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O DIREITO NA TEORIA DE NIKLAS LUHMANN

Juliana Almenara Andaku


Procuradora da Fazenda Nacional,
mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RESUMO: O artigo busca analisar o conceito de direito na teoria sistêmica de Niklas


Luhmann, para isso explicando também o conceito de norma, ser e dever-ser,
expectativas normativas e cognitivas, bem como o código lícito/ilícito que faz a
diferenciação do Direito como sistema.

PALAVRAS-CHAVE: Conceito. Norma. Direito. Teoria sistêmica. Luhmann.

Pela teoria sistêmica de Niklas Luhmann, o direito é um sistema


funcionalmente diferenciado da sociedade, cuja função é manter estável as
expectativas, ainda que estas sejam frustradas na prática. As expectativas são as
normas jurídicas, que, assim, permanecem estáveis independentemente de uma
eventual violação.
O Direito, como sistema social, possui a comunicação como elemento base.
Sua diferenciação do meio ambiente ocorre pelo controle do código de preferência
“lícito/ilícito”1. Para Luhmann, isto só acontece nas sociedades modernas, com a
superação da hierarquia. Isto porque enquanto existia a hierarquização, a Política e
a Moral dominavam o Direito.
É o código que permite a autopoiése2 do Direito. O código é a diferença guia,
não podendo ser questionado. Esta diferença é apenas um modelo de orientação,
servindo para classificar as comunicações no sistema jurídico. O argumento
relevante na comunicação é licitude/ilicitude.
Assim, existe comunicação jurídica toda vez que, havendo controvérsia,
alguém reivindique seus direitos e, com isso, a normatividade vigente deve decidir
quem possui a razão pelo código da licitude. Com isso, o direito é um sistema que
resolve os conflitos, mas ao mesmo tempo cria outros, pois com base no próprio
direito pode-se resistir a pressões ou afastar ordens expressas.
Para que o código seja definido, necessária a existência de programas. Os
programas e critérios básicos no Direito são a Constituição, os atos legislativos, a
jurisprudência e os atos administrativos. São todos programas que se expressam
normativamente. Pode-se incluir até a sentença, como ato normativo individual.
O Direito possui programas condicionais e programas finalistas ou
teleológicos. A operação do Direito ocorre primariamente por programas
condicionas (se x, então y). É primário porque é o programa condicional que
controla o programa finalista, pois é ele que determina o código, mostrando a
eficácia concreta do sistema.
Já os programas finalistas buscam determinado fim específico, sofrendo uma
influência política. O maior exemplo de programa finalista é a Constituição. A não
realização dos programas finalistas não afeta a autopoiése do Direito.
Os programas dão o conteúdo para a utilização do código. No caso do Direito,
licitude são as expectativas normativas congruentemente generalizadas, ou seja,
expectativa cuja satisfação é esperada. A ilicitude é a expectativa que não é

1
Alguns autores traduzem como legal/ilegal.
2
Sistemas autopoiéticos são os que possuem suas unidades de reprodução, ou seja, eles se reproduzem pela própria operação
destas unidades de reprodução.

