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SAVIANI, Dermeval. A escola e a democracia. Campinas: Autores Associados, 2008. (Orig.

1983)

Capítulo 1 – “As teorias da educação e o problema da marginalidade”, pp. 3-28. (Orig. 1982)

1. O problema da marginalidade. (pp. 3-5)


1.1. Dados: 50% dos alunos da escola primária na Am. Latina se evadiam da escola semi-analfabetos; além dos que
sequer tem acesso à escola.
1.2. As teorias da educação, grosso modo, partem de um mesmo princípio, mas se diferenciam nas concepções:
1.2.1. Princípio: é preciso entender as relações entre educação e sociedade.
1.2.2. Concepções diferentes, a partir do critério da percepção dos condicionantes objetivos da educação:
1.2.2.1. De um lado, há teorias não-críticas, da equalização social.
1.2.2.1.1. A sociedade é concebida como tendente à harmonia e integração.
1.2.2.1.2. A marginalidade é um fenômeno acidental a ser corrigido pela via educativa.
1.2.2.1.3. Portanto, é uma visão em que a educação tem uma ampla margem de autonomia em
relação à sociedade: confronta esta para evitar sua desagregação.
1.2.2.2. De outro, há teorias crítico-reprodutivistas: educação como instrumento de discriminação.
1.2.2.2.1. A sociedade é vista como composta por classes e grupos antagônicos e relações de
poder.
1.2.2.2.2. A marginalidade é vista como fenômeno inerente à essa estrutura social, pois os grupos
dominantes se apropriam dos resultados da produção social e relegam os outros à margem.
1.2.2.2.3. Logo, a educação é dependente da sociedade, e reforça e legitima a dominação social
(marginalidade social, marginalidade cultural e, especificamente, “marginalidade escolar”).
2. As teorias não-críticas: a ação da educação sobre a sociedade. (pp. 5-13)
2.(1). A Pedagogia Tradicional: o importante é aprender.
2.1.1. Contexto: consolidação do poder político da burguesia no século XIX – ideia do “contrato social”.
2.1.1.1. Para transformar súditos em cidadãos, a escola.
2.1.2. Nesse ideário, a marginalidade é resultado da ignorância: miséria moral e miséria política.
2.1.3. A esse ideário corresponde uma determinada maneira de organização da escola: transmissão.
2.1.3.1. O mestre-escola é o agente: a ele cabe a iniciativa para acabar com a ignorância.
2.1.3.2. Divisão em classes: um professor expõe as lições, seguidas disciplinadamente pelos alunos.
2.1.4. Apesar do entusiasmo iluminista inicial, não demoraram as críticas e decepções.
2.1.4.1. Fracasso da universalização: nem todos tem acesso, e nem todos tem sucesso.
2.1.4.2. Fracasso da formação: nem todos os bem-sucedidos saíam com a mentalidade que se esperava.
2.(2). A Pedagogia Nova: o importante é aprender a aprender.
2.2.1. As críticas do final do séc. XIX levaram a um movimento pregando a necessidade de reforma da escola.
2.2.1.1. Mantiveram a crença no poder equalizador da escola.
2.2.1.2. A Escola Nova foi a expressão mais típica dessa tendência.
2.2.2. Nesse ideário, o marginalizado é o rejeitado, e não mais o ignorante.
2.2.2.1. Mais do que ilustração, é preciso aceitação social.
2.2.2.2. Não por acaso, alguns dos principais representantes dessa renovação vieram do trabalho com os
“anormais” (Montessori, Decroly).
2.2.3. A esse ideário correspondeu uma nova visão do sistema escolar: interação.
2.2.3.1. Biopsicologização da sociedade, da educação e da escola e “descoberta” das diferenças
individuais.
2.2.3.1.1. Não só diferenças raciais, de classe e de credo (já presentes na pedagogia tradicional):
diferenças no desempenho cognitivo.

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2.2.3.2. Deslocamento das práticas educativas do intelecto para o psicológico, dos conteúdos para os
processos pedagógicos, do professor para o aluno, do esforço para o interesse, do diretivismo para o não-
diretivismo.
2.2.3.3. O professor deveria agir então como orientador da aprendizagem, em grupos organizados
segundo seus interesses e protagonismo.
2.2.4. Mas esse ideário não conseguiu mudar significativamente o panorama dos sistemas escolares: custoso.
2.2.4.1. Na prática, se restringiu a escolas experimentais e pequenos estabelecimentos de elite.
2.2.4.2. O que não impediu de se firmar nas discussões teóricas, trazendo mais consequências negativas
do que positivas.

