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APOSTILA DE PSICOLOGIA GERAL

- BOCK, A. M. M. A Psicologia ou as Psicologias. In: ______. Psicologias – uma


introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 15-30.

PSICOLOGIAS

“De psicólogo e louco todo mundo tem um pouco”

O ditado não é bem esse (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas
serve perfeitamente para ilustrar que as pessoas, em geral, têm a “sua psicologia”; seja
para vender um produto, conquistar alguém, para entender as pessoas...
Será essa a psicologia dos psicólogos?
Certamente não. A psicologia usada no cotidiano pelas pessoas em geral é
denominada psicologia do senso comum. Não deixa de ser uma psicologia, mas denota
um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela
Psicologia científica.
É a Psicologia científica que vamos estudar, antes disso vamos entender a relação de
ciência/senso comum.
Os acontecimentos do dia-a-dia denunciam, a todo tempo, que estamos vivos; e a
ciência procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo
sistemático.
Fazendo ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela.
Afastamo-nos, abstraímo-nos, dela para refletir e conhecer além de suas aparências,
transformando-a em objeto de investigação.
Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório,
está submetido à dinâmica do cotidiano e, assim, vai também acumulando
conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros.
Para atravessar uma rua movimentada, por exemplo, não precisamos usar uma
máquina de calcular ou uma fita métrica, sabemos perfeitamente medir a distância e a
velocidade do automóvel que vem em nossa direção.
A esse tipo de conhecimento que vamos acumulando chamamos senso comum.
A necessidade desse conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos que
descobrir diariamente que as coisas tendem a cair e não a subir, que para fazer um
aparelho funcionar precisamos de eletricidade, que um automóvel em velocidade vai se
aproximar rapidamente de nós...
O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que
vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração.
É nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias
“teorias”.
O conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se
apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros
setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros
saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada,
produzindo uma determinada visão-de-mundo.
É claro que isso não ocorre muito rapidamente e nunca um conhecimento mais
sofisticado e especializado é absorvido totalmente.
Quando utilizamos termos como ‘rapaz complexado’, ‘menina histérica’, estamos
usando termos da Psicologia científica. Não nos preocupamos em defini-los e nem por
isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estarmos próximos do
conceito científico, mas, na maioria das vezes, nem o sabemos.
Por sua vez, somente esse tipo de conhecimento não seria suficiente para as
exigências de desenvolvimento da humanidade. Somente esse tipo de conhecimento
intuitivo seria pouco para o domínio da natureza. Os gregos, por volta do séc 4 a.C. já
dominavam complicados cálculos matemáticos. Podemos destacar que esse tipo de
conhecimento foi se especializando cada vez mais, até conseguir levar o homem à Lua.
A este tipo de conhecimento denominamos ciência.
Contudo, essas não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para
descobrir e interpretar a realidade. Podemos, ainda, ressaltar a filosofia, a partir das
especulações sobre a origem e o significado da existência humana; a religião, que
formula um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios,
princípios morais; a arte, conhecimento que traduz emoção e sensibilidade.
Agora podemos enfocar a Psicologia científica, começando a delimitar melhor o que
vem a ser ciência.
A ciência pode ser definida como o conjunto de conhecimentos sobre fatos e aspectos
da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de linguagem precisa e rigorosa.
Para tanto, esses conhecimentos são obtidos de forma sistemática e controlada para
possibilitar a verificação de sua validade e permitir sua continuidade e avanço (seja
negando, reafirmando ou descobrindo novos aspectos).
Além disso, a ciência aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de
verificação e isentas de emoção para tornarem-se válidas para todos.
Assim, esse conjunto de características, possibilita denominarmos de científico um
conjunto de conhecimentos.
A partir daí, qual, então, é o objeto de estudo da Psicologia?
Como ciência humana, a Psicologia estuda o homem. No entanto, isso não a
especifica, uma vez que a Antropologia, a Economia, a Sociologia, também estudam o
homem.
Se perguntarmos a um psicólogo comportamentalista, ele dirá que o objeto da
psicologia é o comportamento humano; se perguntarmos a um psicanalista ele dirá que
é o inconsciente. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, a personalidade.
Essa diversidade de objetos é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-
se constituído como área científica somente recentemente (final do século 19), a
despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana.
Outro fato importante que contribui para dificultar tal definição de objeto é que o
cientista, o pesquisador, se confunde com o objeto a ser pesquisado.
Sendo assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo influencia,
inevitavelmente, a sua pesquisa em Psicologia.
Para o filósofo francês, Rousseau, por exemplo, o homem nasce puro e a sociedade o
corrompe; cabendo ao filósofo reencontrar essa pureza perdida.
Outros, no entanto, vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e
que não mudam, a despeito das condições sociais a que estejam submetidos.
Nós, professores desse curso, vemos o homem como ser datado, determinado pelas
condições históricas e sociais que o cercam.
Conforme a concepção de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que
combine com ela. No caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens”
concebidos pelo conjunto social, caracterizando-se por uma diversidade de objetos de
estudo.
A superação de tal impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como
ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da
compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já
que o homem que compreende a História também compreende a si mesmo, e o homem
que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar
novas rotas e utopias.
Assim, podemos dizer que não existe uma Psicologia, mas Ciências Psicológicas
embrionárias e em desenvolvimento.
De qualquer maneira, a forma particular e específica de contribuição da Psicologia para
a compreensão da totalidade da vida humana é o estudo da subjetividade. Logo, a
matéria prima da psicologia é o homem em todas as suas expressões, as visíveis
(nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque
somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) – é o homem-corpo,
homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo
subjetividade.
A subjetividade é o mundo das idéias, significados e emoções construído internamente
pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição
biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada
um. É o que constitui o nosso modo de ser.
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a
constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso
ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção.
Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si
próprio.
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida,
moldada, mas também automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas
de subjetividade recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a
aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento...
Nesse sentido, cada homem pode participar na construção do seu destino e da sua
coletividade.
Assim, estudar a subjetividade é tentar compreender novos modos de ser, cuja
fabricação é social e histórica.
O movimento e a transformação são os elementos básicos desse processo, como
expressa pertinentemente o escritor Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:
“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.

- BOCK, A. M. M. A evolução da Ciência Psicológica. In: ______. Psicologias – uma


introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 31-44.

A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

Para compreender a diversidade com que a Psicologia se apresenta hoje, é


indispensável recuperar sua história. A história de sua construção está ligada, em cada
momento histórico, às exigências de conhecimento da humanidade, às demais áreas do
conhecimento humano e aos novos desafios colocados pela realidade econômica e
social e pela insaciável necessidade do homem de compreender a si mesmo.
É entre os filósofos gregos que surge a primeira tentativa de sistematizar uma
Psicologia. O próprio termo vem do grego psyque, que significa alma, e de logos, que
significa razão. Portanto, etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”.
O filósofo grego Platão (427-347 a.C.), discípulo de Sócrates, postulava a imortalidade
da alma e a concebia separada do corpo; por outro lado, Aristóteles (384-322 a.C.),
discípulo de Platão, afirmava a mortalidade da alma e sua relação de pertencimento ao
corpo.
E foram esses filósofos que influenciaram Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de
Aquino (1225-1274) já na época da era cristã. Falar de Psicologia nesse período é
relacioná-la ao conhecimento religioso, já que, ao lado do poder econômico e político, a
Igreja Católica também monopolizava o saber e, conseqüentemente, o estudo do
psiquismo.
Santo Agostinho também fazia a cisão entre alma e corpo, mas considerava a alma
uma prova de manifestação divina no homem.
São Tomás de Aquino - vivendo num período que prenunciava a ruptura da Igreja
Católica, o aparecimento do Protestantismo e numa época que se preparava para a
transição para o capitalismo - considera que o homem, na sua essência, busca a
perfeição através de sua existência, afirmando que a busca de perfeição pelo homem
seria a busca de Deus.
Mas é na Renascença, com o filósofo René Descartes (1596-1659) que é postulada a
separação entre mente e corpo, o que permitirá o avanço da ciência com o estudo do
corpo humano morto.
No século 19, com o crescimento da nova ordem econômica: o capitalismo, faz-se
necessário ainda mais o avanço da ciência, que deve dar respostas e soluções práticas
no campo da técnica.
Em meados desse século, os problemas e temas da Psicologia até então estudados por
filósofos, passam a ser também investigados pelas especialidades da Medicina:
Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia, o que, aos poucos, vai lhe dando o status
de ciência.
A psicologia científica nasce quando, de acordo com os padrões de ciência do século
19, wilhelm Wundt (1832-1926) preconiza a Psicologia "sem alma". O conhecimento
tido como científico passa então a ser aquele produzido em laboratórios, com o uso de
instrumentos de observação e medição.
Embora a Psicologia científica tenha nascido na Alemanha, é nos Estados Unidos que
ela encontra campo para um rápido crescimento, resultado do grande avanço
econômico que colocou os Estados Unidos na vanguarda do sistema capitalista. É ali
que se constituem três escolas – Associacionismo, Estruturalismo e Funcionalismo –
substituídas, no século 20, por novas teorias.
Funcionalismo: para a escola funcionalista, importa responder “o que fazem os homens”
e “por que fazem”. Para responder a isto, W. James elege a consciência como o centro
de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento, na medida em
que o homem a usa para adaptar-se ao meio.
Estruturalismo: está preocupado com a compreensão do mesmo fenômeno que o
Funcionalismo: a consciência. Mas, diferentemente, irá estudá-la em seus aspectos
estruturais, isto é, os estados elementares da consciência como estrutura do sistema
nervoso central.
Associacinismo: seu principal representante é Edward L. Thondike, e sua importância
está em ter sido o formulador de uma primeira teoria de aprendizagem na Psicologia. O
termo Associacionismo origina-se da concepção de que a aprendizagem se dá por um
processo de associação das idéias – das mais simples às mais complexas. Assim, para
aprender uma coisa complexa, a pessoa precisaria primeiro aprender as idéias mais
simples, que a ela estariam associadas. Torndike formulou a Lei do Efeito, que seria de
grande utilidade para a Psicologia Comportamentalista. De acordo com essa lei, todo o
comportamento de um organismo vivo tende a se repetir, se nós o recompensarmos
(efeito) assim que ele o emitir. Por outro lado, o comportamento tenderá a não
acontecer se o organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E, pela Lei do
Efeito, o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes.
As três mais importantes tendências teóricas da psicologia neste século são
consideradas por inúmeros autores como sendo o Behaviorismo, a Gestalt e a
Psicanálise.
O Behaviorismo, que nasce com Watson e tem um desenvolvimento grande nos
Estados Unidos, em função de suas aplicações práticas, tornou-se importante por ter
definido o fato psicológico, de modo concreto, a partir da noção de comportamento.
A Gestalt, que tem seu berço na Europa, surge como uma negação da fragmentação
das ações e processos humanos, realizada pelas tendências da psicologia científica do
século 19., postulando a necessidade de se compreender o homem como uma
totalidade. A Gestalt é a tendência teórica mais ligada à filosofia.   
A Psicanálise, que nasce com Freud, na Áustria, a partir da prática médica, recupera
para a psicologia a importância da afetividade e postula o inconsciente como objeto de
estudo, quebrando a tradição da psicologia como ciência da consciência e da razão.

- BOCK, A. M. M. O Behaviorismo. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo


de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.45-58.

BEHAVIORISMO
O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano John B. Watson, em 1913. O
termo inglês behavior significa “comportamento”; por isso, para denominar essa
tendência teórica, usamos Bahaviorismo e, também, Comportamentalismo, Teoria
Comportamental, Análise Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.
Watson, postulando o comportamento como objeto da Psicologia, dava a esta ciência a
consistência que os psicólogos da época vinham buscando: um objeto observável,
mensurável, cujos experimentos poderiam ser reproduzidos em diferentes condições e
sujeitos. Essas características foram importantes para que a Psicologia alcançasse o
status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica.
Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e sem mente, livre de
conceitos mentalistas e de métodos subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e
controlar.
Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da Psicologia, o Behaviorismo foi,
desde Watson, modificando o sentido do termo. Hoje, não se entende comportamento
como uma ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma interação entre aquilo que
o sujeito faz e o ambiente onde o seu “fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo
dedica-se ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do
indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações). É o homem tomado como
produto e produtor das interações.
O mais importante dos behavioristas que sucedem Watson é B. F. Skinner (1904-1990).
A base da corrente skinneriana está na formula cão do comportamento operante. Antes,
vamos definir comportamento reflexo ou respondente.
Comportamento respondente ou reflexo é o que usualmente chamamos de não-
voluntário e inclui as respostas eliciadas (produzidas) por estímulos antecedentes do
ambiente. Como exemplo, podemos citar a contração das pupilas (resposta
incondicionada) sob a incidência de luz forte (estímulo incondicionado).
Interações desse tipo também podem ser provocadas por estímulos que, originalmente,
não eliciavam respostas em determinado organismo. Quando tais estímulos são
temporalmente pareados com estímulos eliciadores podem, em certas condições, eliciar
respostas semelhante às destes. A essas novas interações chamamos também de
reflexos, que agora são condicionados (aprendidos) devido a uma história de
pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não
respondia.
Reflexos Condicionados
A noção de reflexo condicionado foi construída por obra do acaso. Para estudar as
glândulas digestivas de cães, Pavlov inventou um método de exposição cirúrgica no
qual as secreções digestivas, como a saliva, poderiam ser coletadas, observadas e
medidas fora do corpo do animal. Para estimular a produção de saliva, colocava comida
na boca do animal, que era mantido acordado. Entretanto, com o tempo, começou a
notar que os Càes tendiam a salivar mesmo antes de terem o contato direto do alimento
(estímulo) com a boca. Percebeu que o animal salivava quando via a pessoa que
costumava trazer a comida para a sala de cirurgia ou, mesmo, em outros momentos,
quando ouvia seus passos. Pavlov considerou que se isso ocorria era porque esses
outros estímulos (a visão do assistente, os sons de seus passos) tinham sido
associados à ingestão de alimento. Depois de alguns estudos definiu como reflexo
incondicionado ou inato uma resposta reflexa a um determinado estímulo, sem que
tivesse sido, portanto, necessário um período especial de aprendizagem prévia (salivar
com a comida na boca). Salivar diante da visão do assistente ou de seus passos, ou
mesmo, diante da visão do próprio alimento não é uma resposta inata mas que tem que
ser aprendida. Chamou-a de reflexo condicionado porque dependia de uma conexão
entre a visão da comida e sua subseqüente ingestão, ou a ela estava condicionada.
Um experimento típico que realizava era o seguinte: Apresentava o estímulo
condicionado ao animal (uma luz acesa por exemplo). Imediatamente apresentava o
estímulo não condicionado ( a comida). Depois de sucessivas experimentações
pareando luz e comida, o animal salivava diante da luz sem a presença do alimento. O
animal estava, então, condicionado a responder diante de estímulos não condicionados
(como a luz). Concluiu que o reforço era necessário para que a aprendizagem
ocorresse.
Pavlov e seus associados estudaram, na formação da resposta condicionada,
fenômenos correlatos como o reforço, a extinção, a generalização, a discriminação e o
condicionamento de ordem superior, todos termos muito conhecidos na Psicologia
atual.
Skinner começou o estudo do comportamento pelo comportamento respondente e no
desenvolvimento do seu trabalho teorizou sobre um outro tipo de relação do indivíduo
com seu ambiente, a qual viria a ser nova unidade de análise de sua ciência: o
comportamento operante.
Comportamento operante é o comportamento voluntário e abrange uma quantidade
muito maior da atividade humana – desde os comportamentos do bebê de balbuciar,
até os comportamentos mais sofisticados que o adulto apresenta. O comportamento
operante diz Keller “inclui todos os movimentos de um organismo dos quais se possa
dizer que, em algum momento, têm um efeito sobre ou fazem algo ao mundo em redor.
O comportamento operante opera sobre o mundo, por assim dizer, quer direta, quer
indiretamente”. Ler este texto, namorar, tocar violão... são todos exemplos de
comportamento operante. O condicionamento do comportamento operante tem seus
fundamentos na Lei de Efeito, de Thorndike.
A idéia é de que a aprendizagem de uma ação apropriada ou operante pode ser
reforçada – fortalecida – se a ação for seguida de uma conseqüência agradável. Isto
aumenta a probabilidade da ação ocorrer novamente. No condicionamento operante, o
reforçamento pode ser positivo ou negativo. Se positivo, a ação é diretamente
recompensada, aumenta a probabilidade futura da resposta que o produz, se negativo,
ela é indiretamente recompensada pela remoção ou afastamento de algo desagradável,
aumenta a probabilidade da resposta que o remove ou atenua.
Outros processos foram sendo formulados pela análise Experimental do
comportamento, como a extinção e a punição.
Extinção é um procedimento no qual uma resposta deixa abruptamente de ser
reforçada. Como conseqüência, a resposta diminuirá de freqüência e até mesmo
poderá deixar de ser emitida.
O tempo necessário para que a resposta deixe de ser emitida dependerá da história e
do valor do reforço envolvido.
Punição é outro procedimento importante que envolve a conseqüenciação de uma
resposta quando há apresentação de um estímulo aversivo ou remoção de um
reforçador positivo presente.
Os dados de pesquisa mostram que a supressão do comportamento punido só é
definitiva se a punição for extremamente intensa, isto porque as razões que levaram à
ação – que se pune – não são alteradas com a punição.
Punir ações leva à supressão temporária de resposta sem, contudo, alterar a
motivação.

- BOCK, A. M. M. A Gestalt. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de


Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 59-69.

