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ACÓRDÃO Nº 141/20191

Processo n.º 550/2018


1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. No âmbito de um processo contraordenacional, a Autoridade para as Condições de


Trabalho condenou a arguida A., aqui recorrente, pela prática de i) uma contraordenação,
prevista e punida pelo artigo 129.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do Código de Trabalho, na coima
parcelar de 122 UC’s, ii) uma contraordenação, prevista e punida pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 4,
do Código de Trabalho (na versão então vigente), na coima parcelar de 130 UC’s e, em
cúmulo jurídico, na coima única € 15.300,00 (150 UC’s).
Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão, pedindo a revogação da
coima aplicada.
Realizada audiência, por sentença proferida em 30 de maio de 2017, o Tribunal Judicial
da Comarca de Faro considerou que, efetivamente, a arguida havia praticado a infração
prevista e punida pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, e 554.º, n.º 4, alínea e), 2.ª parte (dolo), e n.º 8,
do Código do Trabalho, sendo a mesma, no entanto, punível com coima de 300 a 600 UC’s.
Atendendo a que a autoridade administrativa condenara a arguida, no que respeita à infração
prevista no artigo 29.º do Código de Trabalho, na coima parcelar de 130 UC’s,
e considerando que «nada obsta a que o Tribunal profira decisão em medida superior à
adotada pela autoridade administrativa», foi a impugnação apresentada julgada improcedente,
por não provada, e, em consequência, a arguida condenada, como autora material de (i) uma
contraordenação, prevista e punida pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Trabalho, na
coima parcelar de 310 UC’s, (ii) uma contraordenação, prevista e punida pelo artigo 129.º,
n.º 1, alínea d), do Código de Trabalho na coima parcelar de € 100 UC’s e, em cúmulo jurídico,
na coima única de e € 35.700,00 (350 UC’s).
Desta decisão, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, tendo sido
suscitada a inconstitucionalidade do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro,
por violação dos princípios da proibição da reformatio in pejus e igualdade, ínsitos nos artigos
32.º, n.º 1, e 13.º da Constituição da República Portuguesa. Por acórdão de 8 de março de
2018, considerando que nas contraordenações laborais não vigora a proibição da reformatio in
pejus, aquele tribunal viria a negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2. Nesta sequência, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao


abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), requerendo a apreciação da constitucionalidade das normas
constantes dos artigos 39.º, n.º 3, e 51.º, n.º 2, alínea a), ambos da Lei n.º 107/2009, de 14 de
setembro, quando interpretadas no sentido de permitir que, em caso de impugnação judicial
pelo arguido da decisão da autoridade administrativa, o tribunal possa alterar a condenação,
agravando a coima aplicada por aquela entidade.

3. Prosseguindo os autos para alegações apenas quanto à norma extraída do n.º 3 do


artigo 39.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro – por ser a única questão de
constitucionalidade que foi suscitada perante o tribunal a quo no momento processualmente
adequado –, a recorrente apresentou as seguintes conclusões:

«1. A Recorrente impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do


Trabalho, que a condenou no pagamento de uma coima no montante de 150 UC, no valor de
15.300,00€, no âmbito do processo de contraordenação, pela prática de uma contraordenação
p.p. pelo artigo 129.º, n.º 1, alínea ad), e 2, do Código do Trabalho e uma contraordenação p.p.
pelo artigo 29.º, n.º 1 e 4, do Código do Trabalho.
2. A Recorrente não atuou com dolo nem sequer com negligência nem praticou qualquer
infração.
3. Para a determinação da coima e respetivo montante, a Autoridade para as Condições do
Trabalho não teve em linha de conta a situação económica da Impugnante.
4. Assim como não ponderou eventual benefício económico que a Impugnante possa ter
retirado com a alegada infração.
5. Não se conformando, a Recorrente impugnou judicialmente tal decisão.
6. Malgrado, o Tribunal Judicial da Comarca de Faro veio a proceder à alteração da
qualificação jurídica dos factos e à alteração da medida da pena.
7. Pelo que Recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, arguindo a
inconstitucionalidade do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, por violação
do princípio da proibição da reformatio in pejus, ínsito no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
8. O artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, dispõe que, em caso de
impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, o Tribunal possa alterar a
condenação.
9. Assim, poderá o arguido, ver em muito agravada a coima aplicada no âmbito da decisão
que venha a ser proferida pela 1ª Instância de Recurso, como se verificou no caso sub iudice.
10. O princípio da proibição da reformatio in pejus, foi pensado como um direito geral do
processo penal, enquanto direito de defesa e em nome do direito a um processo justo.
11. Verificando-se inibidora do exercício do direito de recurso a possibilidade de, o arguido
ver, a final, a sua posição agravada com uma condenação mais pesada do que a inicial.
12. Como princípio geral do processo criminal, encontra a sua base constitucional na
conjugação da plenitude das garantias de defesa, do princípio do acusatório e das exigências do
processo equitativo.
13. O direito de mera ordenação social é um direito penal secundário o qual, não obstante
ter um regime especial, rege-se também subsidiariamente pelo direito penal substantivo.
14. Pretende-se pois a aplicação ao caso sub iudice do princípio da proibição da reformatio in
pejus, na medida em que o facto de ser possível o agravamento da coima em sede de recurso de
impugnação judicial interposto pelo arguido em sua defesa, viola o seu direito à defesa, na
modalidade de direito ao recurso, na medida em que desincentiva o arguido a recorrer
conformando-se com a decisão condenatória, sem que tal possa justificar-se com a salvaguarda
de outros interesses de outros interesses constitucionalmente protegidos.
15. Tendo em conta tudo o que acima foi referido e, bem assim, o Principio da Justa Medida,
resulta que a aplicação do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, é excessiva e desproporcionada
para alcançar os fins pretendidos. No caso, a sanção aplicada foi a do dobro da coima aplicada
pela autoridade administrativa, mas a norma permite.
16. O artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, permite tal amplitude de
juízo por parte do Tribunal de primeira instância, que viola o princípio da proibição do livre
arbítrio, ínsito no artigo 13.º da CRP – Princípio da Igualdade.
17. Assim é, pois o artigo 39.º, n.º 3, da Lei 107/2009, permite ao julgador um tratamento
diverso para situações de facto iguais.
18. Com se verifica nos presentes autos, em que para os mesmos factos, o Tribunal de 1.ª
instância vem determinar a respetiva alteração da qualificação jurídica e, consequentemente,
alteração substancial da coima aplicada.
19. Tal como a desigualdade proporcionada pela norma em apreço viola, no entender da
Recorrente, o princípio da igualdade perante a lei, ínsito no artigo 13.º da CRP.
20. Acresce que, ao aplicar a norma sem ter em conta as especificidades e diferenças em cada
caso, sem analisá-los em pormenor, viola o princípio da igualdade.
Termos em que o recurso merece provimento, com as legais consequências,
designadamente a declaração de inconstitucionalidade do entendimento normativo
em referência».

4. Notificado, o Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído do


seguinte modo:
«1. A norma extraída do n.º 3 do artigo 39.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de agosto, ao dispor que,
em caso de impugnação judicial pelo arguido da decisão da autoridade administrativa, o tribunal
pode alterar a condenação, agravando a coima aplicada por aquela entidade, não viola os artigos
2º, 13º e 32º, nº 1, da Constituição, não sendo por isso inconstitucional.
2.Termos em que deve ser negado provimento ao recurso».

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

5. De acordo com o processado, a questão de constitucionalidade a decidir nos presentes


autos reporta-se à norma extraída do n.º 3 do artigo 39.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de
setembro, que estabelece o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de
segurança social, quando interpretada no sentido de permitir que, em caso de impugnação
judicial pelo arguido da decisão da autoridade administrativa, o tribunal possa alterar a
condenação, agravando a coima aplicada por aquela entidade.
Efetivamente, embora a recorrente, no recurso de constitucionalidade, requeira a
apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 39.º, n.º 3, e 51.º, n.º 2,
alínea a), da Lei n.º 107/2009, o despacho que determinou a produção de alegações limitou
a questão a conhecer à norma extraída do n.º 3 do artigo 39.º, por ser a única questão de
constitucionalidade que foi suscitada perante o tribunal a quo no momento processualmente
adequado. Esta delimitação do objeto do recurso não foi contestada pela recorrente.

6. Assim, deve começar por se atender à letra do n.º 3 do artigo 39.º, que estabelece o
seguinte:
«Artigo 39.º
Decisão judicial
1 - O juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento
e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou
manter ou alterar a condenação.
4 - O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita
ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se
em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.
5 - Em caso de absolvição, o juiz indica porque não considera provados os factos ou porque
não constituem uma contraordenação» (destacado nosso).