[Sobre a pedagogia nova] “se tornou senso comum o entendimento segundo o qual a pedagogia
nova é portadora de todas as virtudes e de nenhum vício, ao passo que a pedagogia tradicional é
portadora de todos os vícios e de nenhuma virtude”. (p. 10)

2.2.4.2.1. Aprimorou a qualidade do ensino das elites, mas empobreceu o nível das camadas
populares, com a aplicação de concepções escolanovistas em redes escolares tradicionais.
2.2.4.2.1.1. Afrouxamento da disciplina e despreocupação com a transmissão de
conhecimentos.
2.2.5. Ou seja: paradoxalmente, a Escola Nova agravou o problema da marginalidade.
2.2.5.1. Tornou o debate da qualidade do ensino questão de método, e não política.
2.2.5.2. Saviani, “A filosofia da educação e o problema da inovação em educação”, 1980: “mecanismo de
recomposição da hegemonia da classe dominantes” – expande-se a escola, mas em um limite aceitável
aos interesses dominantes.
2.(3). A Pedagogia Tecnicista: o importante é aprender a fazer.
2.3.1. Com a frustração das reformas da escola, surgiram duas frentes: uma espécie de “Escola Nova Popular”
(Celestin Freinet e Paulo Freire) e uma pedagogia tecnicista.
2.3.1.1. Na pedagogia tecnicista, a preocupação com o método foi radicalizada: necessidade de
racionalizar o processo educacional (produtividade e eficiência, sob um enfoque “científico” neutro).
2.3.2. Nesse ideário, a proposta era minimizar as interferências subjetivas que atrapalhariam o processo.
2.3.2.1. Planejamento, mecanizar certas etapas do processo, parcelamento e especialização do trabalho,
padronização do sistema de ensino.
2.3.2.2. Professor e aluno vão para segundo plano: primado da organização dos meios por especialistas.
2.3.2.2.1. Isso marca a diferença em relação à pedagogia tradicional, centrada no professor.
2.3.2.2.2. E em relação à Escola Nova, centrada na relação professor-aluno.
2.3.3. Consequentemente, aqui, a marginalidade não é questão de ignorância, nem rejeição: é o incompetente.
2.3.3.1. A educação funcionaria levando à equalização social, mas por meio da formação de indivíduos
eficientes para a produtividade da sociedade.
2.3.4. Correspondentemente a esta teoria, uma outra reorganização da escola: burocratização.
2.3.4.1. Se é ação planificado, logo: instruções minuciosas, controle via formulários etc.
2.3.4.1.1. Transposição para a escola do funcionamento do sistema fabril.
2.3.5. Na realidade, gerou o caos: cruzamento de tecnicismo, pedagogia tradicional e escolanovismo.
2.3.5.1. Descontinuidade, heterogeneidade e fragmentação do trabalho pedagógico.
2.3.5.2. Deslocamento dos recursos para as atividades-fim, ao invés das atividades-meio da educação.
2.3.5.2.1. Vejam-se os inúmeros programas de venda de tecnologias de ensino...
3. As teorias crítico-reprodutivistas: os condicionantes sociais da educação. (pp. 13-24)
3.(1). A teoria do sistema de ensino como violência simbólica (P. Bourdieu e J.C. Passeron, A reprodução, 1975).
3.1.1. Essa teoria se pretende explicativa do fenômeno universal da educação. Sempre será assim ou assim, etc.
3.1.2. Por que “violência simbólica”? Resposta: toda sociedade se estrutura como sistema de relações de força.
3.1.2.1. Reprodução, no campo simbólico do reconhecimento da dominação, da violência material.
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3.1.2.1.1. A violência material (dominação econômica) corresponde à violência simbólica
(dominação cultural).
3.1.2.2. Essa violência simbólica manifesta-se de múltiplas formas: jornais, religião, artes, literatura,
moda.
3.1.3. Na educação? Exemplarmente!
3.1.3.1. A “ação pedagógica” é uma imposição arbitrária da cultura dos grupos dominantes, através de
uma “autoridade pedagógica” que tem o poder arbitrário de imposição, mas que não é enxergado desta
forma.
3.1.3.2. O “trabalho pedagógico” nada mais é do que trabalho de inculcação para produzir um “habitus”:
interiorização dos princípios de um arbitrário cultural que permanece após a cessação da ação
pedagógica.
3.1.3.2.1. Há “trabalho pedagógico” primário: educação familiar.
3.1.3.2.2. E um “trabalho pedagógico” secundário: educação escolar.
3.1.3.3. Assim, a função da educação é a de reprodução da sociedade vigente, com suas desigualdades,
pela via da reprodução cultural.
3.1.4. Nessa teoria, portanto, os marginalizados são todos os grupos e classes dominados.
3.1.4.1. Marginalizados socialmente (sem capital econômico) e simbolicamente (sem capital cultural).
3.1.4.2. E a educação, longe de ser fator de superação, é mecanismo reforçador da marginalidade.
3.1.4.2.1. Imutavelmente: é função logicamente necessária.
3.1.4.2.1.1. E ela cumpre isso de forma eficaz exatamente por dissimular a imagem de ser
corretora das desigualdades sociais, ao mesmo tempo que reforça os interesses
dominantes.
3.1.4.2.1.2. G. Snyders: é a “luta de classes impossível”.
3.(2). A teoria da escola como aparelho ideológico de Estado: Althusser.
3.2.1. A escola é o exemplo mais acabado de “aparelho ideológico de Estado” (AIE).
3.2.1.1. AIE’s são mecanismos paralelos ao Aparelho Repressivo de Estado (repressão e violência).
3.2.1.2. Trata-se de mecanismos em que a ideologia é posta em existência material, regulada por
rituais em instituições materiais, fruto da luta de classes.
3.2.1.2. A escola é central nisso porque toma para si todas as crianças e inculca-lhes os saberes práticos
presentes na ideologia dominante necessários para reproduzir as relações de produção.
3.2.1.2.1. A grande maioria é introduzida no processo produtivo capitalista (educação primária).
3.2.1.2.2. Outros, seguem adiante e integram-se aos quadros médios pequeno-burgueses.
3.2.1.2.3. Uma minoria acaba por ocupar postos no sistema repressivo, ideológico e ou
explorativo.
3.2.2. Portanto, os marginalizados são a própria classe trabalhadora.
3.2.2.1 Nesse contexto, a marginalidade é resultado inerente às relações de produção.
3.2.2.2. O “AIE escolar” é mecanismo construído para perpetuar a burguesia e seus interesses.
3.2.2.2.1. As teorias não-críticas não percebem isso por elas são ideológicas e parte do AIE.
3.2.3. Porém, diferentemente da teoria da violência simbólica, não há negação da luta de classes: o AIE é local da
luta de classes (heroica e inglória, mas ainda assim o há).
3.(3). Teoria da escola dualista: C. Baudelot e R. Establet, A escola capitalista na França, 1971.
3.3.1. A escola está dividida assim como a sociedade capitalista está: burguesia e proletariado.
3.3.1.1. As escolas funcionam com duas redes: uma secundária-superior e outra primária-profissional,
ambas sendo expressão do AIE explicado por Althusser.
3.3.1.2. A diferença em relação a Althusser é que enxerga a escola como instrumento da burguesia na
luta ideológica contra o proletariado e não como objeto de luta de classes.
3.3.1.2.1. Ela inculca a ideologia capitalista, mas também recalca a ideologia proletária.