GESTALT

A Psicologia da Gestalt é uma das tendências teóricas mais coerentes e coesas da


história da Psicologia. Seus articuladores preocuparam-se em construir não só uma
teoria consistente, mas também uma base metodológica forte, que garantisse a
consistência teórica.
Gestalt é um termo alemão de difícil tradução, o mais próximo em português seria
forma ou configuração.
Iniciou-se com estudos de Ernst Mach (1838-1916), físico, e Christian Von Ehrenfels
(1859-1932), filósofo e psicólogo, e teve continuidade com Max Wertheimer (1880-
1943), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941).
Os estudos iniciaram pela percepção e sensação do movimento. Os gestaltistas
estavam preocupados em compreender quais os processos psicológicos envolvidos na
ilusão de ótica, quando o estímulo físico é percebido pelo sujeito como uma forma
diferente da que ele tem na realidade.
Ex.: a sensação de movimento que temos no cinema, ao passo que uma fita
cinematográfica é composta de fotogramas estáticos.
A percepção é o ponto de partida e também um dos temas centrais dessa teoria.os
experimentos com percepção levaram os teóricos da Gestalt ao questionamento de um
princípio implícito na teoria behaviorista – que há relação de causa e efeito entre o
estímulo e a resposta – porque para os gestaltistas, entre o estímulo que o meio
fornece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo de percepção. O que o
indivíduo percebe e como percebe são achados importantes para a compreensão do
comportamento humano.
Tanto a Gestalt como o Behaviorismo definem a Psicologia como a ciência que estuda
o comportamento. No entanto, assumem diferentes posições diante do mesmo objeto.
A Gestalt critica o Behaviorismo por considerar que o comportamento, quando estudado
de maneira isolada de um contexto mais amplo, pode perder seu significado (o seu
entendimento) para o psicólogo.
Os gestaltistas levam em consideração as condições que alteram a percepção do
estímulo.
A maneira como percebemos um estímulo irá desencadear nosso comportamento.
Se ocorrer, por exemplo, de cumprimentarmos uma pessoa à distância e ao chegarmos
mais perto depararmos com um atônito desconhecido, vamos interpretar que
cometemos um ‘erro’ de percepção. No entanto, no momento em que confundimos a
pessoa, estávamos “de fato” cumprimentando um amigo.
A nossa percepção do estímulo em determinadas condições ambientais é mediatizada
pela forma como interpretamos o conteúdo percebido.
Se nos elementos percebidos não há equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade,
não alcançaremos a boa-forma, que supera a ilusão de ótica.
Uma boa-forma permite a relação figura-fundo, sua separação. Quando isso não
ocorre, torna-se difícil distinguir o que é figura e o que é fundo, como nos exemplos
abaixo:

O conjunto de estímulos determinantes do comportamento é denominado meio ou meio


ambiental. São conhecidos dois tipos de meios: meio geográfico e meio
comportamental.
O meio geográfico é o meio enquanto tal, o meio físico em termos objetivos.
O meio comportamental é o meio resultante da interação do indivíduo com o meio físico
e implica a interpretação desse meio através das forças que regem a percepção
(equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade).
No exemplo do cumprimento, a pessoa cumprimentada era um desconhecido, se só
tivéssemos acesso ao meio geográfico. No entanto, no momento de um encontro
casual (no trânsito em movimento, por exemplo) fomos levados a uma interpretação
diferente da realidade, confundindo com uma pessoa conhecida. Esta interpretação
subjetiva, particular, da realidade, criada por nossa mente, é o meio comportamental.
Logo, naturalmente, nosso comportamento é desencadeado pela percepção do meio
comportamental.
Ainda com esse exemplo, podemos destacar que houve também uma tendência a
estabelecer a unidade das semelhanças entre as duas pessoas, mais que suas
diferenças. Essa tendência a juntar os elementos é o que a Gestalt denomina de força
do campo psicológico.
O campo psicológico é entendido como um campo de força que nos leva a procurar a
boa-forma. Tem a tendência que garante a busca da melhor forma possível em
situações que não estão muito estruturadas.
Ocorre de acordo com os princípios da proximidade, semelhança e fechamento.

Kurt Lewin (1890-1947), que trabalhou durante dez anos com Wertheimer, Koffka e
Köhler, parte da teoria da Gestalt para, ainda, construir um novo e genuíno
conhecimento: a Teoria de Campo.
O principal conceito de Lewin é o do espaço vital, que ele define como “a totalidade dos
fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento”; e concebe
como campo psicológico, o que nos interessa, como o espaço de vida considerado
dinamicamente, onde se levam em conta não somente o indivíduo e o meio, mas
também a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes: a
percepção, mas também as características da personalidade do indivíduo,
componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a
situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são
representadas no espaço de vida atual do indivíduo.

- BOCK, A. M. M. A Psicanálise. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de


Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 70-84.

PSICANÁLISE

As teorias científicas são produtos históricos criados por homens concretos, que vivem
o seu tempo e contribuem ou alteram o desenvolvimento do conhecimento.
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o modo
de pensar a vida psíquica.
Ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo: as fantasias, os sonhos, os
esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos.
A investigação sistemática desses problemas levou à criação da Psicanálise.
O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação
e a uma prática profissional.
Freud publicou uma extensa obra relatando suas descobertas e formulando leis gerais
sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana.
A psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo método
interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações
e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as
associações livres, os atos falhos.
A prática profissional refere-se à forma de tratamento – a Análise – que busca o
autoconhecimento ou a cura, que ocorre através desse autoconhecimento.
Atualmente, é utilizada como base para psicoterapias, aconselhamento, orientação; é
aplicada em trabalho com grupos, instituições.
Especializado em Psiquiatria, Freud clinicava utilizando a sugestão hipnótica (e
conseqüente liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático) como
principal instrumento de trabalho na eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos.
Aos poucos, abandonou a hipnose e desenvolveu a técnica da ‘concentração’, na qual
a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal.
Por fim, abandona as perguntas e a direção da sessão para se confiar por completo à
fala desordenada do paciente.
Passou a observar que, muitas vezes, os pacientes ficavam embaraçados ou
envergonhados com algumas idéias ou imagens que lhes ocorriam. A essa força
psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um pensamento, Freud
denominou resistência.
E chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da
consciência, uma idéia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do
sintoma.
Esses conteúdos psíquicos localizam-se no inconsciente.
Antes, definiremos o sintoma: é uma produção, quer seja um comportamento, quer seja
um pensamento, resultante de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de
defesa. O sintoma, ao mesmo que sinaliza, busca encobrir um conflito, substituir a
satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o ponto de partida da investigação psicanalítica
na tentativa de tentar descobrir os processos psíquicos encobertos que determinam sua
formação. Os sintomas da paciente Ana O. eram a paralisia e os distúrbios do
pensamento. Hoje, o sintoma da colega da sala de aula é recusar-se a comer.
Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira concepção
sobre a estrutura e funcionamento da personalidade. Essa teoria refere-se à existência
de três sistemas ou instâncias psíquicas:
Inconsciente: exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo atual da
consciência”. É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso aos sistemas
pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes conteúdos podem ter
sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos, isto é, “foram” para o
inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O inconsciente é um sistema
do aparelho psíquico regido por leis próprias de funcionamento. Por exemplo, é
atemporal, não existem as noções de passado e presente.
Pré-consciente: sistema onde permanecem conteúdos acessíveis à consciência.
Consciente: sistema que recebe ao mesmo tempo as informações do mundo interior e
exterior. Destacam-se os fenômenos da percepção, atenção, raciocínio.

A Descoberta da Sexualidade Infantil


Freud, em suas investigações na prática clínica sobre as causas e funcionamento das
neuroses, descobriu que a grande maioria de pensamentos e desejos reprimidos
referiam-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos
indivíduos, isto é, que na vida infantil estavam as experiências de caráter traumático,
reprimidas, que configuravam como origem dos sintomas atuais, e confirmava-se, desta
forma, que as ocorrências destes períodos da vida deixam marcas profundas na
estruturação da pessoa. As descobertas colocam a sexualidade no centro da vida
psíquica, e é postulada a existência da sexualidade infantil. Estas afirmações tiveram
profundas repercussões na sociedade puritana da época, pela concepção vigente da
infância como “inocente”.
Os principais aspectos destas descobertas são:
A função sexual existe desde o princípio da vida, logo após o nascimento, e não só a
partir da puberdade como afirmavam as idéias dominantes.
O período de desenvolvimento da sexualidade é longo e complexo até chegar à
sexualidade adulta, onde as funções de reprodução e de obtenção do prazer podem
estar associadas, tanto no homem como na mulher. Esta afirmação contrariava as
idéias predominantes de que o sexo estava associado, exclusivamente, à reprodução.
A libido, nas palavras de Freud, é “a energia dos instintos sexuais e só deles”.
No processo de desenvolvimento psicossocial, o indivíduo tem, nos primeiros tempos
de vida, a função sexual ligada à sobrevivência, e, portanto o prazer é encontrado no
próprio corpo. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão localizadas em
partes do corpo, e há um desenvolvimento progressivo que levou Freud a postular as
fases do desenvolvimento sexual em:
Fase oral: do nascimento a 1 ano de vida. A zona de erotização é a boca.
Fase anal: de 2 a 3 anos, o tronco inferior torna-se mais sensitivo, a zona de erotização
é o ânus.
Fase fálica: de 3 a 5 anos, a parte genital se encontra desenvolvida, a zona de
erotização é o órgão sexual.
Período de latência: de 5 a 12 anos, é uma espécie de período de intervalo na evolução
da sexualidade.
Fase genital: de 12 aos 18 anos e depois, ocorrem as mudanças posteriores dos
órgãos genitais. O objeto de erotização ou de desejo não está mais no próprio corpo,
mas em um objeto externo ao indivíduo.
Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os
conceitos de Id, Ego e Superego para referir-se aos três sistemas da personalidade.
O id constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a de
vida e a de morte. As características atribuídas ao sistema inconsciente, na primeira
teoria, são nesta teoria, atribuídas ao id. É regido pelo princípio do prazer.
O ego é o sistema que estabelece o equilíbrio entre as exigências do id, as exigências
da realidade e as “ordens” do superego. Procura “dar conta” dos interesses da pessoa.
É regido pelo princípio da realidade, que, com o princípio do prazer, rege o
funcionamento psíquico. É um regulador, na medida em que altera o princípio do prazer
para buscar a satisfação considerando as condições objetivas da realidade. As funções
básicas do ego são: percepção, memória, sentimentos, pensamento.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. A moral, os ideais são funções do superego. O
conteúdo do superego refere-se a exigências sociais e culturais. Está voltado para a
nossa consciência moral. Sua preocupação é decidir se alguma coisa é certa ou errada,
para que a pessoa possa agir de acordo com os padrões da sociedade.
É importante considerar que esses sistemas não existem enquanto uma estrutura vazia,
mas são sempre habitados pelo conjunto de experiências pessoais e particulares de
cada um, que se constitui como sujeito em sua relação com o outro e em determinadas
circunstâncias sociais. Isso significa que, para compreender alguém, é necessário
resgatar sua história pessoal, que está ligada à história de seus grupos e da sociedade
em que vive.
É importante percebermos o homem em todas suas dimensões: visíveis
(comportamento); invisíveis (sentimentos); singulares (de cada um); genéricas (de
todos). Homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação. Produto e
produtor das subjetividades.
O homem é um ser sócio-histórico. O homem não pode ser concebido como ser natural,
porque ele é um produto histórico, nem pode ser estudado como ser isolado, porque se
torna humano em função de ser social, nem pode ser concebido como ser abstrato,
porque é o conjunto de suas relações sociais.
O homem é multideterminado: pelo suporte biológico; pelo trabalho e utilização de
instrumentos; pela linguagem; pelas relações sociais e por sua subjetividade.
- BOCK, A. M. M. Psicologias em Construção. In: ______. Psicologias – uma introdução
ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 85-96.

PSICOLOGIAS EM CONSTRUÇÃO

As tendências teóricas apresentadas, Behaviorismo, Gestalt e Psicanálise,


constituíram-se em matrizes do desenvolvimento da ciência psicológica, propiciando o
surgimento de inúmeras abordagens da Psicologia contemporâneas: Behaviorismo
Radical (B. F. Skinner), Behaviorismo Cognitivista (A. Bandura), Psicologia
Existencialista, Existencialismo (Martin Heiddeger), Gestalt Terapia (Pearls), Psicologia
Analítica (Carl G.Jung), a Reichiana (W. Reich), Psicanálise Kleiniana (Melanie Klein) e
a Lacaniana (J. Lacan), que deram continuidade à teoria freudiana.
Podemos perceber que a Psicologia não ficou estagnada no tempo. Pelo contrário:
desenvolveu-se e, ao desenvolver-se, construiu abordagens que deram
prosseguimento às já existentes, retomando conhecimentos antigos e superando-os.
Enfim, a Psicologia é uma ciência em constante processo de construção.
Agora, abordaremos uma vertente teórica que surgiu no início do século 20 e ficou
restrita ao Leste europeu até os anos 60, quando explodiria na Europa e nos Estados
Unidos como uma nova possibilidade teórica. Estamos falando da Psicologia Sócio-
Histórica, que chegou ao Brasil nos anos 80 através da Psicologia Social e da
Psicologia da Educação, ganhando importância rapidamente.

Vigotski e a Psicologia Sócio-Histórica


Esta vertente teórica nasceu na ex-União Soviética, embalada pela Revolução de 1917
e pela teoria marxista. No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia importância nos
anos 70, tornando-se referência para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia
Social e para a Educação.
Tendo como referência esta nova abordagem teórica formulada por Vigotski, buscava-
se construir uma Psicologia que superasse as tradições positivistas e estudasse o
homem e seu mundo psíquico como uma construção histórica e social da humanidade.
Para Vigotski, o mundo psíquico que temos hoje não foi nem será sempre assim, pois
sua caracterização está diretamente ligada ao mundo material e às formas de vida que
os homens vão construindo no decorrer da história da humanidade.
Vigotski morreu muito cedo e não pôde completar sua obra, mas deixou alguns
princípios aos seus seguidores:
A compreensão das funções superiores do homem não pode ser alcançada pela
psicologia animal, pois os animais não têm vida social e cultural.
As funções superiores do homem não podem ser vistas apenas como resultado da
maturação de um organismo que já possui, em potencial, tais capacidades.
A linguagem e o pensamento humano têm origem social. A cultura faz parte do
desenvolvimento humano e deve ser integrada ao estudo e à explicação das funções
superiores.
A consciência e o comportamento são aspectos integrados de uma unidade, não
podendo ser isolados pela Psicologia.
Vigotski desenvolveu, também, uma estrutura teórica marxista para a Psicologia:
Todos os fenômenos devem ser estudados como processos em permanente
movimento e transformação.
O homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza com sua atividade e
seus instrumentos.
Não se pode construir qualquer conhecimento a partir do aparente, pois não se captam
as determinações que são constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a
evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento as
explicações para sua aparência atual.
A mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida. Assim, não é a
consciência do homem que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que
determina a consciência.
O desafio de Vigotski foi assumido por outros teóricos, entre eles Luria e Leontiev, seus
parceiros de trabalho. Sua obra ficou, por muitos anos, restrita à ex-União Soviética.
Hoje, na Europa, nos Estados Unidos e em países do Terceiro Mundo, como o Brasil,
Vigotski vem sendo estudado e utilizado, principalmente, nas áreas de Psicologia da
Educação e Psicologia Social. No Brasil, essas duas áreas foram influenciadas pela
obra de Vigotski na década de 80 - na Educação, através das teorias construtivistas da
aprendizagem, principalmente a partir da influência de Emília Ferreiro; na Psicologia
Social, pela atuação da professora Silvia Lane, que contribuiu significativamente para a
construção de uma Psicologia Social crítica, permitindo que, ao se pensar o psiquismo
humano, se falasse das condições sociais que são constitutivas deste mundo
psicológico.
Hoje, Vigotski é um autor conhecido e seu pensamento é fundamento da corrente
denominada Psicologia Sócio-Histórica ou Psicologia de Orientação Sócio-Cultural.
A Psicologia Sócio-Histórica, no Brasil, tem se constituído, fundamentalmente, pela
crítica à visão liberal de homem que traz idéias como:
O homem visto como ser autônomo, responsável pelo seu próprio processo de
individuação.
Uma relação de antagonismo entre o homem e a sociedade, em que esta faz eterna
oposição aos anseios que seriam naturais do homem.
Uma visão de fenômeno psicológico, na qual este é tomado como uma entidade
abstrata que tem, por natureza, características positivas que só não se manifestam se
sofrerem impedimentos do mundo material e social. O fenômeno psicológico, visto
como enclausurado no homem, é concebido como um verdadeiro eu.
A Psicologia Sócio-Histórica entende que essas concepções liberais construíram uma
ciência na qual o mundo psicológico foi completamente deslocado do campo social e
material. Esse mundo psicológico passou, então, a ser definido de maneira abstrata,
como algo que já estivesse dentro do homem, pronto para se desenvolver - semelhante
à semente que germina. Esta visão liberal naturalizou o mundo psicológico, abolindo,
da Psicologia, as reflexões sobre o mundo social.
No Brasil, os teóricos da Psicologia Sócio-Histórica buscam construir uma concepção
alternativa à liberal. Retomaremos um pouco essas reflexões a partir de algumas idéias
fundamentais.

Não existe natureza humana


Não existe uma essência eterna e universal do homem, que no decorrer de sua vida se
atualiza, gerando suas potencialidades e faculdades. Tal idéia de natureza humana tem
sido utilizada como fundamento da maioria das correntes psicológicas e faz, na
verdade, um trabalho de ocultamento das condições sociais, que são determinantes
das individualidades.
Esta idéia está ligada à visão de indivíduo autônomo, que também não é aceita na
Psicologia Sócio-Histórica. O indivíduo é construído ao longo de sua vida a partir de sua
intervenção no meio (sua atividade instrumental) e da relação com os outros homens.
Somos únicos, mas não autônomos no sentido de termos um desenvolvimento
independente ou já previsto pela semente de homem que carregamos.
Existe a condição humana
A concepção de homem da Psicologia Sócio-Histórica pode ser assim sintetizada: o
homem é um ser ativo, social e histórico. É essa a sua condição humana. O homem
constrói sua existência a partir de uma ação sobre a realidade, que tem, por objetivo,
satisfazer suas necessidades.
Mas essa ação e essas necessidades têm uma característica fundamental: são sociais
e produzidas historicamente em sociedade.
As necessidades básicas do homem não são apenas biológicas; elas, ao surgirem, são
imediatamente socializadas. Por exemplo, os hábitos alimentares e o comportamento
sexual do homem são formas sociais e não naturais de satisfazer necessidades
biológicas.
Através da atividade, o homem produz o necessário para satisfazer essas
necessidades. A atividade de cada indivíduo, ou seja, sua ação particular, é
determinada e definida pela forma como a sociedade se organiza para o trabalho.
Entendido corno a transformação da natureza para a produção da existência humana, o
trabalho só é possível em sociedade. É um processo pelo qual o homem estabelece, ao
mesmo tempo, relação com a natureza e com os outros homens; essas relações
determinam-se reciprocamente. Portanto, o trabalho só pode ser entendido dentro de
relações sociais determinadas. São essas relações que definem o lugar de cada
indivíduo e a sua atividade. Por isso, quando se diz que o homem é um ser ativo, diz-
se, ao mesmo tempo, que ele é um ser social.
A ação do homem sobre a realidade que, obrigatoriamente, ocorre em sociedade, é um
processo histórico. É uma ação de transformação da natureza que leva à transformação
do próprio homem. Quando produz os bens necessários à satisfação de suas
necessidades, o homem estabelece novos parâmetros na sua relação com a natureza,
o que gera novas necessidades, que também, por sua vez, deverão ser satisfeitas. As
relações sociais, nas quais ocorre esse processo, modificam-se à medida que se
desenvolvem as necessidades humanas e a produção que visa satisfazê-Ias. É um
processo de transformação constante das necessidades e da atividade dos homens e
das relações que estes estabelecem entre si para a produção de sua existência. Esse
movimento tem por base a contradição: o desenvolvimento das necessidades humanas
e das formas de satisfazê-Ias, ao mesmo tempo em que só são possíveis diante de
determinadas relações sociais, provocam a necessidade de transformação dessas
mesmas relações e condicionam o aparecimento de novas relações sociais. Esse
processo histórico é construído pelo homem e é esse processo histórico que constrói o
homem. Assim, o homem é um ser ativo, social e histórico.