7. O objeto do presente processo de fiscalização concreta da constitucionalidade é,


assim, a norma que permite o agravamento da coima decorrente de contraordenação laboral
em sede de impugnação judicial interposta pelo arguido em sua defesa, interpretativamente
extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
A recorrente sustenta a sua inconstitucionalidade por violação dos princípios da
proibição da reformatio in pejus e igualdade, ínsitos nos artigos 32.º, n.º 1, e 13.º da Constituição
da República Portuguesa. Considera, ainda, que a possibilidade de agravamento da coima em
sede de recurso «viola o seu direito à defesa, na modalidade de direito ao recurso» e que a
sua aplicação «é excessiva e desproporcionada para alcançar os fins pretendidos».

C. Do mérito

8. A recorrente sustenta que a norma que permite o agravamento da coima decorrente


de contraordenação laboral e de segurança social em sede de impugnação judicial interposta
pelo arguido em sua defesa, resultante do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de
setembro, é inconstitucional por ser desconforme com os princípios da proibição da reformatio
in pejus e da igualdade (artigos 32.º, n.º 1, e 13.º da Constituição), bem como que a
possibilidade de agravamento da coima em sede de recurso «viola o seu direito à defesa, na
modalidade de direito ao recurso» e que a sua aplicação «é excessiva e desproporcionada para
alcançar os fins pretendidos».
Vejamos então.

i) Da violação do direito ao recurso do arguido e do princípio da proibição da


reformatio in pejus
9. Cumpre averiguar se a norma constante do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de
14 de setembro, na interpretação segundo a qual é possível o agravamento da coima em sede
de impugnação judicial interposta pelo arguido em sua defesa, é inconstitucional por violação
do «direito à defesa, na modalidade de direito ao recurso, na medida em que desincentiva o
arguido a recorrer (…) conformando-se com a decisão condenatória, sem que tal possa
justificar-se com a salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos», tal
como alegado pela recorrente.
No que respeita à violação do direito à defesa, a argumentação da recorrente assenta na
invocação da incongruência de um sistema que permite que um arguido em processos de
contraordenação («um direito penal secundário» que, «não obstante ter um regime especial,
rege-se também subsidiariamente pelo direito penal substantivo») veja, na sequência de uma
impugnação judicial, «a sua posição agravada com uma condenação mais pesada do que a
inicial», o que não é admitido no processo criminal. Na tese da recorrente, dispondo o ilícito
de mera ordenação social de natureza similar à do ilícito criminal, deve valer quanto a ele um
quadro de princípios e garantias constitucionais e legais idênticos aos que são próprios do
direito e do processo criminal.
Todavia, como a seguir se verá, não tem razão.

10. Quanto ao direito ao recurso, prevê o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que «o
processo criminal assegura todas as garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso». É
nesse contexto que surge o princípio da proibição da reformatio in pejus.
Este princípio, embora não expressamente referido no texto da Constituição, encontra
ainda suporte constitucional na medida em que é reclamado pela plenitude das garantias de
defesa entre as quais se conta o exercício do direito ao recurso no domínio do Direito
Processual Penal, como este Tribunal já reconheceu no Acórdão n.º 499/97, da 1.ª Secção,
ponto 11 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos deste
Tribunal citados), ao referir:
«A proibição da reformatio in pejus justifica-se fundamentalmente pela proteção das garantias
de defesa (cf. parecer da Câmara Corporativa, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 180, 1968, pp. 103
e seguintes, no qual se discutem as várias posições doutrinárias sobre o fundamento jurídico da
reformatio in pejus; cf. ainda FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1974, p. 259;
CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Penal, 1967-1968, p. 36; e BETTIOL, Instituições de
Processo Penal, 1974, pp. 304-313). Na realidade, a proibição da reformatio in pejus foi referida no
pensamento jurídico a fundamentações de natureza diversa, desde as que são baseadas na
estrutura do processo penal (princípio do dispositivo para uns, estrutura do acusatório para
outros) até às que assentam em razões valorativas substanciais (iniquidade) ou, até, em razões
político-criminais (favor rei). A esse tipo de razões, que pretendiam justificar uma ampla proibição
da reformatio, sempre que apenas houvesse recurso de defesa ou no seu interesse, contrapôs
DELITALA os valores de justiça limitativos da proibição da reformatio quando não estivesse
apenas em causa impedir uma modificação dos critérios do já decidido, mas corrigir erros na
aplicação do direito (cf. parecer citado, loc. cit., e ainda GERMANO MARQUES DA SILVA,
Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 321).
Mas a conformação da proibição da reformatio in pejus, numa perspetiva jurídica que pondere
globalmente todos os fins do sistema, não deve, na realidade, considerar apenas uma perspetiva
de interesse do arguido, devendo, por isso, o âmbito da proibição ser delimitado na conexão entre
as garantias de defesa e a realização da justiça.
Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois
isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça. Mas tem
de ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não
pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da
recorribilidade (cf. BETTIOL, ob. cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação
de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do
direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não
ilimitado de controlo pelos tribunais superiores das decisões proferidas em 1.ª instância.
Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer
porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou de modo insuscetível a ser
contraditada pela defesa, quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito
ao recurso.
São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema jurídico, que exigem
a configuração de uma certa medida de proibição de reformatio in pejus (…)».

Assim, como se assinalou no Acórdão n.º 236/2007, 2.ª Secção, ponto 2.2., «a
jurisprudência mais relevante do Tribunal Constitucional sobre os fundamentos
constitucionais do princípio da proibição da reformatio in pejus» revela que estes «não se cingem
à consideração do direito de recurso, mas se baseiam, mais amplamente, na plenitude das garantias
de defesa que o processo criminal deve assegurar».

11. Já no plano infraconstitucional, a proibição da reformatio in pejus encontra consagração


quer no Direito Processual Penal, quer no Direito de Mera Ordenação Social.
No âmbito do processo penal, a proibição da reformatio in pejus encontra-se prevista no
artigo 409.º do Código de Processo Penal, entendendo-se que esta é uma medida protetora
do direito de recurso em favor do arguido, visando evitar que neste tipo de impugnação o
arguido possa ser punido com sanções mais graves, o que, a acontecer condicionaria de modo
intolerável o exercício do direito ao recurso.
No que respeita ao domínio do ilícito de mera ordenação social, o regime geral das
contraordenações, instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não continha
na sua redação inicial norma semelhante. Só com as alterações introduzidas ao aludido regime
pelo Decreto-lei n.º 244/95, de 14 de setembro, foi aditado o artigo 72.º-A que, sob a epígrafe
«Proibição da reformatio in pejus», que dispõe, no n.º 1 que «[i]mpugnada a decisão da
autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou
no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de
qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes», acrescentando o n.º 2 que tal «não
prejudica a possibilidade de agravamento do montante da coima, se a situação económica e
financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível».

12. Referindo-se à proibição de reformatio in pejus consagrada no regime geral das


contraordenações, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que esta «é
“inconveniente”, “injustificável” e tem “efeitos perversos”, tais como aumenta o número de
recursos independentemente da gravidade das sanções e torna os recursos economicamente
compensadores sempre que estejam em causa sanções muito elevadas, por via do diferimento
no tempo do respetivo pagamento. […] Pior ainda: a regra da proibição da reformatio in pejus
contraria a própria natureza “provisória” da decisão administrativa e, portanto, também, a
natureza da impugnação judicial, que consubstancia uma verdadeira “transferência da
questão do domínio da administração para o juiz”» (cfr., Comentário do Regime Geral das
Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção europeia dos Direitos do Homem,
Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, pp. 294-295, onde o autor faz ainda uma síntese
das diversas críticas apontadas pela doutrina a este regime, com referência a outros autores
com idênticas posições).
Também ALEXANDRA VILELA (cfr., O Direito de Mera Ordenação Social: entre a Ideia de
“Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 485)
defende que não se justifica a proibição de reformatio in pejus no âmbito do Direito de Mera
Ordenação Social, pelo menos nos casos em que a impugnação judicial seja decidida em
audiência, referindo, a este respeito o seguinte:
«[…] o princípio da proibição da reformatio in pejus não faz sentido quando o tribunal decide
o recurso em audiência, pois, nesse momento, os autos já foram “examinados à lupa”, primeiro
pela administração, segundo pelo MP e, em último lugar, pelo juiz. Assim sendo, se, apesar de
tudo, prosseguiu sem que o MP e o arguido fizessem uso dos seus poderes de, respetivamente,
retirar a acusação […] e de retirada do recurso […], de duas uma: ou o arguido acredita no bem
fundado da sua pretensão, coisa que nenhuma das três entidades que analisou os autos conseguiu
enxergar, ou então aquele encontra-se disposto a arriscar tudo, pois no fundo nada perde.
Dentro deste cenário, cremos que não se justifica que o arguido, que ainda assim, pretenda
ver a sua impugnação judicial decidida em audiência de julgamento, se encontre respaldado pelo
princípio da proibição de reformatio in pejus».
Para esta AUTORA, no momento da impugnação judicial, «estamos perante um
processo novo, desencadeado e mantido até às últimas consequências pelo arguido e onde a
proibição da reformatio in pejus é destituída de sentido. Em consequência, não devia valer
quando a decisão judicial é tomada no âmbito de um processo com audiência principal (…)».
Também para FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, a proibição da
reformatio in pejus acarreta sérios inconvenientes que devem ser ponderados, como o aumento
do número de recursos interpostos independentemente da gravidade da sanção, o que em si
mesmo contraria o caráter de simplificação e celeridade do direito de mera ordenação e
sobrecarrega os tribunais, e torna os recursos economicamente compensadores, sempre que
estejam em causa sanções elevadas, por via do diferimento no tempo do respetivo pagamento
(“O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade”, in Direito
Penal Económico e Europeu. Textos Doutrinários, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 264
e 265).

