O Que e Substancia

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Texto didático para o curso de metafísica – C. F.

Costa – ppgfil/UFRN

O QUE É A SUBSTÂNCIA?

A natureza ama ocultar-se.


Heráclito

O termo substância é uma tradução da palavra latina substantia, que


significa aquilo que está sob, que fundamenta. Substantia, por sua vez, é
uma tradução latina do termo grego ousia que significa ‘o ser’. Substância é
um termo de arte filosófico que, diferentemente de muitos outros (como
verdade, significado, causa...) não tem equivalente apropriado na linguagem
ordinária. Nessa última chamamos geralmente de substância o stoff
constitutivo das coisas como o ferro, o carbono, o plástico, o óleo de
linhaça... o qual é quimicamente definível em termos de combinações de
átomos com propriedades específicas. A palavra ‘coisa’ tem um significado
aproximado. Ela se refere geralmente a objetos materiais. Mas a substância
não é o mesmo que o objeto material, que tem todas as suas propriedades à
mostra. Ela é aquilo que fundamenta, que em algum sentido está sob (sub-
stare) a coisa visível.
Qual é a razão original para a introdução do conceito de substância? A
resposta é: para a explicação da mudança. Quando as coisas materiais
mudam, mudam as suas propriedades. Um pedaço de cera, quando aquecido,
deixa de ser sólido e opaco para tornar-se líquido e transparente. Nesse caso,
por que dizemos que ele ainda é o mesmo? A resposta é: porque a sua
substância permaneceu a mesma. Há dificuldades com essa resposta. Afinal,
coisas como a massa e o peso do pedaço de cera também são propriedades,
que no caso permaneceram as mesmas. No que se segue quero historiar
brevemente a evolução do conceito de substância na filosofia, propondo no
final que ele seja explicado em termos de conceitos físicos fundamentais.

O conceito aristotélico de substância


Aristóteles sugeriu vários conceitos de substância. Eles são supostamente
complementares, mas ele não explicou suficientemente as relações entre
eles. Podemos classificar os principais dentre esses conceitos como sendo 1)
aquilo que não é predicável; 2) aquilo que existe independentemente; 3)
aquilo que permanece através da mudança; 4) a união da matéria e da forma
essencial.
A definição de substância como aquilo que não é predicável é a seguinte:

Aquilo que é chamado de substância mais estritamente, primariamente e


acima de tudo, é aquilo que nem é dito de um sujeito nem em um sujeito,
por exemplo, o homem individual ou o cavalo individual(1).

Aristóteles propõe aqui critérios lingüísticos: a substância é aquilo que


não pode ser designado por um predicado como pertencendo a um sujeito ou
estando nele, dando como exemplos de substâncias particulares concretos
como este homem e aquele cavalo. Apesar de interessante, essa sugestão é
ontologicamente insatisfatória, pois não chega a dizer o que a substância é.
Na segunda definição, a substância é concebida por Aristóteles como
aquilo que existe independentemente. Enquanto uma propriedade depende da
substância para existir, a substância não depende da propriedade para existir.
Se as substâncias primárias não existissem seria impossível para qualquer
das outras coisas existir(2). Isso vale mesmo para o que ele chama de
substâncias segundas, que são predicados distinguindo os tipos de coisa que
são substâncias, como ‘...é um homem’, ‘...é um cavalo’. Sendo assim resta a
pergunta: o que é aquilo que existe independentemente?
Vejamos agora a concepção de substância como aquilo que permanece
através da mudança:

O distintivo da substância é que ela é numericamente uma e a mesma e


que é capaz de receber contrários. Em nenhum outro caso podemos ter
algo numericamente único, que seja capaz de receber contrários.(3)

Além da dificuldade colocada no início, essa definição trás consigo uma


outra, levantada pelo próprio Aristóteles, qual seja: a de que há outras coisas
que não são substâncias e que podem sofrer mudanças. Uma crença, por
exemplo, pode deixar de ser considerada verdadeira para ser considerada
falsa. A resposta de Aristóteles é que a mudança da crença é extrínseca a ela,
enquanto a mudança na substância ocorre nela mesma; em outras palavras,
só substâncias sofrem mudanças intrínsecas. Mas que dizer de uma
superfície que muda a sua forma? Não é essa uma mudança intrínseca?
Contudo, ninguém diria que a superfície é substancial.
A quarta e mais sofisticada definição é a que aparece na Metafísica.
Nesse texto, após rejeitar a idéia de que a substância seja apenas a matéria (o
substrato), posto que isso não daria conta da separabilidade e individualidade
da substância, ele conclui que

A forma e o composto de matéria e forma parecem ser mais substância do


que a matéria(4).
A substância é, pois, a forma individuadora da matéria(5). Contudo, à
parte a dificuldade de que formas são universais, enquanto a substância é um
particular, o que seria essa forma substancial? Os melhores candidatos
seriam espécies como ‘homem’ e ‘cavalo’, dificilmente distinguíveis do que
Aristóteles chamava de substâncias segundas (designata de nomes
substantivais), que são categorias predicáveis da substância primeira, da
substância em sentido próprio. Além disso, espécies são constituídas de
propriedades, as quais são também universais. A última sugestão de
Aristóteles é tão mais refinada quanto controversa.