O homem é criado pelo homem


Não há uma natureza humana pronta, nem mesmo aptidões prontas. A "aptidão" do
homem está, justamente, no fato de poder desenvolver várias aptidões. Esse
desenvolvimento se dá na relação com os outros homens através do contato com a
cultura já constituída e das atividades que realiza neste meio.
Os objetos produzidos pelos homens materializam a história e cristalizam as "aptidões"
desenvolvidas pelas gerações anteriores. Quando os manuseia e deles se apropria, o
homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais das atividades
acumuladas e cristalizadas nos objetos. A criança que aprende a manusear um lápis
está, de alguma forma, submetida à forma, à consistência, às possibilidades e aos
limites do lápis. Isso envolve não apenas uma questão "física", material, mas,
necessariamente, uma condição social e histórica do uso e significado do lápis. As
habilidades humanas, que utilizam o lápis como seu instrumento, estão cristalizadas na
forma, na consistência e nas possibilidades do lápis, bem como nos seus limites e
significados. Nas relações com os outros homens ocorre a "descristalização" destas
possibilidades - a "mágica" acontece - e, do lápis, o pequeno homem retira suas
habilidades de rabiscar, escrever e desenhar, colocando-se, assim, no "patamar" da
história, tornando-se capaz de recuperá-Ia e transformá-Ia. Portanto, é do instrumento e
das relações sociais, nas quais esse instrumento é utilizado, que o homem retira suas
possibilidades humanas.
Esse processo acontece com todas as suas aptidões. O homem, ao nascer, é
candidato à humanidade e a adquire no processo de apropriação do mundo. Nesse
processo, converte o mundo externo em um mundo interno e desenvolve, de forma
singular, sua individualidade.
Assim, através da mediação das relações sociais e das atividades que desenvolve, o
homem se individualiza, torna-se homem, desenvolve suas possibilidades e significa
seu mundo.
A linguagem é instrumento fundamental nesse processo e, como instrumento, também
é produzida social e historicamente, e dela também o homem deve se apropriar.
A linguagem materializa e dá forma a uma das aptidões humanas: a capacidade de
representar a realidade. Juntamente çom a atividade, o homem desenvolve o
pensamento. Através da linguagem, o pensamento objetiva-se, permitindo a
comunicação das significações e o seu desenvolvimento.
Mas o pensamento humano, historicamente transforma-se em algo mais complexo,
justamente por representar, cada vez melhor, a complexidade da vida humana em
sociedade. Transforma-se em consciência. A linguagem é instrumento essencial na
construção da consciência, na construção de um mundo interno, psicológico. Permite a
representação não só da realidade imediata, mas das mediações que ocorrem na
relação do homem com essa realidade. Assim, a linguagem apreende e materializa o
mundo de significações, que é construído no processo social e histórico.
Quando se apropria da linguagem enquanto instrumento, o indivíduo tem acesso a um
mundo de significações historicamente produzido. Além disso, a linguagem também é
instrumento de mediação na apropriação de outros instrumentos. Por isso, quando se
torna indivíduo - o que só ocorre socialmente - o homem apropria-se de todos os
significados sociais. Mas, por ser ativo, também atribui significados, ou seja, apropria-se
da história, apreende o mundo, atribuindo-lhe um sentido pessoal construído a partir de
sua atividade, de suas relações e dos significados aprendidos. Esse processo de
apropriação do mundo social permite o desenvolvimento da consciência no homem.

O homem concreto é objeto de estudo da Psicologia


A Psicologia deve buscar compreender o indivíduo como ser determinado histórica e
socialmente. Esse indivíduo jamais poderá ser compreendido senão por suas relações
e vínculos sociais, pela
sua inserção em uma determinada sociedade, em um momento histórico específico.
O homem existe, age e pensa de certa maneira porque existe em um dado momento e
local, vivendo determinadas relações.
A consciência humana revela as determinações sociais e históricas do homem - não
diretamente, de maneira imediata, porque não é assim, mecanicamente, que se
processa a consciência.
As mediações devem ser desvendadas, pois passam pelas formas de atividade e
relações sociais, pelos significados atribuídos nesse processo a toda realidade na qual
vivem os homens. É necessário conhecer além da aparência, buscando a essência
deste processo, que revela o movimento de transformação constante a partir da
contradição, entendida como princípio fundamental do movimento da realidade.
Assim, para conhecer o homem é preciso situá-Io em um momento histórico, identificar
as determinações e desvendá-Ias. Para entender o movimento contraditório da
totalidade na qual se encontram os indivíduos, deve-se partir do geral para o particular
para o processo individual de relação entre atividade e consciência. É necessário
perceber o singular e seu movimento como parte do movimento geral e, ao revelar
essas mediações, compreender não só o geral, mas o particular. É dessa forma que o
indivíduo deve ser entendido pela Psicologia fundamentada no materialismo histórico e
dialético.

Subjetividade social e subjetividade individual


Nesta teoria, os fenômenos sociais não são externos aos indivíduos nem são
fenômenos que acontecem na sociedade e pouco têm a ver com cada um de nós. Os
fenômenos sociais estão, de forma simultânea, dentro e fora dos indivíduos, isto é,
estão na subjetividade individual e na subjetividade social.
A subjetividade deve ser compreendida como "um sistema integrador do interno e do
externo, tanto em sua dimensão social, como individual, que por sua gênese é também
social... A subjetividade não é interna nem externa: ela supõe outra representação
teórica na qual o interno e o externo deixam de ser dimensões excludentes e se
convertem em dimensões constitutivas de uma nova qualidade do ser: o subjetivo.
Como dimensões da subjetividade ambos (o interno e o externo) se integram e
desintegram de múltiplas formas no curso de seu desenvolvimento, no processo dentro
do qual o que era interno pode converter-se em externo e vice-versa". (Gonzales Rey,
1997)
A subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do
sujeito concreto dentro de um sistema individual. O indivíduo, ao viver relações sociais
determinadas e experiências determinadas em uma cultura que tem idéias e valores
próprios, vai se constituindo, ou seja, vai construindo sentido para as experiências que
vivencia. Este espaço pessoal dos sentidos que atribuímos ao mundo se configura
como a subjetividade individual.
A subjetividade social, conforme Gonzalez Rey (1997), é exatamente a aresta subjetiva
da constituição da sociedade. Refere-se "ao sistema integral de configurações
subjetivas (grupais ou individuais), que se articulam nos distintos níveis da vida social..."
Assim, para a Psicologia Sócio-Histórica, não há como se saber de um indivíduo sem
que se conheça seu mundo. Para compreender o que cada um de nós sente e pensa, e
como cada um de nós age, é preciso conhecer o mundo social no qual estamos
imersos e do qual somos construtores; é preciso investigar os valores sociais, as
formas de relação e de produção da sobrevivência de nosso mundo, e as formas de ser
de nosso tempo.
Para facilitar a compreensão dessas noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica;
sugerimos-lhe que reflita sobre o que sente, pensa e como age, identificando em seu
mundo social os espaços nos quais estas formas se configuram, pois, com certeza, é
nelas que você busca a matéria-prima para construir sua forma particular de ser.
Mesmo sem perceber, você as reforça ou reconstrói diariamente, atuando para que elas
se mantenham. Há um movimento constante que vai de você para o mundo social e
que lhe vem deste mesmo mundo. O instrumento básico para esta relação é a
linguagem.
Para a teoria Sócio-Histórica, os fenômenos do mundo psíquico não são naturais do
mundo psíquico, mas fenômenos que vão se constituindo conforme o homem atua no
mundo e se relaciona com os outros homens. O mundo social deixa de ser visto como
um espaço de oposição a nossas vontades e impulsos, passando a ser visto como o
lugar no qual nosso mundo psicológico se constitui.

- BOCK, A. M. M. A Psicologia social. In: ______. Psicologias – uma introdução ao


estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 135-149.

A PSICOLOGIA SOCIAL

Psicologia Social é a área da Psicologia que procura estudar a interação social. A


interação social, a interdependência entre os indivíduos, o encontro social são os
objetos investigados por essa área da Psicologia. Dessa perspectiva os principais
conceitos são: a percepção social,; a comunicação; as atitudes; a mudança de atitudes;
o processo de socialização; os grupos sociais e os papéis sociais.
Percepção Social
Percebemos-nos uns aos outros. E percebemos não só a presença do outro mas o
conjunto de características que se apresenta, o que nos possibilita “ter uma impressão”
dele. A partir dos nossos contatos com o mundo vamos organizando informações em
nossa cognição (organização do conhecimento no nível da consciência), é esta
organização que nos permitirá compreender ou categorizar um novo fato. A percepção
é um processo que vai desde a recepção do estímulo pelos órgãos dos sentidos até a
atribuição de significado ao estímulo.
Comunicação
A comunicação é um processo que envolve codificação (formação de um sistema de
códigos) e decodificação (a forma de procurar entender a codificação) de mensagens.
Estas mensagens permitem uma troca de informações entre os indivíduos. A
comunicação não é constituída apenas de código verbal. Também utilizamos para
comunicação expressões do rosto, gestos, movimentos, desenhos e sinais.
Atitudes
A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai organizando estas
informações, relacionando-as com afetos (positivos/negativos) e desenvolvendo uma
predisposição para agir (favorável ou desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos
objetos presentes no meio social. As informações com forte carga afetiva, que
predispõem o indivíduo para uma determinada ação (comportamento), damos o nome
de atitudes. Diferentemente do senso comum, para a Psicologia Social, nós não
tomamos atitudes (comportamento, ação), nós desenvolvemos atitudes (crenças,
valores, opiniões) em relação aos objetos do meio social.
Mudança De Atitudes
As atitudes podem ser modificadas a partir de novas informações, novos afetos, ou
novos comportamentos ou situações. Podemos ainda mudar uma atitude quando
somos obrigados a nos comportar em desacordo com ela.
Processo De Socialização
Nossas atitudes são importantes, pois elas de certa forma norteiam nosso
comportamentos. Ainda há influencia dos motivos, interesses e necessidades com que
nos apresentamos na situação. A formação de nossas crenças, valores e significados
dá-se por meio da socialização. Nesse processo, o indivíduo ao tornar-se membro de
um determinado conjunto seus códigos, suas normas e regras básicas de
relacionamento, apropriando-se de um conjunto de conhecimentos acumulados por
este conjunto.
Grupos Sociais
Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que, possuindo objetivos
em comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos. Para garantir esta
organização possuem normas, formas de pressionar seus integrantes para que se
conformem à normas; um funcionamento determinado, com tarefas e funções
distribuídas entre seus membros, formas de cooperação e de competição, apresentam
aspectos que atraem os indivíduos, impedindo que abandonem o grupo.
Papéis Sociais
Os papéis sociais nos permite compreender a situação social, pois são referências para
a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são referências para nosso próprio
comportamento. A prender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o
conjunto de rituais que nossa sociedade criou.
Críticas A Psicologia Social
Até o momento foi apresentada uma Psicologia descritiva que procura organizar e dar
nomes aos processos observáveis que ocorrem nas interações sociais. A psicologia
Social tradicional pensa o homem como um ser que reage às estimulações externas,
atribui-lhes significado e se comporta. O homem é um ser no espaço social. É uma
psicologia que parte de uma noção estreita do social. Este é considerado apenas como
a relação entre as pessoas, a interação social, e não como um conjunto de produções
humanas capazes de, ao mesmo tempo em que vão construindo a realidade social,
construir também o indivíduo. Esta concepção será a referência para a construção da
nova Psicologia Social.

Uma Nova Psicologia Social


A nova Psicologia Social concebe o homem como um ser se natureza social. O homem
é um ser social que constrói a si próprio, ao mesmo tempo que constrói, com outros
homens, a sociedade e sua história. A nova Psicologia Social desvincula-se da tradição
norte-americana de ciência pragmática, com intenções de prever o comportamento e
manipula-lo, optando por uma ciência que, ao melhorar a compreensão que se tem da
realidade social e humana, permita ao homem transformá-la. A nova Psicologia irá
propor como conceitos básico de análise, a atividade, a consciência e a identidade.
Atividade
É a unidade básica fundamental da vida do sujeito material. É por meio da atividade
que o homem se apropria do mundo, ou seja, é a atividade que propicia a transição
daquilo que está fora do homem para dentro dele. A atividade humana é a base do
conhecimento e do pensamento do homem. Aqui está se considerando que os
indivíduos apresentam uma necessidade de manter uma relação ativa com o mundo
externo, transformando-o. Ao fazer isso, estamos construindo a nós mesmos.
Consciência
A consciência humana expressa a forma como o homem se relaciona com o mundo
objetivo. O homem apresenta seu modo de reagir ao mundo objetivo: ele o
compreende, isto é, transforma-o em idéias e imagens e estabelece relações entre
essas informações, de modo a compreender o que se produz na realidade ambiente. A
consciência é um certo saber., que não se limita ao saber lógico, inclui o saber das
emoções, e sentimentos do homem, o saber dos desejos. A consciência do homem é
produto das relações sociais que os homens estabelecem. O homem encontra um
mundo de objetos e significados já construídos pelos outros homens. Nas relações
sociais, ele se apropria desse mundo cultural e desenvolve o sentido pessoal. Produz,
assim uma compreensão sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre os outros.
Identidade
Se a consciência está em movimento, se o homem, conseqüentemente, está em
movimento, a consciência que desenvolve sobre o “eu mesmo” não poderia estar
parada. Estamos nos transformando a cada momento, a cada nova relação com o
mundo social. Identidade é a denominação dada às representações que o indivíduo
desenvolve a respeito de si mesmo, a partir de suas vivências. A identidade é a síntese
pessoal sobre si mesmo, incluindo dados pessoais (cor, idade, sexo), biografia,
atributos que os outros lhe conferem, permitindo uma representação a respeito de si.
Este conceito supera a compreensão do homem enquanto conjunto de papéis, de
valores, habilidades, de atitudes, etc, pois compreende todos estes aspectos
integrados, o homem como totalidade. A identidade do indivíduo é um processo
continuo de seu “estar sendo” no mundo.

- LANE, S. T. M. A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a


Psicologia. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia Social – O homem em
movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 10-19.

PSICOLOGIA SOCIAL E UMA NOVA CONCEPÇÃO DE HOMEM PARA A


PSICOLOGIA

A relação entre a Psicologia e a Psicologia Social deve ser entendida em sua


perspectiva histórica, quando na década de 50 se iniciam sistematizações em termos
da Psicologia Social, dentro das duas tendências predominantes: uma, na tradição
pragmática dos Estados Unidos, visando alterar e/ou criar atitudes, interferir nas
relações grupais para harmonizá-las e assim garantir a produtividade do grupo – é uma
atuação que se caracteriza pela euforia de uma intervenção que minimizaria conflitos,
tornando os homens “felizes” reconstrutores da humanidade que acabava de sair da
destruição de uma Segunda Guerra Mundial. A outra tendência, que também procura
conhecimentos que evitem novas catástrofes mundiais, segue a tradição filosófica
européia, com raízes na fenomenologia, buscando modelos científicos totalizantes,
como Lewin e sua teoria de Campo.
A euforia deste ramo científico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco,
pois sua eficácia ecomeça a ser questionada em meados da década de 60, quando as
análises críticas apontavam para uma “crise” do conhecimento psicossocial que não
conseguia intervir nem explicar, muito menos prever comportamentos sociais.
Na França, a tradição psicanalítica é retomada com toda a veemência após o
movimento de 68, e sob sua ótica é feita uma crítica à psicologia social norte-americana
como uma ciência ideológica, reprodutora dos interesses da classe dominante, e
produto de condições histórias específicas, o que invalida a transposição tal e qual
deste conhecimento para outros países, em outras condições históricos-sociais. Esse
movimento também tem suas repercussões na Inglaterra, onde Israel e Täjfell analisam
a “crise” sob o ponto de vista epistemológico com os diferentes pressupostos que
embasam o conhecimento científico – é a crítica ao positivismo, que em nome da
objetividade perde o ser humano.
Na América Latina, Terceiro Mundo, dependente econômica e culturalmente, a
Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norte-americano e a visão abrangente de
um homem que só era compreendido filosófica ou sociologicamente – ou seja, um
homem abstrato. É somente a partir do final da década de 70, começo de 80, que
psicólogos brasileiros começam a fazer suas críticas, procurando novos rumos para
uma Psicologia Social que atendesse à nossa realidade.
O primeiro passo para a superação da crise foi constatar a tradição biológica da
Psicologia, em que o indivíduo era considerado um organismo que interage no meio
físico, sendo que os processos psicológicos (o que ocorre “dentro” dele) são assumidos
como causa, ou uma das causas que explicam o seu comportamento. Ou seja, para
compreender o indivíduo bastaria conhecer o que ocorre “dentro dele”, quando ele se
defronta com estímulos do meio.
Porém o homem fala, pensa, aprende e ensina, transforma a natureza; o homem é
cultura, é história. Este homem biológico não sobrevive por si e nem é uma espécie que
se reproduz tal e qual, com variações decorrentes de clima, alimentação, etc. O seu
organismo é uma infra-estrutura que permite o desenvolvimento de uma superestrutura
que é social e, portanto, histórica. Deve, então, ser visto como um produto histórico-
social.
Não discutimos as validades das leis de aprendizagem; é indiscutível que o reforço
aumenta a probabilidade de ocorrência do comportamento, assim como a punição
extingue comportamentos, porém a questão se coloca é por que se apreende certas
coisas e outras são extintas, por que objetos são considerados reforçadores e outros
punidores? Em outras palavras, em que condições sociais ocorre a aprendizagem e o
que ela significa no conjunto das relações sociais que definem concretamente o
indivíduo na sociedade em que ele vive.

A ideologia nas ciências humanas


A afirmativa de que o positivismo, na procura da objetividade dos fatos, perdera o ser
humano decorreu de uma análise crítica do conhecimento minucioso enquanto
descrição de comportamentos que, no entanto, não dava conta do ser humano agente
de mudança, sujeito da história. O homem ou era socialmente determinado ou era
causa de si mesmo: sociologismo vs biologismo? Se por um lado a psicanálise
enfatizava a história do indivíduo, a sociologia recuperava, através do materialismo
histórico, a especificidade de uma totalidade histórica concreta na análise de cada
sociedade. Portanto, caberia à Psicologia Social recuperar o indivíduo na intersecção
de sua história com a história de sua sociedade – apenas este conhecimento nos
permitiria compreender o homem enquanto produtor da história.
Na tradição e no entusiasmo de descrever o homem enquanto um sistema nervoso
complexo que o permitia dominar e transformar a natureza, criando condições sui-
generis para a sobrevivência da espécie, os psicólogos se esqueceram de que este
homem, junto com outros, ao transformar a natureza, se transformava ao longo da
história.
As psicologias tradicionais, apesar de suas contribuições para descrever a
materialidade do organismo humano, pouco contribuem para entendermos o
pensamento humano e seu desenvolvimento através das relações entre os homens,
para compreendermos o homem criativo, transformador – sujeito da história social de
seu grupo.
Se a Psicologia apenas descrever o que é observado ou enfocar o indivíduo como
causa e efeito de sua individualidade, ela terá uma ação conservadora, estatizante –
ideológica – quaisquer que sejam as práticas decorrentes. Se o homem não for visto
como produto e produtor, não só de sua história pessoal mas da história de sua
sociedade, a Psicologia estará apenas reproduzindo condições necessárias para
impedir a emergência das contradições e a transformação social.