Em sentido divergente, sustentando a proibição da reformatio in pejus no processo


contraordenacional, enquanto decorrência do princípio constitucional da tutela jurisdicional
efetiva, pronunciaram-se, no entanto, outros autores [v. Nuno Brandão, “O controlo judicial
da decisão administrativa condenatória manifestamente infundada no processo
contraordenacional”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.
94, I, 2018, pp. 309-332, p. 313; José Lobo Moutinho, “A reformatio in pejus no processo de
contraordenações”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno Espinosa Gomes da Silva, Lisboa:
Universidade Católica Editora, pp. 421-452, pp 434 e ss.; José Lobo Moutinho/ Pedro Garcia
Marques, Lei da Concorrência: Comentário Conimbricense, Manuel Porto et al. (coord.), Coimbra:
Almedina, 2013, em anotação ao artigo 88.º, pp. 843 e ss.].

13. Em momento anterior ao da consagração da regra da proibição de reformatio in pejus


no regime geral das contraordenações, um conjunto de regimes contraordenacionais
específicos aplicáveis em determinadas áreas sectoriais afastava expressamente essa
proibição. Um exemplo de uma dessas situações pode ser encontrado no regime aplicável às
contraordenações na área da segurança social, contante do Decreto-Lei n.º 64/89, de 25 de
fevereiro, – entretanto revogado pelo artigo 64.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro –,
que determinava, no seu artigo 31.º, n.º 2, alínea c), que neste âmbito «não [vigorava] a
proibição da reformatio in pejus».
Mesmo após a entrada em vigor da alteração ao regime geral das contraordenações que
introduziu a proibição de reformatio in pejus, alguns diplomas sectoriais afastaram-se dessa
solução. Podem ser encontrados exemplos em que de modo inequívoco se afasta a aplicação
da proibição de reformatio in pejus: i) no âmbito do setor financeiro (artigo 230.º, n.º 3, do
Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-
Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, na redação introduzida Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24
de outubro); ii) em matéria de concorrência (artigo 88.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2012, de 8 de
maio, que aprovou a Lei da Concorrência); iii) no regime de contraordenações ambientais
(artigo 75.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, ou a Lei-quadro das contraordenações
ambientais); iv) no âmbito do controlo da atividade dos estabelecimentos prestadores de
cuidados de saúde (artigo 67.º, n.º 3 dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde,
aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto).
Um destes regimes especiais posteriores à referida alteração do regime geral das
contraordenações já passou pelo crivo do Tribunal Constitucional. Trata-se do Código dos
Valores Mobiliários onde se estabelece expressamente que a proibição de reformatio in pejus
«não é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos deste
Código» (artigo 416.º, n.º 9, do Código dos Valores Mobiliários). No preâmbulo do Decreto-
Lei n.º 52/2006, de 15 de março, que introduziu este preceito (renumerado como n.º 9 pela
Lei n.º 28/2017, de 30 de maio), o legislador refere que «a eliminação da proibição de
reformatio in pejus nos processos de contraordenação, como já acontece noutras áreas do
sistema financeiro» teve em vista garantir «a necessária autonomia entre a fase administrativa
e a fase judicial do procedimento contraordenacional, bem como a congruência e a
uniformidade de soluções do regime do ilícito de mera ordenação social vigente no setor
financeiro».
Apreciando a conformidade constitucional desta solução, o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 373/2015, 2.ª Secção, não julgou inconstitucional a norma que permite,
neste caso, que a coima pode ser agravada «em sede de impugnação judicial interposta pelo
arguido em sua defesa, sem correspondente alteração e/ou agravamento dos factos,
elementos e circunstâncias da decisão administrativa condenatória».

14. A norma objeto do presente recurso resulta da interpretação de preceitos legais que
integram o âmbito do chamado Direito da Mera Ordenação Social ou Direito das
Contraordenações. Constituindo um instrumento de intervenção administrativa de natureza
sancionatória, no sentido de garantir maior eficácia à ação da Administração, o Direito das
Contraordenações surge como um ramo de direito sancionatório, autónomo do Direito
Penal, mas que com ele mantém profundas ligações, que se materializam na existência de
múltiplas soluções normativas comuns criadas no espaço da dogmática penal e que se
fundamentam no facto de, tal como aquele, fazer parte do «direito sancionatório de carácter
punitivo» que tem aquele ramo do direito como paradigma.
De entre os processos sancionatórios, o processo contraordenacional é um dos que mais
se aproxima do processo criminal ao ponto de o Direito Processual Penal constituir, no plano
adjetivo, direito subsidiário no seu âmbito (artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82).
Não obstante esta aproximação, não pode confundir-se o processo criminal com o
procedimento contraordenacional, até pela natureza distinta de cada um desses regimes e das
respetivas sanções. Efetivamente, sendo as contraordenações medidas sancionatórias de
carácter não penal, não se justifica a aplicabilidade direta e global aos processos
contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal.
Um tal entendimento resulta, aliás, da jurisprudência constitucional (vejam-se, a
propósito, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 344/93, da 1.ª Secção, ponto II. 1.,
659/2006, 2.ª Secção, ponto 2.3., 336/2008, 2.ª Secção, e 487/2009, 2.ª Secção, ponto 2.1.).
A título de mero exemplo, poder-se-á citar o Acórdão n.º 612/2014 (3.ª Secção), ponto 3,
que, fazendo uma síntese sobre a jurisprudência constitucional em matéria
contraordenacional, refere o seguinte:
«Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que
não tem sofrido alterações ao longo de décadas, “são diferentes (…) os
princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem
entre nós a legislação penal e a legislação das contraordenações”, porque,
como expressivamente se afirmou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24
de julho, que pela primeira vez institui o regime geral do ilícito de mera ordenação
social, “entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se
trata apenas de uma diferença de quantidade ou meramente formal, mas de
uma diferença de natureza. A contraordenação ‘é um aliud que se diferencia
qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e a reações que lhe
cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético jurídico, não estando,
portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal’ (Eduardo Correia,
‘Direito penal e direito de mera ordenação social’, in Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra, 1973, p. 268)”.
E é precisamente em razão dessa diferença, que necessariamente
assume um alcance “jurídico-pragmático” (Acórdão n.º 344/93) e se projeta em
diversos aspetos de regime adjetivo e substantivo, que o Tribunal
Constitucional, reconhecendo nas infrações contraordenacionais uma “forma
autónoma de ilicitude”, não julgou inconstitucionais, entre outras, normas que
atribuem às autoridades administrativas competência para organizar e instruir
processos de contraordenação (Acórdão n.º 158/92); norma interpretada no sentido
da inaplicabilidade das causas de impedimento previstas no artigo 39.º, n.º 1, e 40.º do
CPP, a casos em que o autor da decisão de um processo de contraordenação laboral
confirmou anteriormente o auto de notícia levantado ao destinatário dessa decisão
(Acórdão n.º 581/2004); normas que, no pressuposto da admissibilidade da figura do
assistente em processos desta natureza, não lhe reconhecem legitimidade para recorrer
(Acórdão n.º 344/93); normas que, em dada interpretação, impõem ao notificado, na
fase administrativa, o ónus de logo suscitar a irregularidade ou a nulidade da
notificação, caso entenda que o lapso material de que a mesma padece prejudica o seu
direito de defesa (Acórdão n.º 278/99); interpretação segundo a qual, sendo notificado
o mandatário do dia designado para leitura da decisão da impugnação judicial em
processo contraordenacional, o prazo para recorrer se conta a partir da data da leitura
da decisão em audiência, esteja ou não presente o arguido ou o seu mandatário
(Acórdão n.º 77/2005); normas interpretadas no sentido de não imporem à autoridade
administrativa o dever de pronúncia sobre as nulidades invocadas na defesa do arguido
(Acórdão n.º 325/2005); norma interpretada no sentido de não permitir recurso para
o Tribunal da Relação de despacho de indeferimento de arguição de nulidade
processual, proferido posteriormente à decisão de rejeição de impugnação judicial de
decisão administrativa sancionadora de contraordenação (Acórdão n.º 659/2006);
normas interpretadas no sentido de que a fundamentação por remissão prevista no
artigo 125.º, n.º 1, do CPA, é aplicável à decisão sancionatória de ilícito de mera
ordenação social (Acórdãos nºs, 50/2003, 62/2003, 249/2003, 469/2003 e 492/2003);
normas que consagram uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um
dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário,
para efeitos de a responsabilizar pelas contraordenações praticadas por estes últimos
(Acórdão n.º 45/2014).
Em todas essas decisões se considerou inaplicável, atenta a diferente
natureza do ilícito contraordenacional, o princípio constitucional de direito
criminal ou processual criminal invocado em fundamento do reclamado juízo
de inconstitucionalidade.
(…)
[U]ma contraordenação não é equiparável, quer na perspetiva do bem
tutelado, quer na perspetiva das reações sancionatórias que determina, à
prática de um crime; neste último caso, e como é sabido, está em causa a ofensa de
bens e valores tidos como estruturantes da sociedade e a notícia da prática de um
crime desencadeia, pela sua gravidade, um complexo processo com vista a determinar
o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas que, sendo de prisão ou
multa, assumem sempre um sentido de retribuição ou expiação ética e uma finalidade
ressocializadora cuja realização pode implicar, no limite, a privação da liberdade do
arguido; nada disso se passa com as contraordenações que, sendo ilícitos, não
comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e
dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo
de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de
alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial.
Por isso, acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e
defesa do arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), quer
na fase judicial (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), justifica-se que o legislador, na
ponderação dos valores em presença, opte por um padrão de simplicidade e
celeridade processuais (…)» (destacados nossos).

A variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do


tipo de sanção previsto para as contraordenações, repercute-se também a nível adjetivo, não
se justificando, que sejam aplicáveis ao processo contraordenacional de uma forma global e
cega todos os princípios que orientam o Direito Processual Penal. A densidade das garantias
processuais é diferenciada, consoante o domínio do direito punitivo em que se inserem.
Como tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, atendendo à diferente
natureza do ilícito de mera ordenação e à sua menor ressonância ética, em comparação com
o ilícito criminal, é menor o peso do regime de garantias no âmbito do Direito
Contraordenacional, pelo que as garantias constitucionais previstas para os ilícitos de
natureza criminal não são necessariamente aplicáveis aos ilícitos contraordenacionais ou a
outros ilícitos no âmbito de direito sancionatório
O recurso aos princípios do processo penal deve, portanto, ocorrer com cautelas,
variando o grau de vinculação, a esses princípios, consoante a natureza dos valores em
presença.

15. No já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 373/2015, ao analisar norma


que rejeitava expressamente a proibição de reformatio in pejus à luz da alegada violação do
direito de defesa do arguido e do direito ao recurso, referiu-se que (ponto 1):
«Sendo certo que a norma sindicada constitui um desvio à regra estabelecida no aludido
regime geral, cumpre apreciar se os fundamentos subjacentes à proibição da reformatio in pejus no
âmbito criminal são transponíveis para o domínio do ilícito de mera ordenação social, mais
concretamente para a fase da primeira apreciação judicial da impugnação de decisão administrativa
sancionatória.
(…)
Importa, pois, no sentido de saber até que ponto existirá uma imposição constitucional de
proibição de reformatio in pejus em situações como a dos autos, ter em atenção o modo como está
estruturado o processo de contraordenação, desde logo para apurar se os fundamentos
constitucionais em que assenta a referida proibição no que respeita ao processo criminal são
extensíveis ao tipo de processo contraordenacional em causa nos autos.
Como é sabido, no caso do processo de contraordenação, impugnada a decisão
administrativa que aplicou uma sanção e caso a autoridade administrativa não revogue a decisão
de aplicação da coima (cfr. artigo 62.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações), os autos
são enviados ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como
acusação (cfr. n.º 1 do referido artigo 62.º). Assim, quando recebe os autos, o Ministério Público
passa a assumir o papel de titular do processo, podendo, para além de os apresentar ao juiz, nos
termos referidos, optar por retirar a acusação, desde que se verifiquem os pressupostos formais
do artigo 65.º-A do Regime Geral das Contraordenações, podendo, ainda, inclusive, requerer a
conversão do processo em processo criminal, nos termos previstos no artigo 76.º do aludido
regime (o que determinará a instauração de inquérito). Por outro lado, mesmo depois de o
processo ser remetido ao tribunal, o arguido poderá também retirar o recurso, até à sentença em
primeira instância ou até ser proferido o despacho previsto no artigo 64.º, n.º 2, sendo que, se o
fizer depois do início da audiência carece do acordo do Ministério Público (cfr. artigo 71.º).
Conforme se pode constatar, não existe paralelismo entre o processo criminal e o processo
contraordenacional, não se podendo equiparar o recurso para um tribunal superior no âmbito de
um processo criminal interposto pelo arguido ou no interesse deste e a impugnação da decisão
administrativa que aplica uma sanção no âmbito de um processo contraordenacional para um
tribunal. Neste último caso, remetidos os autos ao tribunal, o Ministério Público passa a ser, nos
termos expostos, o titular da pretensão punitiva e, optando por remetê-los ao juiz, não se poderá
dizer que se tenha conformado com a decisão administrativa, contrariamente ao que acontece na
situação prevista no artigo 409.º do Código de Processo Penal.
Assim, tendo em atenção que a admissibilidade da reformatio in pejus na questão de
constitucionalidade em análise se reporta à impugnação judicial de decisão administrativa, o
direito de defesa que poderá revelar-se ameaçado com tal solução não é o direito ao recurso dentro
da hierarquia jurisdicional, mas sim o direito de acesso aos tribunais, ou seja a garantia de tutela
jurisdicional efetiva, pelo que o que importa verificar é se a interpretação normativa questionada
viola o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, e mais especificamente a garantia da
impugnação dos atos administrativos sancionatórios perante os tribunais, consagrada no artigo
268.º, n.º 4, da Constituição».

Acompanha-se, de uma forma geral, esta conclusão.


De facto, o «direito de recurso» consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição não
pode ser diretamente aplicado aos processos contraordenacionais, na medida em que este
parâmetro, conforme tem sido entendido pela jurisprudência constitucional, respeita ao
processo criminal, não havendo, assim, uma imposição constitucional ao legislador ordinário
de equiparação de garantias no âmbito do processo criminal e do contraordenacional.
Para além disso, não pode equiparar-se o recurso da decisão de uma instância judicial
para um tribunal hierarquicamente superior no âmbito de um processo criminal interposto
pelo arguido ou no interesse deste à impugnação de uma decisão administrativa de aplicação
de uma sanção no âmbito de um processo contraordenacional para um tribunal. Não se
ignorando a querela doutrinária existente em torno da natureza do processo
contraordenacional, cujas características híbridas - integrando uma fase administrativa, que
concentra inquérito e julgamento a que se segue e uma fase judicial que conjuga elementos
de impugnação e de recurso - dificilmente se ajustam a qualificações dogmáticas rígidas, certo
é que na impugnação da decisão administrativa não está em causa um verdadeiro exercício
de um direito fundamental ao recurso jurisdicional, tal como protegido pelo artigo 32.º, n.º
1, da Constituição.
Nessa medida, o alegado «direito de recurso» que a recorrente considera ter sido violado
não pode ser aferido à luz do disposto no invocado n.º 1 do artigo 32.º da Constituição –
porque não se está num «processo criminal» e porque não se pretende impugnar uma decisão
jurisdicional.

