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CAPÍTULO VI

A Memória

a infância, todos vivemos a experiência das famigeradas decla-


I\ |
mações que tínhamos de decorar e recitar diante da turma inteira.
I \l
I I Como é que já não nos lembramos disso, ao passo que ainda
sabemos a tabuada? Como ajudar o seu filho a estudar as lições? Como é
que um estudante pode melhorar a sua memorização ao preparar-se para
os exames? O que fazemos quando temos de fixar um novo número de
telefone? Empregamos a mesma memória quando somos capazesde dizer
como dar um nó na gravata ou quem é o atual presidente da República?
Para fornecer elementos de resposta a estas diferentes perguntas,
convém, num primeiro momento, definir o que é a memória antes de
abordar e desenvolver os diferentes registos dela.

A MEMÓRIA E SEUS DIFERENTES REGISTOS


Na linguagem corrente, a memória é frequentemente associada a uma
<<aprendizagem de cor), uma espécie de memorização literal de uma
informação que é preciso fixar num determinado momento, com vista
à sua eventual restituição posterior. Nem sequer será uma questão de
reduzir a memória a uma mera aprendizagemde cor, a um simples registo
passivo de informações que deverão ser restituídas num determinado
momento.
Quatro processos estão subjacentes ao trabalho da memória: aperce-
ção,acodificação, oarmazenamento e arecuperação. É decerto trivial
sublinhar que a informação a memori zar deve ser previamente percebida
por um ou outro sentido (em geral, visão ou audição). A informação
assim captada é depois codificada (i.e., organizada), com vista ao seu
armazenamento durante um período mais ou menos longo. A duração do
armazenamento leva a distinguir a memória de curto prazo e a memó-
ria de longo prazo. Enfim, a informação deve poder ser recuperada no
momento pretendido. Se a sua recuperação se efetuar, em geral, numa
fração de segundos, pode ser por vezes mais ou menos f,ácil (fenómeno
da palavra na ponta da língua...).
122 A PSICOLOGIA

Embora as queixas das pessoas se reportem essencialmente às difi-


culdades de recuperação da informação, pode sublinhar-se, desdejá, que
as dificuldades ligadas ao funcionamento da memória podem situar-se
num destes níveis.

Os três Íegistos mnemónicos


Importa falar em memória ou memórias? Logo em 1968, Richard C'
Atkinson e Richard M. Shiffrins8 propuseram a distinção entre três
registos mnemónicos: o registo de informação sensorial, a memória de
curto prazo e a memória de longo prazo'
Uma metáfora frequentemente úilizadapara ilustrar essas noções é a
analogia entrememória e o funcionamento de um computador: a memória
a
de longo prazo corresponderá ao disco duro do computador, enquanto
a memória de curto prazo serâa unidade central, a memória-tampão8e.

Registos Memória Memória


sensoriais de curto prazo de longo prazo
lnput
Memória de trabalho Registo da memória
ambiental permanente
Visual temporária
Mecanismos
Auditivo de controlo:
estratégias
TátiI
Output
(resposta)

Os três registos da memóriaeo

O registo de informação sensorisl


O registo de informação sensorial corresponde à consciência fi,tgaz
de informações captadas por uma das nossas modalidades sensoriais.
Imaginemos que olhamos diretamente em frente e fechamos os olhos.
Constataremos então que a imagem assim captada persiste durante alguns
milésimos de segundo antes de desaparecer completamente. A manuten-
ção da informação é não só breve (da ordem de alguns milissegundos),
mas também está em bruto, ou seja, não foi ttatada nem analisada' No

88 "Human memory: A proposed system and its control processes", in K' W. Spence
and J. T. Spence (eds.), The Psychology of Learning and Motivation: Advances in
Research and Theory,vol.2,pp.89-195, Nova Iorque: Academic Press [N' T']'
8e Em informática, emprega-se o termo buffer (dispositivo ou í,J|ea úilizada para
aÍmazenar dados temporariamente) [N. T.]'
e0 cf. Robert J. Sternberg, Manuel de psychologie cognitive. Du laboratoire à la vie
quotidienne,trad. em francês de Alain Brossard, Bruxelas: De Boeck, 2007'
A MEITÓRIA 123

entanto, só uma parte da informação será selecion adaparauma


codifi-
cação mais elaborada ao nível da memória de curto pràro.

Ds memória de curío prazo à memória de trabalho


- A memória de curto pr'zo corresponde a um registo de armazena-
mento temporário da informação cuja capacidade (denominada
<<exten-
são de memória>) é limitada. A capacidade da memória de curto prazo
é classicamente avaliada com a ajuda de uma prova de extensão que
consiste em apresentar (visual ou auditivamente) a um indivíduo
uma
lista de unidades não relacionadas (palavras, algarismos, imagens...)
e
pedir-lhe que recorde o máximo de unidades fixadas. o númeio
médio
de unidades que um adulto e capaz de recordar imediatamente
após
uma só apresentação e7!2. A constância deste resultado levou
Geoìge
Armitage Millerer a propor a famosa formulação <<o número mâgico k2>>
como uma espécie de piscadela de olho às <sete maravilhas do Mundo>,
aos <<sete dias da semana)) e às <<sete notas musicais>>.
o tamanho da extensão de memória aumenta com a idade (duas
unidades aos 2-3 anos, cinco unidades aos 7 anos, sete unidades a partir
dos 15-16 anos), mas igualmente em função do grau de familiaridade
dos
itens a memorizar. Ficou assim demonstrado que a extensão da
memó-
ria de crianças pequenas pode revelar-se superior à dos adultos se lhes
pedirem que memorizem informações familiares (como, por exemplo,
personagens de desenhos animados).
E possível facilitar a lembrança, agrupando os itens (chunking).
serët
assim mais f;ícil recordar-se por ordem e após uma única apresãntação
uma sequência de algarismos como 0695000399, organiiando-a em
cinco unidades, i.e., em 06.95.00.03.9g.
outro facto classicamente observado concerne à influência da posi-
ção das informações. Parece assim que as informações situadas tanto
no início como no fim da lista são sistematicamente as mais recordadas
por comparação com os itens colocados no meio.
o efeito da posição dos itens na lista - classificado como efeito de
primazia,por um lado, e efeito de recência, por outro _ pode ser expli_
cado por dois mecanismos: a interferência e/ou o estabelecimento de
um
contexto. Assim, o efeito deprimaziaexplica-se pelo facto de cada nova
atividade se efetuar num novo contexto cujas primeiras experiências são
particularmente distintivas. o efeito de recência explicar-se-á da mesma
forma, pois as últimas informações são quase automaticamente distintivas.
9l
"The Magical Number seven, plus or Minus Two: some Limits on our
capacity
for Processing Information", psy chological Review,vol. 63, n.o 2,pp. gl_97,
março
de 1956 [N. T.].
124 A PSICOI,OGIA

