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PSICOLOGIAS
O ditado não é bem esse (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas
serve perfeitamente para ilustrar que as pessoas, em geral, têm a “sua psicologia”; seja
para vender um produto, conquistar alguém, para entender as pessoas...
Será essa a psicologia dos psicólogos?
Certamente não. A psicologia usada no cotidiano pelas pessoas em geral é
denominada psicologia do senso comum. Não deixa de ser uma psicologia, mas denota
um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela
Psicologia científica.
É a Psicologia científica que vamos estudar, antes disso vamos entender a relação de
ciência/senso comum.
Os acontecimentos do dia-a-dia denunciam, a todo tempo, que estamos vivos; e a
ciência procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo
sistemático.
Fazendo ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela.
Afastamo-nos, abstraímo-nos, dela para refletir e conhecer além de suas aparências,
transformando-a em objeto de investigação.
Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório,
está submetido à dinâmica do cotidiano e, assim, vai também acumulando
conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros.
Para atravessar uma rua movimentada, por exemplo, não precisamos usar uma
máquina de calcular ou uma fita métrica, sabemos perfeitamente medir a distância e a
velocidade do automóvel que vem em nossa direção.
A esse tipo de conhecimento que vamos acumulando chamamos senso comum.
A necessidade desse conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos que
descobrir diariamente que as coisas tendem a cair e não a subir, que para fazer um
aparelho funcionar precisamos de eletricidade, que um automóvel em velocidade vai se
aproximar rapidamente de nós...
O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que
vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração.
É nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias
“teorias”.
O conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se
apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros
setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros
saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada,
produzindo uma determinada visão-de-mundo.
É claro que isso não ocorre muito rapidamente e nunca um conhecimento mais
sofisticado e especializado é absorvido totalmente.
Quando utilizamos termos como ‘rapaz complexado’, ‘menina histérica’, estamos
usando termos da Psicologia científica. Não nos preocupamos em defini-los e nem por
isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estarmos próximos do
conceito científico, mas, na maioria das vezes, nem o sabemos.
Por sua vez, somente esse tipo de conhecimento não seria suficiente para as
exigências de desenvolvimento da humanidade. Somente esse tipo de conhecimento
intuitivo seria pouco para o domínio da natureza. Os gregos, por volta do séc 4 a.C. já
dominavam complicados cálculos matemáticos. Podemos destacar que esse tipo de
conhecimento foi se especializando cada vez mais, até conseguir levar o homem à Lua.
A este tipo de conhecimento denominamos ciência.
Contudo, essas não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para
descobrir e interpretar a realidade. Podemos, ainda, ressaltar a filosofia, a partir das
especulações sobre a origem e o significado da existência humana; a religião, que
formula um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios,
princípios morais; a arte, conhecimento que traduz emoção e sensibilidade.
Agora podemos enfocar a Psicologia científica, começando a delimitar melhor o que
vem a ser ciência.
A ciência pode ser definida como o conjunto de conhecimentos sobre fatos e aspectos
da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de linguagem precisa e rigorosa.
Para tanto, esses conhecimentos são obtidos de forma sistemática e controlada para
possibilitar a verificação de sua validade e permitir sua continuidade e avanço (seja
negando, reafirmando ou descobrindo novos aspectos).
Além disso, a ciência aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de
verificação e isentas de emoção para tornarem-se válidas para todos.
Assim, esse conjunto de características, possibilita denominarmos de científico um
conjunto de conhecimentos.
A partir daí, qual, então, é o objeto de estudo da Psicologia?
Como ciência humana, a Psicologia estuda o homem. No entanto, isso não a
especifica, uma vez que a Antropologia, a Economia, a Sociologia, também estudam o
homem.
Se perguntarmos a um psicólogo comportamentalista, ele dirá que o objeto da
psicologia é o comportamento humano; se perguntarmos a um psicanalista ele dirá que
é o inconsciente. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, a personalidade.
Essa diversidade de objetos é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-
se constituído como área científica somente recentemente (final do século 19), a
despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana.
Outro fato importante que contribui para dificultar tal definição de objeto é que o
cientista, o pesquisador, se confunde com o objeto a ser pesquisado.
Sendo assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo influencia,
inevitavelmente, a sua pesquisa em Psicologia.
Para o filósofo francês, Rousseau, por exemplo, o homem nasce puro e a sociedade o
corrompe; cabendo ao filósofo reencontrar essa pureza perdida.
Outros, no entanto, vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e
que não mudam, a despeito das condições sociais a que estejam submetidos.
Nós, professores desse curso, vemos o homem como ser datado, determinado pelas
condições históricas e sociais que o cercam.
Conforme a concepção de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que
combine com ela. No caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens”
concebidos pelo conjunto social, caracterizando-se por uma diversidade de objetos de
estudo.
A superação de tal impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como
ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da
compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já
que o homem que compreende a História também compreende a si mesmo, e o homem
que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar
novas rotas e utopias.
Assim, podemos dizer que não existe uma Psicologia, mas Ciências Psicológicas
embrionárias e em desenvolvimento.
De qualquer maneira, a forma particular e específica de contribuição da Psicologia para
a compreensão da totalidade da vida humana é o estudo da subjetividade. Logo, a
matéria prima da psicologia é o homem em todas as suas expressões, as visíveis
(nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque
somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) – é o homem-corpo,
homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo
subjetividade.
A subjetividade é o mundo das idéias, significados e emoções construído internamente
pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição
biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada
um. É o que constitui o nosso modo de ser.
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a
constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso
ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção.
Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si
próprio.
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida,
moldada, mas também automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas
de subjetividade recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a
aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento...
Nesse sentido, cada homem pode participar na construção do seu destino e da sua
coletividade.
Assim, estudar a subjetividade é tentar compreender novos modos de ser, cuja
fabricação é social e histórica.
O movimento e a transformação são os elementos básicos desse processo, como
expressa pertinentemente o escritor Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:
“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.
A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA
BEHAVIORISMO
O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano John B. Watson, em 1913. O
termo inglês behavior significa “comportamento”; por isso, para denominar essa
tendência teórica, usamos Bahaviorismo e, também, Comportamentalismo, Teoria
Comportamental, Análise Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.
Watson, postulando o comportamento como objeto da Psicologia, dava a esta ciência a
consistência que os psicólogos da época vinham buscando: um objeto observável,
mensurável, cujos experimentos poderiam ser reproduzidos em diferentes condições e
sujeitos. Essas características foram importantes para que a Psicologia alcançasse o
status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica.
Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e sem mente, livre de
conceitos mentalistas e de métodos subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e
controlar.
Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da Psicologia, o Behaviorismo foi,
desde Watson, modificando o sentido do termo. Hoje, não se entende comportamento
como uma ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma interação entre aquilo que
o sujeito faz e o ambiente onde o seu “fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo
dedica-se ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do
indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações). É o homem tomado como
produto e produtor das interações.
O mais importante dos behavioristas que sucedem Watson é B. F. Skinner (1904-1990).
A base da corrente skinneriana está na formula cão do comportamento operante. Antes,
vamos definir comportamento reflexo ou respondente.
Comportamento respondente ou reflexo é o que usualmente chamamos de não-
voluntário e inclui as respostas eliciadas (produzidas) por estímulos antecedentes do
ambiente. Como exemplo, podemos citar a contração das pupilas (resposta
incondicionada) sob a incidência de luz forte (estímulo incondicionado).
Interações desse tipo também podem ser provocadas por estímulos que, originalmente,
não eliciavam respostas em determinado organismo. Quando tais estímulos são
temporalmente pareados com estímulos eliciadores podem, em certas condições, eliciar
respostas semelhante às destes. A essas novas interações chamamos também de
reflexos, que agora são condicionados (aprendidos) devido a uma história de
pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não
respondia.
Reflexos Condicionados
A noção de reflexo condicionado foi construída por obra do acaso. Para estudar as
glândulas digestivas de cães, Pavlov inventou um método de exposição cirúrgica no
qual as secreções digestivas, como a saliva, poderiam ser coletadas, observadas e
medidas fora do corpo do animal. Para estimular a produção de saliva, colocava comida
na boca do animal, que era mantido acordado. Entretanto, com o tempo, começou a
notar que os Càes tendiam a salivar mesmo antes de terem o contato direto do alimento
(estímulo) com a boca. Percebeu que o animal salivava quando via a pessoa que
costumava trazer a comida para a sala de cirurgia ou, mesmo, em outros momentos,
quando ouvia seus passos. Pavlov considerou que se isso ocorria era porque esses
outros estímulos (a visão do assistente, os sons de seus passos) tinham sido
associados à ingestão de alimento. Depois de alguns estudos definiu como reflexo
incondicionado ou inato uma resposta reflexa a um determinado estímulo, sem que
tivesse sido, portanto, necessário um período especial de aprendizagem prévia (salivar
com a comida na boca). Salivar diante da visão do assistente ou de seus passos, ou
mesmo, diante da visão do próprio alimento não é uma resposta inata mas que tem que
ser aprendida. Chamou-a de reflexo condicionado porque dependia de uma conexão
entre a visão da comida e sua subseqüente ingestão, ou a ela estava condicionada.
Um experimento típico que realizava era o seguinte: Apresentava o estímulo
condicionado ao animal (uma luz acesa por exemplo). Imediatamente apresentava o
estímulo não condicionado ( a comida). Depois de sucessivas experimentações
pareando luz e comida, o animal salivava diante da luz sem a presença do alimento. O
animal estava, então, condicionado a responder diante de estímulos não condicionados
(como a luz). Concluiu que o reforço era necessário para que a aprendizagem
ocorresse.
Pavlov e seus associados estudaram, na formação da resposta condicionada,
fenômenos correlatos como o reforço, a extinção, a generalização, a discriminação e o
condicionamento de ordem superior, todos termos muito conhecidos na Psicologia
atual.
Skinner começou o estudo do comportamento pelo comportamento respondente e no
desenvolvimento do seu trabalho teorizou sobre um outro tipo de relação do indivíduo
com seu ambiente, a qual viria a ser nova unidade de análise de sua ciência: o
comportamento operante.
Comportamento operante é o comportamento voluntário e abrange uma quantidade
muito maior da atividade humana – desde os comportamentos do bebê de balbuciar,
até os comportamentos mais sofisticados que o adulto apresenta. O comportamento
operante diz Keller “inclui todos os movimentos de um organismo dos quais se possa
dizer que, em algum momento, têm um efeito sobre ou fazem algo ao mundo em redor.
O comportamento operante opera sobre o mundo, por assim dizer, quer direta, quer
indiretamente”. Ler este texto, namorar, tocar violão... são todos exemplos de
comportamento operante. O condicionamento do comportamento operante tem seus
fundamentos na Lei de Efeito, de Thorndike.
A idéia é de que a aprendizagem de uma ação apropriada ou operante pode ser
reforçada – fortalecida – se a ação for seguida de uma conseqüência agradável. Isto
aumenta a probabilidade da ação ocorrer novamente. No condicionamento operante, o
reforçamento pode ser positivo ou negativo. Se positivo, a ação é diretamente
recompensada, aumenta a probabilidade futura da resposta que o produz, se negativo,
ela é indiretamente recompensada pela remoção ou afastamento de algo desagradável,
aumenta a probabilidade da resposta que o remove ou atenua.
Outros processos foram sendo formulados pela análise Experimental do
comportamento, como a extinção e a punição.
Extinção é um procedimento no qual uma resposta deixa abruptamente de ser
reforçada. Como conseqüência, a resposta diminuirá de freqüência e até mesmo
poderá deixar de ser emitida.
O tempo necessário para que a resposta deixe de ser emitida dependerá da história e
do valor do reforço envolvido.
Punição é outro procedimento importante que envolve a conseqüenciação de uma
resposta quando há apresentação de um estímulo aversivo ou remoção de um
reforçador positivo presente.
Os dados de pesquisa mostram que a supressão do comportamento punido só é
definitiva se a punição for extremamente intensa, isto porque as razões que levaram à
ação – que se pune – não são alteradas com a punição.
Punir ações leva à supressão temporária de resposta sem, contudo, alterar a
motivação.
GESTALT
Kurt Lewin (1890-1947), que trabalhou durante dez anos com Wertheimer, Koffka e
Köhler, parte da teoria da Gestalt para, ainda, construir um novo e genuíno
conhecimento: a Teoria de Campo.
