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Atenção à crise em saúde

mental: algumas reflexões

CESMAP - 2019
Retomando algumas ideias...
O conceito de crise na psiquiatria
tradicional
•O conceito de crise é balizado pela cultura e pelos padrões da sociedade em que o sujeito está
inserido
•Para a psiquiatria tradicional, a crise é sempre uma crise do paciente
•Os “sintomas” usadas no modelo da psiquiatria tradicional como critério classificatório para o
diagnóstico de uma situação de crise são uma simplificação da história pessoal e singular que
desembocou naquele momento crítico.
•Como a crise se mostra como simplificação, os serviços se constroem de forma análoga,
buscando resolver e suprimir aqueles sintomas, desconectando a pessoa das causas daquele
episódio.
A conceituação de crise em uma
perspectiva ampliada
A crise é dinâmica e relacional e estão em jogo relações grupais, familiares, sociais e culturais:

“(...) podendo ser consideradas situações de urgência em


saúde mental que tragam como central o “sofrimento
psíquico grave”, um afeto insuportável que desestabiliza
diversas dimensões da vida do sujeito como a dimensão, familiar, institucional e social”.
(Pereira M, Sá M, Miranda L, 2013)
A Reforma Psiquiátrica Brasileira e a
atenção à crise
A aposta da Reforma Psiquiátrica Brasileira na atenção às pessoas em crise se dá sob uma lógica
comunitária e intersetorial, com base em valores como a tomada de responsabilidade,
acolhimento e valorização da autonomia dos sujeitos.

A resposta à crise no serviço territorial tem como intuito:


“conectar, colocar em contato o paciente com um sistema de
relações e de recursos humanos e materiais” (Dell'acqua e Mezzina, 1991,p. 75)
A Reforma Psiquiátrica Brasileira e a
atenção à crise
•Mesmo com o avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a Atenção à Pessoa em Crise,
reconhecida como urgência psiquiátrica, ainda é operacionalizada de forma manicomial, por
meio de intervenções biomédicas, contenções físicas e internações de longa duração.
•Necessidade de despatologizar a crise e incluí-la como mais um dos eventos da vida.
•Habitar o paradoxo, que é a insegurança de lidar com o outro em crise não se utilizando de
respostas pré-determinadas pela lógica manicomial.
•Desconstruir junto ao usuário e consigo mesmo a forma de expressão daquele sofrimento, a fim
de se deixar afetar pelo momento e, a partir daí, traçar o plano de ação necessário
conjuntamente.
A crise do usuário como analisador da
Rede
Crise da Rede

Crise do Serviço

Crise do Profissional

Crise do Família

Crise do
Usuário
A crítica aos protocolos de atenção à
crise
•Plasticidade do Campo da Saúde Mental
Questões preliminares:
 Problematização da patologização da loucura
 Problematização da agressividade como intrínseca à loucura
 A crise não é uma entidade, para ser tratada como tal
 É um evento que necessita de contextualização
 Crise não tem um prognóstico fechado
 Não existem conhecimentos escondidos, em algum livro que ele ainda não foi acessado, que
possam ajuda-lo a decifrar aquele acontecimento. A grande fonte de conhecimento sobre
aquele momento específico é o próprio usuário.
Clínica da Narrativa
 Produção de sentido para o momento de crise deve ser conjunto, com pactuações de 24h.
 Crise como evento-dispositivo criador potencial de realidades.
 Isso depende muito de quem maneja a situação.
 O suporte dado deve ter base no vínculo construído naquele momento.
 A manutenção e o aprofundamento do vínculo passa, necessariamente, por não mentir para
o usuário.
Princípios para atenção à crise
Território

