do uso da gamificação no espaço de trabalho para o treinamento de
habilidades motoras.
Garland (2015) realizou uma meta-análise de trabalhos sobre gamificação em educação,
identificando que muitos estudos mostram benefícios para o seu uso em ambientes educa-
cionais, sendo então necessário determinar quais aspectos da gamificação são benéficos.
Diversas variáveis moderadoras foram identificadas como importantes, como a duração do
ensino, a inclusão de aspectos competitivos e o uso do tempo em tarefas.
Dicheva et al. (2015) fizeram um mapeamento sistemático de 34 pesquisas empíricas
publicadas entre 2010 e junho de 2014 sobre os efeitos da aplicação da gamificação em
educação. As categorias utilizadas foram: princípios de design da gamificação, mecânica de
games, contexto da aplicação da gamificação, implementação e avaliação. O mapeamento
indica alguns obstáculos, como a necessidade de um suporte tecnológico específico e de
estudos controlados demonstrando resultados confiáveis, positivos ou negativos, do uso de
elementos específicos de games em contextos educacionais particulares. Embora boa parte
das pesquisas apresente resultados promissores, mais pesquisas empíricas sólidas são neces-
sárias para determinar se e quanto as motivações extrínseca e intrínseca dos aprendizes
podem ser influenciadas pela gamificação.
Dicheva e Dichev (2015) continuaram o trabalho anterior analisando 41 trabalhos
publicados entre julho de 2014 e junho de 2015, confirmando que a penetração da gamifi-
cação na educação ainda está crescendo e que a prática superou a compreensão dos pesqui-
sadores sobre sua mecânica e seus métodos, mas alertando que a gamificação já passou o
pico de expectativas infladas e está em uma fase mais crítica e analítica, o que se percebe
pelo crescimento de estudos com resultados inconclusivos ou negativos.
Figueiredo, Paz e Junqueira (2015) fizeram um mapeamento de elementos teóricos e
práticos relacionados à autoria do professor em gamificação, em pesquisas realizadas no
Brasil (SBGames de 2009 a 2014; Portal de teses e dissertações da Capes de 2000 a 2013;
e produções bibliográficas publicadas no Brasil de 2013 a 2014). Os resultados demonstra-
ram que são necessárias mais pesquisas, por se tratar de um campo novo, apontando tam-
bém para a necessidade de que pesquisa e prática educativa se retroalimentem e do
estabelecimento de um arcabouço teórico interdisciplinar que contemple o estudo dos di-
versos aspectos do emergente fenômeno.
Barreto et al. (2016) realizaram um mapeamento sistemático com vinte artigos sobre a
gamificação em educação buscando boas práticas e lições aprendidas. Os resultados mos-
traram que a gamificação é, de maneira geral, eficiente, sendo necessários: planejamento
adequado do seu design, dinâmica entre os grupos e participação do professor na motivação
154 Gamificação em debate

e no envolvimento dos alunos. Os elementos identificados como mais usados foram: pontos,
badges, competição, nível, placar, realizações, recompensas, desafios e rankings. O Quadro
11.2 apresenta aspectos positivos e negativos identificados.

Quadro 11.2 – Seleção de aspectos positivos e negativos identificados no mapeamento

Aspectos positivos Aspectos negativos

A competição tem o risco de diminuir a motivação


A competição melhora a aprendizagem, a motivação e a diversão, causando sentimentos negativos pela
e o envolvimento perda da competição, interferindo também na
dinâmica dos grupos

Os alunos sem reputação ou com pouca reputação


por não participarem tão ativamente quanto os
Os alunos enxergam o sistema gamificado como
outros podem se sentir desmotivados para responder
muito prazeroso, encorajador e desafiador
ou elaborar questões, por medo de não estarem no
mesmo nível daqueles com maior reputação

A competição também tem o potencial de Nem todo aluno é motivado da mesma maneira pela
compensar a falta de habilidades em algumas gamificação, pois as motivações podem variar de um
atividades para outro

A gamificação facilita o debate entre os alunos e Alunos com exatamente o número de pontos
promove compensações por responder a questões necessários para passar na disciplina eram menos
dos colegas motivados

Risco de perder o foco na atividade se os


O anonimato ou semianonimato permitiu
participantes exagerarem na gamificação, levando-
que os alunos se expressassem mais livre e
os a se preocupar mais com a vitória que com o
confortavelmente
aprendizado

Fonte: Barreto el al. (2016, tradução nossa).

Por fim, Jackson (2016), em sua dissertação de mestrado, realiza uma revisão de litera-
tura demonstrando que a gamificação pode ser incorporada com eficiência à educação para
motivar os alunos e melhorar a aprendizagem. Entretanto, a integração apropriada requer
uma análise detalhada dos alunos envolvidos, do material do curso, dos objetivos de apren-
dizagem e da estrutura holística da experiência, e a consideração de quais elementos e
mecanismos específicos guiarão com mais eficiência o aluno por uma experiência de apren-
dizagem significativa.

Modelos teóricos
Para o desenvolvimento de pesquisas na área, são necessários modelos teóricos testados
empiricamente. Bedwell et al. (2012) desenvolveram uma taxonomia dos elementos de games
Gamificação em educação: revisão de literatura 155

educacionais, propondo nove categorias com atributos distintos, relacionados a resultados de


aprendizagem, que estariam presentes em todos os games, variando em intensidade:

• linguagem de ação: interface e comunicação entre o jogador e o sistema, para traduzir


os comandos do jogador;
• avaliação: feedback e informações sobre o progresso do jogador, incluindo placares;
• conflito/desafio: incluindo nível de dificuldade e surpresa;
• controle: interação com o equipamento;
• ambiente: “local” em que o game é jogado;
• ficção do game: envolvendo história, fantasia e mistério;
• interação humana: interpessoal (no espaço e tempo reais) e social (mediada por tecnologia);
• imersão: percepção do jogador no jogo, incluindo estímulos sensoriais, como os visuais
e sonoros, objetos e pessoas;
• regras/objetivos.

Landers (2014), no desenvolvimento de uma teoria psicológica da aprendizagem gami-


ficada, adaptou as nove categorias de Bedwell et al. (2012), defendendo que os mesmos
atributos podem ser aplicados fora do contexto de um game para afetar atitudes ou com-
portamentos relacionados à aprendizagem. Entretanto, enquanto os games educacionais em
geral utilizariam todas essas categorias, a gamificação poderia utilizar apenas uma ou algu-
mas delas.
Ao contrário dos games, a gamificação não visa em geral influenciar a aprendizagem
diretamente; em vez disso, seu objetivo é alterar o comportamento ou a atitude contextual
de um aprendiz (como o envolvimento), o que, por sua vez, pode melhorar o ensino já
existente como consequência daquela mudança comportamental ou atitudinal. Assim, os
praticantes de gamificação na aprendizagem esperam que os atributos de game afetem um
comportamento relacionado à aprendizagem que, por sua vez, afetará a aprendizagem de
alguma forma. Ou seja, embora se possa afirmar que eles aprenderam com um jogo, geral-
mente não será válido dizer que eles aprenderam com a gamificação. O objetivo da gamifi-
cação, portanto, não pode ser substituir o material de ensino, mas melhorá-lo, pois as
características de games provocam mudanças no comportamento e em atitudes, e não dire-
tamente no material de ensino.
Em suma, o uso de uma característica de game aumenta o engajamento, que modera a
relação entre o conteúdo instrucional e os resultados de aprendizagem. Uma implicação im-
portante de um processo de moderação é que o moderador não influencia a construção do
resultado, independentemente da construção causal. Nesse caso, a inclusão de um elemento
de jogo não teria qualquer efeito sobre o aprendizado se o design de instrução já não fosse
sólido. Se um curso for de baixa qualidade (por exemplo, se esse curso não incorporar técnicas
pedagógicas válidas), a adição de gamificação não teria efeito sobre a aprendizagem. Este é,
portanto, um vetor potencial para os esforços de gamificação fracassados: se um instrutor não
vê ganhos esperados de aprendizagem entre os alunos em virtude da má concepção instrucio-
nal e, em seguida, incorpora a gamificação, é improvável que a aprendizagem melhore. Nesse
156 Gamificação em debate

caso, a verdadeira causa do problema (má eficácia do design instrucional) permanece, e ele-
mentos de jogo no curso não farão nada para melhorar a aprendizagem.
Em outras palavras, a relação entre elementos de games e resultados de aprendizagem
é mediada por comportamentos/atitudes. As características de games afetam os resultados
de aprendizagem, mas apenas porque afetam um comportamento/atitude, e o comporta-
mento/atitude, por sua vez, afeta os resultados de aprendizagem. Portanto, a gamificação
pode não ter êxito em melhorar o aprendizado se qualquer uma das duas relações causais
da mediação não se sustentar: o professor deve assegurar que os elementos do jogo levem
ao comportamento e que este leve à aprendizagem. Se qualquer uma dessas relações for
falsa, a gamificação não produzirá os resultados pretendidos.
De maneira geral, esse modelo indica que a gamificação pode afetar a aprendizagem por
meio de dois processos. Em ambos, a gamificação pretende influenciar um comportamento
ou uma atitude relacionada à aprendizagem. No entanto, a relação entre esse comporta-
mento e os resultados difere dependendo da natureza dessa construção.
De um lado, a gamificação afeta o aprendizado pela moderação quando um designer
instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que aumentará os resulta-
dos da aprendizagem, tornando a instrução preexistente melhor de alguma forma. Por
exemplo, uma narrativa pode ser incorporada a um plano de aula existente para aumentar a
motivação dos alunos. O efeito final desse aumento motivacional é então contingente à
presença de instrução efetiva.
De outro lado, a gamificação afeta o aprendizado pela mediação quando um designer
instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que, por sua vez, melhore
os resultados da aprendizagem. Por exemplo, essa mesma narrativa pode ser usada para
aumentar a quantidade de tempo que os alunos gastam em casa com o material do curso; e
esse aumento do tempo deve causar maior aprendizado diretamente. Um ou ambos os
processos podem estar presentes em qualquer exemplo particular de aprendizagem gamifi-
cada eficaz e, criticamente, cada um exige diferentes designs de investigação e estratégias
analíticas para os suportar.
Esse modelo foi testado empiricamente em Landers e Landers (2014), que relacionam
elementos de jogo específicos comuns a placares (conflito/desafio, regras/objetivos e avalia-
ção) com comportamento focal do aprendiz e tempo na tarefa, explorando pesquisas edu-
cacionais sobre competição e pesquisas psicológicas sobre a teoria de estabelecimento de
objetivos. O processo de mediação da teoria da aprendizagem gamificada foi testado expe-
rimentalmente solicitando-se aos alunos a conclusão de um projeto baseado em uma wiki
online, sendo que um grupo utilizou uma versão gamificada com um placar e outro utilizou
uma versão de controle sem placar.
A atribuição aleatória a placares suportou um efeito causal. Os alunos com placares
interagiram com seu projeto, em média, 29,61 vezes mais que aqueles em uma condição de
controle. O método estatístico de bootstrapping foi usado para apoiar a mediação do efeito
da gamificação sobre os resultados acadêmicos por essa quantidade de tempo. O processo
mediador da teoria da instrução gamificada mostrou-se suportado. A conclusão da pesquisa
Gamificação em educação: revisão de literatura 157

foi que os placares podem ser usados para melhorar o desempenho no curso em determi-
nadas circunstâncias.

Conclusão
É possível tirar várias conclusões da revisão de literatura realizada. Em primeiro lugar,
cabe ressaltar que, apesar de ser uma área nova, houve um rápido crescimento dos estudos
sobre gamificação em educação, sendo possível afirmar que a fase inicial de euforia e oti-
mismo já foi superada, e caminhamos agora para a elaboração de teorias mais sólidas e
testadas empiricamente.
Em geral, as pesquisas apontam para resultados positivos da aplicação de estratégias de
gamificação à educação. Entretanto, é essencial diferenciar os estudos que procuram men-
surar o aumento da motivação, mais comuns, daqueles que procuram mensurar resultados
de aprendizagem, mais difíceis de se realizar. Mesmo da perspectiva da motivação, há ainda
muita discussão na literatura a respeito dos efeitos da gamificação sobre as motivações ex-
trínseca e intrínseca dos alunos, além do fato de que diferentes alunos são motivados de
maneiras distintas.
Praticamente todos os estudos apontam para a importância do design da gamificação,
incluindo a análise do contexto e dos alunos, a definição dos objetivos de aprendizagem (e
das regras do jogo), a elaboração do conteúdo e outros procedimentos, que podem ser
adaptados do design educacional.
Apesar de algumas críticas à simples identificação da gamificação com recompensas e
prêmios, o estabelecimento de um sistema de pontos para substituir as notas na educação
tradicional parece ser uma das contribuições importantes da gamificação. Nesse sentido,
faz-se necessário um trabalho detalhado com a construção dos placares (aproveitando seu
desenvolvimento no design de jogos) para apresentar aos alunos seu progresso nas ativida-
des, com indicações de sua classificação. Justifica-se também um trabalho específico na
elaboração de estruturas de feedback e recompensa para os alunos, incluindo, por exemplo,
badges. Cabe, entretanto, notar o desafio para a avaliação de tarefas nessas novas configu-
rações educacionais, sendo necessário combinar diferentes tipos de avaliação: autoavaliação,
avaliação por pares, avaliação automática do computador, avaliação do professor, avaliação
por projetos (encomendados por terceiros), avaliação de especialistas externos e avaliação
da multidão (como em redes sociais abertas).
A gamificação em educação tem também muito a aproveitar do know-how do level
design, ou design de níveis ou fases, uma das marcas do design de jogos. Assim, as experi-
ências gamificadas podem oferecer níveis distintos na entrada e conforme o aluno vai pro-
gredindo nas atividades. As conquistas são outro recurso que pode ser aproveitado do design
de jogos.
A narrativa é também um elemento essencial no design de jogos que pode contribuir
intensamente para a gamificação da educação, envolvendo personagens, enredo, desafios e
tensão. Nesse sentido, a combinação entre conflitos (em que o adversário precisa ser destru-
ído), competição (em que o adversário precisa ser simplesmente derrotado) e colaboração é
158 Gamificação em debate

uma das áreas em que o design de jogos tem mais a contribuir com a educação, com a res-
salva de que a competição pode gerar efeitos negativos na aprendizagem, como indicado em
muitos estudos.
Há naturalmente limitações nesta revisão de literatura. Alguns trabalhos importantes
podem não ter sido identificados por não possuírem as palavras ou expressões utilizadas
para a busca no seu título. Outros podem parecer estudos específicos por seus títulos e re-
sumos (e foram, por isso, excluídos da revisão), mas no final serem genéricos. Além disso,
estudos em áreas ou níveis escolares específicos, descartados nesta revisão, certamente têm
contribuições para as reflexões aqui realizadas, bem como os estudos sobre a utilização de
games em educação. Cabe ainda notar que o conceito de gamificação é fluido, podendo
algumas estratégias de gamificação estar indicadas em artigos que, a princípio, focariam na
aprendizagem baseada em games.
Diversos trabalhos futuros foram delineados pela revisão de literatura. São necessários
mais estudos empíricos na área, fundamentados em modelos teóricos e multidisciplinares,
que também precisam ser desenvolvidos. Especificamente, a área se desenvolverá com estu-
dos que procurem determinar quais elementos de design de jogos geram resultados (e que
tipos de resultados) em que tipos de cursos (e duração), alunos e contextos. Cabe também
diferenciar, nas futuras pesquisas, entre a gamificação do conteúdo educacional e a gamifi-
cação da experiência de aprendizagem (que não altera o conteúdo).

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Design educacional em jogo
Paula Carolei
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O design educacional, também conhecido pela denominação design instrucional, tem


sua origem associada a treinamentos militares na Segunda Guerra Mundial, em sistemas e
programas controlados, sequenciados e com reforço apropriado baseados na teoria compor-
tamental da época (FILATRO, 2007).
O paradigma comportamental foi muito presente na história da educação, e em algumas
situações ainda é, especialmente na lógica de atuação inicial desse profissional: planejar e
criar ações e materiais educacionais mais eficientes e com resultados padronizados e men-
suráveis. Mas há outros tipos de design educacional em outros espaços e tempos que são
mais vivos e processuais e que podem ampliar nossa visão sobre o ato de aprender e, espe-
cialmente, criar condições e trajetórias para aprender melhor.
Uma das tentativas de superar essa associação entre o comportamental e o design de
processos de ensino e de aprendizagem foi utilizar design “educacional” em vez de “instru-
cional”, porque, no Brasil, a palavra instrucional tem uma ligação imediata com “instrução
programada”, que foi uma série de movimentos e programas de aplicação massiva das teo-
rias comportamentais na educação, comum nas décadas de 1970 e 1980. Mas a palavra
instructional, em inglês, está associada ao que é planejado, ou seja, às ações em que se tem
um plano pedagógico. Assim, nem sempre o que é planejado é comportamental, sendo que
um design, apesar de ser planejado, pode ser algo dialogado, mais vivencial, mais lúdico e
colaborativo, que traz outras dimensões e potencialidades para o ato de aprender, muito
além de reforçar comportamentos esperados.
Assim, a ideia de design, que vai muito além de regras, templates, desenhos e planeja-
mento, promove uma complexidade de ações que pode dar muito mais vida, dinâmica e uma
postura mais ativa e propositiva para a educação, incorporando movimentos e tendências,
inclusive a gamificação. Então, que mecânicas e dinâmicas do design de jogos podem con-
tribuir para o design educacional?
A proposta deste texto é brincar com as controvérsias dos movimentos educacionais,
colocando o design educacional em jogo e convidando você, leitor, a se colocar diante de
situações educacionais possíveis, como um jogador que explora determinado contexto,
encontra desafios e tem de resolver problemas, se posicionar ou tomar decisões,
164 Gamificação em debate

considerando as armas que o design de jogos pode nos oferecer para lidar com esses de-
safios educacionais.
Nosso capítulo/jogo tem cinco fases que correspondem a grandes desafios do design
educacional: a intencionalidade pedagógica, a superação do modelo comportamental, a
transformação do demonstrativo em vivencial, a iteratividade e as novas formas de imersão/
presença. Convidamos você a tomar algumas decisões diante desses desafios.