Efeito de primazia
90

80
70
Efeito de recência
60
\\-\
50
40
\-x
30
20

10

Iteml ltem2 ltem3 ltem4 ltems ltem6 ltemT ltemg ltem 9 ltem 10 ltem 11

Efeito da posição serial sobre a percentagem de unidades recordadas


o Éditions Sciences Humaines

No que respeita aos mecanismos de interferência, distinguem-se


geralmente dois tipos: pof um lado, a interferência pró-ativa dá conta do
iacto de as informações adquiridas anteriormente toÍnarem mais difícil
a memorização de novas informações; em contrapaftida,ainterferência
retroativa explica que a aquisição de novas informações dificulte mais
a recordação de informações mais antigas. Uma observação permite
ilustrar esse duplo fenómeno de interferência. Aquando da alteração de
um número de telefone, todos podemos ter dificuldade em memorizar o
novo, rememorando incessantemente o antigo (fenómeno de interferên-
cia pró-ativa). Em contrapafiida,uma vez memorizado o novo número,
é muito difícil voltar a lembrar o anterior, mesmo depois de o termos
usado vários anos (fenómeno de interferência retroativa)'

- A memória de trabalho. Durante muito tempo, a memória de


curto prazo foi considerada como um lugar de armazenamento passivo.
Considera-se atualmente que a função desse registo de atmazenamento
temporário é dupla: deve não só permitiruma conservação da informação,
mas também realizar um certo número de tratamentos indispensáveis
a um atmazenamento eficaz na memória de longo pÍazo. A noção de
memória de curto prazofoiprogressivamente abandonada em benefício
da noção de memória de trabalho, constituída por diferentes componen-
tes, cada uma das quais com os seus próprios recursos e uma relativa
autonomia de funcionamento'
o executivo central é responsável pelo tratamento da informação e
está envolvido no controlo da atenção. Importa distinguir os seus recur'
sos (i.e., a sua capacidade) e as suas funções de controlo e planificação:
A MENIÓRIA 125

coordenar as atividades que se desenrolam


em simultâneo (atenção
dividida) e impedir a interferência de informações
nao p"rtìn"ntes na
realização datarefa(atenção seletiva). por
exempro, o executivo central
está disponível quando tomamos nota
e continuamosa escutar o confe_
rencista, sem prestarmos atenção àquilo
que o nosso vizinho nos pede
ou àquilo que se passa na sala.

A atenção dividida permite coordenar atividades


que se desenrolam em
simultâneo, i.e" assegura a divisão da
atenção entre duas tarefas. com a
', idade, os indivíduos terão mais dificuldades em realizar uo
-"r-o ,"rnpo
duas atividades diferentes.
,, A atenção seretiva permite impedir a interferência de informações não
pertinentes' Distinguem-se geralmente
dois tipos de mecanismos: um
-. mecanismo de seleção de informações pertinentes
e um mecanismo de
inibição das informações não pertinentes.
com a idade, diminuirá de novo
, a capacidade para inibir as informações
não pertineni"r, o
qr"
-'' aumento da frequente distratibilidade, ligadã a uma "rprica
o
in"up*iaua" puru
, ignorar as informações não pertinentes.

Dois sistemas, chamados sistemas escravos,


são responsáveis pelo
armazenamento temporârio dainformação,
quer sob forma fonológica,
para as informações verbais (laço fonológico),
que*ob u for,'u C"
imagens espaciovisuais, para as informações visuaÀ
(caderno de esboço
espaciovisual). Quando repetimos o número
de telefone a memorizar,
utilizamos o laço fonorógico. Em contrapartida,
quando formamos uma
imagem mental do trajeto arnemorizarpáru
no, deslocarmos de um lugar
para outro, solicitamos o caderno
de esboço espaciovisual.
Aquando da revisão do seu modeloe2 em
2000, Alan Baddeley acres-
centou uma nova componente: o buffers3
episódico (memória+ámpão).
Trata-se de um sistema com capacidade
limitada, integrando u, infor-
mações das diferentes fontes (os dois
sistemas escravos, o executivo
central e igualmente a-memória de longo prazo)
numa representação
única, temporária e multimodal.
Seguindo o modelodas provas de expansão
de memória que permi_
tem avaliar a capacidade da memória
de curto pÍazo,os investigãdores
elaboraram provas de medição d,a capacidade
da memória de trabalho.
A capacidade do executivo central é geralmente
testada através de pro-
vas de extensão complexa, pedindo aos
indivíduos que leiam em voz
alta uma série de frases e recordem as
últimas palavras de cada uma