O principal conceito de Lewin é o do espaço vital, que ele define como “a totalidade dos
fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento”; e concebe
como campo psicológico, o que nos interessa, como o espaço de vida considerado
dinamicamente, onde se levam em conta não somente o indivíduo e o meio, mas
também a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes: a
percepção, mas também as características da personalidade do indivíduo,
componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a
situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são
representadas no espaço de vida atual do indivíduo.
PSICANÁLISE
As teorias científicas são produtos históricos criados por homens concretos, que vivem
o seu tempo e contribuem ou alteram o desenvolvimento do conhecimento.
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o modo
de pensar a vida psíquica.
Ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo: as fantasias, os sonhos, os
esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos.
A investigação sistemática desses problemas levou à criação da Psicanálise.
O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação
e a uma prática profissional.
Freud publicou uma extensa obra relatando suas descobertas e formulando leis gerais
sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana.
A psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo método
interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações
e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as
associações livres, os atos falhos.
A prática profissional refere-se à forma de tratamento – a Análise – que busca o
autoconhecimento ou a cura, que ocorre através desse autoconhecimento.
Atualmente, é utilizada como base para psicoterapias, aconselhamento, orientação; é
aplicada em trabalho com grupos, instituições.
Especializado em Psiquiatria, Freud clinicava utilizando a sugestão hipnótica (e
conseqüente liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático) como
principal instrumento de trabalho na eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos.
Aos poucos, abandonou a hipnose e desenvolveu a técnica da ‘concentração’, na qual
a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal.
Por fim, abandona as perguntas e a direção da sessão para se confiar por completo à
fala desordenada do paciente.
Passou a observar que, muitas vezes, os pacientes ficavam embaraçados ou
envergonhados com algumas idéias ou imagens que lhes ocorriam. A essa força
psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um pensamento, Freud
denominou resistência.
E chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da
consciência, uma idéia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do
sintoma.
Esses conteúdos psíquicos localizam-se no inconsciente.
Antes, definiremos o sintoma: é uma produção, quer seja um comportamento, quer seja
um pensamento, resultante de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de
defesa. O sintoma, ao mesmo que sinaliza, busca encobrir um conflito, substituir a
satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o ponto de partida da investigação psicanalítica
na tentativa de tentar descobrir os processos psíquicos encobertos que determinam sua
formação. Os sintomas da paciente Ana O. eram a paralisia e os distúrbios do
pensamento. Hoje, o sintoma da colega da sala de aula é recusar-se a comer.
Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira concepção
sobre a estrutura e funcionamento da personalidade. Essa teoria refere-se à existência
de três sistemas ou instâncias psíquicas:
Inconsciente: exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo atual da
consciência”. É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso aos sistemas
pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes conteúdos podem ter
sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos, isto é, “foram” para o
inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O inconsciente é um sistema
do aparelho psíquico regido por leis próprias de funcionamento. Por exemplo, é
atemporal, não existem as noções de passado e presente.
Pré-consciente: sistema onde permanecem conteúdos acessíveis à consciência.
Consciente: sistema que recebe ao mesmo tempo as informações do mundo interior e
exterior. Destacam-se os fenômenos da percepção, atenção, raciocínio.
PSICOLOGIAS EM CONSTRUÇÃO
A PSICOLOGIA SOCIAL
IDENTIDADE
Quem é você? É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos
a nós mesmos.
Quando queremos conhecer a identidade de alguém, quando nosso objetivo é saber
quem alguém é, nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações
necessárias, tomando essas informações das mais variadas fontes. Assim, obter as
informações necessárias é uma questão prática: quais as informações significativas,
quais as fontes confiáveis, de forma a obter as informações, como interpretar e analisar
essas informações, etc.
A forma mais simples, habitual e inicial de fornecer essas informações é fornecer o
nome, um substantivo; se olharmos o dicionário, veremos que substantivo é a palavra
que designa o ser, que nomeia o ser. Nós nos identificamos com esse nome, que nos
identifica num conjunto de outros seres, que indica nossa singularidade: nosso nome
próprio.
A não ser em casos excepcionais, o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a
família, exatamente quem nos dá nosso nome. Nosso primeiro nome nos diferencia de
nossos familiares, enquanto o último nos iguala a eles. Diferença e igualdade. É uma
primeira noção de identidade.
Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos
sociais de que fazemos parte: brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos outros
estrangeiros; homem ou mulher, entre outros.
O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos
identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com
sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc.
Um grupo pode existir objetivamente, por exemplo, em uma classe social, mas seus
componentes podem não se identificar enquanto membro, e nem se reconhecerem
reciprocamente. É fácil, parece, perceber as conseqüências de tal fato, seja para o
indivíduo, seja para o grupo social.
Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de
que fazemos parte, faz-se necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente:
através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meio onde
vivem, isto é, pela sua prática, pelo seu agir. Estamos constatando talvez uma
obviedade: nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática.
Até aqui estamos tratando a identidade como um “dado” a ser pesquisado, como um
produto preexistente a ser conhecido, deixando de lado a questão fundamental de
saber como se dá esse dado, como se produz esse produto. A resposta à pergunta
“quem sou eu?” é uma representação da identidade. Então, torna-se necessário partir
da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de produção.
Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável
pela grande maioria dos cientistas sociais. Por exemplo, antes de nascer, o nascituro já
é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui
efetivamente, objetivamente, como “filho”, membro de uma determinada família.
É verdade que não basta a representação prévia. O nascituro, uma vez nascido,
constituir-se-á como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido
concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que
reforcem sua conduta como filho e assim por diante.
Contudo, é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho (e
dos adultos em questão como pais) que os comportamentos vão ocorrer,
caracterizando a relação paterno-filial.
Desta forma, a identidade do filho, se de um lado é conseqüência das relações que se
dão, de outro – com anterioridade – é uma condição dessas relações. Ou seja, é
pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento, sob pena de esses
objetos sociais “filho”, “pais”, “família”, etc., deixarem de existir objetivamente.
Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui. Uma vez que a
identidade pressuposta é resposta, ela é vista como dada – e não como se dando num
contínuo processo de identificação. Daí a expectativa generalizada de que alguém deve
agir de acordo com o que é (e conseqüentemente ser tratado como tal).
A posição de mim me identifica, discriminando-me como dotado de certos atributos que
me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal. A re-posição da
identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal, passando a ser vista como
simples manifestação de um ser idêntico a si-mesmo na sua permanência e
estabilidade. A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não
como reposição de uma identidade que uma vez foi posta.
Dessa forma, cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência
concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realizada pelo desenvolvimento
dessas determinações.
Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se
uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou
sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como
filho; e assim por diante. Contudo, meu filho não me vê apenas como pai, nem meu pai
apenas como filho; nem eu compareço frente aos outros como portador de um único
papel, mas sim o como o representante de mim, com todas minhas determinações que
me tornam um indivíduo concreto. Desta forma, estabelece-se uma intrincada rede de
representações que permeia todas as relações, onde cada identidade reflete outra
identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento
originário para cada uma delas.
As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a
estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando o
processo de identificação pela re-posição de identidades sobreposta, que um dia foram
postas. Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de
identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o
movimento social.
A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de
identidade, ou seja, “o que é, é”. Mas, o que é “ser o que é?”
Vejamos um exemplo clássico: uma semente já contém em si uma pequena plantinha,
a planta plenamente desenvolvida e seus frutos, de onde sairão novas sementes.
Então, ser semente é ser semente, mas não só a mesma semente, como também a
plantinha, a planta desenvolvida, o fruto e a nova semente, uma multiplicidade que,
naturalmente, já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em
fruto.
E para o homem: o que é para o ser humano ser o que é? A história do homem é a
contínua hominização do homem, a partir do momento em que este, diferenciando-se
do animal, produz suas condições de existência, produzindo-se a si mesmo
conseqüentemente. De um lado, portanto, o homem não está limitado no seu vir-a-ser
por um fim preestabelecido (como a semente); de outro, não está liberado das
condições históricas em que vive, de modo que seu vir-a-ser fosse uma indeterminação
absoluta.
A primeira constatação acima – de que o vir-a-ser do homem não pode se confundir
com o de uma semente – deve servir para questionar toda e qualquer concepção
fatalista, mecanicista, de um destino inexorá vel, seja nas suas formas mais
supersticiosas (“sou pobre porque Deus quer”, “nasceu para ser criminoso”, etc), seja
em formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas (por exemplo, em certas
versões de teorias de personalidade).
A segunda constatação – de que o homem não está liberado de suas condições
históricas – nos coloca um problema e uma tarefa.
O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo de identidade do
indivíduo do da sociedade. As possibilidades de diferentes configurações de identidade
estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social. É no contexto
histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e,
conseqüentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as
alternativas de identidade.
Acredito que, além de outros, dois fatores podem impedir que o sujeito se engaje na
produção de sua própria história e da história da sociedade. O primeiro é ter uma
atitude, de um lado intelectual, frente à questão da relação indivíduo e sociedade,
semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: o
que prevalece, primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo? De outro lado, uma atitude
prática, semelhante à do asno indeciso entre dois montes de feno, permanecendo no
imobilismo: o que atacar primeiro, o indivíduo ou a sociedade?
O segundo fator é uma concepção de identidade como permanência, como
estabilidade; mais que uma simples concepção abstrata, é vivermos privilegiando a
permanência e a estabilidade, e patologizando a crise e a contradição, a mudança e a
transformação. Assim, como que estancamos o movimento, escamoteamos a
contradição, impedimos a superação dialética.
DESENVOLVIMENTO INTERPESSOAL
Eu e os Outros
"Como trabalhar bem com outros? Como entender os outros e fazer-se entender? Por
que os outros não conseguem ver o que eu vejo, como eu vejo, por que não percebem
a clareza de minhas intenções e ações? Por que os outros interpretam erroneamente
meus atos e palavras e complicam tudo? Por que não podemos ser objetivos no
trabalho e deixar problemas pessoais de fora? Vamos ser práticos, e deixar as
emoções e sentimentos de lado..."
Quem já não pensou assim, alguma vez, em algum momento ou situação?
Desde sempre, a convivência humana é difícil e desafiante. Escritores e poetas, através
dos tempos, têm abordado a problemática do relacionamento humano. Sartre, em sua
admirável peça teatral Huis Clos, faz a famosa afirmação: "O inferno são os outros..."
Estaremos realmente condenados a sofrer com os outros? Ou podemos ter esperanças
de alcançar uma convivência razoavelmente satisfatória e produtiva?
Pessoas convivem e trabalham com pessoas e portam-se como pessoas, isto é,
reagem às outras pessoas com as quais entram em contato: comunicam-se,
simpatizam e sentem atrações, antipatizam e sentem aversões, aproximam-se,
afastam-se, entram em conflito, competem, colaboram, desenvolvem afeto.
Essas interferências ou reações, voluntárias ou involuntárias, intencionais ou
inintencionais, constituem o processo de interação humana, em que cada pessoa na
presença de outra pessoa não fica indiferente a essa situação de presença
estimuladora. O processo de interação humana é complexo e ocorre permanentemente
entre pessoas, sob forma de comportamentos manifestos e não-manifestos, verbais e
não-verbais, pensamentos, sentimentos, reações mentais e/ou físico-corporais.
Assim, um olhar, um sorriso, um gesto, uma postura corporal, um deslocamento físico
de aproximação ou afastamento constituem formas não-verbais de interação entre
pessoas. Mesmo quando alguém vira as costas ou fica em silêncio, isto também é
interação - e tem um significado, pois comunica algo aos outros. O fato de 'sentir' a
presença dos outros já é interação.
A forma de interação humana mais freqüente e usual, contudo, é representada pelo
processo amplo de comunicação, seja verbal ou não-verbal.
A primeira impressão
O contato inicial entre pessoas gera a chamada primeira impressão, o impacto que
cada um causa ao outro. Essa primeira impressão está condicionada a um conjunto de
fatores psicológicos da experiência anterior de cada pessoa, suas expectativas e
motivação no momento e a própria situação do encontro.
Primeiras impressões poderão ser muito diferentes se certos preconceitos
prevalecerem ou não, se as predisposições do momento forem favoráveis ou não à
aceitação de diferenças no outro e se o contexto for formal ou informal, de trabalho
neutro ou de ansiedade e poder assimétrico, tal como, por exemplo, uma entrevista
para solicitar emprego, ou promoção, ou outras vantagens.