A psicologia social e o materialismo histórico


Se o positivismo, ao enfrentar a contradição entre objetividade e subjetividade, perdeu o
ser humano, produto e produtor da História, se tornou necessário recuperar o
subjetivismo enquanto materialidade psicológica. A dualidade físico x psíquico implica
uma concepção idealista do ser humano, na velha tradição animística da psicologia, ou
então caímos num organicismo onde homem e computador são imagem e semelhança
um do outro. Nenhuma das duas tendências dá conta de explicar o homem criativo e
transformador.
É dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os
pressupostos epistemológicos para a reconstrução de um conhecimento que atenda à
realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva
na rede de relações sociais que define cada indivíduo – objeto da Psicologia Social.
Definições, conceitos e constructos que geram teorias abstratas em anda contribuem
para uma prática psicossocial. Para conhecer o indivíduo deve-se perceber que o
homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens, portanto a dicotomia
Indivíduo x Grupo é falsa – desde seu nascimento o homem está inserido num grupo
social.
O resgate deste fato permite ao psicólogo social se aprofundar na análise do indivíduo
concreto, considerando a imbricação entre relações grupais, linguagem, pensamento e
ações na definição de características fundamentais para a análise psicossocial.
A personalidade é vista então como categoria, decorrente do princípio de que o homem,
ao agir, transformando o seu meio se transforma, criando características próprias que
se tornam esperadas pelo seu grupo no desenvolver de suas atividades e de suas
relações com outros indivíduos.
Na especificidade psicossocial também se deve analisar as relações grupais enquanto
mediadas pelas instituições sociais e como tal exercendo uma mediação ideológica na
atribuição de papéis sociais e representações decorrentes de atividades e relações
sociais tidas como “adequadas, corretas, esperadas”, etc.
Desta forma, a análise do processo grupal nos permite captar a dialética indivíduo-
grupo, quando o indivíduo e o grupo se tornam agentes da história social, membros
indissociáveis da totalidade histórica que os produziu e a qual eles transformam por
suas atividades, também indissociáveis.

- BRAGHIROLLI, E. M., PEREIRA, S., RIZZON, L. A. O indivíduo no meio social. In:


______. Temas de Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 11-36.

O INDIVÍDUO NO MEIO SOCIAL

Personalidade: Formação e Desenvolvimento


O vocábulo personalidade se origina de persona ou personare, que na língua latina
significava “soar através”, expressão que se referia à máscara que os atores do antigo
teatro grego utilizavam para caracterizar as personagens que representavam. Assim, no
senso comum permanece a idéia de que personalidade é aquilo que é refletido, que é
mostrado por meio dos papéis sociais que as pessoas desempenham.
Hoje, a maioria dos psicólogos entende personalidade como conjunto dos traços e
características singulares, típicas de uma pessoa e que distinguem-na das demais. A
personalidade abrange necessariamente a constituição física, com seus caracteres
morfológicos e físico-químicos, que se alicerçam nas disposições herdadas. Abrange
também todos os modos de interação entre as pessoas e o mundo: seus hábitos,
valores e capacidades; suas aspirações; seus modos de experimentar os afetos; suas
maneiras habituais de se comportar no cenário social. A personalidade é muito mais do
que aquilo que é refletido por meio dos nossos comportamentos. Diz respeito à
totalidade daquilo que somos, não apenas do que somos hoje, mas do que fomos
ontem e do que aspiramos ser no futuro.
A Psicologia tem a convicção de que a personalidade é uma totalidade sincrética,
resultante da ação dos fatores genéticos e dos fatores ambientais. Sabe-se que é sobre
o alicerce biológico, das disposições herdadas, que irão se plasmar as estruturas
orgânicas. A ação continuada do meio, durante a vida intra-uterina desde o momento
da concepção, bem como ao longo do processo de desenvolvimento de uma pessoa,
vai depender das características de qualidade da composição genética. É com esta
composição que vai dar a interação com o meio para a configuração de uma
personalidade única.
Uma questão que se coloca hoje é o que, precisamente, se deve à estrutura genética e
o que se deve à influência ambiental. Talvez tanto os progressos da genética, como os
das investigações psicológicas possam, em um futuro, esclarecer esta questão.
Entretanto, já não há mais dúvida no sentido de que tanto a hereditariedade como o
meio são decisivos para a formação da personalidade; não há como negar ou reduzir a
participação de um ou de outro fator. A personalidade só se constituirá a partir das
interações que ocorrerem entre a criança e o seu meio próximo.
Formação de Impressões
A impressão que formamos de outra pessoa é, em geral, o resumo de todas as
observações ou dados que pudemos reunir sobre ela. Observamos seu comportamento
verbal e não-verbal, mas não de forma isolada. Levamos em consideração as
circunstâncias em que o comportamento ocorreu. Isso nos permite julgar a respeito das
causas do comportamento observado, se ele deve ser atribuído a características ou
intenções internas da pessoa, ou circunstâncias externas, do meio ambiente. Exemplo:
Ao observarmos um indivíduo debruçado sobre a vitrine de uma joalheria, cujos vidros
acabou de quebrar, julgamos que se trata de um ladrão e talvez procuremos avisar a
polícia. Se, no entanto, formos informados de que ele tropeçou numa pedra e caiu para
dentro da vitrine, nossa percepção a respeito dele muda radicalmente.

Algumas fontes de erro na Percepção Social


O Estado do Percebedor
Muitos estudos demonstraram que as necessidades, os sentimentos, expectativas, etc.,
do percebedor influem nas suas percepções, podendo torna-las enganosas ou menos
precisas. As pessoas tendem a projetar seus próprios sentimentos, intenções, valores,
etc., nos outros, bem como ser mais sensíveis a determinadas características devido ao
seu estado emocional num determinado momento.
Teoria Implícita de Personalidade
Atribui-se a uma pessoa um determinado traço de personalidade ao se inferir que seu
comportamento deriva de determinada intenção ou intenções. No entanto, a percepção
da pessoa não para aí. Em geral, a partir deste traço atribuído, faz-se inferência de
muitos outros, a respeito dos quais não se tem informação. A maioria das pessoas tem
uma “teoria implícita” a respeito da personalidade humana, isto é, um conjunto de
crenças a respeito de como determinados traços se conjugam. Por exemplo, ao inferir
que determinada pessoa é inteligente, é possível que lhe sejam também atribuídas
características de competente, criativa, ativa, e outros traços que não estão
necessariamente relacionados.
Apesar de cada um de nós poder ter sua teoria implícita de personalidade, também
existem aquelas compartilhadas por indivíduos de uma mesma cultura e que vão se
construir nos estereótipos.
Estereótipos
Uma constatação a respeito da teoria implícita de personalidade é o fato dela existir e
ser largamente compartilhada, a respeito de grupos étnicos (negros, japoneses,
alemães, etc.), profissionais (advogados, psicólogos, médicos), e de outros grupos. É o
que se denomina de estereótipo.
Estereótipo trata-se de uma supergeneralização de uma característica para toda uma
categoria ou grupo de pessoas, generalização cuja inadequação será mais facilmente
reconhecida quanto mais o percebedor conhecer o grupo ou categoria de pessoas
percebidas. O estereótipo aproxima-se de uma generalização defeituosa que
provavelmente se vincula aos sistemas de crenças e valores dominantes.
Efeito das Expectativas
As pessoas são capazes de identificar quais as expectativas que os outros tem a seu
respeito. E elas será particularmente importantes se forem as dos pais, ou as de
professores de uma criança. A tendência da criança, e dos adultos também, é a de
corresponder às expectativas (mesmo as negativas), criando o que se chama de
“profecia auto-realizadora”. Nas palavra de Sawrey e Telford (1976, p.42), “dando a
uma pessoa um rótulo, freqüentemente forçamo-la a viver de acordo com ele...”.

- CIAMPA, A. C. Identidade. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia Social –


O homem em movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 58-75.

IDENTIDADE

Quem é você? É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos
a nós mesmos.
Quando queremos conhecer a identidade de alguém, quando nosso objetivo é saber
quem alguém é, nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações
necessárias, tomando essas informações das mais variadas fontes. Assim, obter as
informações necessárias é uma questão prática: quais as informações significativas,
quais as fontes confiáveis, de forma a obter as informações, como interpretar e analisar
essas informações, etc.
A forma mais simples, habitual e inicial de fornecer essas informações é fornecer o
nome, um substantivo; se olharmos o dicionário, veremos que substantivo é a palavra
que designa o ser, que nomeia o ser. Nós nos identificamos com esse nome, que nos
identifica num conjunto de outros seres, que indica nossa singularidade: nosso nome
próprio.
A não ser em casos excepcionais, o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a
família, exatamente quem nos dá nosso nome. Nosso primeiro nome nos diferencia de
nossos familiares, enquanto o último nos iguala a eles. Diferença e igualdade. É uma
primeira noção de identidade.
Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos
sociais de que fazemos parte: brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos outros
estrangeiros; homem ou mulher, entre outros.
O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos
identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com
sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc.
Um grupo pode existir objetivamente, por exemplo, em uma classe social, mas seus
componentes podem não se identificar enquanto membro, e nem se reconhecerem
reciprocamente. É fácil, parece, perceber as conseqüências de tal fato, seja para o
indivíduo, seja para o grupo social.
Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de
que fazemos parte, faz-se necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente:
através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meio onde
vivem, isto é, pela sua prática, pelo seu agir. Estamos constatando talvez uma
obviedade: nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática.
Até aqui estamos tratando a identidade como um “dado” a ser pesquisado, como um
produto preexistente a ser conhecido, deixando de lado a questão fundamental de
saber como se dá esse dado, como se produz esse produto. A resposta à pergunta
“quem sou eu?” é uma representação da identidade. Então, torna-se necessário partir
da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de produção.
Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável
pela grande maioria dos cientistas sociais. Por exemplo, antes de nascer, o nascituro já
é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui
efetivamente, objetivamente, como “filho”, membro de uma determinada família.
É verdade que não basta a representação prévia. O nascituro, uma vez nascido,
constituir-se-á como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido
concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que
reforcem sua conduta como filho e assim por diante.
Contudo, é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho (e
dos adultos em questão como pais) que os comportamentos vão ocorrer,
caracterizando a relação paterno-filial.
Desta forma, a identidade do filho, se de um lado é conseqüência das relações que se
dão, de outro – com anterioridade – é uma condição dessas relações. Ou seja, é
pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento, sob pena de esses
objetos sociais “filho”, “pais”, “família”, etc., deixarem de existir objetivamente.
Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui. Uma vez que a
identidade pressuposta é resposta, ela é vista como dada – e não como se dando num
contínuo processo de identificação. Daí a expectativa generalizada de que alguém deve
agir de acordo com o que é (e conseqüentemente ser tratado como tal).
A posição de mim me identifica, discriminando-me como dotado de certos atributos que
me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal. A re-posição da
identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal, passando a ser vista como
simples manifestação de um ser idêntico a si-mesmo na sua permanência e
estabilidade. A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não
como reposição de uma identidade que uma vez foi posta.
Dessa forma, cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência
concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realizada pelo desenvolvimento
dessas determinações.
Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se
uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou
sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como
filho; e assim por diante. Contudo, meu filho não me vê apenas como pai, nem meu pai
apenas como filho; nem eu compareço frente aos outros como portador de um único
papel, mas sim o como o representante de mim, com todas minhas determinações que
me tornam um indivíduo concreto. Desta forma, estabelece-se uma intrincada rede de
representações que permeia todas as relações, onde cada identidade reflete outra
identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento
originário para cada uma delas.
As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a
estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando o
processo de identificação pela re-posição de identidades sobreposta, que um dia foram
postas. Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de
identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o
movimento social.
A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de
identidade, ou seja, “o que é, é”. Mas, o que é “ser o que é?”
Vejamos um exemplo clássico: uma semente já contém em si uma pequena plantinha,
a planta plenamente desenvolvida e seus frutos, de onde sairão novas sementes.
Então, ser semente é ser semente, mas não só a mesma semente, como também a
plantinha, a planta desenvolvida, o fruto e a nova semente, uma multiplicidade que,
naturalmente, já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em
fruto.
E para o homem: o que é para o ser humano ser o que é? A história do homem é a
contínua hominização do homem, a partir do momento em que este, diferenciando-se
do animal, produz suas condições de existência, produzindo-se a si mesmo
conseqüentemente. De um lado, portanto, o homem não está limitado no seu vir-a-ser
por um fim preestabelecido (como a semente); de outro, não está liberado das
condições históricas em que vive, de modo que seu vir-a-ser fosse uma indeterminação
absoluta.
A primeira constatação acima – de que o vir-a-ser do homem não pode se confundir
com o de uma semente – deve servir para questionar toda e qualquer concepção
fatalista, mecanicista, de um destino inexorá vel, seja nas suas formas mais
supersticiosas (“sou pobre porque Deus quer”, “nasceu para ser criminoso”, etc), seja
em formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas (por exemplo, em certas
versões de teorias de personalidade).
A segunda constatação – de que o homem não está liberado de suas condições
históricas – nos coloca um problema e uma tarefa.
O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo de identidade do
indivíduo do da sociedade. As possibilidades de diferentes configurações de identidade
estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social. É no contexto
histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e,
conseqüentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as
alternativas de identidade.
Acredito que, além de outros, dois fatores podem impedir que o sujeito se engaje na
produção de sua própria história e da história da sociedade. O primeiro é ter uma
atitude, de um lado intelectual, frente à questão da relação indivíduo e sociedade,
semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: o
que prevalece, primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo? De outro lado, uma atitude
prática, semelhante à do asno indeciso entre dois montes de feno, permanecendo no
imobilismo: o que atacar primeiro, o indivíduo ou a sociedade?
O segundo fator é uma concepção de identidade como permanência, como
estabilidade; mais que uma simples concepção abstrata, é vivermos privilegiando a
permanência e a estabilidade, e patologizando a crise e a contradição, a mudança e a
transformação. Assim, como que estancamos o movimento, escamoteamos a
contradição, impedimos a superação dialética.

- MOSCOVICI, F. Desenvolvimento interpessoal – Treinamento em grupo. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1997, p. 32-52, 96-166.

DESENVOLVIMENTO INTERPESSOAL

Eu e os Outros
"Como trabalhar bem com outros? Como entender os outros e fazer-se entender? Por
que os outros não conseguem ver o que eu vejo, como eu vejo, por que não percebem
a clareza de minhas intenções e ações? Por que os outros interpretam erroneamente
meus atos e palavras e complicam tudo? Por que não podemos ser objetivos no
trabalho e deixar problemas pessoais de fora? Vamos ser práticos, e deixar as
emoções e sentimentos de lado..."
Quem já não pensou assim, alguma vez, em algum momento ou situação?
Desde sempre, a convivência humana é difícil e desafiante. Escritores e poetas, através
dos tempos, têm abordado a problemática do relacionamento humano. Sartre, em sua
admirável peça teatral Huis Clos, faz a famosa afirmação: "O inferno são os outros..."
Estaremos realmente condenados a sofrer com os outros? Ou podemos ter esperanças
de alcançar uma convivência razoavelmente satisfatória e produtiva?
Pessoas convivem e trabalham com pessoas e portam-se como pessoas, isto é,
reagem às outras pessoas com as quais entram em contato: comunicam-se,
simpatizam e sentem atrações, antipatizam e sentem aversões, aproximam-se,
afastam-se, entram em conflito, competem, colaboram, desenvolvem afeto.
Essas interferências ou reações, voluntárias ou involuntárias, intencionais ou
inintencionais, constituem o processo de interação humana, em que cada pessoa na
presença de outra pessoa não fica indiferente a essa situação de presença
estimuladora. O processo de interação humana é complexo e ocorre permanentemente
entre pessoas, sob forma de comportamentos manifestos e não-manifestos, verbais e
não-verbais, pensamentos, sentimentos, reações mentais e/ou físico-corporais.
Assim, um olhar, um sorriso, um gesto, uma postura corporal, um deslocamento físico
de aproximação ou afastamento constituem formas não-verbais de interação entre
pessoas. Mesmo quando alguém vira as costas ou fica em silêncio, isto também é
interação - e tem um significado, pois comunica algo aos outros. O fato de 'sentir' a
presença dos outros já é interação.
A forma de interação humana mais freqüente e usual, contudo, é representada pelo
processo amplo de comunicação, seja verbal ou não-verbal.

A primeira impressão
O contato inicial entre pessoas gera a chamada primeira impressão, o impacto que
cada um causa ao outro. Essa primeira impressão está condicionada a um conjunto de
fatores psicológicos da experiência anterior de cada pessoa, suas expectativas e
motivação no momento e a própria situação do encontro.
Primeiras impressões poderão ser muito diferentes se certos preconceitos
prevalecerem ou não, se as predisposições do momento forem favoráveis ou não à
aceitação de diferenças no outro e se o contexto for formal ou informal, de trabalho
neutro ou de ansiedade e poder assimétrico, tal como, por exemplo, uma entrevista
para solicitar emprego, ou promoção, ou outras vantagens.
Quando a primeira impressão é positiva de ambos os lados, haverá uma tendência a
estabelecer relações de simpatia e aproximação que facilitarão o relacionamento
interpessoal e as atividades em comum. No caso de assimetria de percepções iniciais,
isto é, impacto positivo de um lado, mas sem reciprocidade, o relacionamento tende a
ser difícil, tenso, exigindo um esforço de ambas as partes para um conhecimento maior
que possa modificar aquela primeira impressão.
Quantas vezes geramos e recebemos primeiras impressões errôneas que nos trazem
dificuldades e aborrecimentos desnecessários, porque não nos dispomos a rever e,
portanto, confirmar ou modificar aquela impressão. Quando isto acontece,
naturalmente, ao longo de uma convivência forçada, como na situação de trabalho, por
exemplo, percebemos, então, quanto tempo precioso e quanta energia perdemos por
não tomar a iniciativa de procurar conhecer melhor o outro e examinar as próprias
atitudes e preconceitos, com o fito de desfazer impressões negativas não-realísticas.
É muito cômodo jogar a culpa no outro pela situação equívoca, mas a realidade mostra
a nossa parcela de responsabilidade nos eventos interpessoais. Não há processos
unilaterais na interação humana: tudo que acontece no relacionamento interpessoal
decorre de duas fontes: eu e outro(s).

Relações Interpessoais
As relações interpessoais desenvolvem-se em decorrência do processo de interação.
À medida que as atividades e interações prosseguem, os sentimentos despertados
podem ser diferentes dos indicados inicialmente e então, inevitavelmente, os
sentimentos influenciarão as interações e as próprias atividades.
Esse ciclo 'atividades-interações-sentimentos' não se relaciona diretamente com a
competência técnica de cada pessoa. Profissionais competentes individualmente
podem render muito abaixo de sua capacidade por influência do grupo e da situação de
trabalho.
Quando uma pessoa começa a participar de um grupo, há uma base interna de
diferenças que englobam conhecimentos, informações, opiniões, preconceitos, atitudes,
experiência anterior, gostos, crenças, valores e estilo comportamental, o que traz
inevitáveis diferenças de percepções, opiniões, sentimentos em relação a cada situação
compartilhada. Essas diferenças passam a constituir um repertório novo: o daquela
pessoa naquele grupo. Como essas diferenças são encaradas e tratadas determina a
modalidade de relacionamento entre membros do grupo, colegas de trabalho,
superiores e subordinados.
Por exemplo: se no grupo há respeito pela opinião do outro, se a idéia de cada um é
ouvida, e
discutida, estabelece-se uma modalidade de relacionamento diferente daquela em que
não há respeito pela opinião do outro, quando idéias e sentimentos não são ouvidos, ou
ignorados, quando não há troca de informações. A maneira de lidar com diferenças
individuais cria um certo clima entre as pessoas e tem forte influência sobre toda a vida
em grupo, principalmente nos processos de comunicação, no relacionamento
interpessoal, no comportamento organizacional e na produtividade.
Se as diferenças são aceitas e tratadas em aberto, a comunicação flui fácil, em dupla
direção, as pessoas ouvem as outras, falam o que pensam e sentem, e têm
possibilidades de dar e receber feedback. Se as diferenças são negadas e suprimidas,
a comunicação torna-se falha, incompleta, insuficiente, com bloqueios e barreiras,
distorções e 'fofocas'. As pessoas não falam o que gostariam de falar, nem ouvem as
outras, só captam o que reforça sua imagem das outras e da situação.
O relacionamento interpessoal pode tornar-se e manter-se harmonioso e prazeroso,
permitindo trabalho cooperativo, em equipe, com integração de esforços, conjugando as
energias, conhecimentos e experiências para um produto maior que a soma das partes,
ou seja, a tão buscada sinergia.
Ou então tender a tornar-se muito tenso, conflitivo, levando à desintegração de
esforços, à divisão de energias e crescente deterioração do desempenho grupal para
um estado de entropia do sistema e final dissolução do grupo.
Relações interpessoais e clima de grupo influenciam-se recíproca e circularmente,
caracterizando um ambiente agradável e estimulante, ou desagradável e averso, ou
neutro e monótono. Cada modalidade traz satisfações ou insatisfações pessoais e
grupais.
A liderança e a participação eficaz em grupo dependem essencialmente da
competência interpessoal do líder e dos membros. O trabalho em equipe só terá
expressão real e verdadeira se e quando os membros do grupo desenvolverem sua
competência interpessoal, o que Ihes permitirá alcançar a tão desejada e propalada
sinergia, em seus esforços colaborativos, para obter muito mais que a simples soma
das competências técnicas individuais como resultado conjunto do grupo.