;'- :ï9:9:1'.gi:illy74)
uonsultar nota 89 [N. T.].
rinha como coautor Graham Hitch
[N. r.]
126 A PSICOI,OGIA

pode ser avaliado pela


delas (ver exemplo adiante). O buffer episódico
for
repetiiao de frases. Enfi.m, se o óaderno de esboço espaciovisual
patternsea visuais ou de
testado mediante provas de reconhecimento de
com a ajuda
labirintos, o laço fonológico será classicamente avaliado
de listas de itens de
de provas de extensão ,i--pl"', de recordação -ou
extensão das
,.p.riçao de não-palavrasntlfazendo variar, por exemplo'
a
ou a semelhança fonológica
Ustas á lembrar ou das não-palavras a repetir
dos itens aPresentados).

' Leia as frases seguintes e recorde as últimas palavras de cada uma delas:
Ele tinha-a mimado quando era pequena e chateado quando era maior'
sobre os seus ombros
Ele tinha um crânio àlongado que estava colocado
como uma Pera num Prato'
um papel importante no
Os produtos de eletrónica digital desempenharão
vosso futuro.
para o lago estava desanuviada'
O táxi virou na Madison Avenue, onde a vista
' olhos se abriram, não havia o menor vislumbre
Quando, por Íìm, os seus
de vitória, nem sombra de ira'
Estatarefanãoétãofácilquantoparece!Considerar-se-áqueumadulto
forte extensão de memória;
capaz derecordar quatro pàluu'u' tem uma
uúi^o de duas palavras, fraca extensão de memória'
Fonte:MeredythDanemanePatriciaA.Carpenterg6,extraídodePsychologie
e Philip G' Zimbardoe7
izoOs), de Richard J. Gerrig

Podemos dar-nos conta da importância e da


função da memória de
trabalhoemcadaumadasnossasatividadesquotidianas.Sesomoscapazes
o romance que lemos' é
de acompanhar uma conversa ou compreender
exigem efeti-
gruç* àLemória de trabalho. Estas diferentes atividades
(temporariamente'
vamente não só tratar as informações e armazena'las
o tratamento de novas informações lidas ou
pelo menos), continuando
ouvidas,tendoemvistarelacionaressasdiferentesinformaçõeseaceder
situação'
assim a uma representação de conjunto da

ea Ou seja: padrões [N' T.]'


95 Deflnição de não-patavrano ..Dicionário de Termos Linguísticos', do Portal da
Língua portugu"ro ç.ntlìtwww.portaldalinguaportuguesa.orgltacj-r1i^j:ït::l
segundo os pnncÍplos que
ãgv?u.Fui.ía id:zní): <Palavra que não é formada
uma dada lingua e que' por
,Jgufu. a morfologia, a fánologia ou a ortografia de
essa razão, é fácil e rejeitada pelos falantes ou leitores dessa língua>
,upiouln.nõ
[N.r.]. Journal of v-erbal Lear'
e6 ..Individual differences in working memory and re ading"'
agosto de 1980 [N' T']'
nrìg and Verbat Behavior, vol' lgln'' 4'pp' 450-466'
e' Coãsultar Bibliografia Obras gerais e Manuais [N'
- T']'
A i\IEIlI()RIA 127

A memória de longo prag,o


Paru garantir a perenidade da rembrança, as informações
devem passar
paraa memória de longo ptazo.Inserir novas
informações na memória
de longo prazo pode exigir muito tempo e esforço.
contrariamente aos
outros registos, são ilimitadas a capacidade e a duração
de armazena- a

mento na memória de longo prazo,a qual contém, por


conseguinte, uma
quantidade impressionante de conhecimentos conservados
por períodos
muito longos, inclusive indefinidamente.
Podem por vezes surgir obstáculos devido à dificuldade
em recupe-
rar a informação. o fenómeno da <palavra na ponta
da língua> ilustra
essa situação. Não obstante sabermos qr. .onh""amos
a p.-alavra, não
conseguimos encontrá-la.
A memória de longo prazo estâ subdividida em dois subsistemas:
a
memória declarativa e a memória processual.
- A memória decÌarativa remete para o conjunto de conhecimentos
acessíveis a uma recuperação consciente e verba,lizâvel. os
conhecimen-
tos armazenados ao níver da memória declarativa podem
remeter para
acontecimentos ou factos pessoais vividos pelo sujeito
e situáveis num
contexto espacial e temporal preciso (em geral, podemos
recordar o que
fizemos durante as últimas ferias).
A par dessas informações essencialmente de natureza autobiog
râfica,
são armazenadas informações gerais, independentes
do rocal e do mãmento
da sua aquisição (em geral, embora possamos dizer o nome
da capital da
França, temos decerto dificurdade em rembrarmo-nos
de quando e onde
o aprendemos). Estes dois tipos de conhecimentos remetem
para aquilo
a que chamam memória episódica (i.e., memória dos aconìecimentos
pessoais) e memória semântica (i.e., memória dos
nossos conhecimentos
conceptuais). Pode, porém, sublinhar_se que, antes de se
encontrarem
na memória semântica, os conhecimentos conceptuais
transitaram pela
memória episódica. para retomar o exemplo da capital
da França, a
criança aprendeu-a numa dada situação e num determinado
contexto.
- A memória processual remete paÍa a memorização do conjunto
das nossas capacidades cognitivas e motoras, argumas
das quais podem
ser por vezes dificilmente verbalizadas. por exemplo,
emborã seja relati-
vamente facil explicar como abrir uma garrafade vinho, pode
ser, pelo
contrário, mais difícil explicar como andar de bicicleta àu dar
um nó
na gravata. Em geral, é mais fâcil fazer a demonstração disso
do que
explicá-lo por palavras.
classicamente, as aptidões armazenadas ao nível da memória pro-
cessual são designadas por know-how. o saber-fazer parece
preservado
em pacientes com síndrome amnésica, mesmo que tenham
dificuldade
I28 A PSICOI,OGIA

em ou até lhes seja impossível


- - recordar factos da sua vida quotidiana
ou conhecimentos gerais.