Quando a primeira impressão é positiva de ambos os lados, haverá uma tendência a
estabelecer relações de simpatia e aproximação que facilitarão o relacionamento
interpessoal e as atividades em comum. No caso de assimetria de percepções iniciais,
isto é, impacto positivo de um lado, mas sem reciprocidade, o relacionamento tende a
ser difícil, tenso, exigindo um esforço de ambas as partes para um conhecimento maior
que possa modificar aquela primeira impressão.
Quantas vezes geramos e recebemos primeiras impressões errôneas que nos trazem
dificuldades e aborrecimentos desnecessários, porque não nos dispomos a rever e,
portanto, confirmar ou modificar aquela impressão. Quando isto acontece,
naturalmente, ao longo de uma convivência forçada, como na situação de trabalho, por
exemplo, percebemos, então, quanto tempo precioso e quanta energia perdemos por
não tomar a iniciativa de procurar conhecer melhor o outro e examinar as próprias
atitudes e preconceitos, com o fito de desfazer impressões negativas não-realísticas.
É muito cômodo jogar a culpa no outro pela situação equívoca, mas a realidade mostra
a nossa parcela de responsabilidade nos eventos interpessoais. Não há processos
unilaterais na interação humana: tudo que acontece no relacionamento interpessoal
decorre de duas fontes: eu e outro(s).
Relações Interpessoais
As relações interpessoais desenvolvem-se em decorrência do processo de interação.
À medida que as atividades e interações prosseguem, os sentimentos despertados
podem ser diferentes dos indicados inicialmente e então, inevitavelmente, os
sentimentos influenciarão as interações e as próprias atividades.
Esse ciclo 'atividades-interações-sentimentos' não se relaciona diretamente com a
competência técnica de cada pessoa. Profissionais competentes individualmente
podem render muito abaixo de sua capacidade por influência do grupo e da situação de
trabalho.
Quando uma pessoa começa a participar de um grupo, há uma base interna de
diferenças que englobam conhecimentos, informações, opiniões, preconceitos, atitudes,
experiência anterior, gostos, crenças, valores e estilo comportamental, o que traz
inevitáveis diferenças de percepções, opiniões, sentimentos em relação a cada situação
compartilhada. Essas diferenças passam a constituir um repertório novo: o daquela
pessoa naquele grupo. Como essas diferenças são encaradas e tratadas determina a
modalidade de relacionamento entre membros do grupo, colegas de trabalho,
superiores e subordinados.
Por exemplo: se no grupo há respeito pela opinião do outro, se a idéia de cada um é
ouvida, e
discutida, estabelece-se uma modalidade de relacionamento diferente daquela em que
não há respeito pela opinião do outro, quando idéias e sentimentos não são ouvidos, ou
ignorados, quando não há troca de informações. A maneira de lidar com diferenças
individuais cria um certo clima entre as pessoas e tem forte influência sobre toda a vida
em grupo, principalmente nos processos de comunicação, no relacionamento
interpessoal, no comportamento organizacional e na produtividade.
Se as diferenças são aceitas e tratadas em aberto, a comunicação flui fácil, em dupla
direção, as pessoas ouvem as outras, falam o que pensam e sentem, e têm
possibilidades de dar e receber feedback. Se as diferenças são negadas e suprimidas,
a comunicação torna-se falha, incompleta, insuficiente, com bloqueios e barreiras,
distorções e 'fofocas'. As pessoas não falam o que gostariam de falar, nem ouvem as
outras, só captam o que reforça sua imagem das outras e da situação.
O relacionamento interpessoal pode tornar-se e manter-se harmonioso e prazeroso,
permitindo trabalho cooperativo, em equipe, com integração de esforços, conjugando as
energias, conhecimentos e experiências para um produto maior que a soma das partes,
ou seja, a tão buscada sinergia.
Ou então tender a tornar-se muito tenso, conflitivo, levando à desintegração de
esforços, à divisão de energias e crescente deterioração do desempenho grupal para
um estado de entropia do sistema e final dissolução do grupo.
Relações interpessoais e clima de grupo influenciam-se recíproca e circularmente,
caracterizando um ambiente agradável e estimulante, ou desagradável e averso, ou
neutro e monótono. Cada modalidade traz satisfações ou insatisfações pessoais e
grupais.
A liderança e a participação eficaz em grupo dependem essencialmente da
competência interpessoal do líder e dos membros. O trabalho em equipe só terá
expressão real e verdadeira se e quando os membros do grupo desenvolverem sua
competência interpessoal, o que Ihes permitirá alcançar a tão desejada e propalada
sinergia, em seus esforços colaborativos, para obter muito mais que a simples soma
das competências técnicas individuais como resultado conjunto do grupo.
Participação no grupo
Pensar nos membros de um grupo desempenhando apenas duas funções distintas:
liderança e participação é usual e enganoso. Primeiramente a liderança não pode ser
assim tão marcada e continuamente ser desempenhada apenas por um membro do
grupo. Outros membros podem assumir uma liderança informal, de acordo com as
diferentes situações por que passa o grupo em seus processos de interação. Em
segundo lugar, a função de membro do grupo significando não líder poderia dar a
impressão de um comportamento não-diferenciado comum a todos os componentes do
grupo, excluído o líder que tem um papel caracterizado.
Na realidade, a vida em grupo passa por várias fases e, em cada uma delas, os
membros atuam de forma diferenciada: em relação à etapa de vida do grupo e em
relação aos demais membros. Dependendo do tipo de grupo (informal, formal, de
trabalho, social, de treinamento etc.) e da fase em que cada um se encontra, haverá
certas funções a serem executadas por seus componentes. Algumas funções são mais
genéricas que outras, existindo em todos os grupos, e são desempenhadas pelos
membros para que o grupo possa mover-se ou progredir em direção às suas metas.
O processo de interação humana exige que cada participante um determinado
desempenho, o qual variará em função da dinâmica de sua personalidade e da
dinâmica grupal na situação-momento ou contexto-tempo. No plano interpessoal, o
indivíduo reagirá em função de suas necessidades motivacionais, sentimentos, crenças
e valores, normas interiorizadas, atitudes, habilidades específicas e capacidade de
julgamento realistico. Personalidade, grupo e contexto não podem ser ignorados na
apreciação do papel desempenhado por membros de um grupo, em diversas
circunstâncias.
Estilos de liderança
Psicólogos sociais e especialistas de dinâmica de grupo indicam dois níveis de
interação no grupo: o nível da tarefa e o nível socioemocional. Os dois estilos de
liderança são: orientado para controle/tarefa e orientado para participação/manutenção
e fortalecimento do próprio grupo.
Ao nível sócioemocional
Entre as funções de manutenção do grupo destacam-se as seguintes como
construtivas ou facilitadoras:
Conciliador: busca um denominador comum; quando em conflito, aceita rever sua
posição e acompanhar o grupo para não chegar a impasses.
Mediador: resolve as divergências entre outros membros, alivia as tensões nos
momentos mais difíceis através de brincadeiras oportunas.
Animador: demonstra afeto e solidariedade aos outros membros do grupo, bem como
compreensão e aceitação dos outros pontos de vista, idéias e sugestões, concordando,
recomendando, elogiando as contribuições dos outros.
Ouvinte interessado: acompanha atentamente a atividade do grupo e aceita as idéias
dos outros, servindo de auditório e apoio nas discussões e decisões do grupo.
Papéis não-construtivos
Estes papéis dificultam a tarefa do grupo, criando obstáculos. Estes papéis
correspondem a necessidades individualistas, motivações de cunho pessoal, problemas
de personalidade ou até falhas na estruturação ou da dinâmica do grupo. Entre estes
papéis figuram os que seguem:
O dominador: procura afirmar sua autoridade ou superioridade, dando ordens incisivas,
interrompendo os demais, manipulando o grupo ou sob forma de adulação, afirmação
de status superior.
O dependente: busca ajuda, sob forma de simpatia dos outros membros do grupo,
mostrando insegurança, autodepreciação, carência de apoio.
O criador de obstáculos: discorda-se e opõe-se sem razões, mantendo-se negativo até
a radicalização, obstruindo o processo do grupo após uma decisão já atingida.
O agressivo: ataca o grupo ou assunto ratado, fazendo ironia ou brincadeiras
agressivas, mosra desaprovação dos valores, atos e sentimentos dos outros.
O vaidoso: procura chamar a atenção sobre sua pessoa sobre várias maneiras,
contando realizações pessoais e agindo de forma diferente, para afirmar sua
superioridade e vantagens em relação aos outros.
O reivindicador: manifesta-se como porta voz de outros, subgrupos ou classes,
revelando seus verdadeiros interesses pessoais, preconceitos e dificuldades.
O confessante: usa o grupo como platéia ou assistência ara extravasar seus
sentimentos, suas preocupações pessoais, que nada tem a ver com a disposição ou
orientação do grupo na situação momento.
O ‘gozador’: aparentemente agradável, evidencia, entretanto, seu completo
afastamento do grupo podendo exibir atitudes cínicas, desagradáveis, indiferente a
preocupação e ao trabalho do grupo, se diverte com as dificuldades e os esforços dos
outros.
Esta classificação dos papéis funcionais do grupo em construtivos e não construtivos,
conforme esquema apresentado, não pode ser rigidamente aplicada. Um determinado
papel não pode ser julgado em termos absolutos, pois a interação não se faz no vácuo.
A competência interpessoal dos membros do grupo é desenvolvida à medida que eles
se conscientizam da variedade de papéis exigidos para o desempenho global do grupo
e se sensibilizam para o que é mais apropriado às necessidades especiais do grupo e
de seus membros num determinado momento da vida do grupo.
A vida em grupo faz parte do nosso cotidiano, o tempo todo nos relacionamos com
outras pessoas, seja a família, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Mesmo quando
estamos sozinhos temos como referência o outro. Dificilmente encontraremos uma
pessoa que viva completamente isolada e mesmo que alguém viva assim ela levará
para seu exílio suas lembranças, seus conhecimentos e sua cultura. Em qualquer
circunstancia humana encontraremos determinantes sociais, o que faz com que toda a
psicologia seja no fundo uma Psicologia Social.
Toda nossa vida há uma certa regularidade que inclui regras e convenções combinadas
entres as pessoas e que são necessárias para a vida em grupo. Qualquer instituição
necessita de pessoas que serão encarregadas de diferentes tarefas e terão que seguir
regras para que tudo possa funcionar regularmente. Este tipo de regularidade é
normatizada pela vida em grupo e é chamada de institucionalização. Geralmente o
termo instituição é utilizado para se designar o local onde se presta um determinado
serviço (hospitais, abrigos) ou também para designar organizações sociais como, por
exemplo, a família, o casamento. Entretanto, aqui, o termo instituição se refere a um
valor ou regra social que é reproduzida no cotidiano como sendo uma verdade e que
serve como um guia de comportamento e de padrão ético para as pessoas. Para se
compreender a Psicologia Institucional é preciso primeiramente conhecer o processo de
institucionalização que ocorre na sociedade.
1
A revolução Francesa espalhou uma vaga revolucionária que atingiu toda a Europa, principalmente a Alemanha,
ecoando até mesmo na América Latina, com lutas de libertação nacional, como a que ocorreu no Peru. A revolução
Francesa aboliu a servidão e os direitos feudais, proclamando os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e
Fraternidade” (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean Nicolas Pache.
predominam a solidariedade mecânica, geralmente se formam subgrupos que se
caracterizam pela solidariedade orgânica.
Grupos Operativos
O francês Pichon-Rivière desenvolveu uma abordagem de trabalho em grupo, a qual
denominou de “grupos operativos”. Os grupos operativos trabalham na dialética do
ensinar-aprender; o trabalho em grupo proporciona uma interação entre as pessoas,
onde elas tanto aprendem como também são sujeitos do saber, mesmo que apenas
pelo fato da sua experiência de vida; dessa forma, ao mesmo tempo que aprendem,
ensinam também.
O Processo Grupal
Um processo grupal se reconfigura a cada momento, não existindo grupo abstrato.
Silvia Lane detecta categorias de produção grupal, que define como:
1. Categoria de produção – produção das satisfações de necessidades do grupo
está relacionada com a produção das relações grupais. A realização dos objetivos do
grupo e o seu produto final tem a influência subjetiva da dinâmica do grupo. Mas
também sofre influência das relações concretas possíveis numa determinada
sociedade.
2. Categoria de dominação – os grupos tendem a reproduzir as formas sociais de
dominação. Mesmo um grupo democrático tende a reproduzir algumas hierarquias
comum ao modo de produção dominante.
