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Filosofia – Do mito ao Logos

O surgimento da filosofia é fruto de um processo de abandono de interpretações


fantásticas e míticas sobre os fenômenos naturais. Os primeiros filósofos assumem o
pressuposto de que há causas naturais para os fenômenos que podem ser observados e que estes
podem ser conhecidos por meio da contemplação e do raciocínio lógico.

A transição

É uma necessidade intrínseca ao ser humano explicar o mundo à sua volta, a origem das
coisas e de narrar a sua história, para que assim fosse possível dar sentido à sua própria
existência. De forma básica, os mitos apresentam as seguintes características:

1. São genealogias: narrativa sobre as origens do mundo e das coisas.


2. Há um contato sobrenatural com a verdade.
3. Construção de alegorias e, portanto, significado simbólico.
4. Representam determinados códigos de ética e valores de determinada sociedade.

A filosofia representa, então, o distanciamento do homem das explicações


sobrenaturais. Porém é importante ressaltar que as duas formas de enxergar o mundo
coexistiam:

“Sem dúvida, o poeta, o adivinho, o sábio, as seitas de mistério e de iniciação mágico-


religiosa não desaparecem subitamente, mesmo porque a polis não nasce subitamente. Tanto
assim que os primeiros filósofos – como Tales de Mileto, Heráclito de Éfeso, Pitágoras de
Samos e mesmo um clássico, como Platão – ainda aparecem ligados a grupos e seitas de
mistérios religiosos, ao mesmo tempo em que estão envolvidos nas discussões e decisões
políticas de suas cidades.”

Marilena Chauí. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo:
Brasiliense, 1999”

O uso da razão para a explicação de fenômenos naturais ocorre no Mundo Grego Antigo
– e não Grécia Antiga - devido a confluência dos seguintes fatores:
1. Surgimento da pólis
2. Caráter antropocêntrico da cultura e religião grega
3. Processo de Urbanização

O Mito
“O mito é o princípio da vida, a ordem eterna, a fórmula sagrada para a qual a vida flui quando
esta projeta suas feições para fora do inconsciente.”

Thomas Mann

A humanidade encontrou no mito a primeira forma de explicar a cosmogonia, os ciclos da


natureza – incluindo o ciclo vida, morte, vida -, as emoções e sentimentos e a condição do
homem e da mulher. A mitologia permitia buscar, e achar, respostas para as perguntas que
norteiam o mergulho humano em si mesmo, como: Por que as coisas são como são? Como o
mundo começou? Como as pessoas foram criadas? Por que fomos agraciados com a vida?...etc.

A criação de uma mitologia, portanto, representa o aumento da complexidade humana, a


necessidade de compreender o que é capturado pelos sentidos humanos, para que assim sua
existência seja dotada de sentido. Na mitologia uma sociedade também poderia encontrar seu
código ético, e, portanto, direcionamento em momentos de dificuldade e incerteza.

Campbell define a mitologia como: “a organização de narrativas simbólicas e imagens que


são metafóricas das possibilidades da experiência humana e da sua realização em determinada
cultura, em certa época.”. As metáforas e símbolos mitológicos são utilizados até hoje como
fonte de inspiração e aprendizado. Isso ocorre pois o mito, segundo Levi-Strauss, é uma forma
elevada de linguagem já que seu valor está na história e essa não perde o sentido por conta da
tradução, diferente da poesia, por exemplo.

Mas há ainda a necessidade do mito para o desenvolvimento do aprendizado? Por que os


mitos persistem apesar do desenvolvimento cientifico? Por que eles encantam e fascinam
crianças e adultos?

A coexistência do mito e da razão foi essencial para a manutenção da vida humana,


individual e coletiva, segundo Karen Armstrong:
Edgar Morin segue o mesmo fio de argumentação, afirmando que tanto o pensamento
mitológico como o lógico são duas faces do pensamento humano.
“O pensamento mitológico é carenciado se não for capaz de aceder à objetividade. O
pensamento racional é carenciado se for cego para o concreto e a subjetividade. O primeiro é
desprovido de imunidade empírica-lógica contra o erro. O segundo é desprovido do sentido
que percebe o singular, o individual, o comunitário. O mito alimenta, mas confunde o
pensamento; a lógica controla, mas atrofia o pensamento. O pensamento lógico não consegue
vencer o obstáculo da contradição; o pensamento mitológico vence-o bem demais.”

A partir da reflexão de Morin pode-se concluir que o pensamento mítico é condição


para a existência benéfica da lógica e da ciência. O que ocorre com a humanidade quando ela
se afasta e menospreza o pensamento mitológico?

O século XVII, época do nascimento das ciências modernas e da revolução científica,


permitiu a ascensão do pensamento cientifico e da racionalização, em detrimento do
pensamento fantástico e mitológico. Assim, o mito passa a ser desclassificado, entendido como
algo do passado, uma ilusão ou uma superstição, não mais como uma forma de entender o
mundo, pois esse agora só poderia ser compreendido por meio dos mecanismos da razão.