Funcionamento e desenvolvimento do grupo


Quando se deseja estudar um grupo em funcionamento e compreender a seqüência de
eventos, as modalidades de interação e suas conseqüências, faz-se mister identificar
os componentes relevantes dos processos de grupo.
Visualizando-se o grupo como um campo de forças, em que umas concorrem para
movimentos de progresso do grupo e outras para dificuldades ou retrocesso, algumas
delas ressaltam no funcionamento grupal. São elas: objetivos, motivação, comunicação,
processo decisório, relacionamento, liderança e inovação.
Objetivos
Há um objetivo comum a todos os membros do grupo?
Até que ponto este objetivo é suficientemente claro, compreendido e aceito por todos?
Até que ponto os objetivos individuais são compatíveis com o coletivo e entre si?
Motivação
Qual o nível de interesse e entusiasmo pelas atividades do grupo?
Quanta energia individual é canalizada para o grupo?
Quanto tempo é efetivamente devotado ao grupo (em termos de freqüência,
permanência, ausências, atrasos, saídas antecipadas)?
Qual o nível de envolvimento real nos problemas e preocupações do grupo?
Até que ponto há participação plena e dedicação espontânea nos processo de grupo?
Comunicação
Quais as modalidades mais características de comunicação no grupo?
Todos falam livremente ou há bloqueio e receio de falar?
Há espontaneidade nas colocações ou cautela deliberada?
Qual o nível de distorção na recepção das mensagens?
Há troca de feedback, aberto e direto?
Processo decisório
Como são tomadas as decisões no grupo?
Com que freqüência as decisões são unilaterais, por imposição de quem detém o
poder?
É comum a decisão por votação, em que a maioria expressa sua vontade?
Quantas vezes o processo decisório é alcançado por consenso, permitindo que todos
se posicionem, com respeito mútuo?
Qual a modalidade de tomada de decisão mais característica do grupo?
Relacionamento
As relações entre os membros são harmoniosas, propícias à cooperação?
As relações harmoniosas são apenas superficiais, de aparente cordialidade, ou
permitem real integração de esforços e efetividade que levem à coesão do grupo?
As relações mostram-se conflitantes e indicam competição, clara ou velada, entre os
membros?
Até que ponto essas relações conflitivas tendem ao agravamento, podendo conduzir o
grupo à desintegração?
Liderança
Como é exercida a liderança? Quem a exerce? Em que circunstâncias?
Quais os estilos de liderança mais usuais no grupo?
Quais as relações entre líderes e liderados?
Como se distribui o poder no grupo?
Inovação
As atividades do grupo caracterizam-se pela rotina?
Como são recebidas idéias novas, sugestões de mudanças nos procedimentos?
Até que ponto estimula-se e exercita-se a criatividade no grupo?

Todos esses componentes influem decisivamente para a definição de normas de


funcionamento e concomitante estabelecimento do clima do grupo.
As pessoas que compõem o grupo trazem seus valores, sua filosofia e orientação de
vida. A interação permite conhecimento mútuo e identificação de alguns pontos comuns
que servirão de base para a elaboração de normas coletivas, tácitas e explícitas, na
dinâmica do grupo, Resultante da interação entre os membros, a cultura grupal reúne
os produtos materiais e não-materiais desse processo, tais como objetos, documentos,
obras de arte, conhecimentos, vocabulário próprio, experiências, sentimentos, atitudes,
preconceitos, valores e normas de conduta.
O clima de grupo, por sua vez, tem uma relação circular com os componentes do
funcionamento e da cultura grupal, influenciando-os e sendo por eles influenciado
constantemente. O clima de grupo, por analogia, pode ser comparado ao clima
geográfico. Refere-se às condições atmosféricas do espaço psicossocial e que afetam
os membros do grupo durante o tempo em que nele permanecem.
Em qualquer região do globo terrestre, podem ser observadas condições
meteorológicas variáveis de temperatura, pressão, ventos, umidade, chuvas, sol,
nuvens, tempo bom, tempo instável, tempestades etc.
Em qualquer grupo, da mesma forma, podem ser observadas condições variáveis de
calor humano, tensão, movimentos, equilíbrio, restrições, alegria, insegurança, crises.
Estas condições, em conjunto, formam a 'atmosfera', responsável pelo que os membros
do grupo sentem a seu respeito.
O clima do grupo pode variar desde sentimentos de bem-estar e satisfação até mal-
estar e insatisfação, passando por gradações de tensão, estresse, entusiasmo, prazer,
frustração e depressão.
Cultura e clima de grupo passam a caracterizar, então, o próprio ambiente total e a
imagem do grupo. Todos esses fatores concorrem para a qualidade do comportamento
ou desempenho grupal num determinado período.
A energia mobilizada nos comportamentos individuais pode direcionar- se para
resultantes ao longo de um contínuo. Este estende-se desde o extremo da divisão de
forças, representada pela individualização de esforços e resultados, até o outro extremo
do total dinâmico maior que a soma das parcelas, representado pela sinergia grupal.
Um grupo começa, funciona durante algum tempo, modifica-se em sua estrutura e
dinâmica e continua, modificando-se gradativamente, em maior ou menor grau e
velocidade, ou fragmenta-se terminando como grupo original ou dando origem a outros
grupos.

Participação no grupo
Pensar nos membros de um grupo desempenhando apenas duas funções distintas:
liderança e participação é usual e enganoso. Primeiramente a liderança não pode ser
assim tão marcada e continuamente ser desempenhada apenas por um membro do
grupo. Outros membros podem assumir uma liderança informal, de acordo com as
diferentes situações por que passa o grupo em seus processos de interação. Em
segundo lugar, a função de membro do grupo significando não líder poderia dar a
impressão de um comportamento não-diferenciado comum a todos os componentes do
grupo, excluído o líder que tem um papel caracterizado.
Na realidade, a vida em grupo passa por várias fases e, em cada uma delas, os
membros atuam de forma diferenciada: em relação à etapa de vida do grupo e em
relação aos demais membros. Dependendo do tipo de grupo (informal, formal, de
trabalho, social, de treinamento etc.) e da fase em que cada um se encontra, haverá
certas funções a serem executadas por seus componentes. Algumas funções são mais
genéricas que outras, existindo em todos os grupos, e são desempenhadas pelos
membros para que o grupo possa mover-se ou progredir em direção às suas metas.
O processo de interação humana exige que cada participante um determinado
desempenho, o qual variará em função da dinâmica de sua personalidade e da
dinâmica grupal na situação-momento ou contexto-tempo. No plano interpessoal, o
indivíduo reagirá em função de suas necessidades motivacionais, sentimentos, crenças
e valores, normas interiorizadas, atitudes, habilidades específicas e capacidade de
julgamento realistico. Personalidade, grupo e contexto não podem ser ignorados na
apreciação do papel desempenhado por membros de um grupo, em diversas
circunstâncias.

Estilos de liderança
Psicólogos sociais e especialistas de dinâmica de grupo indicam dois níveis de
interação no grupo: o nível da tarefa e o nível socioemocional. Os dois estilos de
liderança são: orientado para controle/tarefa e orientado para participação/manutenção
e fortalecimento do próprio grupo.

Ao nível sócioemocional
Entre as funções de manutenção do grupo destacam-se as seguintes como
construtivas ou facilitadoras:
Conciliador: busca um denominador comum; quando em conflito, aceita rever sua
posição e acompanhar o grupo para não chegar a impasses.
Mediador: resolve as divergências entre outros membros, alivia as tensões nos
momentos mais difíceis através de brincadeiras oportunas.
Animador: demonstra afeto e solidariedade aos outros membros do grupo, bem como
compreensão e aceitação dos outros pontos de vista, idéias e sugestões, concordando,
recomendando, elogiando as contribuições dos outros.
Ouvinte interessado: acompanha atentamente a atividade do grupo e aceita as idéias
dos outros, servindo de auditório e apoio nas discussões e decisões do grupo.

Papéis não-construtivos
Estes papéis dificultam a tarefa do grupo, criando obstáculos. Estes papéis
correspondem a necessidades individualistas, motivações de cunho pessoal, problemas
de personalidade ou até falhas na estruturação ou da dinâmica do grupo. Entre estes
papéis figuram os que seguem:
O dominador: procura afirmar sua autoridade ou superioridade, dando ordens incisivas,
interrompendo os demais, manipulando o grupo ou sob forma de adulação, afirmação
de status superior.
O dependente: busca ajuda, sob forma de simpatia dos outros membros do grupo,
mostrando insegurança, autodepreciação, carência de apoio.
O criador de obstáculos: discorda-se e opõe-se sem razões, mantendo-se negativo até
a radicalização, obstruindo o processo do grupo após uma decisão já atingida.
O agressivo: ataca o grupo ou assunto ratado, fazendo ironia ou brincadeiras
agressivas, mosra desaprovação dos valores, atos e sentimentos dos outros.
O vaidoso: procura chamar a atenção sobre sua pessoa sobre várias maneiras,
contando realizações pessoais e agindo de forma diferente, para afirmar sua
superioridade e vantagens em relação aos outros.
O reivindicador: manifesta-se como porta voz de outros, subgrupos ou classes,
revelando seus verdadeiros interesses pessoais, preconceitos e dificuldades.
O confessante: usa o grupo como platéia ou assistência ara extravasar seus
sentimentos, suas preocupações pessoais, que nada tem a ver com a disposição ou
orientação do grupo na situação momento.
O ‘gozador’: aparentemente agradável, evidencia, entretanto, seu completo
afastamento do grupo podendo exibir atitudes cínicas, desagradáveis, indiferente a
preocupação e ao trabalho do grupo, se diverte com as dificuldades e os esforços dos
outros.
Esta classificação dos papéis funcionais do grupo em construtivos e não construtivos,
conforme esquema apresentado, não pode ser rigidamente aplicada. Um determinado
papel não pode ser julgado em termos absolutos, pois a interação não se faz no vácuo.
A competência interpessoal dos membros do grupo é desenvolvida à medida que eles
se conscientizam da variedade de papéis exigidos para o desempenho global do grupo
e se sensibilizam para o que é mais apropriado às necessidades especiais do grupo e
de seus membros num determinado momento da vida do grupo.

Energia no grupo: tensão e conflito interpessoal


As pessoas são diferentes na maneira de perceber, pensar, sentir e agir. As diferenças
individuais são inevitáveis e, portanto, inevitáveis com suas conseqüentes influencias
na dinâmica interpessoal. As diferenças entre as pessoas não podem ser consideradas
apenas como boas ou más. Algumas vezes trazem benefícios ao grupo, outras vezes,
trazem prejuízos. As diferenças individuais podem ser consideradas desejáveis e
valiosas, pois propiciam riqueza de possibilidades, de opções para melhores, e piores
maneiras de reagir a qualquer situação ou problema. Num trabalho em grupo, as
diferenças individuais trazem naturalmente diferenças de opinião, expressas em
discordâncias quanto a aspectos de percepção de tarefa, metas, meios ou
procedimentos. Essas discordâncias podem levar a discussões, tensões, insatisfações,
conflito aberto, ativando emoções mais ou menos intensos eu afetam a objetividade,
transformando o clima emocional do grupo.
O conflito em si não é patológico nem destrutivo. De um ponto de vista amplo, o conflito
pode ter muitas funções positivas. Ele previne a estagnação decorrente do equilíbrio
constante da concordância, estimula o interesse e a curiosidade pelo desafio da
oposição, descobre problemas e demanda sua solução. Funciona como raiz apara
mudanças pessoais, grupais e sociais.

- BOCK, A. M. M. Psicologia Institucional e Processo Grupal. In: ______. Psicologias –


uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 215-228.

PSICOLOGIA INSTITUCIONAL E PROCESSO GRUPAL

A vida em grupo faz parte do nosso cotidiano, o tempo todo nos relacionamos com
outras pessoas, seja a família, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Mesmo quando
estamos sozinhos temos como referência o outro. Dificilmente encontraremos uma
pessoa que viva completamente isolada e mesmo que alguém viva assim ela levará
para seu exílio suas lembranças, seus conhecimentos e sua cultura. Em qualquer
circunstancia humana encontraremos determinantes sociais, o que faz com que toda a
psicologia seja no fundo uma Psicologia Social.
Toda nossa vida há uma certa regularidade que inclui regras e convenções combinadas
entres as pessoas e que são necessárias para a vida em grupo. Qualquer instituição
necessita de pessoas que serão encarregadas de diferentes tarefas e terão que seguir
regras para que tudo possa funcionar regularmente. Este tipo de regularidade é
normatizada pela vida em grupo e é chamada de institucionalização. Geralmente o
termo instituição é utilizado para se designar o local onde se presta um determinado
serviço (hospitais, abrigos) ou também para designar organizações sociais como, por
exemplo, a família, o casamento. Entretanto, aqui, o termo instituição se refere a um
valor ou regra social que é reproduzida no cotidiano como sendo uma verdade e que
serve como um guia de comportamento e de padrão ético para as pessoas. Para se
compreender a Psicologia Institucional é preciso primeiramente conhecer o processo de
institucionalização que ocorre na sociedade.

A Construção Social da Realidade e o Processo de Institucionalização


De acordo com Beger e Luckmann o processo de institucionalização começa com o
estabelecimento de regularidades comportamentais. As pessoas vão descobrindo aos
poucos a forma mais rápida, simples e econômica de desempenhar as tarefas
cotidianas. Por exemplo, um grupo social que vive da pesca vai estabelecer formas
práticas que garanta maior eficiência na realização da tarefa. Quando uma dessas
formas se repete muitas vezes pode-se dizer que um hábito se estabelece e se for por
razões concretas, com o passar do tempo e das gerações pode transforma-se em
tradição. Com o decorrer do tempo as bases concretas não são mais questionadas.
Quando se passam muitas gerações e a regra estabelecida perde sua referência de
origem (grupo de antepassados), dizemos que esta regra foi institucionalizada.

Instituições, Organizações e Grupo


As mais diversas instituições são reproduzidas na nossas relações sociais cotidianas,
mas quase não percebemos, pois atravessa de forma invisível todo tipo de organização
social. Só percebemos e recorremos claramente a essas regras quando são quebradas.
Se a instituição é o corpo de regras e valores, a organização é a base concreta da
sociedade. As organizações que podem ser Igreja, um Ministério como o da Saúde ou
até mesmo uma creche, representam o aparato que reproduz as instituições no
cotidiano. A instituições sociais são mantidas e reproduzidas nas organizações. O
grupo completa a dinâmica de construção social da realidade, é o lugar onde a
instituição de realiza. O grupo é o sujeito que reproduz, e em outros momentos,
reformula tais regras. É o sujeito que também é ora controlado e submetido as regras e
valores, e ora é o sujeito da transformação, da rebeldia e da produção do novo.

Instituição Organização Grupo


(abstrato) (materialização) (realização)

A Importância do Estudo dos Grupos na Psicologia


Os primeiros estudos realizados sobre grupos foram realizadas no final do século XIX
pela então denominada psicologia de massas ou psicologia das multidões. Estes
pesquisadores foram influenciados pela Revolução Francesa 1. Os pesquisadores se
perguntavam o que teria mobilizado tamanho contingente humano. No campo da
Psicologia se perguntava o que levaria uma multidão a seguir a orientação de um líder
mesmo que fosse preciso colocar em risco a própria vida.

A Dinâmica dos Grupos


O grupo se caracteriza pela reunião de um número de pessoas , com um determinado
objetivo, compartilhado por todos os membros e que podem desempenhar diferentes
papéis para a execução desse objetivo.
Quando convivemos com um grupo independente da nossa escolha, como é o caso
quando entramos na escola, na universidade ou um curso, chamamos de solidariedade
mecânica. Neste caso, a afiliação a um grupo independe da nossa vontade no que diz
respeito à escolha dos seus integrantes. A solidariedade orgânica é a forma de convívio
na qual nos filiamos a um grupo porque escolhemos nossos pares. Nos grupos que

1
A revolução Francesa espalhou uma vaga revolucionária que atingiu toda a Europa, principalmente a Alemanha,
ecoando até mesmo na América Latina, com lutas de libertação nacional, como a que ocorreu no Peru. A revolução
Francesa aboliu a servidão e os direitos feudais, proclamando os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e
Fraternidade” (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean Nicolas Pache.
predominam a solidariedade mecânica, geralmente se formam subgrupos que se
caracterizam pela solidariedade orgânica.

Grupos Operativos
O francês Pichon-Rivière desenvolveu uma abordagem de trabalho em grupo, a qual
denominou de “grupos operativos”. Os grupos operativos trabalham na dialética do
ensinar-aprender; o trabalho em grupo proporciona uma interação entre as pessoas,
onde elas tanto aprendem como também são sujeitos do saber, mesmo que apenas
pelo fato da sua experiência de vida; dessa forma, ao mesmo tempo que aprendem,
ensinam também.
O Processo Grupal
Um processo grupal se reconfigura a cada momento, não existindo grupo abstrato.
Silvia Lane detecta categorias de produção grupal, que define como:
1. Categoria de produção – produção das satisfações de necessidades do grupo
está relacionada com a produção das relações grupais. A realização dos objetivos do
grupo e o seu produto final tem a influência subjetiva da dinâmica do grupo. Mas
também sofre influência das relações concretas possíveis numa determinada
sociedade.
2. Categoria de dominação – os grupos tendem a reproduzir as formas sociais de
dominação. Mesmo um grupo democrático tende a reproduzir algumas hierarquias
comum ao modo de produção dominante.
3. Categoria grupo-sujeito – de acordo com Lourau, trata-se do nível de resistência
à mudança apresentada pelo grupo. Grupos que possuem menor resistência à
autocrítica com capacidade de crescimento por meio da mudança, são considerados
grupos-sujeitos. Os grupos que se submetem cegamente às normas institucionais
apresentado dificuldade para mudança são os grupos-sujeitados.

- LANE, S. T. M. O processo grupal. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia


Social – O homem em movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 78-98.