Regras do jogo
O objetivo deste capítulo/jogo é encontrar caminhos para um design educacional mais
avançado, menos reativo e mais conscientizador. O design de jogos pode nos dar muitas
pistas de como criar processos mais interativos e exploratórios, mas não é possível apenas
trocar um processo de design educacional pelos processos de criar um jogo: é possível
comparar e contextualizar, aproveitando o que cada processo tem a ensinar e transformar.
Então, é preciso coletar e conhecer o potencial das armas que o design de jogos nos pode
dar e usá-las com parcimônia e coerência para potencializar o design educacional
Antes de começar nosso jogo, é preciso tecer algumas considerações sobre mecânicas e
dinâmicas e como podemos ampliar novas ações do design educacional com as tecnologias
e as lógicas dos games.
Um dos frameworks mais conhecidos de design de jogos é conhecido como mecânica-
-dinâmica-estética (mechanics-dynamics-aesthetics ‒ MDA) e foi desenvolvido por Hunicke,
LeBlanc e Zubek em 2004. O MDA considera como mecânicas os elementos ligados às
regras, às leis e à física: restrições e padrões programáveis. As dinâmicas se relacionam aos
movimentos, às ações e aos comportamentos que emergem a partir de regras e padrões, ou
seja, ao sistema e aos fluxos. Já a estética, nessa perspectiva de Hunicke, LeBlanc and Zubek
(2004), se refere às respostas emocionais evocadas no jogador, que os autores classificam em
oito tipos principais: sensação/excitação ‒ o jogo como sensação de prazer, que vem de uma
experiência complemente nova; fantasia ‒ quando o jogo faz acreditar num mundo imagi-
nário; narrativa ‒ quando o jogo funciona como um drama; desafio ‒ o jogo como um
obstáculo a ser superado; confraria ‒ o jogo funciona como um local de encontro, troca,
como uma comunidade; descoberta ‒ o jogo como um território desconhecido a ser explo-
rado; expressão ‒ o jogo como espaço de expressão de ideias e da representação de si; e
submissão ‒ quando o jogo é um passatempo e apenas o jogador se submete às regras.
Outra questão muito comum que aparece em relação a game e gamificação é a questão
da motivação e o engajamento. Chou (2015) estudou por dez anos as diversas mecânicas e
estruturas de games e propôs um framework para ajudar a pensar nessas motivações que
permeiam os processos de gamificação. Esse autor critica os modelos que reduzem a moti-
vação a pontuações e ranqueamentos e apresenta um framework chamado Octalysis, que
tem uma forma de octógono por meio do qual são apresentadas as oito faces da motivação:
significado, realização, posse, escassez, empoderamento, influência social, imprevisibilidade
e repúdio. O significado e o repúdio são o topo e a base desse octógono. Podemos dizer que
somos motivados por um propósito que nos dê significado e por aquilo que negamos e
Design educacional em jogo 165

evitamos, como se fosse nossa sombra, com a qual precisamos trabalhar e conviver, numa
relação de conflito que nos motiva.
O lado esquerdo do octógono de Chou destaca-se pelas motivações intrínsecas (reali-
zação pessoal, posse e escassez), com o foco no indivíduo e na sua evolução com a raciona-
lização dos processos, como a ideia de cumprir etapas, vencer desafios, superar obstáculos,
progredir e avançar, e com a coleção de objetos, mesmo que sejam simbólicos, que é a lógica
da posse e do ganho e, principalmente, de obter aquilo que é mais raro para ser diferente e,
geralmente, melhor que os outros por ter conseguido algo que é escasso.
O lado direito do octógono de Chou aponta as questões de motivações extrínsecas
(empoderamento, influência ou pressão social e a imprevisibilidade), ou seja, focadas no
nosso impacto e na relação social como o empoderamento e a capacidade de criação, o
quanto a sua ação afeta a ação dos outros ou é afetada por ela e o grau de surpresa, risco e
curiosidade que a ação provoca.
Neste texto, vamos combinar algumas regras e motivações e esperamos “tocar” você,
leitor, e convidá-lo a pensar em novos designs educacionais.
Regra principal: o objetivo do capítulo/jogo é tornar o design educacional mais viven-
cial e potencializar a aprendizagem
Temos alguns desafios principais a serem superados: lidar com intencionalidade, superar
o paradigma comportamental, pensar em formatos mais experienciais, aproveitar a iterati-
vidade e lidar com novos espaços imersivos. Durante o processo haverá algumas quests para
incorporar os desafios, bem como armas e poderes do design de jogos/gamificação para usar
nessas quests, com o objetivo de promover um design educacional gamificado. Convidamos
o leitor a identificar os elementos das dinâmicas e se posicionar, escolhendo ou não “armas”
e “poderes” que julgar mais adequados. As armas são estruturas mais concretas e os poderes
são movimentos e fluxos. Também vamos discutir, ao longo do processo, as controvérsias de
cada escolha para tensionar ainda mais. Topa o desafio?

Desafio 1: ter consciência da intencionalidade pedagógica


Um dos maiores desafios do design educacional é a intencionalidade, porque toda ação
educativa tem uma intencionalidade, não importa se é num contexto formal ou não formal.
Sempre se espera transmitir uma mensagem, demonstrar conceitos e procedimentos, ou se
deseja que alguém desenvolva determinada habilidade ou competência, que pode ser algo
mais pontual ou muito complexo e que envolva mais que um “saber fazer”, englobando a
compreensão ética e até estética das ações realizadas.
Para que o processo seja justo e transparente, é fundamental que essa intencionalidade
esteja muito clara e explícita. Se o processo de ensino-aprendizagem acontecer num con-
texto formal, ligado a um currículo, deve seguir algumas diretrizes, ter o processo regis-
trado e apresentar resultados para os órgãos oficiais. Mas se a intencionalidade é algo
muito marcado, completamente indutivo com a desculpa de ser explícito, pode se sobrepor
e até artificializar o movimento do aprender. É a regra que se sobrepõe à vivência do jogar.
166 Gamificação em debate

Quest 1: é possível dar ao jogador/aprendiz consciência do processo sem tirá-lo da imersão


da vivência?
Contexto: você espera desenvolver habilidade de resolver problemas numa criança.
Armas e poderes de design de jogos/gamificação dos processos

• Arma 1 ‒ sistema de pontuação: valorar numericamente cada resultado correto.


Os erros podem ser penalizados, havendo um ranking entre jogadores.
• Arma 2 ‒ sistema evolutivo: descrever cada passo, dividir entre problemas mais simples
e ir evoluindo para questões mais complexas, explicitando cada fase com uma barra
de progresso.
• Poder 1 ‒ contar boas histórias: narrativa contextual em que, para obter um resultado
desejado na história, devem se combinar, comparar ou contar elementos.
• Poder 2 ‒ construção: sistema de construção de objetos/espaços no qual o jogador deve
selecionar quantidades e formas corretas para que consiga realizar as obras desejadas.

Qual dessas armas e poderes você escolheria? E se pudesse escolher mais de um? Usando
qual deles a intencionalidade ficaria bem marcada, mas isso não seria artificial? Em qual ela fi-
caria implícita e incorporada no contexto, mas isso não seria uma distração ou até algo alienante?
Muitos jogos criados com intencionalidade educativa são profundamente indutivos e
explícitos quanto ao que se deve aprender e geralmente, por isso, são chatos, porque querem
mostrar, direcionar e induzir o tempo todo, para garantir que a pessoa está entendendo,
aprendendo, seguindo a trilha.
É muito comum no design educacional dividir os processos e criar uma lógica narrativa,
sequencial e/ou evolutiva, do mais simples para o mais complexo. Isso, em geral, ajuda a
entender o processo e o deixa mais claro, mas, muitas vezes, o artificializa, pois nos contex-
tos reais os problemas não são separados e organizados, não há redução ou didatismo.
É preciso trabalhar com muitas variáveis ao mesmo tempo.
Podemos, então, ocultar a intencionalidade? O aprendiz precisa conhecer a intenciona-
lidade pedagógica? Não podemos trazer problemas reais ou interessantes e deixar o aluno/
jogador resolver sem perceber que está aprendendo? Distraí-lo ou torná-lo inconsciente de
seus processos metacognitivos é algo indesejável e até perigoso, pois é uma forma de alienar
e de tornar uma pessoa facilmente manipulável. Aprender de forma consciente do seu
processo é algo transformador e que gera maior autonomia em quem aprende, tornando-o
mais responsável por suas escolhas. Assim, é interessante promover situações contextuais e
vivenciais, nas quais eles devem escolher, se posicionar e trabalhar com complexidade seme-
lhante à do mundo real, mas conscientes disso.
Escolher armas de evolução e divisão é algo que artificializa, mas pode ter alguns ganhos
antes de viver a complexidade maior, por isso, pode ser um primeiro passo.
Usar competição e pontuação é uma forma de motivação externa que pode ser engaja-
dora em alguns momentos e para determinado público, mas que não se mantém ou pode se
afastar da conscientização sobre o que e para que aprender.
Design educacional em jogo 167

Um processo gamificado focado numa narrativa mais complexa, na vivência de papéis


que possibilite projeção imersiva, pode trazer outras dimensões para o processo, sejam elas
arquetípicas, de comparação contextual e até de natureza empática, na medida em que se
podem assumir vários pontos de vista de uma história.
Mas a imersão integral não é desejável no processo educacional como é num jogo.
É importante ter o momento da vivência e depois do resgate, da discussão, ou de algum
mapeamento que ajude o aluno a entender o que aconteceu e a refletir sobre os motivos das
suas escolhas e o que foi aprendido a partir delas.
O grande desafio é proporcionar a quem aprende essa clareza da intencionalidade, mas
sem estragar o prazer da imersão. Como resgatar a pessoa da vivência no momento certo?
Como propor oportunidades para criar respostas diferentes ou para se transportar para os
outros mundos com a narrativa; como promover e vivenciar a imersão, mas sem esquecer do
momento de compreender o processo para que não se fique em um mero entretenimento
com fim em si mesmo? Essa é uma tensão importante.

Desafio 2: como superar as reduções do modelo comportamental ainda tão presentes


na educação e no design de jogos

Quest 2: como dar feedbacks sem cair nas armadilhas dos modelos mais comportamentais?
Contexto: imagine que você tem de criar a gamificação de um curso sobre gestão e precisa
criar feedbacks para o desempenho de quem está realizando o curso.
Armas de design de jogos/gamificação dos processos

• Arma 3 – puzzles: criar pequenos puzzles sobre as diversas tarefas envolvidas nos pro-
cessos de gestão. Na medida em que se resolvessem esses minidesafios, haveria um feedback
específico para o cumprimento de cada tarefa.
• Arma 4 – jogo de representação de papéis (role playing game – RPG): criar um RPG
como vivência dos processos de gestão no qual se teria de escolher as características
como gestor, seus pontos fortes e fracos e seus poderes; submeteria-se a desafios nos
quais responderia a cada situação conforme o perfil definido.
• Arma 5 – sistema de badges (distintivos ou medalhas): criar um mapa de competências
do processo de gestão e um sistema de badges que significariam cada competência
mapeada para esse gestor, e ele ganharia essas medalhas conforme agisse da forma espe-
rada ou tivesse uma solução mais criativa ou inovadora.
• Arma 6 ‒ banco de casos: trazer situações reais de gestão para a vivência gamificada por
meio de bancos de “casos” colaborativos alimentados por empresas e gestores que dese-
jam compartilhar seus desafios com o curso para explicitar e melhorar seus processos.
• Arma 7 ‒ visualização de dados abertos: elaborar ferramentas de visualização de pro-
cessos com dados vindos de sistemas reais abertos (como empresas públicas) em que o
gestor deve interpretar os gráficos gerados e propor soluções.
168 Gamificação em debate

Uma das características que difere o jogo de outros produtos educacionais é a agência
do jogador, ou seja, ele sempre é convidado a participar e a interagir de alguma forma.
Uma metodologia educacional que usa gamificação como estratégia pedagógica tem de
ser uma metodologia ativa. Mas qual tipo de agência ele tem? O jogador é mais ativo, e
até criativo, quanto maior a complexidade dessa agência, que deve estar relacionada dire-
tamente com a jogabilidade.
O desafio é alinhar competência com agência e jogabilidade. Por exemplo, um gestor
deve desenvolver muitas competências complexas, que envolvem análise contextual, múlti-
plas variáveis e decisões complexas, mas num modelo mais comportamental em que se
criam atividades reativas, ou seja, com uma pergunta e algumas repostas esperadas, na qual
o jogador só reage, criando-se um feedback para cada uma delas. O que acontece nesse caso
é que o agente, na verdade, tenta responder antecipando o que se espera que ele responda,
muitas vezes até seguindo um padrão do “politicamente correto” e do “comportamento es-
perado”, e nem sempre se posiciona como faria numa situação de conflito real.
Um dos grandes desafios da aprendizagem é preparar o aprendiz para o mundo real,
e não para realidades artificiais e simuladas. E como trazer o “mundo real” para a gamifi-
cação? Como trabalhar com dados reais? Há muitas gamificações que podem ser feitas a
partir de dados abertos e que até podem alimentar o sistema com a colaboração de quem
joga/aprende.
O desafio é criar um modelo de feedback que respeite novas entradas e possibilite a
criação de novos padrões de soluções. Os feedbacks geralmente são programados e criados a
partir de antecipações, mas, em sistemas colaborativos e mais criativos, a proposta é dar uma
nova situação. Como trazer o novo, a especulação, a promoção de novos caminhos, muitas
vezes trazendo soluções mais criativas além daquelas previstas e esperadas por quem criou
a ação gamificada?
Criar badges/medalhas a partir de tipos de ação pode ser interessante. Por exemplo: na
badge, pode ser valorizada uma postura questionadora, e isso pode ser valorizado na análise
das competências do gestor sem se limitar a um tipo específico de questão formulada ou a
um tipo específico de tarefa ou problema com resposta esperada. Os badges/medalhas são
indicadores de que a pessoa conseguiu estabelecer a relação. Assim, é possível criar indica-
dores para posturas como argumentação, contextualização, questionamentos, proatividade
etc. e dar feedback a partir de símbolos que significam essas posturas. Dessa maneira, o foco
é em como a pessoa contribuiu, e não um simples treinamento de habilidades por repetição,
memorização ou compreensão redutora.
Também é possível que o mesmo símbolo tenha níveis de aprofundamento diferentes,
tornando o marcador/indicador ainda mais complexo. Por exemplo, podemos ter um
badge que a pessoa recebe quando colabora. Mas pode haver diversos níveis de colabora-
ção: algo mais pontual, mais contextual, ou mesmo uma colaboração intensa que cause
transformação na ideia. Assim, o mapa de competências simbolizadas por badges/meda-
lhas pode funcionar de forma muito semelhante às rubricas, mas com uma representação
mais simbólica.
Design educacional em jogo 169

Desafio 3: indutivo demonstrativo ou mais dedutivo e experiencial?


Quest 3: é melhor trabalhar com situações controladas e indutivas para garantir a
compreensão (cria-se um universo de jogo controlado) ou trazer desafios mais complexos,
muitas vezes vindos de situações reais de alta complexidade para se explorarem e
descobrirem novas soluções, mas com elementos gamificados?
Armas de design de jogos/gamificação dos processos
• Arma 8 ‒ mundo controlado: criar um universo controlado possibilita feedbacks mais
específicos e foco em treinamento de habilidades que podem ser importantes.
• Arma 9 ‒ padrões estereotipados: criar universos controlados, mesmo que com padrões
estigmatizados, até usando como recurso o exagero dos estereótipos, pode nos tornar
mais conscientes de processos que existem numa situação real.
• Arma 10 ‒ universos fantásticos: criar situações em universos fantásticos que corres-
pondam arquetipicamente a situações do cotidiano cria uma controvérsia entre trabalhar
com problemas fictícios e trazer problemas reais, dosando os tipos de provocação que se
esperam e todas as vantagens e os riscos que isso traz para os processos educacionais.
• Poder 3 ‒ o meio é a “massagem”: decidir como escolher ou criar tecnologias que gerem
maior impacto e uma vivência mais intensa.

