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solidariedade@marista.org.br

Cores em composição na Educação Infantil


Cores em composição
na Educação Infantil
Cores em composição
na Educação Infantil

1
“Cores em composição na Educação Infantil”
Iniciativa da Rede Marista de Solidariedade
www.solmarista.org.br

Concepção e Coordenação Técnica: Diretoria Executiva de Ação Social – DEAS


Diretor: Irmão Jorge Gaio
Coordenadora Educacional: Bárbara Ferreira Pimpão
Coordenador de Planejamento e Administração: Jean Carlo Azolin

Coordenação Editorial: Irmão Jorge Gaio e Viviane Aparecida da Silva


Produção e Edição de Textos: Irmão Jorge Gaio, Lilian Juliana Buhrer, Soeli Terezinha Pereira,
Viviane Aparecida da Silva
Contribuição nos textos dos projetos – educadores dos Centros Sociais Maristas Itaquera, Robru,
Ir. Justino, em São Paulo/SP, e Lar Feliz, em Santos/SP
Revisão de Texto: Cisele Ortiz
Revisão Ortográfica: Anna Paula de Lima Michels de Oliveira

Coordenação do Projeto Gráfico: Núcleo de Marketing das mantenedoras ABEC/UCE


Diagramação: Clarissa Martinez Menini
Fotos: João Gilberto Viana Borges, José Bassit e acervo da Rede Marista de Solidariedade
Ilustrações: produções dos educandos atendidos nos Centros Sociais Maristas

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Índice
Introdução  5
Cores da Educação Infantil no Brasil  8 
Cores de um currículo em movimento  22
Cores do cotidiano  32
1. As linguagens  38
Quem comeu meu queijo?  40

2. O brincar  48
Construindo parcerias e significando espaços para brincar  50

3. A participação infantil  56
Ecos da roda: e com a palavra, a criança  58

4. Cuidar e educar 62
Arapitanga  64

5. A organização do espaçotempo pedagógico  68


Cores e alegria nos espaçotempos de aprendizagem  72

6. Formação contínua dos educadores e documentação pedagógica  78


Formação: entre a urdidura e a trama  84

7. Participação das famílias  92


Participação: criando com amor  93

Agradecimentos 97
Referências 98

3
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cores em composição na educação infantil/ Rede


Marista de Solidariedade. 1a ed. – São Paulo: FTD,
2010.
100 p.

ISBN 978-85-322-7280-5

1. Educação infantil I. Rede Marista de Solidarie-


dade.

10-03346 CDD 372.21

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação infantil 372.21

4
Introdução
Solidariedade Marista
A Rede Marista de Solidariedade atua
na defesa e promoção dos direitos de
crianças e adolescentes em situação de
cerias. Nos Centros Sociais Maristas as
parcerias com o Poder Público, empresas
e instituições contribuem para assegu-
vulnerabilidade, por meio de serviços, rar a proteção integral das crianças, po-
programas e projetos sociais desenvolvi- tencializam o alcance das ações e dina-
dos nos estados do Mato Grosso do Sul, mizam os projetos em desenvolvimento e
Paraná, São Paulo, Santa Catarina e no novas iniciativas.
Distrito Federal. As demandas, cenários, tendências
Para contribuir de forma comprome- e propostas para a educação infantil
tida com a construção de novos cenários são debatidos junto aos diversos atores
para as infâncias e adolescências, a pro- sociais, junto àqueles que atuam direta-
posta social e educativa da Rede contem- mente nos Centros Sociais, e com orga-
pla a formação contínua de educadores e nizações diversas, por meio de espaços
gestores, processos permanentes de qua- como a Rede Nacional Primeira Infância,
lificação das ações desenvolvidas e a par- da qual faz parte a Rede Marista de So-
ticipação na elaboração e controle social lidariedade. 
das políticas públicas. A promoção e a defesa dos direitos da
Para garantir o direito à educação criança promovidas pela Rede na educa-
infantil alicerçada em propostas peda- ção infantil têm sido reconhecidas por
gógicas e sociais criteriosas, inclusivas e iniciativas como o Selo Aqui se Brinca
confluentes, setores públicos e privados (realizado pela Unilever e Instituto Si-
são mobilizados para a efetivação de par- darta). O Centro Social Marista Itaquera

5
ficou entre as cinco organizações com as resultando na geração de conhecimentos
melhores práticas do brincar do estado significativos, permeados pela escuta,
de São Paulo em 2009. pelo respeito e pelo afeto. Nesse contexto,
Dessa forma, assim como atua a Ins- a integração da família nos processos so-
tituição Marista em 78 países, a Rede cioeducativos consolida-se como pressu-
consolida sua missão de promover uma posto para o desenvolvimento da criança
sociedade mais justa e solidária, junta- em cinco dimensões: a consciência plane-
mente com a comunidade, organismos tária, a acolhida e relações solidárias, a
dos governos, da sociedade civil e ecle- religiosidade, a criação e a investigação.
sial. Está ainda alinhada às diretrizes Compartilhamos com todos e todas
da União Marista do Brasil – UMBRA- as cores da educação infantil em nossos
SIL e da Fundação Marista para a So- Centros Sociais Maristas, que se mistu-
lidariedade Internacional – FMSI, cujo ram e se complementam. O capítulo Co-
objetivo é fomentar ideias inovadoras e res da Educação Infantil no Brasil traz
articular experiências globais na defesa o panorama histórico, as conquistas e os
das crianças e dos jovens em situação de desafios vividos em nosso país no cená-
vulnerabilidade social. rio da educação das infâncias. Cores de
Nessa perspectiva, a Rede Marista um currículo em movimento apresenta
de Solidariedade sistematizou boas prá- a construção coletiva do Projeto Maris-
ticas realizadas em quatro Centros So- ta para a Educação Infantil, resultado
ciais Maristas que oferecem o Serviço de de estudos e reflexões de profissionais
Educação Infantil a, aproximadamente, da Rede Marista de Colégios e da Rede
720 crianças com até seis anos. Marista de Solidariedade. E por fim, ou
As reflexões e projetos apresentados começo, as Cores do cotidiano pintam as
nessa publicação nasceram de estudos e experiências vividas nos Centros Sociais
experiências vivenciadas por pesquisa- Maristas, a partir de temáticas funda-
dores, educadores, crianças e famílias, mentais como a participação infantil e da

6
família, o brincar, a organização de espa- novas possibilidades possam ser viven-
çotempos1 pedagógicos, a projetualidade, ciadas na educação das infâncias. Que
a formação contínua e a documentação as cores ganhem o cotidiano de outras
pedagógica. crianças e juntos possamos contribuir
  Essa publicação é um convite para para um mundo mais solidário.
que outros olhares se somem a esses e  Boa leitura.

1  Expressão adotada no Projeto Educativo do Brasil


Marista a Educação Básica, que considera os espa-
ços e tempos pedagógicos como categorias indisso-
ciáveis.

7
8
9
“Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão.”
Chico Buarque e Milton Nascimento

C ada vez mais a educação e o cuidado


da primeira infância ganham espa-
ço nas pesquisas, nas políticas sociais e
A educação infantil é a primeira eta-
pa da educação básica e tem por função
favorecer a aprendizagem e desenvolvi-
nas discussões de organismos nacionais mento das crianças em atividade com-
e internacionais, o que nos traz entu- plementar à da família e da comunida-
siasmo e esperança em dar condições de, por meio de intensas e significativas
de vida digna às crianças. Essa impor- aprendizagens. É importante reconhecer
tância se dá a partir do momento em que a infância não é singular nem úni-
que a sociedade reconhece que os seis ca. São múltiplas as infâncias que estão
primeiros anos são fundamentais para presentes nos espaços de educação infan-
o desenvolvimento integral do ser hu- til, constituídas socialmente a partir da
mano e que nessa faixa etária, a crian- cultura e da história de cada um. Neste
ça precisa de mais cuidados sentido, é imprescindível desconstruir
físicos, além de sentir- “imagens mitificadas e estereotipadas
se amada, pertencen- acerca das crianças, que perpassam nos
te a um grupo, e ter discursos, nas práticas e, em geral nas
possibilidades de formas mais variadas de representação
aprender, brincar da infância”. (PROUST e JAMES apud
e interagir para PINTO, 1997, p. 68)
desenvolver-se. Manoel de Barros, em seus momentos

10 Cores da Educação Infantil no Brasil


Cores da Educação Infantil no Brasil 11
poéticos, dizia que “a importância de uma CHETO & CHIQUITO, 2007, p. 210). É
coisa há de ser medida pelo encantamento o mediador responsável por garantir o
que a coisa produza em nós”. As crianças, acesso da criança ao conhecimento e ain-
com seu jeito curioso, nos ensinam que é da estabelecer com ela vínculos de cuida-
preciso encantar-se. Elas são inventivas, do e afeto.
entusiasmadas e trazem ao mundo a reno- As crianças nos ensinam! Embora ne-
vação; e a nós, adultos, a lição de colocar cessitem de proteção e cuidado do adulto,
encantamento na forma de olhar a vida. elas são extremamente capazes de pro-
Para o profissional de educação in- duzir culturas, estabelecer interações,
fantil, esse encantamento
pode ser chamado de revita-
lização, compromisso, vonta-
de, ou ainda, respeito com as
crianças, constituído de uma
força responsável e audacio-
sa, que impulsiona a criar
aprendizagens que têm as
crianças como protagonistas.
A esse profissional cabe criar
algumas trilhas para “culti-
var sonhos, abrir caminhos e
realizar percursos, ajudando
as crianças a (des)construir,
(re)construir as culturas in-
fantis, na tentativa de criar
um olhar-lugar diferente e
singular às infâncias” (MOS-

12 Cores da Educação Infantil no Brasil


dar opiniões, fazer escolhas, inventar,
comunicar-se por meio de diversas lin-
guagens, encantar-se. Elas ainda são
capazes de contestar, opinar, escolher,
decidir, se organizar em grupos, dialogar
defendendo uma ideia ou uma propos-
ta. Mas nem sempre nós, os adultos, as
vimos assim. Houve um tempo em que
eram vistas como incapazes e incomple-
tas. Recipientes a serem preenchidos com
o conhecimento, as opiniões e as decisões
dos adultos. Ainda eram, em outros mo-
mentos, tidas como seres inocentes que não é linear, pois tem contradições, avan-
deveriam ser protegidos da sociedade, ços, recuos e ambiguidades. As situações
para não serem corrompidos. Ou vistas estão entrelaçadas e vão se constituindo
como seres biológicos cujo desenvolvi- e se misturando; “um instante me leva
mento se daria em estágios, em idades insensivelmente a outro e o tema atemá-
pré-determinadas, para serem conside- tico vai se desenrolando sem plano, mas
radas normais. Ou ainda, em alguns mo- geométrico como as figuras sucessivas
mentos, não eram vistas. num caleidoscópio.” (Lispector, 1973, p.
Essas maneiras de conceber a criança 16). Recorrer à história da educação in-
contribuíram para práticas adultocêntri- fantil brasileira é importante, portanto,
cas na educação infantil, que desconside- para aprender suas lições e perceber que,
ravam sua participação, seu protagonis- por fazermos parte da história, podemos
mo e seu potencial criativo. Práticas tão também construir para ela novos rumos.
presentes ainda hoje. No final do século XIX e nas primei-
É importante lembrar que a história ras décadas do século XX, surgiram as

Cores da Educação Infantil no Brasil 13


primeiras creches no Brasil. Elas tinham
caráter assistencialista, funcionavam em
lugares inadequados, com o objetivo de
amparar os filhos das viúvas e apoiar as
mulheres que trabalhavam fora de casa.
Nesse contexto, o atendimento às crian-
ças era realizado por pessoas sem nenhu-
ma formação na educação e no cuidado
de crianças pequenas, o que inviabiliza-
va qualidade na organização do trabalho
pedagógico dessas instituições. O maior
problema nessa época era a mortalidade
das crianças dentro dos “asilos”.
Com o avanço da industrialização
no Brasil, influenciado pelo momento
pós-guerra, houve grande crescimen-
to de mulheres no mercado
de trabalho, incentivado
pelo Estado. A creche
surge como um “mal
necessário” para suprir
as carências afetivas da
criança. Nessa época, o
atendimento teve forte in-
fluência dos estudos da Psicologia
do Desenvolvimento e a proposta era
reproduzir o ambiente familiar, pois a