Responsabilização

Cuidado em Liberdade

Garantia de Direitos
Território
•Além de geográfico, subjetivo, como os usuários vivenciam o território que habitam
•Mapeamento da Rede de dispositivos de Saúde
•RAPS como uma rede transversal
•Conexões intersetoriais
•Articulações e tecitura da Rede: tecer rede tem a ver com circular pela cidade, conhecer as
pessoas, os outros profissionais.
•Articular profissionais, família, serviços e as ideias – cidades pequenas
•Leitos em HG estratégicos
Responsabilização
•Toda demanda de saúde mental de um determinado território será de responsabilidade total do
serviço referenciado.
•A Responsabilização tem a finalidade de evitar o abandono e evitar que pessoas fiquem à
margem da Rede de cuidado.
•Técnico de Referência – profissional que desenvolve um vínculo maior com o usuário e pode ser
aquele que conduzirá as intervenções durante a crise de seu referenciado.
•Então, mesmo que a equipe necessite de intervenção de outros serviços para dar conta de uma
situação, precisa ficar claro que a responsabilidade total de suprir as necessidades de saúde
mental daquele sujeito é sim do serviço saúde mental referenciado.
Cuidado em Liberdade
•Cuidado como valorização da sabedoria prática do outro
•O cuidado deve estar profundamente enraizado no que o outro sabe e deseja para a própria
vida
•Convenção secular de que é preciso isolar para “cuidar”
•Rotelli aponta que mais importante que fechar o manicômio é torna-lo obsoleto.
•A liberdade é terapêutica,mas dá mais trabalho pra executar.
Garantia de Direitos
•Minha prática profissional tem garantido direito aos usuários?
•Direito à saúde
•Direito à liberdade
•Conceito ampliado de Saúde
•Articulações intersetoriais
Habitando o paradoxo: por uma
Atenção Antimanicomial à Pessoa em
Crise
•Habitualmente a agitação, a agressividade, o discurso incoerente, as alucinações e os delírios são facilmente
capturados pelo discurso patologizante, fechando possibilidades que uma análise singular mais apurada
poderia construir.
•Habitar o paradoxo tem a ver com lidar com a insegurança de não estipular intervenções prévias, de
desconstruir junto ao usuário e consigo mesmo a forma de expressão daquele sofrimento, a fim de se deixar
afetar pelo momento e a partir daí, traçar o plano de ação necessário.
•Não se pode desconsiderar a realidade da vida daquela pessoa que está em crise.
•Contextualizar a crise é mais importante que definir um diagnóstico.
•Saber o que a pessoa está sentindo, o que quer, e quais as suas queixas, qual a justificativa dela para estar
agindo de determinada forma é o melhor material para traçar o plano de ação.
•Insistir na criação de redes é uma das chaves para cuidar em liberdade.
•Importância de fortalecer também a relação com as famílias, a vizinhança, os companheiros dos usuários.
O papel do território no acolhimento à
crise
•Ocupar o território, principalmente estando em crise, é um desafio que precisa ser enfrentado e
pactuado diariamente.
•O dispositivo de acompanhante terapêutico (AT) pode ser muito eficaz nesses momentos.
•Porém, não é necessário que a pessoa em crise seja acompanhada por um AT todo o tempo. A
construção da rede social de apoio é importante também para que essa função de
acompanhamento seja suprida, quando necessária.
•Além da possibilidade da intervenção de Ats, a criação de Equipes Volantes, formadas por
profissionais que se revezariam entre si, com a designação específica para a atuação no
território, é uma aposta interessante.
“É necessário que o local, as práticas, as ações e os profissionais sejam desinstitucionalizados, no
sentido de abolirem a lógica manicomial continuamente. Retirar as grades, as amarras, negar o
tom autoritário de quem não pode ser contrariado, abrindo espaço para a expressão do
sofrimento da pessoa em crise é fundamental. E esta pode se dar de formas variadas: por
palavras, gritos, choro, pulos, caminhada, corrida, pintura, dentre muitas outras. Para que o
sofrimento possa se expressar, os canais precisam ser abertos.”
(Jardim, 2014)
Como a Rede do Município do Rio de
Janeiro lida com a crise em Saúde Mental?
•A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município é organizada a partir de sete componentes: Atenção Primária,
Atenção Psicossocial Estratégica, Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Atenção
Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e Estratégias de Reabilitação Psicossocial.
•4 emergências de saúde mental: Hospital Pedro II, CER Barra, PAM Rodolpho Rocco e IM Phillipe Pinel.
•5 hospitais psiquiátricos da rede pública para internação em saúde mental: CPRJ, IMAS Manfredini, IMAS Nise, IM Phillipe
Pinel, IPUB.
•4 hospitais gerais com enfermaria de saúde mental: Hospital Pedro II, Lourenço Jorge, Ronaldo Gazolla e Evandro Freire.
•A Prefeitura do Rio conta com 18 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 6 Centros de Atenção Psicossocial Álcool Outras