A ficção realista de universos controlados pode trazer os conflitos e os desafios espera-


dos e as habilidades específicas que se espera desenvolver, mas pode ser direcionada demais
se for algo controlado, com foco indutivo e demonstrativo, em que só se repetem padrões e
nada de novo se cria.
Criar estereótipos exagerados pode ser uma forma de conscientização, mesmo pare-
cendo o contrário, pois é uma forma de provocação e até uma crítica ao comportamental,
desde que se promova um momento de reflexão posterior, no qual se revelem e discutam os
incômodos e esses estigmas.
Uma ficção fantástica, que traz um foco maior no universo arquetípico, pode favorecer
um tipo de expressividade mais simbólica, no qual a pessoa age até de forma mais intuitiva.
Mas é preciso, depois, trazer essas vivências nas suas relações com o contexto.
Trabalhar com casos ou dados diretos da realidade pode trazer diversidade, mas é pre-
ciso buscar boas fontes e boas formas de visualização e acompanhamento, para que existam
situações interessantes, problematizadoras e realmente representativas e diversificadas. Os
problemas reais têm múltiplas variáveis e são difíceis de resolver como um todo, então a
estratégia “dividir para conquistar” pode ser uma boa ideia. Por isso, opta-se muitas vezes
por criar situações fracionado os problemas de forma demonstrativa e mais indutiva para
garantir maior compreensão dos processos. Os formatos mais indutivos e demonstrativos
ajudam a desenvolver o raciocínio lógico, mas podem gerar maior dificuldade de identificar
os problemas do mundo real e criar bons solucionadores de problemas apenas em mundos
controlados. Isso acontece muito com crianças que desenvolvem habilidades incríveis em
jogos, mas não conseguem transportar o que aprenderam para outros contextos que exigem
a mesma habilidade.
170 Gamificação em debate

Partir da complexidade maior significa assumir o risco da dificuldade do problema


complexo: trabalhar com muitas variáveis pode ser difícil demais, portanto as pessoas talvez
desistam no meio do caminho. Então, nesses casos, é importante ter um sistema de apoio,
de pistas, para que se desenvolvam ações mais investigativas e dedutivas. Uma situação
fictícia pode ser mais dedutiva? É possível criar um sistema por desafios e por descoberta,
mais exploratório, com pistas e dicas que promovam a apresentação do caso complexo e no
qual, aos poucos, seja possível buscar os indícios e as ampliações, propondo relações mais
profundas com os contextos. Ainda assim, sempre existe o risco de o desafio ser difícil de-
mais. É preciso estar preparado para oferecer mais ajuda ou possibilitar várias formas de
colaboração quando o grupo lida com a complexidade.
Além da complexidade, é importante perceber como esses fluxos nos tocam. Quando a
experiência é um verdadeiro bombardeio de informações simbólicas e sensoriais com foco no
consumo, pode gerar uma alienação com pouca projeção e imaginação. É o que McLuhan
(1967, p. 18) diz no livro O meio é a massagem, num trocadilho com massage e message, consi-
derando o impacto desse meio no indivíduo, que pode ser mais ou menos intenso. Segundo
McLuhan (1969, p. 38) há meios quentes e meios frios: os quentes têm uma saturação de
informação e o prolongamento de um sentido e permitem menor participação por conta desse
excesso de informações, o que pode provocar confusão (mess) e massificação (mass) de concei-
tos e comportamentos; já os frios, e ele usa como exemplo a escola da época (que mudou
pouco), têm menos informação, mas são organizados e enquadrados, o que pode gerar menor
impacto pela saturação, porém também podem ser limitantes pelo formato industrializado,
com dados organizados e direcionados demais, e, assim, igualmente massificante. Então, te-
mos uma tensão constante entre a saturação e os espaços de projeção e criação.

Desafio 4: iteratividade
A iteratividade é outro grande desafio do design educacional ligado à gamificação. Muito
do que se ensina e se aprende sobre o design educacional está apoiado em matrizes, tabelas e
roteiros nos quais se constrói o planejamento didático e depois se tenta traduzir o que foi plane-
jado em materiais que, juntos, vão compor um curso. No design de jogos, também temos
frameworks que nos ajudam a descrever a lógica por trás dos jogos e desenhar suas mecânicas.
Mas, como já descrevemos, também temos as dinâmicas e as estéticas, que dão vida às regras.
Assim, podemos ter os parâmetros iniciais que descrevem nossos escopos e nossos limites, mas,
para dar vida ao design, temos de trabalhar com os conflitos, com o “não planejado”, com o que
“dá errado” durante o processo. Esse é o grande desafio do processo de design, especialmente no
caso do design gamificado: planejar, descrever, jogar, errar, refazer, jogar, refazer, jogar, refazer.

Quest 4: como o refazer pode fazer parte do jogo?


Armas e poder de design de jogos/gamificação dos processos

• Arma 11 ‒ sandbox: criar espaços de experimentação sobre ou dentro das ações gamifi-
cadas. Um ambiente em que se possa criar sem medo, experimentar algumas mecânicas
para aprender a lógica, testar ou mesmo questionar. Um local “seguro” e que não faz
parte da aventura controlada ou avaliada.
Design educacional em jogo 171

• Arma 12 ‒ visibilidade para erros/conflitos: quando se encontra um erro, ele pode ser
consertado ou provocar uma desestabilização no sistema e na mecânica para que, como
um todo, seja repensado. Sistemas nos quais se marcam ou se apontam erros e inconsis-
tências são armas importantes.
• Arma 13 ‒ teste beta e grupos para colaborar: testar versões iniciais com comunidade
de jogadores é algo bem interessante. Na educação, podemos fazer cursos-piloto ou
testar materiais dentro de comunidades de práticas
• Poder 4 ‒ lidar com a imprevisibilidade: o grande poder é conseguir lidar com o novo,
o desconhecido, tendo-se alguns palpites pelo planejamento, porém esperando que sem-
pre haverá surpresas e fazendo dessas surpresas não o erro desagradável, mas uma nova
via criativa de algo que não havia sido previsto e pode ser incorporado como uma am-
pliação do processo.

Erros de programação e codificação (sintaxe) tendem a ser corrigidos, mas quando há


um erro na lógica computacional (semântica), este pode passar despercebido num primeiro
momento e afetar todo o sistema, que deverá ser repensado. Como dar visibilidade aos er-
ros/conflitos para que eles se tornem nossos trunfos e nosso grande desafio no design
educacional, seja nos seus processos, seja nas estratégias criadas por eles? Como fazer com
que também incorporem aprendizagem por projetos e com que, nesses projetos, sejam co-
locados espaços iterativos de prototipação e aprendizagem a partir dos erros?

Desafio 5: como as novas tecnologias estão ampliando a imersão e podem contribuir


com um design educacional mais imersivo?
Quest 5: quais novas tecnologias imersivas você considera relevantes para causar uma
experiência sensorial tão profunda como uma vivência intensa e até mais impactante que a
experiência física não mediada?
Armas de design de jogos/gamificação dos processos
• Arma 14 ‒ realidade virtual: transportar o usuário de uma realidade para outra, sinté-
tica, tridimensional e interativa.
• Arma 15 ‒ realidade aumentada: ampliar sua vivência do espaço físico com conteúdos
virtuais.
• Arma 16 ‒ teleimersão: pensar tecnologias imersivas, que podem ser tanto de realidade
virtual quanto aumentada, para viabilizar interações em que uma pessoa se sinta tele-
transportada para outro ambiente real ou tenha a sensação de que pessoas ou objetos
reais distantes estejam localmente presentes.
• Arma 17 ‒ internet das coisas (internet of things – IoT): conectar objetos e dispositivos
cotidianos à internet, tornando possível receber informações e atuar sobre eles.
• Arma 18 ‒ mod games: são ferramentas disponibilizadas pelos produtores de games que
facilitam a modificação de seus títulos pelos próprios jogadores ou por profissionais de
artes e design, incentivando a criação, a custo zero para as empresas, de novas fases ou
até mesmo de novos jogos que estendam a vida útil e o mercado de seus títulos.
172 Gamificação em debate

A indústria dos games tem trazido importantes contribuições para a apropriação de


novas tecnologias interativas e de imersão, entre as quais destacamos:

• Equipamentos como sensores de movimento, câmeras de profundidade, visores de rea-


lidade virtual e óculos de realidade aumentada, a custos acessíveis e de uso simples.
• Ferramentas de software que facilitam a modificação de jogos, mesmo por pessoas sem
conhecimento de programação, para a criação de novas fases, novos jogos ou até aplica-
ções “sérias”, como simuladores e objetos de aprendizagem.
• Disponibilidade de game engines (motores de jogos) e ambientes de desenvolvi-
mento, sejam estes de baixo custo, abertos, livres ou comerciais de uso gratuito para
fins não lucrativos.
• Possibilidade de criação de machinimas (animações geradas a partir de cenas criadas em
jogos) que reduzem em várias ordens de grandeza a produção de vídeos educacionais,
ao dispensar estúdio, atores, maquiagem, cenografia, figurino, equipamentos de grava-
ção, entre outros, e oferecem conteúdos numa linguagem bastante próxima ao público-
-alvo formado por estudantes.
• Novas tecnologias são rapidamente assimiladas, não apenas pelos jogadores, mas por
toda a sociedade, facilitando seus usos em outros contextos.
• Novas linguagens e novas mídias incorporam-se à cultura dos games, aumentando o
leque de opções para designers instrucionais e facilitando a comunicação com os jovens.
• Novas formas de imersão e interação podem ser utilizadas em objetos educacionais,
educação a distância e atividades educacionais em geral, propiciando melhores percep-
ções de presença e engajamento dos alunos.

Dentre as principais tendências, destacamos: realidade virtual, realidade aumentada,


teleimersão, IoT e mod games.
O conceito de realidade virtual é o transporte do usuário de uma realidade para outra,
sintética, tridimensional e interativa. São diversas as tecnologias que podem ser empregadas
para criar a ilusão de imersão em outra realidade. A mais comum é o chamado visor de
realidade virtual (head-mounted display ‒ HMD). Esse dispositivo, acoplado à cabeça, pro-
jeta nos olhos do usuário imagens tridimensionais e estereoscópicas (técnica que produz
imagens diferentes para cada olho, criando a ilusão de profundidade, como no cinema 3D),
em tempo real e de acordo com o posicionamento da cabeça.
Poucos anos atrás, a tecnologia de realidade virtual era quase que exclusividade de la-
boratórios de pesquisa, parques de diversão e grandes empresas, como as de aviação e de
exploração de petróleo. Com o surgimento do primeiro HMD de baixo custo (Oculus Rift,
posteriormente adquirido pelo Facebook), começaram a surgir diversos jogos e também
aplicações em outras áreas, em especial para a educação, nas quais o usuário pode imergir
em outras realidades. O grande diferencial nesse tipo de aplicação é a “agência do movimento
de cabeça”, ou seja, o usuário pode mover a cabeça livremente e perceber as imagens visuais
e auditivas exatamente como se estivesse de fato naquele ambiente. O sucesso desse dispo-
sitivo motivou o surgimento de HMD concorrentes e até de adaptadores para celular
Design educacional em jogo 173

criados pelo Google (Google Cardboard e Daydream) e inúmeros similares, de todas as


formas, materiais e qualidades imagináveis.
Na área de educação há um grande potencial para treinamentos e gamificações em
atividades que envolvem riscos, dificuldade de acesso ou altos custos, como cirurgias, ope-
ração de equipamentos, laboratórios virtuais, entre outros. A possibilidade de redução de
distâncias entre alunos e conteúdos é o ponto forte dessa tecnologia. Há, no entanto, vários
desafios nessa área. O principal deles é o uso adequado dessa mídia, com conteúdos e nar-
rativas que de fato justifiquem a imersão, e não apenas se apoiem na curiosidade e na novi-
dade. Outro problema é a incompatibilidade entre as diversas tecnologias hoje existentes.
Ao contrário da realidade virtual, a realidade aumentada não visa retirar o usuário de sua
realidade, mas enriquecê-la com conteúdos virtuais. Nem toda mistura de virtual com real inclui-
-se nesse conceito. Projetar imagens sobre um prédio ou apontar o celular para um código de
barras ao lado de um objeto exposto num museu e ver no celular informações sobre a obra são
contraexemplos, pois, apesar de mesclarem virtual e real, não possuem todos os requisitos de uma
aplicação de realidade aumentada. Esses requisitos são: interatividade, tridimensionalidade e,
principalmente, registro espacial entre os elementos virtuais e os objetos do ambiente físico. É
importante ressaltar que o conceito de realidade aumentada não se limita a imagens visuais: sons
e outras sensações sinteticamente criadas em tempo real, desde que devidamente localizados e
registrados no espaço físico, também se enquadram nessa nova mídia.
A realidade aumentada já vem há algum tempo sendo usada em dispositivos móveis, na
chamada visualização indireta, em que observamos o mundo aumentado pela tela do dis-
positivo. Mas somente com a chegada dos jogos de realidade aumentada essa técnica come-
çou a se popularizar. O lançamento do Hololens da Microsoft, que deve ser seguido pelo
Magic Leap da Google, traz outro patamar tecnológico, baseado na tecnologia optical
see-through, que possibilita a visão direta do ambiente real misturada com os elementos
virtuais, por meio de lentes semitransparentes. É de se prever que, com o barateamento
desses dispositivos vestíveis, usar óculos de realidade aumentada, que poderão até mesmo
incluir recursos de correção para míopes e hipermétropes, poderá passar a ser tão comum
quanto usar óculos de sol ou de grau. Nesse cenário, o potencial de aplicações é enorme, e
certamente a indústria dos games saberá aproveitá-lo. Os educadores devem se preparar
para desenvolver atividades lúdicas de aprendizagem nessa nova realidade.
Tanto a realidade virtual quanto a realidade aumentada propiciam um tipo de experi-
ência que denominaremos “teleimersão”. Além da eliminação de distâncias propiciada pelas
técnicas tradicionais de teleconferência, as tecnologias imersivas viabilizam interações em
que uma pessoa possa se sentir teletransportada para outro ambiente real ou ter a sensação
de que pessoas ou objetos reais distantes estejam localmente presentes, por meio de proje-
ções que simulam holografias. Podemos pensar em muitos exemplos no contexto educacio-
nal, como visitas virtuais a museus e locais históricos reais, atividades em que estudantes de
diferentes culturas e etnias interajam como se estivessem em um mesmo espaço físico, redes
sociais imersivas, o acompanhamento de uma cirurgia em tempo real, ou até mesmo a rea-
lização de atividades teatrais ou esportivas misturando participantes remotos e locais. Não
é difícil também imaginar o potencial lúdico desse conceito.
174 Gamificação em debate

Um recurso mais prático de produzir que a realidade virtual, mas que também pode
criar o efeito da teleimersão, é o chamado vídeo 360. Com câmeras e/ou lentes especiais
(que em algum momento também deverão se tornar disponíveis em dispositivos móveis), é
possível filmar um local ou um evento de todos os ângulos. Posteriormente, esse vídeo 360
pode ser assistido por meio de visores de realidade virtual ou usando simples adaptadores
de baixo custo para celulares, como o Google Cardboard e similares, o que provoca um alto
efeito imersivo. Mesmo sem ter a interatividade, essencial para ser caracterizado como rea-
lidade virtual, o vídeo 360 tem alta imersividade e pode propiciar a sensação de teleimersão.
Outra tendência tecnológica que em breve deve impactar as áreas de game e educação é a
IoT. A ideia é que objetos e dispositivos comuns em nosso dia a dia passem e ser acessíveis via
internet. Será possível não apenas receber informações desses dispositivos a distância, como
também atuar sobre eles. Os alunos poderão interagir com equipamentos de laboratório e até
executar experimentos a distância, dados sobre a atuação dos alunos poderão ser coletados du-
rante o desenvolvimento de atividades, a lousa poderá ser compartilhada e receber contribuições
de alunos locais e a distância, e até mesmo as carteiras poderão ter inteligência e interatividade.
Com essa tecnologia, a mistura entre real e virtual atingirá seu grau máximo, fazendo com que
o chamado ensino híbrido (blended learning) passe a ser a norma, e não mais a exceção.

Contando os pontos e mapeando os caminhos escolhidos


Chegando ao fim da nossa experiência, olhe para seu inventário e pense: quais armas
você coletou? Que poderes adquiriu? Qual foi o desafio que considerou mais difícil? Quais
já conseguiu superar ou está “lutando contra” no seu contexto pessoal ou profissional?

Tabela 12.1 – Dinâmicas do design educacional gamificado

Desafios Armas Poderes

Intencionalidade pedagógica Sistema de pontuação Contar boas histórias

Ir além do comportamental Sistema evolutivo Construção

Meio é a “massagem”
Experimentação Puzzles
(criar impacto)

Jogo de representação de papéis


Iteratividade Lidar com a imprevisibilidade
(RPG)

Novas tecnologias Sistemas de badges

Bancos de casos

Visualização de dados

Mundos controlados

Padrões estereotipados

(continua)
Design educacional em jogo 175

Tabela 12.1 – Dinâmicas do design educacional gamificado (continuação)

Desafios Armas Poderes

Universos fantásticos

Sandbox

Visbilidade dos erros

Teste beta

Realidade virtual

Realidade aumentada

Teleimersão

IoT

Mod games

O design educacional precisa superar a reatividade, os problemas prontos e os compor-


tamentos estigmatizados e previsíveis, que geralmente são escolhidos por serem mais fáceis
de programar e controlar a partir de comportamentos esperados e feedbacks redutores como
criar pontuações, recompensas e até punições.
Ao propor um design educacional gamificado, que vai além de uma lógica comportamen-
tal, é preciso pensar em desenhos mais complexos de game e ações gamificadas com trajetórias
diferentes e promover ações coletivas, inclusive a partir de dados reais do contexto.
Caso exista algum tipo de recompensa, que seja uma simbolização mais complexa, ou
seja, um feedback que dê visibilidade ao processo, e não simplesmente reações pontuais sem
nenhum sentido no processo. Que se aproveitem todas essas possibilidades da complexi-
dade das dinâmicas e estéticas e se supere a submissão às mecânicas, transformando o
próprio sistema a cada experiência.
Como podemos agora transportar essas tensões que discutimos aqui para aquelas que
enfrentaremos na construção dos processos educacionais? Como a consciência desses desa-
fios, armas e poderes podem nos ajudar?
É preciso entender que há muitas possibilidades de histórias e trajetórias, e podemos es-
colher vários caminhos, mas é importante mapeá-los para entender o quanto e como estamos
avançando no sentido de um design mais consciente das mobilizações que está projetando.
Oferecemos algumas peças, regras e truques para gamificar a educação, mas isso é só o
começo. A mecânica só se concretiza na interação. A melhoria dos processos se faz nas
iterações, que é quando revemos e melhoramos nossos planejamentos, processos e indica-
dores, mas o mais importante é a estética daquilo que nos toca e como nos toca, de tecno-
logias que ampliam nossa sensorialidade a formas de atuação no mundo, como histórias,
drama e fantasias, que nos convidam a projetar, imaginar e transformar.
Neste texto, usando como princípio o octógono de Chou (2014) e tentando trazer
principalmente os propósitos e os incômodos do design educacional, propusemos uma
176 Gamificação em debate

coleção de elementos, trajetórias e poderes para ajudar na conscientização sobre os proces-


sos. Esperamos avançar ainda na direção do impacto social dos novos designs educacionais
e de como a gamificação pode ajudar a torná-los mais conscientes e conscientizadores.