O conceito de substância na filosofia moderna


Filósofos como Descartes e Locke desenvolveram a idéia de que a
substância é um substrato independente, em relação ao qual as propriedades
ou atributos subsistem ou inerem. Descartes, como dualista, sugeriu a
existência de duas substâncias: a extensa, constitutiva dos corpos físicos, e a
pensante, constitutiva das almas e mais propriamente de Deus. Elas se
distinguem pelos seus atributos essenciais, que são respectivamente a
extensão e o pensamento(6). Por não se confundir com os seus atributos a
substância torna-se assim um substrato nu.
Também para Locke a substância tem a ver com um substrato nu que dá
unidade aos atributos a ele inerentes. Como observou Locke:

Não podendo imaginar como as idéias subsistem por si mesmas,


acostumamo-nos a supor um substrato no qual elas subsistem e do qual
resultam, o qual chamamos de substância(7).

Essa concepção de substância admite duas formas: 1) ela é o substrato nu,


incognoscível; 2) ela é o complexo formado pelo substrato nu e pelo
conjunto de qualidades a ele inerente que constituem a sua espécie (sortal),
como o homem ou o cavalo.
Em qualquer dessas versões ela é problemática. O teorista do substrato nu
precisa atribuir ao substrato várias propriedades: ele deve ser tal que as
propriedades devem subsistir nele, ele tem a propriedade de ser concreto,
tem a propriedade de ser uma substância e, além disso, a propriedade de não
ter nenhuma propriedade, o que parece tornar a idéia de substância
contraditória. Além disso, a idéia de um substrato em si mesmo
incognoscível não satisfaz um razoável princípio da verificação. E se isso
vale para a primeira versão da teoria, vale também para a segunda.
Outra teoria da substância é aquela segundo a qual ela se caracteriza por
ser independente de outras entidades. Já vimos essa idéia em Aristóteles
quando ele sugeriu que substâncias não são objetos de predicação. Contudo,
ela aparece mais claramente em Descartes, segundo o qual substâncias são o
que existe por si mesmo sem precisar de nenhuma outra coisa para existir.
Para Descartes, a única coisa que satisfaz essa definição completamente é
Deus; as outras substâncias são as que só dependem de Deus e de mais nada
para existir.
O filósofo que mais se valeu da teoria da independência da substância foi
Spinoza. Eis a sua famosa definição:

Por substância entendo aquilo que é em si mesmo e que por si mesmo é


concebido; ou seja: o seu conceito não requer o conceito de outra coisa de
cujo conceito ele seja formado(8).

Nesse sentido, a substância não pode ter a sua existência causalmente


produzida ou sustentada por qualquer entidade. Tal substância é para
Spinoza o universo inteiro, o qual possui um número infinito de atributos,
apenas dois deles sendo acessíveis à mente humana: a extensão e a
consciência. Contudo, essa concepção se opõe ao senso comum, para o qual
há muitas substâncias constitutivas das coisas particulares.
A última concepção a ser considerada é a teoria do feixe (bundle ou
cluster theory). Há duas versões fundamentais, ambas aludidas por Hume(9).
A primeira é eliminativista: substâncias não existem. O que existe são feixes
de entidades não-substanciais. A outra versão é reducionista: substâncias
nada mais são do que os próprios feixes de entidades insubstanciais. Hume
dá a entender essa última versão ao considerar que a idéia da substância é
apenas a de uma coleção de idéias simples, unidas pela imaginação.
Segundo essa última teoria, uma substância é um conjunto ou coleção de
não-substâncias do tipo apropriado; uma maçã, por exemplo, constitui-se de
certa cor, certo gosto, certo odor, figura e consistência que se encontram
juntas. A noção de conjunto é aqui problemática, posto que conjuntos são
entidades abstratas e substâncias são concretas. A palavra coleção é mais
adequada, entendendo-se por ela uma soma mereológica (das partes) de
entidades.
Há também a questão da natureza dos componentes não-substanciais que
compõem a coleção. Para uns trata-se de propriedades universais, como o
vermelho em si e a forma esférica em si. A objeção a isso é que se a
substância se identifica com um feixe de entidades abstratas, ela mesma
passa a ser uma entidade abstrata. Ora, como a substância é intuitivamente
uma entidade concreta, espácio-temporalmente localizável, essa concepção é
inadequada.
Uma outra solução é a que identifica os componentes não-substanciais
com estados mentais, impressões de sensação e de reflexão, no dizer de
Locke. Essa solução, que já foi chamada de colecionismo fenomenalista,
parece ser igualmente problemática, posto que ela também deixa sem
explicação as substâncias concretas que constituem o mundo físico(10).
Uma solução mais auspiciosa seria a que se vale de propriedades
instanciadas (property-instances) ou tropos (tropes) como partes, ou seja, de
propriedades espácio-temporalmente localizadas, às quais temos acesso
experiencial no sentido mais amplo possível, o que inclui propriedades
físicas e mentais, simples e complexas. Essa posição, o colecionismo dos
tropos, também está aberta a objeções.
Uma primeira é a de que intuitivamente nenhuma propriedade da
substância é parte da substância. Por exemplo: a forma e o tamanho de um
objeto material não parecem ser partes de sua substância. Outra objeção
refere-se à unidade das qualidades. Considere a coleção dos violetas de uma
beterraba, ou a coleção dos sentimentos que tenho ao ouvir uma música.
Essas coleções não são substâncias. Como o colecionista pode excluí-las?