14 Cores da Educação Infantil no Brasil


criança era considerada abando-
nada pela mãe que tinha que
trabalhar fora.
O movimento feminista e
o direito ao trabalho nos anos
70 impulsionaram o movimen-
to de luta por creches ocasionando
a sua expansão. As reivindicações de
creches surgem como um direito de to-
das as mulheres trabalhadoras, aumen-
tando consideravelmente as instituições
de atendimento, ainda de forma precária,
como lugar para compensar as deficiên-
cias cognitivas das crianças empobreci-
das, pois seu desenvolvimento era compa-
rado com as mais ricas, que tinham mais
oportunidades de aprender e acesso a cui-
dados mais adequados.
Em defesa da educação compensató-
ria para classes menos favorecidas, cres-
ceram as propostas pedagógicas para
as crianças pobres, com a forte ideia de
prontidão. O papel da creche era com-
pensar as carências culturais e preparar
para a escolarização.
Os modelos assistencialistas e com-
pensatórios foram constituindo a iden-

Cores da Educação Infantil no Brasil 15


tidade da educação infantil no contexto pequenas e a redução da educação infan-
brasileiro, em instituições filantrópicas, til a um espaço assistencialista para cui-
comunitárias e privadas. dar da criança enquanto a mãe trabalha,
Nesse contexto se acreditava que o repleto de atividades sem significado.
objetivo da educação infantil era prepa- A partir dos anos 80, com a intensa
rar a criança para a 1ª série do Ensino urbanização, a participação crescente da
Fundamental, principalmente para a mulher no mercado de trabalho e a or-
alfabetização. Nessa configuração, as ganização dos movimentos sociais, um
crianças faziam extensas e repetitivas conjunto de debates começou a demar-
atividades de coordenação motora car a educação como um direito universal
e grafismos para seu sucesso na de todos, inclusive da criança peque-
aquisição do código gráfico. De- na. Nesse momento também for-
pois, com as pesquisas da Psico- taleciam as pesquisas em relação
gênese da Língua Escrita, desco- à importância da formação inte-
brimos o caminho do letramento. gral na aprendizagem do sujeito,
Mais que aprender a decodificar em especial na primeira infância, e
os códigos, seria importante ler, in- as discussões sobre o real papel da
terpretar e comunicar-se por meio das escola para a criança pequena.
línguas oral e escrita. Muito trabalho a O pronunciamento de várias vozes,
ser feito, já que os manuais e as cartilhas principalmente de militantes, intelectu-
com extensos exercícios de repetição ain- ais e movimentos sociais, ecoou na luta
da predominavam. pela garantia dos direitos da criança,
Até hoje temos a herança destes mo- inclusive da educação de qualidade para
delos de atendimento. É comum encon- todas as classes sociais, na redemocrati-
trar em lugares distintos de nosso país a zação do Brasil.
precária formação dos profissionais para o A Constituição Brasileira de 1988 inau-
desenvolvimento da educação de crianças gura no País uma forma completamente

16 Cores da Educação Infantil no Brasil


nova de se perceber
a criança. Em seu
artigo 227, ela deno-
mina a criança como
prioridade nacional
e aponta seus direi-
tos fundamentais. a Educação para Todos, em
Na esfera interna- 1990, fortaleceram o marco legal
cional, aconteceram gran- da dignidade para as infâncias.
des movimentos em defesa da garantia A Convenção sobre os Direitos da
dos direitos humanos. Conquistas como a Criança trouxe um conjunto de direi-
Convenção sobre os Direitos da Criança, tos sociais, culturais e econômicos para
em 1989, e a Conferência Mundial sobre as crianças e adolescentes. No Brasil, o

Cores da Educação Infantil no Brasil 17


Estatuto da Criança e do Adolescente de ensino. A LDB definiu o atendimento
(ECA) ratificou a Convenção, em 1990, em creches para crianças até três anos
pelo princípio da “prioridade absoluta” e pré-escolas para crianças de quatro a
às crianças e aos adolescentes. seis anos, exigiu habilitação mínima dos
Em relação à educação infantil, foi profissionais e definiu a indissociabilida-
considerado como dever do Estado as- de entre educar e cuidar.
segurar o atendimento em creche e pré- Apesar de tantas conquistas norma-
escola. O ECA foi fundamental para tivas, ainda existem grandes lacunas en-
garantir o direito de ser criança, tornan- tre o marco legal e a realidade brasileira.
do-a sujeito de direitos, com prioridade Muitos brasileiros ainda não têm acesso à
na elaboração de políticas públicas. No educação, saúde e assistência social. Frag-

momento em que passamos a perceber mentação das políticas, constante criação


a existência da criança como sujeito de e extinção de órgãos públicos, falta de va-
direitos, iniciamos a construção de um gas e de fonte específica de recursos, assim
novo capítulo na história, com a alegria como a inexpressiva formação profissional
que só a dignidade traz. para atuação com as crianças pequenas,
Mais avanços significativos surgiram são entraves para a consolidação da edu-
em 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases cação de qualidade para as crianças.
da Educação Nacional (LDB), que inseriu Há grande demanda não atendida na
a educação infantil ao sistema regular educação infantil, um desafio para profis-

18 Cores da Educação Infantil no Brasil


sionais, gestores públicos e para as famí- políticas de formação e valorização dos
lias que trabalham e necessitam deixar profissionais, com salário digno para to-
os filhos numa instituição com qualida- dos. A formação inicial dos profissionais
de. Recentes dados da Pesquisa Nacional se agrava ano a ano, pois a maioria dos
por Amostra de Domicílio (PNAD 2008), cursos de Pedagogia não contempla em
do Instituto Brasileiro de Geografia e seus currículos a preparação adequada
Estatística (IBGE), mostram que a taxa para professores de crianças pequenas. A
de cobertura de vagas na creche entre generalização da formação de pedagogos
crianças de zero a três anos é de 18,1% e aumentou o conjunto de conhecimentos e
menos de 80% das crianças de quatro a habilidades pedagógicos, mas diminuiu o
seis anos têm vagas na pré-escola. Quan- aprofundamento de cada um deles.

do há vagas, muitas vezes há a superlo- Felizmente, boas notícias vêm das ex-
tação de crianças nas salas. periências exitosas que estão acontecendo
Além da ampliação do número de va- em várias regiões do Brasil. Propostas di-
gas, outros avanços estão na pauta como ferenciadas que valorizam as culturas in-
elevar o padrão de qualidade do que já fantis, envolvem as famílias e comunida-
existe, adequação dos espaços físicos des nos projetos, oportunizam às crianças
para as diversas necessidades das crian- o acesso a uma diversidade de experiên-
ças, redução de desigualdades regionais cias significativas para a aprendizagem, e
no atendimento e, ainda, efetivação de que trazem as cores da esperança.

Cores da Educação Infantil no Brasil 19


Há, ainda, o crescimento de pesqui- fortalecer as vozes pelo direito à educa-
sas em educação infantil, que aumen- ção infantil de qualidade, ampliou seus
tam as possibilidades de diálogo entre espaços de discussão e produção de co-
os elementos teóricos e a prática sobre o nhecimento sobre o tema.
cuidado e a educação da criança. Muitos Essas e outras iniciativas vêm contri-
estudiosos pesquisando o assunto! buindo para aumentar consideravelmen-
Contamos ainda, nesse percurso, com te o número de pessoas que reconhecem
o empenho, a dedicação e a ousadia de o lugar da criança na sociedade, como su-
muitos educadores que, em seus espaços jeito histórico e social, criativo, solidário,
educativos, buscam construir propostas capaz de construir conhecimento e dar
pedagógicas inovadoras e diferenciadas. significado ao mundo, na interação com
A Rede Marista de Solidariedade tam- adultos e com outras crianças, e que re-
bém faz parte desta história. Visando conhecem ainda que a educação infantil

20 Cores da Educação Infantil no Brasil


é um dos espaços privilegiados para as que fazer para colocar de fato a criança
crianças viverem suas infâncias.            em primeiro lugar. E a responsabilidade
Nosso desejo é que essas e outras boas é de todos nós, monitorando e fomentan-
notícias contagiem toda a educação infantil, do políticas públicas ou gerando práticas
sejam multiplicadas e transbordem para diferenciadas.
o ensino fundamental. Que os dois sejam A intenção desta publicação é olhar para
ambientes para a diversificação de experi- as práticas pedagógicas e para o currículo,
ências e possibilidades sensoriais, lúdicas, relatando caminhos possíveis e simples,
afetivas, estéticas, cognitivas, culturais, que podem fortalecer as vozes pela garantia
criativas e participativas para crianças de do direito à educação com dignidade.
todas as idades. Que a rigidez das rotinas A Rede Marista de Solidariedade, em
seja substituída por tempos flexíveis e ne- parceria com a Rede Marista de Colégios,
gociados; carteiras enfileiradas substituí- prefigurando um ambiente de qualidade
das por ambientes que favoreçam a coleti- em educação infantil a ser instaurado,
vidade e o compartilhamento de histórias; ampliou seus espaços de discussão e pro-
e que a ação pedagógica se amplie para o dução de conhecimento sobre o tema.
parque, o bosque e as ruas da comunidade. De 2001 a 2006, o Grupo de Estudos
A história mostra que grandes con- em Educação Infantil – (GEEI) formado
quistas se deram na mobilização popu- por profissionais das duas redes, pesqui-
lar. A democratização da gestão pública, sou, visitou experiências exitosas e refletiu
por meio da participação da sociedade no sobre as práticas construídas em educação
acompanhamento e fiscalização das po- infantil. A partir dos estudos e das experi-
líticas, contribuiu decisivamente para a ências coletivas, nasceu outro jeito de habi-
melhoria da educação infantil.  tar o currículo e conceber a identidade da
Vivemos o tempo de transição entre educação infantil Marista, sistematizada
a herança assistencialista e o acesso à no “Projeto Marista para a Educação In-
educação por direito, mas ainda há muito fantil – Coleção Currículo em Movimento”.

Cores da Educação Infantil no Brasil 21


22 Cores de um currículo em movimento
Cores de um currículo em movimento 23
“Eu carrego um sertão dentro de mim,
e o mundo no qual eu vivo é também o sertão.
As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim.”
João Guimarães Rosa

O Projeto Marista para a Educação


Infantil – Coleção Currículo em
Movimento nasceu a partir de muitas
vas práticas e continua sendo inventado
no dia a dia, por meio da força criativa
das crianças, educadores e demais ato-
mãos e ideias. Com a participação e a ge- res, famílias e suas comunidades, que
nerosidade de adultos e crianças, foi se intencionalmente produzem aprendiza-
desenhando com as cores de um projeto do no cotidiano.
institucional coletivo, impulsionador de Narrar aqui as práticas construídas
crenças, escolhas e ações. Foi um marco dentro de cada Centro Social Marista, ins-
na educação infantil da Instituição Ma- piradas no Projeto Marista para a Edu-
rista como ferramenta mediadora de no- cação Infantil é colocar mais cores nessa

24 Cores de um currículo em movimento


história e, na mistura com outras cores, es- ceber as lacunas entre as duas que po-
timular e inspirar novas composições. dem ser reduzidas.
O currículo coletivamente constru- O Projeto Marista para a Educação
ído e vivido nos Centros Sociais Maris- Infantil faz a opção de algumas dimen-
tas agrega valores, concepções e práti- sões condutoras da proposta. A escolha
cas advindos da reflexão crítica de cada por dimensões em vez de disciplinas se
educador. Entendemos que currículo é deu pela possibilidade dessas dimensões
fluxo e movimento, é projeto a ser cons- iluminarem os planejamentos, a media-
truído e experimentado na prática e não ção do educador, as relações entre crian-
é um programa predeterminado que os ças e adultos e os projetos de trabalho
educadores devam executar. Portanto, transversalmente, sem colocar limites
ao construí-lo2 “o olhar para a realidade ou prescrições e controles. Mas sim se-
precisa estar presente”. Ao concebê-lo, rem fios condutores que percorrem o cur-
fazemos escolhas de saberes e experiên- rículo, garantindo sua intencionalidade.
cias de aprendizagem que se afinam com As dimensões da Consciência Pla-
as crenças e intenções que temos acerca netária, Religiosidade, Investigação,
do sujeito que queremos formar. A cons- Criação, Acolhida e Solidariedade são
trução de um currículo pressupõe criar
uma cultura de avaliação dos processos
e dos resultados esperados. A partir des-
sa ótica, a avaliação toma uma dimensão
orientadora do trabalho, pronuncia a re-
lação entre a situação real e a situação
esperada e provoca a reflexão para per-

2  Projeto Marista para a Educação Infantil – Coleção


Currículo em Movimento, p. 60.