o AUMENTO DAS CAPACIDADES DE MEMORIZAçÃO

As capacidades de memorização aumentam ao longo de toda a infância.


como explicar tal aumento? os teóricos do tratamento da informação
aventaram quatro hipóteses pata dar conta do desenvolvimento da
memória no decurso da infância.

Mudanças nas caPacidades básicas


A memória das crianças mais velhas ou dos adultos permitir-lhes-á tratar
mais informações e mais depressa. Por outras palavras: a sua melhor
capacidade de memorização dever-se-á a um melhor sistema de tratamento
da informação com maior competência e/oumaior eficácia. Todavia, esta
hipótese não pode explicar porque é que as crianças pequenas recordam
melhor elementos que lhes são familiares comparativamente a adultos a
quem peçam que lembrem o mesmo tipo de dados (por exemplo' nome
de personagens de desenhos animados infantis).

Desenvolvimento da base de conhecimentos semânticos


os conhecimentos gerais sobre o mundo armazenados na memória de
longo prazo desenvolvem-se com a idade' nomeadamente sob o efeito
daúiierentes aprendizagens escolares. O aumento da base de conheci-
mentos semânticos ou conceptuais tornam mais familiares as informa-
é mais fácil de aprender e
ções a memorizar. Ora, o material familiar
lembrar do que o material não familiar. Evidenciou-se sobretudo o facto
de crianças experientes num domínio (por exemplo, emxadrez, futebol,
etc) obterem melhores desempenhos num teste de recordação quando
esta incide diretamente sobre a sua área de especialização,conseguindo
até desempenhos superiores aos de crianças mais velhas e/ou de adultos
não versados nesse âmbito.

Desenvolvimento e utilização das estratégias mnemónicas


Com a idade, as crianças podem aprender e rttilizat métodos efrcazes
para manter a informação na memória e reencontráJa quando precisarem
dela. Podem, por exemplo, já não se limitar a ler meramente a lição, mas
repeti-1a paraìi mentalmente até à sua memorização ou, inclusive, resti-
tuìção. Uma das aquisições cruciais no desenvolvimento da memória na
A MEMORIA 129

criança entre os 6 e os 12 anos vai ser a implementação e a utilização de


estratégias mnemónicas, as quais podem ser definidas como processos
cognitivos controlados que aumentam a memória, melhorando o arma-
zenamento e a recuperação da informação. As estratégias mnemónicas
não intervêm automaticamente, mas estão sob a dependência do controlo
consciente do estudante. No entanto, com a idade, automatizam-se e,
por conseguinte, são cada vez menos custosas cognitivamente. Se a
armazenagem e o tratamento da informação exigirem menos esforço e
tempo, então poderão ser conservadas mais informações.

o papel das atribuições na explicação dos fracos desempenhos da memória


Algumas crianças não percebem a utilidade das estratégias mnemónicas,
porque não concebem que os seus resultados (sucesso/insucesso) possam
estar ligados ao seu próprio esforço. É o <sentimento adquirido oè impo-
tência> (Daniel chartier e Jacques Lautreyes): as crianças atribuirãó o
insucesso às suas fracas capacidades e não ao pouco esforço consagrado à
aprendizagem. Sentindo-se incapazes de atingir os seus objetivos, consi-
deram inúteis os esforços, pois pensam não ter condições para controlar e
melhorar os resultados. Para se protegerem, desenvolvem então geralmente
técnicas defensivas que as levam quase sempre a eximir-se completamente
das atividades escolares.
um meio de intervirjunto das crianças com dificuldades escolares consis-
tirá em modificar as atribuições, levando-as a imputar o seu inêxito à não
utilização de uma estratégia ou à utilização de uma estratégia inadequada
e ineflcaz.
Por conseguinte, numa perspetiva pedagógica, é indispensável levar a criança
a considerar que pode melhorar os seus resultados ao utilizar uma estratégia
específica. Por outras palavras: é necessário levá-laa tomar consciência da
relação entre os seus resultados e a utilização adequada de uma estratégia.

Assim, elaborar estratégias mnemónicas permite melhorar a memori-


zação. Estes meios vão fornecer índices de organização e/ou recuperação
da informação. As estratégias mnemónicas mais utilizadas são, sem
sombra de dúvida, aquelas que apelam a uma atividade externa, como a
lista que fazemos antes de irmos às compras ou o livro a devolver impe-
rativamente à biblioteca que tiramos e pomos à porta de casa para nos
certificarmos de que não o esquecemos. A repetição das informações a
reter (em geral, repetição de um número de telefone até à sua marcação
no teclado do aparelho) constitui igualmente uma estratégia frequente-
mente utilizadapor cada um de nós.

