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capítulo 5

Persistência das memórias


de longa duração

Em princípio, denominam-se memórias de longa duração todas aquelas que


duram mais de 6 horas (McGaugh, 2000; Izquierdo et al., 2006), tempo que
demora o processo de sua consolidação celular. Porém, todos sabemos que algu-
mas memórias de longa duração duram dois ou três dias e outras, semanas,
meses ou anos. Há quem estude “para o exame” daqui a dois ou três dias; há
quem estude “para toda a vida”. De duas pessoas que veem um filme juntas, é
comum que uma delas lembre detalhes por poucos dias enquanto a outra lembre
do filme por muito tempo.
Um fator da maior persistência de algumas memórias é o nível de “alerta
emocional” que acompanha sua consolidação inicial, como demonstraram Cahill
e McGaugh (1998) numa série de experimentos e observações importantes no
fim da década de 1990. Todos recordamos por mais tempo e em maior detalhe
acontecimentos que ocorreram com um forte grau de alerta emocional: nosso
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casamento, o nascimento de nosso primeiro filho, a morte de Ayrton Senna, a


morte de alguém muito querido. Poucos recordamos em detalhe a tarde anterior
ou posterior a esses acontecimentos; ou, sem ir muito longe, a tarde de ontem.
Porém, há muitos fatos e eventos que não foram adquiridos com nenhum grau
de alerta emocional e que recordamos muito bem por anos: algumas leis da
física aprendidas no colégio, o nome e o rosto de algumas pessoas que nada
representam para nós, as letras de can-
ções das quais nunca gostamos muito,
uma porta de uma casa em que nunca Todos recordamos por mais tem-
entramos, etc. po e em maior detalhe acon-
Essas observações da vida cotidiana tecimentos que ocorreram com um
levaram Jorge Medina e colaboradores, forte grau de alerta emocional.
em Buenos Aires; meu grupo, em Porto

Izquierdo, Iván. <i>Memória (2a. ed.)</i>, Grupo A - Artmed, 2011. ProQuest Ebook Central,
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Alegre, e Kirstin Eckel-Mahan e seu grupo, em Seattle, a investigar se existem


mecanismos posteriores à consolidação celular que expliquem a persistência de
algumas memórias de longa duração por poucos ou muitos dias.
Medina, Cammarota, eu e nossos colaboradores achamos um mecanismo
que atua 12 horas depois da aquisição, ativando a área tegmental ventral (VTA,
ventral tegmental area) cujos axônios são dopaminérgicos e inervam a região CA1
do hipocampo, e nele estimulam receptores D1 à dopamina, o que causa a rápida
síntese de BDNF no hipocampo e sua imediata liberação. Do funcionamento
desse sistema resulta um evidente fortalecimento de sinapses hipocâmpicas que
participam na recente consolidação dessa memória e sua persistência por pelo
menos duas ou três semanas mais. Se, pelo contrário, esse mecanismo falha (por
exemplo, por administração de um anticorpo contra BDNF, de um inibidor de
sua síntese no hipocampo 12 horas pós-aquisição ou de um antagonista de recep-
tores D1), as memórias só duram mais dois ou três dias. Em horários mais tardios
(24 horas após o treino) ocorrem outros processos bioquímicos no hipocampo
vinculados à liberação de BDNF e à persistência: um pico tardio de c-Fos, homer
1a e outras proteínas. A inibição desses picos diminui ou anula a persistência.
Observando o gráfico inferior da Figura 4.1, a “localização temporal” desses
mecanismos é a partir do retângulo que representa a MCD.
Há evidências indiretas, mas muito claras, de que esse mecanismo funciona
tanto em ratos de laboratório quanto em humanos, com os mesmos intervalos
de tempo, e de que ele falha a partir da metade da expectativa de vida de ambas
as espécies: um ano no rato e 40 anos no humano. Até os 40, os humanos podem
lembrar muito bem do nome de um filme visto na TV dois ou sete dias atrás,
assim como o nome de seus atores principais. Depois dos 40, nossa lembrança
do filme visto há sete dias diminui ou desaparece. No rato, falha a memória de
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um aprendizado de esquiva leve aprendido sete dias antes, mas não de outro
aprendido dois dias antes. A falha pode ser contornada pela administração de
agentes dopaminérgicos 12 horas depois
da esquiva – no rato – ou do filme – em
É possível que esse “esquecimen- um humano. É possível que esse “esque-
to” de memórias mais ou menos cimento” de memórias mais ou menos
triviais geradas há vários dias tenha triviais geradas há vários dias tenha um
um papel fisiológico, evitando a papel fisiológico, evitando a conserva-
conservação de informação pouco ção de informação pouco importante
importante por muito tempo que por muito tempo que possa interferir
possa interferir com a mais recen- com a mais recente; sem dúvida, para
te. mim é muito melhor esquecer em que
lugar estacionei meu carro na segunda-

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Memória S 77

-feira passada para não confundi-lo, ao sair, com o lugar em que o estacionei
hoje, quando cheguei.
Eckel-Mahan descreveu outro mecanismo, cíclico e circadiano, que consiste
em um aumento a cada 12 horas da atividade das ERKs e da CaMKII no hipo-
campo a partir do momento em que certa tarefa de esquiva é adquirida.
Nem o mecanismo do BDNF descoberto por nós nem o mecanismo circa-
diano descoberto por Eckel-Mahan guardam relação com o sono ou com alguma
fase do sono, ao menos no rato. Ambos ocorrem igualmente quando o treino (a
aquisição) é produzido de manhã, quando o rato começa seu período diário de
sono, ou à noite, quando enfrenta suas 12-14 horas de vigília. Ao longo dos anos
tem havido postulações de que o sono ou os sonhos ajudam a gravar memórias,
porém há pouca evidência real nesse sentido; o sono e os sonhos parecem
irrelevantes aos dois mecanismos até agora demonstrados que realmente regu-
lam a persistência das memórias de longa duração. Contudo, todos sabemos
que uma boa noite de sono ajuda a lembrar as coisas do dia anterior (ou outras),
e uma noite sem sono perturba nossa vida cognitiva. Seguramente deve existir
alguma função do sono, talvez principalmente dos sonhos, na determinação da
persistência das memórias; porém, essa função, ainda, não foi descoberta.
Assim, depois da fase de consolidação celular, que dura desde a aquisição
até 6 horas mais tarde e que ocorre basicamente no hipocampo, desencadeiam-
-se, nesta mesma estrutura, pelo menos dois processos que determinam a
persistência das memórias. Ambos se iniciam 12 horas depois da aquisição; um
deles envolve a ativação de neurônios dopaminérgicos da VTA que causam pro-
dução de BDNF no hipocampo; o outro envolve a ativação de um sistema circa-
diano que regula os níveis de CaMKII e ERK no hipocampo.
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