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I – Relatório
II – Fundamentação
6. Assim, deve começar por se atender à letra do n.º 3 do artigo 39.º, que estabelece o
seguinte:
«Artigo 39.º
Decisão judicial
1 - O juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento
e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou
manter ou alterar a condenação.
4 - O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita
ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se
em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.
5 - Em caso de absolvição, o juiz indica porque não considera provados os factos ou porque
não constituem uma contraordenação» (destacado nosso).
C. Do mérito
10. Quanto ao direito ao recurso, prevê o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que «o
processo criminal assegura todas as garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso». É
nesse contexto que surge o princípio da proibição da reformatio in pejus.
Este princípio, embora não expressamente referido no texto da Constituição, encontra
ainda suporte constitucional na medida em que é reclamado pela plenitude das garantias de
defesa entre as quais se conta o exercício do direito ao recurso no domínio do Direito
Processual Penal, como este Tribunal já reconheceu no Acórdão n.º 499/97, da 1.ª Secção,
ponto 11 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos deste
Tribunal citados), ao referir:
«A proibição da reformatio in pejus justifica-se fundamentalmente pela proteção das garantias
de defesa (cf. parecer da Câmara Corporativa, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 180, 1968, pp. 103
e seguintes, no qual se discutem as várias posições doutrinárias sobre o fundamento jurídico da
reformatio in pejus; cf. ainda FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1974, p. 259;
CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Penal, 1967-1968, p. 36; e BETTIOL, Instituições de
Processo Penal, 1974, pp. 304-313). Na realidade, a proibição da reformatio in pejus foi referida no
pensamento jurídico a fundamentações de natureza diversa, desde as que são baseadas na
estrutura do processo penal (princípio do dispositivo para uns, estrutura do acusatório para
outros) até às que assentam em razões valorativas substanciais (iniquidade) ou, até, em razões
político-criminais (favor rei). A esse tipo de razões, que pretendiam justificar uma ampla proibição
da reformatio, sempre que apenas houvesse recurso de defesa ou no seu interesse, contrapôs
DELITALA os valores de justiça limitativos da proibição da reformatio quando não estivesse
apenas em causa impedir uma modificação dos critérios do já decidido, mas corrigir erros na
aplicação do direito (cf. parecer citado, loc. cit., e ainda GERMANO MARQUES DA SILVA,
Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 321).
Mas a conformação da proibição da reformatio in pejus, numa perspetiva jurídica que pondere
globalmente todos os fins do sistema, não deve, na realidade, considerar apenas uma perspetiva
de interesse do arguido, devendo, por isso, o âmbito da proibição ser delimitado na conexão entre
as garantias de defesa e a realização da justiça.
Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois
isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça. Mas tem
de ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não
pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da
recorribilidade (cf. BETTIOL, ob. cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação
de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do
direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não
ilimitado de controlo pelos tribunais superiores das decisões proferidas em 1.ª instância.
Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer
porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou de modo insuscetível a ser
contraditada pela defesa, quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito
ao recurso.
São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema jurídico, que exigem
a configuração de uma certa medida de proibição de reformatio in pejus (…)».
Assim, como se assinalou no Acórdão n.º 236/2007, 2.ª Secção, ponto 2.2., «a
jurisprudência mais relevante do Tribunal Constitucional sobre os fundamentos
constitucionais do princípio da proibição da reformatio in pejus» revela que estes «não se cingem
à consideração do direito de recurso, mas se baseiam, mais amplamente, na plenitude das garantias
de defesa que o processo criminal deve assegurar».
14. A norma objeto do presente recurso resulta da interpretação de preceitos legais que
integram o âmbito do chamado Direito da Mera Ordenação Social ou Direito das
Contraordenações. Constituindo um instrumento de intervenção administrativa de natureza
sancionatória, no sentido de garantir maior eficácia à ação da Administração, o Direito das
Contraordenações surge como um ramo de direito sancionatório, autónomo do Direito
Penal, mas que com ele mantém profundas ligações, que se materializam na existência de
múltiplas soluções normativas comuns criadas no espaço da dogmática penal e que se
fundamentam no facto de, tal como aquele, fazer parte do «direito sancionatório de carácter
punitivo» que tem aquele ramo do direito como paradigma.
De entre os processos sancionatórios, o processo contraordenacional é um dos que mais
se aproxima do processo criminal ao ponto de o Direito Processual Penal constituir, no plano
adjetivo, direito subsidiário no seu âmbito (artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82).