3. Categoria grupo-sujeito – de acordo com Lourau, trata-se do nível de resistência
à mudança apresentada pelo grupo. Grupos que possuem menor resistência à
autocrítica com capacidade de crescimento por meio da mudança, são considerados
grupos-sujeitos. Os grupos que se submetem cegamente às normas institucionais
apresentado dificuldade para mudança são os grupos-sujeitados.
O PROCESSO GRUPAL
Para a Psicologia Social, o grupo não é mais considerado como dicotômico em relação
ao indivíduo (indivíduo sozinho x indivíduo em grupo), mas sim como condição
necessária para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo, bem
como a sua ação como sujeito histórico, partindo do pressuposto que toda ação
transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam.
Tradicionalmente, os estudos sobre pequenos grupos estão vinculados à teoria de K.
Lewin, que os analisa em termos de espaço topológico e de sistemas de forças,
procurando captar a dinâmica que ocorre quando pessoas estabelecem uma
interdependência. É nessa tradição que conceitos como de coesão, liderança, pressão
de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observações e experimentos. Tem-se
assim descrições de processos grupais que permitem apenas a reprodução, através da
aprendizagem de grupos produtivos para o sistema social mais amplo.
Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem
implícitos valores que visam reproduzir os de individualismo, de harmonia e de
manutenção. A função do grupo é definir papéis e, conseqüentemente, a identidade
social dos indivíduos; é garantir a sua produtividade social. O grupo coeso, estruturado,
é um grupo ideal, acabado, como se os indivíduos envolvidos estacionassem e os
processos de interação pudessem se tornar circulares. Em outras palavras, o grupo é
visto como a-histórico numa sociedade também a-histórica. A única perspectiva história
se refere, no máximo, à história da aprendizagem de cada indivíduo com os outros que
constituem o grupo.
As teorias de grupo tem uma postura tradicional onde sua função seria apenas a de
definir papéis e, conseqüentemente, a identidade social dos indivíduos e garantir a sua
produtividade, pela harmonia e manutenção das relações apreendidas na convivência.
Por outro lado, temos teorias modernas que enfatizam o caráter mediatório do grupo
entre indivíduos e a sociedade enfatizando o processo pelo qual o grupo se produz; são
abordagens que consideram as determinantes sociais mais amplas, necessariamente
presentes nas relações grupais.
A partir dessas teorias mais modernas, levantamos algumas premissas para conhecer o
grupo, ou seja: 1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado
dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com
suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas; 2) o próprio grupo só
poderá ser conhecido enquanto um processo histórico, e neste sentido talvez fosse
mais correto falarmos em processo grupal, em vez de grupo.
Destas premissas decorre que todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de
manter ou transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das relações
de produção, e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua forma de organização como
nas suas ações, reproduz ideologia, que, sem um enfoque histórico, não é captada. É a
partir da análise dialética que se pode captar o grupo enquanto processo e, inserido
numa totalidade maior, levar ao conhecimento dos aspectos concretos desse fato
social.
A relação homem-meio implica a construção recíproca do homem e do seu meio, ou
seja, o ser humano deve ser visto como produto de sua relação com o ambiente e o
ambiente como produto humano, sendo, então, basicamente social. O ambiente, visto
como produto humano, se desenvolve a partir da necessidade de sobrevivência, que
implica o trabalho e a conseqüente transformação da natureza; a satisfação destas
necessidades geram outras necessidades, que vão tornando as relações de produção
gradativamente mais complexas. O desenvolvimento da sociedade humana se dá a
partir do trabalho vivo, que produz bens e a conseqüente acumulação de bens (capital),
e a necessidade do trabalho assalariado; em última análise, a formação de classes
sociais. Logo, as relações de produção geram a estrutura da sociedade, inclusive as
determinações sócio-culturais, que fazem a mediação entre o homem e o ambiente.
O indivíduo, na sua relação com o ambiente social, interioriza o mundo como realidade
concreta, subjetiva, na medida em que é pertinente ao indivíduo em questão, e que por
sua vez se exterioriza em seus comportamentos. Esta interiorização-exteriorização
obedece a uma dialética em que a percepção do mundo se faz de acordo com o que já
foi interiorizado, e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção
das coisas existentes.
É a partir dessa visão que podemos pensar a institucionalização dos sujeitos. Por
exemplo, o dirigente e o funcionário devem agir de acordo com as normas
estabelecidas, e assim por diante. Essas tipificações são elaboradas no curso da
história da instituição, daí só se pode compreender qualquer instituição se aprendermos
o processo histórico no qual ela foi produzida. Também é importante ressaltar o fato de
que, quanto mais solidificados e definidos forem esses padrões, mais eficiente se torna
o controle da sociedade sobre os indivíduos que desempenham esses papéis.
O estabelecimento de papéis a serem desempenhados leva à sua cristalização, como,
por exemplo, o papel da mulher enquanto formas de ser e agir. Essa cristalização faz
com que os papéis sejam vistos como tendo uma realidade própria, exterior aos
indivíduos que têm de se submeter a eles, incorporando-os. Desta forma, o mundo
social e o institucional é visto como uma realidade objetiva, concreta, esquecendo-se
que essa objetividade é produzida e construída pelo próprio homem.
Cabe à Psicologia aprender como se dá esta internalização da realidade concreta e
como ela faz a mediação na determinação dos comportamentos do indivíduo.
A introdução do homem na sociedade é realizada pela socialização, inicialmente a
primária e depois a secundária. Na nossa sociedade, a socialização primária ocorre
dentro da família, e os aspectos internalizados serão aqueles decorrentes da inserção
da família numa classe social, através da percepção que seus pais possuem do mundo,
e do próprio caráter institucional da família. A socialização secundária decorre da
própria complexidade existente nas relações de produção, levando o indivíduo a
internalizar as funções mais específicas das instituições, as subdivisões do mundo
concreto e as representações ideológicas da sociedade, de forma a incorporar uma
visão de mundo que o mantenha “ajustado” e, conseqüentemente, alienado das
determinações concretas que definem suas relações sociais.
Podemos então verificar que toda análise que se fizer do indivíduo terá de se remeter
ao grupo a que ele pertence, à classe social, enfocando a relação dialética homem-
sociedade, atentando para diversos momentos dessa relação.
AS FACES DA VIOLÊNCIA
Violência e Criminalidade
É importante distinguir três aspectos ou conceitos ligados a esta questão: transgressão,
infração e deliquência.
O Transgressor
Em todos os grupos existem normas e valores que regulam a relação entre as pessoas
no seu interior e, conseqüentemente, todas as pessoas, alguma vez transgrediram
essas normas. Sempre que ocorre uma transgreção, existe uma conseqüência para o
transgressor: que pode ser advertido, ser exposto afim de reconhecer a importância da
norma, ou mesmo ser expulso do grupo. É sempre mais fácil o conformismo com às
normas quando se conhece seu significado e concorda-se com elas. Quando o
indivíduo transgride uma norma, não significa que ele se caracterize como infrator ou
delinqüente.
O Infrator
O infrator é aquele que transgrediu uma norma ou alguma lei tipificada no código penal
ou no sistema de leis de uma determinada sociedade. O infrator é aquele que cometeu
uma infração e que será punido por isso, isto é, terá uma pena também prevista em lei
e aplicada pelo juiz.
O Delinqüente
A delinqüência é uma identidade atribuída e internalizada pelo indivíduo a partir da
prática de um ou vários delitos (crimes). M. Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, coloca
que essa identidade começa a se formar/forjar a partir do momento que o infrator entra
no sistema carcerário. A instituição na qual o indivíduo é isolado do convívio social e
que tem a função social de regeneração e recuperação é aquela que caba por atribuir-
lhe esta identidade que passa a “funcionar” como um rótulo. Uma marca que irá
carregar posteriormente à sua saída e que irá dificultar sua integração social.
Atualmente, não é necessário o internamento no sistema carcerário para que inicie a
construção da identidade delinqüente. Crianças e jovens, cuja condição de vida é a
pobreza passam a ser vistos não como crianças e jovens, mas como perigosos ou
potencialmente perigosos. Esta visão fundamenta-se numa visão falseada da realidade
em que a pobreza é associada à criminalidade. Esta visão também cumpre a função de
desviar a atenção da opinião pública de outros tipos de crimes cometidos pelas classes
média e alta.
- SOUZA, L. Ações coletivas: das massas criminalizadas e patologizadas aos
movimentos sociais pós-modernos. In: SOUZA, L., FREITAS, M. F. Q., RODRIGUES,
M. M. P. (Orgs.). Psicologia – Reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1998, p. 25-45.
O presente capítulo tem como objetivo traçar uma trajetória das principais categorias de
ações coletivas e tratamentos teóricos que receberam as multidões, procurando
destacar o papel dos julgamentos de valor.
As primeiras contribuições para o debate relacionado às multidões podem ser
identificadas nas obras de Le Bom, Tarde e de Ortega Y Gasset, escritas entre o final
do século XIX e início do século XX, que se assemelhavam mais a obras literárias do
que científicas ou filosóficas. O fenômeno das massas certamente não é novo na
história. Alguns dos registros históricos mais importantes registram que em certos
períodos foi necessária a coordenação da força de centenas ou milhares de homens
para a construção de monumentos, muralhas e cidades na Antiguidade. A associação
de centenas ou milhares de homens já constituía então o que primariamente se
convencionou designar por massa, nesses casos geralmente pacíficas.
Apesar de as existência desde nossa pré-história, com episódios nem sempre pacíficos,
até o século XVIII as massas chamaram pouca atenção dos estudiosos. Foi somente no
final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que as massas,
principalmente na forma de protestos, chamaram atenção sobre si e tornaram-se objeto
de reflexão e de teorização, nem sempre científicas. O irromper das massas durante o
século XIX introduziu elementos perturbadores na vida social, visíveis nas primeiras
obras, que traziam uma análise das massas sob os pontos de vista jurídico, criminal e
patológico.
Essa análise era influenciada pelas teses de Lombroso, cuja teoria sobre a origem da
criminalidade tinha grande aceitação da época. Essencialmente propunha a existência
de predisposições hereditárias que se manifestariam sob a forma de tendências para a
ação criminosa.
A inquietação natural produzida pelo surgimento do fenômeno das massas
desencadeou várias tentativas de defini-la.
Moscovici aponta pelo menos três tendências definidoras. Em uma delas as multidões
eram compostas de criminosos, homens irados e destrutivos. Outra concebia as
multidões como a expressão coletiva da loucura. A última considerava as massas como
sendo constituídas predominantemente de indivíduos colocados à margem da
sociedade, portanto de indivíduos associais, que lutavam contra e ameaçavam as
instituições.
Le Bom preocupou-se principalmente com as transformações individuais que ocorrem
na situação de multidão, não estabelecendo, aparentemente, discriminação de classe,
por considerar que qualquer indivíduo, por mais preparado que fosse, ao entrar numa
situação de massa ficaria fora do controle. Em função das características indicadas,
não havia a possibilidade de as massas estabelecerem seus próprios objetivos,
necessitando de um líder externo que as dirigisse, obviamente um líder oriundo das
elites.
Na análise de Tarde pode-se identificar uma valorização positiva exagerada do
indivíduo e das ações individuais, em oposição à extrema negatividade imposta às
multidões. Destituía de importância as possíveis idéias inerentes aos movimentos de
massa em direção a uma sociedade melhor ou um novo mundo. As multidões que se
originam, de acordo com Tarde, nas hordas, encontram prazer na destruição e são
inferiores em inteligência e moralidade. Mesmo movimentos com caráter nitidamente
político, como o anarquismo, eram compostos, de acordo com ele, por um amontoado
de malfeitores, apesar da existência de evidências em contrário que, naturalmente, são
analisadas como exceções.
Segundo Tarde, as multidões, apesar de seu intrínseco potencial de violência, eram
consideradas vulneráveis à ação das forças repressivas pois diante de sua ação logo
se dispersavam.
Embora se encontre algumas variações quando à concepção do homem-massa e ao
caráter de submissão ou não das massas entre esses autores do final do século XIX, o
núcleo central das idéias explicitadas é o mesmo, ou seja, o combate político das idéias
socialistas.
As idéias vigentes à época de Ortega y Gasset se refletem em algumas de suas
afirmações sobre as massas, a maior parte delas carregadas de características
negativas: as massas são indóceis, pouco inteligentes, não possuem limites para os
seus desejos, buscando apenas usufruir dos benefícios da civilização, exigindo tais
benefícios como direitos naturais. A forma de ação das massas, a ação direta e
violenta, de casual e infrequente torna-se normal, institucionalizando a ação direta
como norma reconhecida.
