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Para que serve o pragmatismo jurídico?

José Eisenberg

O pragmatismo jurídico não é uma Teoria do Direito. Aliás, nenhum de seus autores se
propôs a elaborar uma. Nem Roscoe Pound, nem Oliver Holmes, nem Benjamin Cardozo
elaboraram uma no início do século vinte, nem busca fazê-lo hoje seu principal expoente no
mundo contemporâneo, Richard Posner. O pragmatismo jurídico consiste apenas de um
método de argumentação que pode (ou não) ser adotado por operadores do direito no
exercício de suas funções. Este método prescreve que (a) se analise o contexto de normas
gerais e precedentes válidos que iluminam o contexto do caso particular, (b) se defina com
clareza as conseqüências desejadas pela comunidade política para a ação engendrada, e (c)
que princípios jurídicos, éticos ou morais, venham a ser mobilizados como simples
instrumentos heurísticos no processo de fazer um juízo.

O pragmatismo jurídico pode, portanto, ser pensado com uma ética avessa a máximas que
regem imperialmente o comportamento humano, tal qual encontramos em deontologias
racionalistas e no utilitarismo, “a ética de uma máxima só”. A busca do pragmatismo
jurídico é uma busca por uma atitude “realista”, no sentido de buscar arrolar os fatos sobre
as normas e as normas que regem os fatos, antes de interpelá-los na interpretação do caso e
na produção do juízo.

Esta postura “realista” do pragmatista, ao exigir que ele forneça uma interpretação das
normas sobre fatos, introduz uma preocupação com princípios que, por seu caráter
moralizante, poderiam muito bem fazer parte do romance em cadeia (chain novel)
concebido por Dworkin em sua Teoria do Direito. Diferente de Dworkin, entretanto, para
quem estes princípios são freqüentemente argumentos com força suficiente para definir as
opiniões de seu Juiz Hércules, para o pragmatista eles são apenas múltiplas formas de
justificação de valores que devem, ou melhor, podem ser livremente mobilizados por
operadores do direito se (e somente se) são úteis à produção das conseqüências desejadas.

Se a preocupação com contextos que incluem princípios e tradições aproxima o


pragmatismo da teoria de Dworkin, seu conseqüêncialismo o aproxima da ótica do

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utilitarismo. Mas o contextualismo que acompanha a perspectiva orientada a fins do
pragmatismo nos impede de confundi-lo com o utilitarismo. O contexto reconstruído pelo
intérprete pragmatista tem como referência o passado e o presente da comunidade política a
que ele pertence e os interesses nela conflitantes. As conseqüências desejadas, nesse
sentido, não podem ser racionalmente derivadas de uma hierarquia de preferências, mas
devem ser fins possíveis de serem atingidos no âmbito da interpretação oferecida para
aquele contexto. É desta perspectiva que devemos compreender a afirmação acima que o
pragmatismo exige dos operadores do direito não somente a análise das normas que regem
os fatos, mas também dos fatos sob o quais as normas se assentam socialmente. É neste
sentido também que podemos afirmar que o pragmatismo jurídico, guardadas as diferenças
importantes que o separa do Direito Responsivo proposto por P. Selznick e P.Nonet em
Law and Society in Transition (1976), também advoga um direito atento às demandas que
emergem de um contexto social que é objeto de interpretação do operador do direito.

É por isto também que podemos atribuir ao pragmatismo jurídico parcela da


responsabilidade, para o bem ou para o mal, por ter aproximado a Teoria do Direito das
Ciências Sociais. Se o utilitarismo sempre sacrificará os constrangimentos que um contexto
impõe à eleição do melhor curso de ação possível em nome de um cálculo racional que
demonstre a maior eficácia desse curso, sob o paradigma do pragmatismo a escolha de
cursos de ação exige que o ator interprete um contexto que circunda a ação que é, ao
mesmo tempo, social e histórico. A eficácia argumentativa desta reconstrução do contexto
depende, portanto e necessariamente, dos recursos conceituais e metodológicos das
Ciências Sociais: cabe sempre ao operador do direito, sob a ótica do pragmatismo jurídico,
realizar o importante trabalho de descrever o contexto a partir de uma pesquisa
empiricamente orientada, para decifrar com conceitos aplicáveis à realidade social os seus
determinantes e seus fatos verificáveis.

