Linguagem de Camões - Cândido de Figueiredo

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U N G U A G E M D E G A M Ö E S

T ip . da E in p . IJ w r . o T ip o g r á fic a

: O f ic in a » m o t id a » » a lo c t r i d d a d » :

K ua da B u a v is ta , 3 2 1 ■ P o r t o • 1921
OBRAS DO MESMO AUTOR

Cólera (A) morbo.


Estrangeirismos, 2 vols.
Falar e escrever, 3 vols.
Gramática das crianças.
Gramática sintética.
Liçôes práticas da lingua portuguesa, 3 vols.
Novas reflexôes sóbre a lingua.
O que se náo deve dizer, U vols.
Ortografía no Brasil.
Problema da colocaçGo dos pronomes.
Problemas da linguagem, 3 vols.
Vade'mecum.
Vicios da linguagem.

G ra m átic a S intética, 4.a ediqáo, especialmente des­


tinada ao Brasil, conforme a ortografía correntc
naquela República.
C A N D ID O DE F IG U E IR E D O

/ ” '■ > M -’ R

Linguagem de Camòes
N A S S U A S B E L A Ç Ô E S COM A LIN G U A G EM D E H OJK

N O T A S

A M A R G E M D O S “ L U S ÌA T )A S ”

L IS B O A

L IV R A R 1 A C L À S S IC A E D IT O R A de A . M . Teixcira
»7, P r a ç a d o s R k s t a u r a d o r k s , 17
«V M S
fr i.

V o

A o se n b o u is s im o a m ig o

General Ani. Júlio de Sousa M a c h a d o

le m b r a n ^ a a fe ctu o sa

do

Candido.
N o ta p ream b u lar

Recluso num hospital durante algumas semanas, ein eon-


valescença de urna gravissima operaçâo cirúrgica, natural­
mente me impediam de estudar e trabalhar. Permitiam-me
porém os galenos amigos rápida leitura distractiva, — urna
carta, uin jornal, uns versos.
Ora, eu tenho sempre á mâo os Lusladas, como se nalgu-
ma coisa me parecesse com Alexandre Magno :

< Lia Alexandre a Homero, de manelra


Que sempre se Ihe sabe á cabeceira » ;

e, para me distrair, nada mais precisava.


Novamente me entreguei pois á leitura dos Lusiadas, e,
mesmo deitado, ia apontando a làpis os passos que, quanto
ás fórmas da linguagem, mais a atençâo me prendiam.
E dèsses apontamentos se fez a presente obrinlia.

Em todas as línguas cultas se reproduziu a epopeia por­


tuguesa; e, á parte o mau humor de Voltaire, que, imagi­
nando que podia ser tudo, pensava mais na sua Henriade do
que nos Lusiadas, todos os maiores críticos da Europa se
tém curvado perante a grandeza e o esplendor do génio canio-
neano.
Ora, os Lusiadas nao sao apenas urna maravilha como
obra de arte : ao passo que reflecten! os mais sólidos conhe-
cimentos scientíficos do século XVI, — a história, a geografía,
a fauna, a flora, a náutica, a astronomía, — sao éles o mais
precioso documento da língua portuguesa, pois atestam a mais
alta cultura, a que chegou o idioma em tempo de Camóes e nos
ministram numerosas lig5es sobre a evolu^áo vocabular, a
semántica, a vernaculidade.
E, contudo, todos nós sabemos que a maiór parte do
público ledor folheia mais fácilmente e com mais interesse um
romance vulgar, do que o poema de Camóes. Nós. porém, os
que estudamos a língua com amor, nada perderemos em cha­
mar para os Llisiadas a atengao dos que prctendam estudá-Ia
e menos perderemos ainda, se anotarnos publicamente urna
ou outra passagem que, nos Lusiadas, possa interessar aos
estudiosos da língua.
Para éste efeito nao póde servir-nos qualquér edi^áo dos
Lusiadas. Cumpre estar de sobreaviso contra a maiór parte
das e d ile s modernas, dirigidas, ein geral, nao por literatos
scientes e conscientes, mas por industriáis, que póern acima
de tudo o lucro das e d ile s .
A edicto de Epifáuio, a de Lencastre, e alguma outra,
náo seráo despiciendas; mas, incontestávelmente, o mais
seguro é termos presente, á míngua da primeira edi^áo, a se­
gunda, de 1572, feita em vida do poéta, e naturalmente
revista por ele.
Fecho nesta hora todas as outras ediqoes dos Lusiadas e
folhearei a 2.a de 1572, chamando a ate ne o de algum estu­
dioso menos lido para um ou outro passo dos Lusiadas, sóbre
o qual possamos conversar, sem nos preocuparmos de vidas
alheias, nem sequér da nossa, que é o que menos importa.
A nossa conversa náo terá a pretensáo de crítica histórica
ou artística, mas o simples ementário de certas formas camo*
neanas, urnas que, embora inusitadas lioje, sao legítimas; e
outras que, adoptadas modernamente, tém sido capituladas de
novidade ou invengo por criticastros inconscientes.
Conversemos pois.
T oda parte

0 pe núltim o verso da 2 .a estancia d o C anto I dos


Lus¿odas reza assim :

Cantando espalharei por toda parte.

Por toda p arte , e náo p o r toda a parte, como


hoje se escreve geralmente.
Várias vezes m e tenho referido ao em prègo clàssico
d o pronom e todo. D a m esm a fórm a q u e os Franceses
distingueretout peuple (q u alq u ér povo) e to u t le
peuple (o povo inteiro), os nossos clássicos distinguiam
toda casa (q u a lq u é r casa) e toda a casa (a casa in-
teira). 1
Assim, Cam óes escreveu p o r toda parte¡ e nao
por toda a parte.

1 Cf. C . d e F i ü u e i r e d o , Falar e Escrever, vol. I, cap.


96; Problemas da Linguagem, vol. III, cap. 21; O que se
núo deve dizer, vol. III, cap. 153; Novas Reflexôes sôbre a
Lingua Portuguesa, cap. 2.
Vieira, a cada passo, segue o m esm o processo. Sáo
déle estas expressoes: todos seus ex ertitos; todos
seiis m in istro s; todo seu p o d e r; todas suas cir-
cunstdncias; toda E u ro p a ; toda sua faze n d a;
todos seus peccados; etc.
Assim G il Vicente, Jorge Ferreira, Francisco Ma-
noel, e outros.
Portanto, C am óes, que tam bém escreveu toda m i -
nha pena e outras expressoes análogas, respeitou a
índole da lín g u a e a prática autorizada, ao cantar por
toda p arte as arm as e os b a r ó e s .. em bora tenha-
mos hoje de tolerar p o r to da a p arte , que infeliz­
mente se generalizou.
— l i ­

li

Enveja

Exceptuando u m ou outro filólog o, todos hoje es-


crevemos inveja, e até supom os que é legítim a form a
etimológica, d o latim invidla.
E contudo Camôes, que respeitava a etim ología da
língua e sabia latim , escreveu assirn o ú ltim o verso da
estancia 4 .a d o C anto I :

Que nño ténhfio enveja ás de Hypocrene.

E enveja repetiu C am ôes nos seguintes passos dos


Lusiadas:

Que nunca tirará alhea enveja. (II, 50).

Envejoso vereis o grao Mavorte. (V, 92).

As envejas da illustre e alhea historia. (V III, 26).

E grande esforço faz enveja á gente. (X, 116).

Com seu veneno os morde enveja tanta. (X, 116).


Sem á dita de Achilles ter enveja. (X, 156).

Enveja escreveram tam bém outros, e Gonçalves


Viana nào queria outra form a para aquela palavra.
Efectivamente, assim co m o o latim im plere , in fir -
mus, Ingenium , in trare , etc., p ro d u ziu respectiva­
mente encher, enfermo, engcnho, entrar, etc., da
mesma fórm a o latim in v id ia deve ter p ro d u zid o en -
veja.
O uso geral diz hoje outra coisa; mas nada se
perde em conhecer outro uso, náo menos legítimo.
III

M olhér

As p o n d e r a le s , que nos sugere a form a clássica


enveja, sáo as m esm as que nos poderá sugerir a form a
m olher, a q u e já me referí.
Camoes, — e q u e m neste caso d iz C am óes diz os
clássicos em geral, — parece q u e náo praticou outra
fórm a. Vejatn-se os seguintes exemplos dos L usiad as:

C anto I, estáncia 7 9 :

E molhercs c filhos cativaram.

III, 9 2 :

Por molher, e depois horrendo incesto.

III, 101:

Molher de quem a manda e filha amada.

IV, 8 9 :

As molhercs com choro piadoso.

V, 62:

As molhercs consigo e o manso gado.


V, 6 3 :

As molheres queimadas vcm encima.

M uito provávelm ente, os ineus contem poráneos ja


n ao substituem a sua Inveja e a sua tnulher pela en -
veja e pela m olher de Camóes, trocadilho á parte;
m as fique assente que, se o fizessem, n in g u é m os po-
deria acusar de desrespeitarem as m elhores tradi<;6es
da lín g u a portuguesa.
IV

Frauta

A passagem d o latim ¡laceas para o portugués


fra c o revela a tendencia para a s u b s titu id o d o p r im i­
tivo g ru p o inicial f l pelo g ru p o fr.
Essa tendencia revelou*se tam bém n a fórm a arcaica
jr o l (hoje flo r), n o fro co (floco), na fre c h a (flecha ) ,
na fr a u ta (fla u ta ), etc.
A fr a u ta é legítim a e tein a b o n a d o camoneana.
Veja-se o segundo verso da 5.a estancia d o canto I :

E nao de agreste avena ou frauta ruda.

Pena e q u e a fr a u ta esteja quase esquecida em


nosso tempo, e que predom ine a d e sa fin a d o da fla u ta !
V

Rudo

D a estancia 6 5 .a, d o Canto II :

Mostrando a ruda fórga . . .

D e p ar com o adjectivo uniform e rude, temos o


biform e rudo, ru d a , co m o os Latinos tinham ru d is e
rudus.
J á na estancia 5.a d o Canto I dos Lusíadas, Cam&es
falara da «frauta ruda» ; mas entáo poderia supor-se
q u e os preceitos da rim a (m uda e aju d a ) influiriam
na fórm a ru d a ; no caso porém de agora, (ruda
jo rg a ), bem co m o no caso de ru d o estrondo da
estáncia 9 6 .a, n o da A frica ru d a da estáncia 110, no
d o ru d o peito da estáncia 1 1 1.a, todos déste Canto II,
e aínda noutros casos, nada a rim a tem que ver, con-
cluindo-se que Camòes preferia o biform e rudo, rud a,
ao uniform e rude, o u só usava o biform e.
Q u e o poeta só usava o biform e é o q u e se poderá
concluir d o conjunto dos seguintes passos :
— «Frauta ruda» (C anto I , estáncia 5.a) ; «ru da
fòr^a», (II, 6 5 ); « r u d o estrondo», (II, 9 6 ) ; «Africa
ru d a », ( II, 1 1 0 ); m i d o peito» (II, 11 1); «rudos mari-
nheiros», (V, 1 7 ); «p o v o ru d o » , (V, 6 9 ); « r u d o velho»,
(VIII, 4 9 ); «plebe ru d a » , (IX , 8 2 ) ; abaixo e r u d o » ,
(IX , 3 5 ); «rudos páos» (X , 3 8 ); «ru d o co lo », (X ,
1 3 9 ); «bravo e ru d o » (X , 154).
N áo obstante o latim ru d is , in da ho je náo h á razáo
para enjeitarmos a ligáo camoneana.

L IK Q C A O B M I)K CAM OES 2


VI

Nenhüa

S io da estancia 7.a d o C a n to 1 os do is seguintes


versos:

De hita arvore de Chrisio mals amada


Que nenhiía nascida no Occidente...