Referências
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Design e educação a distância: ensaio
crítico sobre o processo de gamificação
13
Priscilla Garone
Sérgio Nesteriuk

Fundamentada pelo Decreto n. 5.662, de 19 de dezembro de 2005, a educação a distân-


cia é uma modalidade educacional em que a mediação didático-pedagógica nos processos
de ensino e aprendizagem ocorre com estudantes e professores em lugares ou tempos diver-
sos, por meio da utilização das tecnologias de informação e comunicação.
Com a intenção de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação
superior no país na modalidade a distância, o sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB)
foi instituído pelo Decreto n. 5.800, de 8 de junho de 2006. Dados disponibilizados em
2016 pelo Ministério da Educação (MEC), por meio do Sistema e-MEC, demonstraram
a existência de 1.948 cursos superiores a distância em atividade, sendo 1.771 cursos de
graduação e 177 de especialização.
Os dados do relatório analítico de aprendizagem a distância no Brasil, realizado pela
Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e divulgado junto aos censos EAD
Brasil a partir de 2008, expressam que a utilização de jogos nessa modalidade educacional
vem crescendo, e o censo de 2014-2015 salienta que 47% dos respondentes confirmaram o
uso desse recurso. Vários estudos divulgam os resultados positivos da utilização de jogos na
educação a distância (HAGUENAUER et al., 2007; MATTAR, 2010; MASSENSINI;
JUNIOR; SILVA, 2011; CAMPOS; OLIVEIRA; SILVA, 2014). Os jogos contribuem
para o processo de aprendizagem do estudante, possibilitando uma experiência diferenciada
com o conteúdo e tornando-se, sobretudo, atividade de motivação.
A gamificação é aqui entendida como uma abordagem que visa atingir determinada
meta (por exemplo, instigar e motivar a execução de alguma tarefa) por meio do uso de
elementos dos jogos. A expansão da gamificação para a educação a distância atravessa os
campos do design de jogos e do design instrucional e promove reflexões acerca das respec-
tivas áreas de aplicação, para o desenvolvimento de projetos que transformem a experiência
e o modo de interação dos estudantes.
178 Gamificação em debate

Gamificação: conceituação em construção e debate


Zichermann e Linder (2010) explicam que, historicamente, as pessoas tiveram suas
vidas delineadas entre trabalho e lazer, isto é, entre o “ter que” e o “querer”. O ser humano
gosta de reconhecer padrões, coletar, organizar e ordenar, presentear, realizar, cuidar, ser
um herói e ganhar status, e ainda aprecia surpresas, atenção e fama. Por essas razões, as
pessoas inerentemente gostariam de jogar. Os autores explicam que o termo funware re-
sume a presença ubíqua de jogos ou mecânicas de jogos em nossas vidas. Sua premissa
central é a capacidade de conduzir o comportamento do usuário de forma previsível, os-
tensiva e focada.
Zichermann e Cunningham (2011) explicam que a gamificação pode significar dife-
rentes coisas para as pessoas. Algumas veem o termo como fazer jogos explicitamente para
a promoção de produtos ou serviços. Outros pensam a criação de mundos virtuais que
impulsionam a mudança de comportamento ou fornecem métodos para o treinamento de
usuários em sistemas complexos. Ambas as formas estariam corretas, pois a gamificação
reúne abordagens diferentes dos jogos para contextos que não são jogos. Os autores afir-
mam ser possível unir conceitos como serious games, advergames e games for change sob
essa perspectiva, e definem gamificação como o processo de pensamento e mecânicas de
jogo para envolver os usuários e resolver problemas.
Kapp (2012) define gamificação como o uso de elementos de jogo ou diversão para
promover aprendizagem e engajamento em outros contextos. Gamificar é usar mecânicas e
estéticas baseadas em jogos e pensamento de jogo para engajar pessoas, motivar ações,
promover aprendizagem e resolver problemas. Segundo o autor, a gamificação exige uma
aplicação cuidadosa, que considere o pensamento e os elementos de jogos que são apropria-
dos a cada situação. Nesse contexto, os resultados positivos e a mudança de comportamento
são decorrentes do processo de gamificação.
O autor ainda discute a diferença entre serious game e gamificação e explica que o
primeiro tende a uma abordagem de uso de jogo dentro de um espaço bem definido, como
um tabuleiro ou uma tela de computador, enquanto a gamificação tende a um uso fora de
um espaço definido aplicado a outras atividades e contextos além de um jogo. A criação de
um serious game está no âmbito do processo de gamificação, e desenvolver um jogo com
base em um conteúdo a ser aprendido é uma forma de gamificação do conteúdo. Ambos os
serious games e a gamificação estão tentando resolver problemas, motivar pessoas e promo-
ver aprendizagem, por meio do uso de elementos baseados em jogos. O objetivo da gami-
ficação é transmitir conteúdos e adicionar elementos baseados em jogos (história, desafios,
feedback, recompensas etc.) para criar uma oportunidade de aprendizagem gamificada sob a
forma de um jogo educativo ou de uma experiência em sala de aula.
Domínguez et al. (2013) apontam que a gamificação é comumente aplicada à tecnolo-
gia para computadores pessoais, para versões na internet ou em aplicativos para dispositivos
móveis. Dessa forma, o conceito de gamificação é adotado pelos autores como a incorpora-
ção de elementos de jogos em softwares que não são jogos, para aumentar o engajamento e
a experiência do usuário.
Design e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de gamificação 179

Busarello (2016) explica a gamificação como um sistema para a resolução de problemas


por intermédio da elevação e da manutenção das motivações intrínsecas e extrínsecas do
indivíduo, que utiliza cenários lúdicos para simulação e exploração de fenômenos, apoiados
em elementos de jogos.
Deterding et al. (2011) definem a gamificação como o uso de elementos de design ca-
racterísticos de jogos em contextos que não são jogos, e em alguns momentos a denominam
como um sistema de design gamificado, diferenciando-a de design jogável, de serious games
e, ainda, de brinquedos.
Outra definição que tende a diferenciar a gamificação das demais abordagens é a de
Landers (2014), que a considera o uso de atributos de jogo fora do contexto de um jogo,
com a finalidade de afetar comportamentos e atitudes relacionados com a aprendizagem.
Para o autor, o objetivo da gamificação é melhorar o processo educacional, e não substituí-lo.
Se o conteúdo não for planejado e trabalhado de forma a ajudar o estudante a aprendê-
-lo, a gamificação desse conteúdo não poderá fazê-lo.
O autor explica ainda que os serious games, também denominados learning games, games
for learning, educational games ou training games, são jogos que, como a gamificação, se
propõem a melhorar os resultados da aprendizagem, mas geralmente assumem o papel de
instrutor, fornecendo o conteúdo diretamente aos estudantes. O autor defende que a gami-
ficação não tem por intenção ensinar diretamente, mas alterar o contexto comportamental
do estudante para uma mudança de atitude, com aumento de motivação.
Kapp, Blair e Mesch (2014), em contrapartida, explicam dois tipos de gamificação – a
estrutural e a de conteúdo –, podendo ambas existirem em uma mesma aplicação. A gamifi-
cação estrutural é a aplicação de elementos de jogo para impulsionar um aprendiz a um
conteúdo, sem alteração neste. Não é o conteúdo que se torna um jogo, mas a estrutura em
torno do conteúdo, e o foco principal é motivar os aprendizes por meio do uso de recompen-
sas e de feedback em relação ao seu progresso. Os itens mais comuns nesse tipo de gamificação
são pontos, emblemas, realizações e níveis. É comum que a gamificação estrutural apresente
algum tipo de classificação entre os participantes e de acompanhamento do progresso das
tarefas, bem como um componente social, com a possibilidade de compartilhar as realizações.
A gamificação de conteúdo, por sua vez, é a aplicação de elementos de jogo a fim de
alterar o conteúdo para torná-lo parecido com um jogo. Por exemplo, a adição de elementos
da história a um curso ou o início de um curso com um desafio em vez de uma lista de
objetivos são métodos de gamificação de conteúdo. A adição desses elementos faz com que
o conteúdo se pareça com um jogo.
Ainda segundo Kapp et al. (2014), a gamificação como mera adição de mecânicas de
jogo em situações que não são jogos é uma abordagem superficial que pode não ser eficaz
para promover aprendizado, engajamento ou obter melhorias produtivas. Os autores apon-
tam as razões equivocadas mais comuns para recorrer a abordagens que envolvam jogo,
gamificação, ou simulação: (a) a percepção de que todo mundo está fazendo isso; (b) excesso
de entusiasmo e a opinião de que jogos são legais, impressionantes e divertidos; (c) achar
que a aprendizagem será mais fácil ou acontecerá de forma despercebida (stealth learning);
(d) pensar que todos amam jogos, gamificação e simulações; e (e) julgar que é fácil projetar.
180 Gamificação em debate

Entretanto, os autores pontuam muitas razões para implementar uma experiência de


aprendizagem interativa, dentre as quais destacam-se: (a) criar interatividade no processo
de aprendizagem; (b) superar a desmotivação; (c) oferecer oportunidades para reflexão; e
(d) mudar positivamente o comportamento.
Os autores explicam ainda que, antes de decidir por uma solução gamificada, é preciso
refletir sobre questões fundamentais, como: qual é o problema real; qual a razão para a
desmotivação ou o baixo desempenho dos estudantes; qual é o resultado esperado; e o que
é necessário para um resultado satisfatório. Outras questões essenciais envolvem entender
o que precisa ser aprendido, as características dos aprendizes e as questões técnicas e logís-
ticas envolvidas na produção, na distribuição e no uso da solução gamificada.
A partir da apresentação das conceituações vigentes e das divergências teóricas, este
estudo adota as proposições de Zichermann e Cunningham (2011), Kapp (2012) e Kapp et
al. (2014), que oferecem maior abrangência na definição do conceito de gamificação e a
interpretam como um processo maior, visto que a aplicação em uma área complexa como a
educação requer versatilidade para o planejamento de abordagens apropriadas com diligên-
cia. A seguir, são apresentados estudos recentes de aplicação da gamificação na educação e
na educação a distância, para promover a reflexão de suas reverberações.

Gamificação, motivação e educação


Zichermann e Cunningham (2011) afirmam que é fundamental compreender a moti-
vação do jogador para a construção bem-sucedida de um sistema de gamificação. Em ter-
mos gerais, a psicologia tem dividido as motivações em dois grupos: intrínsecas e
extrínsecas. Motivações intrínsecas são as que derivam de nós mesmos, como objetivos e
metas próprias; já as motivações extrínsecas estão relacionadas principalmente ao mundo à
nossa volta, como promoções e recompensas. Os autores declaram que, quando bem feita,
a gamificação ajuda a alinhar os interesses e os objetivos com as motivações intrínsecas dos
jogadores, amplificadas com as mecânicas e as recompensas.
Busarello (2016) alerta que o foco exclusivo nas motivações extrínsecas pode arruinar o
sistema motivacional, e que estas devem ser utilizadas fundamentalmente para construir
motivações intrínsecas. Karlsen (2016) reforça esse pensamento e aponta que a recorrente
crítica à gamificação é o fato de frequentemente se concentrar em recompensas, em vez de
tornar a experiência intrinsecamente divertida.
Marache-Francisco e Brangier (2015) explicam as três dimensões da gamificação:
sensório-motora, motivacional e cognitiva. Na dimensão sensório-motora, a gamificação
usa extensivamente jogos de codificação multimodal, como visual, sonora e tátil, com fina-
lidade estética e para comunicar uma atmosfera, tema ou informação necessária. O aspecto
motivacional é impulsionado pela gamificação por meio das emoções. Isso implica o uso de
elementos de jogo que respondam às necessidades dos jogadores, além da usabilidade, como
valor, realização e socialização, e os usa para criar engajamento. A dimensão cognitiva é
abordada na gamificação por meio do uso de elementos do jogo, como apoio à resolução de
tarefas. Para tanto, é preciso comunicar informações relevantes, como meta, feedback e
Design e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de gamificação 181

resultados. Por fim, todas as três dimensões implicam a seleção de elementos e processos
que melhorarão aspectos de uma tarefa por meio da gamificação.
Alves e Teixeira (2014) explicam que, para gamificar um objeto de aprendizagem, é
necessário associar questões de instrução, cognição, aprendizagem e motivação, e, conse-
quentemente, o processo de design se torna mais complexo. A gamificação deve fazer parte
da concepção projetual, pois seu planejamento determina a experiência do estudante com o
conteúdo, que deve auxiliá-lo no aprendizado por meio da exploração de qualidades cogni-
tivas, sociais, culturais e motivacionais, incentivando-o ao estudo e à reflexão crítica.
Os autores indicam ainda a necessidade de aplicações do processo de gamificação no âm-
bito educacional, com estudo de caso, para conhecer as repercussões práticas.
Ramirez e Squire (2014) afirmam que os educadores são responsáveis por sistemas que
geram recompensas por participação e há décadas tentam uma abordagem mais social,
participativa e sensível às necessidades dos estudantes. O interesse de muitos educadores na
gamificação decorre da insatisfação com os sistemas de notas e avaliação. Segundo os auto-
res, a gamificação é um processo contínuo, e projetar um ambiente de aprendizagem gami-
ficado deve ser encarado do mesmo modo. O processo de motivação é uma propriedade
emergente, definida por pessoa, tarefa e contexto, portanto deve ser constantemente estu-
dado. É preciso uma abordagem participativa, na qual todos possam ajudar na definição de
emblemas, realizações ou estruturas.
Groff et al. (2015) citam a aversão dos designers de jogos ao termo avaliação, por o
considerarem sinônimo de não diversão. Em termos gerais, avaliação é a criação de manei-
ras de identificar o que o aluno aprendeu e, por isso, o design de jogos baseados em avalia-
ção merece um segundo olhar. A estrutura deveria ser vista, então, como um processo na
ordem “aprender para jogar”, e não “jogar para aprender”, de forma que os objetivos estejam
alinhados com as tarefas e os resultados, para entender de que formas efetivas o jogo con-
tribui para a aprendizagem do aluno, sobretudo como forma de estímulo.

Gamificação na educação a distância


Pesquisas correlatas encontradas no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC) de-
monstram o crescimento do interesse pelo tema da gamificação com o aumento do número
de estudos em âmbito internacional. No âmbito nacional, um importante aspecto a ser
destacado é a existência de apenas seis artigos no portal citado, datados dos anos de 2014 e
2015, e nenhum deles abrange o tema no contexto da educação a distância. Diante disso, os
estudos mencionados a seguir se tratam de experiências realizadas em outros países.
Gibson, Aldrich e Prensky (2007) afirmam que, no plano educativo, o estudo de como
aplicar jogos está rapidamente se tornando uma disciplina legítima, com o aumento do nú-
mero de estudos. O autor cita os projetos Daedalus,1 Education Arcade e Games-to-Teach.2