Alternativas plausíveis
Uma primeira sugestão alternativa para a qual quero acenar começa com
o abandono da teoria do feixe de tropos – que combinados parecem
constituir objetos materiais, mais do que substâncias – por uma tentativa de
encontrar tropos essenciais, necessariamente presentes em qualquer caso de
entidade material. Quais seriam eles? A solidez, por exemplo, é comum a
todos os corpos materiais. Ela vem acompanhada de certa forma e volume.
Mas forma e volume podem variar. Ademais, líquidos como a água de um
copo, ou gazes como o ar de um balão, não são sólidos, embora também
contenham substâncias.
Se formos além e buscarmos alguma coisa única e essencial a todas as
entidades materiais, a resposta natural é que ela é a própria matéria, definida
em física como tudo aquilo que ocupa um espaço (volume). O conceito de
matéria está intrinsecamente associado ao de massa (ou de massa-energia),
definido pela física como a quantidade de matéria. A massa é em física
duplamente definida como a medida da resistência do corpo à aceleração
(massa inercial) e como aquilo que produz atração gravitacional em
proporção à sua quantidade (massa gravitacional); como essas duas medidas
sempre se mostraram proporcionais, elas devem ser medidas da mesma
coisa. Pode parecer que esses conceitos de física sejam demasiado distantes
do que Aristóteles possa ter tido em mente quando falou de substância.
Contudo, devemos lembrar que o senso comum sempre teve implícita a idéia
de matéria como aquilo que ocupa espaço e de massa como a resistência dos
corpos às forças aplicadas a eles... Isso explica o fato de Aristóteles também
ter podido identificar a substância à matéria.
Só isso, contudo, não basta. É ainda necessário individuar uma porção de
matéria de modo a poder distingui-la de outras, introduzindo uma exigência
de continuidade de localização. Em outras palavras: a massa precisa ser
espácio-temporalmente localizável, e o seu deslocamento, caso ocorra, deve
obedecer a certa ordem de continuidade. A substância passa então a ser
definida como a matéria continuamente localizável. Com efeito, uma
matéria continuamente localizável é um substrato capaz de permanecer
através de mudanças. Ela é constatável através de um “atributo essencial”, a
massa, que se faz reconhecível através dos tropos a ela associados, como os
de solidez, forma, volume... que são acessíveis aos sentidos. Parece que com
essa interpretação seria possível resgatar a noção de substância como o
substrato último.
Contra essa sugestão é fácil objetar que quando identificamos coisas no
tempo é freqüente que a matéria possa ser substituída sem que o suporte da
mudança se modifique, seja ele qual for. Assim, podemos substituir a cabeça
de um martelo e, tempos depois, o cabo, e ainda assim dizer que é o mesmo
martelo, o mesmo se dando com vegetais e animais que, com o passar dos
anos, têm toda a sua matéria corpórea substituída. Neste caso, o que
permanece durante a mudança não é mais a substância, entendida como o
substrato último, mas a substância entendida como objeto de predicações
expondo um tipo de coisa que o objeto material ou o particular
continuamente localizado é, ou seja, um martelo, uma árvore, um animal,
uma pessoa. Essa última sugestão nos trás de volta à sugestão dos sistemas
de tropos. Ela nos afasta da idéia de substrato, mas faz-nos recordar das duas
primeiras definições aristotélicas e sugere uma resposta mais satisfatória à
questão do que permanece através da mudança(11).

Notas:
1 Aristóteles: Categorias, sec. 5.
2 Aristóteles: Categorias, sec. 5.
3 Aristóteles: Categorias, sec. 5.
4 Aristóteles: Metafísica, VII, sec. 3.
5 Howard Robinson: “Substance”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy
(internet 2004), p. 5.
6 René Descartes: Discourse de la Methode, cap. IV.
7 John Locke: Essay Concerning Human Understanding, livro 1, cap.
XXIII, § 1.
8 Baruch Spinoza: Ethica Ordine Geometrico Demonstrata, Parte I,
Definições III.
9 J. Hoffman & G. S. Rosenkrantz: Substance: its Nature and Existence
(Routledge: London 1997), pp. 26-27.
10 J. Hoffman & G. S. Rosenkrantz: Substance: its Nature and Existence, p.
29.
11 Um desenvolvimento dessa alternativa encontra-se em David Wiggins:
Sameness and Substance (Cambridge University Press: Cambridge 1996,
sec. ed.).

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