É sabido que, onde se le h üa e nenhüa, escreve-


ríam os hoje urna e nenhutna.
V ariou a escrita, porque tam bém variou a fonética.
O s antigos, p ro n u n cia n d o com o n ós um e nenhum ,
naturalm ente atribuíram a estes pronom es a flexáo fe-
m in in a um (a), nenhum (a), em que o a, p ro n u n ­
ciado separadamente d o m, nao form ava com ele
sílaba, fonéticamente falando, e p o r isso racionalmente
se escreveria ü a e nenhüa.
M as, com o o m posvocálico corresponde ao til, e
com o se generalizasse a fórm a m asculina hum {um), e
nenhum , a te r m in a d o a tirou ao m , naqueles casos,
o valor nasal, substituindo-o por urna sílaba de valor
consonantico, (ma).
É claro que o h de hum nao tem razáo etimológica,
apesar de o tér defendido o velho D uarte N unes d o
L e áo ; mas, entre os antigos, generalizou-se a ponto de
que, sem a fórm a hum , náo feriamos hoje, com o temos,
a fórm a nenhum , em q u f interveio urna consoante
palatal, (nti), inseparável d o h.
A grafía tia, nenhua, tornou-se inusitada, porque
náo corresponde á pro nuncia geral de hoje, (u-ma,
ne-nhu ma) ; mas n ao se póde dizer que a velha pro­
nuncia, (um-a ne-nhum-a), desapareceu com pleta­
mente, porque ainda se ouve n o Alentejo, pelo m enos
em alguns concelhos d o distrito de Portalegre. O D r.
Frederico L aranjo, q u e foi lente da U niversidade de
C o im bra, D e pu tado ás Cortes e publicista, nao falava
de outra maneira.
V II

P e r a ...

O ú ltim o verso d a m esm a estáncia 7 .a d iz assim :

As (armas) que elle pera si na Cruz tomou.

P era si, e náo p a ra si.


Em m uitos outros lugares dos Lusíadas se nos
depara a fórm a pera, e nao p ara . Veja-se o C anto I,
estáncia 7 .a ; o C a n to X , estáncias 14, 18, 107.
Diga-se em ab o n o d a verdade que a antiga fórm a
pera era m ais justifieável que a m od ern a para.
Antes d e mais nada, n á o é ocioso advertir que a
preposigáo antiga pera, e a m oderna p ara , sao proclí-
ticas, isto é, nao tém a c e n tu a d o p ró p ria e, com a
palavra q u e antecedem, parecem form ar urna só pala-
vra: para-nós, para-tl, para-tudo, etc. E, assim , nem
o e da preposigáo pera é fechado, com o na p era (fru ­
ta), mas surdo, com o na últim a sílaba de cidade; nem
o prim eiro a da preposigáo p a ra é aberto, com o no
verbo p ú r a ; de m aneira que, na pro nún cia vulgar,
chega a desaparecer o e de p era e o prim eiro a de
p ara , formando-se a sinalefa p 'r a : «veio p 'r a P o r ­
tugal».
A elisáo d o e de pera tem toda a analogía com a
elisáo corrente d o segundo e de esperanza, q u e geral-
mente pronunciam os espranga; e táo correntessáo essas
elisóes, q u e eu, d o m elhór grado, escreveria p ra e
espranca, sem apóstrofo, que, em grafía portuguesa, é
urna das m ais inúteis in v e n t e s m odernas, copiada dos
figurinos franceses.
D izia eu q u e o pera era mais justificável que o
para. A fonte latina per-^-ad náo deixa dúvidas a tal
respeito.
Mas o que tam bém nao oferece dúvidas é que o
p ara Ianqou raizes vigorosas, e o pera passou á his-
tória.
Paz aos mortos.
V III

Devulgar

Todos n ós escrevemos divulgar, sem receios nem


escrúpulos, visto que o latim diz divulgare, e m uita
gente haverá que, se visse escrito devulgar, tomaría
esta form a co m o errónea. E todavía o épico dos L usía -
das , (I, 9), escreveu :

Em versos devulgado. . .

D evulgado, e náo divulgado.


E está longe de ser e rro ; aliás, erradas seriam as
formas correntes de re g ar, secar, seio, cerca, dedo,
negro, p e ra, pelo, cedo, etc., visto que, o nde elas
tém e, as respectivas fontes latinas tém i : rig are , sic *
care, sinus, circa, etc.
C ontinuarem os, portanto, a escrever d iv u lg ar , mas
n áo erra quem escrever, com o C am óes, devulgar .
IX

P o lo ... — De

N o mesm o Canto, estáncia 12.a, le se:

Pols polos doze Pares dar-vos quero


Os doze de Inglaterra . . .

C o m o se sabe, polos doze é o m esm o que pelos


dozet co m o per, em portugués, é o m esm o que p o r;
e muitas vezes se nos deparam nos L usiadas as fórmas
polo, polos , pola, polas. Veja-se o C anto 1, estáncias
12, 15, 17, 3 4 ; o Canto IV, estáncias 61 e 1 0 0 ; o
C anto V, estáncia 32, etc.
Da preposigáo per e d o antigo pro no m e e artigo
lo, form ou se p e lo ; e de p o r e lo, formou-se polo ,
(que se pro nuncia p u la : p u la cam lnho, p u lu m e ló ...)
Mas a fórm a, hoje predom inante, é pelo, cujo e é
surdo, com o o da preposigáo d e ; e dá-se a aparente
c o n tra d ig o de que o prim eiro elemento da fórm a
corrente, (per), é an tig o; e o da fórm a desusada, (por),
é hoje adoptado p o r todos.
E m bo ra pelo e polo sejam a fusáo d u m a prepósi­
to com u m artigo o u pronom e, póde dar-se, e dá-se,
o caso de a m esm a preposigáo anteceder o m esmo pro­
nome o u artigo, sem se fu nd irem . Assim , náo será
grande delito dizer-se: — «N á o lhe falou, pelo náo tér
en co n trad o »; m as a expressáo regular e conveniente é
— « N á o lhe falou, por o náo tér encontrado.»
É que, neste caso, a preposigáo n áo re¿e o prono-
m e, m as, sim, o v e r b o ; e, q u a n d o dizem os pelo cami-
nho, pelos modost etc., a preposigáo rege o cam inhot
os modos, etc.
É o que análogam ente sucede com a preposiqáo de.
Está m u ito bem a fo rm a — «os ho m e ns do m a r»,
«as m isérias da v id a », etc.; m as náo convém escreve-
rem-se estas coisas, q u e se véem todos os dias em letra
re d o n d a :
— « E m conseqüéncia do d ia estar f r i ó . . . »
— oCorn receio das tropas náo chegarem a tem ­
p o ...»
N áo sáo correctas estas formas, porque, nelas, a
preposigáo de náo rege o d ia e as tropas , que ela
precede; rege o verbo, com o se disséssem os:
— « E m conseqüéncia de estar frió o d i a . . . »
— «C o m receio de n áo chegarem as tr o p a s .. . »
Portanto, escreve-se com exactidáo:
— « E m conseqüéncia de o d ia estar f r i ó . . . »
— « C o m receio de as tropas náo c h e g a r e m .. . »
M a s .. . Se o grand e poéta ressuscitasse e lésse
estas coisas, talvez se indignasse, p o r vér que o seu
sublim e poetar serviu de ensejo a excursóes pelas frias
estepes da g ram ática. . .
Creio, porém , que n e n h u m grand e poéta se livrou
de tal asar.
M as d u rm a descansado, q u e nada disto é por m al.
X

T erríbil, etc.

Na estancia 14.a do mesm o C anto I, fala-nos


Cam óes do

Albuquerque terribil. ..

T oda a gente sabe, creio eu, q u e te rrib il é fórm á


erudita, (do latim te rrib ilis ), que evolucionou para
terr ib el, {registado p o r M oráis), e depois para ter-
rivel, que é hoje fórm a corrente.
A desinencia latina áb ilis, ébilis, ib ¿lis, ób ilist
úb ilis, passou, em portugués, para á b il , ébil, íb ilt
óblly á b il , e evolucionou geralmente para ável, ével,
ível, ável, ável, co m o se vé em arnável, delével,
terrível, móvel, volúvel.
D ig o «geralm ente», porque, nalguns casos, perma-
neceu até hoje a fórm a prim itiva.
H ajam vista os seguintes exemplos, e náo m e ocor-
rem outros: h á b il, áéb il, m óbil, (a p ar de m óvel) e
nubil. Se estes adjectivos tivessem evolucionado, com o
a quase totalidade dos adjectivos de desinéncia sim ilar,
teríamos hoje hável, dével e núvel.
M antiveram p o rém a fórm a prim itiva, tornando-se
excepgào à q u ilo que era regra para Camóes, regra gue
fàcilm ente se observa nos seguintes exemplos, afóra o
d o te rrib il A lbuquerque :
«V isib il» (I, 6 5 ); « insensi bil », (ibidem )', «insu-
frib il» , (ibidem )] «afáb il», (li, 3 9 ) ; « in e x p u g n á b il» ,
(II, 50 e III 1 0 1 ); «incansábil », (III, 6 8 ); «im po ssibil,»
(IV , 54 ; V , 53 ; V I, 8 0 ; V III, 29 ) ; «im placabile, (V, 48 ) ;
(in v isíb il», (I, 65 e V I, 11 ); « v o lú b il» , (V II, 6 0 ) ; «in-
vencíbil», V ili, 6 ) ; «po ssíb il», ( V ili, 6 9 ); «vendibili*,
(V ili, 9 2 ); im ó b il» , ( IX , 53 e 8 6 ) ; «ab o m in àb ile , (X,
50) ; «in stábil», (X , 91).
E d a q u i se poderá concluir corno a regra chegou
a converter-se em excepçào, o que n ào obsta a que a
regra de outro tem po pertença aos factos m ais respei-
táveis e legítim os da história da nossa lingua.
XI

Desejar de. — Dever de

É d o Canto I, estancia 16.a, o seguinte verso:

Deseja de comprar-vos pera genro.

N áo há d ú v id a que o verbo desejar, na linguagem


corrente de hoje, é transitivo: desejar riq u e za s;
desejar vencer. M as os nossos antigos mestres am iúde
o usavam intransitivamente, seguido da preposigáo de,
com o naquela passagem dos L usiadas e neste texto de
D. Francisco M anuel : — «Este liv rin h o desejo de es-
crever» ; — e é certo que assim se p ód e em pregar
ainda, sem receio de fund ado reparó.
Temos ainda nos L usiadas, Canto III, estáncia 5.a :

Segundo o que desejas de saber.

Análogam ente, temos pretender de, n o Canto III,


estáncia 38, e V III, 7 0 ; bem com o determ inar de,
(IV, 93 e 97), propor de, (V III, 70).
N a estáncia 2 4 .a :

Deveis de ter sabido claramente.

Deveis de é caso análogo a desejar de, a que


atrás m e referi.
Correntem ente, diz*se, e bem :
— «D e vemos ser justos.»
— «Deves am ar teus pais.»
Mas náo falamos m enos correctamente, se dissermos:
— «D evem os de ser justos.»
— «Deves de am ar teus pais.»
S áo formas clássicas, e sem pre adoptáveis, abonadas
ainda noutros pontos dos Lusiadas, com o se vé na
estancia 8 0 / d o m esm o C anto I :

Tu deves de yr tambern eos teus armado ;

e n a estancia 12.a d o C anto V II :

Jd devem de fazer as duras provas.


. X II

C onsilio

N a estáncia 2 0 .a d o m esm o C anto I :

Se ajuntam em consilio glorioso.