1
Ver <www.nickyee.com/daedalus>.
2
Ver <cms.mit.edu/games/education/proto.html>.
182 Gamificação em debate

Gåsland (2011) apresenta uma experiência de desenvolvimento e avaliação de uma


plataforma web de aprendizagem gamificada, denominada StudyAid, com o objetivo de
tornar a tarefa de estudar para testes mais motivadora e divertida, por meio do sistema de
contagem de pontos de experiência. Os resultados sugerem que a plataforma é motivadora,
entretanto, o pesquisador concluiu que diversão é um estado difícil de mensurar ‒ embora
34% dos respondentes tenham considerado o sistema divertido e 43%, neutro. Quando
questionados sobre o sistema ser motivador, 36% dos respondentes o julgaram assim, e 30%
dos estudantes se mostraram neutros.
Domínguez et al. (2013) relatam uma experiência educativa gamificada em uma plataforma
de aprendizagem online usada como ferramenta de um curso universitário, que fornece os exer-
cícios de forma gamificada. Para aumentar a motivação do aluno a completar exercícios opcio-
nais, foi empregado o uso de recompensas e mecanismos de concorrência. A análise qualitativa
realizada pelos autores sugere que a gamificação pode ter um grande impacto emocional e social
sobre os alunos por meio de sistemas de recompensa e mecanismos sociais competitivos. Os
sistemas de recompensa foram avaliados como uma maneira inovadora, divertida e encorajadora
de representar o progresso dentro de uma experiência educativa online.
O mesmo estudo demonstrou que quadros de liderança serviram como uma fonte de
motivação para alguns alunos, por terem o esforço publicamente e instantaneamente reco-
nhecido e pelo fato de poderem comparar o seu progresso com o de outros colegas. Para
outros, todavia, o sistema não foi suficientemente motivador e, em alguns casos, o sistema
foi ainda desencorajador, já que os estudantes não acharam divertido competir com os seus
colegas por uma posição no quadro de classificação. Os autores admitem, entretanto, que o
estudo foi fortemente baseado em um perfil de estudante que aprecia competição.
Kocadere e Çağlar (2015) alegam que a incapacidade de encontrar um equilíbrio entre
a “avaliação da aprendizagem” e a “avaliação para a aprendizagem” reduz a eficácia da fase
de avaliação do processo de aprendizagem. A partir dessa provocação, as autoras relatam a
gamificação de um exame de avaliação de um curso, com a integração de elementos em uma
interface com um tabuleiro de jogo que apresenta questões a serem respondidas e níveis a
serem desbloqueados com determinada quantidade de pontos, além de cartões de perfil dos
estudantes que demonstram qual questão estão respondendo e suas pontuações, comparti-
lhadas em redes sociais. Por meio de entrevistas, todos os estudantes afirmaram ter se di-
vertido, e 81% alegaram se sentir motivados com a gamificação. O estudo comprovou que
a avaliação gamificada é capaz de promover avaliação para a aprendizagem.
O projeto-piloto de Bernik, Bubas e Radosevic (2015) compara um módulo gamificado
e outro não gamificado de um curso online. Os resultados indicaram que a gamificação
pode aumentar a motivação do aluno e seu desempenho. A abordagem dos autores sugere
ainda que, antes de investir em uma extensa solução gamificada, um módulo de um curso
pode ser gamificado para ter seus impactos avaliados.
Solomon (2016) explica o crescimento da metodologia de ensino doméstico baseado
em jogos, denominada gameschooling, na qual os estudantes jogam como parte integrante de
seu aprendizado. Muito do conteúdo dos primeiros anos é ensinado por meio de jogos, e os
conteúdos dos Ensinos Médio e Superior podem ser aprendidos por meio de jogos ou por
Design e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de gamificação 183

aplicações de aprendizagem gamificadas. A autora cita Khan Academy e Duolingo, dentre


outras iniciativas que fazem uso da gamificação.
Outras plataformas frequentemente citadas na literatura consultada são: Alleyoop, Pearson,
Lectora,3 OpenStudy, Gamestar Mechanic, Quest to Learn,4 Education Arcade,5 e Kahoot.6
A existência de tantos projetos voltados para a educação online impulsiona investigações
acerca de seu funcionamento e possíveis desdobramentos e aplicações em diversas áreas do
conhecimento, em modalidades educacionais.
Myhre (2015), em seus estudos sobre mobile learning com aplicações gamificadas para
o aprendizado da língua norueguesa por parte de imigrantes, descreve a análise de design,
interface e mecânicas de gamificação de outras plataformas para o aprendizado de línguas
online, como Duolingo, Babbel, FunEasy Learn, Memrise e Migranorsk, além da realização
de coleta de dados qualitativos com usuários antes do desenvolvimento do projeto.
Gaydos (2015) pondera que, apesar da existência de muitos estudos defendendo o uso
de jogos e da gamificação para promover aprendizagem, ainda permanece pouco compre-
endido como esses sistemas são projetados. O autor argumenta que, embora o design de um
jogo seja considerado essencial para a sua eficácia, o uso de jogos na educação tem predo-
minantemente sua estrutura projetual compartilhada sob um conjunto de “princípios” ou
“heurísticas”. Segundo o autor, os estudos que adotam a ideia de que jogos podem ser
desconstruídos em componentes elementares são úteis, especialmente para análise. Entre-
tanto, a aplicação desses componentes no processo de desenvolvimento de um projeto com
finalidade educacional é problemática. É necessário compreender maneiras de transmitir
claramente os objetivos de aprendizagem, os materiais, o contexto e as interações entre
esses componentes à medida que evoluem ao longo do desenvolvimento.
Faiella e Ricciardi (2015) afirmam, a partir de revisão de literatura e conclusões de estudos
de campo, que o potencial da gamificação para melhorar experiências de aprendizagem ainda
não se estabilizou experimentalmente. Por essa razão, não é possível uma indicação inequívoca
de como usar elementos de jogos no processo educacional. Nesse contexto, a customização da
gamificação deve considerar como diferentes estudantes aprendem e quais são seus impactos
em turmas com perfis diversos. Segundo as autoras, a eficácia da gamificação é maior quando
o estudante participa voluntariamente, enquanto a obrigação afeta a essência da atividade, pois
reduz a motivação dos alunos. Portanto, é preciso identificar as condições que afetam o de-
sempenho individual dos estudantes e considerar como as possibilidades tecnológicas podem
facilitar a incorporação de elementos de jogos no âmbito educacional.

Considerações finais
Inserir o design de jogos na educação a distância de modo sistêmico ainda é um
grande desafio. Trata-se de um campo profissional recente no Brasil, e essa pode ser uma
3
Ver <http://trivantis.com>.
4
Ver <http://www.q2l.org>.
5
Ver <education.mit.edu>.
6
Ver <http://getkahoot.com>.
184 Gamificação em debate

das razões pelas quais a atuação do designer é, muitas vezes, incompreendida. Entretanto,
mesmo em ocasiões em que o escopo do projeto é preconcebido unicamente por profes-
sores e pelo designer instrucional, é preciso que os designers de games sejam inseridos no
processo e dialoguem com as partes envolvidas para realizar alterações que melhor ade-
quem a proposta ao contexto e aos estudantes, para motivá-los a desempenhar as tarefas
por meio da solução gamificada.
Não obstante, constatou-se que a literatura consultada aponta uma variedade de méto-
dos para o desenvolvimento de projetos de gamificação, e diversos autores listam ações que
podem ser aplicadas à solução. Destacam-se as ideias de Faiella e Ricciardi (2015) em
função da especificidade de seu conteúdo, que visa à reflexão de que a aplicação da gamifi-
cação na educação exige parcimônia e deve ocorrer de maneira a considerar as particulari-
dades do contexto de aplicação e dos estudantes.
Tais asserções fortalecem o ponto de vista de que não existe solução única aplicável a
todo e qualquer contexto, e que a atividade do designer de games é complexa e não pode ser
abreviada ou limitada apenas às etapas finais do projeto. A gamificação é uma estratégia que
deve ser empregada e desenvolvida perante estudos e de forma consciente por parte de toda
a equipe envolvida, desde a definição dos objetivos educacionais de determinado recurso.
Espera-se que as ideias e reflexões aqui apresentadas ampliem os horizontes do design
de jogos, com vistas a aplicações futuras no contexto educacional, especialmente na moda-
lidade a distância.

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Gamificação e educação:
estudo de caso
14
David de Oliveira Lemes
Murilo Henrique Barbosa Sanches

Um bom jogo pode engajar as pessoas de uma maneira tão profunda que temporaria-
mente as noções de tempo e espaço ou dos próprios afazeres fica em segundo plano. Em
educação, para o aprendizado acontecer efetivamente, altos níveis de engajamento são es-
senciais. Então, parece natural tentar abstrair as características positivas dos jogos e inseri-las
em experiências de ensino. Antes vistos como inimigos do aprendizado, como elementos de
distração, os jogos estão sendo reconsiderados por trazerem um elemento primordial para
o aprendizado: o engajamento.
Pelo poder de incentivar comportamentos e mostrar-se como uma alternativa a méto-
dos tradicionais, a gamificação chamou a atenção de diversos setores. Recentemente, designers
de games de diversas partes do mundo têm se dedicado a aplicar princípios de jogos em
campos variados, como saúde, educação, políticas públicas, esportes, aumento de produtivi-
dade etc. (VIANNA et al., 2013).
Existem diversas experiências que vêm conseguindo resultados positivos. O projeto
Code.org, por exemplo, é uma instituição sem fins lucrativos dedicada a expandir o acesso
das pessoas à ciência da computação, que acredita que qualquer estudante em qualquer es-
cola deveria ter a oportunidade de aprender a programar. O Code.org utiliza uma lingua-
gem de programação visual pensada na acessibilidade do ensino e nos últimos três anos
treinou mais de 10 mil professores e tem mais de 6 milhões de usuários. Já o Duolingo,
conhecida plataforma de aprendizado de idiomas, lançado em 2011, vem percorrendo um
caminho de sucesso, tendo em 2016 mais de 120 milhões de usuários. O método do Duo-
lingo tem diversos elementos gamificados e acabou atraindo muito mais atenção e tendo
mais efetividade que a maior parte das plataformas e dos aplicativos de idiomas do mercado.
O Duolingo conta com uma “Incubadora” colaborativa de novos idiomas, um ambiente para
professores avaliarem seus alunos e que, em uma atualização ocorrida em 2016, trouxe a
função de grupos, na qual usuários competem por desempenho.
Essas experiências mostram que o ensino tradicional tem diversos benefícios ao aderir
a essa tendência. A possibilidade de transformar as salas de aula em um ambiente interativo
e prazeroso nunca esteve tão presente. Deve-se considerar ainda que a geração atual não é
188 Gamificação em debate

tão responsiva à educação tradicional; ela se motiva e interage com jogos, tecnologia e
narrativa. Os alunos consomem diversos conteúdos de suas casas a partir de vídeos, aplica-
tivos em smartphones, podcasts e tablets, entre outros recursos. O limite que a antiga e limi-
tada enciclopédia física impunha não existe mais. Contudo, dentre todas essas experiências,
uma se destaca: a Quest to Learn (Q2L).
A Q2L é uma escola pública nova-iorquina que trabalha com alunos do Ensino Fun-
damental II e do Ensino Médio, sendo conhecida e frequentemente citada por ser a pri-
meira escola do mundo a ter todo o ensino baseado em jogos.
A escola foi fundada em 2009, após anos de planejamento curricular em uma parceria
entre o Institute of Play, organização não governamental (ONG) que tem como objetivo
utilizar o design de jogos e os jogos como ferramenta de mudanças pessoais e sociais, e a
New Visions for Public Schools, uma organização focada na reforma e na melhoria da
educação recebida nas escolas públicas, de maneira experimental e contendo apenas 76
alunos do sexto ano. Todo ano era adicionada uma turma nova, até serem concluídas todas
as séries oferecidas do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. No ano letivo de 2014,
segundo o Quality Review Report do Departamento de Educação do Estado de Nova York,
havia sido atingido o número de 478 alunos na instituição, dos quais 15% são negros, 35%
hispânicos, 40% brancos e 10% asiáticos. E, em relação ao gênero, 70% do público é mas-
culino e 30% é feminino. A solução de problemas é incentivada durante as aulas, e foi
pensada para a aprendizagem de habilidades do século XXI, as quais especialistas dizem que
são necessárias para a formação e uma carreira de sucesso, como pensamento sistêmico,
colaboração e alfabetização digital.
A Q2L foi criada como uma tentativa de ir na contramão da tendência educacional norte-
-americana, pois, atualmente, 3 milhões de jovens desistem do Ensino Médio todos os anos,
75% dos estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio não conse-
guem escrever corretamente, 46% dos universitários não se graduam e quase 70% dos alunos do
8º ano do Ensino Fundamental têm dificuldades de leitura e em cálculo matemático.
A crise educacional tem diversas origens, mas as que se destacam são a falta de engaja-
mento e motivação que os alunos têm em relação à escola, e o modelo tradicional de edu-
cação não mostrava uma solução clara ao problema. O engajamento começa alto no Ensino
Infantil (80%), então cai para 60% no Ensino Fundamental, 40% no Ensino Médio e, por
fim, para 30% na vida adulta, quando os alunos são inseridos no mercado de trabalho.
A partir dessa constatação, o Institute of Play e outras organizações menores, em parceria
com a prefeitura de Nova York, desenvolveram o projeto de criação da Q2L. Brian Waniewski,
diretor do Institute of Play, afirma: “Somos uma reação ao declínio dos EUA na preparação
dos jovens” (CABRAL, 2013). Nas palavras do Institute of Play:

Nosso mundo está mudando tão rapidamente que nós podemos apenas começar a imaginar o
que o futuro nos trará. Contudo, estamos falhando em ensinar nossas crianças as habilidades e
o conhecimento que eles precisam para obter sucesso no mundo de hoje.

O nome principal da fundação da Q2L é Katie Salen, uma animadora, professora e


designer de games que, entre outras realizações, ficou bastante conhecida por ser coautora
Gamificação e educação: estudo de caso 189

da série de livros Regras do Jogo. É a diretora executiva do Institute of Play e participou do


design e da fundação da Q2L.

Jogos são uma importante ferramenta na escola, certamente, mas eles representam muito
mais que um recurso. Eles são a base de uma teoria de aprendizagem que é situada “como um
jogo”. Como resultado, nós projetamos a escola em torno de uma abordagem ao ensino que
obtém dos jogos o que eles fazem de melhor: deixar o jogador em um espaço baseado em
inquérito, problemas complexos que são construídos para entregar o aprendizado na hora
certa e usar dados obtidos para ajudar os jogadores a entender como está seu desempenho, o
que eles precisam trabalhar mais e aonde ir depois. É uma abordagem que cria, acima de tudo,
uma necessidade de saber, de perguntar por que, como e com quem? (SALEN, 2011, p. 11-12,
tradução nossa).

Segundo Salen, é isso que torna a escola uma experiência única: por “situada” ela quer
dizer que os estudantes são convidados a “assumir” as identidades e os comportamentos de
designers, inventores, historiadores, matemáticos e cientistas em contextos que são reais ou
significativos para eles, ou ambos. Por “como um jogo”, quer dizer uma abordagem de en-
sino que extrai as qualidades intrínsecas dos jogos e seu design para engajar alunos em uma
exploração profunda do assunto.
Na metodologia da escola existem sete princípios que devem ser levados em conta na
hora de desenvolver experiências de ensino gamificadas:

a. Todos são participantes: todos devem participar e contribuir; alunos diferentes podem
contribuir com inteligências e pontos de vista diferentes.
b. Desafio: o desafio deve ser constante e adaptado para motivar sempre. O aluno necessita
de incentivo para resolver desafios complexos.
c. Aprendizado na prática: o aprendizado é ativo, os alunos aprendem na prática, testando
e jogando.
d. Feedback imediato e contínuo: os alunos conseguem ter feedback do seu desenvolvimento
a partir de parâmetros de jogos, como pontuação, rankings, níveis etc.
e. Entender a falha como uma oportunidade: a falha é entendida como uma nova chance
de aprender; como em um jogo, existe a opção de tentar novamente.
f. Tudo está conectado: os alunos podem dividir seus conhecimentos e habilidades com
outros por meio de comunidades, grupos etc.
g. Sensação de estar jogando: a experiência de ensino deve engajar o aluno e dar suporte a
suas ideias e sua criatividade.

É importante perceber que esses princípios devem ser entendidos como um sistema em
que um depende do outro, cada um separadamente não consegue atingir resultados tão
satisfatórios. Um erro comum de análise é achar que escolas como a Q2L utilizam apenas
jogos de videogame comerciais em sala de aula, quando na verdade elas se utilizam de
princípios de jogos para elaborar experiências de ensino que funcionam como um jogo.
190 Gamificação em debate

O desenvolvimento emocional, físico, social e cognitivo dos alunos é incentivado


constantemente, por isso a escola possui um programa de aconselhamento. Todos os dias,
tanto no horário de entrada como no de saída, os alunos participam de um pequeno grupo
de aconselhamento conhecido como Home Base, comandado por um professor. Esse
aconselhamento dura entre 10 e 15 minutos e é a oportunidade de os alunos, junto aos
professores, lidarem com os problemas e as inseguranças dos adolescentes, com o objetivo
de evitar que esses problemas se tornem algo mais grave, ou mesmo solucioná-los. Os
grupos têm apenas 10 alunos, o que permite que o professor desenvolva uma relação mais
forte com cada aluno. Caso os problemas dos alunos aumentem e o professor não con-
siga mais lidar com eles, um conselho é acionado e eles decidem o melhor método de
intervenção.
Os alunos são agrupados para maximizar as possibilidades de aprendizado. Com essa
finalidade, têm múltiplas oportunidades de trabalhar em grupos cooperativos que são
flexíveis e planejados para dar suporte à realização de tarefas. Quando necessário, eles
podem ser colocados em grupos de curta duração focados em uma área em particular na
qual estão tendo dificuldade, para terem uma atenção extra. O objetivo é maximizar as
experiências que os alunos possam ter e acomodar algumas demandas, como oferecer mais
tempo. As salas têm no máximo 25 alunos, pois a qualidade do ensino é colocada à frente
da quantidade. Alunos portadores de necessidades especiais e não fluentes em inglês
possuem o ensino adaptado para suprir suas necessidades.
Uma prova da eficiência de um design de aprendizado focado no aluno é percebidao
nos depoimentos de alguns deles: “Eu gosto de ir à Quest porque nós temos mais liberdade
na maneira como trabalhamos. Nós não apenas preenchemos planilhas matemáticas. Nós
aprendemos diferentes estratégias para resolver problemas e fazer isso da nossa maneira”,
diz Sydney Railla, aluna do 6º ano.
Os professores demonstram muita vontade e experiência no trabalho em equipe e são
capacitados para produzir experiências de ensino gamificadas. Acreditam que alunos mais
experientes podem criar conteúdo para alunos menos experientes, por exemplo, alunos do
9º ano criam materiais para serem usados nas aulas do 6º ano, reforçando o pilar colabo-
rativo da escola, que preza por manter um cronograma flexível dos professores para que
eles possam trabalhar em conjunto na criação de um currículo integrado. O horário de
trabalho começa às 8h e termina às 16h10. O tempo estendido de acesso ao professor
permite que os alunos tenham atenção individual caso necessário, além de dar oportuni-
dade ao professor de preparar suas aulas e participar de reuniões dentro de seu horário de
trabalho. O professor tem à sua disposição diversos conjuntos de ferramentas, contendo
guias, exemplos, modelos e muitos outros recursos utilizados para assegurar o nível de
qualidade da escola. Há uma política de incentivar os professores a participar de confe-
rências e eventos, com objetivo de compartilhar os conhecimentos adquiridos para incen-
tivar a gamificação na educação. Foi criado um plano intensivo para professores novos
que nunca tiveram contato com educação gamificada. A Q2L entende que existem seis
dimensões do desenvolvimento do professor, que são:
Gamificação e educação: estudo de caso 191

a. Designers: os professores ajudam no design, implementam e revisam os materiais gami-


ficados em conjunto com os designers de games e especialistas curriculares, que assegu-
ram que todas as estruturas necessárias para uma aula gamificada estejam presentes.
b. Orientadores: avaliam o aprendizado de seus alunos e depois utilizam essas informa-
ções para fazer ajustes ao currículo, além de ajudarem os alunos a definir metas de
aprendizado.
c. Pensadores sistêmicos: devem entender como funciona o pensamento sistêmico.
d. Integradores do bem-estar: devem ser capazes de entender os relacionamentos entre
os alunos e entre estes e a comunidade escolar, conseguindo assim atuar nas necessi-
dades deles.
e. Integradores de tecnologia: devem estar preparados para utilizar tecnologia como uma
ferramenta de ensino.
f. Profissionais: exibir prática em áreas como integração de conteúdo, gestão de sala de
aula, comunicação com os pais, planejamento de aulas e engajamento dos alunos, além
de resultados pedagógicos.