Cores de um currículo em movimento 25


campos de saberes, o “eixo que organiza
o currículo. Fio condutor. São contingen-
tes próximos de nós. O que falam, o que
escrevem, o que produzem e promovem
essas dimensões? Elas querem subverter
a ordem. Ser potencial criativo” 3.
Para o relato das experiências vivi-
das nos Centros Sociais Maristas, faz-se
necessário apresentar, ainda que breve-
mente, o que representa para nós cada
uma das dimensões.

Acolhida e
relações solidárias
A Dimensão da Acolhida e Relações
Solidárias traz para a proposta educativa
valores como a ética e a boa convivência.
“Agir pedagogicamente para a solidarie-
dade significa ir além de uma concepção
apenas de generosidade assistencialis-
ta, tuteladora do outro, e avançar pelas
vias seguras de uma solidariedade que
transforme e que modifique as relações
na perspectiva da coletividade, da coope-

3  ibidem p. 63.

26 Cores de um currículo em movimento


ração e da partilha” 4.
À medida que a criança cresce, apren-
de a se relacionar com o outro e a res-
peitar as identidades culturais, raciais e
religiosas, desde que situações de apren-
dizagem sejam planejadas e mediadas
pelo adulto. As rodas de conversa, assem-
bleias e trabalhos em grupo são momen-
tos para exercitar o diálogo, a escuta e o
respeito à diversidade. É necessário que
nós, adultos, agucemos nossa capacida-
de de escutar, sensibilizemos os ouvidos,
pois as crianças falam a todo o momento,
mesmo as menores. Todas as situações
do cotidiano podem ser utilizadas para
promover o diálogo e a relação respeitosa
entre as pessoas.

Consciência planetária
O espaço educativo tem a relevante
função de formar pessoas cuidadoras de
si, do próximo e do planeta. A dimensão
da Consciência Planetária busca em pe-

4  ibidem p. 74.

Cores de um currículo em movimento 27


quenas atitudes, como o uso consciente intenção, e que nos chame a construir
dos recursos e o olhar solidário sobre o uma ecopedagogia” 5.
meio ambiente, desenvolver valores, A criança aprende a cuidar da natu-
princípios e comportamentos que per- reza interagindo com ela, observando os
cebem a Terra como única comunidade. processos de nascimento e crescimento
“É, pois, a edificação de uma consciência das plantas, brincando com água, obser-
planetária um dos elementos que bus- vando as cores do céu, vivendo ao ar livre.
camos desenvolver no processo educati- É preciso dar mais liberdade às crianças se
vo escolar desde a primeira infância. A entendemos a infância como um momento
aventura que vislumbramos é a constru-
ção de uma pedagogia que garanta essa 5  ibidem p. 65.

28 Cores de um currículo em movimento


em que o ser humano constitui sua identi- os envolvem, respeitando as opções e
dade e seu conhecimento sobre o mundo. escolhas religiosas. “Ao tratarmos des-
se aspecto para a educação infantil, res-
Religiosidade saltamos a experiência religiosa como
elemento mediador da construção da
A Dimensão da Religiosidade tem religiosidade que se revela nas crianças
como valores principais o amor e a soli- pequenas de forma vivenciada, experi-
dariedade. A contemplação do sagrado mentada, experienciada 6. Há, nesta pers-
acontece pela experiência com signos, pectiva, a possibilidade da explicação da
símbolos e significados, por meio de in-
cursões nos aspectos socioculturais que 6  ibidem p. 76.

Cores de um currículo em movimento 29


existência do homem, a partir de sua ex-
periência estética e transcendente.

Investigação
As crianças são curiosas e se encan-
tam com as descobertas que fazem sobre
o mundo e suas vivências culturais. Uti-
lizando recursos simples, observam ex-
ploram, experimentam, levantam hipó-
teses, projetam ideias e ainda utilizam
inúmeras linguagens para construir sig-
nificados. “Por isso, as crianças necessi-
tam de espaços de diálogo, de trocas de
experiências, de questionamento, de dú-
vidas, ou seja, uma sala de aula transfor-
mada em uma comunidade de investiga-
ção, cuja essência seja o diálogo” 7.
Ao serem convidadas a investigar e
experimentar, as crianças aprendem com
sentido. Precisamos oferecer a elas pos-
sibilidades interessantes de pesquisa e
provocá-las a expressar seus pensamen-
tos e hipóteses em linguagens diversas.

7  ibidem p. 92.

30 Cores de um currículo em movimento


Criação
A criança é curiosa e se surpreende
com as descobertas que faz sobre a vida.
Ela vê as novidades e os acontecimentos
com olhos sensíveis. Por isso, um pedaço
de madeira vira um cavalinho, um lençol
se transforma em uma cabana e a caixa
de papelão tantas vezes é mais atrativa
que o próprio brinquedo.
A educação infantil precisa cultivar
a sensibilidade, a fantasia e o encanta-
mento da criança, pois são elementos
que estimulam a criatividade. Assim,
“a Dimensão da Criação é entendida
como mais um elemento da infância e
da produção de significado pelas crian-
ças, indicando o aspecto singular e múl-
tiplo da cultura infantil” 8. Portanto,
uma proposta pedagógica que valoriza
a criatividade oferece espaços criativos,
materiais diversificados e tempo para
aguçar a criação.

8  ibidem p. 80.

Cores de um currículo em movimento 31


32 Cores de um currículo em movimento
Cores do cotidiano 33
“Diego não conhecia o mar.
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava
na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto
seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente
conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!”
Eduardo Galeano – O Livro dos Abraços

A s linguagens, o brincar, a participa-


ção infantil e da família, o cuidar e
educar, a organização do espaçotempos,
sibilitam o exercício desses temas nas
atividades cotidianas, orientados pelas
dimensões da Consciência Planetária,
a documentação pedagógica e, ainda, a Religiosidade, Investigação, Criação,
formação contínua dos educadores, são Acolhida e Solidariedade.
elementos fundamentais nas propostas A escolha do trabalho com projetos
de educação infantil desenvolvidas nos oportuniza que as crianças “aprendam
Centros Sociais Maristas. a fazer, fazendo, errando, acertando,
Os projetos compartilhados aqui pos- problematizando, levantando hipóteses,

34 Cores do cotidiano
investigando, refletindo, pesquisando, equipe, na apresentação
construindo, discutindo e intervindo”. dos relatos. As imagens
Portanto, selecionamos sete projetos dos complementam e ofere-
Centros Sociais Maristas para contar como cem a possibilidade de
se deu cada percurso, seu nascimento, conhecer um pouco mais de cada Centro
desenvolvimento e resultados, buscando Social Marista e ver os nossos pequenos
trazer o caminho reflexivo feito por cada cientistas, artistas e arteiros em ação.

Cores do cotidiano 35
Índice dos projetos
1. As linguagens 4. Cuidar e
Quem comeu educar
meu queijo?  42
Arapitanga  66

3. A participação
2. O brincar
infantil
Construindo
parcerias e Ecos da roda:
significando e com a palavra,
espaços para a criança  60
brincar  52
36
6. Formação
contínua dos
educadores e
documentação
pedagógica
Formação: entre a
urdidura e a trama  86

5. A organização
do espaçotempo 7. Participação
pedagógico das famílias
Cores e alegria nos Participação:
espaçotempos de criando com
aprendizagem  74 amor  95
37
1. As linguagens
“O meu olhar é nítido como um girassol.
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto (...)
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo.”
Fernando Pessoa

A linguagem, invenção humana, é o


instrumento de formação do mundo
cultural. Cada linguagem é um sistema
e exploradas. O banho de linguagem que
recebemos na infância marca toda nossa
história de vida, determina preferências,
composto por signos e tem as regras pró- aguça a sensibilidade, define escolhas e
prias de funcionamento. constitui nossa identidade.
Há inúmeras linguagens que se rela- A lembrança de nossa infância tem
cionam e fazem a criança entender o mun- cheiro, cor e sabor específico, seja da fruta
do, representar e comunicar suas ideias. A preferida ou do bolo feito pela avó. Apren-
linguagem oral tem destaque na primeira demos e definimos nossas escolhas pela di-
infância porque é a partir da palavra que versidade de aromas, cores, texturas, sons,
percebemos o outro e interagimos. A pa- sabores e sensações que experimentamos.
lavra é o veículo da transmissão dos sig- Portanto, criar, inventar, descobrir, testar,
nificantes. Porém, há inúmeras lingua- misturar, desmanchar e viver experiências
gens a serem manifestadas, conhecidas sensoriais de corpo inteiro fazem a criança

38 Cores do cotidiano
perceber e entender a totalidade e a rela- saudáveis, do autocuidado, da natureza
ção entre as linguagens. e da cultura, dos sabores, aromas, tex-
Entre as possibilidades destacamos o turas, sensações, das brincadeiras, das
universo de descoberta das linguagens: danças, do faz-de-conta, da imaginação,
artística, verbal, corporal, dos hábitos dos jogos, entre outras.

As linguagens 39
Quem comeu meu queijo?9
“Com certeza, a liberdade e a
poesia a gente aprende com as crianças.”
Manoel de Barros

O Centro Social Marista Itaquera tem


traduzido na proposta pedagógica
a crença na criança como sujeito histó-
nho para promover o protagonismo e o
aprendizado com significado, na perspec-
tiva de aprender participando, fazendo,
rico, co-construtor de conhecimento e de experimentando e discutindo. Portanto,
cultura. Esta concepção direciona as es- o educador deve “colocar-se no ponto de
colhas metodológicas e provoca a formu- vista das crianças, buscar descentralizar-
lação de atividades interessantes e sig- se para refazer-se criança mesmo sendo
nificativas. Ao participar de um projeto, adulto, deixar fluir seu devir-infantil
por exemplo, a criança está envolvida na para guiar os objetivos a que se propôs
experiência que integra a construção do desenvolver no trabalho, sem perder de
conhecimento às práticas vividas, pois vista o que é inerente à infância”10 .
permite a resolução de problemas reais, A contação de histórias é o momen-
levantamento de hipóteses, investigação to esperado pelas crianças do Infantil II,
e representações em múltiplas lingua- formado por crianças de um a dois anos
gens. de idade. Todos os dias sentam-se em
A pedagogia de projetos abre o cami- roda embaixo de uma árvore, no parque
ou em almofadas e tapetes para ouvir no-
9  Projeto desenvolvido por educadores e educandos
vas histórias.
do Centro Social Marista Itaquera.
10  ibidem, p.105.