C onsilio, n o sentido de reüniáo, assembleia deli­


berali va, co m o o em prega Cam òes n aquele passo, náo
está registado nos dicionários, mas é bom latinism o,
que tein o ligeiro senáo de, na lin guag em falada,
poder confundir-se com concilio.
C oncilio e consilio tém , n a sua origem , signifi­
cado análogo, m as sáo palavras diferentes, e délas pro-
cederam duas palavras diferentíssimas : conselho e con -
celho. A ho m o fonia destes do is vocábulos tem dado
ensejo a disparate na escrita dos ignorantes que mais
ignoram :
— N ao aceito os seus concelhos, — dizem uns ;
— O crim e deu-se n u m a das freguesias d o conselho
de A lm ada, — dizem outros.
O leitor, ainda que m edianam ente letrado, vé os
dois disparates, encolhe os om b ros e passa adeanle.
X III

Lhe = !hes

N a instancia 2 1 .a d o citado Canto I :

Deixfío dos sete Ceos o regimentó


Que do poder mais alto Ihe fo i dado.

Temos aqu i Ihe, onde os nossos gramáticos


poriam Ihes.
N ào é caso para extranhezas.
O ihes é gram atical, m as náo é po pular, nem os
clássicos se preocuparam m u ito déle. J á m e referí a
este facto, ( N ovas Reflexóes sobre a L in g ua P ortu­
guesa , pág . 29), e tam bém a ele se referiu o Sr. Er-
9 nesto Carneiro R ib eiro , que, a pág. 325 dos seus
Serdes Q ram aticais, (2 .a edigáo), ad u ziu vários
exemplos de lhe¡ por Ihes, de C am òes, Vieira e
Bocage.
Efectivamente, nos L usíadas temos Ihe, por Ihes,
nos seguintes passos: Canto II, estáncia 9 , 15, 6 7 , 80;
C . IV , 71 e 7 6 ; V , 3 3 ; V II, 1 3 ; IX , 38.
X IV

Sintaxe

N a estancia 38.a d o m esm o Canto :

Se esta gente. . . ,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Náo queres que pudendo vituperio. . . ,

O ra , náo querer q u e esta gente padeQam parece


opor-se á gram ática; m as está de acórdo com outros
exemplos clássicos, em q u e um nom e colectivo> no
singular, é sujeito de u m verbo no plural, sobretudo
quan do o colectivo é acom panhado de ad junto : a
m aioria dos soldados , a Com issáo dos arbitrado-
res; etc.
M ais grave é o caso, em que o sujeito nao é cole­
ctivo e, sendo d o n úm e ro singular, tem o seu verbo no
plural, com o naqüele exem plo de D am iáo de G ó e s :

— « E l Rey estava lanzado em h u m catre, que sáo


leitos co m o de cam po. » —

Ás vezes, até nos surgem exemplos d o contràrio,


isto é, o sujeito n o p lu ra l e o verbo no singular. Se
náo acreditam, vejam éste exem plo d o nosso respeitável
C a m ilo Castelo-Branco:
— « Q u e m e im porta a m im e s p iò e s ? » (B ru x a d o
M onte C órdova, 1.a parte, cap. V).

E u m jornal, que eu m uito considero, aconselhava


há dias ao G o v è rno :

— « É preciso econom ías. » —

O jornalista, se o chamassem a terreiro, diria


talvez que a q u ilo tein defesa p o r ser oragao elíptica,
( « é preciso fazer e c o n o m ía s » ). Se a elipse fòsse pau
para toda a obra !
P o r o nde se prova q u e , em assuntos de linguagem ,
h á exemplos de tudo. Felizmente, nem todos frutificam
nem devem frutificar.
Q uem conhece o cam inho direito e alum ia do náo
tem desculpa de seguir atalhos ensilvados e escuros.
XV

E stám ago dañado

A in d a n o C anto I , estáncia 3 9 :

Porque em fim vem de estómago dañado

E stám ago é a n tig i corruptela, usada pelos clás-


sicos, e po p u la r in d a hoje. C am óes repete-a n o Canto
III, estancia 4 8 ; e vemo-la m uitas vezes em G arcia de
Resende, Jorge Ferreira, etc. A fórm a exacta, e m oder­
namente generalizada, é, co m o se sabe, estóm ago, d o
latim stomachus.
O m eu leitor, que naturalm ente, e com todo o di-
reito, escreve dam nado, náo reparou tal vez na últim a
palavra daquele verso — d añad o (sem m ). Assim escre-
viam todos os velhos clássicos, assim escrevem os que
praticam a ortografía oficial portuguesa, e assim escre-
veráo todos os que chegarem a reconhecer na sim plifi­
cado gráfica a razáo, a sciéncia e as tradi^óes da
Hngua.
Mas o futuro é co m os nossos filhos.

UNOUAGKU DB CAMOK8
XVI

Pexe

N a estancia 4 2 .a d o m esmo C anto :

E o temor grande em pexes converteo.

Note-se que a fórm a pexes, (p o r pelxes) náo desa-


pareceu completamente da língua portuguesa. Pelo
m enos, conhece-a o povo lisboeta, o nde h á m uitos pe-
xeiros e pexeir'is, co m o ele diz.
O i de pelxe náo tem grande ju s tific a d o scienti­
fica, mas é já u m facto da língua.
X V II

Foca

N a estancia 52.a d o m esm o C a n to :

Que só dos feos Focas se navega.

Foca, que é substantivo d o género fem inino, apa­


rece ali m asculino.
N áo é caso para grand e estranheza. T ém variado
de género m uitos substantivos portugueses. F im e p la ­
neta, p o r exem plo, já foram fe m in in o s ; hélice, laringe ,
farin g e , urnas vezes nos aparecem com o género m as­
culino, e outras co m o fem in in o. Etc.
Q u e m dita a lei é o uso autorizado.
X V III

Q uílo a

N a estancia 54.° d o m esm o C anto I:

De Quiloa, de Momba^a c de Sofala.

Se m e náo engano, já p o r outras vezcs m e tenho


ocupado déste verso, para mostrar que é errónea a
p ro n u n cia dos que dizem Q u ilo a , em vez de Q u ílo a ,
(acento tón ico n a prim eira sílaba).
Se C am óes dissésse Q u ilo a , teria perpetrado um
verso erradíssim o, o que náo é aceitável. N em se póde
alegar que a exigencia d o m etro o levasse a deslocar a
a c e n tu a d o tónica da palavra, visto que noutras passa-
gens dos Lusiadas manteve a m esm a pro nun cia.
Assim , 1 1 0 Canto V , estancia 45.a :

A destruida Quiloa com Mombaga.

N o C anto I, estancia 9 9 :

Quiloa, muy conhecida pela fama.

E a ín d a m ais éste verso d a estancia 2 6 d o C anto X :

A Quiloa fértil áspero castigo.


E m n e n h u m a das citadas passagens se poderia lér
Q u ilo a. Além d o que, a fórm a e a p ro n ùn cia d o in ­
glés K ilw a, correspondente ao nom e portugués, em
caso n e n h u m autorizaría a pro nuncia Q u ilóa.
E nào se esclare^a m ais o que é claríssim o . 1

1 Cf. C . d e F i o u e i r e d o , LigOes Práticas, voi. III(


cap. 33; O que se náo deve dlzer, voi. 1 ,1.* parte, cap. 17;
Novas Qeflexues, etc.
X IX

Que, (duplicado)

N a estáncia 55.a d o m esm o C anto I :

Será bem feito ...................................


................ .................. que o Regente
Que esta térra governa, que vos veja
E do mais necessario vos proveja.

N a expressáo —-«será bem feito q u e o R e g e n te .. ,


que vos veja», — temos, co m o se ve, d u p lic a d o inútil
d o que. Bastaría d iz e r: — «será bem feito que o R e ­
gente vos v e ja » .—
É in ú til, gram aticalm ente, aquela d u p lic a d o , mas
náo se opoe á índ ole da líng ua. Assim é que, na lin-
guagem corrente, ouvim os, m uitas vezes, expressoes
co m o estas:— « D ize m que o Silva que j á voltou do
B rasil»; «creio que o rapaz que náo fará carreira».
C am óes sabia o q u e fazia.
XX

Asiano

N a estancia 60.a d o C anto I :

A conquistar as térras Asianas.

Nao é corrente, mas é legítim o e tem bòa deriva-


gao latina, o adjectivo asiano, por asiático. T áo des-
conhecido era dos dicionaristas anteriores ao autor
do N ovo D lc io n ário , que o n á o vi registado por
qualq u é r deles; e eu pròprio, q u e o registei, n u n ca o
vi em pregado, senào naquela passagem dos L usiadas ,
e no Itin e ràrio de Frei Pantaleáo de Aveiro.
Veio directamente d o latim , onde, além de asianus
e asiaticus, tam bém havia, com o m esm o significado,
o adjectivo asiacus.
Até agora, po rém , ainda se m e náo deparou, em
portugués, o adjectivo asiaco, aliás perfeitamente jus-
tificável.
XXI

C o m p rir.— Criar

N a estancia 66.a d o m esm o C anto II:

Comprido esse desejo te seria.

E na estáncia 5.a d o C anto I I :

Comprirá sem receio seu mandado.

C reio que n ing uém hoje escreve com prir, e, sim ,


ctim prlr . E todavía aquela fórm a está m ais próxim a,
d o que esta, da fonte latina (com plere). Mas, com o o
indicativo é cum pro e o subjuntivo é cum pra, a ten­
dencia geral para a re g u la riz a d o verbal levou nos á
adopqáo d o radical de cum prlr em todos os m odos e
tempos d o verbo.
Sucedeu próxim am ente o m esm o com o verbo
criar, q u e m uitos ainda escrevem crear, sem erro, é
claro, porque, assim co m o a fórm a inusitada com prir
está m ais próx im a da fonte latina q u e o actual cum-
p r ir , d o m esm o m o d o a fórm a crear m ais se a p ro ­
x im a d o latim (creare), d o que a fórm a racional criar.
Mas sabe- se que éste verbo tem n o indicativo eu crio,
e n o subju n tiv o que eu crie, náo obstante a prática
de alguns, poucos, que, sem autoridade nem razáo,
inventaram para éste verbo o indicativo eu creo% e o
subjuntivo que eu cree, co m o se o s factos da fonética
dependessem da fantasía de alguém .
O ra , desde que o indicativo é eu crio, e o s u b ju n ­
tivo é que eu crie , nada havia que obstasse á regula­
r iz a d o do verbo, aplicando-se o m esm o radical de
crio a todos os m odos e tempos d o v erb o: c ria r ,
criava, crieiy c ria rla , etc. R egularizado o verbo cum-
p rir (com u), a m esm a razáo ho u ve para a regulari­
z a d o d o verbo c ria r (com i).

\
X X II

Gesto

D a estáncia 6 9 .a d o m esm o C anto:

N as mostras e no gesto. . .

O cioso é ponderar que o gesto cainoneano, o gesto


clàssico, nada tem de c o m u m co m u m m ofino gestot
tào vulgar hoje na im prensa periòdica, corno azeite e
vinagre nas tendas.
Q u a n d o alguém tom a urna r e s o lu t o nobre o u rea­
liza u m acto generoso o u brilhante, as gazetas, em vez
d e encarecer essa acgào ou èsse acto, inform am que
tal gesto foi calorosamente aplaudido.
Neste sentido, gesto n à o é e nunca foi portugués.
J á falei desse desconchavo e da sua origein, corno
se póde ver em O que se nào deve dizer , voi. II,
cap. 107.
N ào gastemos pois céra co m tal defunto, que por
sinai continua a v iv e r . , . nas gazetas.
X X III

A a q u e le s .— T anto-=tào

D a estáncia 71.a d o inesmo C anto I:

Que nunca falte um perfido inimigo


A aquelles de quem foste tanto amigo !