Não obstante esta aproximação, não pode confundir-se o processo criminal com o
procedimento contraordenacional, até pela natureza distinta de cada um desses regimes e das
respetivas sanções. Efetivamente, sendo as contraordenações medidas sancionatórias de
carácter não penal, não se justifica a aplicabilidade direta e global aos processos
contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal.
Um tal entendimento resulta, aliás, da jurisprudência constitucional (vejam-se, a
propósito, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 344/93, da 1.ª Secção, ponto II. 1.,
659/2006, 2.ª Secção, ponto 2.3., 336/2008, 2.ª Secção, e 487/2009, 2.ª Secção, ponto 2.1.).
A título de mero exemplo, poder-se-á citar o Acórdão n.º 612/2014 (3.ª Secção), ponto 3,
que, fazendo uma síntese sobre a jurisprudência constitucional em matéria
contraordenacional, refere o seguinte:
«Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que
não tem sofrido alterações ao longo de décadas, “são diferentes (…) os
princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem
entre nós a legislação penal e a legislação das contraordenações”, porque,
como expressivamente se afirmou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24
de julho, que pela primeira vez institui o regime geral do ilícito de mera ordenação
social, “entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se
trata apenas de uma diferença de quantidade ou meramente formal, mas de
uma diferença de natureza. A contraordenação ‘é um aliud que se diferencia
qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e a reações que lhe
cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético jurídico, não estando,
portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal’ (Eduardo Correia,
‘Direito penal e direito de mera ordenação social’, in Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra, 1973, p. 268)”.
E é precisamente em razão dessa diferença, que necessariamente
assume um alcance “jurídico-pragmático” (Acórdão n.º 344/93) e se projeta em
diversos aspetos de regime adjetivo e substantivo, que o Tribunal
Constitucional, reconhecendo nas infrações contraordenacionais uma “forma
autónoma de ilicitude”, não julgou inconstitucionais, entre outras, normas que
atribuem às autoridades administrativas competência para organizar e instruir
processos de contraordenação (Acórdão n.º 158/92); norma interpretada no sentido
da inaplicabilidade das causas de impedimento previstas no artigo 39.º, n.º 1, e 40.º do
CPP, a casos em que o autor da decisão de um processo de contraordenação laboral
confirmou anteriormente o auto de notícia levantado ao destinatário dessa decisão
(Acórdão n.º 581/2004); normas que, no pressuposto da admissibilidade da figura do
assistente em processos desta natureza, não lhe reconhecem legitimidade para recorrer
(Acórdão n.º 344/93); normas que, em dada interpretação, impõem ao notificado, na
fase administrativa, o ónus de logo suscitar a irregularidade ou a nulidade da
notificação, caso entenda que o lapso material de que a mesma padece prejudica o seu
direito de defesa (Acórdão n.º 278/99); interpretação segundo a qual, sendo notificado
o mandatário do dia designado para leitura da decisão da impugnação judicial em
processo contraordenacional, o prazo para recorrer se conta a partir da data da leitura
da decisão em audiência, esteja ou não presente o arguido ou o seu mandatário
(Acórdão n.º 77/2005); normas interpretadas no sentido de não imporem à autoridade
administrativa o dever de pronúncia sobre as nulidades invocadas na defesa do arguido
(Acórdão n.º 325/2005); norma interpretada no sentido de não permitir recurso para
o Tribunal da Relação de despacho de indeferimento de arguição de nulidade
processual, proferido posteriormente à decisão de rejeição de impugnação judicial de
decisão administrativa sancionadora de contraordenação (Acórdão n.º 659/2006);
normas interpretadas no sentido de que a fundamentação por remissão prevista no
artigo 125.º, n.º 1, do CPA, é aplicável à decisão sancionatória de ilícito de mera
ordenação social (Acórdãos nºs, 50/2003, 62/2003, 249/2003, 469/2003 e 492/2003);
normas que consagram uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um
dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário,
para efeitos de a responsabilizar pelas contraordenações praticadas por estes últimos
(Acórdão n.º 45/2014).
Em todas essas decisões se considerou inaplicável, atenta a diferente
natureza do ilícito contraordenacional, o princípio constitucional de direito
criminal ou processual criminal invocado em fundamento do reclamado juízo
de inconstitucionalidade.