O PROCESSO GRUPAL

Para a Psicologia Social, o grupo não é mais considerado como dicotômico em relação
ao indivíduo (indivíduo sozinho x indivíduo em grupo), mas sim como condição
necessária para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo, bem
como a sua ação como sujeito histórico, partindo do pressuposto que toda ação
transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam.
Tradicionalmente, os estudos sobre pequenos grupos estão vinculados à teoria de K.
Lewin, que os analisa em termos de espaço topológico e de sistemas de forças,
procurando captar a dinâmica que ocorre quando pessoas estabelecem uma
interdependência. É nessa tradição que conceitos como de coesão, liderança, pressão
de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observações e experimentos. Tem-se
assim descrições de processos grupais que permitem apenas a reprodução, através da
aprendizagem de grupos produtivos para o sistema social mais amplo.
Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem
implícitos valores que visam reproduzir os de individualismo, de harmonia e de
manutenção. A função do grupo é definir papéis e, conseqüentemente, a identidade
social dos indivíduos; é garantir a sua produtividade social. O grupo coeso, estruturado,
é um grupo ideal, acabado, como se os indivíduos envolvidos estacionassem e os
processos de interação pudessem se tornar circulares. Em outras palavras, o grupo é
visto como a-histórico numa sociedade também a-histórica. A única perspectiva história
se refere, no máximo, à história da aprendizagem de cada indivíduo com os outros que
constituem o grupo.
As teorias de grupo tem uma postura tradicional onde sua função seria apenas a de
definir papéis e, conseqüentemente, a identidade social dos indivíduos e garantir a sua
produtividade, pela harmonia e manutenção das relações apreendidas na convivência.
Por outro lado, temos teorias modernas que enfatizam o caráter mediatório do grupo
entre indivíduos e a sociedade enfatizando o processo pelo qual o grupo se produz; são
abordagens que consideram as determinantes sociais mais amplas, necessariamente
presentes nas relações grupais.
A partir dessas teorias mais modernas, levantamos algumas premissas para conhecer o
grupo, ou seja: 1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado
dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com
suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas; 2) o próprio grupo só
poderá ser conhecido enquanto um processo histórico, e neste sentido talvez fosse
mais correto falarmos em processo grupal, em vez de grupo.
Destas premissas decorre que todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de
manter ou transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das relações
de produção, e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua forma de organização como
nas suas ações, reproduz ideologia, que, sem um enfoque histórico, não é captada. É a
partir da análise dialética que se pode captar o grupo enquanto processo e, inserido
numa totalidade maior, levar ao conhecimento dos aspectos concretos desse fato
social.
A relação homem-meio implica a construção recíproca do homem e do seu meio, ou
seja, o ser humano deve ser visto como produto de sua relação com o ambiente e o
ambiente como produto humano, sendo, então, basicamente social. O ambiente, visto
como produto humano, se desenvolve a partir da necessidade de sobrevivência, que
implica o trabalho e a conseqüente transformação da natureza; a satisfação destas
necessidades geram outras necessidades, que vão tornando as relações de produção
gradativamente mais complexas. O desenvolvimento da sociedade humana se dá a
partir do trabalho vivo, que produz bens e a conseqüente acumulação de bens (capital),
e a necessidade do trabalho assalariado; em última análise, a formação de classes
sociais. Logo, as relações de produção geram a estrutura da sociedade, inclusive as
determinações sócio-culturais, que fazem a mediação entre o homem e o ambiente.
O indivíduo, na sua relação com o ambiente social, interioriza o mundo como realidade
concreta, subjetiva, na medida em que é pertinente ao indivíduo em questão, e que por
sua vez se exterioriza em seus comportamentos. Esta interiorização-exteriorização
obedece a uma dialética em que a percepção do mundo se faz de acordo com o que já
foi interiorizado, e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção
das coisas existentes.
É a partir dessa visão que podemos pensar a institucionalização dos sujeitos. Por
exemplo, o dirigente e o funcionário devem agir de acordo com as normas
estabelecidas, e assim por diante. Essas tipificações são elaboradas no curso da
história da instituição, daí só se pode compreender qualquer instituição se aprendermos
o processo histórico no qual ela foi produzida. Também é importante ressaltar o fato de
que, quanto mais solidificados e definidos forem esses padrões, mais eficiente se torna
o controle da sociedade sobre os indivíduos que desempenham esses papéis.
O estabelecimento de papéis a serem desempenhados leva à sua cristalização, como,
por exemplo, o papel da mulher enquanto formas de ser e agir. Essa cristalização faz
com que os papéis sejam vistos como tendo uma realidade própria, exterior aos
indivíduos que têm de se submeter a eles, incorporando-os. Desta forma, o mundo
social e o institucional é visto como uma realidade objetiva, concreta, esquecendo-se
que essa objetividade é produzida e construída pelo próprio homem.
Cabe à Psicologia aprender como se dá esta internalização da realidade concreta e
como ela faz a mediação na determinação dos comportamentos do indivíduo.
A introdução do homem na sociedade é realizada pela socialização, inicialmente a
primária e depois a secundária. Na nossa sociedade, a socialização primária ocorre
dentro da família, e os aspectos internalizados serão aqueles decorrentes da inserção
da família numa classe social, através da percepção que seus pais possuem do mundo,
e do próprio caráter institucional da família. A socialização secundária decorre da
própria complexidade existente nas relações de produção, levando o indivíduo a
internalizar as funções mais específicas das instituições, as subdivisões do mundo
concreto e as representações ideológicas da sociedade, de forma a incorporar uma
visão de mundo que o mantenha “ajustado” e, conseqüentemente, alienado das
determinações concretas que definem suas relações sociais.
Podemos então verificar que toda análise que se fizer do indivíduo terá de se remeter
ao grupo a que ele pertence, à classe social, enfocando a relação dialética homem-
sociedade, atentando para diversos momentos dessa relação.

- BOCK, A. M. M. As faces da violência. In: ______. Psicologias – uma introdução ao


estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.330-345.

AS FACES DA VIOLÊNCIA

Agressividade e Violência: o Enfoque Psicológico


Geralmente avaliamos a agressividade exclusivamente por suas manifestações
comportamentais, consideramos uma pessoa “boazinha” como não agressiva, como
não tendo nenhuma hostilidade dentro de si, nenhum impulso destrutivo na sua relação
com as coisas e com os outros.
È necessário compreender que a agressividade é um impulso que pode voltar-se para
fora (heteroagressão) ou para dentro (auto-agressão). Mas ela constitui a vida psíquica,
fazendo parte do binômio amor/ódio, pulsão de vida/pulsão de morte. A agressividade
está relacionada com atividades de pensamento, imaginação ou de ação verbal e não-
verbal. Ágüem considerado não-agressivo pode ter fantasias destrutivas, ou sua
agressividade se manifestar pela ironia, pela omissão de ajuda. A gressividade não se
caracteriza exclusivamente pela humilhação, constrangimento, ou destruição do outro,
pela ação verbal ou física sobre o mundo.
A educação, os mecanismos sociais da lei e da tradição buscam o controle dessa
agressividade. Desde criança o ser humano aprende a reprimir e a não expressa-la de
modo descontrolado. A agressividade é constitutiva do ser humano e, ao mesmo
tempo, a cultura, a vida social possui papel importante no controle da agressividade.
A violência é o uso desejado da agressividade, com fins destrutivos. Este desejo pode
ser:
 Voluntário (intencional), racional (premeditaado) e consciente, ou
 Involuntário, irracional (violência como objeto substituto, por exemplo, por ódio
ao chefe, o indivíduo bate no filho) e inconsciente.
A agressividade está na constituição da violência mas não é o único fator que a explica.
É necessário compreender como a organização socialestimula, legitima e mantém
diferentes modalidades de violência. A violência não se configura somente como prática
de delitos e criminalidade. Mas existem outras formas que geralmente não
reconhecemos como praticas de violência e que estão no cotidiano. A violência na
família, na escola, no trabalho, na polícia, das ruas, do atendimento precário à saúde,
etc.

A Violência e suas Modalidades


A Violência na Família
Na nossa sciedade ainda há a prevalência de um modelo familiar que se caracteriza
pela autoridade paterna e, poratnto, pela submissão dos filhos e da mulher, e pela
repressão da sexualidade, principalmente a feminina. A família possui um lugar
mitificado em função de cuidado e proteção, existem muitas outras formas de violência
além da física e da sexual; há o abandono, a negligência, a violência psicológica, isto é,
condições que comprometem o desenvolvimento saudável da criança e do jovem.
A Violência na Escola
A escola pretende ser a continuidade do processo de socialização, iniciado pela família.
No processo educativo os valores, expectativas e práticas são semelhantes. A violência
manifesta-se de forma sutil na relação das crianças e dos jovens com os conteúdos a
serem aprendidos, que podem não ter significado para sua vida; na sua relação com
professores, que se caracteriza por práticas autoritárias e sem espaço para o diálogo,
para a crítica; na relação com práticas disciplinares que buscam a sujeição do
educando, a submissão, a docilidade, a obediência e o conformismo. A maior violência
exercida pela escola é quando ela usa seu poder sobre as crianças e os jovens para
impedi-los de pensar, o que os tornam meros reprodutores de conhecimentos.
Violência na Rua
A violência nas ruas é um problema que afeta principalmente os centros urbanos. A rua,
como espaço social do lúdico,, do encontro, da convivência, torna´se espaço da
insegurança, do medo, da vioLência pelo “bandido”, pela polícia e mesmo pelo cidadão
comum.
A Violência e as Drogas
O uso de drogas deve ser entendido como um processo de autodestruição do indivíduo.
A droga deve ser entendida em seu amplo espectro, desde as socialmente permitidas,
como o tabaco e o álcool, até aquelas não permitidas, como a maconha, a heroína, a
cocaína, e mesmo, os psicofármacos. Os “buracos” afetivos, a insegurança, a não-
comunicação com o mundo dos adultos são os principais responsáveis pelo uso de
drogas, muitas vezes com a iilusão de que está destruindo valores fundamentais da
sociedade.

Violência e Criminalidade
É importante distinguir três aspectos ou conceitos ligados a esta questão: transgressão,
infração e deliquência.
O Transgressor
Em todos os grupos existem normas e valores que regulam a relação entre as pessoas
no seu interior e, conseqüentemente, todas as pessoas, alguma vez transgrediram
essas normas. Sempre que ocorre uma transgreção, existe uma conseqüência para o
transgressor: que pode ser advertido, ser exposto afim de reconhecer a importância da
norma, ou mesmo ser expulso do grupo. É sempre mais fácil o conformismo com às
normas quando se conhece seu significado e concorda-se com elas. Quando o
indivíduo transgride uma norma, não significa que ele se caracterize como infrator ou
delinqüente.
O Infrator
O infrator é aquele que transgrediu uma norma ou alguma lei tipificada no código penal
ou no sistema de leis de uma determinada sociedade. O infrator é aquele que cometeu
uma infração e que será punido por isso, isto é, terá uma pena também prevista em lei
e aplicada pelo juiz.
O Delinqüente
A delinqüência é uma identidade atribuída e internalizada pelo indivíduo a partir da
prática de um ou vários delitos (crimes). M. Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, coloca
que essa identidade começa a se formar/forjar a partir do momento que o infrator entra
no sistema carcerário. A instituição na qual o indivíduo é isolado do convívio social e
que tem a função social de regeneração e recuperação é aquela que caba por atribuir-
lhe esta identidade que passa a “funcionar” como um rótulo. Uma marca que irá
carregar posteriormente à sua saída e que irá dificultar sua integração social.
Atualmente, não é necessário o internamento no sistema carcerário para que inicie a
construção da identidade delinqüente. Crianças e jovens, cuja condição de vida é a
pobreza passam a ser vistos não como crianças e jovens, mas como perigosos ou
potencialmente perigosos. Esta visão fundamenta-se numa visão falseada da realidade
em que a pobreza é associada à criminalidade. Esta visão também cumpre a função de
desviar a atenção da opinião pública de outros tipos de crimes cometidos pelas classes
média e alta.
- SOUZA, L. Ações coletivas: das massas criminalizadas e patologizadas aos
movimentos sociais pós-modernos. In: SOUZA, L., FREITAS, M. F. Q., RODRIGUES,
M. M. P. (Orgs.). Psicologia – Reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1998, p. 25-45.

AÇÕES COLETIVAS: DAS MASSAS CRIMINALIZADAS E PATOLOGIZADAS AOS


MOVIMENTOS SOCIAIS PÓS-MODERNOS

O presente capítulo tem como objetivo traçar uma trajetória das principais categorias de
ações coletivas e tratamentos teóricos que receberam as multidões, procurando
destacar o papel dos julgamentos de valor.
As primeiras contribuições para o debate relacionado às multidões podem ser
identificadas nas obras de Le Bom, Tarde e de Ortega Y Gasset, escritas entre o final
do século XIX e início do século XX, que se assemelhavam mais a obras literárias do
que científicas ou filosóficas. O fenômeno das massas certamente não é novo na
história. Alguns dos registros históricos mais importantes registram que em certos
períodos foi necessária a coordenação da força de centenas ou milhares de homens
para a construção de monumentos, muralhas e cidades na Antiguidade. A associação
de centenas ou milhares de homens já constituía então o que primariamente se
convencionou designar por massa, nesses casos geralmente pacíficas.
Apesar de as existência desde nossa pré-história, com episódios nem sempre pacíficos,
até o século XVIII as massas chamaram pouca atenção dos estudiosos. Foi somente no
final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que as massas,
principalmente na forma de protestos, chamaram atenção sobre si e tornaram-se objeto
de reflexão e de teorização, nem sempre científicas. O irromper das massas durante o
século XIX introduziu elementos perturbadores na vida social, visíveis nas primeiras
obras, que traziam uma análise das massas sob os pontos de vista jurídico, criminal e
patológico.
Essa análise era influenciada pelas teses de Lombroso, cuja teoria sobre a origem da
criminalidade tinha grande aceitação da época. Essencialmente propunha a existência
de predisposições hereditárias que se manifestariam sob a forma de tendências para a
ação criminosa.
A inquietação natural produzida pelo surgimento do fenômeno das massas
desencadeou várias tentativas de defini-la.
Moscovici aponta pelo menos três tendências definidoras. Em uma delas as multidões
eram compostas de criminosos, homens irados e destrutivos. Outra concebia as
multidões como a expressão coletiva da loucura. A última considerava as massas como
sendo constituídas predominantemente de indivíduos colocados à margem da
sociedade, portanto de indivíduos associais, que lutavam contra e ameaçavam as
instituições.
Le Bom preocupou-se principalmente com as transformações individuais que ocorrem
na situação de multidão, não estabelecendo, aparentemente, discriminação de classe,
por considerar que qualquer indivíduo, por mais preparado que fosse, ao entrar numa
situação de massa ficaria fora do controle. Em função das características indicadas,
não havia a possibilidade de as massas estabelecerem seus próprios objetivos,
necessitando de um líder externo que as dirigisse, obviamente um líder oriundo das
elites.
Na análise de Tarde pode-se identificar uma valorização positiva exagerada do
indivíduo e das ações individuais, em oposição à extrema negatividade imposta às
multidões. Destituía de importância as possíveis idéias inerentes aos movimentos de
massa em direção a uma sociedade melhor ou um novo mundo. As multidões que se
originam, de acordo com Tarde, nas hordas, encontram prazer na destruição e são
inferiores em inteligência e moralidade. Mesmo movimentos com caráter nitidamente
político, como o anarquismo, eram compostos, de acordo com ele, por um amontoado
de malfeitores, apesar da existência de evidências em contrário que, naturalmente, são
analisadas como exceções.
Segundo Tarde, as multidões, apesar de seu intrínseco potencial de violência, eram
consideradas vulneráveis à ação das forças repressivas pois diante de sua ação logo
se dispersavam.
Embora se encontre algumas variações quando à concepção do homem-massa e ao
caráter de submissão ou não das massas entre esses autores do final do século XIX, o
núcleo central das idéias explicitadas é o mesmo, ou seja, o combate político das idéias
socialistas.
As idéias vigentes à época de Ortega y Gasset se refletem em algumas de suas
afirmações sobre as massas, a maior parte delas carregadas de características
negativas: as massas são indóceis, pouco inteligentes, não possuem limites para os
seus desejos, buscando apenas usufruir dos benefícios da civilização, exigindo tais
benefícios como direitos naturais. A forma de ação das massas, a ação direta e
violenta, de casual e infrequente torna-se normal, institucionalizando a ação direta
como norma reconhecida.
De acordo com essa obra – que também é uma oposição clara às idéias socialistas,
que se fortaleciam principalmente entre as classes trabalhadores, e em favor do
liberalismo – os homens comuns não estavam preparados para ascender a cargos
políticos de direção. A grande massa estaria apenas preocupada com o consumo
desenfreado de bens produzidos pela sociedade, não tendo se preparado para a
tomada de decisões políticas que afetam a totalidade social.
Os membros das elites, ilustrados e bem preparados, é que estariam destinados a
comandar a contento os destinos da sociedade, e não os indivíduos comuns que,
indóceis e indomáveis, se recusavam a obedecer aos membros das elites políticas.
A constante referência a características socialmente indesejáveis das massas
(patologias, loucura, criminosos, associais, etc.), objetivaram desqualificar aqueles que
compunham os movimentos de massa destituindo-os de importância social e política.
Só no final do século XX que começou a aparecer a existência de diferentes modos de
analisar as multidões e seus líderes, os quais se encontram na dependência da
situação de classe.
Entretanto, as críticas formuladas à maneira como os movimentos de massa foram
analisadas na passagem para o século XX não foram suficientes para mudar o enfoque
a eles dirigidos. Hoje tais movimentos, na forma de protestos populares de variado tipo,
não são analisados de maneira muito diferente pelas autoridades constituídas. A versão
oficial sobre ocorrências recentes de quebra-quebras e saques aponta geralmente para
a existência de uma massa de ignorantes liderada por malfeitores e arruaceiros de
tendências ou facções radicais de partidos, excluindo a possibilidade de serem
realização de integrantes das classes trabalhadoras, e demonstrando a insistente
permanência da visão tradicional que enfatiza supostas características irracionais e/ou
criminosas. Dadas a negatividade destas características e sua distância da realidade,
seria de se esperar que o enfoque tradicional sobre as massas fosse ultrapassado por
enfoques mais realistas.
As transformações sociais e políticas operadas durante um século foram insuficientes
para suprimir as multidões da história. A idéia de que as formas espontâneas de
multidão ou protesto seriam naturalmente substituídas por formas artificiais e
organizadas e melhores, na forma de partidos ou sindicatos não se concretizou. De
maneira intermitente, as multidões marcam presença nas sociedades contemporâneas
demonstrando sua força através da ação direta.
Algumas proposições de alguns historiadores contribuíram de modo significativo para a
destruição de algumas idéias sobre as multidões, presentes nos escritos iniciais sobre a
temática. Vários foram os mitos questionados pelos seus estudos: o prazer de provocar
tumultos, considerado intrínseco às multidões, a ausência de crenças/ideologias, a
criminalização e /ou patologização de seus componentes, a sede de sangue e a
preferência por ações violentas e, por último, a necessidade de uma liderança externa,
cuja origem preferencialmente seria a elite.
As turbas geralmente eram constituídas pelo povo pobre, usualmente designado por “o
povinho”, trabalhadores originários de bairros densos e antigos, que se manifestavam,
não pelo “prazer de provocar tumultos”, mas porque pretendiam com isso conseguir
alguma mudança, geralmente econômica. Nesse sentido, as turbas não eram
constituídas de um aglomerado casual de pessoas, e muito menos pela escória social,
como bandidos, prostitutas e lupemproletariado. A associação entre crime e revolta era
esporádica e não constante como algumas abordagens procuram demonstrar.
Outro aspecto contido na abordagem tradicional sobre as multidões e que é
questionado é a forma de ação. Embora o modo de ação das multidões pré-industriais
fosse a ação direta e violenta, em alguns casos com ataques armados e barricadas,
havia outras formas, pacíficas, de manifestação que, no entanto, não deixavam de
impressionar e alarmar as autoridades. As manifestações súbitas e violentas tendiam,
em função de circunstância da época, a ser mais eficazes do que as de longa duração
e, portanto, se fortaleciam. A “(...) famosa “sede de sangue” da multidão é uma lenda,
baseada nuns poucos incidentes cuidadosamente escolhidos (...)” (Rude, 1991:274),
quer serviram de fundamento para as clássicas teorizações sobre as multidões.
Existem indicadores de que os confrontos da época resultaram, geralmente, em mais
mortes do lado dos insurgentes e amotinados, revelando que a ação violenta não partia
caracteristicamente do povo.
Os movimentos tradicionais possuíam como fundamento de suas lutas a exploração
econômica. Sua expressão política se dava através dos partidos políticos,
especialmente os operários ou de esquerda, que tinham como doutrina filosófica o
marxismo-leninismo. Os novos movimentos sociais, ao contrário, não se fundam
apenas sobre reivindicações econômicas e uma de suas características mais
marcantes é o afastamento dos partidos, abrindo espaço para propostas de autogestão.
Os conflitos situados no setor do trabalho deslocaram-se para as coletividades e,
embora não tenham desaparecido completamente, deixaram de ocupar o papel central.
A oposição passou a ser conduzida por grupos cada vez mais abrangentes,
descaracterizando-se como oposição genuinamente operária. Como exemplos de
movimentos desse tipo, podemos indicar os de negros, homossexuais, mulheres,
ecológicos, entre outros.
O surgimento de novas áreas de conflito nas sociedades capitalistas pós-industriais,
cuja característica é a integração das estruturas políticas, econômicas e culturais. “Os
conflitos sociais saem do tradicional sistema econômico-industrial para as áreas
culturais: eles afetam a identidade pessoal, o tempo e o espaço na vida cotidiana, a
motivação e os padrões culturais da ação individual” (Mellucci, 1989:58), sendo os
atores sociais não mais definidos pela casse social na medida em que os conflitos são
necessariamente ampliados.