O pragmatismo jurídico também contribuiu para que a Teoria do Direito abrisse as portas
para as Ciências Sociais no método de interpretação das normas sobre fatos que utiliza,
derivado de uma teoria política prescritiva, em particular as críticas republicanas e
procedimentalistas à democracia liberal. Estas críticas, muitas delas originárias do debate

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do constitucionalismo alemão, geraram idéias sobre novas instituições jurídicas e
instituições jurídicas inovadoras, muitas delas incorporadas à nossa Carta Constitucional de
1988, e que acabaram se tornando importantes instrumentos para o exercício da soberania
popular no Brasil.

Portanto, os contextos existentes (cuja interpretação não pode prescindir de uma análise
empiricamente fundamentada e teoricamente orientada pelos instrumentos de trabalho das
Ciências Sociais) e as conseqüências desejadas (cuja descrição não pode ser feita senão na
retórica da teoria política e com a força de seus argumentos normativos) tornam os
instrumentos do pragmatismo jurídico úteis a toda argumentação jurídica que busca
conciliar a estabilidade de um ordem jurídica democrática e operar sobre ela, ao mesmo
tempo, as inovações necessárias para consolidar o papel republicano das nossas instituições
jurídicas e de seus representantes. Em outras palavras, o pragmatismo jurídico é uma
postura ético-argumentativa que serve primordialmente àqueles atores no seio do direito
que querem legitimar argumentos e decisões em dois pilares: (1) naquilo que é desejável
para a comunidade política no futuro e (2) naquilo que é inevitável para ela no presente, já
que o passado constitui parte necessária da compreensão da realidade que se impõe no
momento do exercício interpretativo e argumentativo conduzido por estes atores.

Vale acrescentar que com esta atitude perante o direito, o pragmatismo jurídico produziu
uma tradição de reflexão sobre o Direito e suas instituições, especialmente nos Estados
Unidos, menos interessada no resultado da reflexão (i.e., se uma decisão está em
conformidade com uma boa descrição do contexto e erigido sobre um consenso mínimo
acerca das conseqüências desejadas), do que no conhecimento produzido pelo processo de
trazer uma Ciência Social orientada à compreensão do mundo empírico para dentro do
sistema jurídico, e utilizá-la para pensar crítica e imaginativamente as instituições nele
existentes. Dessa forma, o modus procedendi do pragmatismo jurídico torna-se o
instrumento e a própria estrutura da argumentação, seja em busca das razões que conferem
validade à norma no contexto vigente, seja em busca de razões que justifiquem, no caso
particular em pauta, violar a norma para fazer justiça.

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Em suma, nesse encontro entre Ciências Sociais e Direito ocasionado pelo pragmatismo
jurídico, os operadores do direito são levados a empreender uma busca para captar a
vontade geral que emerge do contexto, expressá-la em uma retórica ancorada no
republicanismo democrático e no exercício virtuoso de sua função pública de Estado, e
buscar as conseqüências desejáveis para a comunidade política. No caso destes funcionários
públicos – juízes, promotores e defensores – é verdade que o concurso ou nomeação
substitui o mandato popular. Mas, mesmo assim, fica a impressão de que, quando dotados
de uma postura pragmática perante a ordem jurídica em que atuam, estes operadores se
capacitam, particularmente em um contexto de crise das instituições da representação
política e dos mandatos por elas conferidos, a arrogarem para si a condição de
representantes privilegiados do bem comum da comunidade política a que pertencem.

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