Um dos principais objetivos pedagógicos da escola é incentivar os alunos a raciocinar


sobre o mundo e tudo que os cerca. O raciocínio sistêmico, a habilidade de ver o mundo
como um conjunto de sistemas interligados, ajuda os alunos a entender que a não divisão
da escola em disciplinas clássicas faz todo o sentido.
Katie Salen (2011) afirma que o pensamento sistemático define o pensamento “crí-
tico”. Pesquisas recentes sobre videogames focam na habilidade de desenvolver um senso
crítico, em outras palavras, a habilidade de pensamento crítico. Usando a estrutura dos
jogos como um primeiro framework, os alunos terão a capacidade de criar, entender, cri-
ticar e manipular a arquitetura interna de sistemas. James Gee (apud SALEN, 2011,
p. 38) usa o conceito de “domínios semióticos” para enquadrar seu significado crítico
fazendo com que os alunos tenham capacidade de lidar com sistemas. Do ponto de vista
da linguística na semiótica, Gee afirma que tal esforço é caracterizado pela interação
dinâmica entre palavras, símbolos, imagens, artefatos e comportamentos humanos, afini-
dades e redes de relacionamento. Essas interações acontecem dentro de domínios de
conhecimento para criar significados específicos. Um domínio serve como uma localidade
que traça um tipo de confinamento para um espaço ou campo em particular.
No ensino tradicional, a escrita normalmente é incentivada em poucas disciplinas, como
Redação e Gramática. Na Q2L, os alunos leem e escrevem diariamente em diferentes for-
mas e contextos, alguns focados em análise, outros descritivos ou criativos.
É necessário criar a vontade de aprender no aluno. Essa vontade levaria os alunos a se
esforçarem mais ao resolver um problema e ao criar e testar teorias e a sempre tentar nova-
mente. Para isso, a escola cria ambientes de aprendizado que incentivam a pesquisa e a
descoberta e as integram com conceitos e conteúdos passados dentro das salas de aula. Os
alunos têm a oportunidade de experimentar diversos espaços de aprendizado e isso é pos-
sível graças à parceria com o Institute of Play. A utilização desses ambientes faz parte do
currículo e acontece durante o ano letivo.
192 Gamificação em debate

• Studio Q: é um programa de especialização para professores que trabalham na escola


cujo objetivo é torná-los mais capacitados para integrar a tecnologia em sala de aula e
atuar como designers de conteúdo. Com a troca de experiências entre professores, de-
signers de games e especialistas curriculares, os professores acabam desenvolvendo uma
série de materiais que são utilizados posteriormente em sala de aula. O estúdio possui
um programa intensivo de treinamento para professores novos ao sistema pedagógico.
• SMALLab: é um ambiente de pesquisa e criação de jogos baseados em uma tecnologia
que funciona utilizando câmeras com captura de movimento, projetores de curta distân-
cia e controles sem fio para imergir os jogadores em um ambiente de realidade virtual,
em que eles podem interagir entre si com elementos de jogos digitais em tempo real, no
mesmo espaço físico. O conteúdo desenvolvido vai ao encontro das especificações do
currículo e gera trabalho em grupo, resolução de problemas e uma atividade física diver-
tida. A equipe de desenvolvimento conta com designers de games, especialistas curricu-
lares e professores. No site do Institute of Play é possível encontrar 19 jogos que vêm
sendo desenvolvidos desde 2008. O jogo Civsift, por exemplo, explora elementos e es-
truturas de antigas civilizações. Os jogadores se posicionam ao lado de um rio digital e
retiram artefatos da água, depois discutem a que sociedade aquilo pertenceu (esses ele-
mentos podem se referir a cultura, forma de governo etc.). O interessante é que o jogo
permite até 16 jogadores e os professores podem controlar remotamente quais elemen-
tos e estruturas aparecerão.
• MissionLab: é um estúdio de desenvolvimento localizado dentro da escola, que tem a
missão de ser um espaço de desenvolvimento de currículo, de possibilidades de trazer
tecnologia para dentro da sala de aula e de criação de jogos que utilizem competências
do século XXI. Os professores, designers de games e especialistas curriculares trabalham
lado a lado para criar, produzir, testar e desenvolver conteúdo nos moldes exigidos. O
estúdio aproveita conceitos e materiais discutidos no Studio Q e permite que os alunos
participem da produção dos jogos e, principalmente, do teste destes. Suas principais
responsabilidades são: dar suporte ao desenvolvimento do currículo por meio da intera-
ção entre professores e especialistas, oferecer desenvolvimento profissional para os atu-
ais e futuros professores, criar ferramentas de ensino e kits de ferramentas para o uso em
sala de aula e realizar pesquisas acerca da avaliação e do desenvolvimento do aluno. A
tecnologia é inserida com cuidado e propósito: “A estratégia-chave é não usar a tecno-
logia somente por ser tecnologia, mas usá-la como uma ferramenta, no momento apro-
priado, e investir um bom tempo pensando sobre o que adiciona valor ao aprendizado”
(INSTITUTE OF PLAY, tradução nossa).
• GlassLab: é um centro de pesquisa que explora o potencial de jogos comerciais já
existentes e os usa como ambientes de aprendizado e para gerar avaliações em tempo
real. O projeto mais conhecido é o SimCity Edu. A franquia Sim City é composta por
jogos de simulação criados por Will Wright, famoso criador de The Sims. No jogo, você
assume o papel de prefeito de uma cidade e é responsável pelo desenvolvimento dela. O
primeiro jogo foi lançado em 1989 e houve mais quatro títulos principais desde então,
sendo Sim City (2013) o último lançado, além de diversos jogos para consoles, portáteis
Gamificação e educação: estudo de caso 193

e mobile. Na medida do possível, o jogo replica os desafios de gestão de uma cidade, da


criação de empregos, manutenção de serviços básicos, tratamento do trânsito e adminis-
tração da exploração de matérias-primas até cuidados com a poluição. Por todas essas
características, desde sua primeira versão, teve uso educacional.
Entretanto, a versão comercial do jogo é muito expansiva, e com ela dificilmente o
professor consegue focar em objetivos educacionais de maneira eficiente. Para preencher
essa lacuna, o Institute of Play, por meio do GlassLab, desenvolveu o SimCity Edu, uma
versão do jogo de 2013 adaptada para o uso em sala de aula com todas as ferramentas e
os conteúdos educacionais necessários. Foi produzido em parceria com experts da ETS
e da Pearson para oferecer uma experiência personalizada, de maneira que o processo de
aprendizagem se desenvolva de forma natural e se avalie em tempo real a habilidade de
resolução de problemas, de interação entre sistemas complexos e de leitura e interpreta-
ção de textos e diagramas. Especificamente, o laboratório busca evidências para com-
provar hipóteses, como a de que jogos digitais com um componente forte de simulação
podem ser efetivos para ambientes de ensino.
O currículo é desenvolvido como uma série de missões, em que cada uma tem uma
narrativa, um propósito. Os alunos resolvem uma missão quando utilizam o conteúdo e
as habilidades que aprenderam para resolver um problema em particular. As missões são
geradas a partir de desafios que existem no mundo real, como no 7º ano, quando os
alunos aprendem sobre fontes de energia sustentável para fazer um projeto de escola
com baixa emissão de carbono. No processo, devem ser considerados sistemas e como o
mundo está interconectado.

A Q2L possui cinco disciplinas integradas: The Way Things Work (“como as coisas
funcionam”); Being, Space, and Place (“ser, espaço e lugar”); Codeworlds (“mundos codifi-
cados”); Wellness (“bem-estar”); e Sports for the Mind (“esportes para a mente”), com o
complemento de uma rede social interna. Elas são interdisciplinares e integram as discipli-
nas tradicionais. Cada uma dessas disciplinas ajuda os alunos a desenvolverem habilidades
em design de jogos e uma visão de que o mundo é formado por diversos sistemas. Por criar
espaços interdisciplinares, os alunos terão maior facilidade em transferir seu conhecimento
a novos contextos e situações, pois eles entendem como um conteúdo aparece em mais de
um lugar. E quando os alunos conseguem entender conceitos e transferi-los para outras
áreas, é uma prova de que realmente aprenderam aquilo.

• The Way Things Work: integração entre matemática e ciências. Nessa disciplina, os
alunos experimentam, projetam e resolvem diversos problemas específicos que incorpo-
ram conteúdos e habilidades de ciências, matemática e alfabetização (dependendo da
série). São utilizados argumentação científica, design experimental, comunicação e co-
laboração. A professora Leah Hirsch, em depoimento, conta sua experiência com a
matéria em uma turma do 6º ano com a qual ela utilizou o jogo Dr.Smallz durante doze
semanas. No jogo, os alunos conhecem a história de Dr. Smallz, que, para salvar a vida
de um paciente, diminui de tamanho e entra em seu corpo, porém ele sofre de amnésia.
194 Gamificação em debate

A missão dos alunos é ajudar o doutor a descobrir onde ele está dentro do corpo, utili-
zando conhecimentos de estrutura e funcionamento de órgãos e sistemas. À medida que
o aluno progride, aparecem desafios que vão o levar a descobrir qual doença o paciente
possui. Por fim, o jogador deve descobrir a melhor maneira de tirar o doutor de dentro
do corpo humano. Dr.Smallz cobre tópicos como células e organelas, processos celulares,
microbiologia e sistemas do corpo humano.
• Being, Space and Place: leva os alunos a perceberem tempo, espaço e geografia humana
como elementos que baseiam o desenvolvimento de ideias, expressões e valores. No 7º ano,
por exemplo, são abordados geografia, história, cultura, política e desenvolvimento econô-
mico dos Estados Unidos. No começo do ano, os alunos interpretam espiões ingleses e
examinam e vivenciam os acontecimentos da Revolução Americana e, no fim do ano, são
curadores que analisam os acontecimentos relativos à Guerra Civil Americana.
• Codeworlds: integra matemática com ELA (sigla para English, Language and Arts),
podendo incluir ainda noções de programação em suas aulas. Codeworlds ajuda o aluno
a entender a importância da matemática e da programação no seu dia a dia. No 8º ano,
por exemplo, o foco está nas funções. Os alunos aprendem como modelar situações reais
a partir da escrita e da resolução de equações. O primeiro trimestre coloca os alunos no
papel de um produtor de filmes, em que eles devem aprender sobre taxas de transporte
para aprender as estruturas de relações lineares. No fim, os alunos apresentam o orça-
mento e o calendário de uma produção de filme de dez dias, restringidos por uma série
de obstáculos. Já o segundo semestre se passa no universo fictício de Troika. Aqui, eles
acordam em um hospital abandonado em uma cidade pós-apocalíptica tomada pela
guerra. Eles devem resolver equações algébricas para escapar do hospital e continuar a
missão. A partir desse ponto, a introdução ao estudo de geometria ajuda o herói a resol-
ver problemas, incluindo o estudo de números irracionais e do teorema de Pitágoras.
O currículo contém bastante conteúdo que envolve matemática. Isso se dá pela impor-
tância do desenvolvimento do raciocínio matemático. Os alunos são incentivados a
trabalhar diversas vezes em uma ideia ou solução, criando modelos e testando-os ou
mesmo utilizando ideias ou soluções previamente criadas como forma de aprendizado
e de entender outros pontos de vista. A partir desse ponto, a pesquisa e o trabalho em
grupo são incentivados.
• Wellness: é uma disciplina e uma prática incentivadas por toda a escola, em que os
alunos aprendem realmente o que é ser saudável. Por “saudável”, entendem-se a saúde
física, mental e emocional e sua relação com os grupos de convivência escolares, fami-
liares e com a sociedade em geral. A base da disciplina é distribuída em ciências, sexua-
lidade, saúde, nutrição, mediação de conflitos etc. A disciplina incentiva o bem-estar
pessoal, que consequentemente afeta as relações entre a comunidade, com objetivo de
tornar a convivência na comunidade a melhor possível.
• Sports for the mind: prepara os alunos para o século XXI com conhecimentos conside-
rados pela Q2L necessários para o desenvolvimento do aluno. No 6º ano, recebem aulas
de design de jogos, no 7º, aulas de programação, no 8º, ferramentas para trabalhar com
mundos virtuais, e no 9º, visualização de informações e gerenciamento de conhecimento.
Gamificação e educação: estudo de caso 195

• Being Me: é uma rede social fechada desenvolvida especialmente para os alunos. Dife-
rentemente das redes sociais comuns, ela só permite alunos e professores, não contém
propagandas e anúncios nem outros elementos que possam causar distração. Ela permite
que os alunos postem seus trabalhos e criem blogs ou grupos de discussão, entre outras
várias funções. A rede conta com diversas atividades e possui rankings e pontuações
dentro de uma interface totalmente gamificada.

O currículo é passado ao aluno por meio de dois tipos de atividades, as Discovery


Missions (“missões de descoberta”) e os Boss Levels (“fases do chefe”). Essas atividades com-
pletam um ciclo em doze semanas, sendo que nas primeiras dez há Discovery Missions e nas
últimas duas o Boss Level. A união dos dois forma um Mission Pack (“pacote de missão”). No
desenvolvimento das atividades, foi pensado que os alunos acabariam refletindo sobre o
conhecimento que já possuíssem e sobre como e onde procurar mais conhecimento, teori-
zação e criação de soluções para, por fim, checar seus próprios resultados.
Uma Discovery Mission é composta de diversas quests, que são desafios nos quais os
alunos, a partir de alguma informação, conhecimento, recurso ou prática, devem solucio-
nar um problema ou chegar a um objetivo específico. As Discovery Missions contêm entre
quatro e dez quests, que variam em complexidade e tamanho. Quando uma quest é de-
senvolvida, deve-se levar em conta que ela deve ser jogável tanto individualmente quando
em grupos. Para a resolução de uma quest, o aluno começa coletando todo tipo de infor-
mação ou recurso relevante, como textos, estatísticas, amostras físicas etc. Então, a partir
de análise, manipulação e observação, o aluno molda esse conhecimento em algo signifi-
cativo para ele. Dentro de uma quest, os alunos podem ter de fazer experimentos cientí-
ficos, leitura de textos acompanhada de listagem de palavras-chave, ir a um museu e
explorar detalhes das obras, usar um telescópio online para buscar dados sobre estrelas
etc. Existem mais de 10 tipos de quests diferentes, algumas bem interessantes, como as
Seek and Destroy Quests, cujo objetivo é eliminar algum elemento, por exemplo, palavras
erradas dentro de um texto.
O “chefão” é o último nível nos videogames, quando os jogadores devem demonstrar
seus conhecimentos e habilidades vencendo o “chefe”. Esse nível traz à tona todas as habi-
lidades do jogador de uma maneira que nunca antes aconteceu. A Q2L tenta emular essa
mesma quantidade de foco, interação e alto rendimento das habilidades. Na escola, o Boss
Level é uma semana imersiva e intensiva de uma experiência de aprendizado que encoraja
os alunos a usar todas as suas habilidades e seu conhecimento para resolver um problema
complexo. O calendário regular é suspenso e pequenos times de alunos são formados com
o objetivo de resolver um problema complexo. Durante toda a semana, os alunos são levados
a realizar brainstormings, protótipos e testes, interagindo e finalmente mostrando ao resto
da turma sua solução. O Boss Level coloca os alunos no papel de designers, engenheiros,
poetas, escritores, atores etc. enquanto resolvem um problema de um contexto dentro ou
fora da escola. Por fim, leva alunos e professores a desenvolver e aperfeiçoar o conhecimento
de uma maneira inovadora. É gerado um grande número de atividades e processos diferen-
tes, por isso é muito importante a organização desse material. Qualquer Discovery Mission
196 Gamificação em debate

ou Boss Level criado é arquivado e documentado para que, mesmo anos depois, um profes-
sor possa buscar, utilizar e talvez até modificar a atividade.
Os Mission Packs são trimestres e semestres estruturados como um jogo e organizados
em missões com séries de objetivos. Normalmente, utilizam-se de narrativa como elemento
motivador, levam os alunos a interpretar diversos papéis, assim participando ativamente do
aprendizado, e são organizados em guias de utilização que ajudam o professor a inserir as
missões na sala de aula. O Institute of Play disponibiliza quatro guias de séries e temáticas
diferentes para download: Dr.Smallz (Ciências, 6º e 7º anos), Shark Tank (Matemática,
9º ano), I Spy Greece (Estudos Sociais, 6º ano) e Self on the Stand (Inglês e Artes, 9º ano).
Shark Tank, por exemplo, insere os alunos no papel de empreendedores, e eles devem desen-
volver modelos de negócio e apresentá-los a investidores fictícios, lidando com brainstorming,
gráficos, cálculos de estima de lucro, coleta de dados etc. Isso ajuda os alunos a entender
como se comunicar profissionalmente, selecionar dados confiáveis e úteis e cobre os tópicos
de estatística, modelos lineares e equações.
Em adição às tradicionais feiras culturais e de ciências, foi criado o Design, Art and
Code, que é uma experiência de uma semana que ocorre anualmente, na qual os alunos do
7º ao 9º ano desenvolvem suas habilidades em arte, design visual e programação. O objetivo
é despertar o interesse dos alunos nas áreas e gerar conhecimento útil para a vida adulta.
Os participantes trabalham com experts para aprender conceitos e princípios fundamentais
das áreas, tanto com aulas focadas em teoria quanto em prática. Ao longo da semana, o
aluno escolhe se vai focar em design e arte ou em programação. São introduzidos a concei-
tos de design de ambientes 2D e 3D, criação de jogos e de arte ou ao básico de linguagens
de programação como HTML 5 e Java. Nenhuma experiência ou conhecimento prévio é
exigido, é tudo preparado de maneira que um leigo compreenda.
O ano letivo é composto de 180 dias, divididos em três trimestres de aproximadamente
12 semanas. Caso o aluno seja novo na escola, ele participa de uma adaptação de duas se-
manas para compreender a metodologia utilizada. As aulas começam às 8h e terminam as
16h10, menos às quartas-feiras, quando terminam às 14h. Dependendo do tipo de aula, elas
podem durar entre sessenta e oitenta minutos. Por ser um ambiente focado em tecnologia
e jogos, as pessoas são levadas a pensar que a Q2L serve de apoio ao sedentarismo, porém
a escola tem um programa de atividades físicas que engloba esportes como vôlei, basquete,
tênis de mesa e beisebol, entre muitos outros.
Por ser uma escola pública nova-iorquina, também é realizado um exame pelo qual
todas as escolas devem passar, e além dessa prova existem as avaliações ao fim de cada tri-
mestre, em que o aluno precisa produzir algo que prove que assimilou os conhecimentos
necessários. Além disso, os professores são capazes de avaliar os alunos enquanto eles jogam
ou praticam uma atividade, pois existe um feedback contínuo.
Os gastos essenciais, como salários dos professores, luz e equipamentos, são pagos pelo
estado. A estrutura extra que a escola possui é paga por instituições beneficentes e filantró-
picas. O custo por aluno pode chegar à casa dos US$ 24 mil por ano, um terço maior que o
custo médio nacional.
Gamificação e educação: estudo de caso 197