40 Cores do cotidiano
Quem comeu meu queijo? 41
Certo dia, o grupo estava brincando
no parque, quando Luiza, de dois anos,
foi até a biblioteca buscar o livro Cadê11 .
Ela concentrou as crianças à sua volta
para contar a história e todos começa-
ram a ouvi-la atentamente, esquecendo-
se dos brinquedos do parque.
Nesse momento os educadores perce-
beram que ali estava nascendo um proje-
to, já que a curiosidade das crianças pe-
las situações envolvendo animais no livro
provocou no grupo muitos comentários.
Os educadores deixaram fluir a conversa
e a curiosidade, escutaram e anotaram
o que poderia ser interessante para as
crianças. Com as anotações, se reuniram
para planejar o roteiro preliminar do pro-
jeto, com o cuidado de garantir ativida-
des significativas e lúdicas para crianças
daquela faixa etária. Sabiam que o rotei-
ro teria imprevistos, mudanças e outros
elementos trazidos pelas crianças no de-
correr das atividades, mas sabiam tam-
bém que o planejamento daria segurança
e intencionalidade para o trabalho.
O livro Cadê traz um jogo de palavras

11  Lins, Guto. Cadê. Editora Globo, 2008.

42 Cores do cotidiano
com animais e objetos, o que possibilita
brincar com a imaginação.
Para criar clima de mistério, as edu-
cadoras escureceram a sala e contaram a
história com uma lanterna iluminando o
livro. Em seguida, pesquisaram com as
crianças na internet e em outros livros
as características de cada personagem.
A música Rato12 foi a trilha sonora do
projeto. As crianças assistiram ao clipe da
mesma dupla, dramatizaram e cantaram
utilizando instrumentos musicais com su-
catas. A cada animal apresentado na histó-
ria, como o rato, a onça e o gato, as crianças
lembravam outras músicas, imitavam e
dançavam.
O ateliê foi previamente preparado
com materiais reutilizáveis, tintas e pa-
péis e lá, as crianças criaram com os edu-
cadores alguns ratinhos. Ao observar e
ajudar na confecção experimentaram di-
ferentes texturas, cores e cheiros dos ma-
teriais. Algumas crianças não gostaram
de pegar na palha de aço, utilizada para
pintar as embalagens. Preferiram espon-
jas ou a própria mão. As educadoras insis-

12  Palavra Cantada – Canções Curiosas, 1998.

Quem comeu meu queijo? 43


tiram no outro dia com a palha gato adora leite, as crianças experimen-
de aço, entre outros materiais taram o gosto, a temperatura e textura
mais macios, e observaram as do leite em pó. Em seguida diluíram com
escolhas e as diferentes sensa- água e fizeram novas experiências como
ções de cada criança ao explo- passar de um copinho para o outro, colo-
rar a novidade. car a mão levando o líquido até o rosto e
No ateliê confeccionaram despejar em outros recipientes.
o nariz e as orelhas do rato No outro dia, o grupo utilizou o retro-
para brincar, além de ratinhos projetor para brincar com luzes e som-
em miniatura com massa de modelar. bras. Imagens de animais foram proje-
Algumas mães relataram que as crian- tadas na parede, no teto e no chão para
ças brincaram tanto com os ratinhos em visualizar o personagem de uma forma
casa, que até dormiram ao seu lado. A expandida. Ana Júlia ao se deparar com
utilização de materiais reutilizáveis va- a imagem do gato refletida no chão, pas-
riados desenvolve atitudes de cuidado sou a imitá-lo engatinhando e miando.
com o meio ambiente e possibilita cria- Luisa brincava com uma máscara de
ções inéditas com autoria da criança. gato. Ao ser questionada acerca de qual
Nesse momento, a partir do que ela viu animal estava representando, natural-
sobre o rato, tem a possibilidade de cons- mente respondeu: “Uma gatinha – Miau”
truir seu próprio ratinho, criando sem fazendo relação entre o animal e o som.
padrões estéticos pré-estabelecidos. Ao conhecer sobre os peixes e seu
Nas experiências com sabores dife- habitat em água doce ou salgada, os pe-
rentes, mistura de cheiros, exploração quenos experimentaram sal e açúcar.
de texturas, investigação de sombras e Os educadores perceberam que todas as
luzes, os pequenos cientistas constroem crianças gostaram do açúcar, pedindo
suas hipóteses e aprendem brincando. para repetirem a experiência, porém a
Por exemplo, após descobrirem que o maioria do grupo não gostou do sal.

44 Cores do cotidiano
Quem comeu meu queijo? 45
A onça despertou muita curiosidade do que se tivesse sido preparado pelo
e surpresa. Com a ajuda das educadoras, adulto.
as crianças olharam na Internet ima- As fotografias e os comentários mais
gens de onças na floresta. As educadoras interessantes foram registrados pelos
imprimiram fotografias de animais e le- educadores no portifólio da turma. Os
varam para a sala para conversar sobre registros escritos, vídeos e fotografias
as imagens e maquiar as crianças inspi- mostram as interações entre as crianças
rando-se nas cores. e dão pistas de temas interessantes para
Era difícil encontrar o grupo em sua
sala de referência, porque as possibilida-
des encontradas nos espaços coletivos para
desenvolver o projeto foram inúmeras.
Desenvolver projetos com crianças
muito pequenas é um desafio, porque
elas exigem mais atenção dos adultos e
os grupos geralmente são numerosos. O
caminho encontrado pelas educadoras foi
dividir as crianças em pequenos grupos,
com atividades diferenciadas em alguns
momentos do dia.
As crianças ajudaram a registrar o
percurso do projeto. Colaram nos painéis
da sala suas próprias fotos de ratinhos e
as figuras do livro. As crianças participa-
ram, portanto, da construção do espaço
da sala, com seus desenhos e suas produ-
ções, muito mais significativas para elas

46 Cores do cotidiano
novos projetos. convidaram a ir até o painel que tem a
Os espaços coletivos também assumi- ilustração da história. Junior, de dois
ram papel educativo. O ateliê, por exem- anos, nos disse: - Esse é o Cadê, do
plo, favoreceu a experimentação e a es- Guto. Perguntamos quem era o Guto e
colha das crianças com a disponibilidade nos disseram que era quem escreveu e
de materiais como pedrinhas, palha de desenhou, mostrando uma foto na con-
aço, tampinhas, tecidos, canudos, papéis tracapa do livro. A pedidos, repetimos
e colas, tudo ao alcance das crianças. a história e, antes mesmo de virarmos
A construção dos espaços contou com as páginas, nos diziam o que acontece-
a participação de alguns familiares na ria. Imitavam os animais e cantavam as
confecção e coleta de materiais. Após a músicas relacionadas ao tema. Ficamos
apresentação do Projeto Quem comeu muito curiosas com os processos educa-
meu queijo? para as famílias, elas ilus- tivos que ali ocorreram e constatamos
traram o trabalho com produção artísti- que a criança pequena é capaz de in-
ca. Gilda, mãe do João Victor, desenhou terpretar e dar sentido à vida por meio
um menino sorrindo, pois percebe que de suas experiências, age sobre sua re-
seu filho é muito feliz no Centro Social alidade, faz escolhas e é protagonista”,
Marista. Alexsandra, mãe do Eduardo, observam Lais, Thayza e Vanessa, as
fez o rato, personagem do projeto. Ali- educadoras do grupo. O projeto acabará
ne, mãe da Emilly, preferiu escrever que quando elas perceberem novos interes-
amava sua filha. Em seguida as imagens ses das crianças.
foram coladas nos vidros da sala, em ex- Com a criatividade, a equipe percebeu
posição aos pais e crianças. que a aprendizagem acontece quando o
“Queremos o Guto” é a frase mais educador seleciona situações interessan-
ouvida na roda de histórias, quando se tes para a criança aprender os conheci-
referem ao autor do livro Cadê: mentos culturalmente construídos para
“Chegamos à sala e as crianças nos compreender e representar a realidade.

Quem comeu meu queijo? 47


2. O brincar

A linguagem do brincar é a própria ex-


pressão da infância. O brincar tem
inúmeras possibilidades, é a principal
atividade das crianças.
Na brincadeira a criança produz cul-
tura, constrói vínculos, interage com seus
pares e sente prazer. Mas a brincadeira
está perdendo espaço para a televisão
em casa e para as rotinas intensas na es-
cola. Apelos publicitários estão invadin-
do a infância e substituindo a imagina-
ção e a criatividade por objetos prontos
e descartáveis. A educação infantil pode
fazer o contraponto desta situação e ze-
lar para que a infância não seja tomada
pela industrialização e consumo, e prin-
cipalmente garantir tempo e espaço para
brincar. Pode ainda convidar as famílias
das crianças a discutir esse tema visan-
do zelar pelo brincar em casa também.
Ofertas de materiais alternativos
como tampinhas, tábuas, tecidos, pneus

48 Cores do cotidiano
e outros materiais não-estrutu-
rados permitem a exploração
aberta e a invenção de novas for-
mas de brincar, além de promo-
ver a integração entre as crian-
ças. A mesma atenção deve ser
dada à seleção de brinquedos,
além de materiais para a crian-
ça confeccionar os próprios brin-
quedos. É importante verificar
se os brinquedos e materiais não
oferecem perigo e são adequados
para cada momento da vida da
criança.
Há de se considerar a preparação de gindo e ampliando as possibilidades de
espaços e materiais para enriquecer as brincar.
atividades. A surpresa está na simplici- Na brincadeira não há limites. A
dade, na improvisação de brincadeiras criança com deficiência também partilha,
em lugares inusitados, como cabanas, aprende, interage e amplia seu repertório
casa de árvore, embaixo de brinquedos de vivências por meio do brincar, desde
do parque, no escuro e até na chuva. que os ritmos individuais sejam respei-
Prestar atenção nas ideias e propostas de tados. São oportunidades para construir
brincadeiras vindas das crianças ajuda a relações afetivas e aprender, desde cedo,
entender como elas gostam de brincar e a não discriminar. Afinal, brincar se
auxiliam que os educadores se envolvam aprende brincando.
nas brincadeiras das crianças, intera-

O brincar 49
Construindo parcerias e significando
espaços para brincar13
“Quando a estrela acende ninguém mais pode apagar
Quando a gente cresce tem um mundo pra ganhar
Brincar, dançar, saltar, correr
Meu Deus do céu onde é que eu vim parar?”
Paulo Tatit

O bairro União de Vila Nova, loca-


lizado na zona leste de São Paulo,
originou-se da luta por terras na década
O Centro Social Marista Irmão Jus-
tino inseriu-se nesse contexto no final de
2008 com o desafio de oferecer o serviço
de 80. O próprio nome do bairro expressa de educação infantil a 150 crianças da
as características da comunidade que ga- comunidade.
rantiu aos seus familiares um novo lugar No início do trabalho, como a comu-
para viver. nidade local ainda não conhecia o Cen-
A região ainda é marcada pela pre- tro Social, foi importante apresentar às
cariedade de políticas públicas, desem- famílias as intenções da proposta edu-
prego e ausência de espaços de cultura, cativa, as concepções orientadoras do
lazer e esporte. trabalho, o perfil dos profissionais, sua
qualificação e a importância da educação
13  Projeto realizado pela equipe do Centro Social
infantil na vida da criança.
Marista Irmão Justino. Construir vínculos entre familiares,

50 Cores do cotidiano
crianças e educadores por meio de ati-
vidades integradas é imprescindí-
vel para transmitir segurança à
criança pequena e à sua fa-
mília. A criança terá que
aprender a conviver
com a ausência física
de seus responsáveis
por um longo período do
dia num espaço, até então,
desconhecido para ela. As pri-
meiras semanas da acolhida são
momentos preciosos para constru-
ções positivas de integração com esses
espaços e os demais sujeitos. implantação do Centro
Oportunizar o exercício da materni- Social Marista, a equipe
dade e paternidade no ambiente coleti- planejou atividades lú-
vo é demonstrar respeito à criança. Para dicas envolvendo as famílias e as
isso, podemos criar momentos de encon- crianças com foco no brincar, com os ob-
tros e partilha de conhecimento sobre a jetivos de:
criança com foco no cuidado e educação » Estabelecer uma relação de con-
compartilhados entre a família e o espa- fiança no que diz respeito ao atendimento
ço educativo. da criança na unidade por meio da vivên-
As famílias também trazem expec- cia da rotina, conhecimento dos espaços
tativas quanto ao atendimento e preci- e diálogo com educadoras;
sam ser ouvidas. Assim, no intuito de » Discutir com a família sobre a im-
estabelecer um ambiente de parceria na portância da interação e do brincar no

Construindo parcerias e significando espaços para brincar 51


processo de desenvolvimento e aprendi-
zagem da criança;
» Construir parcerias com as famí-
lias para a participação das mesmas nos
projetos desenvolvidos no decorrer do
ano;
» Desenvolver o sentimento de per-
tença das famílias e crianças no novo es-
paço educativo;
» Promover momentos de respeito
às identidades culturais da comunidade
com trocas de relatos entre os responsá-
veis e registro dos mesmos para servirem
de subsídios na construção de projetos.
A proposta foi apresentada aos fami-
liares em um encontro formativo. Nesse
momento, todos foram convidados para
participar da acolhida das crianças por
meio da construção de brinquedos e or-
ganização dos espaços do Centro Social
Marista.
O brincar foi escolhido como temática
central por desenvolver a imaginação e
interiorizar a realidade, habilidades ne-
cessárias para o desenvolvimento do vo-
cabulário e a entrada da criança no espa-
ço educativo. Para interagir com o mundo