De acordo com essa obra – que também é uma oposição clara às idéias socialistas,
que se fortaleciam principalmente entre as classes trabalhadores, e em favor do
liberalismo – os homens comuns não estavam preparados para ascender a cargos
políticos de direção. A grande massa estaria apenas preocupada com o consumo
desenfreado de bens produzidos pela sociedade, não tendo se preparado para a
tomada de decisões políticas que afetam a totalidade social.
Os membros das elites, ilustrados e bem preparados, é que estariam destinados a
comandar a contento os destinos da sociedade, e não os indivíduos comuns que,
indóceis e indomáveis, se recusavam a obedecer aos membros das elites políticas.
A constante referência a características socialmente indesejáveis das massas
(patologias, loucura, criminosos, associais, etc.), objetivaram desqualificar aqueles que
compunham os movimentos de massa destituindo-os de importância social e política.
Só no final do século XX que começou a aparecer a existência de diferentes modos de
analisar as multidões e seus líderes, os quais se encontram na dependência da
situação de classe.
Entretanto, as críticas formuladas à maneira como os movimentos de massa foram
analisadas na passagem para o século XX não foram suficientes para mudar o enfoque
a eles dirigidos. Hoje tais movimentos, na forma de protestos populares de variado tipo,
não são analisados de maneira muito diferente pelas autoridades constituídas. A versão
oficial sobre ocorrências recentes de quebra-quebras e saques aponta geralmente para
a existência de uma massa de ignorantes liderada por malfeitores e arruaceiros de
tendências ou facções radicais de partidos, excluindo a possibilidade de serem
realização de integrantes das classes trabalhadoras, e demonstrando a insistente
permanência da visão tradicional que enfatiza supostas características irracionais e/ou
criminosas. Dadas a negatividade destas características e sua distância da realidade,
seria de se esperar que o enfoque tradicional sobre as massas fosse ultrapassado por
enfoques mais realistas.
As transformações sociais e políticas operadas durante um século foram insuficientes
para suprimir as multidões da história. A idéia de que as formas espontâneas de
multidão ou protesto seriam naturalmente substituídas por formas artificiais e
organizadas e melhores, na forma de partidos ou sindicatos não se concretizou. De
maneira intermitente, as multidões marcam presença nas sociedades contemporâneas
demonstrando sua força através da ação direta.
Algumas proposições de alguns historiadores contribuíram de modo significativo para a
destruição de algumas idéias sobre as multidões, presentes nos escritos iniciais sobre a
temática. Vários foram os mitos questionados pelos seus estudos: o prazer de provocar
tumultos, considerado intrínseco às multidões, a ausência de crenças/ideologias, a
criminalização e /ou patologização de seus componentes, a sede de sangue e a
preferência por ações violentas e, por último, a necessidade de uma liderança externa,
cuja origem preferencialmente seria a elite.
As turbas geralmente eram constituídas pelo povo pobre, usualmente designado por “o
povinho”, trabalhadores originários de bairros densos e antigos, que se manifestavam,
não pelo “prazer de provocar tumultos”, mas porque pretendiam com isso conseguir
alguma mudança, geralmente econômica. Nesse sentido, as turbas não eram
constituídas de um aglomerado casual de pessoas, e muito menos pela escória social,
como bandidos, prostitutas e lupemproletariado. A associação entre crime e revolta era
esporádica e não constante como algumas abordagens procuram demonstrar.
Outro aspecto contido na abordagem tradicional sobre as multidões e que é
questionado é a forma de ação. Embora o modo de ação das multidões pré-industriais
fosse a ação direta e violenta, em alguns casos com ataques armados e barricadas,
havia outras formas, pacíficas, de manifestação que, no entanto, não deixavam de
impressionar e alarmar as autoridades. As manifestações súbitas e violentas tendiam,
em função de circunstância da época, a ser mais eficazes do que as de longa duração
e, portanto, se fortaleciam. A “(...) famosa “sede de sangue” da multidão é uma lenda,
baseada nuns poucos incidentes cuidadosamente escolhidos (...)” (Rude, 1991:274),
quer serviram de fundamento para as clássicas teorizações sobre as multidões.
Existem indicadores de que os confrontos da época resultaram, geralmente, em mais
mortes do lado dos insurgentes e amotinados, revelando que a ação violenta não partia
caracteristicamente do povo.
Os movimentos tradicionais possuíam como fundamento de suas lutas a exploração
econômica. Sua expressão política se dava através dos partidos políticos,
especialmente os operários ou de esquerda, que tinham como doutrina filosófica o
marxismo-leninismo. Os novos movimentos sociais, ao contrário, não se fundam
apenas sobre reivindicações econômicas e uma de suas características mais
marcantes é o afastamento dos partidos, abrindo espaço para propostas de autogestão.
Os conflitos situados no setor do trabalho deslocaram-se para as coletividades e,
embora não tenham desaparecido completamente, deixaram de ocupar o papel central.
A oposição passou a ser conduzida por grupos cada vez mais abrangentes,
descaracterizando-se como oposição genuinamente operária. Como exemplos de
movimentos desse tipo, podemos indicar os de negros, homossexuais, mulheres,
ecológicos, entre outros.
O surgimento de novas áreas de conflito nas sociedades capitalistas pós-industriais,
cuja característica é a integração das estruturas políticas, econômicas e culturais. “Os
conflitos sociais saem do tradicional sistema econômico-industrial para as áreas
culturais: eles afetam a identidade pessoal, o tempo e o espaço na vida cotidiana, a
motivação e os padrões culturais da ação individual” (Mellucci, 1989:58), sendo os
atores sociais não mais definidos pela casse social na medida em que os conflitos são
necessariamente ampliados.
Conclusões
Um evento como o linchamento, representado como negativo, possui também aspectos
positivos, apresentando flutuações contraditórias entre os seus elementos.
A representação negativa do linchamento não corresponde, como seria esperado, uma
alta expectativa de punição aos participantes e uma predisposição dos moradores em
denunciá-los ou testemunhar contra eles. Alguns inclusive manifestam uma posição
favorável a que punições não venham a ocorrer. Não encontramos correspondência
ainda entre as representações e o apoio que a comunidade deu aos participantes do
linchamento, manifestado em comentários cujo conteúdo visou minimizar sua
participação ou apresentar justificações para isso ter ocorrido.
A representação de justiça enquanto “aplicação da lei” não encontra correspondência
no tratamento que parte da comunidade deu aos suspeitos do assassinato, permitindo
que fossem executados “à margem da lei” em frente ao fórum local, à frente de juízes e
promotores, e quem sabe, de outras autoridades. Esta constatação demonstra que a
representação não age isoladamente, encontrando-se freqüentemente associada a
outras representações, como por exemplo, aquelas relacionadas ao crime cometido e
aos seus autores.
Alguns autores têm indicado a existência de um processo que promove a justificação da
violência cometida contra determinados grupos sociais. A violência cometida não é uma
ação reprovável em si mesma, a reprovação depende diretamente de quem (ou que
grupo) ela atingirá e de se considerar sua fonte legítima. É neste sentido que as classes
populares, apesar de vulneráveis tanto aos atos arbitrários da polícia quanto de
bandidos, tendem a ver como legítimas apenas as ações dos primeiros.
Se o grupo sujeito à violência é representado como sendo constituído de outsiders a
legitimação e a conseqüente justificação ocorrem quase que automaticamente. Ao
invadir a penitenciária do Carandiru, em São Paulo, a ação policial conseguiu apoio de
parte significativa da população porque o massacre foi cometido contra presos, um
grupo que, por si só, justificaria qualquer tipo de violência. É também sobre esse
enfoque que são discutidas as dificuldades que se apresentam para o fortalecimento da
campanha pelos direitos humanos, freqüentemente associada aos direitos de bandidos.
O caso analisado explicitou uma identidade que é compartilhada pelos moradores.
Segundo Tajfel, identidade social refere-se ao sentimento de pertencimento: “(...) o
conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente
com o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser
definidos através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social de
um indivíduo no seu próprio grupo e em outros” (1983:294).
O que identifica os moradores, objetiva e subjetivamente, é o fato de serem moradores
– muitos deles desde o nascimento – de uma determinada localidade. Esta noção
compartilhada de pertencimento, adquirida no processo de desenvolvimento de cada
um de seus moradores, fornce por sua vez uma série de critérios de julgamento e uma
visão específica sobre a realidade social.
Verificamos que a cidade é representada positivamente pelos moradores entrevistados.
Quando falam sobre a cidade, ressaltam, na maior parte das vezes, os seus aspectos
positivos. Os municípios próximos, no entanto, são representados negativamente,
caracterizando o processo de categorização social, evidenciando a existência de in e
outgroups e, portanto, de categorias sociais avaliadas de maneira diferenciada.
Outro aspecto que coloca em evidência este processo de preservar a identidade
positiva do ingroup refere-se à avaliação que os entrevistados fazem sobre a evolução
da criminalidade no local. Embora identifiquem um aumento no número de crimes
cometidos na localidade, alguns atribuem a autoria a “gente de fora”, de “outras
cidades” ou de “outros estados”. O levantamento realizado na delegacia local, no
entanto, evidenciou que os autores são moradores da localidade e predominantemente
trabalhadores rurais, indicando os limites psicológicos relativos aos in e outgroups.
O taxista assassinado era membro do ingroup e os moradores ressaltaram apenas as
suas qualidades, através de adjetivações positivas. Ao mesmo tempo, verificamos
também que acentuaram as atrocidades cometidas contra ele por membros de um
outgroup. Desnecessário dizer que as características de brutalidade do assassino
foram, pelo processo natural de acentuação das diferentes, imputadas aos seus
supostos autores.
No processo de organização do movimento, o grupo que participou do linchamento
acabou se constituindo em um outgroup. Evidência em favor dessa análise é que
quando se tratou de analisar o linchamento os entrevistados consideraram os principais
participantes como um grupo à aparte, diferente dos outros moradores do local. Não
foram “os moradores” da localidade que lincharam, foi apenas um pequeno grupo, que
se diferenciou por possuir características incompatíveis com as da “gente boa” do lugar.
O que não podemos deixar de enfatizar é que a identidade, tanto dos moradores quanto
dos linchadores, é socialmente compartilhada. É este compartilhamento que explica,
pelo menos em parte, a avaliação positiva que os moradores fazem dos linchadores em
determinados momentos. São considerados honestos, trabalhadores, responsáveis e
são respeitados pelos moradores. O fato de terem participado do linchamento parece
ser considerado circunstancial e não faltaram razões para isso. Mas naquela situação,
apesar de serem moradores, eles procuraram se diferenciar dos “outros” moradores do
local.
A vida não é um valor universal, como valor ele encontra-se na dependência de quem é
o possuidor da vida. A vida de um bandido de “dentro” tem um valor diferente daquela
do “de fora”, do mesmo modo que a vida de um morador tem valor maior do que a de
um estranho e, maior ainda, que a de um “bandido estranho”.
O pouco valor dado à vida das vítimas dos linchamentos, bem como a solidariedade e o
apoio dado aos linchadores nas mais diferentes formas, decorrem das afiliações
grupais e identidades sociais em confronto em situações de conflito intergrupal. A
desumanização das vítimas em confronto com as características da “gente boa” do
local só pode ter a função de justificação para ações socialmente condenáveis. A
despersonalizaão e a desumanização de membros de determinados grupos,
infelizmente, não é um fenômeno raro. Os exemplos históricos de conflitos bélicos e
perseguições onde tais processos estiveram, e estão presentes, são certamente
inumeráveis.
A análise sobre os linchamentos norte-americanos, em que predominaram os motivos
relacionados ao rompimento de tabus sexuais raciais, é um claro exemplo de conflito
intergrupal, onde se pode identificar o embate entre identidades antagônicas e o
processo de acentuação das diferenças mencionadas.
Enfim, as exigências impostas pela necessidade de convivência cotidiana com os
linchadores produziram acomodações que, embora possam ser percebidas como
ilógicas ou contraditórias, são elementos fundamentais para o restabelecimento das
condições mínimas para a “boa convivência” entre os pacatos moradores da localidade
e os participantes do linchamento. Contraditoriamente isto pode significar, a longo
prazo, o submetimento a uma ordenação de poder que nada tem a ver com relações
civilizadas e a conseqüente realimentação de uma cultura, que hoje observamos no
Brasil, onde o extermínio de determinados outgroups é justificado sob os mais
diferentes argumentos.