98
"Peut-on apprendre à connaitre et à contrôler son propre fonctionnement cognitif?",
scolaire et p rofes s ionnelle, 2l / l, pp. 27 - 46, 1992 tN. TJ.
L' Orientat ion
130 A PSICOLOGIA

Algumas estratégias vão facilitar a codificação (i.e., a otganizaçáo)


das informações. Uma estratégia de otganização permite melhorar
a

codificação, estabelecendo relações entre as informações a memorizar'


capacidade
Por exemplo, podemos, por vezes' ficar surpreendidos com a
para fixarem quem encomendou deter-
dos empregaáos de restaurante
minado prato. uma estratégia que o empregado pode utilizar consiste
em associar um traço particular de cada conviva (em
geral, cor da roupa
ou do cabelo, elemento físico particular) a cada prato encomendado ou
em imaginar uma imagem mental a pattir dos diferentes elementos
a
de tele-
memorizar. Da mesma m aneita, decorar o nosso novo número
que consista em
fone pode pressupor a implementação de uma estratégia
do número
estabelecei uma relação entre os números' A memorização
03.SS.44.56.82podeficarfacilitadaseosujeitoconstatarqueosegundo
de
número (44) corresponde a metade do primeiro (88), que é seguido
(5-6)' e notar' por
um número composto de dois algarismos consecutivos
primeira
fim, que o último número corresponde ao ano (1982) da sua
paixão fulminante!.
, .,ã^ €^^ili+or h^r eê
Outras estratégias vão facilitar, por seu turno, a recuperaçÍ
io das
alguma
informações. Todos somos decerto capazes de dar sem hesitação
Devemos a Íecu-
as diferentes conjunções coordenativas adversativas.
famosa
peração eficaz eiapiAu dessa informação aprendida na escola à
iengalenga <<mas, porém, todavia, contudo>>!

Desenvolvimento da metamemór:a
A metamemoriafaz parte daquilo a que John H. Flavellee chamou
que temos sobre
metacognição, a qualìemete para os conhecimentos
o,nor.ó, próprios processos cognitivos' Neste sentido' a metamemória
seus próprios
remete puiu oì conhecimentos que o sujeito tem sobre os
a
p.oaaraã, mnemónicos, sobre o funcionamento da sua memória.Fazer
processo pões
um estudante perguntas do estilo <<Como aprendes? Que
que pensas ter aprendido
em prática p atamemorizar as tuas aulas? Será
sobre
suficientemente as lições?> equivale a interrogá-lo diretamente
os seus conhecimentos no que concerne ao seu próprio
funcionamento
número de
mnemónico. Outro exemplõ: se repetirem mentalmente um
porém'
telefone para decorá-lo, executam uma estratégia mnemónica;
quando deixam de repetir esse número porque acham que o decoraram
úem, aplicam uma estratégia metacognitiva'

se "Metacognition and Cognitive Monitoring: ANew Area of Cognitive-DeveloPmental


-911, outubro de 1979 [N' T.].
lnquiry", American Psychologlsl, vol' 34, n'o 10, pp' 906
A }IEMÓRIA I3r

oRGAN|ZAçAO DOS CONHECTMENTOS


DECLARATIVOS ARMAZE NADOS
NA MEMÓRIA DE LONGO PRAZO
Apesar da imensidade de conhecimentos armazenados na memória de
longo prazo, acedemos a eles numa fração de segundos. como o fazemos?
Como se organizam os conhecimentos na memória?
Geralmente, quando temos de recordar uma inform ação, não
conseguimos lembrá-la diretamente. Reconstruímo-la com base em
conhecimentos mais gerais conservados na memória. o conjunto dos
conhecimentos conceptuais armazenados na memória de longo prazo
aparecem estruturados na nossa memória de acordo com uma organi-
zação categorial (os conceitos) e/ou sequencial (os esquemas ou guiões).
Por outras palavras: recuperar as informações conservadas na memória
de longo prazo não consiste meramente em extrair uma cópia literal da
informação antes memorizada, mas assenta num processo inferencial
que exige uma reconstrução da informação graças à exploração da
organização das informações na memória.

A organizaçâo categorial
Organização hierárquica da rede semôntica
os conhecimentos conceptuais não existem isolados, independentes uns
dos outros, mas parecem organizados hierarquicamente sob a forma de
uma rede semântica.
Alan collins e Ross Quillian desenvolveram um modelo de repre-
sentação da informação semântica em termos de rede hierárquica donde
sobressai um princípio de economia cognitiva.
E possível distinguir várias subcategorias conceptuais. por exemplo,
uma categoria como <<animal>> tem várias subcategorias (aves, peixes,
etc), que contêm diversos membros (canário, avestruz, pintarroxo ou
tubarão, salmão, truta, por exemplo). A própria categoria <animal>> é
uma subcategoria de uma categoria mais vasta (por exemplo, a categoria
dos seres vivos). Parece existir um nível chamado nível básico no
- -
qual os indivíduos categorizam e pensem melhor nos conceitos. por
exemplo, quando vamos comprar maçãs, pensar unicamente em fruta
pode não ser suficientemente preciso, tal como pensar em reineta pode
revelar-se demasiado específico (exceto obviamente se for esse o tipo
de maçãs indicado paru a receita). para cada categoria, os indivíduos
codificam um protótipo, uma representação do membro mais central ou
mais específico da categoria.

i
ì

.l
132 A PSICOLOGIA

Tem pele

I
t Pode deslocar-se
/
Animal (->co^"
\R.rpiru

Tem asas Tem barbatanas

Pode voar Peixe Pode nadar


Ave
Tem penas Tem guelras

Tem longas
patas finas Pode morder Avermelhado
Pode cantar
Comestível
Canário AvestÍuz Grande Tubarão Salmão