52 Cores do cotidiano
que a cerca, a criança brinca. Brinca com
seu corpo, com o corpo da mãe, com ob-
jetos ao seu redor, com o ambiente, com
a natureza... Tudo é brinquedo. Assim,
a semana de acolhida foi planejada para
oferecer momentos de criação de brin-
quedos.
No primeiro momento, a equipe ficou
receosa com a frequência dos responsá-
veis nos encontros, mas a possibilidade
da participação de um membro da fa-
mília, independentemente do grau de
parentesco, possibilitou a frequência de
90% dos responsáveis.
Foram promovidas atividades com
as famílias relacionadas ao brincar utili-
zando materiais recicláveis, contribuin-
do com a construção de memórias afeti-
vas, como:
» Dinâmicas e leituras para a sen-
sibilização relacionadas a cantigas de
roda, brincadeiras tradicionais e regio-
nais, contação de histórias, brincadeiras
com bebês;
» Partilha de experiências entre os
responsáveis e os educadores;
» Confecção de mural, com as men-

Construindo parcerias e significando espaços para brincar 53


sagens das crianças e responsáveis;
» Confecção de brinquedos ou mate-
riais que as crianças pudessem utilizar
nos espaços do Centro Social.
Para os bebês o grupo planejou ati-
vidades de confecção de móbiles e brin-
quedos sonoros, táteis e de sensibiliza-
ção dos sentidos. Já as crianças maiores
vivenciaram o resgate de brincadeiras e
brinquedos tradicionais que os seus fa-
miliares conheciam, estimulando a lin-
guagem, a transmissão cultural e de va-
lores, a imaginação e a ludicidade.
Os brinquedos foram confeccionados
com materiais reutilizáveis em respeito
ao meio ambiente. Tudo que foi confeccio-
nado é utilizado nas salas das crianças.
A organização espacial com as pro-
duções das famílias documentou e regis-
trou a cultura e a história de cada famí-
lia, proporcionando um espaço acolhedor
e agradável.
Os registros foram feitos pelos edu-
cadores com fotos, observações, falas das
crianças, avaliações da comunidade e dos
educadores. As produções finais resulta-
ram nos portfólios que foram disponibi-

54 Cores do cotidiano
lizados em cada sala para as crianças e
familiares apreciarem e reconhecerem
as produções culturais.
Com o projeto, educadores obtiveram
informações sobre o contexto em que as
famílias estão inseridas, aproximando a
proposta educativa da realidade local.
O projeto foi tão bem aceito pela co-
munidade que foi integrado à proposta
socioeducativa do Centro Social Marista
Irmão Justino.
As famílias continuam participan-
do por meio do projeto “Café Pedagógico
- Oficina para Todos” em atividades de
arte e cultura. Nos encontros são as pró-
prias mães que ensinam as técnicas de
artesanato ao grupo, e alguns produtos
são vendidos na Feira de Socioeconomia
Solidária.
A experiência mostrou que o fortale-
cimento de vínculos com as famílias se
constrói no dia a dia. Dessa forma, fa-
mílias, crianças e profissionais, por
meio do protagonismo e da partici-
pação, vêm constituindo o que cha-
mamos de comunidade educativa.

Construindo parcerias e significando espaços para brincar 55


3. A participação infantil
“A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende
a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a
espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou
artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança.”
Convenção sobre os Direitos da Criança, Art. 13

C rianças são sujeitos que se expressam


e agem com singularidade, produzem
cultura e aprendem nas interações sociais
e opinem de forma compatível com a pos-
sibilidade de seu momento de vida.
Em respeito à criança, o adulto deve
com os adultos e com outras crianças. consultá-la sobre assuntos que afetam
É possível constatar que demonstram sua vida e motivá-la a opinar, escolher,
seu pensamento quando tomam deci- argumentar, assim, gradativamente ela
sões sobre suas amizades e brincadeiras, constrói sua autonomia e aprende a ex-
criam regras, decidem sobre o que gostam por seu pensamento e fazer escolhas.
ou não gostam e encontram alternativas A participação infantil é importante
para seus conflitos familiares e sociais. ferramenta de autoproteção e empodera-
Potencializar a escuta das crian- mento das crianças, – para que elas am-
ças em brincadeiras, rodas de conversa, pliem sua capacidade de argumentação
assembleias e trabalhos em pequenos e, com isso, suas opiniões sejam escuta-
grupos, é encorajar e permitir que dialo- das. Criar espaços para estas manifesta-
guem sobre os assuntos que lhes afetam ções é garantir o exercício da cidadania.

56 Cores do cotidiano
A participação infantil 57
Ecos da roda:
e com a palavra, a criança!14

D iariamente, 136 crianças com até 3


anos de idade participam de ativi-
dades socioeducativas no Centro Social
de escuta valoriza as pessoas e ensina a
solicitude, a cooperação, a acolhida e a
paciência.
Marista Robru. A apropriação do espaço Na educação infantil é comum ini-
do Centro Social Marista pela comuni- ciar o dia com a roda, seja com o obje-
dade também acontece na parceria com tivo de discutir combinados, de plane-
a Prefeitura Municipal, para a inclusão jar as atividades do dia ou, ainda, de
digital dos moradores, no Telecentro, e escutar a criança contar um pouquinho
ainda no desenvolvimento de projetos sobre si e conversar com os amigos. O
junto às famílias e comunidade. As pro- círculo faz com que todas as crianças se
postas socioeducativas do Centro Social vejam, se escutem e participem demo-
Marista têm em seus princípios a Peda- craticamente. Mas nem sempre é assim
gogia da Escuta. que acontece.
A Pedagogia da Escuta é uma manei- Muitas vezes é o adulto quem detém a
ra de comunicação solidária, que apro- palavra, por não acreditar que a criança
xima as pessoas por meio do respeito e pequena é capaz de colocar suas ideias,
do diálogo. Desenvolver um ambiente escolher e aprender a assumir responsa-
bilidades.
14  Projeto realizado pela equipe do Centro Social
A observação dos momentos de con-
Marista Robru. vivência com as crianças levou os educa-

58 Cores do cotidiano
Ecos da roda: e com a palavra, a criança! 59
dores do Centro Social Marista Robru à
reflexão em relação a concepções adul-
tocêntricas que impedem o exercício do
protagonismo infantil e que aconteciam
no dia a dia.
A princípio a equipe optou por ana-
lisar as diferentes rodas que realizavam
com as crianças. Os educadores obser-
varam, filmaram e escreveram como
conduziam as rodas. Ao avaliar os regis-
tros, a equipe se surpreendeu ao perce-
ber que as crianças pouco participavam.
Por exemplo, nas rodas de planejamen-
to, quando apresentavam as figuras
representando os momentos da rotina
diária, comunicando às crianças o que
seria feito no dia. As crianças eram ape-
nas ouvintes.
Diante da constatação, decidiram dar encontros de formação, complementados
novos contornos a essa atividade, para por pesquisas em sites e livros, e pelo es-
saber cada vez mais a respeito das crian- tudo da Convenção sobre os Direitos da
ças, aprender sobre a participação infan- Criança, fundamental para entender a
til e aprimorar as rodas de escuta. Seria legislação que garante o direito à parti-
preciso mudar o jeito de mediar para le- cipação.
gitimar o protagonismo das crianças. Relatos dos episódios cotidianos,
Metodologias de participação infantil filmagens e fotografias foram utiliza-
e a Pedagogia da Escuta foram temas dos dos para criar estratégias para outras

60 Cores do cotidiano
formas de escutar a criança e também
observar se elas sabem se escutar e se
comunicar.
Depois da formação, os educado-
res perceberam que situações do dia a
dia, como brigas, mordidas e disputas
de brinquedos, são bons assuntos a se-
rem levados para a roda. Quando não
há assunto emergente,
um objeto, uma fotogra-
fia ou uma história tam-
bém disparam conversas
que ensinam a se comunicar.
São exercícios de diálogo que
devem ser aprendidos para viver
em sociedade. Porém, considerando
a pouca idade das crianças, como
qualquer ato educativo, o resultado
é lento e há avanços e retrocessos
na convivência.
Com a experiência, os educado-
res entenderam que a boa media-
ção está no respeito e na escuta
sensível, por meio da conversa,
do desenho, do olhar, do tocar e
de outros sinais não ditos que
estão presentes nas relações.

Ecos da roda: e com a palavra, a criança! 61


4. Cuidar e educar
““Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão.”
Milton Nascimento

L ogo nos primeiros meses, o bebê de-


monstra ampla capacidade de se
comunicar e aprender, o que evidencia
do outro quando sou cuidado.
O cuidar não se esgota em ações vol-
tadas para as necessidades de alimenta-
a necessidade de construir propostas ção e saúde, mas inclui a emoção, a afeti-
pedagógicas que potencializem seus sa- vidade, a socialização e a cognição. Para
beres e curiosidades. Mas, apesar de ser BARBOSA,
tão inteligente, é ainda muito pequeno e
precisa do cuidado do adulto em atender “Cuidar exige colocar-se em es-
suas necessidades físicas e emocionais. cuta às necessidades, aos desejos e
O cuidado é essencial para a sobrevivên- inquietações, supõe encorajar e con-
cia humana. ter ações no coletivo, solicita apoiar
As interações realizadas entre adul- a criança em seus devaneios e desa-
tos e crianças são momentos de cuidar e fios, requer interpretação do sentido
educar. São princípios indissociáveis por singular de suas conquistas no gru-
apresentar visão integrada do desenvol- po, implica também aceitar a lógica
vimento. Aprendo a me cuidar e cuidar das crianças em suas opções e ten-

62 Cores do cotidiano
tativas de explorar movimentos no vimento da autonomia, o autocuidado
mundo”(2009, p.66). do saber cultural das crianças. Cuidar e
educar é desenvolver na criança o senti-
Neste processo, as situações signifi- mento de ser amado e protegido. A cons-
cativas de aprendizagem não separam trução da autonomia passa pela segu-
os aspectos intelectuais dos sentimentos, rança que a criança adquire quando sabe
as necessidades primárias do desenvol- que tem com quem contar.

Cuidar e educar 63
Arapitanga15
Artigo I
“Fica decretado que agora vale a verdade,
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.”

Artigo II
“Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.”
Thiago de Mello

C onhecer e interpretar os fatores


históricos, culturais, econômicos e
sociais que interferem na realidade dos
lias atendidas, mostrou que muitas têm
condições precárias de moradia, vivem
do subemprego e sofrem algum tipo de
educandos é fundamental para construir violência ou privação.
uma proposta socioeducativa comprome- O Projeto Arapitanga nasceu para pro-
tida com o fortalecimento da cidadania. mover a resiliência dessas pessoas, prin-
No Centro Social Marista Itaquera, a re- cipalmente de seus filhos. Resiliência é a
alização de um diagnóstico com as famí- capacidade humana de passar por adversi-
dades sucessivas na vida sem prejuízos para
15  Projeto realizado pela equipe do Centro Social
o desenvolvimento. Ela não é inata, pode ser
Marista Itaquera. aprendida e fortalecida no dia a dia.