O mito por não ser estruturado por uma lógica acaba perdendo espaço na mente adulta,
sendo restrito ao mundo infantil. O mito se torna coisa de criança e os adultos se tornam
incompletos e amputados das ferramentas necessárias para desenvolver autoconhecimento e
para se relacionarem de forma saudável com o pensamento racional. Inicia-se uma época de
desequilíbrio e culto à razão que permite a adoração da ciência, ocupante de um altar e
merecedora de sacrifícios. Tudo era permitido em seu nome, pois ela era o caminho para o
progresso.

A amputação fruto do distanciamento do pensamento mitológico pode ser estudado e


analisado a partir dos estudos de Jung. O psiquiatra rompe com Freud quando eles discordam
sobre o Inconsciente, o qual para esse último funcionava como um depósito para tudo aquilo
que à personalidade consciente parece indesejado, incômodo ou inútil.

Para Jung o inconsciente não é um depósito ou uma página em branco, ou seja, a visão
de inconsciente e consequentemente de psique (alma) é ampliada, pois para ele o inconsciente
era dividido em pessoal e coletivo. O primeiro é preenchido a partir das experiencias pessoais,
armazena tudo que foi esquecido, reprimido, percebido e sentido de subliminar.

Em contra partida o inconsciente coletivo é preenchido por conteúdos herdados da


estrutura do funcionamento psíquico. Esses conteúdos são: “contextos mitológicos, os motivos
e imagens que podem (res)surgir novamente a qualquer momento e em toda parte sem tradição
histórica ou migração.” Jung, Emma.

Os conteúdos predominantes são imagens ou figuras típicas que emergem com


frequência e por toda parte, como as figuras do herói, do monstro, do mago, da bruxa, do pai,
da mãe, do velho sábio, da criança...etc. Essas figuras – batizadas por Jung de arquétipos - estão
presentes nos mitos, lendas e contos de fadas.

E se os mitos, como afirmou Levi Strauss, não perde seu sentido por conta da tradução
ele pode se encaixar, mesmo com pequenas adaptações, em diferentes regiões geográficas. Isso
é possível por que o arquétipo é comum ao inconsciente do homem de diferentes lugares e de
diferentes tradições históricas, como afirmou Emma Jung acima.

O mito apesar de sempre se referir ao passado cria uma estrutura permanente utilizada
no presente e para caminhar em direção ao futuro. Assim, ao mito não há barreiras temporais
ou de espaço, ele é caro ao ser humano pois está presente em sua psique e porque permite que
o homem possa se relacionar melhor com lado racional de seu pensamento.

Jung conceitua que a psique opera basicamente de duas formas diferentes, mas
complementares: pelo inconsciente por meio da analogia e pela consciência por meio da lógica
ou raciocínio analítico, assim o pensamento analógico é a forma do inconsciente operar. Este
modo é visto nos sonhos, nas fantasias, no pensamento mítico por meio de imagens e símbolos,
não sendo possível interpreta-los dentro do campo da lógica analítica e linear.

Ainda segundo Jung, os arquétipos são utilizados pelo inconsciente – esse autônomo
em relação ao ego – para desenvolver uma sabedoria instintiva e automática. É possível que o
arquétipo se torne consciente, dessa forma o organismo consegue se controlar melhor e
direcionar o uso dessa sabedoria. Mas uma sociedade que se distancia dos mitos é composta
por indivíduos que não conseguem nomear essas figuras e muito menos preenche-las com
algum tipo de conteúdo, pois esse só consegue ser determinado quando o arquétipo se torna
consciente.

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Cibele e Atis
A grande deusa da terra, Cibele, criadora de todos os reinos da natureza, teve um filho a quem
chamou de Átis. Desde o momento em que ele nasceu, a deusa ficou extasiada com sua beleza
e graça, e não havia nada que não fizesse para deixá-lo feliz. À medida que ele foi crescendo,
o amor de Cibele aprofundou-se em todos os níveis e, quando Átis chegou à idade adulta, ela
tomou posse também dessa virilidade e se tornou sua amante. Além disso, fez dele sacerdote
de seu culto e o prendeu a um juramento de fidelidade absoluta. E assim viviam os dois,
fechados num mundo paradisíaco, onde nada podia macular a perfeição desse laço.

Mas era impossível manter Átis afastado do mundo para sempre, e um de seus maiores
prazeres era perambular pelos montes. Um dia, quando descansava sob a copa de um enorme
pinheiro, Átis ergueu os olhos e avistou uma bela ninfa; imediatamente, apaixonou-se e deitou-
se com ela. Porém, não se podia esconder nada de Cibele, e quando ela soube que seu filho-
amante fora infiel, teve um terrível acesso de ciúmes. Fez Átis entrar num transe delirante e,
em sua loucura, ele se castrou, para garantir que nunca mais tornasse a quebrar seu juramento
de fidelidade. Ao se recobrar do delírio, estava mortalmente ferido, e sangrou até a morte nos
braços de Cibele, sob o mesmo pinheiro em cuja sombra se havia deitado com a sua ninfa.
Entretanto, como Átis era um deus, sua morte não foi definitiva: a cada primavera o jovem
renasce para sua mãe e passa com ela o tempo rico e fecundo do verão; e a cada inverno, quando
o sol chega a seu ponto mais distante, ele torna a morrer, e a deusa da terra chora até que
finalmente chegue a primavera seguinte.

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