- SOUZA, L. O linchamento sob uma perspectiva psicossocial: identidade social e


representação de justiça. In: CAMINO, L., MENANDRO, P. R. M. (Orgs.). A sociedade
na perspectiva da psicologia: questões teóricas e metodológicas. Coletâneas ANPEPP
(13), Rio de Janeiro: ANPEPP, 1996, p. 47-69.

O LINCHAMENTO SOB UMA PERSPECTIVA PSICOSSOCIAL: IDENTIDADE


SOCIAL E REPRESENTAÇÃO DE JUSTIÇA

Alguns fenômenos importantes da realidade brasileira têm sido historicamente


negligenciados pela psicologia social, tendo sido tomados como objeto relevante de
estudo apenas em meados da década de 80. Uma destas categorias de fenômenos
refere-se aos movimentos sociais e ações coletivas. Só recentemente têm surgido
trabalhos com enfoque sócio-psicológico e, dada sua recenticidade, não é
surpreendente que as explicações e testes teóricos sejam ainda tateantes, algumas
vezes buscando articulações aparentemente incompatíveis.
No interior desta categoria de ocorrências freqüentemente encontraremos mobilizações
tão díspares como a luta contra o desemprego, em que há uma tentativa pacífica de
organização e institucionalização das reivindicações, e os quebra-quebras e
linchamentos, em que o confronto se estabelece através de uma violência direta e
imediata.
A análise apressada das ocorrências, principalmente as do segundo tipo mencionado,
tem levado a uma série de equívocos. Apesar dessas teorias equivocadas terem sido
editadas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, em
condições bastante diferenciadas das que estamos vivendo neste final de século, as
“explicações” pseudo-científicas ali cristalizadas, construídas basicamente através de
observações cotidianas, continuam circulando, atendendo a propósitos claramente
ideológicos.
É dominante naquelas análises sobre comportamento das massas, a atribuição de
características negativas que visaram desde sempre destituir as mobilizações de seu
caráter político, atribuindo-as ora a um estado patológico, ora a um estado criminal. A
ênfase na mobilização coletiva através da emoção em oposição a suposta
racionalidade presente no comportamento individual, e a ênfase na ação violenta como
ação característica das massas só poderiam culminar na sua classificação como
essencialmente composta por criminosos. A associação com patologias foi também
inevitável.
Uma análise sobre linchamentos também foi feita segundo essa tradição.
Ressuscitando a antiga visão sobre as massas e analisando o comportamento de
potenciais linchadores em uma ocorrência no campo de concentração, estes são
chamados de irracionais e decorrentes de “psicose coletiva transitória”. Curiosamente,
no relato do caso analisado, o linchamento foi impedido pelo surgimento de um líder
externo, que foi considerado como sendo uma pessoa bem integrada, acentuadamente
livre de sintomas neuróticos e acostumado ao papel de líder em sua ocupação.
Trabalhos desenvolvidos recentemente no Brasil demonstram a existência de
lideranças genuínas e de objetivos claros no movimento, bem como seu crescente grau
de organização e sua vinculação à rede de poder das localidades onde os linchamentos
ocorrem.
Nestes estudos prefere-se analisar tais fenômenos na esfera da cidadania e, portanto,
dos direitos, e encará-los usualmente como estratégias de protesto e de confronto com
o judiciário. Inserir os linchamentos em tal esfera pode ser fundamental para resgatar o
seu pleno sentido político. Uma característica relevante de tais estudos está
relacionada à ênfase dada ao conhecimento de variáveis psicológicas que, queiramos
ou não, sempre estarão implicadas na participação individual em situações de conflito
inter-grupal.
Considerando a necessidade de fornecer elementos para melhor compreensão dos
linchamentos que ocorrem no Brasil, o presente trabalho objetivou identificar as
representações sociais de justiça presentes em moradores de uma comunidade onde
ocorreu um linchamento organizado.
Objetivando ultrapassar as possíveis limitações inerentes a um estudo que tivesse
como base exclusiva notícias jornalísticas, optamos por uma estratégia que
possibilidade uma cobertura mais profunda do fenômeno: o Estudo de Caso. Somente
um estudo em profundidade, no cotidiano da comunidade onde o linchamento ocorreu,
poderia revelar parte da tessitura subjetiva ali presente e o seu sentido político-
pedagógico. A revelação das condições em que ocorreu – os motivos, as redes de
relações que se estabeleceram entre os participantes, a representação de justiça
subjacente, a delimitação de ingroups e outgroups, os estereótipos e crenças
compartilhados, as estratégias de ação, etc. – podem certamente nos proporcionar, no
mínimo, julgamentos com maior significação científica.
A escolha do caso recaiu numa ocorrência que aconteceu no início de 1990, em uma
pequena cidade do interior de um estado, cujo principal motivo desencadeador foi o
assassinato de um taxista bastante conhecido e respeitado na localidade.
Foram feitas análises dos processos judiciais, dos registros de inquérito instaurados na
Delegacia de Polícia local, das notícias e reportagens jornalísticas sobre o caso,
entrevistas com os moradores, entre outros.
As entrevistas continham quatro núcleos básicos: a) sobre a cidade: opinião geral sobre
a cidade e seus moradores, sobre criminalidade e as razões para os crimes que ali
ocorreram, etc.; b) sobre o assassinato do taxista: opinião sobre o assassinato, sobre o
efeito produzido pelo assassinato na comunidade, características do taxista em relação
à comunidade; c) sobre o linchamento: opinião sobre as razões para a ocorrência do
linchamento, comentários que circularam na cidade antes e depois do linchamento,
avaliação que se faz sobre a ocorrência, entre outros; d) sobre justiça: percepções e
crenças sobre justiça, avaliação que faz do funcionamento do aparelho judiciário, etc.
Síntese dos principais resultados
- A representação que os moradores possuem sobre o linchamento e suas
conseqüências, bem como em relação ao comportamento dos linchadores, estão
ancorados nas representações que possuem sobre justiça enquanto princípio abstrato,
nas crenças sobre a possibilidade concreta de se aplicar de maneira justa as regras
presentes nos códigos legais e na avaliação que faz sobre o funcionamento do
judiciário.
- Embora tenha sido predominante a representação de justiça enquanto aplicação da lei
aos que cometeram “mal feitos”, a crença de que não é possível fazer justiça baseia-se
no conhecimento derivado de casos concretos onde, na maior parte das vezes, os
preceitos legais não são aplicados adequadamente.
- O judiciário é visto principalmente como um instrumento a serviço do poder político e
econômico. Aqueles que possuem poder econômico conseguem se esquivar das
punições previstas nos códigos legais, seja através da contratação de bons advogados
de defesa, hábeis na produção de provas atenuantes, seja através do suborno direto de
membros do júri. Alguns outros elementos que compõem a representação são a
morosidade na conclusão de processos, a aplicação de penas brandas para crimes
considerados hediondos e a facilidade em obter o abrandamento de penas e a
liberdade. É inevitável a associação entre aparelho judiciário e corrupção.
- Apesar da predominância da associação do poder judiciário com interesses
econômicos e de classe, parte dos entrevistados reafirmou a importância de se
acreditar que a justiça possa ser aplicada conforme as prescrições dos códigos legais.
- Considerando-se a hipótese de envolvimento futuro em uma situação de conflito onde
fosse necessária a intervenção de autoridades policiais ou judiciárias, enquanto uma
parte dos entrevistados mostrou-se predisposta a procurar tais serviços, a maior parte
deles preferia resolver de outra maneira, apenas procurando o judiciário em último caso
ou quando o prejuízo fosse grande.
- A maioria dos moradores entrevistados manifestou dúvidas quanto à punição dos
linchadores. Alguns deles, no entanto, manifestaram a certeza de que a punição não
ocorrerá, demonstrando inclusive o conhecimento das dificuldades legais em se punir
“crimes de multidão”. Outros ainda manifestaram-se contrários à punição dos suspeitos
de participação no linchamento por medo de represália ou de revolta, ou ainda porque
seria pouco eficaz.
- Os moradores entrevistados, mesmo tendo conhecimento sobre os principais
articuladores e participantes, pois isso é público, não se dispõem a fazer denúncia ou
testemunhar contra eles, muitas vezes se esquivando porque não viram direito quem de
fato estava participando, ou porque concordam com o linchamento, ou ainda porque
numa multidão é muito difícil saber quem foi que participou de fato e quem apenas
assistiu.
- Sobre a predisposição individual em participar de um linchamento, parte dos
entrevistados acredita que não participaria de um linchamento por não ter coragem
suficiente para isso, enquanto outros indicaram uma predisposição a participar caso
alguém de sua família fosse vítima de violência.
- O conhecimento de casos concretos, onde o princípio de justiça não é aplicado
corretamente, de acordo com a visão dos entrevistados, torna possível o
estabelecimento de uma vinculação entre o judiciário e o poder político-econômico e
interesses de classe. A avaliação que os moradores fazem é que a justiça só existe
para o pobre, certamente no sentido de que o pobre é que está mais sujeito à aplicação
das penalidades. As leis como garantias de direitos não estão em pauta quando se
discute o princípio de justiça. Esta representação não impede, no entanto, a existência
de uma posição favorável a um rigor maior da lei.
- A representação de justiça é bastante flexível e os elementos nela contidos são
aparentemente contraditórios e dependentes das circunstâncias. Para que se julgue
que houve justiça concorrem não apenas o princípio de reparação do dano e o dano
propriamente dito. Destacam-se como muito importantes, e talvez até principais, as
características das vítimas e dos autores.
- Do ponto de vista dos entrevistados não parece ser difícil acomodar um princípio geral
fundado no direito à vida com uma posição favorável ao linchamento, ou à pena de
morte, e ainda com uma previsão de participação caso um familiar seu fosse vítima de
atos violentos. Do mesmo modo pode-se encontrar uma ligação entre a defesa
veemente da aplicação da lei a todos, e não apenas aos pobres, e a defesa, também
veemente, de que em um caso específico a referida lei não deveria ser aplicada. Entre
uma concepção de que o linchamento é uma ocorrência “bárbara” e lamentável, tanto
do ponto de vista legal como humano, e uma percepção que acentua seus aspectos
positivos. Entre a descrença no aparelho judiciário e a tendência a recorrer a seus
serviços quando necessário, mesmo que exclusivamente em casos graves.
- Poucos foram os moradores que exteriorizaram uma representação exclusivamente
positiva do linchamento. A situação de entrevista, que implica interação face-a-face,
pode ter colocado certos limites à livre expressão das representações que os
moradores possuem em relação a uma ocorrência deste tipo. No entanto, o apoio dado
à ocorrência e as justificações apresentadas para o comportamento dos participantes,
permitem extrairmos a conclusão de que houve aprovação generalizada. Aprovação
esta decorrente de uma representação retributiva, cujo substrato lógico é a idéia de
equivalência absoluta entre os delitos e as penas.

Conclusões
Um evento como o linchamento, representado como negativo, possui também aspectos
positivos, apresentando flutuações contraditórias entre os seus elementos.
A representação negativa do linchamento não corresponde, como seria esperado, uma
alta expectativa de punição aos participantes e uma predisposição dos moradores em
denunciá-los ou testemunhar contra eles. Alguns inclusive manifestam uma posição
favorável a que punições não venham a ocorrer. Não encontramos correspondência
ainda entre as representações e o apoio que a comunidade deu aos participantes do
linchamento, manifestado em comentários cujo conteúdo visou minimizar sua
participação ou apresentar justificações para isso ter ocorrido.
A representação de justiça enquanto “aplicação da lei” não encontra correspondência
no tratamento que parte da comunidade deu aos suspeitos do assassinato, permitindo
que fossem executados “à margem da lei” em frente ao fórum local, à frente de juízes e
promotores, e quem sabe, de outras autoridades. Esta constatação demonstra que a
representação não age isoladamente, encontrando-se freqüentemente associada a
outras representações, como por exemplo, aquelas relacionadas ao crime cometido e
aos seus autores.
Alguns autores têm indicado a existência de um processo que promove a justificação da
violência cometida contra determinados grupos sociais. A violência cometida não é uma
ação reprovável em si mesma, a reprovação depende diretamente de quem (ou que
grupo) ela atingirá e de se considerar sua fonte legítima. É neste sentido que as classes
populares, apesar de vulneráveis tanto aos atos arbitrários da polícia quanto de
bandidos, tendem a ver como legítimas apenas as ações dos primeiros.
Se o grupo sujeito à violência é representado como sendo constituído de outsiders a
legitimação e a conseqüente justificação ocorrem quase que automaticamente. Ao
invadir a penitenciária do Carandiru, em São Paulo, a ação policial conseguiu apoio de
parte significativa da população porque o massacre foi cometido contra presos, um
grupo que, por si só, justificaria qualquer tipo de violência. É também sobre esse
enfoque que são discutidas as dificuldades que se apresentam para o fortalecimento da
campanha pelos direitos humanos, freqüentemente associada aos direitos de bandidos.
O caso analisado explicitou uma identidade que é compartilhada pelos moradores.
Segundo Tajfel, identidade social refere-se ao sentimento de pertencimento: “(...) o
conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente
com o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser
definidos através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social de
um indivíduo no seu próprio grupo e em outros” (1983:294).
O que identifica os moradores, objetiva e subjetivamente, é o fato de serem moradores
– muitos deles desde o nascimento – de uma determinada localidade. Esta noção
compartilhada de pertencimento, adquirida no processo de desenvolvimento de cada
um de seus moradores, fornce por sua vez uma série de critérios de julgamento e uma
visão específica sobre a realidade social.
Verificamos que a cidade é representada positivamente pelos moradores entrevistados.
Quando falam sobre a cidade, ressaltam, na maior parte das vezes, os seus aspectos
positivos. Os municípios próximos, no entanto, são representados negativamente,
caracterizando o processo de categorização social, evidenciando a existência de in e
outgroups e, portanto, de categorias sociais avaliadas de maneira diferenciada.
Outro aspecto que coloca em evidência este processo de preservar a identidade
positiva do ingroup refere-se à avaliação que os entrevistados fazem sobre a evolução
da criminalidade no local. Embora identifiquem um aumento no número de crimes
cometidos na localidade, alguns atribuem a autoria a “gente de fora”, de “outras
cidades” ou de “outros estados”. O levantamento realizado na delegacia local, no
entanto, evidenciou que os autores são moradores da localidade e predominantemente
trabalhadores rurais, indicando os limites psicológicos relativos aos in e outgroups.
O taxista assassinado era membro do ingroup e os moradores ressaltaram apenas as
suas qualidades, através de adjetivações positivas. Ao mesmo tempo, verificamos
também que acentuaram as atrocidades cometidas contra ele por membros de um
outgroup. Desnecessário dizer que as características de brutalidade do assassino
foram, pelo processo natural de acentuação das diferentes, imputadas aos seus
supostos autores.
No processo de organização do movimento, o grupo que participou do linchamento
acabou se constituindo em um outgroup. Evidência em favor dessa análise é que
quando se tratou de analisar o linchamento os entrevistados consideraram os principais
participantes como um grupo à aparte, diferente dos outros moradores do local. Não
foram “os moradores” da localidade que lincharam, foi apenas um pequeno grupo, que
se diferenciou por possuir características incompatíveis com as da “gente boa” do lugar.
O que não podemos deixar de enfatizar é que a identidade, tanto dos moradores quanto
dos linchadores, é socialmente compartilhada. É este compartilhamento que explica,
pelo menos em parte, a avaliação positiva que os moradores fazem dos linchadores em
determinados momentos. São considerados honestos, trabalhadores, responsáveis e
são respeitados pelos moradores. O fato de terem participado do linchamento parece
ser considerado circunstancial e não faltaram razões para isso. Mas naquela situação,
apesar de serem moradores, eles procuraram se diferenciar dos “outros” moradores do
local.
A vida não é um valor universal, como valor ele encontra-se na dependência de quem é
o possuidor da vida. A vida de um bandido de “dentro” tem um valor diferente daquela
do “de fora”, do mesmo modo que a vida de um morador tem valor maior do que a de
um estranho e, maior ainda, que a de um “bandido estranho”.
O pouco valor dado à vida das vítimas dos linchamentos, bem como a solidariedade e o
apoio dado aos linchadores nas mais diferentes formas, decorrem das afiliações
grupais e identidades sociais em confronto em situações de conflito intergrupal. A
desumanização das vítimas em confronto com as características da “gente boa” do
local só pode ter a função de justificação para ações socialmente condenáveis. A
despersonalizaão e a desumanização de membros de determinados grupos,
infelizmente, não é um fenômeno raro. Os exemplos históricos de conflitos bélicos e
perseguições onde tais processos estiveram, e estão presentes, são certamente
inumeráveis.
A análise sobre os linchamentos norte-americanos, em que predominaram os motivos
relacionados ao rompimento de tabus sexuais raciais, é um claro exemplo de conflito
intergrupal, onde se pode identificar o embate entre identidades antagônicas e o
processo de acentuação das diferenças mencionadas.
Enfim, as exigências impostas pela necessidade de convivência cotidiana com os
linchadores produziram acomodações que, embora possam ser percebidas como
ilógicas ou contraditórias, são elementos fundamentais para o restabelecimento das
condições mínimas para a “boa convivência” entre os pacatos moradores da localidade
e os participantes do linchamento. Contraditoriamente isto pode significar, a longo
prazo, o submetimento a uma ordenação de poder que nada tem a ver com relações
civilizadas e a conseqüente realimentação de uma cultura, que hoje observamos no
Brasil, onde o extermínio de determinados outgroups é justificado sob os mais
diferentes argumentos.