Como o sistema de aprendizagem da Q2L é um ponto fora da curva, surge a dúvida de


como a transição entre Ensino Médio e faculdades é feita. O assunto é abordado desde cedo,
durante os encontros do Home Base, em conjunto com uma conselheira da escola. No 9º ano
do Ensino Fundamental e no 1º ano do Ensino Médio, os alunos recebem uma visão geral
dos tipos de faculdades e graduações, dando espaço à discussão sobre quais carreiras os
alunos pretendem seguir e o que é necessário para se chegar lá. No 2º e no 3º anos do
Ensino Médio, os alunos aprendem sobre os vestibulares e criam perfis em um site chamado
Naviance. Eles também viajam com a escola para diversas universidades da área e, às vezes,
algumas universidades vêm até a escola falar sobre o processo de admissão.
Após cinco anos de funcionamento, a Q2L conseguiu as seguintes conquistas: 94% de
frequência escolar, 90% de retenção dos professores, vitória na Olimpíada de Matemática
de Nova York por três anos seguidos, 88% dos pais acreditam no sucesso do filho pós-escola,
94% dos pais dizem que os filhos têm altas expectativas sobre a escola, em exames educa-
cionais a Q2L se saiu 56% melhor que média da cidade e, nos exames de ciência de 2013,
se saiu 43% melhor que a média da cidade. O sucesso serviu como vitrine de ensino gami-
ficado e chamou a atenção de outras instituições, que mostraram interesse em replicar o
modelo. A CICS Chicago Quest foi criada em parceria com a Chicago International Char-
ter School e é a segunda instituição do gênero nos Estados Unidos. Foi fundada no ano de
2011, com turmas de 6º e 7º anos e planos de estender uma turma a cada ano até completar
a grade. Segundo depoimento do diretor da Q2L, Nicholas Jurman (QUEST TO LEARN,
tradução nossa):

Um dos objetivos principais para nossos alunos é que quando eles se graduarem na Quest to
Learn sejam verdadeiros pensadores sistêmicos e designers, entendendo que os desafios impor-
tantes no mundo não podem ser solucionados de maneiras simples, e devem ser abordados de
diferentes perspectivas e ângulos.

Referências
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198 Gamificação em debate

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VIANNA, Y. et al. Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos. São Paulo: MJV Press,
2013.
O hiato entre o game e a gamificação
Lucia Santaella
15
A penetração sociocultural dos games é hoje fato indiscutível. Demonizados nos seus
inícios, foram crescentemente se afirmando como mídia de entretenimento dominante. Sob
esse aspecto, sua história muito se assemelha à do cinema. Este também sofreu duras críti-
cas até se solidificar não apenas comercialmente, mas como sétima arte. Do mesmo modo,
a discussão atual sobre games também já se dedica às indagações quanto à sua natureza,
inclusive artística (SANTAELLA, no prelo). Entretanto, o que importa colocar em desta-
que aqui é o fato de que o sucesso que adveio de sua grande penetração acabou por gerar
um desdobramento dos games naquilo que passou a ser chamado de gamificação. Embora
alguns ainda pensem que se trata da mesma coisa, há de se estabelecerem as diferenças.

Natureza da gamificação
É certo que a gamificação está relacionada aos games. Mas de que maneira? A gamifi-
cação busca extrair dos games especialmente seus atributos lúdicos que levam a participação,
engajamento e entusiasmo do indivíduo em relação àquilo que faz. Diante disso, o primeiro
campo a absorver e aplicar os princípios da gamificação foi o mundo empresarial, pois as
corporações visam, antes de tudo, ao comprometimento produtivo de seus membros, por
meio do incentivo à cooperação e à competitividade. Para isso, utilizam estratégias de inte-
ração baseadas na lógica dos games. De acordo com Kenski (2011), essas estratégias envol-
vem a definição de tarefas “que estejam de acordo com o objetivo da empresa, a criação de
regras e a aplicação de sistemas de monitoramento. As recompensas pelas interações dos
usuários podem variar desde incentivos virtuais [...] até prêmios físicos”. Um grande incre-
mento para a gamificação nas empresas veio com as redes sociais, que criaram “um solo
fértil para o uso de mecanismos de games na divulgação de marcas, já que existe uma ten-
dência natural de recomendação e interação do público com empresas com as quais tem
afinidade” (KENSKI, 2011).
Outro campo que tem buscado aplicar estratégias de gamificação às suas atividades é a
educação. Com isso, visa-se tornar aulas e demais atividades mais produtivas e eficientes,
porque mais atraentes. Também com base nos princípios da sociabilidade e da competitivi-
dade humanas, grande parte das estratégias procura incorporar com eficácia o potencial dos
200 Gamificação em debate

dispositivos móveis para inovar nas formas de interação entre estudantes e professores,
tendo por meta o aprendizado produtivo.
Em suma, conforme já exposto em Santaella (2013), a ideia por trás da gamificação é
que tudo pode virar um jogo, e seu ambiente pode ser uma sala de aula, uma sala de treina-
mento de uma multinacional, a mesa do presidente de um banco ou mesmo um restaurante
cadastrado no serviço online Foursquare. Este, de fato, já contém alguns traços que são
próprios dos games: fornecer aos clientes algumas vantagens de fidelidade, como descontos
ou o status de mais assíduo frequentador e o título de prefeito do lugar.
Assim, a gamificação busca trazer para as atividades desempenhadas pelas pessoas ele-
mentos ou “valores” que fazem parte do jogo: “alcance de novos níveis, acúmulo de pontos
ou de símbolos de status (badges), simbologia clara de êxitos quando objetivos importantes
são alcançados (feedback), barras de progresso para atividades reais” (DORNELLES, 2011).
Ou seja, busca aplicar o design thinking dos games para contextos extragames, de modo a
tornar esses contextos mais divertidos e atrativos.
A antecipação de vivências, a rapidez na aplicação de treinamento e o envolvimento
propiciado pelos ambientes lúdicos têm levado o mundo corporativo a inserir os games no
seu dia a dia. Em quaisquer campos em que se aplicam, os jogos digitais levam seus usuários
a aprender sem perceber, de forma natural, além de desenvolver a habilidade para se traba-
lhar em equipe.
A partir dessa introdução, o rumo que este artigo pretende tomar é um pouco diferen-
ciado daquilo que tem sido abordado na literatura sobre gamificação. Aqui, a mira estará
voltada para aquilo que os games têm de insubstituível, intransferível e intraduzível e que,
portanto, não pode ser absorvido por quaisquer estratégias de gamificação.

Fatores inimitáveis dos games


Existe uma farta bibliografia que se dedica ao levantamento das características que são
próprias dos games. Tomando como base uma literatura selecionada sobre o assunto, Souza
(2017) elencou tais características: (a) liberdade ‒ jogar como um ato voluntário; (b) impro-
dutividade ‒ jogar como finalidade em si mesma; (c) artificialidade ‒ jogar como ação
autocontida, relacionada à ideia de círculo mágico cujos espaço e tempo se distinguem do
cotidiano; (d) imprevisibilidade ‒ o resultado pode variar; (e) regras que sustentam a ativi-
dade; e f ) feedback contínuo ‒ respostas imediatas entre as ações e seus resultados.
Para os propósitos deste artigo, condensei todos os fatores constitutivos dos games apenas
naqueles que lhe pertencem incondicionalmente e que não podem ser imitados ou traduzidos
na gamificação: a dupla imersão, a finalidade sem fim e a narrativa em ato. Este artigo tem por
objetivo discutir esses três fatores para defender a postulação de que, por mais que a gamifi-
cação busque se aproximar das condições do game, irremediavelmente haverá sempre um
hiato que os separa. Com isso, não se quer dizer que a gamificação deseja ser game. A litera-
tura sobre o tema não escorrega nessa ingenuidade. O que se pretende, portanto, é colocar
ênfase em fatores cruciais dos games que fazem deles o que eles são, sui generis, inimitáveis.
Por oposição, isso pode ajudar indiretamente a compreender melhor a gamificação.
O hiato entre o game e a gamificação 201

Dupla imersão
No uso corrente dicionarizado, imergir é sinônimo de mergulhar. Quando transposto para
o mundo das linguagens, o significado adquire outras conotações, como prender a atenção,
entregar-se ao momento, pactuar com o conteúdo recebido etc. Tais conotações já existiam
antes da chegada da internet e da interação que ela exige para que se possa participar daquilo
que ela oferece. Com a internet, entretanto, aos significados já existentes de imersão acrescen-
tou-se algo novo, a saber, a aliança da imersão com a interatividade. Esta também é uma pa-
lavra que já existia antes da internet para significar “ação entre”, “ação recíproca”.
Contudo, a chegada da internet também potencializou o sentido de interatividade.
Dediquei a essa questão um estudo detalhado em Santaella (2004), o que permite me limi-
tar agora aos seus pontos mais fundamentais. A interatividade apresenta graus que foram
estudados por vários autores. Entre eles, Kretz (1985) estabeleceu seis gradações para a
interatividade: (a) interatividade zero em romances, discos e DVDs que são acompanhados
linearmente, do começo ao fim; (b) interatividade linear, quando romances, discos e DVDs
são folheados e saltados em avanços e recuos; (c) interatividade arborescente, quando a se-
leção se faz pela escolha em um menu ‒ hipermídia arborescente, jornais ou revistas; (d)
interatividade linguística, que utiliza acesso por palavras-chave, formulários etc.; (e) intera-
tividade de criação, que permite ao usuário compor uma mensagem por correspondência; e
(f ) interatividade de comando contínuo, que permite a modificação e o deslocamento de
objetos sonoros ou visuais por meio da manipulação do usuário, como nos videogames.
Um dos pontos-chave da interatividade digital encontra-se no fato de que a informação
que chega aos usuários implica em um feedback imediato. Os sistemas usados na internet
são muitos, exibindo diferentes capacidades tecnológicas e de interação, tanto síncronas
quanto assíncronas. Além disso, a proliferação exuberante de sites, blogs e redes de relacio-
namento naturalizou a interatividade. Entretanto, é nos games que a vocação interativa do
universo digital atinge o seu ápice. Vejamos por que.
Antes de tudo, pelo fato de que, no universo digital, a interatividade está entrelaçada
com a imersão. Ademais, nesse território, há vários níveis de imersão que, em outro trabalho,
sistematizei em quatro (SANTAELLA, 2004). O nível mais profundo é o da imersão per-
ceptiva, que é experienciada nos ambientes de realidade virtual. O próximo nível é atingido
por meio de telepresença, quando um sistema robótico permite que alguém se sinta como
se estivesse presente em um local distante. Ao terceiro grau chamo de imersão representa-
tiva, obtida em ambientes construídos com linguagem VRML (virtual reality modeling
language)1. Enquanto na realidade virtual o participante experimenta a sensação de estar
dentro, atuando na cena virtual, na imersão representativa a pessoa está de algum modo, na
maioria das vezes por meio de um avatar, representada no ambiente virtual da tela. O último
grau de imersão, mais frequente e menos profundo, ocorre quando o usuário está conectado
na rede. Entrar na rede significa necessariamente imergir em um mundo paralelo e imate-
rial, feito de bits de dados e de partículas de luz.

1
Padrão de formato de arquivo usado para aplicações de realidade virtual (RV), também conhecida como virtual reality (VR).
202 Gamificação em debate

Ora, muito antes da cultura digital ter trazido à baila os conceitos de imersão e interativi-
dade, esses conceitos já eram centrais em qualquer tipo de jogo. Presente em qualquer jogo, a
interatividade está conectada à exigência de que o jogador realize uma ação, como mover uma
peça em um tabuleiro ou pressionar uma tecla em um teclado, pois essa ação é projetada para ter
um significado específico no mundo do jogo. Essa performance implica a interação do jogador
com o estado do jogo. Nos games, contudo, a interatividade já é, por princípio, aquilo que conduz
as ações recíprocas do jogador com os processos que o design interativo determina.
Quanto à imersão – em um sentido psicológico e perceptivo, não necessariamente no
sentido cibernético –, ela também é uma condição a ser preenchida por qualquer tipo de
jogo, por mais rudimentar que ele seja. O ato de jogar pressupõe um agenciamento, um
jogador que tem de estar concentrado, envolvido e absorvido na sua ação, imerso nos passos
da máquina de estados que caracteriza qualquer jogo. Isso significa que, no caso de jogos
computacionais, dois tipos de imersão estão operando ao mesmo tempo, a imersão psicoló-
gica e perceptiva mais profunda, que é exigida por qualquer jogo, e a imersão que é especí-
fica de um ambiente cibernético. Esse engajamento duplo certamente intensifica o processo
de imersão na experiência subjetiva do jogador, e pode muito bem ser uma das razões pelas
quais jogos computacionais são tão inelutavelmente atraentes e hipnóticos.
De fato, no caso dos videogames, a concentração intensa que está neles implicada re-
sulta do fato de que, tão logo alguém se torna um agente em um game, essa pessoa imedia-
tamente entra em um mundo paralelo, autossuficiente, cuja autossuficiência é suportada
pela autorreferencialidade de suas regras. Quando digo mundo paralelo, isso não deve ser
entendido apenas no sentido de um mundo que é artificialmente construído, como é co-
mum acontecer nos jogos computacionais, nos quais todo o ambiente virtual tem de ser
desenhado e arquitetado. Quero me referir, isso sim, à condição criada pelo jogo de colocar
o jogador em outro plano da realidade.
Isso ocorre em qualquer tipo de jogo e, no caso dos games, foi sobejamente explorado
por muitos de seus teóricos e comentadores, ou seja, a entrada do gamer em um contexto
fictício. Entretanto, chamo atenção para algo ainda mais primário que isso. O que importa
em um game não é o realismo ou a fantasia de seu cenário e seu conteúdo. Não importa se
ele está bem perto de um gênero de ficção científica ou se é tão insensato quanto um dese-
nho animado. O que importa é o grau de intimidade que a penetração no universo digital
propicia. Segundo Murray (2003, p. 102), “a experiência de ser transportado para um lugar
primorosamente simulado, é prazerosa em si mesma, independentemente do conteúdo da
fantasia. Referimo-nos a essa experiência como imersão”. Assim, quanto mais a conexão
entre games e jogadores é íntima, mais cresce o processo imersivo, pois os games mapeiam
o jogador dentro do jogo. Eis aí, portanto, um atributo que os games têm de inimitável: a
imersão em potência dupla.