1
esperada. A definição das expectativas fica em aberto, pois depende dos
programas.
O código, portanto, implica fechamento operacional do sistema jurídico, mas a
escolha do que é lícito/ilícito (programas) depende do meio ambiente. Assim, o
Direito possui um fechamento normativo, pois possui autocontrole do código
lícito/ilícito, mas, ao mesmo tempo, também possui uma abertura cognitiva, pois
depende do meio social para definir o lícito/ilícito.
O sistema jurídico é preliminarmente normativo, mas já prevê a possibilidade
de haver desvios. Assim, há uma corrupção sistêmica constante no Direito, mas
que não causa quebra de sua autopoiése, porque pode ser controlada pelo próprio
sistema. Ou seja, é o próprio sistema que define o que é corrupção sistêmica.
Portanto, o Direito define-se internamente em conceitos, para possibilitar o
seu fechamento normativo. Este fechamento facilita a alteridade, fazendo com que
o sistema responda melhor às demandas externas.
Na definição de Luhmann, o Direito é a “congruente generalização de
expectativas normativas”. A generalização possui três planos, pessoal, temporal e
material. O importante é que em todos os planos haja continuidade, isto é, para
diversas pessoas e com grande diversidade de matérias, a norma (o Direito) é
considerada válida. Se a validade é igual, independentemente do contexto, há
congruência.
Neste quadro, a congruente generalização é a aceitação, um suposto
consenso. Assim, as pessoas não precisam aceitar concretamente a ordem, mas
elas precisam ter uma noção mínima do que é lícito ou ilícito. Com isso, pressupõe-
se que o outro irá respeitar a ordem normativa. Não é aceitação, mas quem age
contrariamente ao sistema normativo já espera uma reação contrária. No Direito,
portanto, há especial proeminência de segurança do sistema.
O Direito, como ordem, serve para aliviar as expectativas, não para aplicar
sanções. O fato da violência estar ao lado do Direito faz com que ela certifique o
Direito, isto é, certifica a ordem como válida, em contraposição a outras ordens que
não seriam válidas. O modelo de Luhmann, assim, implica diferenciação e, para que
isso ocorra, é necessária a inclusão de todos.
O sistema jurídico3 é necessário, pois há incongruências permanentes de
expectativas normativas dentro da sociedade. Os mecanismos de generalização
destas incongruências são a normatização, a institucionalização e a identificação de
sentido.
A normatização é a generalização na dimensão temporal, buscando acabar
com as frustrações posteriores através de sanções a esta frustração. Com isso, a
expectativa permanece mesmo tendo ocorrido a frustração. É expectativa de
expectativa.
A institucionalização é a dimensão social da generalização, referindo-se a
pessoas. Significa uma suposição do consenso, ou seja, que as outras pessoas
tenham as mesmas expectativas. O consenso social ocorre mesmo sem
conhecimento da aceitação individual. A institucionalização é fundamental para o
Direito, pois a suposição do consenso é que possibilita o próprio funcionamento do
sistema.
Já a identificação de sentido é a dimensão material, implicando que os
agentes são capazes de compreender o sentido do ato, embora existam as mais
diversas expectativas na sociedade. Surge, com isso, uma confirmação e uma
limitação recíprocas. A identificação de sentido generalizada é que confirma a

3
O sistema, na teoria luhmanniana, é uma complexidade estruturada, ao contrário do meio ambiente que é uma complexidade
desestruturada. O próprio sistema cria sua distinção com o meio ambiente, isto é, o sistema surge a partir do momento em que
consegue estruturar sua complexidade e se diferenciar do meio ambiente.

2
unidade, construindo um sentido único dentro da pluralidade de significados
individuais.
Quando a generalização ocorre nos três níveis, o Direito surge como
congruente generalização das expectativas normativas, com duas funções. Para
Luhmann, a principal função do Direito é a garantia das expectativas normativas, a
vigência social. Como função secundária estaria a regulação de condutas, a eficácia.
Isto ocorre porque a norma pode não ser eficaz e, ainda assim, permitir a garantia
das expectativas normativas.
A vigência é algo qualitativo e não quantitativo. A efetividade não contamina a
vigência imediatamente, mas se a ineficácia atingir um grau muito alto, levando a
uma sobrecarga da expectativa, a própria vigência da norma é afetada. Assim,
pode haver uma tensão entre estas duas dimensões, mas isto não é relevante e,
em princípio, não precisa ser levado em consideração.
A norma, dentro desta teoria, é uma seleção de expectativas. O dever-ser,
para o autor, é realidade, pois a frustração ou o acontecimento da expectativa é
relevante. Neste contexto, importante diferenciar as expectativas normativa e
cognitiva. A primeira implica uma falta de prontidão para lidar com a frustração das
expectativas. Já a expectativa cognitiva é mais maleável, pois, em princípio Alter ou
Ego estão dispostos, caso ocorra a frustração, a mudar sua expectativa.
Deste modo, na relação entre ser e dever-ser, todas as expectativas são
fáticas. Ou seja, o normativo não é contrário ao fático, ele é diferente do cognitivo.
Deve-se ressaltar que a expectativa pressupõe consciência, mas como na teoria
sistêmica a pessoa é compreendida como construção social, a expectativa é a que
foi transformada em comunicação. Se a expectativa ficou só na consciência, não é
levada em consideração pela sociedade, pois não foi levada para o plano da
comunicação.
Luhmann, ao contrário de Kelsen, pensa na adequabilidade social do Direito e,
com isso, acaba por reforçar o próprio sistema do Direito. Esta teoria, portanto,
deixa aberto o sistema do Direito, ao contrário da Teoria Pura do Direito, que
trouxe um fechamento sintático-semântico do sistema pela norma fundamental.
A norma, dentro deste conceito de Luhmann, é a seletividade dentre as várias
expectativas, pressupondo, no mínimo, a existência de Alter e Ego4. Ela só é
construída quando há uma estabilização contrafática de expectativas e
comportamentos, ou seja, quando as pessoas simplesmente não aceitam mais a
frustração de suas expectativas.
A norma jurídica é um programa condicional (se x, então y), sendo o enlace
entre ser e dever-ser. Apesar do caráter contrafático da norma, a satisfação ou não
da expectativa, em princípio, não é relevante, ou seja, não retira a validade da
norma. Mas é claro que, após um tempo, se a norma for considerada ridícula,
perigosa ou se não há sanção ao seu descumprimento, ela não pode mais ser
considerada norma, pois não possui mais validade social.
Para esta teoria, a indiferença de grande parte da sociedade para com os
sistemas jurídico e político é importante, pois facilita a própria estabilização destes
sistemas.
Analisando a heterorreferência5 do Direito, pode-se afirmar que sua função6 é
a estabilização de expectativas normativas e, secundariamente, a regulação das