64 Cores do cotidiano
Arapitanga 65
Arapitanga, em tupi-guarani, signifi- centradas nas atividades e estão mais
ca papagaio vermelho e é uma homena- equilibradas emocionalmente.
gem à cultura das crianças indígenas fei- Outra ação do Arapitanga é o Projeto
ta pela equipe que, ao conceber o projeto, Pedagógico Personalizado – PPP, criado
pesquisava sobre as origens indígenas do para aquelas crianças que apresentam
bairro de Itaquera. situações mais complexas de violações
Segunda-feira era o dia mais agitado dos direitos ou necessidades educativas
e complicado no Centro Social Marista especiais. O PPP tem atividades pedagó-
Itaquera. Após dois dias em casa, algu- gicas diferenciadas para cada criança e
mas crianças voltavam agitadas e tristes. inclui sua família, que é orientada e en-
Quando os educadores perceberam que caminhada para serviços da rede de pro-
poderiam substituir lembranças tristes teção, quando a situação é mais grave.
por momentos alegres, criaram a Segun- Pequenas ações, como o exercício de
da Mais, para acolher com brincadeira e planejar o futuro, promovem resiliência.
diversão, após o final de semana agitado. A mudança da faixa-etária do atendi-
O que já acontecia todo dia teria um ca- mento deixou as famílias preocupadas
ráter coletivo e diferenciado com apre- com a organização da vida da criança,
sentações teatrais, culinária, contação de que anteriormente ficaria até os seis
histórias, passeios e criação de ambientes anos no Centro Social Marista e agora,
e personagens. Um momento forte desen- ao completar três anos de idade, irá para
volvido no projeto foi a visita da persona- a Escola Municipal de Educação Infan-
gem Vovó Chiquinha, que passou a fazer til – EMEI, onde passará apenas meio
parte do grupo, ensinando novas brinca- período do dia. O Rito de Passagem nas-
deiras, músicas e contando histórias. ceu com o intuito de preparar a saída da
A equipe comemora observando que, criança e da família. Elas visitam uma
acolhidas e fortalecidas em grupo, as das escolas do bairro, entrevistam pro-
crianças tornaram-se mais alegres, con- fessores e conversam sobre as mudanças

66 Cores do cotidiano
que terão em suas vidas. O grande desa-
fio do projeto é promover a aproximação
das duas instituições, para que a criança
se adapte e sinta-se segura à nova esco-
la. A atuação junto às famílias acontece
por meio de encontros formativos com os
educadores, construção do projeto de vida
e acompanhamento de cada criança.
O calendário de atividades festivas en-
volve as famílias, educadores e crianças.
Atividades como o Dia da Beleza, festas
para os aniversariantes do mês, celebra-
ções de conquistas individuais como, por blicas pelas quais ainda lutamos.
exemplo, quando um bebê começa a andar; Percebemos que algumas crianças em
e coletivas, como, a chegada de um brin- situação de vulnerabilidade superaram
quedo novo para o parque, dão entusias- traumas e aumentaram a autonomia na
mo, bom humor, sentimento de pertença intervenção da realidade.
ao grupo e elevam a autoestima. Algumas Os resultados percebidos na docu-
crianças têm no Centro Social a primeira mentação pedagógica e em depoimentos
festa de aniversário. São caminhos encon- das famílias demonstram que desenvol-
trados para comemorar as pequenas ale- ver resiliência desde a primeira infância
grias que dão sentido à vida. pode ser o início de uma grande transfor-
O grande desafio do Arapitanga é mação social.
ajudar as famílias na causa dos proble- O Centro Social Marista Itaquera
mas, mas, para tanto, é necessário mais atende 164 crianças até três anos de ida-
que intervenções educativas. Ele depen- de, e tem como princípios a proteção inte-
de da articulação de outras políticas pú- gral e a garantia dos direitos da criança.

Arapitanga 67
5. A organização do
espaçotempo pedagógico
“Depois de acordar, mamar
Depois de mamar, sorrir
Depois de sorrir, cantar
Depois de cantar, comer
Depois de comer, brincar
Depois de brincar, (...)
Depois de ninar, dormir
Depois de dormir, sonhar.”
Sandra Peres, Paulo Tatit e Edith Derdyk

O lugar da educação infantil é o ce-


nário que oportuniza as interações
entre as crianças e a aprendizagem. A
organização desse “lugar” comunica as
crenças e conta as histórias das pessoas
que nele convivem. Quando planejado
com criatividade, instiga a aprendiza-
gem e possibilita amplo repertório de
escolhas para as crianças viverem com
plenitude suas infâncias.

68 Cores do cotidiano
Nem sempre podemos contar com »» Promoção da autonomia: brinquedos
muitos recursos para construir espaços à altura das crianças, móbiles inte-
para a educação infantil. Porém há al- rativos, self service para as crianças
ternativas para torná-lo rico, funcional, maiores; espaço amplo para circula-
seguro e aconchegante. ção e exploração dos bebês;
Alguns aspectos merecem destaque
na preparação dos espaços: »» Limpeza e organização;

»» Diversidade de materiais: plantas, »» Iluminação natural e ventilação;


transparências, areia, água, sucatas, al-
mofadas, espelhos, tecidos, chapéus, sa- »» Segurança: brinquedos sem peças
patos, bolsas, fantasias, mesas e outras pequenas, móbiles construídos com
possibilidades de criação e conforto; materiais resistentes, ausência de
tapetes escorregadios e de mobiliá-
»» Variedade de lugares: ateliês, palcos, rios com pontas ou cortantes, toma-
áreas para descanso, horta, jardim, das protegidas e materiais de lim-
parque, bibliotecas e recantos para peza guardados fora do alcance das
contação de histórias e dramatiza- crianças;
ções;
»» Comunicação: há lugares preparados
»» Oportunidade para exploração: brin- para expor produções das crianças,
quedos para subir, balançar, escalar, relatos, depoimentos e fotografias;
pular, escorregar, esconder, equili-
brar, sentar; »» Cuidado e equilíbrio: na escolha das
cores, no controle do barulho e na ilu-
»» Acessibilidade: adequação para pes- minação para descanso.
soas com deficiência;

A organização do espaçotempo pedagógico 69


O espaço e o tempo estão intimamen- água, areia, argila ou ler histórias, pois
te ligados e se complementam. As crian- todo o dia é preenchido por atividades de
ças vivem o tempo e o espaço de maneira higienização, descanso e alimentação.
indissociável. A forma que organizamos Outro exemplo: planejar o tempo para
os dois interfere nas possibilidades das brincadeiras e não preparar o espaço
atividades. Como, por exemplo, a falta com materiais suficientes para o número
de tempo para explorar os espaços, uti- de crianças, causando brigas, mordidas
lizar o ateliê, mexer com e choro.
Para evitar situações como essas é
importante lembrar que a organização
do espaço e o planejamento do tempo
caminham juntos. Quando a orga-
nização do tempo é rígida e frag-
mentada, pode comprometer o
encantamento do cotidiano. Po-
rém, quando equilibramos re-
petição com novidade, rituais
com imprevistos, rotina com
novas ideias e descobertas,
oferecemos segurança à
criança.
Na organização do
tempo, é importante:

»» Permitir as intera-
ções, respeitar os tempos
individuais e a criação de

70 Cores do cotidiano
roteiros e rotinas de aprendizagem
com a participação da criança;

»» Prever tempo para acolhida, despedida,


descanso, higienização e alimentação;

»» Garantir a variedade das atividades


e muito tempo para brincar;

»» Promover momentos de repetição


e novidade, em pequenos e grandes
grupos;

»» Evitar o tempo de espera entre as


atividades;

»» Prever tempo para guardar e organi-


zar os materiais com as crianças, ao
final das atividades;

»» Construir a rotina diária com as


crianças.

As crianças possuem jeito próprio


de aprender. Quando as encorajamos a
participar, atribuímos significado à sua
aprendizagem.

A organização do espaçotempo pedagógico 71


Cores e alegria nos espaçotempos
de aprendizagem16
“Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser
feliz por isso. Meu quintal é maior que o mundo... Queria que minha voz
tivesse formato de canto. Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.”
Manoel de Barros

O compromisso com a saúde e o bem-


estar das crianças, aliado à pro-
posta socioeducativa de qualidade, são
bilidades de criação e funcionalidade.
Na história da educação infantil, a
organização dos espaços institucionais
princípios do trabalho no Centro Social foi pautada pela ótica do adulto e repro-
Marista Robru para garantir o melhor duziu “salas de aula” inspiradas nas es-
atendimento para as crianças até três colas de ensino fundamental ou berçários
anos e suas famílias. de hospitais.
Crescer em espaço acolhedor, seguro e A organização fragmentada do tempo
lúdico é direito de toda criança. Entende- tirou dele o encantamento, a surpresa e
mos por espaço tanto as instalações físi- determinou rotinas rígidas, repletas de
cas quanto as relações que se estabelecem atividades estanques que não respeita-
entre os materiais e as pessoas, as possi- vam os desejos infantis.
Atentos a tal situação, os educadores
16  Projeto realizado pela equipe do Centro Social
do Centro Social Marista Robru utilizaram
Marista Robru. os encontros de formação para avaliar a

72 Cores do cotidiano
organização dos espaços e tempos, por en- as atividades eram construídos apenas
tender que são indissociáveis e permitem pelos adultos e colocados em locais onde
situações de aprendizagem significativas. as próprias crianças não tinham acesso
Nessa análise perceberam, por exem- às suas produções.
plo, que os murais onde ficavam expostas As salas repletas de mesas impediam

Cores e alegria nos espaçostempos de aprendizagem 73


as interações entre as crianças e seu quedos que estimulam a imaginação
acesso a brinquedos e materiais. e a criatividade;
A ausência das crianças também se
dava na organização do tempo, previa- »» Substituição dos desenhos prontos por
mente planejado pelos adultos, com pou- produções das crianças nos murais;
cos momentos para explorar a natureza
e brincar livremente. »» Respeito aos diversos tempos de cada
Nos diálogos entre os educadores, criança, tempo de brincar, descan-
surgiram algumas questões interessan- sar, alimentar-se e até ficar sozinho
tes: em qual espaço as crianças passam a se quiser;
maior parte do dia?, qual a atratividade
desses espaços?, qual é o tempo destina- »» Prioridade para materiais alternati-
do à permanência em cada espaço?, como vos ou brinquedos não-estruturados;
estamos respeitando os tempos individu-
ais e a vontade das crianças?. A discus- »» Garantia da improvisação de espaços
são sobre estas questões provocou a todos e materiais;
acerca das mudanças necessárias.
Das percepções do grupo nasceu a me- »» Reutilização de materiais;
todologia pautada em alguns elementos:
»» Negociação da rotina com as crianças.
»» Tempo para interação entre as crian-
ças maiores e menores; O grupo recorreu a livros, fotografias
e visitou outras instituições de educação
»» Versatilidade dos espaços e mobiliá- infantil para ampliar seu conhecimento
rios; sobre o tema a partir da análise de outras
experiências. As ideias começaram a nas-
»» Diversidade e quantidade de brin- cer coletivamente, desse modo, a reflexão

74 Cores do cotidiano
transformou-se em mudança das práticas. etária. Um desafio foi entender como os
A formação possibilitou a descoberta bebês poderiam participar e fazer suas
das múltiplas habilidades dos educado- escolhas. Apesar de eles não dominarem
res, ampliou a aceitação do novo e o res- totalmente a linguagem verbal, se comu-
peito aos saberes das crianças. nicam de outras formas e o tempo de in-
Houve muita preocupação em es- teresse deles é mais curto.
tudar as características de cada faixa- A exploração de materiais também

Cores e alegria nos espaçostempos de aprendizagem 75


é diferente. Por exemplo, caixas vazias Aos poucos, a partir dos encontros
para os bebês são utilizadas para empi- formativos, o grupo foi transformando os
lhar, entrar e empurrar. Para os maiores espaços. As mudanças começaram pela
pode virar uma misteriosa cabana, um biblioteca, com a disposição dos livros e
trem ou uma roupa de robô. fantoches à altura das crianças. Depois as
Fotografias também são muito impor- mesas das salas foram substituídas por
tantes, para todas as idades. Sua aprecia- espaços coloridos e aconchegantes para
ção pode disparar uma conversa ou uma contação de histórias e as prateleiras altas
lembrança. Móbiles e espelhos deixam os com brinquedos foram trocadas por caixas
espaços aconchegantes, principalmente transparentes acessíveis às crianças.
se forem interativos e seguros. Agora a criança também participa mais

76 Cores do cotidiano
da programação diária do tempo. Nas ro- espaços de aprendizagem, os educadores
das de conversa, logo pela manhã, constro- perceberam que a organização dos tem-
em junto dos educadores o planejamento pos e materiais melhorou a interação
do que farão ao longo do dia, diante das entre as crianças porque aumentou as
opções oferecidas por seus educadores. possibilidades de escolher, criar, experi-
O projeto tem algumas famílias como mentar, partilhar materiais e dialogar.
parceiras na construção de brinquedos, A compreensão sobre as mudanças no
almofadas, pintura de alguns murais e ta- espaço e a retirada de alguns elementos,
petes para os espaços. Nem todas disponi- exigiu abertura para novos arranjos.
bilizam de tempo para participar, mas per- A adesão da equipe de profissionais,
cebemos que aprovaram as mudanças. das crianças e das famílias nas construções
Durante as oficinas de confecção de e cuidado foi essencial para criar espaços
materiais, pais, mães, avós e tias com- funcionais, alinhados à crença de que neles
partilharam suas habilidades e trocaram as crianças produzem cultura e vivem suas
informações sobre a educação dos filhos. infâncias de forma criativa e dinâmica.
Nesses momentos as famílias foram in- A criatividade do grupo na reutiliza-
centivadas a participar dos demais pro- ção de materiais reforçou o cuidado com
jetos desenvolvidos no Centro Social o meio ambiente. Pneus, embalagens,
Marista, como cursos de artesanato, or- garrafas pet e retalhos de papel foram
ganização das festas de aniversário e até utilizados para construção de áreas bo-
mesmo a criação de uma horta. Com a nitas, seguras e aconchegantes.
parceria do Serviço Social do Comércio Os principais desafios do projeto fo-
(SESC), que disponibilizou um agrôno- ram assegurar a participação de todos
mo, as famílias aprenderam a fazer a e garantir tempo para as confecções de
horta e a formação se estendeu às outras materiais. O grande aprendizado foi re-
unidades de educação infantil da região. conhecer a criança como sujeito da pro-
Com o projeto de revitalização dos posta socioeducativa.