Finalidade sem fim


A expressão “finalidade sem fim” é aqui emprestada de Kant (1993), que a desenvolveu
no contexto de sua terceira crítica, a Crítica da faculdade do juízo. O aparente paradoxo
O hiato entre o game e a gamificação 203

resolve-se porque Kant separou o fim, ou seja, a utilidade a que algo se presta, de sua fina-
lidade, quer dizer, o prazer que é capaz de provocar. O fim diz respeito à utilidade, às neces-
sidades práticas da vida, enquanto a finalidade se esgota em si mesma, daí ser capaz de
provocar prazer desinteressado, quando a única finalidade reside no próprio prazer.
É certo que, para Kant, a finalidade sem fim refere-se ao julgamento do belo ou do
gosto. É a beleza que provoca prazer desinteressado e que, portanto, não funciona como
meio para satisfazer um fim externo. Por isso, pode parecer inadequado transpor para o
universo dos games o complexo contexto em que o julgamento kantiano do belo é pen-
sado. Contudo, é viável considerar que, embora o que esteja em pauta nos games não seja
o belo, guardadas as devidas diferenças, a cifra da finalidade sem fim parece também lhe
caber com justeza.
Não dever ser por acaso que alguns autores estabelecem a comparação da liberdade do
ato de jogar com a autonomia da arte. Para Kwastek (2013), o jogo é voluntário e desinte-
ressado, ou seja, não visa a outros fins a não ser ele mesmo e o prazer que provoca. Embora
o jogo implique desafios e superações, metas e compensações, não existe uma finalidade
externa que atraia o jogador a não ser a busca de um fim que se esgota no próprio jogo
(MCGONIGAL, 2012).
Upton (2015) é outro autor que estabelece a comparação entre a experiência estética
e a experiência de jogar. Para isso, o autor levanta seis elementos que são próprios do ato
de jogar: escolha, variedade, consequência, previsibilidade, incerteza e satisfação. Com
isso, Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 51) pretende compreender “quais característi-
cas são essenciais e quais são negociáveis em um jogo, para expandir as possibilidades de
efeitos estéticos que ele pode produzir”. Quando discute o elemento da satisfação, o autor
esclarece que o efeito do prazer não reside apenas em ganhar o jogo, mas, sobretudo, no
jogar em si.
Bastante conhecida e sobejamente citada no contexto dos games é a teoria do fluxo, de
Csikszentmihalyi (2008). Voltamos a ela pela relação que apresenta com o efeito estético e,
consequentemente, com a finalidade sem fim. Para que o estado mental e mesmo corporal
do fluxo seja atingido, é necessário um total desprendimento da percepção e da atenção de
qualquer incidente externo, quer dizer, exige-se uma concentração na atividade que se de-
senrola como um fim em si mesma, um ato que se realiza pelo puro prazer de sua realização.
Tanto na contemplação ou participação estética quanto no ato de jogar, a experiência em si
se expande a tal ponto que aquele espaço-tempo parece ser o único universo existente. Essa
experiência só é possível porque o ato em si é alimentado pela imaginação criadora. No caso
dos games, segundo Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 67), a dilatação imaginativa da
experiência é conquistada por meio da antecipação: antecipar com precisão os resultados
das ações é o objetivo maior, ou metaobjetivo, de todos os jogos.
As considerações anteriores parecem dar crédito à proposta deste artigo quando tor-
nam evidente que, enquanto o game é um território em que impera a finalidade sem fim,
na gamificação, mesmo que haja o prazer promulgado por estratégias similares aos games,
não existe a possibilidade do prazer desinteressado, pois há sempre finalidades externas
ao prazer.
204 Gamificação em debate

Narrativa em ato
A terceira parte do livro Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal (Santaella,
2001) foi dedicada ao discurso verbal cuja classificação se distribui em: (a) descrição; (b)
narração; e (c) dissertação. Comparado com os outros dois tipos de discurso, o narrativo é
aquele com que o falante tem mais intimidade, advinda da facilidade para seu desempenho
graças à estrutura sintática narrativa das línguas indo-europeias: sujeito-predicado-comple-
mento. Portanto, a maior parte das frases verbais já contém um núcleo narrativo.
Além da facilidade, narrativas atraem a imaginação e a sensibilidade, sendo capazes de
produzir projeções identificatórias nos seus leitores ou espectadores, como é o caso da lite-
ratura, dos quadrinhos, do cinema e de alguns vídeos que primam pela narratividade de seus
discursos. A narrativa, o ato de contar histórias, acompanha a humanidade desde tempos
imemoriais. Pode-se até afirmar que a ficção faz parte integrante da vida humana. Algumas
das inscrições nas cavernas já eram flagrantes narrativos, fragmentos congelados de uma
narrativa subjacente. Então, os mitos e os ritos, responsáveis pela representação e reencena-
ção mágica do mundo, são formas narrativas que, no Ocidente, se tornaram mais complexas
na epopeia, canto falado dos feitos heroicos do homem, em contraponto às tragédias, tramas
de submissão do ser humano aos incontornáveis enigmas do destino.
As narrativas orais, os contos maravilhosos e as novelas medievais culminaram na his-
tória crepuscular do fidalgo Don Quixote, desencontrado em um mundo transmutado que
não podia mais dar acolhida aos seus ideais. Quebrada a casca do ovo da novela, dela
emergiu a história secular do romance e da dramaturgia do herói e do anti-herói numa
explosão de gêneros: fantasia, aventura, ficção científica, detetive, mistério, horror, guerra
etc. Então, a narrativa encontrou morada no cinema, nos quadrinhos, no rádio e nas teleno-
velas. Por fim, hoje, ela também habita confortavelmente as mais variadas formas, sempre
interativas, dos games.
Para os games convergem adaptações, traduções e misturas dos mais distintos tipos de
narrativas, especialmente das fantasias medievais e dos filmes. De fato, a conversação dos
games com outras mídias, especialmente filmes, é bastante frequente. Muitos designers de
games configuram elementos da história a partir de filmes existentes ou gêneros literários
porque os games são muito aptos para se apropriar deles. Os games não apenas recontam
as histórias, mas expandem nossa experiência prévia delas e o modo de interpretá-las, por
meio da imersão e da interação (SANTAELLA, 2012). E aqui tocamos o ponto em que os
games são inconfundíveis, inclusive no quesito narrativo.
Costuma-se ter uma visão bastante reducionista da narrativa como ato de contar ou
desenvolver uma história. De resto, é desse reducionismo que derivaram as polêmicas e as
discórdias entre os especialistas em games, tomados de um lado como narratologistas
( JUUL, 2005; AARSETH, 2004) e, de outro, como ludologistas (MURRAY, 2003). Para
os primeiros, games são narrativas, ou seja, contêm histórias. Para os ludologistas, games são
jogos, sem obrigatoriamente necessitarem de uma história. Para eles, o que importa nos
games é o gameplay, o ato de jogar. Entretanto, uma visão um pouco mais alargada de nar-
rativa é suficiente para dissolver essa oposição.
O hiato entre o game e a gamificação 205

Onde houver ação e reação entre agentes, ou seja, onde houver agenciamento no tempo,
ações que se desenrolam temporalmente, lá estará a narrativa. Portanto, sem deixar, eviden-
temente, de incluir o gameplay, todo game é por natureza narrativo, mesmo que o ato de
jogar não se desenvolva no formato de uma história.
Ryan (2009) também parece defender argumentos similares. Para ela, não há separação
entre gameplay e narratividade, uma vez que os elementos narrativos vão se construindo na
medida em que as ações vão sendo desempenhadas no jogo pela mediação de um avatar.
Se levarmos em conta o conceito mais amplo de narrativa, ou seja, ações sob o domínio
da sequencialidade temporal, pode-se considerar que, ao incorporar as estratégias que são
próprias dos games – desafio, superação, conquista, recompensa ‒, a gamificação também
apresenta uma estrutura narrativa, na qual o desempenho de ações se desenrola no tempo.
Qual a crucial diferença, todavia, entre a narrativa do game e a narrativa da gamificação?
No primeiro, desenvolve-se um tipo único de narrativa que estou aqui chamando de narra-
tiva em ato. O que isso significa?
Nas narrativas tradicionais, feitas para leitores e espectadores, o objetivo é atingir um
fim em que a narrativa se consuma, a saber, a finalidade é chegar ao fim da história. Assim,
também na gamificação tudo se processa para atingir a eficácia de uma meta. Nos games,
contudo, o objetivo não é necessariamente terminar o jogo, mas jogar, executando ações que
se repetem em inúmeras variações. Então, o que importa é estar no jogo. E a interatividade
nesse caso não se reduz a uma possível troca ou competição entre parceiros, pois, nos games,
interatividade se define como ações capazes de mudar o estado interno do jogo por meio de
feedback instantâneo.
A narrativa em ato implica um tipo de agenciamento que se realiza em um mundo que
se altera dinamicamente de acordo com a participação do jogador, um mundo dominado
por regras, mas, ao mesmo tempo, imprevisível no sentido de que só pode ser construído na
espacialidade e na temporalidade da jornada lúdica.
Aí estão os três atributos – dupla imersão, finalidade sem fim e narrativa em ato – que
fazem do game aquilo que ele é, sua marca registrada. Há outros atributos que os games
podem compartilhar com uma série de atividades que lhe são próximas e distintas. A prin-
cipal delas é a gamificação, que busca extrair dos games justamente aquilo que eles são ca-
pazes de desenvolver no agente em termos de estímulo, eficácia da ação, prazer no que se
faz e satisfação com os resultados. O mistério do game e a força de atração irresistível que
ele provoca no jogador são justamente aquilo que ele tem de inimitável.

Referências
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Lincoln: University of Nebraska Press, 2003.
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206 Gamificação em debate

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cação. São Paulo: Paulus, 2013. p. 219-229.
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SOUZA, A. A. Os games enquanto jornadas fenomenológicas: a experiência estética semiótica nos jogos
digitais. 2017. 250 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) ‒ Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
UPTON, B. The aesthetic of play. Cambridge: MIT Press, 2015.
Sobre os autores

Alan Richard da Luz


Doutor em Design pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (FAUUSP) e pesquisador em videogames, game theory e filosofia dos jogos há mais
de quinze anos. Autor do livro Videogames: história, linguagem e expressão gráfica e de artigos
premiados na área. Consultor independente em estratégias de design, games e gamificação
corporativa. Docente do curso de Design de Games da Universidade Anhembi Morumbi
e da pós-graduação Arte e Educação: Teoria e Prática da Escola de Comunicação e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

André Neves
Professor associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação
em Desenho Industrial pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestrado e douto-
rado em Ciências da Computação pela UFPE e pós-doutorado pela Universidade da Beira
Interior (UBI), em Portugal. Tem experiência na área de ciências da computação com ênfase
em design de sistemas de computação, atuando principalmente na investigação, desenvol-
vimento e aplicação de métodos e técnicas de design como instrumento de inovação em
tecnologia da informação e comunicação.

Clarissa Sóter
Doutora em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em
Design e Sustentabilidade, especialista em design da informação e bacharel em Design.
É professora substituta em Design na UFPE, docente do mestrado profissional em Design
da CESAR School, empreendedora criativa e consultora freelancer de design, inovação e
empreendedorismo.

David de Oliveira Lemes (Dolemes)


Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design
Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona
208 Gamificação em debate

nos cursos de Jogos Digitais e Design e no Mestrado em Desenvolvimento de Jogos Digi-


tais. Também leciona nos cursos de jogos digitais da Faculdade de Informática e Adminis-
tração Paulista (FIAP), da Faculdade Impacta Tecnologia e da Fundação Álvares Penteado
(FECAP). Consultor de Educação e Tecnologia da Escola Vera Cruz. Editor do site
GameReporter, especializado em games. Site: www.dolemes.com.

Delmar Galisi
Doutor em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
possui graduação e mestrado em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo
(USP). Desde 2003, é coordenador do curso de Design de Games da Universidade Anhembi
Morumbi. Há mais de 20 anos, atua como professor, pesquisador e consultor em design de
games. Desenvolveu jogos para educação, saúde e treinamento corporativo.

Dulce Márcia Cruz


Professora associada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Departa-
mento de Metodologia de Ensino, na Universidade Aberta do Brasil e no Programa de
Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa EDUMÍDIA. Graduada em
Comunicação, mestre em Sociologia Política e doutora em Engenharia de Produção.
Pesquisa letramentos, games, formação docente, narrativas da cultura digital. Tem projetos
financiados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Rede
Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para produzir o Game Comenius. Bolsista de pro-
dutividade em pesquisa pelo CNPq.

Fábio Medeiros
Mestrando em Educação e Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Psicologia pela UFSC.
Trabalha no Senac-SC como analista de capacitação docente e formador da proposta pe-
dagógica do uso de metodologias ativas e tecnologias digitais em ambientes de aprendiza-
gem. Atua com psicologia organizacional e do trabalho e em todos os macroprocessos de
RH, em educação. É game designer de jogos educacionais digitais e analógicos.

Fabricio Fava
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), com pesquisa em gamificação. Possui experiência acadêmica e profissio-
nal nas áreas multidisciplinares de comunicação e design. Desenvolve projetos de games e
arte interativa com publicações em eventos internacionais. Interessa-se pelos processos de
criação em design thinking, design lúdico e design de interação.
Sobre os autores 209

Fabrizio Poltronieri
Professor e pesquisador do Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade de Montfort,
na Inglaterra, onde leciona no Mestrado de Artes Digitais e supervisiona doutorados nas áreas
de arte e tecnologia. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo (PUC-SP), é artista premiado do campo das estéticas tecnológicas, com obras
em coleções como a do Museu Victoria & Albert, em Londres. Autor do livro Explorations in
art and technology e vencedor do Prêmio Itaú Rumos nas edições de 2011 e 2018.

Gilson Schwartz
Livre-docente em Economia do Audiovisual. Professor na Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e no Programa de Pós-Graduação Inter-
disciplinar Diversitas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo (FFLCH-USP). Foi associado do Instituto de Economias em
Desenvolvimeto do Japão, da Escola de Comunicações Annenberg, da Universidade do Sul
da Califórnia e da Universidade de Warwick. Colaborou como articulista, editorialista e
analista econômico do jornal Folha de S.Paulo e da revista Época Negócios. Criador do
grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento do Instituto de Estudos Avançados da Uni-
versidade de São Paulo (IEA-USP). Coordenador do Games for Change América Latina.

João Mattar
Tem mestrado em Tecnologia Educacional pela Universidade do Estado de Boise, dou-
torado em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universi-
dade Stanford. Atualmente é professor, pesquisador e orientador no Programa de
Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias (PPGENT) no Centro Universitário
Internacional (UNINTER) e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligên-
cia e Design Digital (TIDD) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Lucia Santaella
Pesquisadora 1A do CNPq com livre-docência em Ciências da Comunicação pela
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professora
emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e coordena o Programa de
Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. Recebeu o Prêmio Jabuti
em 2002, 2009, 2011 e 2014, o Prêmio Sergio Motta (Líber) em Arte e Tecnologia em 2005
e o Prêmio Luiz Beltrão na categoria Maturidade Acadêmica em 2010. Professora convi-
dada nas universidades Livre de Berlin, de Valência, de Kassel, de Évora, Nacional das
Artes de Buenos Aires e Michoacana de San Hidalgo, no México. Orientou cerca de 250
mestres e doutores e supervisionou 6 pós-doutorados. Publicou e organizou 60 livros.
Possui cerca de 400 artigos publicados em periódicos científicos no Brasil e no exterior.
210 Gamificação em debate

Lynn Alves
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pós-doutorado
na área de jogos eletrônicos e aprendizagem pela Universidade de Turim, na Itália. Atual-
mente é professora e pesquisadora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciência (IHAC)
da UFBA. Tem experiência na área de educação e jogos digitais, realizando investigações
sobre cultura digital e suas interfaces, especialmente sobre os temas jogos eletrônicos, inte-
ratividade, mobilidade e educação.

Mathias Fuchs
Possui formação em ciências da computação e em composição musical. Game artista e
líder do projeto de investigação sobre gamificação financiado pelo German Research
Council (2018-2021). Membro do Instituto para a Cultura e a Estética da Mídia (ICAM,
na sigla em inglês). Atua como professor na Universidade Leuphana de Lüneburg e é asso-
ciada à Universidade de Salford, na Inglaterra, à Academia Sibelius, em Helsinki, à Univer-
sidade de Artes Aplicadas e à Academia de Música, ambas em Viena.

Murilo Henrique Barbosa Sanches


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design
Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor
no Curso Técnico de Jogos da Fundação Álvares Penteado (FECAP).

Paula Carolei
Professora assistente do núcleo da universidade aberta da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), coordenadora do curso de graduação Tecnologia em Design Educacional
e professora da disciplina intercampi Jogos, Games e Gamificação na Unifesp. Tem gradu-
ação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Educa-
ção pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorado em Educação pela
USP. Trabalha com tecnologia educacional desde 1993 e pesquisa gamificação em espaços
educativos formais e não formais e novos modelos de design educacional desde 2006.

Priscilla Maria Cardoso Garone


Docente do Departamento de Desenho Industrial e coordenadora do Laboratório de
Design Instrucional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pesquisa recursos
educacionais, design de jogos, histórias em quadrinhos e ilustração. Doutoranda em Design
pela Universidade Anhembi Morumbi com pesquisa sobre jogos digitais e gamificação para
a educação a distância. Mestre em Design pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e
graduada em Desenho Industrial pela Ufes.
Sobre os autores 211

Raul Bussarelo
Doutor e mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Comunicação Social, pós-graduado em Design
Gráfico e Estratégia Corporativa e especialista em cinema. Atua nas áreas de novas mídias,
storytelling, acessibilidade, experiência e gamificação. Em 2009 foi premiado pelo Museu de
Arte de Santa Catarina (MASC) e em 2013, pela Conferência Latino-Americana de
Tecnologia de Aprendizagem (LACLO). É diretor de criação da Pimenta Cultural, mentor
de startups e professor de universitário. Autor do livro Gamification: princípios e estratégias
(Pimenta Cultural, 2016).

Romero Tori
Professor associado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP),
onde também coordena o Laboratório de Tecnologias Interativas (Interlab). Engenheiro de
computação com mestrado, doutorado e título de livre docente pela USP em Tecnologias
Interativas. Bolsista de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq) em desenvolvimento tecnológico e extensão inovadora na área
de tecnologias educacionais. Coordenou e tem desenvolvido diversas pesquisas de tecnolo-
gias na educação. Autor do livro Educação sem distância.

Sérgio Nesteriuk
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
É um dos pioneiros dos estudos em games no Brasil, tendo iniciado suas pesquisas em 1996.
Foi produtor artístico e cultural do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) e
diretor de educação da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA). Como
realizador, já foi agraciado com prêmios do Rumos Itaú Cultural, do Programa de Ação
Cultural (ProAC) e do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro
do Fundo Setorial do Audiovisual (Prodav-FSA). Consultor de projetos e júri de prêmios
e editais nas áreas de games, animação e transmídia. Consultor ad hoc da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Curador do festival de jogos do
BIG Festival, um dos maiores festivais de jogos independentes do mundo. Coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi.

Simone Barros
Tem pós-doutorado em Design de Moda pela Universidade da Beira Interior (UBI),
em Portugal. É doutora em Design, mestre em Educação e tem graduação em Comunica-
ção Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora adjunta nível 1
do Departamento de Design e do Programa de Pós-Graduação em Design e Ergonomia
da UFPE. Atua principalmente nos seguintes temas: design, moda, figurino e comunicação.

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