Drogas (CAPSad) - dois deles com unidades de acolhimento adultos (UAA) - e 7 Centros de Atenção Psicossocial Infantil
(CAPSi), totalizando 31 unidades especializadas próprias. Outras 3 das redes estadual e federal completam a rede de 34
CAPS dentro do município do Rio de Janeiro.
•Do total de 34 CAPS, somente 8 são CAPS III.
•O acesso aos CAPS pode ser feito por demanda espontânea, por intermédio de uma unidade de atenção primária ou
especializada, por encaminhamento de uma emergência ou após uma internação clínica/psiquiátrica.
Como a Rede do Município do Rio de
Janeiro lida com a crise em Saúde Mental?
•A rede do Rio investiu durante anos no modelo de CAPS II e agora tenta fazer a transição para o
modelo de CAPS III.
• Foco atual de trabalho dos CAPS na atenção à crise, desinstitucionalização e matriciamento.
•Rede precarizada com equipes incompletas, vínculos de trabalhos frágeis, atrasos salariais, falta de
materiais, etc
•Nos últimos anos o crescimento da rede de atenção básica propiciou maiores possibilidades de
trabalhos intersetoriais, no entanto, o atual desmonte dessa rede tem novamente centralizado a
atenção em saúde mental no CAPS (crescente “ambulatorização” dos CAPS e foco na atenção à crise
em detrimento aos trabalhos territoriais e articulações intersetoriais).
•Poucos recursos na rede relacionados a arte, cultura e saúde.
•Crescimento exponencial de comunidades terapêuticas no município para os casos relacionados ao uso
de álcool e outras drogas.
Impacto dos CAPS na redução de internações
Como a rede de Belo Horizonte lida com
a crise em saúde mental?
• Belo Horizonte é uma cidade conhecida nacionalmente por ter construído uma rede de saúde mental
que prescinde do hospital psiquiátrico.
•Ainda existem hospitais psiquiátricos públicos na cidade, no entanto, neles só ocorrem internações de
pessoas de outros municípios.
•Os habitantes de Belo Horizonte, quando em situação de crise em saúde mental, são direcionados para
a rede de CERSAMs (Centros de Referência em Saúde Mental).
•A rede municipal possui CERSAMs em diferentes regiões, que cobrem toda a cidade. O funcionamento
é das 7 às 19 horas, todos os dias da semana, inclusive feriados. Há leitos para pernoite e pemanência
de curta duração nesses serviços.
•A rede conta com 8 CERSAMs, 2 CERSAMIs e 3 CERSAMs Ad.
•Para ter acesso ao CERSAM, CERSAM AD ou CERSAMI, basta procurar as unidades. Não é necessário
agendamento, nem marcação prévia ou encaminhamento.
Como a rede de Belo Horizonte lida com
a crise em saúde mental?
•Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP): funcionamento exclusivamente noturno, oferece cuidado aos casos
inscritos em Hospitalidade Noturna nos CERSAM, CERSAM AD e CERSAMI. Também recebe os casos encaminhados
pelo SAMU e diversos serviços de urgência da cidade.
•Unidades de Acolhimento: se inserem na rede de cuidados como dispositivo de suporte social aberto, que oferece
proteção sem excluir ou segregar. Há uma Unidade de Acolhimento Adulto e uma Unidade de Acolhimento Infantil.
•Consultórios de Rua: foco de trabalho com usuários das ruas com o fortalecimento de vínculos e de laços sociais.
Atuação conjunta entre os diversos setores: saúde, assistência social e outros atores incluindo a sociedade civil
•Equipes Complementares: são composições específicas localizadas estrategicamente em um Centro de Saúde por
Regional de Saúde. É composta por médico psiquiatra infantil, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional. Atendem as
crianças e adolescentes em sofrimento mental grave, em parceria com as equipes de saúde mental, equipes de
saúde da família e outros dispositivos como o Arte da Saúde e os CERSAMI.
•Equipes de Saúde Mental em Centros de Saúde: profissionais de saúde mental acompanham nos Centros de
Saúde os casos que podem ser tratados em ambulatório
•A rede de atenção básica atende casos graves de saúde mental.
•Existência de uma rede extensa e consolidada de centros de convivência na cidade (total de 9).
Referências Bibliográficas
• DELL’ ACQUA, G. & MEZZINA, R. Resposta à crise. In: A loucura na sala de jantar. DELGADO, J.São Paulo:
Resenha, 1991.
• Jardim, Katita Figueiredo de Souza Barreto. Habitando o paradoxo: atenção à pessoa em crise no campo da
saúde mental. Tese de Doutorado. ENSP / FIOCRUZ 2014.
• PEREIRA, M. DE O.; SÁ, M. DE C.; MIRANDA, L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a adolescentes em
crise a partir de seus itinerários terapêuticos. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. 10, p. 2145–2154, out.
2014.
• Prefeitura de Belo Horizonte. Atenção a Saúde: Saúde Mental. Disponível em https://
prefeitura.pbh.gov.br/saude/informacoes/atencao-a-saude/saude-mental
• Prefeitura do Rio de Janeiro. Secretaria de Saúde, Ações em Saúde, Saúde Mental. Disponível em
http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/saude-mental

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