OS JOVENS E A POLÍCIA
Vários estudos com jovens apontam a existência de uma importante tensão na relação
entre juventude e polícia. A pesquisa “Jovens do Rio” com oitocentos indivíduos entre
15 e 24 anos, realizada na cidade em 2001, observou que as violências que os jovens
do sexo masculino mais temem são bala perdida (31,1%), assalto (31,6%) e violência
policial (16,8%). Outra pesquisa, também no Rio, coordenada por Minayo et al (1999),
ouviu 1220 jovens de 14 a 20 anos e concluiu que existe: a) alto grau de medo e
desconfiança dos jovens em relação à polícia, independentemente de classe social e de
local de moradia; b) alto grau de desrespeito, grosseria, humilhação, ameaças de morte
e prática de morte injustificada dos policiais em relação aos jovens; c) experiências de
extorsão de dinheiro e objetos; d) experiência de flagrante forjado; e) avaliação pelos
jovens de que policiais freqüentemente usam álcool e drogas.
Nosso levantamento quantitativo junto à população carioca, realizado em 2003, mostrou
que, de todos os grupos considerados, o segmento jovem é aquele que expressa as
piores avaliações da polícia. Foram registrados nesse segmento as maiores
freqüências de avaliações negativas da PM quanto a respeito ao cidadão, violência,
corrupção e racismo, assim como as menores porcentagens de avaliações positivas
sobre a utilidade ou eficácia das abordagens policiais.
Para essa pesquisa, foram realizados grupos focais com adolescentes – um grupo na
Zona Oeste e um na Zona Sul – e dois grupos com estudantes universitários. No grupo
da Zona Oeste havia predominância de jovens pobres e negros, e no da Zona Sul,
adolescentes brancos e de classe média. Dos grupos universitários, um continha
apenas negros, e outro negros e brancos. No total dos 4 grupos, participaram 24
rapazes e 28 moças.
Para os participantes dos grupos focais, ser jovem é um fator-chave na experiência de
ser considerado suspeito pela polícia. “Juventude” se combina com características que
afetam a probabilidade e a qualidade de uma abordagem policial. Uma delas é o
gênero, pois o fato de ser mulher constitui um atenuante. Em todos os grupos focais foi
identificado um tratamento diferenciado da polícia em relação às jovens. A diferença
mais importante é a revista corporal.
Alguns jovens associam o fato de serem menos parados ao fato de estarem
acompanhados por mulheres, sejam namoradas, amigas ou irmãs, especialmente
quando são abordados em seus carros.
A idade (ter menos de 18 anos, ou mais) foi outro fator identificado como capaz de
alterar a relação com a polícia. As experiências dos jovens de 14 a 18 anos moradores
da Zona Oeste indicam que freqüentemente os policiais, logo no início da abordagem,
perguntam “você é de menor?”, o que talvez indique uma preocupação em não
desrespeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para os moradores das áreas
mais pobres e socialmente consideradas violentas, o “ser de menor” não os isenta da
suspeita de praticar delitos (tráfico, uso de drogas, roubos, pichação), mas pode indicar
aos policiais a necessidade de seguir (ou contornar) certas exigências da lei. Neste
sentido, do ponto de vista dos adolescentes, dizer “sou de menor” aciona uma
estratégia que pode evitar maior violência.
Uma terceira característica apontada como atenuante de risco de abordagem ou capaz
de mudar a qualidade do tratamento da polícia é ser identificado como estudante. Estar
de uniforme, indo ou votando da escola, diminui as chances de ser considerado
suspeito.
Quando questionados sobre o que é mais suspeito, um jovem pobre andando na Zona
Sul ou uma pessoa rica andando perto da favela, os grupos responderam que ambos
são suspeitos, embora por motivos diferentes: um jovem negro e pobre andando a pé
em bairro de classe média é visto pela polícia como provável assaltante ou traficante,
tornando-se candidato a uma abordagem violenta, enquanto um jovem branco com
aparência de classe média, em um carro, dentro ou próximo de uma favela, é visto
como possível usuário adquirindo drogas e torna-se candidato à extorsão.
Quando questionados quais os locais e horários em que um jovem, sobretudo um
jovem negro, é particularmente suspeito, as respostas foram: num ônibus (todos os
grupos); nas agências bancárias (grupo de universitários negros); nos shoppings (grupo
de adolescente das Zonas Oeste e Sul); nos supermercados, principalmente se
estiverem com mochila (grupo de adolescentes da Zona Oeste).
A relação entre ser suspeito e ser negro ocupou boa parte dos debates nos grupos
focais.
“(...) dependendo do jeito que ele está vestido. Se ele está vestido como eu estou
vestido (com uniforme escolar)... por exemplo, eu sou negro, eu estou lá no bairro de
classe médica, estou passando e eles não vão suspeitar nada de mim. Posso ser o filho
da empregada, posso ser alguma coisa de alguém. Agora, se eu estiver todo
esculachado.. aí eles chamam a segurança” (Adolescente da Zona Oeste).
A cor foi uma característica que apareceu em quase todos os desenhos produzidos, e
as experiências de abordagens policiais associadas ao fato de o jovem ser negro foram
abundantes. Diversas vezes a cor foi identificada como a característica “irredutível”
(“que não dá para tirar”) e por isso diferenciada de vestimenta, corte de cabelo, objetos
ou mesmo atitude. Outras vezes o tratamento verbal dispensado pela polícia aos jovens
negros (“vai saindo, negão”; “encosta, negão”) foi visto como óbvio indicador da
existência de racismo na prática policial.
No ranking de classificação de características que levam uma pessoa a ser suspeita
pela polícia, “ser negro” aparece no topo da hierarquia das condições consideradas
mais suspeitas nos dois grupos universitários.
Quando indagados se havia diferenças entre policiais negros e brancos, ou se os
policiais negros eram mais, ou menos, racistas que os policiais brancos, prevaleceu a
opinião de que a cor da polícia não influi no tratamento dispensado numa abordagem.
Para os policiais, segundo esses jovens, mais importante que a cor ou a raça é a
cultura da corporação, que opera como identificador mais forte.
“Acho que não tem nenhuma (entre um policial branco e um policial negro). A dupla que
me abordou era um branco e um negro. Eles agiram exatamente da mesma forma.
Policial é farda. A cor dos caras é a farda. Se tem preconceito, está na farda”
(Adolescente da Zona Sul).
Sobre as abordagens sofridas, os jovens da Zona Sul afirmam que teria como objetivo
principal encontrar drogas e extorquir o dinheiro do usuário, e aquelas que ocorrem
mais frequentemente com jovens pobres, em bairros de periferia ou nas favelas, é
porque o jovem é suspeito de ser traficante ou assaltante e é percebido pelo policial
como potencialmente perigoso, podendo chegar a ser vítima de “esculacho”, isto é, de
violência física e humilhações.
Também surgiu nos grupos a percepção de que os próprios policiais atuantes na Zona
Sul ou em favelas, em bairros ricos ou pobres, teriam características diferentes.
“Não vai botar um (policial) matador no posto e Copacabana. Só vai botar um matador
para trabalhar no Complexo do Alemão” (Jovem do grupo de negros e brancos
universitários).
As avaliações dos contatos com a polícia valem-se ainda de uma memória familiar ou
social, composta de experiências vividas por parentes e outras pessoas conhecidas.
Essa memória traça igualmente uma nítida divisão de classe, reforçando a idéia de que
as pessoas da Zona Sul e de classe média, mesmo que sujeitas à coação e à extorsão,
têm mais chances de se saírem bem nas abordagens policiais.
A força representada pela posso de algum parente rico ou “poderoso” também pode,
eventualmente, ser mobilizada por jovens pobres da Zona Oeste para alterar o curso da
abordagem policial.
Além de idade, gênero, cor e classe social, enfatizaram-se também elementos relativos
à aparência e, secundariamente, à atitude, para explicar as razões de abordagens
freqüentes.
- TAVARES, G. M., SOUZA, L., MENANDRO, P. R. M., TRINDADE, Z. A.
Concepções de Policiais Militares sobre categorias sociais que são alvo do
trabalho policial. Revista de Psicologia UFF, 16 (1), p, 77-95, 2004.
CONCEPÇÕES DE POLICIAIS MILITARES SOBRE CATEGORIAS SOCIAIS QUE SÃO ALVO DO TRABALHO POLICIAL
Freqüentemente podemos ver a atuação dos policiais sendo veiculada pela mídia, ora
mostrando ações de combate ao crime – colocando-os no lugar de heróis – ora
mostrando-os como vilões, que se corrompem ou matam inocentes. O trabalho policial
ocupa, portanto, um território de controvérsias, no qual se engendra uma realidade
ainda pouco conhecida pela sociedade: a do policial trabalhador, cuja função é conter a
violência, mas que, ao mesmo tempo, corre o risco de reproduzi-la e/ou de ser vítima
dela.
Pensando o ofício policial a partir dessa perspectiva, não é difícil deduzir que se trata
de uma categoria profissional bastante vulnerável à produção de sofrimento psíquico,
uma vez que o exercício do trabalho é marcado por um cotidiano em que a tensão e os
perigos estão sempre presentes.
Em se tratando especificamente dos trabalhadores da Polícia Militar, às exigências do
contexto de risco permanente vivido nas ruas, somam-se àquelas relacionadas à forma
como o trabalho está organizado, marcado por um alto rigor prescritivo e alicerçado em
um sistema de disciplina e vigilância também permanentes.
No presente artigo relatamos pesquisa na qual buscou-se compreender as relações
entre o trabalho dos Capitães da Brigada Militar – denominação que recebe a Polícia
Militar no Estado do Rio Grande do Sul /Brasil – e a sua saúde mental. A escolha dos
Capitães como sujeitos relaciona-se com a especificidade dos posto que ocupam, uma
vez que na escala hierárquica situam-se como Oficiais Intermediários, o que significa
que exercem funções de comando em relação aos Praças e Oficiais Subalternos
(Tenentes) e estão, concomitantemente, subordinados aos Oficiais Superiores (Major,
Tenente Coronel e Coronel).
Levando-se em conta que a realização das atividades não pode nunca estar separada
dos aspectos relacionais imbricados na organização do trabalho, estar nesta posição de
comando intermediário implica a configuração de uma série de situações nas quais as
relações no trabalho exigem elaborações, arranjos, acordo, etc. Assim, na articulação
entre a gestão da defasagem existente entre o prescrito e o real e as relações
intersubjetivas no trabalho, emerge uma série de aspectos que podem ser tanto fonte
de prazer, quanto fonte de sofrimento para esses sujeitos.
A saúde e o prazer no trabalho estão, dentro desta abordagem, justamente na
possibilidade de que os sujeitos negociem com a organização prescrita do trabalho sua
inscrição no domínio do trabalho real, ou seja, na possibilidade de criar. Isto porque,
para Dejours (1997, p. 40), o real do trabalho é “aquilo que se faz conhecer por sua
resistência ao domínio técnico e ao conhecimento científico”. Ele é aquilo que “escapa”
e se torna um enigma a decifrar, sendo apreendido inicialmente sob a forma de uma
experiência vivida. É a partir do desafio colocado pelo real do trabalho, que o sujeito
acrescenta algo de inédito ao trabalho, algo de sua autoria, por intermédio de sua ação
singular sobre a tarefa e sobre as rotinas já dadas pela organização prescrita. No
entanto, é importante salientar que a inserção do sujeito entre o trabalho prescrito e o
real é sempre conflitiva, e não se dá fora do contexto das relações sociais no trabalho.
É nesse ponto que aparece outro elemento fundamental para que o sofrimento no
trabalho ganhe sentido e se transforme em prazer e saúde: o reconhecimento.
Quando a organização do trabalho tornase rígida, dificultando ou barrando a expressão
criativa e autonomia dos sujeitos, ou ainda, quando o reconhecimento não se faz
presente, emerge o chamado sofrimento patogênico (Dejours, 1994). A Psicodinâmica
do Trabalho, portanto, situa o trabalho como um território que tanto pode dar origem a
processos de alienação e mesmo de descompensação psíquica, como pode ser fonte
de saúde. Nesse sentido, muito mais do que a aplicação de conhecimento técnico, o
trabalho implica mobilização subjetiva, a qual se compõe e encontra ressonância em
sua inserção no coletivo de trabalho.