Por d o is lados nos sugere o b s e r v a r e s o segundo


daqueles versos.
A expressào a aqueles é correctíssima : e, contudo,
escrita assim, náo se usa hoje.
C o m o os dois a a fechados, (á á . . ) , em bora
separados na escrita, se pro nu n cia m co m o se fòssem
um só a aberto, (á ), perdeu-se, naquele caso, a noqáo
dos dois a a, e a velha expressào a aqueles passou a
escrever-se com um só a, m as aberto: àqueles. E assim
escrevem hoje todos, salvo a costum eira de m uitos que,
em vez d o necessàrio e m alfadado acento grave, juntam
sobre a prim eira letra da palavra u m acento a g u d o que»
se fòsse legítim o, tornaría esdrúxula a m esm a palavra»
que é grave , co m o todos véem.
A últim a parte d o citado verso,— . . . de quem foste
tanto am igo ,— im pressiona provàvelmente o o u v id o do
vulgar leitor m oderno.
C o m efeito, os advérbios táo e tanto, em bora de
significado análogo, náo se em pregam indiferentemente.
Q u a n d o o advérbio antecede iinediatam ente u m adjectivo
o u a lg u m raro substantivo, para os graduar usam os táo,
e n áo tanto.
E, assim, d ize m o s: — «é táo am ig o d e l e ! . . . » ; «é
táo in f e l i z ! . . . » ; «é táo l i n d a ! . . . » ; «isto é táo verda­
de! . . » Mas se, p o r exem plo, nesta ú ltim a expressáo,
o advérbio náo antecede ¡mediatamente a palavra que
ele gradúa, já o táo n á o é aplicável, m as, sim , o ta n to :
— tanto isto é verdade . . .
A o passo que o táo gradúa os adje d iv o s, á parte o
substantivo verdade ou poucos m ais, o tan to gradúa
especialmeute os verbos.
P o r isso dizem os: — sojreu tanto , que m o rre u ;
— tanto lu taram , q u e .. . ; — estudei tanto , que j á
m e convencí de que n ad a sei.
Destas regias, que eu a in d a náo vi form uladas, mas
que m e parece poderem sér form uladas, se os gram áti­
cos derem licenga, exceptua se claramente a expressáo
cam oneána — de quem foste tanto am igo.
E náo é e x c e p t o única. P e lo menos, n a V inganga
de A gam em non , com edia d o século X V I, de Aires
V itória, publicada h á meses pela Academ ia das Scién-
cias, vejo duas passagens, em que o tanto tem aplica­
d o análoga. N a scena 2 .a, lé-se: — « homens tan to da-
nados». — E n a scena 4 .a h á esta pnssagem : — Quem é
esta ta n to pom posa m o lh e r? —
E, se da literatura quinhentista passarmos para a
linguagem regional dos Azores, lá ouvirem os ainda
huje, n a ilh a d o Faial, expressóes co m o estas: — vejam
como aqueta m enina é tan to lin d a !
M u ito provávelm ente, éste regionalism o c heran^a
dos prim eiros colonizadores d o Faial, e vé-se que a
referida expressáo dos Lusiadas n á o foi facto insulado
na antiga literatura portuguesa; m as sé-lo-ia talvez na
moderna, se resolvéssemos fazer obra por aquele exem-
plo cam oneano, certamente portugués, mas extranho ao
uso c o n ente e desacom panhado de necessidade ou van-
tagem.
T em indiscutíveis direitos o uso geral.
X X IV

Mais sintaxe

G ram aticalm ente falando, é interessante, e tal vez


excéntrica, a estáncia 2 7 .a d o Canto II :

Assi como cm selvatica alagoa


i4s ras, se sentem. . . vi'r pessoa,
Estando fóra da agua incautamente
Daqui e dati saltando, o charco sóa,
Por fogir do perigo....................
Assi fogem os Mouros................

Debalde o leitor in g è n u o procurará o verbo p rin c i­


pal q u e possa concordar com o sujeito as ras.
N ao o encontra.
Casos semelhantes, o u mais graves, se nos deparam
m ilitas vezes n a prosa inconsciente de varios escribas,
que pelas gazetas nos co m unicam noticias, por esta
form a :
— « H á dias o Sr. Salgado, ao atravessar n o seu
autom óvel a Praga dos Restauradores, o carro atrope-
lou urna m u lh e r » .
— «O Sr. C o rn élio Testa, ao aparecer na assem­
blèa dos Pacatos, os seus colegas fizcram-lhe urna
r e c e p t o estrondosa.»
D e ord in àrio , a gente lé estas coisas, encolhe os
om bros e reconhecc que aos respectivos escribas fal-
tam urnas tinturas de gram ática.
E contudo, se éles nos o u v isse m , e se tivessem lido
os L usiadas, talvez pudessem defender a sua in co n ­
sciencia com a lin guag em consciente, q u e o nosso
grande épico usou naquela estrophe 2 7 .a d o Canto II
dos Lusiadas.
Efectivamente, as ras, d a q u í e d a ll saltando, o
charco sóa, parece c o n s tr u y o cóxa, se b e m que náo
seja insulada nos docum entos da lín g u a , co m o mostra
Latino Coelho, que deu ao caso o nonie de sem itism o ,
visto que tal c o n s tru y o náo é rara ñas línguas
semíticas.
A o tragar estas linhas, estou fazendo tratamento de
águas m edicináis tiu m recanto da Serra da Estréla, para
onde eu náo trouxe u m ú n ic o livro d e consulta, p o r
conselho dos galenos. Se assim n áo fósse, talvez m e
aprouvesse disserta r u m pouco sóbre o su posto semi­
tismo de Luís de Cam óes.
O que, de relance, se me afigura é que a constru­
yo gram atical da alu d id a estancia náo é táo cóxa,
como parecerá, ao prim eiro lance de olhos, e que,
sem necessidade de invocar semitism os, poderem os ju s ­
tificar o caso com a gram ática co m um a todos.
O ra vejam os:
Se antepusermos ás ras os gerúndios estando e
saltando, que a elas se referem, teremos esta corre­
c tís im a c o n s tr u y o :

— « Estando as rQs fora dagua,


daqui e dall saltando o charco sóa.
Assim , as ras náo sáo sujelto d e q u alqu é r ora?áo
e fazem parte d o que os gramáticos cham avam ablativo
o ra c io n a l; e, em o charco sóa, temos sujeito e verbo.
Verdade é que a expressáo p o r f u g ir d o p e rig o ,
pelo lugar que ocupa, parece referir-se ao sujeito
charco, o que seria disparate, e temos de a relacionar
com saltando, o que faz sentido e náo prejudica a
sintaxe: saltando as ras , por f u g ir . . .
D o n d e se poderá inferir q u e náo é cóxa aquela
frase camoncana.
É que, realmente, o poéta era cegó de u m ólho,
mas náo era cóxo das pernas nem da gram ática. 1

i Muito depois de publicadas estas linlias num jornal


brasileiro, vi que o Epifánio. ñas notas á sua edigao dos
Lusiadas, está de acórdo com a análise, que eu fago daquela
passagem: — « rás,— diz ele, — é o sujeito do participio
absoluto saltando ».
Deve ser isso.
E no mesmo caso achamos estoutra passagem dos
Lusiadas, III, 40:

Mas o Rei, vendo a estranha lealdade,


Mais pode em fim que a Ira a Piedade.

Aparentemente, éste passo náo tem análise segura, por­


que náo vemos o verbo, de que o Rei deverá ser sujeito.
Anteponha-se porém ao Rei o participio vendo, (Mas vendo
o Rei, etc.) e está salva a gramática.
XXV

Cetim

D a estáncia 97.* d o C anto II :

................ roupa ..........................


De cetim da Adriatica Veneza.

M uita gente, — e até gente letrada, — se tivesse,


co m o C am ôes, escrito cetim , em vez d o nosso conhe-
cido setim , ju lg a ria tér perpetrado reverendissima as-
neira, n áo só porque hoje todos conhecem e gastam
setim, mas tam bém po rque, realmente, o latim seta,
(séda), parece tér emprestado o seu radical set ao su-
posto setim . Se até o excelente M oráis, n á o podendo
deixar de registar a fórm a cetim, que êle via nos clás-
sicos, remeteu o leitor para a fórm a setim, a que jun-
tou a definiçào d o v o c á b u lo .. .
E, contudo, entre os filólogos e entre todos os que
merecem fé ein tais assuntos, a legítim a escrita seria
cetim, e náo setim , visto q u e o vocábulo náo tem
parentesco, senáo n o significado, com o latim seta, e
procedeu d o árabe zeituni, cujo fonem a inicial náo
póde sér representado por s em portugués. N ao póde,
mas é, — pelo m enos n a generalidade dos nossos es-
I.IK G U A ü E M D E CAMBES 4
critores m odeinos, especialmente dos que se náo preo-
cupam de questóes g r á fic a s .. .
Escrevamos pois setim , já que assim o querem ,
mas confessemos que a sciéncia e a história aconselham
outra coisa.
A confissáo póde ser ás vezes o prim e iro passo no
cam inho d o a rre p e n d im e n to .. . e da emenda.
XXVI

Fuge

D a estancia 6 1 .a d o inesmo C anto II:

Dizendo: fu ge, fuge. Lusitano.

Antigam ente, o verbo fu g ir era regular:

Eu fujo,
tu fuges,
ele fuge.

H oje, é irregular:

Eu fujo,
tu foges,
ele foge.

Apenas de longe em longe se nos deparará a


fórma regular daquele verbo em escritores modernos.
Neste m om ento, só m e ocorre u m exem plo: é o verso
de T eófilo Braga, na V isäo dos Tem pos:

Fuge, fuge, fatídico mancebo.

Mas táo natural era para C am óes a c o n ju g a d o


fuge, que a rcpete na m esm a estancia — « fu g e , q u e o
v e n t o . . . » , — e ainda na estancia seguinte: « fu g e das
gentes pérfidas. . . »
E se nós ressuscitássemos esta c o n ju g a d o ?
C reio que se náo perdia nada.

P ru m a = plum a

Citarei agora o ú ltim o verso da estáncia 9 8 .a d o


Canto II dos L usiad as:

Pruma na gorra, hum pouco declinada.

A o que nos hoje cham am os plum a, cham ou Cam óes


p rum a.
N áo é caso para estranheza.
E m bo ra os Latinos tivessem p lum a, o g ru p o etim o­
lógico p l , na sua passagem para portugués, muitas
vezes se transform ou em pr.
Compare-se p ran to, (latim p lan ctus); prurno , (la-
tim p lu m b u m ); p ran tar, (latim plantaré),
E o m esmo se deu, em m uitos casos, co m os
gru po s b l e fl. Compare-se brando, (latim b lan d us);
branco, (germ ánico b la n k ); brasáo, (alto alemao
blas ) ; froco, (latim flocus); frecha, (castelhano fle ­
cha). E até os Flam engos a lg u m tem po se disseram
Fram engos, co m o se vé nos A n fltrióe s d o nosso
épico.
Lojro, a pru m a, em bora desusada, é perfeitamente
portuguesa, táo portuguesa com o brando, pranto,
branco, fro co , frecha, etc.
Acre?cente-se que, n o L im a de D io g o Bernárdez,
tam bém vejo prum agem , outra fórm a de plum agem .
X X V III

S em irám is

Lancemos urna vista de olhos ao C anto III. Lé-se


na estáncia 100.a :

Nunca com Semirámis gente tanta. . .