Cores e alegria nos espaçostempos de aprendizagem 77


6. Formação contínua dos
educadores e documentação
pedagógica
“Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo.
Pesquiso para conhecer o que ainda
não conheço e comunicar
ou anunciar a novidade”.
Paulo Freire

O educador é o mediador da criança


na aprendizagem, aquele que ensi-
na pelo exemplo, respeita os saberes da
te. A formação contínua é o elemento
que promove a nutrição, a reflexão e o
aprofundamento da atuação no contex-
criança, reflete criticamente sobre a prá- to, no espaço-tempo real onde a apren-
tica e, principalmente, educa com espe- dizagem acontece. É a possibilidade
rança. de refletir e aprimorar a própria ação.
Ser educador de crianças pequenas Neste sentido, o tempo para estudo e
requer dedicação, equilíbrio emocio- discussão entre os educadores promo-
nal e atitude crítico-reflexiva constan- ve a autoria, a construção coletiva e

78 Cores do cotidiano
o constante diálogo entre a teoria e a de educar e cuidar de crianças peque-
prática. nas. Nesta perspectiva, estratégias de
O grande desafio das instituições tem formação continuada, como oficinas,
sido garantir tempo para a formação e, grupos de estudo, debates on-line, círcu-
quando há, que os encaminhamentos da los de leitura e outras formas de organi-
rotina ou questões burocráticas não ocu- zação que privilegiam o saber construí-
pem o lugar de reflexões e estudos. do a partir da experiência, fortalecem o
A formação inicial recebida na gra- exercício da profissionalidade e o traba-
duação não dá conta da complexidade lho coletivo.

Formação contínua dos educadores e documentação pedagógica 79


A formação em rede, por meio da A documentação pedagógica, enten-
participação em congressos, seminários dida como o processo de construção e
e demais encontros, possibilita ainda a análise dos registros dos processos das
partilha entre os pares e a ampliação do situações concretas e locais, é excelente
olhar para outras realidades. instrumento de formação contínua, por
A formação contínua tem os seguin- favorecer a investigação da própria ação,
tes elementos estruturantes: atendendo os objetivos de:

»» Observação na ação: Coleta de dados »» Refletir sobre os processos individu-


sobre situações diversas vivenciadas ais e coletivos de aprendizagem;
no cotidiano;
»» Obter informações sobre os processos
»» Ação reflexiva: Articulação teoria e e resultados encontrados;
prática;
»» Conhecer as capacidades, interesses
»» Ação intencional: Explicitação da e dificuldades das crianças;
concepção que sustenta as ações por
meio dos registros; »» Recolher informações sobre o contex-
to familiar e o meio em que vivem;
»» Trabalho coletivo: Perspectiva coleti-
va com responsabilidades comparti- »» Analisar diferentes culturas presen-
lhadas; tes na sala;

»» Formação coletiva: Cumplicidade, »» Redefinir as estratégias de planeja-


compromisso, crescimento e amadu- mento, ensino-aprendizagem.
recimento de todos.

80 Cores do cotidiano
Formação contínua dos educadores e documentação pedagógica 81
A documentação é uma forma de pen- A observação do material coletado e sele-
sar, observar, registrar, discutir, experi- cionado nos auxilia a interpretar, conhe-
mentar e projetar. Ela é um elemento cer, comunicar e avaliar o trabalho.
para criar memória, recuperar episódios O portfólio é um instrumento rico por
e acontecimentos, uma estrada para dar ampliar a visão detalhada da aprendiza-
aos adultos e às crianças historicidade e gem. Permite a avaliação contínua por
singularidade. retratar o percurso construído e o con-
O educador, lidando com a tensão texto educativo. É um modo de pensar,
entre a teoria e a prática, atua como criar memória visível e replanejar. Ain-
pesquisador ao olhar para seus regis- da uma estratégia para democratizar o
tros com distanciamento. Ao socializar conhecimento construído por criar a in-
a documentação com colegas ou com o terlocução com a criança, os profissionais
coordenador pedagógico, confronta suas e a família.
crenças, negocia e ainda assume a res- A documentação pedagógica subsidia
ponsabilidade e a autoria. Para tanto, a avaliação da proposta educativa, enten-
é fundamental o papel do coordenador dida aqui como prática de investigação
pedagógico para mediar o trabalho de que contribui para o diálogo que se esta-
leitura e escrita junto aos educadores e belece entre a teoria e o conhecimento do
a qualidade da documentação. cotidiano. A avaliação nessa perspectiva,
Os diários de bordo ou diários de cam- se realiza para:
po, com as narrativas dos acontecimentos
significativos, assim como as produções »» Conhecer a criança e suas especifici-
das crianças, as filmagens, as entrevis- dades, por meio de uma observação e
tas, os relatórios fotográficos e portfólios, de uma escuta atenta;
são instrumentos que se complementam
e constroem a documentação pedagógica. »» Registrar as experiências vividas pe-

82 Cores do cotidiano
»» Observar e refletir o cotidiano - ges-
tão, práticas educativas, condições
materiais, espaços e tempos;

»» Comunicar e integrar o espaço edu-


cativo com a família.

A utilização da documentação peda-


gógica para avaliação visa à superação
de concepções cristalizadas, ao fortale-
cimento da coletividade e à investiga-
ção para a transformação da prática,
pois nos permite fazer a autoavaliação
e assumir a autoria crítica do percurso
educativo. Para tanto é imprescindível
garantir tempo para documentar no co-
tidiano e avaliar o material documen-
las crianças e pelos adultos; tado. A documentação pedagógica tem
relação de reciprocidade com a avalia-
»» Melhorar a prática pedagógica e a qua- ção e a formação contínua, pois forne-
lidade da educação na primeira infân- ce elementos para a reflexão sobre o
cia a partir da análise dos registros; trabalho desenvolvido na trajetória da
aprendizagem, possibilitando possíveis
»» Construir a documentação e memó- correções de rumo.
ria;

»» Realizar trabalho coletivo;

Formação contínua dos educadores e documentação pedagógica 83


Formação: entre a urdidura e a trama17
“Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cow-boy era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque e ensaiava
o rock para as matinês.”
Sivuca e Chico Buarque

O Centro Social Marista Lar Feliz


foi fundado em 1959 no municí-
pio de Santos – SP. Atende atualmente
ano a ano como centro de referência na
comunidade.
Com o intuito de oferecer condições
120 crianças no Serviço de Educação e espaços de formação para qualificar
Infantil, com idade entre dois e cinco as práticas e aprofundar a atitude refle-
anos. xiva dos seus profissionais, a equipe do
A trajetória do Centro Social Ma- Centro Social criou o “Projeto Caminho
rista foi marcada por mudanças que do Conhecimento: entre artes e manhas
refletem a história da educação infan- construímos saberes”.
til brasileira. Completando 50 anos de Desde o início, o projeto foi marcado
existência em 2009, tem se afirmado por questões que intrigavam os educado-
res: quais os objetivos da Educação Infan-
17  Projeto realizado pela equipe do Centro Social
til que acreditamos?, quais as capacida-
Marista Lar Feliz. des a serem desenvolvidas na Educação

84 Cores do cotidiano
Infantil?, o que precisa ser considerado acontece a reunião com a equipe de edu-
valorizando o brincar e as culturas in- cadores e coordenação pedagógica para
fantis, sem escolarizar a infância?. Das estudar a pedagogia de projetos, o currí-
indagações vindas dos educadores nasce- culo, a avaliação formativa, a mediação
ram os temas estudados nos encontros e a documentação. Na realização dos
formativos, tendo a prática como encontros, elabora-se um dossiê que
ponto de partida para as refle- serve de referência para a refle-
xões. xão de todas as temáticas
O projeto inicia-se abordadas.
anualmente no mês Ainda acontece
de janeiro, com a acompanhamen-
Semana de For- to pedagógico nos
mação que envolve planejamentos in-
todos os funcioná- dividuais e coleti-
rios para planeja- vos, possibilitando
mento, integração ao educador orien-
e aproximação de tação e avaliação
conceitos. contínua do traba-
Uma vez por lho.
mês todos voltam A formação se
a se reunir para estende às famí-
avaliar o trabalho lias das crianças,
e estudar temá- por meio de reuniões
ticas importan- mensais para dis-
tes relacionadas cutir problemas co-
à prática social. munitários e so-
Semanalmente ciais.

Formação: entre a urdidura e a trama 85


Documentação pedagógica processo de construção de registros das
atividades com detalhes minuciosos,
como inspiração para a como depoimentos, falas das crianças, fo-
formação tos significativas, trechos de referências
teóricas e observações dos educadores.
Educar para a criticidade exige cons- Isso possibilitou a análise crítica das
tante exercício de reflexão sobre a prá- práticas, o que exigiu dos educadores
tica. Com este intuito, os educadores um repertório diferenciado de saberes,
buscaram na documentação pedagógica
a fonte de suas reflexões, por ser conside-
rada instrumento de formação contínua.
Inicialmente o processo de documen-
tação consistia em coletar atividades e
informações sobre as crianças e guardar
em pastas, sem critérios de seleção dos
registros para análise e avaliação.
A dificuldade em encontrar dados
para investigar e refletir sobre o conhe-
cimento de cada criança levou a equipe
do Centro Social Marista Lar Feliz a
reformular a organização dos registros.
Todo o material coletado seria seleciona-
do para apresentar pistas significativas
sobre a aprendizagem da criança, suas
formas de construir sentido e relacionar-
se com o grupo.
Após a reflexão, a equipe iniciou o

86 Cores do cotidiano
como a observação, a escuta sensível, o Diários
exercício da escrita e interpretação de
textos. São narrativas escritas do que acon-
No dia a dia, são confeccionados os tece em sala, com reflexões sobre o plane-
registros que subsidiam a coleta de da- jamento e as necessidades das crianças.
dos para a documentação: As informações são complementadas
por registros sonoros, vídeos e fotogra-
Notas fias.
Em seguida, os materiais coletados
São anotações curtas feitas pelo são selecionados, analisados e interpre-
educador durante as atividades com a tados para a produção de portfólios.
criança e, ainda, perguntas, dúvidas,
conteúdos a pesquisar, que orientam os Portfólio
próximos planejamentos.
Os acontecimentos vividos com as
Pautas de observação crianças são registrados nesse dossiê
que fica à disposição das crianças, fa-
Direcionam o olhar do observador a mílias e comunidade para leitura, re-
partir de uma lista de “saberes e fazeres” flexão e conhecimento do trabalho de-
para a observação. O coordenador peda- senvolvido.
gógico auxilia os educadores a preparar Para não ser meramente descritivo, é
a pauta para cada turma e a preenchê-la escrito com muita poesia e sensibilidade.
com observações, análises e proposições. Observações referentes às crianças são
As pautas também são utilizadas nas interpretadas, percursos individuais re-
reuniões de formação, para orientar o gistrados e indicadores de aprendizagem
olhar e ampliar os elementos de análise. apontados.