Resultados e Discussão
Foi possível identificar, a partir da análise documental, uma gama de prescrições e um
sistema de punições e recompensas que incidem diretamente na execução do trabalho,
nas relações que se estabelecem entre os policiais e também, de forma mais ampla,
aos princípios que devem pautar a conduta destes, mesmo fora do ambiente de
trabalho. O documento que se ocupa mais diretamente das questões
relativas ao cumprimento das prescrições e manutenção dos princípios da hierarquia e
da disciplina é o Regulamento Disciplinar dos Servidores Militares (Decreto nº 41.067,
2001), e nele podemos encontrar 94 (noventa e quatro) tipos de transgressão, que
estão classificadas quanto à sua natureza em leves, médias e graves, sendo todas
passíveis de sanção disciplinar, variando seu grau de acordo com a natureza das faltas
cometidas.
Em relação às prescrições para as relações entre os policiais, destaca-se que todo
policial militar deve, segundo os preceitos da ética e do dever policial militar (Lei
Complementar n. 10.990, 1997), cumprir rigorosamente as obrigações e as ordens;
praticar a camaradagem e desenvolver permanentemente o espírito de cooperação;
tratar os subordinados com dignidade e urbanidade; zelar pelo preparo moral,
intelectual e físico, próprio e dos subordinados, tendo em vista o cumprimento da
missão comum e ser justo e
imparcial no julgamento dos atos e na apreciação do mérito dos subordinados (Arts. 25
e 29). Estará incorrendo em transgressão todo subordinado que deixar de
cumprimentar seu superior, ou deixar de prestar-lhe homenagem ou sinais
regulamentares de consideração e respeito; assim como o superior hierárquico
incorrerá, caso não responda ao cumprimento. Também poderá ser punido o policial
militar que responder de maneira desrespeitosa, ofender, provocar ou desafiar com
palavras, gestos ou ações ou travar luta corporal com seu superior, igual ou
subordinado e ainda, o policial militar que censurar publicamente decisão legal tomada
por superior hierárquico ou procurar desconsiderá-la (Decreto nº 41.067, 2001).
Após esta breve descrição do trabalho prescrito, apresentaremos a seguir alguns dos
principais aspectos do trabalho cotidiano dos Capitães, juntamente com a análise dos
elementos apontados pelos entrevistados como geradores de sofrimento e prazer no
trabalho. Atividade Administrativa: Carga Excessiva de Trabalho, Responsabilidade e
Autonomia Os Capitães participantes da pesquisa, como comandantes de Companhias
ou Pelotões, tinham sob responsabilidade um efetivo que pode variar de 25 a 75
policiais. A atribuição de planejamento de policiamento desdobra-se em uma série de
atividades, dentre elas, a realização de estatísticas para averiguar os locais mais
propensos a ocorrências e o planejamento de cada um dos postos de policiamento da
subárea sob seu comando. Em relação à gestão de recursos humanos, dentre as
atividades envolvidas, está o planejamento das escalas de trabalho dos Praças para os
quatro turnos de trabalho, a concessão de licenças e o gerenciamento das folgas e
férias de seus subordinados.
Os Capitães também se envolvem com o controle, manutenção e distribuição e dos
equipamentos de trabalho. Dentre as atividades administrativas, ganha destaque a
presidência dos chamados Procedimentos, processos que visam investigar possíveis
infrações disciplinares cometidas por policiais militares, e que englobam Inquéritos
Técnicos, Sindicâncias Administrativas, Inquéritos Policiais Militares e Procedimentos
Administrativos Disciplinares, cada um dos quais com formato e prazos são específico.
Desde a elaboração até a conclusão dos Procedimentos, existe um formalismo
bastante minucioso a ser cumprido. Por tratarem- se de processos oficiais, é necessária
muita atenção para evitar erros ou omissão de dados, a qual, pode, inclusive, ser
classificada como transgressão disciplinar e resultar em punição. Além disso, a
condução de cada um dos Procedimentos exige que diversas atividades sejam
executadas, tais como: encaminhamento de perícias junto aos setores competentes nos
casos de Inquéritos Técnicos, envio de ofícios solicitando a presença dos acusados ou
das testemunhas para serem ouvidos e a tomada dos depoimentos dos envolvidos.
Neste sentido, a presidência dos Procedimentos, foi considerada unanimemente pelos
entrevistados, como a “a parte ruim e chata do trabalho”. As deficiências das condições
de trabalho e o fato de dependerem de outras pessoas para realizá-los, como peritos
(que muitas vezes demoram a entregar os laudos necessários ao andamento dos
processos) e depoentes (que não raras vezes, deixam de comparecer no dia e horário
estipulados) são fonte de pressão, visto que o atraso na entrega pode resultar em
punição, pois dentre as transgressões de natureza média, listadas no RDSM, consta
“deixar de encaminhar documentos no prazo legal”. Nas palavras de um Capitão: Não
gosto de fazer sindicância, não gosto de fazer inquérito, não gosto de ouvir as pessoas
em inquérito e sindicância. Por quê? Porque é um problema, porque ou não tem o
computador, ou tu não tem horário, ou a pessoa que tu chamava não vem, aí... Sabe?
E isso, junto com a parte operacional e até mesmo com outras questões
administrativas, isso me causa um estresse tremendo. Eu não gosto de fazer
procedimento. Não gosto mesmo. Assim, o grande número de atribuições no âmbito
administrativo, sobretudo em função dos Procedimentos, faz com que, regularmente, os
Capitães tenham que iniciar mais cedo ou estender o horário de trabalho para além das
seis horas diárias estipuladas. Neste sentido, os entrevistados atribuem a elevada
carga de trabalho o fato de tornar a sua profissão desgastante. A essa questão associa-
se a disponibilidade permanente demandada pelo trabalho, em função das
responsabilidades do cargo, sobretudo no que tange à execução do policiamento nas
subáreas que estão sob comando dos Capitães. Trata-se de uma responsabilidade que
não cessa mesmo quando eles não estão em horário de trabalho, a qual os faz não
poderem “desligar nunca”, engendrando um estado de preocupação constante.
No entanto, é preciso lembrar que estes aspectos nem sempre são incompatíveis com
o prazer que é obtido na relação estabelecida com o trabalho (Dejours & Jayet, 1994).
Nesse sentido, os Capitães afirmam também que encontram grande satisfação na
profissão de policiais militares, e mais especificamente no posto que ocupam. Dentre os
fatores que trazem satisfação, está a percepção que têm da importância social do
trabalho, a despeito das inúmeras críticas feitas em relação à atuação da polícia: Só
nosso trabalho em si já é uma coisa gratificante, é um serviço que a gente ta prestando
pra comunidade. Pensa bem, uma cidade sem policiamento, por exemplo? Se com
policiamento já acontece muita coisa, então o nosso serviço é muito importante pra
sociedade. Então só de a gente se sentir necessário, já e uma coisa gratificante pra
gente. Esse “sentir-se útil”, se está vinculado ao objetivo mais amplo do trabalho, qual
seja, a preservação da segurança pública, remete também à participação de cada um
dos Capitães nesse processo, pelas atividades de concepção.
Lembramos que do ponto de vista da saúde mental, o engajamento subjetivo, pela
mobilização da inteligência e da inventividade no trabalho é um aspecto de suma
importância para garantir que este seja fonte de prazer (Dejours, 1992, 1997; Merlo,
2002). Ao mesmo tempo, ainda que muitas determinações que tenham de ser
cumpridas, existe um espaço de autonomia que permite adapta-las e decidir sobre
como serão realizadas, como pode ser visto na fala a seguir: Cada Oficial tem uma
maneira de ser, uma maneira de tu levar. É como um dirigente, o treinador e os
jogadores. Tem o dirigente que contrata o treinador, eu sou o treinador. Ele quer que o
time atue de determinada forma e o treinador vai dar o seu toque pessoal e o soldado
dentro de campo, o jogador. Tu chega e verifica qual a melhor maneira de tu fazer
aquilo que foi solicitado pra ti fazer.
Assim, ainda que o trabalho dos Capitães seja permeado de pressões, é fonte de
prazer, por ser tributário de uma utilidade social que lhe atribui um sentido e pela
possibilidade de singularização no espaço de autonomia e criação que proporciona.
Atividade Operacional: Risco, Sofrimento e Prazer A presença dos Capitães
diretamente na atividade de policiamento se dá basicamente de duas formas: quando
saem às ruas para coordenar, fiscalizar e suplementar efetivo do Policiamento
Ostensivo, durante o turno diário de trabalho, ou então, para realização dos Serviços
Externos de doze horas, que podem acontecer durante o dia, das sete da manhã às
sete da noite, ou das sete da noite às sete da manhã. O trabalho nas ruas é referido
pelos Capitães como uma “caixa de surpresas”, pois nunca sabem com que tipo de
situações irão se deparar e neste sentido, afirmam que precisam estar preparados para
as ocorrências mediante o conhecimento da legislação e dos procedimentos prescritos
para serem adotados frente a elas. No entanto, afirmam que todas as ocorrências são
diferentes. Em geral, trata-se de situações tensas e nas quais estão em jogo segurança
e não raramente a vida de pessoas: a sua, a dos subordinados e da dos civis
envolvidos, como na experiência relatada por um dos entrevistados: Foi quando eles
(assaltantes que mantinham reféns) me exigiram eu entrar desarmado, o que eu fiz. Foi
uma decisão que eu tive que tomar no momento. E na hora a gente quer resolver o
problema, a gente tá preocupado com a vida das pessoas. Foi uma decisão que eu tive
que tomar, simplesmente tirei minha arma da cintura, entreguei pro PM e entrei. Assim,
as decisões tomadas não decorrem estritamente da execução de determinados
procedimentos e não são os resultados de um diagnóstico exato sobre uma situação –
o qual não pode ser obtido até mesmo em função do tempo mínimo em que têm de ser
tomadas. São decisões que em muitos casos antecipam-se à racionalização, tomadas a
partir da mobilização da subjetividade frente ao imprevisto e ao incerto (Dejours, 1997).
As Relações de Trabalho: Um Território de Contradições, a organização prescrita do
trabalho policial militar com seu sistema de punições e recompensas tem no
disciplinamento o seu elemento central. Assim, analisar as relações que se produzem
entre trabalhadores nesta instituição exige levar em consideração que estas estão
sempre permeadas pela hierarquia, pela disciplina e pelos mecanismos utilizados para
sua produção e manutenção. Os Capitães, por ocuparem o posto de Oficial
Intermediário, estão, concomitantemente, expostos a tais mecanismos e têm a
incumbência e de fazê-los funcionar na convivência com seus subordinados. Cabe-lhes,
além do planejamento e gestão, o papel de “olhar hierárquico” (Foucault, 2002, p. 143)
sobre seus subordinados, fazendo a vigilância e a fiscalização do trabalho e da
disciplina, sob pena de que eles próprios sejam punidos, caso deixem de comunicar
quaisquer atos contrários a esta, deixem de tomar as providências cabíveis para que
sejam investigados ou deixem de punir, dentro de sua competência, os transgressores.
É importante destacar que a vigilância da disciplina, apesar do componente hierárquico
em função da organização piramidal, é prescrita entre todos os policiais, fazendo dos
Capitães “fiscais perpetuamente fiscalizados” (Foucault, 2002, p. 148). A disciplina,
portanto, constitui-se, tal como afirma Foucault (2002), em um poder múltiplo, que atua
formando uma rede que controla continuamente também os que estão encarregados de
controlar. Temos assim, uma polícia que atua como polícia de si mesma, mediante a
prescrição para a denúncia. Embora não possamos esquecer que estamos nos
reportando a trabalhadores que atuam na segurança pública e que, neste sentido, a
vigilância objetiva o impedimento de transgressões que podem ser a prática de atos
ilícitos e/ou criminosos, claramente incompatíveis com o trabalho na policial, é preciso
lembrar também que este controle atua diretamente sobre o vínculo de confiança entre
os trabalhadores.
Conceitos e contexto
As instituições policiais brasileiras (civis e militares), de um lado, derivam das
corporações modernas da Europa Ocidental, forjadas na idéia de segurança pública
como um serviço essencial prestado pelo Estado, concernente à garantia de direitos e
ao assentamento da autoridade. De outro, foram criadas para controlar uma sociedade
escravocrata, extremamente hierárquica e elitista. Desta forma, ao lado de seu papel
modernizador que tirava o monopólio da violência da mão dos soberanos portugueses,
sua existência efetivou a força repressora do Estado contra os escravos, os pobres
livres e a população em geral. Sua atuação histórica acabou por instituir uma ética
discriminatória na prática dos deveres estabelecidos pela autoridade das leis. Em
resposta, a história mostra que, desde a origem, se explicitou uma aversão dos
brasileiros às atividades policiais, aversão que permanece. Até hoje, o serviço de
segurança pública no Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população em geral e
por motivos diversos: os cidadãos das classes média e abastada reclamam da
insegurança e da ineficiência, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos
policiais em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros
periféricos sente-se discriminada e maltratada por eles; e os delinqüentes os tratam
como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo confrontá-los,
escudados exatamente na "má fama" que os acompanha.