É m ais u m dos casos, em que temos de lér erra­


damente u m nom e pro prio , para que nào erremos a
leitura d o verso.
Sem irám is, (acento tónico n a antepenúltim a sílaba),
é a p ro n ùn cia exacta; mas, com tal pronùncia, ficaria
errado o verso, porque teria u m acento n a 5 .a sílaba,
o que é inadmissível em versos decassílabos. Temos
pois de lé r erradamente Sem irám is, (acento tónico na
penúltim a sílaba), para respeitarmos a liberdade poé­
tica d o cantor dos Lusiadas.
X X IX

E ólo

Lè se n a estància 105.a d o Canto II:

Em ti, dos ventos horridos de Eolo

Som os obrigados a p ro nun ciar aqui E ólo , nào só


p o r causa da m edida d o verso, senào tam bém porque
éste tem de rim ar, naquela passagern, com p òlo e
A p ó lo .
Mas, corno em prosa e na linguagem corrente, eu
sei que varias gentes, naturalm ente pouco afeigoadas a
palavras esdruxulas, tam bém pro nu n cia m E ólo, é o p o r ­
tu n o lem brar q u e tal p ro n ù n c ia é errónea, e só em
verso se tolera. 1
A exacta pro nuncia está indicada na fonte latina
Aéolus. Portanto temos É olo e náo Eólo.

1 A mesma pronùncia se nota ainda neste verso da


estáncia 8.a do Canto III:

E aqueltes onde sempre sopra Eólo.

E nestoutro da estáncia 5.a do Canto V :

Que sempre faz no mar o irado Eólo.


#

E a propósito :
A tal desafeigào a palavras exdrùxulas nào é in-
Vengào m inha.
N os últim os tempos, chegámos a correr o risco de
vèr aclim atada entre portugueses a disparatada pro­
nùncia crisantem o, velodrom o , etc., á francesa, como
se nós tivéssemos culpa de os Franceses nao terem vo-
cábulos esdrúxulos. fe lizm e n te , creio que o perigo foi
afastado, visto que pouca gente que se preze deixará de
dizer crisántem o, velódromo, etc.
M as n ing u ém houve que desviasse outrora perigos
análogos, e por isso temos, radicada na linguagem
corrente, talvez sem rem édio, a pro nùn cia inexacta de
patèna , patéra, esqueleto, am azona, Taprobána,
H eléna, gem onías, anecdóta, oceáno , Cerbéro, etc.,
em vez d a exacta pronùncia, que é talvez inútil registar,
porque já vem tarde, e n ing u ém gosta de do brar a
lingua.
O ra pois.
XXX

Idólatra, idolólatra

D a estáncia 5 4 .a d o C anto I I :

Levando o Idololatra e o Mouro preso.

C o m o se sabe, id ó la tra é a form a usual, com que


temos designado o adorador de íd o lo s ; m as é contrac­
to ou haplologia da fórm a prim itiv a e exactíssima:
id olólatra.
C am óes serviu-se desta fórm a, mas, por exigencia
d o verso, deslocou-lhe o acento tónico, obrigando-nos
a 1er id o lo látra , se náo quiserm os errar o verso, dei-
xando-lhe u m acento tónico n a 5.a sílaba métrica, o
que náo é perm itido em versos decassílabos, com o já
j á se di8sc.
E, assim, C am óes converteu urna palavra esdrúxula,
ou proparoxítona, em grave ou paroxítona, com o noutra
passagem converteu urna palavra grave em esdrúxula,
q u a n d o de D a r ío fez D á rio , e com o converteu em
palavra aguda o nom e A n ib ál, que nós todos p ro n u n ­
ciamos A n íb a l, em bora os Latinos disséssem A nnlbal,
exdruxulam ente.
E m sum a, id o ló la tra é boa palavra, em bora des­
usada e pouco eufón ica; mas náo a pronunciem os
com o ela tem de se pro nun ciar n o verso ca m o ne an o:
id o lo látra .

Estáncia 7 3 .a d o C anto V II:

J á com dcsejos o idolatra ardia

A q u i temos um caso, em que a liberdade poética


desacatou a legítim a prosodia.
Naturalm ente o leitor, que nunca se preocupou de
m etrificado, leu id ó la tra naquele verso, po rq ue é assim
q ue a palavra legítim am ente se pronuncia. Mas naquele
verso náo se póde p ro nun ciar assim, porque atrib u i­
ríam os a C am óes u m verso erradíssimo, q u e aliás fica
certo se lerm os id o lá tra , (acento tón ico na penúltim a
sílaba).
Tantas vezes o poéta desacatou a prosodia por
amor ao verso, que náo devemos estranhar m uito
éste caso.
XXXI

P r o s ó d ia

N áo há d ú v id a que o poeta, por conveniencia da


versificad o, deslocou o acento tón ico de vários nomes
próprios, e até de alg u ns vocábulos com uns.
Afora a pro nuncia arbitraria de id o látra e idclo-
lá tr a (p o r id ó la tra e id o ló la tra ), e de Sem irám is
(por Sem iram is), Cam óes converteu É olo em E ólo
por très vezes, pelo menos, com o já vimos.
T odos sabem , ou po dem saber, que C e n tín an o ,
p r estimano, etc., tém, p a r d ro it de na issa rice, o
acento tónico na antepenúltim a sílaba, no L Pois C a ­
móes obriga-nos a lèr centim àno, co m o se o nom e
fòsse paroxítono o u grave , no seguinte verso:

Qual Encélado, Egeu e o Centimano (V, 51).

De Dem ódoco, que é nom e esdrúxulo, fez tam bém


palavra grave, neste verso:

Qual Yopas nüo soube, ou Demodoco. (X , 8).

Se bem quiserm os acertar os versos, em que o


poèta em prega o nom e A n ib ai, q u e é paroxítono,
temos de 1er A n ib ál , oxitonamente, nestes versos :

Vereis como Aníbal escarnecía. (X. 153) ;


Pera estes Anibais nenhum Marcello. (VII, 71).
Vé-se análoga deslocagáo de acento nas palavras
N áiades, Etíopes e D a río dos seguintes versos:

Slntra, onde as Naiádes escondidas. (III, 56).

Posto que todos Etiópes eram. (V, 63).


\

O gran poder de Dário estrue e rende, ( X , 2 !).

Estes versos estáo nos casos dos que já cite i:

Nunca com Semirámis gente tanta.


Levando o idololatra e o Mouro preso.

Se léssemos co m o se lé correctamente Sem irám is


e id o lo la tra , teriam aqueles versos acento tónico na
q u in ta sílaba, o que se náo permite em versos decas-
sílabos; e por isso m e in clin ei a que o poéta deslocou
o acento tón ico daquelas duas palavras, para náo tor­
nar defeituoso o verso.
Sucede porém que, no decurso dos Lusiadas,
achei m ais quatro versos q ue , sem d ú v id a , tém acento
tónico n a q u in ta sílaba m étrica:

Dizem que por naus que em grandeza igualam (V , 77);


A nova Maluco co a canela. (IX , 14¡;
Aurea por epitheto lhe ajuntaram. (X , 124);
A golpes de idolatras e de Mouros. (X , 147).

Seria preciso lér epithéto e id o lá lra , para salvar


a m edida n orm al déstes do is últim os versos; mas lá
ficavam os dois prim eiros com o acento tónico na
quinta sílaba, sem recurso possfvel; parecendo por-
tanto aceitável o reconhecer-se q u e o poéta perpetrou,
pelo menos, m eia d ú z ia de versos com acento tónico
na q u in ta sílaba, em detrim ento dos m odelos italianos,
em cujo encalco seg uiu C am óes, A n to n io Ferreira e
Sá de M irand a.
C onspicuos publicistas se tém oc up ad o da geo­
grafía dos Lusiadas, da flora dos Lusiadas, da astro­
n o m ía dos Lusiadas , da fauna dos Lusiadas, mas
ainda n e n h u m se o c u p o u da versificad o dos Lusiadas,
e talvez n áo seja tem po perdido o consagrarem-se mais
algum as linhas a éste assunto.
Tentemos.

%
X X X II

M e trifica d o

N áo se pode dizer absolutamente correcta a metri­


fic a d o dos Lusiadas, o q u é decerto náo invalida nem
desluz a geral c o r r e c t o artística d o m onum ental poema,
antes a realga, co m o fazem os claros-escuros n a beleza
de u m grande quadro.
Tais deslizes o u lapsos sáo fácilm ente explicáveis, a
m eu vér. C am óes viveu e versejou, exactamente n o sé-
culo, em q u e a poesia italiana transm itiu á portuguesa
o m etro decassílabo.
N áo era fácil que a nova m edida métrica se implan-
tasse de pronto e im pecávelm ente. Levado, tempos de-
pois, á perfeigáo por Bocage e Castilho, aquele metro
náo foi sempre observado com rigor pelos poétas qui-
nhentistas, ainda que estes se chamassem M irand a, Fer-
reira o u Camóes.
Todos que conhecem a técnica dos versos sabem
que os acentos tónicos d o verso decassílabo incidem
ñas sílabas pares, isto é, na 4 .a, 8.a e 10.a o u na 6 .a e
10.a, etc.; e que, das sílabas im pares, só n a 3 .a pode
haver acento tónico, havendo-o tam bém na 6 .a
C ontra estas regras da escola italiana e dos bons
metrificadores portugueses, C am óes deixou passar vá-
rios versos, em que o acento tón ico cai na 7.a sílaba;
outros, em q u e o mesm o acento está na 3.a e n a 8 .a;
outros, co m acento tónico n a 4 .a e na 10.a; outros,
com o já vimos, n a 5.a e 10.a ; etc.
Tém acento tónico na 3 .a e na 8.a éstes, por exem-
p lo :

Sacras aras e sacerdote santo. (II, 15);


Ê forçado que a pudicicia honesta. (IV, 49);
As cidades do Samorim potente. (V III, 81);
Se serve inda dos animosos braços, (X, 31).

C o m acento tón ico n a 7.a sílaba, posso citar éstes


exemplos :

Quando daquelles que Cesar mataram. (IV, 59);


Tentou Peritho e Theseu, de ignorantes. (II, 112);
Que do gado de Proteu súo cortadas. (I, 19);
De vossos reinos será certamente. (VII, 62);
Rompendo a força do liquido estanho. (VIII, 73) ;
O louvor grande, o rumor excellente. (IX, 40) ;
Já com desejos o idolatra ardia. (VII, 7,5).

N a estáncia 97.a d o Canto IV, há o seguinte verso,


q u e , em bora tenha acentos tónicos em très sílabas pa­
res, é tal a distáncia entre o acento da 2 .a sílaba e o da
8.a, que é intolerável para ouvidos que nao sejam es-
tranhos ao sentimento da h arm o n ía:

Que famas lhe prometerás? que historias?

Deparam -senos freqüentemente versos duros, em


que duas sílabas norm áis sào obrigadas a form ar urna
só sílaba. Exem plos :

Que em tanta antiguidade nüo ha certeza, (III, 29).


Em tal verso n ao h á tem de form ar urna só sílaba.

A qual Chalé, a qual a ilha da pimenta (VII, 35).

Neste verso, lé, a form am urna só sílaba, t a i


fórm am outra.

Que se injuria de usar fundido cobre, (X. 103).

A q u i, é o verbo in ju ria , que, tendo realmente


quatro sílabas, finge q u e tem tres.
T am bém se nos deparam versos Jroix os, isto é,
versos, em que urna sílaba métrica exerce a funqáo de
duas, com o q u a n d o o verbo sae, que é urna só silaba,
vale por duas, para que o verso tenha o núm ero co m ­
pleto de sílabas. E x e m p lo s:

Que sae com trovüo do cobre ardenle, (X, 28);

Onde sae do cheiro mais perfeito, (X, 137).

C o m o é natural, estas e outras anorm alidades náo


sáo privativas da obra de C am óes, pois se nos deparam
nos ctotros grandes pcétas quinhentistas.
Assim é que Sá de M irand a perpetra versos decas-
sílabos com acento tónico n a 7.a sílaba, co m o estes
d o is versos, {Obras, edigáo M ichaelis, pág. 75 e 475);

Que Ihe apparece onde quer que ella está.