16. O enquadramento constitucional aplicável ao processo contraordenacional é, assim,


distinto. No seu âmbito, as garantias processuais do arguido são constitucionalmente
previstas no n.º 10 do artigo 32.º, que dispõe que «nos processos de contraordenação, bem
como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de
audiência e de defesa» (preceito introduzido pela Revisão Constitucional de 1989, como n.º
8 do mesmo artigo). Tal norma determina ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo
de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra,
sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das
imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo
a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. JORGE MIRANDA e RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.
363). É esse o alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no
âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o
asseguramento ao arguido, «nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios»,
de «todas as garantias do processo criminal» (artigo 32.º-B do Projeto de Revisão Constitu-
cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II
Série-RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de
1997, pp. 3412 e 3466).
Para além de gozar do referido direito de defesa constitucionalmente previsto no artigo
32.º, n.º 10, da Constituição, como tem sido sublinhado na jurisprudência do Tribunal
Constitucional, em processo de contraordenação, o arguido goza também do direito de
acesso à tutela jurisdicional, genericamente consagrado no artigo 20.º da Constituição, com
o consequente direito de impugnar judicialmente a decisão administrativa sancionatória (cfr.,
entre outros, os Acórdãos n.ºs 659/2006, ponto 2.2., 45/2008, ponto 2.2., 135/2009, pontos
7. e 8.4., 299/2013, ponto 5., e 373/2015, ponto 2.). Com efeito, como o processo
contraordenacional corre diante de entidade administrativa – i.e. fora da hierarquia
jurisdicional –, o direito a impugnar uma decisão sancionatória nele proferida adquire uma
relevância só compreendida dentro da tutela jurisdicional efetiva, e mais especificamente na
garantia da impugnação dos atos administrativos sancionatórios perante os tribunais,
consagrada no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.
É nesse contexto, de garantia do direito de defesa previsto no artigo 32.º, n.º 10, da
Constituição, e do direito de acesso à tutela jurisdicional, designadamente contra atos
administrativos lesivos, consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição, que deve
ser analisada a conformidade constitucional de dado processo contraordenacional.
Ora, não se discute, no presente recurso de constitucionalidade, a preterição do direito
de audição e defesa. Resta, assim, analisar a questão colocada à luz do direito de acesso à
tutela jurisdicional.

17. O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que, para defesa dos
direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil
contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5). Ao assegurar o «acesso aos tribunais, para
defesa dos seus direitos», a primeira parte do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição consagra a
garantia fundamental que se traduz em confiar a tutela dos direitos individuais àqueles órgãos
de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 205.º). No
domínio da ação administrativa, onde se insere o Direito Contraordenacional, a Constituição
garante aos administrados o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos seus direitos
ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, «a impugnação de quaisquer atos
administrativos que os lesem, independentemente da sua forma», no artigo 268.º, n.º 4.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à
tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma
tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no
sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão
jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação
daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar
mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido
de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes
não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à
complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da
sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas
de defesa expeditas.
Contudo, tem sido também entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que,
embora esteja vinculado a criar meios jurisdicionais de tutela efetiva dos direitos e interesses
ofendidos dos cidadãos, «o legislador não deixa de ser livre de os conformar, não sendo de
todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que
a identidade ou diversidade das situações em presença há-de resultar de uma perspetiva global
que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre
si» (cfr. Acórdão n.º 63/2003, 1.ª Secção, ponto 6). No que diz respeito especificamente às
vinculações resultantes do artigo 268.º, n.º 4, no Acórdão n.º 329/2013, 3.ª Secção, ponto 7,
o Tribunal Constitucional refere que, «embora subordinado a um imperativo de efetividade,
na vertente da garantia que agora está em consideração – a impugnação de quaisquer atos
administrativos que os (aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados)
lesem –, o que decorre do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição é o dever de conformar o
processo impugnatório de tal modo que seja idóneo a apreciar a pretensão de invalidade (ou
de inexistência jurídica) incidente sobre as decisões dos órgãos da Administração (ou dotados
de poderes materialmente administrativos) que, ao abrigo de normas de direito público,
visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta».

18. Relativamente à concretização deste enquadramento no que diz respeito ao processo


contraordenacional, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de referir, no Acórdão
674/2016, 1.ª Secção, ponto 14:
«14. Existe uma ampla margem de que o legislador dispõe na modelação do regime de acesso
à jurisdição, designadamente no domínio da impugnação contenciosa de atos administrativos
sancionatórios (cfr. os Acórdãos n.º 595/2012, ponto 6, e n.º 373/2015, ponto 2 da
Fundamentação). Como o Tribunal tem reiteradamente sublinhado “(…) o legislador dispõe de
ampla margem de conformação no que respeita à modelação do regime de acesso à via
jurisdicional, podendo disciplinar o modo como se processa esse acesso, nomeadamente em via
de recurso-impugnação, posto que não crie obstáculos ou condicionamentos substanciais”
(Acórdão n.º 373/2015, ponto 2 da Fundamentação).
A opção do legislador no que respeita à forma de impugnação das decisões de caráter
sancionatório aplicadas em processo de contraordenação por entidades administrativas foi no
sentido de consagrar uma via processual de plena jurisdição. Como já foi referido, apesar da
designação legal, não se trata de um recurso propriamente dito, antes de um processo judicial de
impugnação de decisões administrativas sancionatórias. Conforme delineado no Regime Geral
das Contraordenações, o processo contraordenacional tem uma fase administrativa seguindo-se,
no caso de impugnação da decisão nela aplicada, uma fase jurisdicional em que o arguido dispõe
da possibilidade de sindicar a legalidade da decisão. Esta impugnação dá lugar a um processo de
natureza jurisdicional, em que o tribunal não se limita a apreciar a decisão, mas todo o processado
nos autos, valorando em conjunto toda a prova produzida, quer a já produzida na fase
administrativa, quer a realizada na fase jurisdicional. Ao apreciar a impugnação da decisão
administrativa o tribunal não está vinculado à qualificação por esta efetuada quer no que respeita
aos factos (com base nas provas que são apresentadas no âmbito do recurso), quer no que respeita
à matéria de direito (qualificação jurídica dos factos e sanções aplicadas). Desta forma, a
impugnação, “se respeitados os requisitos de forma e tempo [elimina] o caráter definitivo (hoc
sensu, materialmente definidor da situação do particular) da decisão administrativa, porque a
apresentação dos autos ao juiz vale como acusação, assim se convertendo em judicial o poder de
aplicação da sanção” (Acórdão n.º 595/2012, ponto 4).
A impugnação da decisão administrativa nos moldes enunciados configura, assim, o meio de
acesso à jurisdição».

Assim, conforme já foi abordado, o processo contraordenacional tem uma fase


administrativa e, no caso de impugnação da decisão aplicada nesta fase, uma fase jurisdicional
em que o arguido dispõe não apenas da possibilidade de sindicar a legalidade da decisão, mas
também de um conjunto de amplas faculdades de exercício do seu direito de defesa e de
contraditório. A impugnação dá lugar, não a um recurso propriamente dito, mas a um
processo jurisdicional, em que o tribunal não se limita a apreciar a decisão, mas todo o
processado nos autos, podendo ser produzida prova neste processo judicial, quer pela
autoridade administrativa recorrida, quer pelo arguido, sendo que o tribunal valora em
conjunto toda a prova produzida nos autos, quer a já produzida na fase administrativa, quer
a realizada na fase jurisdicional, particularmente a que venha a ter lugar em audiência. Ou
seja, o tribunal, ao apreciar a impugnação da decisão administrativa, não está vinculado à
qualificação efetuada pela entidade administrativa que proferiu a decisão, apreciando quer os
factos (com base nas provas que são apresentadas no âmbito do recurso), quer a matéria de
direito (qualificação jurídica dos factos e sanções aplicadas). Quando o processo é enviado
para o Tribunal, na sequência da impugnação do arguido, tem lugar uma nova apreciação,
em que a decisão anterior passa a ser tida como acusação que delimita o objeto do
conhecimento do tribunal. O objeto de apreciação do tribunal não é, porém, a decisão
administrativa. O objeto de apreciação do tribunal é a questão contraordenacional sobre a
qual incidiu a decisão administrativa. Esta diferenciação afasta a impugnação judicial da
decisão administrativa de um recurso.
A norma em apreciação, resultante do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de
setembro, não nega o direito de o arguido impugnar judicialmente a decisão administrativa
contra si proferida. Limita-se a permitir o agravamento da coima decorrente de
contraordenação laboral e de segurança social em sede de impugnação judicial interposta
pelo arguido em sua defesa. A questão de constitucionalidade colocada passa, portanto, pela
análise sobre se a possibilidade de reformatio in pejus, no âmbito desta impugnação, representa
uma restrição desproporcionada do direito de acesso à justiça.

