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Há quem diga, em sede doutrinária, que os empresários somente podem ser considerados

membros de uma organização criminosa quando o principal método de obtenção de vantagens por
eles perseguido seja o cometimento de infrações penais. Assim, apenas se poderia cogitar de uma
organização criminosa formatada por empresários quando estes fizessem do crime seu “modo de
vida”, e não quando suas atividades principais fossem praticadas licitamente.
Desse entendimento dissentimos radicalmente, porquanto maculado com a nódoa de um direito
penal do autor às avessas, “ou seja, ‘muy amigo’, precisamente o oposto do direito penal do
inimigo”,13 como anotam Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva. E prosseguem os
professores:

“Tanto não podemos punir ninguém pelo que ‘é’, como não devemos criar ab initio uma indenidade
(imunidade) penal em favor de alguém (também) pelo que ele ‘é’ (senhor honorável ou respeitável da
sociedade). O direito penal do fato (que é o contrário do direito penal de autor) nos conduz a afirmar
que o que importa é o fato concreto praticado pelo agente (seja ele honrado ou desonrado). Mesmo
que se trate de empresários ‘do andar de cima’ (os donos do poder), caso pratiquem atividades
ilícitas paralelas às lícitas, pelo ilícito devem responder normalmente (princípio da generalidade da
lei penal, que vale para todos e contra todos).
Daí a conclusão de que os empresários (destacando-se dentre eles as empreiteiras) podem sim
responder pelo tipo penal do crime organizado, desde que preenchidos seus requisitos legais [...]”.14

Bem a propósito, a complexa Operação Lava Jato tem mostrado quão nocivos são os reflexos
decorrentes da infiltração de criminosos de colarinho-branco no Estado (Petrobras), o que tem
viabilizado “o desvio de quantias nunca antes percebidas”. Exatamente nesse cenário, revela-se
necessária a “releitura da jurisprudência até então intocada, de modo a estabelecer novos parâmetros
interpretativos para a prisão preventiva, adequados às circunstâncias do caso e ao meio social
contemporâneo aos fatos”, de modo que “a prisão cautelar deve ser reservada [também] aos
investigados que, [...] como os representantes das empresas envolvidas no esquema de cartelização,
[...] exercem papel importante na engrenagem criminosa”. Assim, havendo fortes indícios da
participação de empresários “em ‘organização criminosa’, em crimes de ‘lavagem de capitais’, todos
relacionados com fraudes em contratos públicos dos quais resultaram vultosos prejuízos a sociedade
de economia mista e, na mesma proporção, em seu enriquecimento ilícito e de terceiros, justifica-se a
decretação da prisão preventiva, para a garantia da ordem pública”.15
Aliás, sobre a mencionada infiltração criminosa de redes ilícitas junto a entes governamentais
(instituições públicas), como forma de domínio sobre o poder conferido exclusivamente ao Estado,
gestor da máquina pública, convém lançarmos luzes sobre o fenômeno tecnicamente denominado
reconfiguração cooptada do Estado, sobre o qual tão bem disserta Flávio Cardoso Pereira.
Essa infiltração às avessas16 (do crime no Estado) tem como escopo central “possibilitar que
os tentáculos de uma determinada organização criminosa estejam transfixados nos poderes públicos
estatais, de modo a facilitar em determinado momento a prática de atos de corrupção ou a própria
impunidade de eventuais delitos cometidos. Estando próximas e inseridas no centro do poder, as
redes ilícitas conseguem manter-se informadas e ‘blindadas’ acerca de eventuais ações preventivas
ou até mesmo repressivas a serem articuladas pelos órgãos de persecução estatal”.17
Com essa reconfiguração cooptada do Estado, almeja-se, pois, a “conquista de benefícios de
quaisquer espécies e lucros que determinarão o incremento de novas atividades delitivas por parte
da delinquência organizada”. Além do mais, a referida penetração ilícita pode “consistir na forma
pela qual os criminosos conseguem através de financiamento de campanhas políticas, inserirem
pessoas pertencentes ao grupamento delitivo, em posições estratégicas dentro do cenário político,
através de eleições manipuladas pela compra de votos e pelo uso de fraudes”.18
Todo esse fenômeno está intimamente relacionado às transformações sofridas pelas primitivas
formas de delinquência organizada. Atualmente, na feliz expressão de Luiz Regis Prado, houve um
“salto de qualidade”, haja vista que as organizações criminosas passaram a se infiltrar
sistematicamente no âmbito econômico, “sobretudo porque a ‘nova criminalidade organizada’ não
adota a violência como principal instrumento de ‘trabalho’, mas sim a corrupção, que é por si só
mais silenciosa, de modo a favorecer o êxito dos objetivos da organização com riscos menores de
persecução”.19

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