A sepultura que os olhos engana.
E assim é que nos Poemas L usitanos de A n tón io
Ferreira h á versos duríssim os, com o q u a n d o o poéta
faz urna só sílaba das palavras tua, sua, etc., escre-
vendo:

Náo basta que em sua morle só se atalhem.


De em ti vingar sua furia. Ve se podes...
Eu estou tua doce vista desejando.

Sáo táo raras estas durezas nos bons poétas m o ­


dernos, que eu nunca pu d e perdoar ao excelente
Garrett o fazer da palavra sua urna só sílaba nestes
versos:

Pois a taes cerdos vorazes


Estas perolas de prego
Fui deitar! oh f süo capazes
De as vomitar na torpeza
Da sua bruta natureza!

N áo é porém pelo lado da versificado que os


L usiadas lograram fama universal e registo glorioso
ñas literaturas de todos os povos cultos. O s críticos
poderáo descortinar-lhes, áq u é m o u álém , u m ou outro
conceito trivial, urna ou ou tra frase m u ito distante do
sublim e, o u repassada de banalidade, se m e perm item
éste termo, com o sucede n o segundo déstes versos d o
Canto III, estáncia 7 8 .a :

Dom Sancho vay cercar em Santarem,


Porém nüo Ihe socede muito bem.
Mas através d o genial poem a perpassa a m ais ele­
vada inspiraçào, o m ais vivo reflexo das sciências da
Renascença, o inextinguível clarào das grandes glórias
de u m p e qu eño país, e o talento prodigioso, a que se
deve o m ais pe rd urável m on u m en to das letras p o rtu ­
guesas.

M KGUAGEM DB CAMOK8 5
X X X III

Acudir. — Consum ir

D a estáncia 105.a d o Canto III:

Rompe toda a tardanza, acude cedo ..

N ó s hoje conjugam os habitualmente

eu acudo,
tu acodes,
ile acode;

Mas Cam óes conjugava regularmente este v erb o:

eu acudo,
tu acudes
èie acude;

C o m o conjugava:

No,
fuges,
fuge;

N a m esm a estancia tam bém se lé:

Acude e corre, pay . ,.

D o n d e se infere que o poéta usava a fórm a regular


de acudir, o u a preferia à Irre g u lar, hoje corrente.
N o C anto V , estáncia 2 .a :

E o mundo, que co tempo se consume...

É caso análogo aos casos apontados de fu g e e acude ,


com a diferenga de que a c o n ju g a d o regular de sum ir e
consum ir náo é talvez táo inusitada, co m o a de Ju g ir
e acu d ir . Pelo m enos, entre o povo ainda hoje se pode
o u v ir: «Sume-te, dem onio!*)
X X X IV

Coisa algum a

Na estancia 69.a d o Canto V :

Desta gente refresco algum tomamos,


E do rio fresca agua...

Se isto fòsse dito p o r pessóas que n ós conhecemos,


o u pelos redactores de certas gazetas, teria sig n ific a d o
exactamente oposta á daquele verso dos Lusiadas.
A gente ou v e e le, a cada passo:

— « H o m e m algum m e mete m edo.»


— «P ro cu raram , e coisa a lg u m a encontraram .»
— «Pessóa algum a se descobriu.»
E m todos estes èxemplos, querem d a r a algum ,
algum a, significado negativo. A fórm a n orm al e exactís-
sim a é:

— «H om em n e n hum (ou nenhum hom em ) me


mete medo.»
— «Procuraram e nenhum a coisa encontraram, (ou
— nao encontraram coisa n en hu m a ).»
— «Pessóa n en hu m a se descobriu, f o u — náo se
descobriu pessóa alg um a, o u antes — n ao se descobriu
pessóa n enhum a).»
A lgum , com sig n ific a d o negativa, náo se m e depa-
rou nunca na historia da líng u a, excepto n u m a passa-
gem das O rd e n a re s A fonsinas, em que aparece sen-
tenga a lg u a , n o sentido de seatenga nenhum a.
É pouco, para a b o n a d o da errónea conhccida —
«hom em algum m e mete m edo.»
E m c o m p e n s a d o , sobejam as provas de que homem
algum náo significa homem nenhum , antes pelo co n ­
trario; isto é, q u a n d o alg um é posposto a u m substan­
tivo, significa o m esm o q u e q u a n d o é anteposto. Por
outra: homem algum é o m esm o que algum homem.
Já r.ouíro lugar, ( t :a lu r e Escrever, vol. 11,
cap. 188), abonei esta d o utrin a com u m exem plo das
R im as de C a m ó e s :— *Natércia, m in h a bella, tem po al­
g u m m e o lh o u . . . » E agora confirma-se a mesma d o u ­
trina com aquele passo dos L usiad as: — «Desta gente
refresco a lg u m tom ám os e d o rio fresca agua.»
O q u e , claramente, é co m o se disséssemos: — «to­
m ám os a lg u m refresco e fresca a g u a . . . »
N o m esm o Canto V , estáncia 7 5 .a, temos texto aná­
logo, igualm ente abonatório da boa d o u trin a:

. . entre ellas esperámos


De achar novas algiías, como adiamos.

Isto é: — «esperám os achar algum as novas, como


achám os».
N áo é ocioso insistir nesta doutrina, visto que cer­
tas pessóas q u e nós conheceinos e os redactores de
certas gazetas. . .
Cala-te, boca!
XXXV

Infinitivo pessoal

C anto V II, estáncia 72.a:

E folgarás de veres a policía.

M ais de urna vez tem sido citado éste verso, em


questóes d o infinitivo pessoal e inipessoal.
D e tais questóes m e tenho ocupado em ocasióes
várias, co m mais o u m enos largueza, e m ais o u menos
de relance.
Ocorrem -m e sòbre o assunto as seguintes passa-
gens de livros m e u s: — LlgÓes P ráticas, voi. I, cap.
13 e 2 4 ; voi. II, cap. 6 e 8 2 ; voi. III, cap. 41 e 5 3 ;
F atar e escrever, voi. II, cap. 4 5 ; voi. III, cap. 9
21, 158 e 204; O que se n áo deve d ize r, voi. I, 1.a
paite, cap. 1 2 ; voi. III, cap. 108.
N o cap. 12 da 1.a parte daquele voi. I de O que
se nào deve d ize r, já eu m e referí expressamente
àquele erro de C am óes : — E fo lg a rá s de veres a
p o licía, — reconhecendo que estes e alg uns outros
exemplos clássicos contrariam o preceito, d e duzido da
pràtica e índ ole da lin gu a, de q u e o infinitivo pessoal
se em prega, quando o sujeito dele é diferente do
verbo da oragáo regente; e procurei atenuar aquela
anorm alidade camoneana, atribuindo-a á liberdade
poética e á auséncia d e preceito sintáctico em con-
trário.
Efectivamente, foi só n o século X V I que se procu-
rou n orm alizar a sintaxe portuguesa, pois que nesse
século, — no século de Cam óes, — é que apareceram as
nossas prim eiras tentativas gramaticais, com a G ram d .
tica de Fernáo de O live ira em 1536, e com a de Joáo
de Barros em 1540, náo tendo aqueles dois gram áti­
cos fíxado norm as para o em prégo do infinitivo
pessoal.
Éste facto, a m eu vér, aten ua a citada anorm alidade
cam oneana, que, em tod o caso, nunca deverá invocar­
l e em desabono d o preceito norm al.
E nem será preciso recorrerm os á liberdade poé­
tica, em detrim ento de regras sintácticas. Bem bastam
as q u e desacatam a m orfología e a p ro só d ia: álém de
que o T eodoro de Banvílle já sustentava que náo ha
licengas poéticas.

#
Im p e d ir

Canto V ili, estáncia 75.a :

Nào me impidas o gosto da tornada.

C am ôes conjugava os verbos im pedir, despedir e


expedir, com o os conjugava a generalidade dos clássi-
cos e com o ainda hoje os conjuga urna parte d o vulgo
e vários caturras. Era, e é, conjugaçâo exacta e acorde
com a etimologia.
M odernam ente po rém , a nossa-gente habituou-se a
conjugar aqueles verbos com o conjuga o verbo p e d ir:
peço, Impeço, d e sp e g o ... e provávelm ente j á nao
perderá èsse hábito.
Tratei d o caso em très dos m eus livros, ( Proble­
mas da Linguagem , vol. II, cap. 11 ; O que se nao
deve d izer, vol. I, 1.a parte, cap. 3 2 ; e vol. III, cap.
184), e|pouco mais acrescentarei ao q u e lá ficou dito.
Mostrei que o Padre Vieira, o M anuel Bernárdez, o
A n tonio Ferreira, o p ròp rio dicionarista M oráis, etc.
conjugavam com o Cam ôes os verbos im pedir, despe­
d ir, expedir. H oje, notarei que o C am ôes, àlém da
citada passagem, seguiu a m esm a conjugaçâo no Canto
IX , estáncia 8 .a, o nde se lè:

Desta subita vinda os mio impida.


E posso ajuntar ainda os seguintes textos:
D e T om é de Jesús: — « . . . que im p id a vossas so­
beranas o b ra s ». (T rabalhos de Jesús, I, 73).
D e H eitor P in to : — « . . . negocios, q u e Ihe impi-
dam a dogura d o espirito». (Im ag e m d a V ida C r is ti,
II, 16).
C o ntra tu d o isto, calculo eu que prevaleceráo as
m odernas usanzas, só porque sáo u s a n z a s ... que a
ignorancia inventou e os sábios toleram.
E náo vale a pena brigar.
X X X V II

T raïçâo

Estáncia 52.a d o C anto V III :

Astutas traïçOes, enganos varios.

A q u i temos nós u m verso, que fícará deplorável-


mente errado, se lerm os traiçôes, co m o geralmente se
pro nuncia hoje esta palavra, isto é, co m o dissílabo:
trai-çôes.
O ra , o vocábulo traiçâo , considerado com o deri­
vado de tr a ïr, nào poderia sêr senào tra-i-çâo, (très
sílabas), e jam ais trai-çâo, (duas silabas, sendo ditongo
a prim e ira); e, se o considerarm os fórm a portuguesa
d o latim traditionem , da mesma fórm a, pela q uéd a da
consoante m edial d , teremos tra-i-çâo, très silabas dis­
tintas, que é o que nós vemos n o v erso de Cam óes,
certíssimo portanto.
D e m aneira que parece estar provado que Cam óes,
e provavelmente a gente d o seu tem po, pronunciavam
excelentemente tra-i-çâo, em bora nós ho je reünamos
n u m a só sílaba as duas prim eiras, form ando u m d i­
tongo (tráf), que náo existia prim itivam ente.
N áo será fácil voltarm os a dizer tra-1-çào, como
poderíam os e deveríam os; m as, ao m enos, n á o acuse­
m os Cam óes de erros q u e náo perpetrou.
X X X V III

Concordancia

C anto X , estáncia 4 6 .a :

Que a fraca humanidade e amor desculpa.

Esta concordáncia d o verbo co m os dois sujeitos


diverge u m pouco da sintaxe oficial.
Oficialm ente, por assim dizer, os gramáticos assen-
taram em que d o is ou m ais sujeitos n o singular, an-
tepostos ao verbo e ligados pela c o n j u n t o e, qu an do
náo sejam de s ig n ific a d o semelhante, levam o verbo
ao plu ral, e geralmente assim é : — « O rio e o monte
estáo p r ó x im o s » ; «o Pedro e a M aria entendem-se
bem ».
M as há m uitas excepgóes, e aquele exem plo de
C am óes é urna délas; isto é, levarem o verbo ao sin­
gu lar os sujeitos que o antecedem, ligados p o r e.
E nos L usiadas náo é ún ic o aquele ex e m plo : N o
C anto II, estáncia 61.\ temos ta m b é m :

Foge, que o vento e o céo te favorece.

