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Filosofia da ciência

– Os problemas da demarcação, do método,


da evolução e da objetividade da ciência
Relevância dos problemas
Os mais loucos remédios caseiros contra a Covid-19
Por todo o mundo, surgem remédios caseiros para prevenir e curar o
coronavírus, como chá, dióxido de cloro, conhaque ou urina de vaca. A OMS
já alertou para os perigos.

Desde o início da pandemia, as mezinhas têm surgido em todo o mundo


como "curas milagrosas" para o coronavírus. São às centenas e envolvem
comidas e bebidas, ervas e até urina. Só que nenhum estudo comprovou a
eficácia de qualquer alimento para a cura da Covid-19 e a Organização
Mundial de Saúde alerta contra o uso de terapias caseiras não testadas. Em
África e na América do Sul, muitos curandeiros estão a aproveitar-se da
doença para venderem "banha da cobra". Há de tudo: desde o chá
distribuído de porta em porta em Madagáscar, à urina de vaca, passando
pelo conhaque, o alho cru e pelo dióxido de cloro. Também há quem acredite
que a oração é o mais eficaz para eliminar o vírus. Na África do Sul, o porta-
voz do Ministério da Saúde diz que recebem cerca de 10 chamadas por dia
de pessoas a garantir ter a cura para o coronavírus.
Revista Sábado, 16 de agosto de 2020
Em discussão
Filosofia da ciência

Disciplina que se ocupa da reflexão crítica sobre a ciência,


analisando o(s) método(s) científico(s) e procurando compreender
o que caracteriza o conhecimento científico.

Problemas em discussão

• O que é a ciência? Como a diferenciamos da pseudociência e do senso comum?


• O que distingue as teorias científicas das que não são científicas?
• Qual o método mais indicado em ciência? O que o caracteriza?
• Como evolui a ciência?
• Será que o conhecimento científico é objetivo?
1. O que é a ciência?

Ciência e pseudociência

Ciência

Atividade e um tipo de
conhecimento que nos Permite-nos atualmente
tem proporcionado a viver mais tempo e com
compreensão do mundo mais qualidade – valor
na sua diversidade de prático da ciência.
seres e fenómenos.
Ciência

Cientismo Pseudociência

Exemplos:
Astrologia
Tipo de teoria ou atividade
Homeopatia
sem qualquer base
científica, mas que procura Terraplanismo
passar por científica. Cristaloterapia
Doutrina que considera o
conhecimento científico
como a única forma de
conhecimento fiável, seguro
e rigoroso. A divulgação da cultura
científica é uma das armas
em que se deve apostar
para fazer face à
pseudociência.
O que é o
conhecimento
científico?
Conhecimento do senso comum

«Podemos classificar o senso comum como uma crença que se funda na


observação, na indução e na experiência de vida. Aqui, crença não tem um sentido
religioso, mas sim o sentido de hábito ou de regularidade. Resulta de uma
acumulação de observações que se repetem. Quando afirmamos abril águas mil
ou março marçagão, de manhã inverno, à tarde verão, estamos a constatar
regularidades. Mesmo que este ano não chova em abril, o ditado permanecerá.
Com o senso comum, cada um de nós fica à vontade no seu meio e no seu mundo,
como peixe na água. Sem constrangimentos ou ansiedade, até podemos errar sem
complexos, porque errar é humano. Persistir no erro é mais estranho.»

Mendo Henriques e Nazaré Barros, Olá, Consciência! Uma Viagem pela Filosofia, Lisboa, Objetiva, 2013, p.61.
Senso comum vs. conhecimento científico

Senso comum: Conhecimento científico:

• Baseia-se na experiência da vida e nas • Trata-se de um saber que envolve


tradições. investigações com alguma complexidade e
que não pode ser adquirido apenas com base
• É um saber essencialmente prático. na experiência e na vida.

• Pode variar de pessoa para pessoa e é • Envolve uma sistemática preocupação com o
utilizado sem uma preocupação rigor e a justificação das afirmações.
sistemática de rigor e de justificação.
• Caracteriza-se pela procura das causas dos
• Inclui, também, algumas superstições, fenómenos e pela tentativa de construir um
como, por exemplo, acreditar que o conjunto organizado e coerente de
número 13 dá azar. conhecimentos.
https://www.idealmarketing.com.br/blog/propaganda-
Exemplo Ativia
enganosa/#3
O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO

Colocar o problema da demarcação significa


perguntar se é possível encontrar um critério de
cientificidade.
Qual é o critério que
permite demarcar as
Este critério permitirá dizer quais são as características teorias científicas
que as teorias devem ter para serem consideradas das não científicas?
científicas. Ou, por outras palavras, o critério para
distinguir o que é ciência, o que não é ciência (como a
filosofia, a literatura, as artes) e o que é pseudociência.
PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO: qual o critério de
demarcação da ciência?