Perigoso Sobe as correntes


Amarelo Náo pode voar
para desovar

O modelo da rede semânticaroo

Verificaraveracidadedecertosenunciadostaiscomo<opintar.
é um pássaro)) (categoria de base) ou
(O pintarroxo é um animal>>
roxo
entre o conceito e
(categoria superordenada) vai depender da distância
os indivíduos levam menos
à catãgoria dã pertença. No exemplo dado'
que à questão
tempú responder à pergunta <O pintarroxo é uma ave?> do
nO pit tarrõ^o é um animal?>, porque
(ave) é uma categoria superorde-
(animalD é uma categoria
nada imediat a paÍa(pintarroxo), enquanto
de uma categoria estão
superordenada mais áistante. A cada membro
associadas informações características desses conceitos. No gráfico, os
conceitosestãorepresentadosaoníveldoselementosdesignadoscomo
as relações entre os conceitos designam
relações de denominação
<<nós>>;

qu. pá4". inctuir (por exemplo' uma relação


a inserção numa categoria
qualquer outra
ne.t-, que associa X a Y), a atributos (" ' mamífero) ou
relação semântica.

Tipicidade dos membros


Certosmembrosdascategoriassãomaisoumenostípicos.Ilustremos
a nossa afirmação com o ã"emplo da
categoria (ave). será consensual
aves mais típicas do que uma
dizer que um pintarroxo ou um canário são
avestruz ou um pinguim (ver tabela)'
ograudetipicidadedeummembrodeumacategoriatemconse.
ao nível
qu6n"ã, na vidá real e manifestar-se-á sobretudo por diferenças

100 Extraído de Robert !. Stetnbetg, op'


cit (consultar nota 90).
A MEMÓRIA 133

do tempo de reação para responder a perguntas como <o pintarroxo é


uma ave?> ou <<A avestruz é uma ave?>>. As pessoas respondem mais
depressa à primeira pergunta do que à segunda.

2.63

Estimativa da tipicidade para diferentes aves (nota máxima: 7)

É interessante sublinhar que o morcego recebe uma nota de ,l.53 em Z


apesar do facto de não ser, de todo, uma ave!

Porque é que alguns membros de uma categoria semântica parecem


mais típicos do que outros? A resposta mais dada remete parao grau de
semelhança familiar. Por outras palavras: os membros típicos de uma
categoria são aqueles que possuem atributos associados à categoria
semântica em causa e simultaneamente partilhados pelo maior número
dos outros membros da categoria. Para retomar o exemplo das aves, os
pintarroxos têm a maior parte dos principais atributos associados às
aves (em geral,tamanho certo e capacidade de voarem); pelo contrário,
as avestruzes apresentam características menos correntes nas aves (são
inusitadamente grandes e não voam)

A organização sob a forma de esquema e de guião


os nossos conhecimentos encontram-se igualmente organizados no seio
de estruturas mentais mais complexas do que as categorias semânticas.
os esquemas fornecem quadros conceptuais ou associações de conhe-
cimentos relativos aos objetos, às pessoas e às situações. A partir das
nossas inúmeras experiências quotidianas, extraímos incessantemente
informações e combinamo-las num conjunto mais pequeno e simples.
Os esquemas e os guiões podem ser definidos como totalidades orga-
nizadas compostas de partes. Esta organização parte-todo é inferida a
partir das nossas experiências com os acontecimentos do mundo real,
enquanto a organização categorial é inferida, por sua vez, a partir da
cultura e da linguagem. se pedirmos avárias pessoas que descrevam
acontecimentos da vida quotidiana tais como ir ao médico ou ao restau-
tante, a descrição de ambos será muito aproximada.

Exemplo do guião <<ir ao médico>


Hoje, Paulo sentiu-se mal e decidiu consultar o médico de família. Marcou
por telefone uma consulta para o final da manhã. Foi recebido pela secretária

il
I34 A PSICOI,O(ìIA

várias
do médico e entrou na sala de espera p ara agtardar a sua vez. Folheou
revistas, Depois, o médico chegou, perguntou-lhe o motivo da sua
visita
e pediu-lhe que tirasse a roupa para o examinar' Depois da auscultação'
paulo veste-se enquanto o médico passa a receita. Antes de sair, Paulo
pagaa consulta à sãcretária do médico; depois, desloca-se àfatmâciapara
os medicamentos receitados pelo médico'
"o-p.ut
A noção de esquema postula que os acontecimentos são estrutura-
dos num quadro no seio do qual a sucessão de informações é causal
e
por-
temporalmente organizada. Os esquemas não incluem todos os
menores individuais de todas as nossas experiências, mas representam
uma experiência típica, média dos acontecimentos, incluindo o conjunto
de detalhes a que se prestou suficiente atenção; eles são
evolutivos em
função das experiências da nossa vida.
IJma vez ativado, um esquema (ou um guião) facilita o acesso às
infor-
informações que lhes estão associadas, fornecendo assim uma
maçãodescendentequeguiaautomaticamenteamemorizaçãooua
na
compreensão. Deste modo, patecerâque as informações armazenadas
memória fornecem por defeito o conjunto das informações eventualmente
não presentes de forma explícita, mas necessárias para a compreensão
e inclusive para a memorização da informaçáo affatar'

lnfluência do esquema durante os processos


de memorização
o armazenamento da informação fica facilitado quando a informação
a memorizar é simples e se ajusta imediatamente a
um esquema: é rapi-
pata
damente integrada no esquema ativado e contribui eventualmente
o modificar, enriquecendo-o com novos elementos' Se, pelo contrário'
atwa
a informação for complexa e/ou lacunar, há então uma procura
entre a
de um esquema na memória, para encontrar um ajustamento
informação tratada e a informaçáo jâ presente'
Da mesma maneira, o esquema desempenha um papel não despi-
processos
ciendo na recuperação da informação, servindo de base aos
recordação pressupõe
de inferência implicados naquela. com efeito, a
mas
não a recup.ruçâo da forma literal da informação memorizada'
geral' A
uma abstráção das informações que preserve a significação
do pela
recordação é objeto de uma reotganização ao nível conteúdo
pelo
aplicação de inferências e de uma reorgan izaçáo da ordem definida
.rqrr.-u. Destacou-se o facto de os indivíduos tenderem a restabelecer a
orda- canónica durante a recordação de acontecimentos anteriormente
apresentados de forma desordenada.
A ivlEntÓRtA 135