(…)
[U]ma contraordenação não é equiparável, quer na perspetiva do bem
tutelado, quer na perspetiva das reações sancionatórias que determina, à
prática de um crime; neste último caso, e como é sabido, está em causa a ofensa de
bens e valores tidos como estruturantes da sociedade e a notícia da prática de um
crime desencadeia, pela sua gravidade, um complexo processo com vista a determinar
o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas que, sendo de prisão ou
multa, assumem sempre um sentido de retribuição ou expiação ética e uma finalidade
ressocializadora cuja realização pode implicar, no limite, a privação da liberdade do
arguido; nada disso se passa com as contraordenações que, sendo ilícitos, não
comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e
dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo
de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de
alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial.
Por isso, acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e
defesa do arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), quer
na fase judicial (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), justifica-se que o legislador, na
ponderação dos valores em presença, opte por um padrão de simplicidade e
celeridade processuais (…)» (destacados nossos).
17. O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que, para defesa dos
direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil
contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5). Ao assegurar o «acesso aos tribunais, para
defesa dos seus direitos», a primeira parte do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição consagra a
garantia fundamental que se traduz em confiar a tutela dos direitos individuais àqueles órgãos
de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 205.º). No
domínio da ação administrativa, onde se insere o Direito Contraordenacional, a Constituição
garante aos administrados o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos seus direitos
ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, «a impugnação de quaisquer atos
administrativos que os lesem, independentemente da sua forma», no artigo 268.º, n.º 4.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à
tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma
tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no
sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão
jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação
daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar
mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido
de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes
não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à
complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da
sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas
de defesa expeditas.
Contudo, tem sido também entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que,
embora esteja vinculado a criar meios jurisdicionais de tutela efetiva dos direitos e interesses
ofendidos dos cidadãos, «o legislador não deixa de ser livre de os conformar, não sendo de
todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que
a identidade ou diversidade das situações em presença há-de resultar de uma perspetiva global
que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre
si» (cfr. Acórdão n.º 63/2003, 1.ª Secção, ponto 6). No que diz respeito especificamente às
vinculações resultantes do artigo 268.º, n.º 4, no Acórdão n.º 329/2013, 3.ª Secção, ponto 7,
o Tribunal Constitucional refere que, «embora subordinado a um imperativo de efetividade,
na vertente da garantia que agora está em consideração – a impugnação de quaisquer atos
administrativos que os (aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados)
lesem –, o que decorre do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição é o dever de conformar o
processo impugnatório de tal modo que seja idóneo a apreciar a pretensão de invalidade (ou
de inexistência jurídica) incidente sobre as decisões dos órgãos da Administração (ou dotados
de poderes materialmente administrativos) que, ao abrigo de normas de direito público,
visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta».
20. Aceita-se que face à ausência de proibição da reformatio in pejus, a recorrente fica
obrigada a escolher criteriosamente a sua estratégia processual, de forma a maximizar as
hipóteses de vencer e de reduzir o risco de ver perigar as suas pretensões. Daqui resulta um
condicionamento do seu direito fundamental de acesso aos tribunais que deve ser balanceado
pelos interesses públicos em presença. Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º
282/X/4.ª, que deu origem à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, refere-se que o seu
objetivo passa pela «atribuição de competências à Autoridade para as Condições de Trabalho
(ACT) e aos serviços do Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) para qualquer um
deles poder intervir na identificação de situações de dissimulação de contrato de trabalho, de
forma a prevenir e a desincentivar o incumprimento dos deveres sociais e contributivos das
empresas e a garantir o direito dos trabalhadores à proteção conferida pelo sistema de
segurança social». Pretende-se, por isso que sejam «criados os mecanismos e as condições
que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem,
designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente eficaz e preventiva, no
combate à utilização abusiva dos “falsos recibos verdes”». A ausência de proibição de
reformatio in pejus pode ser enquadrada neste contexto.
Analisando a esta luz a norma que permite o agravamento da coima decorrente de
contraordenação laboral e de segurança social em sede de impugnação judicial interposta
pelo arguido em sua defesa, interpretativamente extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º
107/2009, de 14 de setembro, pode considerar-se que esta é uma medida necessária e
adequada a garantir a tutela de bens jurídicos com dignidade constitucional (tutela dos
direitos dos trabalhadores e garantia do sistema de segurança social), bem como a celeridade
e eficiência da reação sancionatória no caso de lesão desses bens jurídicos tutelados. Assim,
tal norma não pode ser entendida como uma restrição desproporcional ao direito de
impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória, à luz dos critérios previstos no
artigo 18.º, n.º 2, da Constituição
21. A recorrente sustenta, ainda, que a norma cuja constitucionalidade se sindica viola o
princípio da igualdade, porquanto, no seu entender, «permite ao julgador um tratamento
diverso para situações de facto iguais» e «não existe igualdade de armas», já que «ao aplicar a
norma sem ter em conta as especificidades e diferenças em cada caso, sem analisá-los em
pormenor, viola o princípio da igualdade» (fls. 450).