A opinião pública negativa faz parte do ônus do trabalho policial, e em estudos recentes
alguns autores mostram como esses servidores apresentam elevado grau de
sofrimento no trabalho pela falta de reconhecimento social. O conceito negativo emitido
sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e
naturaliza a violência que os vitima muito mais do que a qualquer trabalhador, durante a
jornada de trabalho ou nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as
ocorrências de lesões e traumas.
Todas as categorias aqui estudadas, policiais civis, militares e guardas municipais,
atuam no conceito de Segurança Pública que abrange a garantia que o Estado oferece
aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que possa afetar
a ordem social, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade. A
segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Embora seu
conceito seja muito mais complexo do que o de policiamento, a segurança é
transformada em mandato à instituição policial, de tal forma que a produção e a
manutenção da ordem constituem a essência de sua missão e de seu processo de
trabalho.
Os policiais e os guardas municipais do Rio de Janeiro são tratados como categorias
que atuam sob elevado risco, entendendo-se essa noção sob as abordagens
epidemiológica e social. Ou seja, essa noção diz respeito, ao mesmo tempo, à
probabilidade das ocorrências de lesões, traumas e mortes e ao significado da escolha
profissional que traz intrínseca o gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção e
não como destino. Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais
para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam. Eles vivem o que se denomina de "risco de alta
conseqüência". O exercício do trabalho de elevado risco se comprova pelas taxas de
mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora das
corporações, taxas essas muito mais elevadas que as da população em geral.
Sobre a Guarda Municipal
A Guarda Municipal, em sua curta história, passou por um período de crescimento da
vitimização, principalmente em 2003, de seus agentes que coincide com o acirramento
de conflitos e turbulência envolvendo algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro. Entre
os eventos que redundaram em vitimização estão os conflitos com camelôs que
negociam produtos contrabandeados e cargas roubadas. A omissão das autoridades
quanto a ações para a contenção ou proibição da circulação de mercadorias ilegais por
um lado, e por outro, a pressão da Guarda Municipal contra as infrações no comércio,
fizeram crescer a resistência dos comerciantes informais. Contudo, os confrontos
sempre encontraram os guardas despreparados e mal equipados, usando
equipamentos de proteção apenas para a cabeça e o corpo. As ocorrências de
vitimização evidenciaram a necessidade de protegê-los com colete, caneleira, joelheira
e munhequeira.
No período de 1994 a 2004, morreram por todas as causas (doenças e causas
externas) 65 (5,3%) guardas municipais e 1.150 (94,7%) foram feridos em acidentes
típicos de trabalho. O número de feridos não letais aqui analisado representa o dos
servidores em serviço. As agressões representaram 30,3% de todos os ferimentos
decorrentes dos acidentes típicos de trabalho ou 26,6% de guardas feridos em relação
ao total das vítimas. O acirramento dos conflitos teve um papel importante no
crescimento da vitimização não letal, mas não em relação às mortes nas atividades
profissionais. No período, a maioria dos óbitos ocorreu em folga (89,2%) e apenas
10,8% aconteceram em serviço.
Cerca de 29,5% do total dos guardas municipais, correspondendo a 10 mortos por
projéteis de arma de fogo e 348 agredidos por pedras, paus e luta corporal, foram
vitimados por causas externas no período. Do efetivo médio de guardas no período de
2001/2004, 1.110 (21,1%) entraram em benefício por acidente de trabalho e 2.347
(44,7%), por doença. Analisando as características de vitimização desses servidores
nos anos de 1994 e 1995, Muniz & Soares (1998) identificaram como principais
circunstâncias das lesões, traumas e mortes, a dinâmica conflituosa (60,5%), a
dinâmica criminal (16,3%) e o acidente de trânsito (9,3%). A primeira correspondeu a
79,3% da vitimização em serviço: em 51,7% dos casos, os agentes encontravam-se em
operação especial e, em 20,6%, estavam de sentinela ou fazendo policiamento.
Sobre os policiais militares
Observa-se que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5% no período,
enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças com
agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de oficiais, representando
cerca de 96% das LTS no período. São os praças que estão na linha de frente nos
confrontos.
Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias no
que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio
de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de oficiais, passando a
ser 16.8 vezes em 2004. Os praças configuram 93% dos incapacitados físicos retirados
dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de 1997,
50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS e
16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em
ambos os casos ressaltam-se os riscos e o estresse vivido no trabalho.
Dos 4.518 policias mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1% foram
vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação violenta
representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu
nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em 2003 e
2004, respectivamente.
Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando mortos em
serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os dados
mostram um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em serviço por
ação violenta, passando de 75% para 88%. O número de policiais que perderam a vida
em serviço foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.
Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais - de todas as três categorias -
também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número de
ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em 2004.
Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de 5.054
para 5.286.
É importante também destacar que no conjunto dos óbitos por ação violenta morrem
2.8 vezes mais policiais militares em folga do que os que se encontram em serviço. No
entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses
últimos (ela representa 83,2% dos policiais que morreram em serviço, comparados aos
68,5% dos que morreram em folga).
Dos 3.760 policiais militares feridos (em serviço e em folga) 48,1% (ou 1.809 policiais)
estavam em serviço. Desses que se encontravam em serviço, 1.054 (58,3%) foram
atingidos em ação violenta, o que representa uma proporção maior do que a de 50,5%
de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto, a ação violenta tem
crescido proporcionalmente vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004
ela é responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento de policiais.
Em 2002 esse percentual era de cerca de 39%.
No Rio de Janeiro, dos policiais militares que morreram em serviço, 55,3% estavam
trabalhando em policiamento geral, dos quais 41,4% faziam patrulhamento motorizado
e de rotina; 29,2% exerciam policiamento dirigido (13,1% de radiopatrulha e de
atendimento aos cidadãos e 12%, em operações especiais); 2,9% efetuavam
investigação e diligência; 12,7% atuavam em outros tipos de serviços; e 10,4% estavam
de sentinela ou plantão.
Sobre os policiais civis
As informações sobre a polícia civil dizem respeito às mortes e aos eventos não fatais
causados por todas as condições e agravos, incluindo-se as doenças, os acidentes e as
violências. Essas informações diferem das apresentadas sobre as duas outras
categorias, por dificuldades objetivas de se obterem dados desagregados sobre causas
externas para esse grupo.
No período de 1994 a 2004 foram aposentados por laudo médico 594 policiais civis,
envolvendo todas as causas geradoras de invalidez temporária e permanente,
incluindo-se doenças e lesões provocadas por acidentes e violência.
Pelos motivos aludidos, as informações aqui analisadas não permitem a comparação
entre as categorias. Morreram, por todas as causas, 147 policiais civis no período de
1998 a 2004, dos quais a grande maioria (120 policiais) encontrava-se de folga.
O ponto mais relevante das informações trazidas é a elevação das taxas de morte de
policiais nos dois últimos anos, principalmente quando em folga. Para a cidade do Rio
de Janeiro indicaram para os anos de 1994 e 1995 taxas de vitimização de 20,8 e 17,5
por mil policiais, respectivamente. Grande parte das informações estava classificada
numa categoria denominada "ofensas". Em 1994 a taxa total de vitimização (mortos +
feridos) foi de 20,8 por mil policiais civis, enquanto apenas a de ofensas não letais foi
de 16,6/1.000. Em 1995 o valor encontrado para a taxa total de vitimização foi de
17,5/1.000 e de 14/1.000 para as lesões não letais. Nesses mesmos anos, a maior
parcela dos óbitos correspondeu à de policiais em folga. Dentre os vitimados 53,1%
eram detetives; 10,9% carcereiros; 18% não foram especificados quanto à função; 5%
eram escrivães, 3,8% delegados e 8,4% exerciam outras funções. As circunstâncias da
vitimização em serviço corresponderam à dinâmica criminal em 52% dos casos, sendo
13,3 por ação armada de suspeitos. Os acidentes de trânsito responderam por 22,7%, e
a dinâmica conflituosa, a 18,7% dos traumas e lesões. As circunstâncias da vitimização
dos que estavam em folga foram: dinâmica criminal (33,3% dos casos, sendo 28,8% a
assaltos); acidentes de trânsito (28,8%) e dinâmica conflituosa (25,5%).
Conclusões
Durante a série estudada houve crescimento da vitimização nas três categorias
estudadas, sobretudo considerando-se as lesões não fatais nos primeiros anos deste
século, com relevância para 2003 e 2004. As principais causas de morte, lesões e
traumas se devem a agressões e a acidentes de trânsito, o que coincide hoje com
informações sobre a vitimização das populações trabalhadoras no Brasil na conjuntura
atual. Porém, isso ocorre de forma muito mais insidiosa entre guardas municipais e
policiais civis e militares do Rio de Janeiro.
Embora os servidores das três corporações conformem uma categoria específica de
trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes,
existem diferenciações internas entre os três grupos, o que corresponde, dentre outros
motivos, ao processo de trabalho de cada um.
Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em
acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências
podem ser ressaltadas. Uma delas, contraditoriamente, se deve também ao trabalho.
Elevado percentual de policiais tem um segundo emprego na área de segurança
privada, continuando assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado
risco. Outro motivo se deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de
conflitos em bairros, em bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam
se envolvendo. Muitos, também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse
último motivo leva a que seja comum o fato de os policiais esconderem seus distintivos
e profissão, visando diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve
ser descartado também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses
agentes desfrutem de maior proteção grupal e de atenção e cuidados muito mais
estruturados e padronizados tecnicamente.
Fica patente que, dentre os três grupos, a Polícia Militar é a que mais sofre agressões,
apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas. Esse privilégio
negativo pode ser constatado, comparativamente, com dados para o ano de 2000. No
Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral foi de 26,7 por 100 mil
habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na capital do Rio de
Janeiro, os dados são mais elevados: 49,5/100.000 na população geral e 97,6/100.0000
na população masculina. As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito
entre agentes da segurança pública (das três categorias) são mais elevadas, menos na
Guarda Municipal. Nessa, em 2001, a taxa de mortalidade foi de 55,31/100.000
guardas, abaixo da média masculina da população do Rio de Janeiro. No entanto, na
Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por agressões chegou a 356,23/100.000.
Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas as causas, no mesmo ano foi de
206,80/100.000.
Portanto, comparativamente, a Polícia Militar apresenta taxas de mortalidade por
violência 3.65 vezes maiores do que a da população masculina da cidade do Rio de
Janeiro e 7.2 vezes a da população geral da cidade. Comparando-se com o Brasil, as
taxas são 7,17 vezes as da população masculina e 13.34 vezes as da população geral.
O risco de morte entre Policiais Militares é também maior do que entre os agentes dos
outros órgãos de segurança aqui analisados: chega a ser 6.44 vezes o da Guarda
Municipal e 1.72 vezes o da Polícia Civil.
Sob a perspectiva das internações hospitalares motivadas por agressão, em 2000
observou-se a taxa de 0,10/1.000 habitantes na população geral e 0,34/1.000 na
população masculina do país. As taxas de lesões e traumas por agressões não fatais
foram de 4,49/1.000 para a Guarda Municipal e de 9,29 para a Polícia Militar, nesse
mesmo ano. Comparados com dados do Rio de Janeiro, a taxa de morbidade hospitalar
da Polícia Militar em 2000 foi 92,90 vezes maior que a da população geral da cidade e
27.32 vezes a da população masculina do Brasil. Foi ainda 2.07 vezes maior do que a
taxa da Guarda Municipal.
Encerrando esta reflexão, chama-se atenção para a necessidade de estudos e,
principalmente, de propostas de ação que sejam efetivas e tornem os trabalhadores da
segurança pública menos vulneráveis. A maioria das medidas para diminuir a
vitimização passa por propostas de modernização dos seus processos de trabalho, das
estratégias de sua atuação e dos equipamentos de produção dos serviços. Mas
referem-se também a políticas que promovam a diminuição da criminalidade e a
mudanças na cultura de oposição entre policiais e cidadãos. O campo de saúde do
trabalhador hoje, para ser coerente com a realidade do mundo do trabalho, não pode se
omitir de pensar nas categorias que atuam na segurança pública, um dos segmentos
mais vulneráveis aos acidentes e à morte no trabalho.