O problema da demarcação

O que distingue as teorias científicas das não


científicas?

Positivismo lógico Falsificacionismo

1- Verificação 2 - Confirmação 3 - Falsificabilidade


1- Verificação
O que distingue um enunciado científico de um enunciado não científico é a verificação
empírica das teorias.

Exemplo 1 - a proposição “Há flores Exemplo 2 - a proposição “Há animais


comestíveis.”, por exemplo, é carnívoros.”, em que podemos verificar
possível ser verificada e pode ser aquilo que ela afirma de cada vez que se vê
verdadeira ou falsa a partir da um animal carnívoro.
constatação feita das características
dessas flores.
VERIFICAÇÃO
Os filósofos defensores do positivismo lógico começaram por considerar que uma teoria só é científica
se for constituída por afirmações empiricamente verificáveis, ou seja, quando se pode conceber
experiências que estabeleçam conclusivamente a sua verdade ou falsidade.

Para esclarecer o critério de cientificidade acima proposto, vejamos os seguintes exemplos:

1. Júpiter tem satélites.

2. Existe uma aura à volta da cabeça de certas pessoas.

A frase 1 é verificável, pois a sua verdade ou falsidade pode ser estabelecida através da experiência.
Contudo, a frase 2 não é verificável, pois não há observações que possam evidenciar a sua verdade
ou falsidade.
Afirmações verificáveis

Alguns coelhos são


herbívoros.

As duas primeiras afirmações podem ser


verificadas na prática através da
O monte Everest tem observação. O valor de verdade da
8849 metros de altura. terceira ainda não foi estabelecido, mas
é possível conceber um conjunto de
observações que o possam estabelecer.

Existe vida em Júpiter.


Afirmações não
verificáveis

Alguns anjos têm emoções.

Estas afirmações não podem ser


Na porta do Inferno estão
empiricamente verificadas, uma vez que
escritas palavras de
o seu conteúdo ultrapassa o domínio
desespero.
dos factos observáveis.

A essência da realidade é de
natureza espiritual.
Verificação
Critério da verificabilidade

Uma teoria é científica apenas se consistir em afirmações


empiricamente verificáveis, isto é, apenas se for possível verificar
pela experiência aquilo que ela afirma.

Afirmação empiricamente verificável

É aquela cujo valor de verdade pode ser, pelo menos em


princípio, determinado através da observação ou da experiência.

Segundo Ayer e outros positivistas lógicos, a verificação é um critério


de cientificidade que se aplica às ciências empíricas.
Crítica ao critério da
verificabilidade

A maioria das teorias científicas expressa-se em enunciados universais,


e esses enunciados não são suscetíveis de verificação empírica.

Todo o ferro dilata quando é aquecido. Todas as algas têm clorofila.

Não podemos verificar estas proposições no sentido em que nunca poderemos provar de forma
conclusiva que elas são verdadeiras, pois isso implicaria algo que ninguém consegue fazer: observar
todos os casos.
2- CONFIRMAÇÃO
Devido às objeções apontadas ao critério de verificabilidade, outros filósofos positivistas – nomeadamente
Carnap – apresentam um critério de cientificidade alternativo: a confirmação.

Se uma teoria é científica, então é empiricamente confirmável. Ou seja, pode acumular-se um número
significativo de evidências empíricas a favor de uma hipótese. Se assim for, esta pode ser considerada
verdadeira e tomada como lei científica. Contudo, o número de casos será sempre finito.

Os indícios empíricos disponíveis apoiam as hipóteses e conferem-lhes um grau de probabilidade maior


ou menor, embora não possam garantir, de forma conclusiva, a sua verdade.
Tentativa de resposta à crítica ao critério da
verificabilidade

A verificação empírica parcial é suficiente, desde que o “grau de confirmação” das teorias possa
ser estabelecido e, assim, possa ser escolhida aquela hipótese científica que estiver em
conformidade com o maior número de dados empíricos

As hipóteses científicas podem ser confirmadas.

Todavia, também a confirmação das hipóteses coloca dificuldades: como definir, em cada
contexto, quais são os indícios empíricos relevantes e em que número para confirmar a
hipótese em causa? O próprio Carnap reconhece esta dificuldade apontada ao seu critério de
cientificidade.
3 - A RESPOSTA DE POPPER: FALSIFICABILIDADE

Popper responde ao problema da demarcação propondo um outro critério: a falsificabilidade.


De acordo com este filósofo, a principal distinção entre as teorias científicas e não
científicas é o facto de as primeiras serem falsificáveis.

Mas o que é a falsificabilidade e por que razão esta é uma condição


necessária para uma teoria ser considerada científica?