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3.3.1.2.1.1. A escola tem por missão impedir o desenvolvimento da ideologia proletária,
por qualificar o trabalho intelectual em categorias burguesas e desqualificar o trabalho
manual.
3.3.1.2.2. Por isso, a luta de classes é também luta contra a escola.
3.4. Depois do boom nos anos 1970, as teorias crítico-reprodutivistas deixaram resultados dúbios.
3.4.1. Ajudaram a denunciar as ligações da educação com os interesses dominantes.
3.4.2. Mas também disseminaram um clima de pessimismo na transformação dos sistemas de ensino.
4. Para uma teoria crítica da educação. (pp. 24-26)
4.1. Em síntese: as teorias não-críticas têm proposta pedagógica; as crítico-reprodutivistas, não (apenas denúncia).
4.2. Sobre a questão da marginalidade, as teorias não-críticas querem resolver o problema; as crítico-reprodutivistas
apenas descrever e explicar o fracasso da escola.
4.2.1. Na verdade, do ponto de vista crítico-reprodutivista, o fracasso é o êxito: a escola é marginalizadora.

“A impressão que nos fica é que se passou de um poder ilusório para a impotência. Em ambos os casos, a história
é sacrificada. No primeiro caso, sacrifica-se a história na idéia em cuja harmonia se pretende anular as
contradições do real. No segundo caso, a história é sacrificada na reificação da estrutura social em que as
contradições ficam aprisionadas”. (p. 24)

4.3. Como o problema permanece aberto, precisamos recolocá-lo em outros termos: é possível transformar a escola?
4.3.1. Usando a teoria crítica-reprodutivista: sem idealismo e voluntarismo.
4.3.1.1. Considerar essa possibilidade diante das determinações sociais e conflitos de classe; e que a
classe dominante não tem interesse na transformação da escola, apenas em adaptá-la.
4.3.1.2. Portanto, teoria que só pode ser pensada do ponto de vista dos interesses dos dominados.
4.4. Uma teoria crítica não-reprodutivista: alvo do capítulo “Escola e Democracia II”.
4.4.1. Mas cujas linhas mestras já podemos ver: luta contra a seletividade e discriminação e o rebaixamento do
ensino das camadas populares.
5. Post-Scriptum. (pp. 26-28)
5.1. Mas e a “educação compensatória”?
5.2. Resposta: não é uma teoria educacional, mas sim uma política educacional ainda pautada nas teorias não-
críticas.
5.2.1. Mantém a crença ingênua no poder equalizador da educação, mas agindo em outros campos agora.
5.2.1.1. Alargamento da ação pedagógica sobre a saúde e nutrição e questões familiares.
5.3. O problema está invertido: devem-se diferentes “compensações” (alimentares, afetivas, educacionais).
5.3.1. Ninguém vai negar a importância de ações compensatórias.
5.3.2. Mas convém não misturar isso com a necessária compreensão específica do fenômeno educativo.

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