4
Na teoria Luhmanniana, alter e ego são abstrações, pontos de seleção para a continuidade da comunicação, que servem para
explicar a dupla contingência da comunicação. Ou seja, ego não depende só do que ele vai dizer a alter, mas também de como
alter vai entender o que ego disse.
5
A heterorreferência é a prestação, que é lida internamente pelo outro sistema, que pode rejeitar ou aceitar a prestação. Ou seja, é
a relação do sistema com outro sistema
6
Na definição de Luhmann, função é a relação do sistema com a sociedade como um todo.

3
condutas. A função liga-se ao próprio conceito de Direito. Já em relação às
prestações (relação do sistema com os outros sistemas), o Direito traz a solução
dos conflitos de interesse, ou seja, o Direito pode resolver os conflitos de todos os
outros sistemas. Além disso, oferece regulamentações jurídicas, planificações para
os outros sistemas.
Neste contexto, a Constituição é acoplamento estrutural7 entre Política e
Direito, cuja relação é controlada pelas normas constitucionais. A Constituição
permite que o código lícito/ilícito se torne relevante para o sistema político e
também possibilita que o código poder/não-poder influencie o Direito. Com isso, os
outros sistemas precisam passar pelo crivo da Constituição para adquirir relevância
para o Direito e para a Política.
Ou seja, a Constituição permite atingir uma solução jurídica para um
problema de autorreferência8 política e vice-versa.
A Constituição, para Luhmann, surgiria como mecanismo de autonomia
operacional do Direito. Constrói-se uma hierarquização interna do Direito, estando
a Constituição no grau último de fechamento do sistema. Ou seja, a utilização do
código constitucional/inconstitucional impede a legislação ilimitada, determinando
limites para o sistema jurídico, ainda que sejam limites implícitos.
O sistema, com a Constituição, torna-se mais flexível, pois é possível uma
aprendizagem através de sistemas procedimentais previstos na própria
Constituição. Portanto, com a Constituição, aquisição evolucionária que permite
maior complexidade do sistema, o Direito não precisa mais utilizar-se do direito
natural para encontrar o seu fundamento último.
Pode-se afirmar, portanto, que o Direito atua na função de sistema
imunizador para a sociedade, já que permite resolver as situações imprevistas sem
um conhecimento completo dos fatores que levaram ao transtorno, ou seja, à
contradição e ao conflito. A estrutura paradoxal do Direito, assim como a de
qualquer outro sistema, é sem dúvida o que permite que permaneça sensível à
realidade e, portanto, desenvolva sua função. Não é possível dar fundamentos
definitivos ao Direito, pois com isso se perderia o próprio sentido da normatividade.
Por esta teoria, a justiça é uma referência sem qualquer valor operativo, pois
não é passível de transformar-se em programa. Se somente fosse possível a
elaboração de normas justas, e se toda decisão individual também devesse ser
justa, o sistema rapidamente perderia sua capacidade de se reproduzir. Com isso, o
valor da justiça é difundido no interior do sistema sob a forma de igualdade e não
há fundamentos ulteriores para a atividade jurídica.

REFERÊNCIAS
CORSI, Giancarlo at alii. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. México:
Universidade Iberoamericana, 1996.
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Universidade Iberoamericana, 2002.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, volumes I e II. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1983.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1996.

7
No acoplamento estrutural, os sistemas influenciam-se de modo bastante abrangente e permanente. Há uma irritação entre dois
sistemas, que necessitam do acoplamento estrutural para continuarem diferentes entre si.
8
Autorreferência é a relação do sistema consigo mesmo, é a reflexão.

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