22. Como é sabido, o princípio da igualdade «é um dos principais eixos estruturantes do
regime constitucional dos direitos fundamentais – um princípio estruturante do Estado de
Direito democrático e do sistema constitucional da República Portuguesa» (cfr. Acórdão n.º
526/2016, ponto 5), que «postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente
afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate
diferentemente o que for essencialmente diferente» (cfr. Acórdão n.º 437/2006, ponto 7).
Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos –
particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de
facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata
medida dessa desigualdade.
O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional
portuguesa, as seguintes dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer
diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de
valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para
situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer
diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas
ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a
desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de
desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra
Editora, 2007, pág. 339).
O parâmetro que o recorrente convoca é o princípio da igualdade na sua dimensão de
proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição), pois não é invocada uma das
características que poderiam justificar a aplicação do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.
24. Ainda no que diz respeito à conformidade desta solução normativa com o parâmetro
constitucional da igualdade poderia suscitar-se uma questão diferente – que a recorrente não
colocou –: a de saber se estamos perante uma solução legal inconstitucionalmente
diferenciadora, na medida em que afasta a regra geral prevista para o processo penal ou no
artigo 72.º-A do regime geral das contraordenações.
Quanto à questão da igualdade entre processo criminal e contraordenacional, cumpre
começar por notar que as características híbridas do processo de contraordenações,
designadamente da sua fase judicial, tornam questionável qual o plano teórico em que será
pertinente estabelecer uma comparação. A circunstância de impugnação se dirigir contra uma
decisão condenatória já proferida pela autoridade administrativa convida, numa primeira
aproximação, à comparação com o regime de recursos em processo penal, designadamente
a contida no artigo 409.º do CPP (que proíbe a reformatio in pejus). Não é menos certo, porém,
que, referindo-se a norma ao conteúdo da decisão judicial que conhece da impugnação da
condenação proferida pela autoridade administrativa, e concretamente à possibilidade de
agravamento da coima, a comparação com o regime estabelecido no processo penal que
ocorreria estabelecer deveria surgir antes com as normas que impõem limites à condenação
criminal, como por exemplo os decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 1.º, alínea
f), 358.º, 359º e 379.º do CPP. Na verdade, como tem sido entendido o «carácter pleno da
atividade judicativa exercida pelo tribunal nesta fase judicial aproxima a sua intervenção
muito mais do julgamento penal em 1.ª instância do que do recurso penal, que, no nosso
sistema processual penal, assume uma natureza de mero remédio jurídico» (Nuno Brandão,
“O controlo judicial da decisão administrativa condenatória manifestamente infundada no
processo contraordenacional”, cit., p. 321; sobre a questão do âmbito dos poderes de
conhecimento do tribunal, com referência às diversas posições doutrinárias existentes v.
Marta Borges Campos, “Os poderes de cognição do Tribunal na fase de impugnação judicial
do processo de contraordenação”, in Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal,
Fernanda Palma et al. (coord.), Coimbra: Almedina, 2018, pp. 401 e ss.].
Seja como for, o que parece certo é que qualquer comparação a empreender com o
processo penal revelar-se-ia sempre uma tarefa vazia de consequências na verificação da
conformidade constitucional da norma em juízo.
Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que não tem sofrido
alterações ao longo de décadas, são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais
e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e processual penal e a legislação
das contraordenações. Já se referiu que o processo penal e o processo contraordenacional
têm diferenças de fundo, não se justificando, que sejam aplicáveis ao processo
contraordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito
processual penal. Acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e defesa do
arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da Constituição), quer na fase judicial
(artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), justifica-se que o legislador, na ponderação dos valores
em presença, opte por um padrão de simplicidade e celeridade processuais.
Como se refere no Acórdão n.º 595/2012, 3.ª Secção, ponto 5, «o Tribunal também tem
sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo
contraordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem
observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será
chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que
lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.ºs 469/97 e 278/99)».