19. O Tribunal Constitucional, no já referido Acórdão n.º 373/2015, ao analisar norma


que rejeitava expressamente a proibição de reformatio in pejus à luz da garantia de tutela
jurisdicional efetiva, assinalou que (ponto 2):
«Tendo o legislador optado por dar esta configuração ao regime geral da impugnação da
decisão da autoridade administrativa em processo de contraordenação, não está impedido de,
dentro da margem de livre conformação de que dispõe, e face às amplas possibilidades de defesa
e de exercício do contraditório conferidas ao arguido no âmbito deste processo de impugnação,
afastar em alguns regimes especiais a proibição da reformatio in pejus em relação à decisão da
entidade administrativa, (…) impedindo assim que a decisão administrativa se imponha, no que
respeita à sanção aplicada, ao Tribunal.
Com efeito, repete-se, sendo certo que o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional
efetiva, consagrado constitucionalmente, pressupõe a garantia da via judiciária, que implica que
sejam outorgados ao interessado os meios ou instrumentos processuais adequados para fazer valer
em juízo, de forma efetiva, o seu direito, e que uma das dimensões em que se concretiza a garantia
da via judiciária é justamente o direito de acesso, sem constrangimentos substanciais, ao órgão
jurisdicional para ver dirimido um litígio, a norma sindicada, não cria, em rigor, um qualquer
obstáculo ou impedimento ao direito à impugnação judicial, se entendermos como tal a imposição
ao recorrente de um qualquer ónus ou necessidade de cumprimento de um determinado requisito
que tenha de ser preenchido para que a impugnação seja admitida. Nesse sentido, não se pode
dizer que esta norma contenha qualquer restrição de acesso à via jurisdicional.
Por outro lado, é certo, no entanto, que não existindo proibição de reformatio in pejus o
recorrente terá de fazer uma ponderação prévia quanto à decisão de interposição da impugnação
judicial, face à possibilidade de a decisão impugnada vir a ser modificada em seu desfavor. No
entanto, a existência deste risco, tem de ser ponderada em conjugação com o tipo de impugnação
em causa, em que, conforme se referiu, o tribunal conhece dela com plena jurisdição, havendo
lugar a um novo julgamento da questão».

Como se assinalou também no aludido aresto, «tendo o legislador conformado um meio


de impugnação das decisões sancionatórias das autoridades administrativas com estas
características, entendeu também, em alguns regimes especiais (…), não ser de limitar ou
vincular os poderes do tribunal ao já decidido pela autoridade administrativa sobre a
responsabilidade contraordenacional, atendendo, por um lado, aos interesses e bens jurídicos
envolvidos, e por outro lado, às especiais qualidades dos intervenientes».
Perante este quadro processual, o Tribunal Constitucional não encontrou razões para
concluir que o regime em análise consagre um condicionamento excessivo do referido
direito. Teve-se também em consideração «que a proibição da reformatio in pejus tem como
consequência o aumento do número de recursos interpostos independentemente da
gravidade da sanção», o que em si mesmo contraria «o caráter de simplificação e celeridade
do Direito de Mera Ordenação Social e sobrecarrega os tribunais, tornando os recursos
economicamente compensadores sempre que estejam em causa sanções elevadas, por via do
diferimento no tempo do respetivo pagamento ou mesmo fazendo protelar o andamento
dos autos no sentido de ocorrer a prescrição».
Conclui o Tribunal, ainda no ponto 2 do Acórdão n.º 373/2015, que:
«Em suma, com a opção do legislador, tomada dentro dos seus poderes de livre
conformação, não deixa de estar assegurado para a impugnação das decisões da autoridade
administrativa em causa um pleno acesso à via jurisdicional, sendo que, pelo tipo de impugnação
prevista, garante-se desse modo também a não vinculação do tribunal à decisão administrativa,
conferindo-lhe plena independência no que respeita ao exercício da função jurisdicional, não
constituindo a possibilidade de agravamento da sanção pela decisão da impugnação um ónus ou
obstáculo que restrinja ou dificulte, de modo arbitrário ou desproporcionado, o acesso à via
judiciária por parte do arguido em processo contraordenacional.
Assim, o regime previsto no artigo 416.º, n.º 8, do Código dos Valores Mobiliários, enquanto
medida necessária e adequada a garantir a tutela de bens jurídicos com dignidade constitucional
(bens esses ligados à tutela do sistema financeiro), bem como a celeridade e eficiência da reação
sancionatória no caso de lesão desses bens jurídicos tutelados, não poderá ser entendido como
uma restrição desproporcional ao direito de impugnação judicial da decisão administrativa
sancionatória, à luz dos critérios previstos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição».

Concorda-se com esta fundamentação, que se considera aplicável, com as devidas


adaptações, ao caso presente. Atente-se que o inciso final «sem correspondente alteração
e/ou agravamento dos factos, elementos e circunstâncias da decisão administrativa
condenatória» constante da norma julgada não inconstitucional no Acórdão n.º 373/2015 –
e sem referência expressa na norma em análise no presente recurso – não teve uma
implicação específica na avaliação da sua conformidade constitucional. Na verdade, e tal
como se afirmou na fundamentação daquele acórdão, a previsão em alguns regimes especiais
da não limitação ou vinculação dos poderes do tribunal ao já decidido pela autoridade
administrativa sobre a responsabilidade contraordenacional, «implica também que o tribunal
possa formular um juízo autónomo sobre a medida da sanção relativamente à infração objeto
do respetivo julgamento, independentemente de se manterem ou não inalterados os
elementos de facto e de direito tidos em conta na decisão administrativa».
Por outro lado – acrescente-se ainda –, no regime das contraordenações laborais, tal
como de resto também se verifica no regime geral das contraordenações, quando a decisão
é precedida de realização de uma audiência de julgamento, a manutenção do recurso deixa
de estar na inteira disponibilidade do arguido, passando a depender da concordância do
Ministério Público (artigo 46.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e artigo 71.º,
n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82). Esta faculdade de o Ministério Público se opor à retirada
da acusação ancora a possibilidade de agravamento da responsabilidade do arguido, uma vez
que constitui a expressão de uma pretensão punitiva latente que é extensiva a todo o objeto
do processo.
Neste enquadramento, uma proibição de reformatio in pejus da condenação
contraordenacional proferida pela autoridade administrativa não implica necessariamente a
violação da garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º,
n.º 1, da Constituição. Uma tal implicação pressupõe uma configuração da intervenção do
tribunal na fase judicial do processo contraordenacional como uma garantia do arguido com
uma dimensão que não é imposta pelo artigo 32.º, n.º 10, da Constituição.

20. Aceita-se que face à ausência de proibição da reformatio in pejus, a recorrente fica
obrigada a escolher criteriosamente a sua estratégia processual, de forma a maximizar as
hipóteses de vencer e de reduzir o risco de ver perigar as suas pretensões. Daqui resulta um
condicionamento do seu direito fundamental de acesso aos tribunais que deve ser balanceado
pelos interesses públicos em presença. Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º
282/X/4.ª, que deu origem à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, refere-se que o seu
objetivo passa pela «atribuição de competências à Autoridade para as Condições de Trabalho
(ACT) e aos serviços do Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) para qualquer um
deles poder intervir na identificação de situações de dissimulação de contrato de trabalho, de
forma a prevenir e a desincentivar o incumprimento dos deveres sociais e contributivos das
empresas e a garantir o direito dos trabalhadores à proteção conferida pelo sistema de
segurança social». Pretende-se, por isso que sejam «criados os mecanismos e as condições
que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem,
designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente eficaz e preventiva, no
combate à utilização abusiva dos “falsos recibos verdes”». A ausência de proibição de
reformatio in pejus pode ser enquadrada neste contexto.
Analisando a esta luz a norma que permite o agravamento da coima decorrente de
contraordenação laboral e de segurança social em sede de impugnação judicial interposta
pelo arguido em sua defesa, interpretativamente extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º
107/2009, de 14 de setembro, pode considerar-se que esta é uma medida necessária e
adequada a garantir a tutela de bens jurídicos com dignidade constitucional (tutela dos
direitos dos trabalhadores e garantia do sistema de segurança social), bem como a celeridade
e eficiência da reação sancionatória no caso de lesão desses bens jurídicos tutelados. Assim,
tal norma não pode ser entendida como uma restrição desproporcional ao direito de
impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória, à luz dos critérios previstos no
artigo 18.º, n.º 2, da Constituição

ii) Da violação do princípio da igualdade

21. A recorrente sustenta, ainda, que a norma cuja constitucionalidade se sindica viola o
princípio da igualdade, porquanto, no seu entender, «permite ao julgador um tratamento
diverso para situações de facto iguais» e «não existe igualdade de armas», já que «ao aplicar a
norma sem ter em conta as especificidades e diferenças em cada caso, sem analisá-los em
pormenor, viola o princípio da igualdade» (fls. 450).
22. Como é sabido, o princípio da igualdade «é um dos principais eixos estruturantes do
regime constitucional dos direitos fundamentais – um princípio estruturante do Estado de
Direito democrático e do sistema constitucional da República Portuguesa» (cfr. Acórdão n.º
526/2016, ponto 5), que «postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente
afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate
diferentemente o que for essencialmente diferente» (cfr. Acórdão n.º 437/2006, ponto 7).
Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos –
particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de
facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata
medida dessa desigualdade.
O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional
portuguesa, as seguintes dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer
diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de
valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para
situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer
diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas
ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a
desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de
desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra
Editora, 2007, pág. 339).
O parâmetro que o recorrente convoca é o princípio da igualdade na sua dimensão de
proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição), pois não é invocada uma das
características que poderiam justificar a aplicação do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.