Uma teoria é falsificável se for possível pensar numa circunstância que caso, ocorresse, a
desmentiria (a tornaria falsa).
Popper salienta que essas condições empíricas que permitem refutar (ou falsificar) as teorias
científicas têm de ser logicamente pensáveis ou imagináveis; não significa que tenham de vir
a ocorrer, podem acontecer ou não.
O critério de demarcação da ciência: falsificabilidade

Uma teoria é científica apenas se for empiricamente falsificável, ou seja,


apenas se for possível falsificar pela experiência aquilo que ela afirma,
Tese ou seja, conceber uma observação ou uma experiência capaz de a
refutar.
A RESPOSTA DE POPPER: FALSIFICABILIDADE

De acordo com Popper, os cientistas devem adotar uma atitude crítica. Ou seja, devem formular teorias claras,
onde se explicitem as condições em que estas podem revelar-se falsas e depois realizar testes exigentes,
procurando eventuais erros nessas teorias – ou seja, devem procurar falsificá-las.

Portanto, teorias como a astrologia – que procuram apresentar explicações


propositadamente vagas que não sejam refutadas por nenhum caso concreto –
não são científicas.
Afirmações falsificáveis

Observar um pedaço de ferro que não dilate


Todo o ferro dilata quando é aquecido. quando aquecido basta para provar que a
proposição é falsa.

Se o referido cometa não for visível da Terra no


O cometa Halley aparecerá no ano de
ano indicado, provar-se-á que a proposição é
2061. falsa.

Todos os nativos de Peixes são Se observarmos um nativo de Peixes que não


mulheres. seja mulher, então esta proposição será falsa.
Afirmações não falsificáveis

Observar um pedaço de ferro que não dilate quando


Algum ferro dilata quando é aquecido. aquecido não prova que a proposição é falsa.

Não se dizendo uma data nem em que consiste tal


Surgirá no céu uma bola de fogo. bola, é impossível provar que a proposição é falsa.

O próximo ano trará energias positivas Esta afirmação é vaga. Nenhuma observação
aos nativos de Peixes. poderia mostrar que ela é falsa.
O critério de demarcação da ciência: falsificabilidade

O que os cientistas fazem com as suas teorias é testá-las, através da falsificação.

Falsificação

Exemplo: Falsificabilidade
“Todos os corvos são negros.”

Todas as teorias científicas são


falsificáveis, mas nem todas as
teorias são ou foram
falsificadas, isto é, dadas como
Falsificável, basta observar um corvo que não seja negro. falsas.
O critério de demarcação da ciência: falsificabilidade

“Todos os corvos são negros.”

Uma teoria está


falsificada quando não
resistiu a um
Teoria falsificada: quando submetida a testes rigorosos de determinado teste a
que foi submetida,
tentativa de refutação não resiste à crítica.
quando com ele se
provou que ela não é
verdadeira.
“Todos os corvos são negros.”

Teoria corroborada: foi capaz de superar os testes de


falsificação.
Uma teoria é tanto mais verosímil quanto,
resistindo aos testes que visam falsificá-la, está
mais próxima da verdade.
Testes
Testes Tentativas de refutação da teoria.

Se as predições não ocorrerem, (predições e


observação não coincidem) a teoria é falsificada
(refutada).

Se as predições ocorrerem (predições e


observações coincidem), a teoria é
provisoriamente corroborada.

Assim, a experiência não serve para mostrar se uma teoria é verdadeira, mas
antes para testar a sua resistência à falsificação
A RESPOSTA DE POPPER: FALSIFICABILIDADE

Quando uma teoria não resiste às tentativas de falsificação dos testes empíricos, diz-se
que foi falsificada e terá de ser substituída por outra (na totalidade ou em parte) que
corrige os erros da anterior.

Se, pelo contrário, os dados observacionais não conseguem pôr em causa a teoria, diz-
-se que foi corroborada (saiu fortalecida). A corroboração permite a aceitação
provisória da teoria enquanto resistir aos testes que procuram falsificá-la. Mas, ainda
assim, essa teoria continua a ser falsificável.

Consequentemente, para Popper as hipóteses ou teorias científicas são sempre


conjeturais, isto é, são tentativas provisórias de explicação, suposições que podem vir
a revelar-se falsas. Por isso, não devemos dizer que são verdadeiras.
Condições suficientes para uma teoria ser
científica
1. Ser falsificável.

2. Ter capacidade explicativa, fornecendo respostas


para problemas com alguma complexidade.
Falsificabilidade

«Que erramos isso é patente em todas as manifestações não


só do pensamento como do comportamento humano. Ciência
incluída. (...) Todos cometemos erros, o que podemos é
aprender com eles.»
Karl Popper

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