Enfim, o esquema tem um efeito, por um lado, ao nível da seleção


e da interpretação das informações pertinentes durante a codificação
e' por outro, ao nível da integração das informações nele. os estudos
realizados mostram que os padrões de recordação histórica não mudam
entre crianças e adultos. No entanto, diferenças em função da idade sur-
gem em níveis de análise subtis, sobretudo na capacidade dos indivíduos
para distinguirem os elementos principais dos elementos secundários.
uma notável melhoria dessa capacidade parece manifestar-se entre os
8 e os l0 anos.

O desenvolvimento dos esquemas e dos guiões


Numa perspetiva de desenvolvimento, é possível perguntar se as crianças
são sensíveis àorganização cronológica das informações armazenadas
na
memória de longo prazo e,no caso de a resposta ser sim, de que maneira.
De forma a testá-lo, os investigadores recorreram a paradigmas de
imitação de sequências de acontecimentos familiares (por exemplo, lavar
uma boneca, vestir-se...). são apresentadas sequências de ações, ou pela
ordem canónica em que se desenrolam, ou sem respeitar essa cronologia.
A partir dos 2 anos, as crianças reconstituem sistemática e rigidamente a
ordem canonicase esta faltar no momento da apresentação, mesmo que a
tarefa não o exija nem requeira verbalização.Tal resultado comprova que
as crianças têm conhecimentos precoces sobre as estruturas sequenciais
dos acontecimentos familiares. A organização cronológico-causal dos
conhecimentos na memória de longo prazo rcrativos às sequências de
ações deteta-se muito cedo nas crianças.
salientou-se igualmente que as diferenças de recordação em função
da idade são mais marcadas quando os elementos da história são apre-
sentados por ordem não canónica. As crianças têm maior dificuldade
em lembrar-se das histórias que se afastam da forma canónica por com-
paração com histórias de estrutura canónica.

O fenómeno da amnésia infantil


Memória outobiográfrca designa a memória da história de vida de cada indi-
víduo. Ainda que as nossas recordações autobiográficas apresentem certas
deformações, são em geral muito boas, mas podem ser de melhor ou pior
qualidade em função do período de vida considerado. por exemplo, os adultos
parecem lembrar-se melhor de acontecimentos da sua juventude e/ou dos
seus primeiros anos de vida adulta do que se recordam dos acontecimentos
mais recentes.
13ó A PSICOLOGIA

Todos os adultos sâo, porém, incapazes de evocar as recordações da sua


primeira infância, incapazes de se lembrarem dos acontecimentos ocorridos
antes dos 2 ou 3 anos de idade. Esta incapacidade para se rememorar a nossa
primeira infância é conhecida pela designação de amnésia infantil.

% acumulados

100%
Desenvolvimento progressivo
o/o
durante a infância
75

55 o/o
Emergência das
recordaçÕes pessoais
\
entre os 2-3 anos
25%

0-1 1-2 2-3 3-4 4-5 5-6 6-7 7-8


ldade de ocorrência do acontecimento (anos)

Desenvolvimento das recordaçôes pessoais durante a infânciatot

A amnésia infantil existe realmente! Foram propostas diferentes explicaçoes


para exprimir a incapacidade dos adultos para se lembrarem de acontecimentos
ocorridos antes dos 2-3 anos de idade. A interpretação freudiana postula que
as experiências precoces serão recalcadas no inconsciente. Uma interpretação
alternativa enuncia que será a falta de verbalização da experiência infantil
que explicará o esquecimento. A imaturidade das áreas cerebrais (nomeada-
mente dos lobos frontais), avançada como terceira explicação, não permitirá
a armazenagem da informaçâo sob uma forma recuperável posteriormente.
A maturação será suficiente para a memorização de atividades simples, mas
insuficiente para as informaçôes que requerem uma memória explícita. Porfim,
a última hipótese interpretativa sugere que a perceção do mundo é diferente
na idade adulta e em criança, o que diminui a probabilidade de encontrar sinais
de recordação suficientes. Haverá uma incompatibilidade entre a maneira
como a criança codificou as informaçóes e o modo como elas são recuperadas.
o fenómeno da amnésia infantil pode levar a supor que os bebés não dispoem
de capacidade de memorização. ora, todos os psicólogos concordam em
reconhecer a infância como um período fundamental do desenvolvimento.
Com efeito, é durante a infância que se adquire, em muito pouco tempo, uma
enorme quantidade de conhecimentos' A criança tem, portanto, de possuir
um poderoso sistemâ mnemónico. contudo, não resta praticamente gualquer
recordação evocável desse período por parte do adulto. Neste caso, existe efe-
tivamente um paradoxo que fez correr muita tinta e aguçou a imaginação de
muitos escritores. Se as experiências precoces são imediatamente esquecidas,

ror Cf. Darryl Bruce, Angela Dolan e Kimberly Phillips-Grant, "On the Transition from
Childhood Amnesia to the Recall of Personal Memories", Psychologícal Science,
vol. 11, n.'5, pp. 360-364, setembro de 2000, i'? Jacques Vauclair, Développement
du jeune enfant. Motricitë, perceptíon, cognition,Paris: Belin,2004 [N' T']'
A MEMÓRIA 137

então já não há alicerces sobre os quais as experiências


posteriores possam
construir-se. Assim, uma criança não poderá tirar proveito
das experiências
passadas e tudo será sempre um perpétuo
recomeço até ao momento em
que a memória se tornar funcionar. os estudos
rearizados em psicorogia do
desenvolvimento com a ajuda dos paradigmas de habituação
ou oe apãai-
zagem operante mostram que as crianças pequenas
dispóem de capacidades
de memorização desde os seus primeiros dias de
vida.