Constitucionalmente relevante será – isso sim –, que alcançada a «fase jurisdicional», na
sequência da impugnação perante o tribunal da decisão sancionatória administrativa, o
processo contraordenacional goze das garantias constitucionais dos processos judiciais,
quer diretamente referidas no artigo 20.º da Constituição (direito a decisão em prazo razoável
e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito
democrático (artigo 2.º da Constituição). Ora, como decorre do que que já acima ficou
referido (pontos 16 a 19), a norma em análise não despreza nenhuma das referidas garantias.
26. Assim, não pode concluir-se por um juízo de inconstitucionalidade por ofensa do
princípio da igualdade, correspondendo a norma sindicada a uma diferenciação de regimes
constitucionalmente admissível. Nestes termos, conclui-se que a norma em apreciação não
comporta uma violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
27. O Ministério Público, nas suas alegações, levanta a questão de uma eventual violação
do princípio da legalidade. Invoca que, face à consagração da proibição da reformatio in pejus
no artigo 79.º-A, n.º 1, do regime geral das contraordenações, este poderia ser tido como
aplicável no âmbito do regime das contraordenações laborais e de segurança social, por se
tratar de um regime supletivo face àquele. Assim, «poderia entender-se que a interpretação
que considera que a alteração da condenação permite agravar a sanção viola o princípio da
legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição), aceitando que este princípio se aplica em
matéria processual (Acórdão n.º 324/2013) e que, ainda que “não com o mesmo rigor” ou
“com menor grau de exigência”, também vigora em matéria contraordenacional (Acórdão
n.º 201/2014)».
Não se pode acompanhar este raciocínio.
Na metódica de há muito adotada pelo Tribunal Constitucional (desde o Acórdão n.º
110/2007), o princípio da legalidade, na dimensão da tipicidade penal, operando como limite
constitucional à admissibilidade do resultado interpretativo a que se chegou no processo de
interpretação, obriga o intérprete a excluir aqueles resultados que não tenham na letra da lei
um mínimo de correspondência verbal. Ora, no caso da norma em análise, a letra do artigo
39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, comporta a interpretação no sentido de
que a proibição da reformatio in pejus é afastada no domínio das contraordenações laborais.
Efetivamente, o preceito estabelece a possibilidade de o despacho «manter ou alterar a
condenação», o que comporta no sentido das suas palavras a possibilidade de alteração por
agravamento da coima aplicada – afastando a aplicação supletiva do regime geral. Também
a doutrina admite esta solução como interpretativamente extraível da letra da lei.
Neste contexto, perante a problemática de saber se a proibição da reformatio in pejus vigora
especificamente no regime das contraordenações laborais – confrontando o n.º 3 do artigo
39.º da Lei n.º 107/2009 com o facto de o regime geral das contraordenações, no seu artigo
72.º-A, proibir a reformatio in pejus – JOÃO SOARES RIBEIRO (Contraordenações Laborais:
regime jurídico, 3.ª edição, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 89 e 94) defende que «se nesta Lei n.º
107/2009, nenhuma referência é feita a essa proibição designadamente em sede da primeira
instância, isso só pode significar que ela desaparece», levando à conclusão de que, em face de
impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, a coima aplicada poderá ser
agravada. Para este AUTOR, esta conclusão sai reforçada pelo facto de ter constado
expressamente da alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do regime das contraordenações da
Segurança Social (Decreto-Lei n.º 64/89, de 25 de fevereiro), ora revogada, uma norma que
precisamente determinava que não vigorava aí a proibição da reformatio in pejus.
Assim, ainda que se conhecesse da conformidade da norma com o princípio da legalidade
neste contexto, não estaria em causa uma violação deste princípio, pois não se pode entender
que a norma em causa não tenha a mínima correspondência com o texto legal.
Atente-se, por último, que não cabe ao Tribunal Constitucional definir o direito aplicável
ao caso, mas apenas verificar a conformidade constitucional de normas que tenham servido
de ratio decidendi da decisão recorrida.
28. Conclui-se, assim, que a norma que permite o agravamento da coima decorrente de
contraordenação laboral em sede de impugnação judicial interposta pelo arguido em sua
defesa, extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, não viola
nenhum dos parâmetros constitucionais alegados.
III – Decisão
Lisboa, 12 de março de 2019 - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Claudio
Monteiro - José Teles Pereira - Manuel da Costa Andrade