E na estáncia 7 1 .a d o m esm o C anto:

Para onde o sonho e o mouro Ihe dlzla.


E m ais: C anto V III, estáncia 2 6 .a :

......................................... cuja manha


E grande esforgo faz enveja á gente.

Frei Luís de Sousa, n a V id a do Arcebispo , II, 8,


(edigáo de 1740), tam bém d iz :

Quanto o tempo e o sitio consinta.

H erculano, n o Eurico, escreveu:

. . . a quem a desgrana e a vida dura das solidóes fizera


mais feroz. . .

E Latino Coelho, (H lst. P ol., I, 101), disse:

O segredo e o poder residía no confissionario.

A sabedoria das nagóes está de a c ó rd o :

O comer e o cogar está no comegar.

Modifique-se pois o rigor da sentenqa dos g r a ­


máticos.
X X X IX

P roduzir, reduzir, s e d u z ir ...

s
Todos nos conjugam os o presente d o indicativo de
p ro d u z ir, re lu zir, seduzir , deduzir, e de outros
verbos de desinencia análoga,

eu produzo,
tu produzes,
ele produz, etc.

A o Norte de Portugal, po rém , ainda h á vestigios


da antiga fórm a ele produze, reluze, seduze, e pare-
ce-me que Camoes n á o conhecia outra. Pelo menos,
n o C anto II, estáncia 4 .a dos Lusiadas, lé-se: « Q u e
produze o aurífero le v a n te » ; e na estáncia 9 5 .a :
« Com resplandor re lu ze » ; no Canto IV , estáncia
6 5 .a : « P rod uze e c r ia » ; n o Canto IX , estáncia 58.a :
« A li N atura p ro d u ze »', e na estáncia 6 1 .a : « Q u a l
re luze ».
XL

VaYdade

Referi-me anteriorm ente ao facto de tralgáo (tra-i-


-gáo) ter trés sílabas na estáncia 5 2 .a d o Canto V III,
caso análogo á treigáo ( tre-i-gáo) da estáncia 17.a do
C anto II.
C ircunstáncia semelhante se d á com a palavra vai­
dade, que, para nós, hoje, tem trés sílabas e que na
lin guag em de Cam óes tinha quatro, com o se vé no
seguinte verso d a estáncia 9 9 .a d o C anto I V :

Já que nesta gostosa vaidade. ..

Isto é, vaidade tem de se lér va-i-da-de, por mais


estranho que isto parega á nossa gente de agora.
E contudo aquela pro nuncia va-i-da-de é perfeita-
mente justificável. O latim vanitate devia tér produ-
zid o vanidade, e, pela quéda d o n medial, va-i-da-de.
O term o sofreu depois evolugáo fonética, e das
sílabas va-i fizemos oralm ente u m ditongo, val. Q uem ,
todavía, quiser lér bem os Lusiadas e n á o a trib u ir a
C am óes u m verso erradíssim o, tem de lér va-i-da-de,
sem diton go n o citado verso.
XLI

O rtografía

Exaltem outros, — nacionais e estranhos, — a so-


berba urdidu ra dos Lusíadas%o pratriotism o e a gran-
diosidade desta epopeia, a beleza das suas descrigóes, o
retrato d o Adam astor, a tragédia da lin d a Inés, a des­
c r i b o da Ilh a dos Amores e outros episódios, eterna­
mente adm iráveis, ¿jue eu, restringindo-me a o modesto
papel de estudioso da líng u a, obscuro lexicógrafo e
desambicioso cultor da arte de escrever, continuarei a
falar da linguagem camoneana, n o q u e ela tenha de
interessante para os estudiosos co m o eu, e n o que ela
se preste a ponderagóes oportunas e a exem plos de
corre cgáo.
Evidentemente, a escrita quinhentista náo é uniform e
nem inteiramente m odelar. A im peifeigáo das impres-
sóes, a ignoráncia dos revedores e a incipiente cultura
gram atical, por si sos expücam as irregularidades e as
incorrecgóes dos antigos docum entos clássicos.
Mas, de p ar com essas incorrecgóes e irregularidades,
há m ilhares de casos m orfológicos, em que os velhos
mestres estáo de acórdo entre si, co m o a sua prática
está de acórdo com os ditames e processos da moderna
sciéncia da linguagem .
A éste respeito, e co m o náo tenho de invocar agora
outros mestres, bastar-nos-á o testemunho de Cam óes,
para abonar fórm as gráficas, cuja exactidáo a F ilología
com prova.
Por e x e m p lo : m odernam ente, chegou a vu lgari­
z a r s e a grafía socégo e socegar, naturalm ente por
influencia da palavra cegó, que nada tem com aquelas.
E contudo, segundo a etim ología, proposta pela D r.a
C a ro lin a Michaélis, e aceita já p o r todos os romanistas,
a fórm a exacta é sóssegar e sosségo.
C am óes e os velhos mestres o m esm o praticaram e
ensinaram . Nos Lusiadas acham-se as fórmas sossegar
e sosségo, sem n e n hum a outra variante, e podem
vér-se nos seguintes Cantos e estáncias, pelo m e n o s :
— C anto II, estáncia 4 3 ; III, 43, 64 e 1 2 0 ; IV, 8 5 ;
V , 1 ; V III, 87.

Mais alg u ns exemplos de c o rre c to de escrita,


com provada pela história da lin g u a e pela doutrina dos
filó lo g o s :
Q uis, ,e náo q u iz, com o m uita gente tem escrito).
Vejam-se os Lusiadas, III, 2 0 , e IX , 25.
E spanha, (e náo H espanha), está nos L usiadas,
C anto IV, 4 9 , 53 e 6 1 ; V, 9 ; V I, 36.
M ajestade, (e náo m agestade), V III, 62.
D in is, ou D enis, (e náo D in iz ), IV , 17.
Inés, (e náo Ignez), III 123, 132 e 135.
S in tra , (e náo C intra), III, 56, e V , 3.
Alentejo, (e n á o Alem tejo), III, 75.
Pregunta, (e n á o pergunta), V , 49.
A lan q ue r , ou Alenquer, (e nào Alem quer )
111, 61.
Portugués , (e nào portuguez), 111, 1 1 2 ; IV , 15,
3 3 , 38, 4 6 , 5 6 ; V , 9 7 ; V III, 3 2 ; X , 1 4 0 ; etc.

Està d ito e pro vado que a letra m, dentro de um a


palavra, só p ô le estar antes de by de p , ou de outro
m : im p ro p rio , ambos, e m m alar . . .
Sào, portanto, incorrectas as formas, usadas por
m uita gente : emfim, em quanto , com tudo, comsigot
etc. C ontudo, contigo, consigo , com n, é q u e sào
fórm as exactas; e quem nào preferir enfim e enquanto,
(com n), deverà escrever em-fim , (com traço de uniào),
o u escrever com o Cam ôes e outros clássicos, separando
os dois termos, sein traço : em firn, em quanto , com
tudo, mas consigo e contigo.
O consigo pro no m inal vê-se, p o r exemplo, nos
Lusiadas, II, 14 ; V , 62 ; X , 89 ; o em quanto , sepa­
rados os dois elementos, III, 1 0 9 ; IV , 2 0 ; V , 24 e
27 ; V I, 4 ; e com tudo, V , 54.
O em firn, com separaçào dos do is elementos, é
frequentissimo nos L usiadas, e até parece expressào
dilecta de C am ôes, tanto se serve delà o poéta. O ra
veja-se :

E que do ceo à terra em flm deceo, (I, 65) ;


Partióse nisto em firn co a companhia, (I, 72) ;
Desta arte o Portugués em firn castiga, (I. 92) ;
Como por regimentó em firn levava, (I, lOá) ;
Assentarey em fim que fuy mofina, (II, 39) ;
L IS O ü A O E M DE CAMÜE8 G
E contra minha dita em jim pelejo, (II, 40', ;
E por elles, de tudo em fim senhores, (II, 46) ;
Toda esta costa, em fim, que agora urdia, 'II, 48);
Nas alparcas dos pés, em fim de tudo, (II, 95) ;
Alem disso, o que tudo em fim me obriga, (III, 5) ;
Mais pode em fim que a Ira a Piaiade, (III, 40) ;
Até que cm fim . rompendo-lhe a garganta, (III, 47);
Desta arte em fim tomada se rendeo, (111, 6 0 ) ;
E posto em fim que desde o mar de Atlante, (III, 73);
Quando quem tudo em fim vencendo andava, (III, 83);
E quanto em fim cuidava e quanto via, (III, 121).
Que tudo em fim tu, puro amor, desprezas, (III, 122);
E como cousa em fim, que o ceo destina, (IV, 3) ;
E se co isto em fim vos nâo moverdes, (IV, 18) ;
Porem ellas em fim, por força entradas, (IV , ?56) ;
Là morrerâo em fim e là ficarâo, IV, 65) ;
Decer em fim ds sombras vans e escuras, (IV, 80) ;
Nâo vimos mais em fim que mar e ceo, (V, 3) ;
A terra a nenhum fruto em fim desponta, (V, 6);
Sempre em fim para o Austro a aguda proa, <V, 12);
Por este largo mar em fim me alonga, (V, 13};
E pelo ceo chovendo em fim voou, (V, 2i) ;
Mas como nunca em fim meus companheiros, (V, 64);
Deixando o porto em fim do doce rio, (V, 73) ;
Porem nâo deixe em fim de ter desporto, (V, 100);
E tomada licença, em fim se parte, (VI, 56»;
Crer tudo em fim ; que nunca louvarey, (VIII. 89;
Fôra de amor, que em fim nâo tem defensa, (X, 49);
Qual em fim o Archetypo que o criou, (X . 79];

Com esta m açadoria de abonaçôes, para u m caso


aliás sim plicíssim o, é provável q u e o m eu leitor tenha
adorm ecido, antes de chegar a éste po nto. E é natural.
D u rm a, descanse, e depois, em poucas palavras,
concluirem os a palestra.
X L II

O rtografía

(C O N T IN U A C Á O )

Urna das in fund adas a c u sa re s , que se form ularam


na im prensa contra a s im p lific a d o ortográfica, adoptada
pela A cadem ia Brasileira e pela Academ ia das Sciéncias
de Lisboa, s im p lific a d o já hoje vulgarizada na im*
prensa oficial e náo oficial do m eu país, é que a pro-
clam ada reform a contrariava as tradigóes da l í n g u a . . .
Com docum entos da mesma lín g u a se m ostrou a
inanidade de tal a c u s a d o ; e, a propósito dos Lusía-
das, tal vez náo seja ocioso registar*se que o grande
épico, em numerosas passagens d o seu poem a, usou
exclusivamente a fórm a sim plificada de centenares de
vocábulos, que os pseudo-etimologistas, especialmente
d o século passado, enfeitaram de letras inúteis.
Recordarei ao m enos urna meia d ú zia désses
vocábulos.
*

N áo h á d ú v id a que descer, nascer, crescer, flti­


res cer, etc., sáo fórm as exactas e táo generalizadas,
que a reforma ortográfica náo as a b o liu expressa-
mente, e até, por m era co n te m p o riza d o , aceitou o
g ru p o inicial se em seténela, sceptro , etc., náo obs-
#
tante a pràtica dos clássicos e o judicioso exem plo da
lin g u a espanhola. C o m o porém C am òes e os velhos
clássicos nào tinham de contem porizar com hábitos
suspeitos, escreveram naturalm ente ciencia , cetros
decer, nacer, crecer, florecer, etc.
Ciencia vé-se nos seguintes Cantos e estáncias dos
L usiadas: — V , 17; V II, 4 0 ; X , 152.
C etro : — I, 2 2 ; III, 78.
N a c e r: — IV, 6 9 ; V , 4 7 ; V I, 10 e 4 2 ; X , 136.
D ecer: — \ , 6 5 ; II, 19; V I, 132; V II, 71.
Crecer: — IV , 12, 35 e 82.
Florecer: — \ , 7 ; III, 20 e 92.