Formação: entre a urdidura e a trama 87


O material produzido pela equipe A partir dos estudos do livro “BAM-
ganhou o nome de portfólio, por refletir BINI: A Abordagem Italiana à Educação
a crença de que a documentação só faz Infantil” o próximo passo do grupo será
sentido se for construída e utilizada no elaborar diários individuais das crian-
processo educativo, como conjunto. ças, que contêm a história de cada uma
delas durante sua trajetória no Centro
Registros Individuais Social.
A proposta é manter um portfólio
Os registros individuais da criança para cada criança entregue à educado-
contam aos familiares as histórias de ra do ano seguinte. Esta, por sua vez,
seus filhos, suas conquistas, suas pecu- dará continuidade à história. Quando a
liaridades observadas minuciosamente
por educadores. São confeccionados se-
mestralmente e apresentados nas reu- Início do ano, muitas crianças cho-
ravam pedindo suas mães. Fico apre-
niões com as famílias para acompanha-
ensiva buscando alternativas que pos-
mento. sam tranquilizá-las e deixá-las felizes
O objetivo central desse projeto, cha- aqui.
mado de “Tecendo Olhares: entre a Ur- Hoje, após muito choro, a turma si-
didura e a Trama” é construir a docu- lenciou e se interessou pelos brinque-
dos de casinha. Quando todos brinca-
mentação pedagógica que torne visível a
vam, Duda, de dois anos se aproximou
natureza dos processos de aprendizagem de Maria Luiza e a lembrou baixinho:
e as estratégias empregadas pelas crian- — Tua mãe foi embora!
ças, uma vez que observar, refletir, re- O choro coletivo recomeçou...18
gistrar, organizar, planejar e avaliar são
18  Documentação do Centro Social
aspectos que, na sua interação, constro- Marista Itaquera – Nota escrita pela
em o cotidiano educativo e a história da educadora, para conversar na reunião
pedagógica.
criança.

88 Cores do cotidiano
criança deixar o Centro Social Marista, o
Diário material será entregue à sua família. O
“No primeiro dia a experiência com diário das crianças é um trabalho a mais
bexiga cheia d’água despertou muito e a jornada diária dos educadores é curta
interesse. Dirigimo-nos até a torneira para escrever tanto. O receio de perder
que fica em frente a nossa sala para
a qualidade em algum aspecto do tra-
encher as bexigas. Depois de cheias,
tratamos de tirar nossos calçados para balho existe, mas há a vontade coletiva
que isso não interferisse no andamen- de alcançar a superação. Em caráter ex-
to da proposta. perimental este projeto acontecerá com
O espaço que escolhemos foi atrás apenas uma turma de crianças de quatro
do prédio, um espaço propício para
e cinco anos. A educadora da sala está
ser molhado. Lá aconteceu de tudo, jo-
gamos bexiga no chão, bexiga no alto
com o grupo há três anos consecutivos e
e, claro, saímos todos molhados de terá o desafio de resgatar acontecimen-
lá, uma boa experiência para um dia tos passados para iniciar a construção do
de sol e calor do verão paulista. Pen- material de registro.
so que devemos estudar mais sobre
projetos para os pequenos, essa ativi-
dade me mostrou que com materiais
simples as possibilidades das crianças
aprenderem e experimentarem é mui-
to grande.”19

19  Anotação retirada do portfólio de uma


turma de 3 anos – Projeto As Cores
que Vêm da Bexiga – apresentação no
Simpósio Socioeducativo – DEAS 2008.

Formação: entre a urdidura e a trama 8989


Pauta de observação Portfólio

Algumas questões para orientar o “Fizemos hoje um cartaz planejan-


seu foco de observação do vídeo que do junto com as crianças como faría-
iremos assistir:20 mos um convite. Ouvimos cada
uma e observamos suas hipóteses a
»» Qual a linguagem utilizada pela respeito do que já sabiam sobre “con-
criança para se expressar? vites”. Percebemos que a
»» Quais as soluções que encontrou participação aumentou, porque es-
para alcançar seu objetivo em tamos cada vez mais discutindo tudo
montar o brinquedo sozinha? com elas. Iniciamos a
»» Quais suas percepções sobre as confecção para o encontro de famí-
intervenções da educadora com a lias que será no próximo sábado. A
criança? ideia é fazer uma flor de papel
com uma técnica parecida com pa-
20  Pauta de observação utilizada para aná-
lise de vídeo. pelagem ou papel machê. Escolheram
esta flor entre as opções
sugeridas. Acredito que estas ações
serão muito importantes para as
Os estudos referentes à documenta- crianças, servindo de impulso a
ção pedagógica trouxeram ao grupo es- novos processos de criação. “— O
clarecimentos importantes referentes à convite vai ficar desse tamanho, Na-
avaliação na Educação Infantil. talia? A gente vai fazer mais de
O conjunto de portfólios e registros um? Quero dar para minha avó.” 21
individuais do Centro Social Marista Lar 21  Trecho de um portfólio – Centro Social
Feliz reflete os avanços conquistados pelo Marista Lar Feliz.
grupo a partir da formação. A equipe com-
para o processo como o entrelaçamento
da urdidura com a trama, que nas mãos dando forma aos tecidos, aos pensamen-
do artesão se unem em cores e texturas, tos e à criação.

90 Cores do cotidiano
Depoimento Registros individuais

“Aqui eu consigo ver as fo- “Após a retirada da fralda, ficou


tos e todas as atividades que mais independente e outras habilida-
vocês fazem, e o que as crian- des começam a aparecer. Nesse
ças aprendem quando vocês semestre sua fala passou a se de-
escrevem o que elas falaram. senvolver muito mais e a cada dia no-
Eu gostaria que o pai delas tamos a evolução deste processo.
pudesse ver esse material e Gosta muito de cantar e sua música
dar mais valor as nossas preferida é a do jacaré. Sempre a pede
filhas.”22 nos momentos em que estamos can-
tando. Persistente, não desiste fácil
22  Comentário da mãe de quando faz suas escolhas.” 23
uma criança em relação
aos processofólios – Cen -
23  Trecho de um registro individual sobre
tro Social Marista Lar
uma criança de dois anos.
Feliz.

A teorização da experiência qualifi- O estudo contínuo, a pesquisa, o


cou a equipe nas práticas profissionais exercício de aperfeiçoamento da escrita
condizentes com as demandas da criança para reflexão e avaliação por parte dos
atendida no município de Santos. educadores são pontos fundamentais.
A energia, a força motriz desse pro- O desafio de produzir um movimento
cesso de aprendizagem reside na vontade emergente de sistematização dos sa-
e determinação dos seus atores e se refle- beres e práticas consolida as concep-
te em metodologias inovadoras, espaços ções educacionais defendidas por nós e
intencionalmente educativos e principal- anuncia novos tempos para a educação
mente crianças mais felizes. da infância.

Formação: entre a urdidura e a trama 91


7. Participação das famílias
“O seu olhar lá fora
O seu olhar no céu
O seu olhar demora
O seu olhar no meu
O seu olhar, seu olhar melhora
Melhora o meu.”
Paulo Tatit / Arnaldo Antunes

O Estatuto da Criança e do Adolescen-


te afirma que a família, com o apoio
da comunidade e do Estado, deve criar,
educar, proteger as crianças e garantir o
seu desenvolvimento.
A família é o primeiro espaço de con-
vivência e educação da criança. A educa-
ção infantil é o espaço cultural, de socia-
lização e construção de valores, que deve
considerar a função da família. Estabe-
lecer laços de confiança entre família e
educação infantil é essencial para que a
criança sinta-se mais segura e amada.

92 Cores do cotidiano
Participação: criando com amor24

P ensando em estratégias de aproxi-


mar e criar vínculos com as famílias,
a equipe do Centro Social Marista Ita-
O primeiro passo foi receber os fami-
liares para participar diariamente na in-
serção da criança na educação infantil, no
quera lançou-se no desafio de convidá-las início do ano, durante aproximadamente
a serem parceiras do projeto pedagógico, um mês de convivên-
dialogando e compartilhando responsa- cia. Com a acolhida,
bilidades sobre o cuidado e a educação as crianças ficaram
das crianças. emocionalmente
mais seguras e
24  Projeto realizado pela equipe do Centro Social os educadores
Marista Itaquera.

Participação: criando com amor 93


conheceram um pouco mais sobre cada convite para organizar o ateliê, alguns
família. pais demonstraram interesse em parti-
Iniciativas simples aproximaram as cipar de outros momentos do cotidiano.
pessoas e introduziram mudanças gra- Assim nasceu o projeto batizado por eles
duais e consistentes no trabalho. Com o de “Criando com Amor”.

94 Cores do cotidiano
A metodologia de trabalho é desen- tações artísticas e na organização dos
volvida de forma participativa, com ro- espaços. Mesmo os familiares que não
das de conversa, confecção de brinque- têm tempo de participar das atividades
dos, organização de eventos e trabalhos programadas, marcam presença nos mo-
voluntários, mediados por educadores e mentos de entrada e de saída das crian-
pela assistente social. ças e são convidados a celebrar nos en-
Atitudes empreendedoras para ge- contros festivos.
ração de renda são estimuladas durante Superar o conceito de tutela trazido
os encontros, com o encaminhamento de por muitos e ter paciência para ver os
alguns familiares para cursos e vagas de resultados ainda são desafios encontra-
empregos. Para esse grupo, foram ofereci- dos pela comunidade educativa, que no
das oportunidades para que realizassem início teve que rever a função do Centro
cursos no Fundo Social de Solidarieda- Social Marista e discutir os preconceitos
de. Com isso algumas mães se tornaram sobre a abertura para a participação da
agentes multiplicadoras, passaram a rea- família.
lizar oficinas de customização de roupas, Atualmente já existem algumas con-
técnicas no tear e artesanato em telhas, quistas quando se encontra um pai lendo
multiplicando o aprendizado no Centro uma história infantil para as crianças e
Social e incentivando outros familiares a outro confeccionando brinquedos com su-
participar. catas. Vivências que aproximam os fami-
O grupo que iniciou com a acolhida liares das singularidades da infância.
no ateliê passou a participar de outros O grande resultado do projeto é ob-
projetos e atualmente se encontra forta- servar algumas famílias participando
lecido e com autonomia. com sentimento de corresponsabilidade
O potencial criativo dos familiares na construção de redes de cuidado, capa-
também é valorizado na programação zes de dar respostas às diversas necessi-
de festas para as crianças, em apresen- dades das crianças.

Participação: criando com amor 95


Contornos em continuidade
Chegamos ao final desse livro com a certeza de que escrever sobre o cotidiano será
sempre uma ousadia, um ato de coragem, pois não haverá história pronta e acabada
na experiência humana.
Mas o vivido precisa ser escrito, apreendido e captado pelo olhar generoso daquele
que lê e ajuda a transformar a experiência vivida em conhecimento.
As cores pintadas aqui só foram possíveis a partir do envolvimento de muitas pes-
soas. Das cerdas, memórias de diversas crianças e educadores que compartilham um
desejo de serem inesquecíveis, de continuar um projeto de humanidade que culmine
em um arco-íris sem tempestade, na aquarela despretensiosa e natural das muitas
infâncias possíveis e felizes.
Por fim, permanecerá a partir daqui, o convite para que educadores, gestores,
voluntários e demais componentes da rede que atuam na educação das infâncias con-
tinuem a trazer outras luzes e misturas para essa composição, e assim contribuam
com sua percepção, experiência e sonhos para o colorido dos novos caminhos dessa
história.
A Rede Marista de Solidariedade está aberta para compartilhar sua trajetória e,
juntos, atuarmos no fortalecimento dos direitos das infâncias.

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Agradecimentos
Dedicamos esta publicação a todas as crianças, famílias e educadores do Centro
Social Marista Robru, Centro Social Marista Itaquera, Centro Social Marista Irmão
Justino e Centro Social Marista Lar Feliz que, com seus desejos, saberes, culturas e
utopias, constroem o cotidiano da educação infantil com presença, escuta, solidarie-
dade e esperança.
Agradecemos aos Irmãos e colaboradores da Rede Marista de Solidariedade e Rede
Marista de Colégios pelo compromisso com a formação dos profissionais e a constru-
ção de práticas diferenciadas para a educação das infâncias.

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Referências
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99
100
www.solmarista.org.br
solidariedade@marista.org.br

Cores em composição na Educação Infantil


Cores em composição
na Educação Infantil

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