23. Ora, tendo em conta o enquadramento da questão de constitucionalidade colocada,


não pode afirmar-se que a norma em causa é discriminatória ou arbitrária.

O princípio da igualdade não proíbe o legislador da realização de todas e quaisquer


distinções, mas apresenta-se aqui, como decorrência do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição,
como limite objetivo da discricionariedade legislativa, proibindo o arbítrio. Assim, pode o
legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação, estabelecer diferenciações de
tratamento, desde que fundadas racional e objetivamente e ditadas pela razoabilidade. Pode
considerar-se não existir censura constitucional, por outras palavras, quando ocorre um
fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada
(cfr., v.g., os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 335/94, ponto III. 2.1., n.º 563/96,
ponto III. 1.2., n.º 546/2011, ponto 12, n.º 641/2013, ponto 10, n.º 93/2014, ponto 17 e n.º
173/2014, ponto 7). Como refere o Acórdão n.º 437/2006, ponto 7:
«Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade
legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a
criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de
tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e
racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia
geral de proibição do arbítrio (cfr. por todos Acórdão n.º 232/2003, (…)».

O tratamento diferenciado também pode não ser desrazoável tendo em conta a


diferença de situações em presença. Com efeito e com amparo na jurisprudência
constitucional mais próxima, pode ler-se no Acórdão n.º 187/2013, do Plenário, ponto 33,
que «de acordo com o sentido reiterado e uniforme da jurisprudência deste Tribunal, “só
podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de
regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam
diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos
razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a
medida da diferença, se prosseguem” (Acórdão n.º 47/2010)».
Desde logo, não se vê como a norma em causa pode ser acusada de violação do princípio
da igualdade por permitir «ao julgador um tratamento diverso para situações de facto iguais»,
na medida em que se aplica, por igual, a todos os destinatários de uma sanção administrativa
abrangida pelo regime das contraordenações laborais e de segurança social que impugnem
tal decisão junto dos tribunais. Por outro lado, também não se percebe como poderia estar
em causa o princípio da «igualdade de armas», pois, uma vez impugnada a decisão
administrativa, pode o juiz ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou
manter ou alterar a condenação – não existindo um tratamento discriminatório de qualquer
parte. Em qualquer caso, não se verifica um tratamento diferenciado de situações iguais.

24. Ainda no que diz respeito à conformidade desta solução normativa com o parâmetro
constitucional da igualdade poderia suscitar-se uma questão diferente – que a recorrente não
colocou –: a de saber se estamos perante uma solução legal inconstitucionalmente
diferenciadora, na medida em que afasta a regra geral prevista para o processo penal ou no
artigo 72.º-A do regime geral das contraordenações.
Quanto à questão da igualdade entre processo criminal e contraordenacional, cumpre
começar por notar que as características híbridas do processo de contraordenações,
designadamente da sua fase judicial, tornam questionável qual o plano teórico em que será
pertinente estabelecer uma comparação. A circunstância de impugnação se dirigir contra uma
decisão condenatória já proferida pela autoridade administrativa convida, numa primeira
aproximação, à comparação com o regime de recursos em processo penal, designadamente
a contida no artigo 409.º do CPP (que proíbe a reformatio in pejus). Não é menos certo, porém,
que, referindo-se a norma ao conteúdo da decisão judicial que conhece da impugnação da
condenação proferida pela autoridade administrativa, e concretamente à possibilidade de
agravamento da coima, a comparação com o regime estabelecido no processo penal que
ocorreria estabelecer deveria surgir antes com as normas que impõem limites à condenação
criminal, como por exemplo os decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 1.º, alínea
f), 358.º, 359º e 379.º do CPP. Na verdade, como tem sido entendido o «carácter pleno da
atividade judicativa exercida pelo tribunal nesta fase judicial aproxima a sua intervenção
muito mais do julgamento penal em 1.ª instância do que do recurso penal, que, no nosso
sistema processual penal, assume uma natureza de mero remédio jurídico» (Nuno Brandão,
“O controlo judicial da decisão administrativa condenatória manifestamente infundada no
processo contraordenacional”, cit., p. 321; sobre a questão do âmbito dos poderes de
conhecimento do tribunal, com referência às diversas posições doutrinárias existentes v.
Marta Borges Campos, “Os poderes de cognição do Tribunal na fase de impugnação judicial
do processo de contraordenação”, in Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal,
Fernanda Palma et al. (coord.), Coimbra: Almedina, 2018, pp. 401 e ss.].
Seja como for, o que parece certo é que qualquer comparação a empreender com o
processo penal revelar-se-ia sempre uma tarefa vazia de consequências na verificação da
conformidade constitucional da norma em juízo.
Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que não tem sofrido
alterações ao longo de décadas, são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais
e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e processual penal e a legislação
das contraordenações. Já se referiu que o processo penal e o processo contraordenacional
têm diferenças de fundo, não se justificando, que sejam aplicáveis ao processo
contraordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito
processual penal. Acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e defesa do
arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da Constituição), quer na fase judicial
(artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), justifica-se que o legislador, na ponderação dos valores
em presença, opte por um padrão de simplicidade e celeridade processuais.
Como se refere no Acórdão n.º 595/2012, 3.ª Secção, ponto 5, «o Tribunal também tem
sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo
contraordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem
observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será
chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que
lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.ºs 469/97 e 278/99)».
Constitucionalmente relevante será – isso sim –, que alcançada a «fase jurisdicional», na
sequência da impugnação perante o tribunal da decisão sancionatória administrativa, o
processo contraordenacional goze das garantias constitucionais dos processos judiciais,
quer diretamente referidas no artigo 20.º da Constituição (direito a decisão em prazo razoável
e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito
democrático (artigo 2.º da Constituição). Ora, como decorre do que que já acima ficou
referido (pontos 16 a 19), a norma em análise não despreza nenhuma das referidas garantias.