D e entre as fórmas simplificadas, propostas pela


reform a ortográfica, e geralmente aceitas já hoje,
menqionem-se as seguintes, com a b o n a d o dos Lu-
síadas :
D año , (e náo dam nó): V , 42 ; X , 9 1 ..
Desonesto, (em bora se m antenha o h inicial de
honesto) : IV, 4.
Aum ento, (e n ao augm ento ): — L, 6 ; II, 43.
S in al, (e n á o signat): — I, 94.
A ssinalado , (e nào assignalado) : — I, 1.
X L III

Dio

A cidade portuguesa da Ásia, — D io , — situada na


ilha d o m esm o nom e, está táo intim am ente ligada com
os factos heróicos dos velhos Portugueses, que, se al-
g u m a coisa m e pudcsse in d ig n ar, eu sentiría assomos
de in d ig n a d o , ao ver q u e os nossos m odernos escrito­
res lhe adulteraram o nom e, chamando-lhe D iu , com o
se éste m onossílabo pudesse representar o auténtico
dissílabo D io ( Di-o).
A disparatada crism a tem e x p lic a d o : — com o anti-
gamente, o ditongo iu era representado por ¿o em fu g io ,
pedio, sahío, etc., entenderam ineptamente que o io
de D io também soava iu , c desataram a escrever D iu .
A verdade po rém , verdade indiscutível, é que o io
de D io é u m dissílabo, com o o io de m ulherio, fa la ­
rio , fr ió , bafio, tío , vazio, navio, gentío, fastio ,
rio , m acio, etc., vocábulos q u e n ing u ém pronuncia
m aciu, riu , p a rtía , gentiu, n ay iu , v aziu , tiu , b a fiu ,
fr iu , fa la r iu , m ulheriu, etc., e m uito m enos assim
escreve.
Evidentemente, os nossos clássicos jam ais escreveram
D iu , mas, sim , D io ; mas isso náo é razáo plena da
exacta escrita e pro nuncia déste n o m e , em vista d o pre­
texto de igual desinéncia gráfica nos verbos fu g io ,
pedio, s u b ió . . . y
O s L usiadas porém náo deixam a raenór dúvida
sobre a exacta pro n u n cia e escrita d o m esm o nome,
porque nos Lusiadas se ve se ele pode o u nao pro­
n u n c ia r le co m o urna só sílaba, para se po der escrever
D lu , ou se tem de se p ro n u n cia r com o duas sílabas e
de se escrever portanto D io y (Di-o).
Très vezes se m e deparou a palavra D io nos Lu­
sia d a s : Canto II, estáncia 5 0 ; e C anto X , estáncia 62
e 64.
A estáncia 62 d o Canto X nada prova a favor nem
contra a m in h a tese, porque d iz :

De Dio os Rumes feros afagenta,

porque, ainda que se lesse D lu , o verbo náo fícaría


e rrado; m as a estáncia 50 d o C anto II é decisiva:

Vereis a inexpugnábil Dio forte.

Se D io se pronunciasse D u i, isto é, se fòsse urna


só sílaba, o verbo ficaria erradíssim o e in d ig n o de
C am óes.
A estáncia 64 d o C anto X confirm a a mesma coisa,
porque o prim e iro verso term ina em D io e rim a com
o terceiro, (senhorio), e co m o quinto, (gentío).
Q u a n d o gentío e senhorio se pud ér escrever e p ro ­
n u nciar ge n tiu e senhoriu, entáo poderem os tam bém
escrever e pro nun ciar D lu .
Portanto, D io , — duas sílabas e te r m in a d o em o. 1

1 Cf. C. DE F io u e ir e d o , Fatar e Escrever, v o i. I, c a p .


X L IV

F il o s o f í a p r á t ic a

P o rqu e os Lusiadas sejam, a m uitos respeitos,


o b ra de ensinam enío e san filosofía, ab u n d am neles
brocardos, scntengas e jüdiciosas p o n d e r a le s que,
sobrevivendo aos sáculos, in d a hoje se repeteni, com o
reflexo da sabedoria das nagóes.
Registem-se amostras.

I, 68:

Que he fra q u eza entre ovelhas s e r leílo.

IV, 9 4 :

Cum saber só dexperiencias feyto.

V , 28:

A nada d isto o bruto s e movía.

V II, 41:

D ito sa condigam , ditosa gente.

V II, 89:

N úa mño sempre a espada e noutra a pena.


V II, 8 2 :

Q ue exem plos a fu tu ro s escritores f

IX , 8 3 :

M ilhor e esprim entalo que julga lo .

X , 8:

M ateria he de Coturno e náo de Sóco.

X , 128:

Naquelle cuja lira sonorosa


Será m ais afam ada que ditosa.

X , 145:

,
O fa v o r com que m ais s e acende o engenho,
NQo no dd a p atria. nQo, que está metida
N o g o s io da cubiga e na rudeza
D íía austera, apagada e vil tristeza.

C reio que o poéta, se ressuscitasse, náo rasgaría


estes quatro versos, visto que a pátria dos nossos avós
é a mesma pátria que nós servimos e a m a m o s .. .
XLV

Concïusâo

Dêstes m eus rápidos apontamentos à m argem dos


Lusiadas ressalta apenas m ais urna hom enagem , em-
bora modesta, á imperecivel m em òria d o grande mes-
tre da lin gu a, e jam ais u m estudo critico da sua epo-
peia, da influencia q u e eia exerceu na Renascença, da
ligaçào, que eia celebra, entre o Ocidente e o Oriente,
da representaçào, q u e r.ela vive, de um pequeño mas
heroico país, que engastou na sua corôa triunfal as
indias e as Américas.
T ào alto n à o sobem os m eus intuitos, visto que
tal assunto, na pròpria linguagem de Cam ôes, (X , 8)

Materia è de coturno e nào de soco.

Dem ais, èsse estudo està feito; e já qtie seria nào


só impossivel m as tam bém ocioso o reproduzirem-se
aqui as apologías, de que, em todos os países e no
decurso de qu atro seculos, Cam ôes e a sua obra tèm
sido objecto, perm itam -me q ue , para fechar com chave
de oiro a m in h a singela prosa, reproduza, ao menos,
algum as palavras d o cantor de Ahsvérus, d o admirà-
vel pensador e estilista E dgard Q u in e t:
— « ... Èste poèta é C am ôes, que descerra á ima-
ginaqáo as portas d o O riente; este livro é O s L usia­
das, que reúne, com todos os perfumes de Portugal, o
oiro, a m irra, o incensó d o Levante, temperados muitas
vezes com as lágrimas d o Ocidente.
«O genio poético da Europa deixa, pela prim eira
vez, a bacia d o M editerráneo, e penetra nos océanos
da velha Ásia.

«A c h a is, a u m tem po, a re c o rd a d o da E u ro p a e


os tépidos perfum es da Ásia, naqtiele £cn io , q u e é o
elo da Renascenqa grega e da Renascenqa oriental.
«.................................................................. ..........
................................ É verdade que até nesta lin g u a p o r­
tuguesa, táo enérgica e táo suave, táo altissonantc e táo
singela, táo rica de vogais lim p id ís im a s , ele parece
u m intérprete, urna c o m u n ic a lo natural entre o gènio
d o Ocidente e o gènio da Ásia O riental. Mas o que
p ro d u z a alianza de tu d o is to ,— será mister dizé-lo?,
— é o coragáo d o poèta, aquele coraqáo m ag nàn im o,
q u e abrange os dois m u nd os e os prende n u m só
abrado de poesia, n u m a só hum anidade, num só Cris­
tianismo.

« A o falar de Cam óes, n áo posso, desde logo, m udar


de assunto; e porque esconderei eu a sim patía que me
leva para éste grande h o m e m ? T ud o que é déle me
enleva: a sua poesía, o seu carácter, o seu grande
coragáo.

«H á ali diálogos assombrosos entre o m arinheiro


e o O c e a n o : de u m lado, a hu m an id ad e triunfante, no
seu navio em pavesado; d o outro, os cabos, os pro-
m ontórios, as torm entas, os elementos, vencidos pela
industria. N ào será éste o espirito dos nossos tem pos?
A epopeia que m elhór os apresenta nào é a d o Tasso:
é n im iam e nte romanesca. N ào é a d o Ariosto: onde é
que temos ho je a graga, a serenidade, o sorriso do
ú ltim o dos trovadores? T am bém nào é a d o Dante.
A Idade-M édia já vai táo longe de nos!
« Mas o poem a, que abre, com o século X V I, a
era m oderna, é aquele que, sciando a a l ia n ^ do
O rien te com o O cidente, celebra a idade heróica da
in d ù stria; nào já poem a de peregrino, mas de via­
jante, de comerciante sobretudo, verdadeira O disseia
em ineio dos em pórios e feitorias nascentes das G ra n ­
des Indias, 1 1 0 bergo d o com ércio m oderno, da tnesma
fórm a por que a O disseia de H o m e ro é urna viagem
através das nascentes sociedades militares e artísticas
da G r è c ia .»
Si

ili f -

ÍNDICE

l’«z-
N ota p r e a m b u la r ...................................... ! . . . . 7
I - T oda p a r t e ......................................................... 9
I I — E n v e j a ............................................................... 11
III - M o l h é r ............................................................... 13
IV — Frauta..................................................................... 15
V.— R u d o ......................................................................16
V I — N e n h ü a ................................................................18
V I I - P e r a ........................................................................ 20
V ili — D evulgar............................................................... 22
I X - P o l o . . . - D e ........................................................ 23
X — Terribil, etc...........................................................25
X I — Desejar de. — Dever d e ................................27
X I I - C o n s i l i o ............................................................... . 2 9
X III — Lhe = l h e s ......................................................... 30
X IV — S i n t a x e ............................................................... 31
X V — Estám ago...............................................................33
X V I - P e x e ......................................................... ...... . 34
X V II — F o c a ......................................................................35
X V I I I - Q u i l o a ............................................................... 30
X I X — Q u e (duplicado). . .......................................38
X X — A s i a n o ............................................................... 39
X X I — C om prir. — C r i a r ............................................ 40
P*Z.
X X I I - G e s t o ................................................... ) • . 42
X X I I I — A aqueles. — Tanto = t á o ................................43
X X IV — Mais sintaxe......................................................... 46
X X V — C e tim ..................................................................... ........
X X V I - F u g e ...................................................................... 51
X X V II — Prum a = p lu m a ................................................... 52
X X V III — S e m i r á m i s ......................................................... 53
X X I X - E ó l o ...................................................................... 54
X X X — Idólatra, id o ló la tra .............................................56
X X X I - P ro s ó d ia ...............................................................58
X X X II — M etrifieagáo......................................................... 61
X X X III — A c u d ir .— C o n s u m i r ...................................... 66
X X X IV — C oisa a l g u m a ................................................... 68
X X X V — Infinitivo p e s s o a l ............................................ 70
X X X V I — Im pe d ir . . . *............................................ 72
X X X V II - T r a í g á o ............................................................... 74
X X X V III - C o n c o r d a n c ia ...................................................75
X X X I X — P roduzir, reduzir, seduzir................................ ..... 77
X L - V a i d a d e ............................................................... 78
X L I — O r t o g r a f í a ..........................................................79
X L U — Ortografía. ( C o n t in u a d o ) ................................83
X L III — D i o ...................................................................... 85
X L IV — Filosofía prática.................................................. 87
X L V — C o n c l u s á o ......................................................... 89

&

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