Como é que um estudante pode melhorar a memória


quando se pÍepara para os exames?
Num dia ou noutro, todos os docentes encorajaram para
- não dizer exorta-
ram! - os seus arunos a estudar regurarmente e
a não esperar pera úrtima hora
para fazer revisÕes da matéria. para os estudantes,
tar incentivo da parte dos
professores parece fazer parte do discurso
estereotipado de quarquei docente.
os trabalhos científicos mostram, porém, o fundamento
de tar conserho. os
estudos que se interessam peras situaçoes de aprendizagem
também mos-
traram que os desempenhos dos estudantes se reveram
merhores quando a
aprendizagem foi rearizada em várias sessões espaçadas
no tempo isituaçao
de aprendizagem distribuída) comparativ.r"ni" a
uma situação em que a
aprendizagem se efetuou num tempo muito curto (situação
de aprendizagem
concentrada).
Porque é que o simpres facto de distrrbuir as sessões
de aprendizagem cria
uma diferença de desempenho? Na situação de uma
aprendizagem disìribuída,
as recordações vão ser consoridadas na memória
de rongo piazo pero facto
de o contexto de codificação poder variar de uma sessão para
outra, o que
levará os alunos a empregar estratégias de codificação
arternativas e diver-
sificadas. outra expricação proposta provém dos
estudos que se interessam
pela influência do sono na memória. A aprendizagem
é influenciada pera
quantidade de sono denominado paradoxal.
Eis alguns fatores a ter em conta para merhorar
a eficácia e a quaridade da
memorização.
sublinhámos anteriormente o efeito da posiçâo seriar
sobre os desempenhos
nas provas de extensão de memória. Este efeito pode
explicar parcialmente as
maiores dificuldades dos arunos nos temas estudados
a meio áo curso. É, iois,
importante prestar uma atenção muito particular a essas
aulas intermédias,
de modo a não estudar sempre as rições pera mesma ordem.
subrinhámos
igualmente a importância da codificação. o aruno deve, pois,
empenhar-se
em estruturar, organlzar os conhecimentos a memorizar,
o que o levará
secundariamente a ligar as novas informaçôes aprendidas
com as informaçôes
já memorizadas antes. Este esforço de
estruturação pode fazer-se de diferentes
maneiras (utilizando palavras-chave, restruturando o plano,
formando imagens
visuais ou elaborando pequenas histórias...). Tarvez
não seja inútir insistir no
facto de que cada estudante deve adotar a estratégia mnemónica
que
mais lhe convier' Não existe um método, nem uma estratégia
mnemónica

ri
I38 A PSICOLOGIA

milagrosa. caso contrário, os psicólogos cognitivistas teriam feito


fortuna
desde há muito temPo!
É geralmente essa capacidade - metacognitiva -
que pÕe problemas a muitos
com maiores dificuldades: não têm consciência
alinos, especialmente aqueles
de compreensão ou da insuficiência do seu
das suas próprias dificuldades
trabalho.

Da precisão das recordações: o efeito de desinformação


para descrever um
Porque é que as palavras que as testemunhas utilizam
acidente podem afetar as suas lembranças posteriores?
lembranças
As nossas recordaçóes são todas exatas? A precisão das nossas
como as codificámos e das circunstâncias de recuperação.
depende da maneira
A questão da precisão das recordaçoes é crucial
no âmbito dos testemunhos
oculares.
psicólogos' Na
A questão do testemunho ocular preocupou igualmente
os
de curtos filmes (de cinco a trinta segundos) que
sequência da apresentação
c. Palmer (1974)102
mostram acidentes de automóvel, Elizabeth F. Loftus e John
momento do
pedem aos participantes que calculem a velocidade da viatura no
acidente'Asperguntassãoformuladasdiferentementecomdiversosverbos
(como<colidiruouuembateo)'Enquantoasvelocidadesreaiseramconstantes,
e são ainda maiores
as velocidades calculadas variam em função do verbo
utilizados na pergunta sugerem um choque mais violento
quando os verbos
a 65 km/h pelo grupo com o verbo <<embater>' mas a
(velocidade calculada
50 km/h pelo grupo com o verbo <colidir>)'
à questão <Viram
Uma semana depois, as testemunhas têm de responder
por cento dos inqui-
vidros partidos?o. Nao houve, na realidade' Trinta e dois
foi feita com o verbo
ridos responderam afirmativamente quando a pergunta
<embater>; apenas 14 o/0, quando formulada com <colidir>'
Como explicar estas diferenças de resultados? Após um
acontecimento' as
suscetíveis de interagir
testemunhas recebem muitas vezes novas informações
iniciais. Loftus e Palmerfalaram do efeito de desinfor-
com as suas recordaçóes
das testemunhas oculares parecem' por conseguinte'
mação. As lembranças
permeáveis a distorçóes.

r02 úíReconstruction of Automobile Destruction: An Example of the Interaction Between


and Memory", Journal ofVerbal Learning and Verbal
Behavior, vol' 13,
Language
n.'5, pp. 585-589, outubro de 1974 [N' T']'

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