25. Por fim, quanto às diferenças registadas entre processos contraordenacionais,


embora o legislador tenha consagrado no artigo 72.º-A do regime geral das contraordenações,
com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, a regra da
proibição da reformatio in pejus no processo de contraordenação, tal não impede que, em
determinados setores, atendendo à especificidade dos mesmos, haja um desvio do regime
geral, como acontece a respeito de este ou outros aspetos em outros regimes (v.g., limites
mínimos e máximos das coimas, prazos e regime de prescrição, etc.), em que o legislador,
dentro da liberdade de conformação que lhe é conferida estabelece regras que se afastam do
regime geral, construindo regimes especiais (neste sentido, vide Acórdão n.º 373/2015, 2.ª
Secção, ponto 3). Num domínio reservado à margem de conformação do legislador, apenas
há que apreciar se tal diferença de regime legislativo se poderá ter por irrazoável. Vale, nesta
matéria, o que se entendeu no Acórdão n.º 226/2011, da 1.ª Secção, ponto 4: «o princípio da
igualdade não impede (…) que, em matéria de ilícito contraordenacional, o legislador
ordinário estabeleça regimes especiais destinados a regular aspetos específicos do interesse
público».
Como ainda recentemente o Tribunal recordou, no Acórdão n.º 74/2019, do Plenário,
ponto 8, «a consagração de desvios às regras processuais gerais é enformada pela convicção
do legislador de que o regime geral das contraordenações e coimas não é adequado à atuação
das entidades reguladoras no respetivo âmbito setorial, impondo-se uma modificação ou
adaptação do seu regime ao circunstancialismo que envolve a atuação daquelas (cfr. Paulo
Sousa Mendes, “O procedimento sancionatório especial por infrações às regras da
concorrência”, Regulação em Portugal: novos tempos, novo modelo?, Almedina, Coimbra, 2009, p.
707)”».
Ora, o afastamento pela norma em análise interpretativamente extraída do artigo 39.º,
n.º 3, da Lei n.º 107/2009, da regra da proibição da reformatio in pejus no âmbito do regime
específico das contraordenações laborais, por confronto com o que acontece com o regime
geral, pode ainda ser enquadrado nos objetivos do legislador já acima identificados por
referência à exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 282/X/4.ª, que deu origem à Lei
n.º 107/2009, de 14 de setembro, designadamente no objetivo de «prevenir e a desincentivar
o incumprimento dos deveres sociais e contributivos das empresas e (…) garantir o direito
dos trabalhadores à proteção conferida pelo sistema de segurança social» e criar «os
mecanismos e as condições que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos
legais que os habilitem, designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente
eficaz e preventiva». Nesse contexto, a ausência de proibição da reformatio in pejus pode
encontrar justificação material na gravidade das infrações, medida pelas sanções aplicadas, e
congruente com a estrutura sancionatória específica do ordenamento contraordenacional
laboral.
Como refere ALEXANDRA VILELA (ob. cit., p. 327), desde a Lei n.º 116/99, de 4 de
agosto, que criou o primeiro regime geral das contraordenações laborais, o número de
contraordenações cresceu exponencialmente. Por outro lado, «aquelas perderam a sua
natureza exclusivamente de violações de deveres para com os específicos setores da
administração laboral para passarem a apresentar-se também como normas com o intuito
específico de proteção de direitos fundamentais do trabalhador». Segundo esta AUTORA, é
possível vislumbrar, naquele grupo de ilícitos, «a proteção da vida privada, da liberdade de
decisão, do património, da proteção da integridade física, quer do próprio corpo, quer da
saúde», razão pela qual considera que «não subsiste qualquer espécie de dúvidas de que a sua
violação encerra – ou corre o perigo sério, real e imediato de encerrar – uma elevada
danosidade social justamente ao bem jurídico-penal que tem em mente proteger».
Assim, como o Tribunal Constitucional tem assinalado, «deve ter-se em vista que, em
matéria de contraordenação laboral, os ilícitos cometidos afetam bens jusfundamentais a que
se associam especiais deveres estaduais de proteção» (cfr. Acórdão n.º 297/2016, do Plenário,
ponto 15.2). Além disso, como se lê no Acórdão n.º 226/2011, ponto 4, «o regime geral das
contraordenações e coimas terá sido originariamente pensado para as pequenas infrações,
facilmente investigáveis, com implicações sociais limitadas; setores específicos da atividade
económica, por exemplo, podem requerer uma adaptação do regime geral, tendo em atenção
a especial relevância dos interesses em que se movem», o que compreende a intenção do
legislador no sentido de criar melhores condições para a investigação e perseguição dos
ilícitos laborais, dada a relevância da matéria e a maior complexidade da ação fiscalizadora
do Estado.
À especificidade do domínio das contraordenações laborais pode, assim, associar-se um
regime específico destinado a criar as condições de eficácia necessária à atuação repressiva
do Estado na fiscalização das infrações à disciplina das relações sócio laborais, afastando-se,
deste modo, um juízo de arbítrio quanto à concreta opção normativa em causa.
Como se assinalou no Acórdão n.º 106/2014, 2.ª Secção, ponto 8, em matéria de tutela
contraordenacional laboral:
«(…) não obedecem, na ordenação de comportamentos e à censura da infração de normas
precetivas ou proibitivas, a proteção de interesses meramente individuais (…). No âmbito da
relação de trabalho, a tutela, mesmo a tutela contraordenacional, transcende os interesses
privados, materializando a proteção de interesses constitucionalmente protegidos, como avulta,
em especial, nos campos normativos juslaborais regulados em termos imperativos. A específica
infração em questão nos presentes autos, relativa ao intervalo mínimo de descanso entre jornadas
de trabalho consecutivas (artigo 214.º, n.º 1 do Código do Trabalho), ilustra com nitidez essa
dimensão objetiva, concretizadora de direito social de natureza fundamental, como seja o direito
à organização do trabalho em termos de permitir a conciliação da atividade profissional com a
vida familiar e o direito ao repouso, que constituem incumbências do Estado (artigo 59.º, n.º s 1,
alíneas b) e d) e 2, da Constituição) (…)».
Tendo em conta a especial natureza dos bens jurídicos que se tutelam neste regime
especial contraordenacional, que gozam, inclusive, de tutela constitucional, designadamente,
no artigo 59.º da Constituição, conclui-se não se revelar arbitrária e destituída de qualquer
fundamento a norma em análise.

26. Assim, não pode concluir-se por um juízo de inconstitucionalidade por ofensa do
princípio da igualdade, correspondendo a norma sindicada a uma diferenciação de regimes
constitucionalmente admissível. Nestes termos, conclui-se que a norma em apreciação não
comporta uma violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.

iii) Da violação do princípio da legalidade

27. O Ministério Público, nas suas alegações, levanta a questão de uma eventual violação
do princípio da legalidade. Invoca que, face à consagração da proibição da reformatio in pejus
no artigo 79.º-A, n.º 1, do regime geral das contraordenações, este poderia ser tido como
aplicável no âmbito do regime das contraordenações laborais e de segurança social, por se
tratar de um regime supletivo face àquele. Assim, «poderia entender-se que a interpretação
que considera que a alteração da condenação permite agravar a sanção viola o princípio da
legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição), aceitando que este princípio se aplica em
matéria processual (Acórdão n.º 324/2013) e que, ainda que “não com o mesmo rigor” ou
“com menor grau de exigência”, também vigora em matéria contraordenacional (Acórdão
n.º 201/2014)».
Não se pode acompanhar este raciocínio.
Na metódica de há muito adotada pelo Tribunal Constitucional (desde o Acórdão n.º
110/2007), o princípio da legalidade, na dimensão da tipicidade penal, operando como limite
constitucional à admissibilidade do resultado interpretativo a que se chegou no processo de
interpretação, obriga o intérprete a excluir aqueles resultados que não tenham na letra da lei
um mínimo de correspondência verbal. Ora, no caso da norma em análise, a letra do artigo
39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, comporta a interpretação no sentido de
que a proibição da reformatio in pejus é afastada no domínio das contraordenações laborais.
Efetivamente, o preceito estabelece a possibilidade de o despacho «manter ou alterar a
condenação», o que comporta no sentido das suas palavras a possibilidade de alteração por
agravamento da coima aplicada – afastando a aplicação supletiva do regime geral. Também
a doutrina admite esta solução como interpretativamente extraível da letra da lei.
Neste contexto, perante a problemática de saber se a proibição da reformatio in pejus vigora
especificamente no regime das contraordenações laborais – confrontando o n.º 3 do artigo
39.º da Lei n.º 107/2009 com o facto de o regime geral das contraordenações, no seu artigo
72.º-A, proibir a reformatio in pejus – JOÃO SOARES RIBEIRO (Contraordenações Laborais:
regime jurídico, 3.ª edição, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 89 e 94) defende que «se nesta Lei n.º
107/2009, nenhuma referência é feita a essa proibição designadamente em sede da primeira
instância, isso só pode significar que ela desaparece», levando à conclusão de que, em face de
impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, a coima aplicada poderá ser
agravada. Para este AUTOR, esta conclusão sai reforçada pelo facto de ter constado
expressamente da alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do regime das contraordenações da
Segurança Social (Decreto-Lei n.º 64/89, de 25 de fevereiro), ora revogada, uma norma que
precisamente determinava que não vigorava aí a proibição da reformatio in pejus.
Assim, ainda que se conhecesse da conformidade da norma com o princípio da legalidade
neste contexto, não estaria em causa uma violação deste princípio, pois não se pode entender
que a norma em causa não tenha a mínima correspondência com o texto legal.
Atente-se, por último, que não cabe ao Tribunal Constitucional definir o direito aplicável
ao caso, mas apenas verificar a conformidade constitucional de normas que tenham servido
de ratio decidendi da decisão recorrida.

28. Conclui-se, assim, que a norma que permite o agravamento da coima decorrente de
contraordenação laboral em sede de impugnação judicial interposta pelo arguido em sua
defesa, extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, não viola
nenhum dos parâmetros constitucionais alegados.

III – Decisão

Nestes termos, decide-se:


a) Não julgar inconstitucional a norma que permite o agravamento da coima
decorrente de contraordenação laboral em sede de impugnação judicial interposta
pelo arguido em sua defesa, interpretativamente extraída do artigo 39.º, n.º 3, da Lei
n.º 107/2009, de 14 de setembro.
e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso interposto.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados


os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo
6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 12 de março de 2019 - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Claudio
Monteiro - José Teles Pereira - Manuel da Costa Andrade

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