- GUARESCHI, N. M. F., WEBER, A., COMUNELLO, L. M., NARDINI, M. Discussões


sobre violência: trabalhando a produção de sentido. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19
(1), 122-130, 2006.

DISCUSSÕES SOBRE VIOLÊNCIA: TRABALHANDO A PRODUÇÃO DE SENTIDO


Pode-se dizer que a violência, em suas manifestações plurais na sociedade
contemporânea, é constituída a partir de uma perspectiva individualista. Wieviorka
(1997) apresenta duas faces complementares e, eventualmente opostas, do
individualismo. Por um lado, o indivíduo quer participar da modernidade, do que ela
oferece, de seus fluxos de consumo, de seus meios de comunicação e das demandas
de um consumo de massa cujo espetáculo está globalizado; por outro, quer ser
reconhecido como sujeito, construir sua existência e não ser tão dependente de papéis
e funções. Produzir e não somente reproduzir-se (Wieviorka, 1997).
Essas duas facetas mantêm, hoje, uma estreita relação com a violência. Podemos
pensar nos atores das violências instrumentais, aqueles que se engajam em
motivações econômicas, querendo o dinheiro para consumir e comprar para si ou para
os seus. E, em um outro modo bem distinto, a violência pode assumir, também, um
caráter ilimitado, não-instrumental, relacionado a um desejo frustrado de aceder aos
frutos da modernidade.
Assim, a violência traz a marca de uma subjetividade arrebentada, esmagada,
frustrada. O ator que não pode existir enquanto tal é a voz do sujeito não-reconhecido,
prisioneiro da massa. Nessa perspectiva, ''a violência é suscetível de emergir na
interação ou no choque das subjetividades negadas ou destruídas'' (Wieviorka, 1997).
Para problematizar a violência no âmbito das Políticas Sociais, mais precisamente as
formas de intervenções que buscam combatê-la, consideramos necessário utilizar
algumas perspectivas de autores que discutem a violência nesta área. Abramovay et al.
(2002) citam, pelo menos, três dessas perspectivas. A primeira se refere à violência
direta, relacionada aos atos físicos resultantes, com prejuízo deliberado, ou seja,
quando alguém sofre algum tipo de dano físico, a partir de um contato corporal. A
segunda diz respeito à violência indireta, que envolve todos os tipos de ação coercitiva
ou agressiva, resultando em prejuízo psicológico ou emocional, quando, por exemplo, o
sujeito é destituído de possibilidades de reação. Por fim, a violência simbólica, relações
de poder que se estabelecem por meio de instituições, cerceando a ''livre ação,
pensamento e consciência dos indivíduos''.
A partir desse percurso da produção de conhecimento acerca da violência, entende-se
a violência sob o ponto de vista de um contexto social, cultural e político. Essas
articulações têm particular relevância na forma como entendemos as identidades, como
fluidas, descontínuas e constituídas pelas diferenças e pelas relações de poder, em
redes discursivas, as quais constituem saberes que podem objetivar formas de
violência e de ser violento.
Para tanto, buscamos compreender como esses homens, situados em um contexto
cultural e social particular, produzem sentidos relacionados à violência que passam a
subjetivá-los e a constituir suas identidades.
Trabalhamos com a noção de identidades, constituídas nos jogos de saberes e poderes
que se estabelecem entre diferentes marcadores identitários: raça, classe, sexualidade,
gênero. As identidades não podem ser pensadas fora dos sistemas de significação nos
quais adquirem sentido e nem podem ser pensadas como estáveis.
Sobre o Contexto da Pesquisa e da Metodologia
Para desenvolvermos esta pesquisa, integramo-nos a uma ONG que trabalha
instituindo propostas eficazes, inibidoras e interventivas de fatores desencadeantes da
violência. Uma das atividades desta ONG, que atua na região metropolitana do Estado
do Rio Grande do Sul, é o grupo denominado ''Agressores Anônimos'', do qual
participamos durante mais de dois anos na condição de observadores participantes.
Segundo a proposta desta organização, os procedimentos de intervenção grupal visam
a prevenção da violência, sendo entendidos como condição de possibilidade para a
diminuição das situações de risco e da reincidência da agressão.
Os participantes que compunham os grupos de discussão foram encaminhados,
inicialmente, pelo Sistema Judiciário, advindos do Fórum, do Conselho Tutelar ou,
ainda, da Delegacia de Polícia da Região, devido a queixas sobre algum envolvimento
em situação de agressão e/ou risco. Os participantes, em geral, são moradores de
comunidades carentes, de baixa renda, com baixo nível de instrução devido a
dificuldades de acesso à escola1, convivem em condições precárias, em relação à
moradia, ao trabalho (ou falta deste), à falta de recursos ou possibilidades para o lazer.
Alguns deles estão desempregados, outros são autônomos, carpinteiros, metalúrgicos,
etc. Esse contexto, atravessado por diversos vetores sociais, culturais, econômicos e
políticos, remete a uma situação de desigualdade e desvantagem na articulação de
recursos materiais e simbólicos no que diz respeito à possibilidade de mobilidade
social.
As Relações Familiares...
A violência é associada a diversos vetores que, constantemente, se interpelam nos
discursos desses sujeitos, sendo, assim, objetivada de várias maneiras, desde uma
forma de cuidado através da repreensão de atos considerados errados, até uma
maneira de buscar o diálogo e novos modos de ser e pensar. Nesse sentido, a família é
referenciada em modelos tradicionais, nos quais as figuras parentais têm papéis
definidos na manutenção de determinadas relações, por exemplo nas relações de
respeito e autoridade.
No contexto das relações familiares, os atos de agressão são, por vezes, associados
como formas de cuidado, objetivando atos violentos como uma forma de expressar
carinho e cuidado, pois, a agressão, aqui, é tida como prevenção e correção do que se
considera certo ou errado em relação a determinadas práticas. Esta questão acerca das
relações na família, que envolvem carinho e respeito, também está associada à
importância dos modelos a serem seguidos.
Em geral, os discursos que constituem as Políticas Sociais vêm ao encontro de
algumas práticas da Psicologia que objetivam a questão da agressão e da violência
como algo do indivíduo, de sua essência, procurando explicá-las através de traços de
personalidade e de diagnósticos clínicos. Em outros casos, procura-se localizar a
violência no espaço das relações familiares. Assim, este saber trata o indivíduo como
dissociado de seu contexto social, cultural e político, legitimando o que pertence à
esfera pública e o que pertence à esfera privada. Passa, assim, não só a adotar e a
trabalhar somente dentro de uma perspectiva, de uma lógica do privado mas,
sobretudo, a compreender o sujeito, ou melhor, tudo aquilo que é do sujeito e que este
apresenta e produz, como tendo sua origem no privado, no individual, no familiar. Ao
encerrarmos a violência em um espaço doméstico, familiar, privado, retira-se seu
caráter político-social, encarcerando-a em um ''terreno facilmente psicologizante,
familiarizante, intimizante'', sendo um direito de todo cidadão – independente de
hierarquia social, gênero, raça, etc, até mesmo da forma de violência sofrida – ser
atendido pelo Estado (Coimbra, 2002, p.82).
Ainda no espaço familiar, a violência é associada à destituição, às diversas
impossibilidades existentes. Estes aspectos aparecem quando homens choram ao falar
sobre filhos e filhas, embora tenham sido afastados deles e delas por tê-los agredido.
Essas situações os colocam diante do Judiciário, em processos de destituição da
guarda dos filhos, por causa da prática de atos considerados agressivos.
Desta forma, a busca do diálogo é compreendido como uma estratégia possível de
reverter processos de acusação, à medida que os sujeitos se mostram disponíveis a
conversar, explicar e justificar seus atos. Algumas falas postulam que ''bater não
resolve nada dentro de casa'', mas que quando sofrem tentativas de destituição de voz
(Ex.: quando a mulher lhes manda ''calar a boca'') acabam partindo para a agressão:
''me sinto um lixo'', pois ''continua a última palavra sendo dela..''. Assim, a destituição da
palavra acaba por gerar atos violentos, assim como o desconforto causado pela
impossibilidade de escuta: ''Ninguém me escuta'' - que aparece relacionado a um
sentimento de desvalorização. Porém, cabe, aqui, um questionamento: será que essa
destituição de palavra é feita só pela sua mulher? Ou será que é somente contra ela
que ele pode reagir assim? Essa destituição ocorre num âmbito muito maior (Ex.:
destituição de cidadania) e envolve questões propriamente sociais e políticas mais do
que familiares.
Outra situação que emerge dos discursos dos participantes se refere à falta de recursos
devido à baixa renda. Esta é associada às relações familiares e à questão das relações
de gênero, pois, na maioria dos casos, o homem é visto como mantenedor dos recursos
financeiros da família: ''..porque, poxa vida, eu não posso, eu não fabrico dinheiro, eu
tenho que trabalhar pra ganhar dinheiro. Elas dizem 'Te vira', pô, peraí, por que vocês
também não se viram. Aí é pior né, quando eu peço alguma coisa pra elas, aí elas
acham ruim, quer dizer... eu não posso pedir e agredir de tudo que é forma, eu não
posso pedir nada...''.
A questão financeira também aparece juntamente com as cobranças que existem no
espaço da família. O aspecto de cobrança é visto como algo que torna o espaço familiar
um espaço de opressão. Assim, pode-se pensar que estes homens compreendem a
violência como algo que pertence ao espaço individual, intrafamiliar. Em momento
algum, eles a localizam no espaço público, isto é, eles não atribuem seus atos violentos
ao fato de estarem desempregados e terem poucas possibilidades de manter o
sustento de sua família, mas referem que agrediram por que o outro os provocou, e não
por toda destituição de poder e de ascensão social que se apresenta no espaço
público.
Apesar de muitas das pressões exercidas nessas famílias serem extrafamiliares, os
conflitos e os problemas são cristalizados como uma expressão exclusiva de tensão
familiar, um problema de relacionamento; ou algo que se refere unicamente à família ou
ao relacionamento afetivo. Essa via unívoca de significação da família como foco de
tensões que em si são extrafamiliares, acaba literalmente explodindo em atos violentos
contra os membros da mesma, agora identificados como irritantes e agravadores de
tensões.
O Diálogo (falta)...
No momento em que se parte de uma perspectiva essencialista e biológica para dar
conta da questão da violência, acaba-se por ignorar a diversidade de possibilidades de
expressão do sujeito, suas diferenças culturais, sociais, econômicas, sexuais,
geográficas, etc., engessando formas de ser e pensar. Pensar o ser humano através de
seus vetores existenciais complexos é um desafio que se nos impõe, pois lidar com a
alteridade, com a diferença ou com o outro nunca é uma tarefa fácil.
Na tentativa de contornar situações desagradáveis, o diálogo é enunciado como uma
possibilidade de resolução, sendo ao mesmo tempo objetivado como algo difícil e
complicado. Por mais que a maior parte das tentativas anteriores para o
estabelecimento de algum tipo de diálogo tenham sido frustradas, ainda permanece a
concepção do diálogo como possibilidade de resolução. O fato de o diálogo aparecer
configurado desta maneira mostra a influência do discurso''normalizante'' da Psicologia
sobre o senso comum. Pode-se, aqui, pensar sobre as influências que se refletem de
diversas formas, como nas novelas, programas de televisão, jornais populares, ...
Estas tentativas frustradas são ilustradas em falas como ''bota água em cima da
fogueira sempre'' (frente a uma tentativa de conversar), e ''tento conversar, mas dizem:
já tá puxando o saco''. Essas situações demonstram o quanto as tentativas de
estabelecer diálogos são tomadas como fracassadas.
Os discursos acerca do diálogo enunciam a dificuldade de os sujeitos resolverem seus
problemas através do diálogo e, por vezes, essa dificuldade é atribuída às
problemáticas conjugais.
A dificuldade que o diálogo representa acaba fazendo com que evitem estas situações,
o que proporciona um afastamento nas relações familiares. Nesse contexto, tensões e
conflitos se tornam condições de possibilidade para a ocorrência de atos violentos: ''Eu
não posso reclamar, muitas vezes eu tava errado... eu sempre achei que dava para
sentar e conversar... mas com ela não dá'', associando as relações familiares à falta de
controle.
As Agressões...
Conforme Almeida (2002, p.46), ''a violência no Brasil não existe como estado, mas
como processo, como produto de relações históricas''. Por isso, é necessário entender
as particularidades que tornam possíveis a emergência de determinadas formas de
violência e criminalidade, discutir o inventário hierarquizado da violência e o grau de
reprovação social que lhe é atribuído. A cultura da violência torna-se a base na qual se
constroem formas de sociabilidade dominantes na contemporaneidade, ou seja, existe
uma luta cotidiana na busca de diferentes modos de lidar e viver com a violência.
No discurso regulador da psicologia, comportamentos violentos são relacionados a uma
estruturação específica da personalidade: a estrutura perversa, que não se autoflagela
ou culpa por questionar e levar a cabo formas de subverter estruturas vigentes
''cegamente'' (ou seja, sem muitos propósitos políticos). Essas formas de subversão
são, muitas vezes, codificadas como comportamentos violentos, e entendidas como
inerentes ao indivíduo. O sujeito, com essa estruturação, é percebido como
essencialmente agressivo. Tais comportamentos para esse discurso normalizante, não
ocorrem por alguma insatisfação social, política ou econômica, mas, sim, por instâncias
internas que não se adaptaram à ''realidade'', um Édipo mal-resolvido, uma família
desestruturada, um ego demasiadamente narcísico. Ou seja, o que o indivíduo precisa
para não se produzir psiquicamente agressivo neste discurso é uma família nuclear
tipicamente burguesa, mesmo na favela.
O ato de agressão aparece relacionado a questões de autoridade quando a submissão
torna-se presente nas relações familiares: ''às vezes até baixo a cabeça para ela''.
Em geral, dificilmente os homens consideram-se agressores, embora alguém os
reconheça dessa forma, pois foram encaminhados ao grupo devido a uma queixa de
agressão: ''Eu não faço nada!''; ''Eu acho que eu errei, que eu até fui correto demais''.
Assim, atribuem valores para o que seja certo ou errado em seu cotidiano, para a
violência que, em alguns momentos, aparece banalizada. Ao mesmo tempo, a
delegacia, enquanto espaço de controle e normatividade, é vista como infame: ''Vir na
delegacia é um vexame para mim''. A violência, então, aparece colada a julgamentos de
valor e autoridade, pois praticar um ato violento pode ser entendido como exercer poder
sobre o outro.
As Drogas...
Determinadas práticas cotidianas são consideradas fatores estressantes que podem
levar ao ato de violência, por exemplo, a ausência de diálogo, a noção de justiça e a
falta de controle. Esta última aparece associada, principalmente, a situações que
consideram injustas e ao uso de drogas (maconha e bebidas alcoólicas). A respeito
disso, demonstram preocupação com o uso de drogas dentro da família, em função de
suas conseqüências como o afastamento nas relações familiares, ou prejuízos no
trabalho.
Estabelece-se uma relação entre a violência e a impossibilidade de controle em
situações de abuso de drogas. Ao emergir a temática das drogas, alguns dos
participantes que as usaram e que as significam dentro de discursos hegemônicos
sobre o mal da droga, falam o quanto o vício influencia em suas vidas e o quão difícil é
abandoná-lo. Ainda em relação ao fato de como significam esses discursos sobre as
drogas, os participantes relatam os meios que utilizam para não recair: ''tem que achar
alguma coisa pra fazer''. A bebida está, muitas vezes, associada ao uso de outras
substâncias como tranqüilizantes: ''tomava uma ou duas cervejas para conseguir
dormir'', vistas igualmente com estratégia para suportar o frio e as condições físicas no
trabalho. O uso é associado à inquietação, à impossibilidade de estar ''parado'': ''Eu não
consigo ficar dentro de casa vendo TV, quietinho...'', cuja solução encontrada é ir para o
bar beber.
Por vezes, alguns discursos enunciam as drogas como única fonte de prazer, quando
suas falas trazem que nenhuma atividade lhes é prazerosa sem o uso da bebida. Em
outro momento, enunciam o uso de álcool como uma prática do cotidiano, corriqueira,
que passou a se tornar rotina e que não se consegue mais ficar sem.
Considerações Finais
A participação desses homens nos grupos, que compreendemos como um espaço de
escuta, de troca, mais do que um processo de intervenção, propicia-lhes pensarem
sobre si mesmos e sobre as situações que vivenciam de modo diferenciado, produzindo
sentidos sobre as diferentes práticas que possibilitam significar cotidianos, advindos
dos discursos pelos quais são constantemente interpelados: ''onde foi que eu comecei
com o erro e onde é que eu posso acabar? É isso que eu queria saber''.
Esse espaço para a reflexão pode produzir mudanças na forma como os homens são
subjetivados pela agressão, no momento em que passam a ter a oportunidade de
significar os discursos que os colocam como homens agressores de diferentes
maneiras. Isso acontece quando se mostram dispostos à troca de experiências e à
participação de um espaço no qual possam pensar questões acerca da violência: ''Tudo
é bom para gente refletir...''.
Os homens produzem sentidos sobre violência que remetem aos discursos que
enunciam o ambiente familiar como algo muitas vezes estressante, opressor e, por
conta disso, o acontecimento dos atos agressivos são considerados um meio para
resolverem essas situações. Apesar do diálogo ter sido discutido como uma estratégia
passível de ser utilizada para contornar atos violentos, são reincidentes as tentativas
frustradas para estabelecê-lo. Muitas vezes, antes do ato agressivo, tentam parar,
respirar fundo, se controlar: ''... eu já tentei até contar até 10...''. Essas experiências de
vida reveladas nos encontros podem ser encaradas como possibilidades de os
participantes passarem a se subjetivar de outras formas, construindo outros modos de
ser e se pensar enquanto sujeitos e não só como homens agressores. Porém, ao
mesmo tempo em que possuem esta possibilidade, relatam ausência de perspectivas
futuras: ''ah... vai indo... por enquanto eu não tenho (projetos para o futuro)'', dizem que
pretendem, em algum momento de suas vidas, satisfazer suas realizações pessoais: ''O
meu objetivo sempre foi ter uma casinha, com os móveis novinhos, um carro na
garagem, e quando estivesse tudo certo, eu queria colocar uma mochila nas costas e
viajar...''.
Por fim, vemos o fato de esses homens, considerados agressores, terem um espaço
para refletirem sobre si mesmos – de uma forma que não ocorra discriminação e que
não sejam reconhecidos, nem por eles mesmos nem pelas práticas psicológicas e pelas
Políticas Sociais como possuidores de uma ''identidade agressiva'', nesse espaço
propiciado para problematizar as intervenções realizadas pelo Sistema Jurídico.
Enquanto se pensam, constituem-se performativamente em si e para si, e acabam
reterritorializando as interpelações dos discursos que os codificam como os
''exteriorizados'' (exteriores à normalidade e ao padrão), discursos que os essencializam
e os descontextualizam, enclausurando suas questões em terrenos mais deterministas
e familiaristas.

- RAMOS, S., MUSUMECI, L. A PM e as abordagens nas ruas da cidade. In: ______.


Elemento suspeito – abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005, p. 21-55.

A PM E AS ABORDAGENS NAS RUAS DA CIDADE

Policiamento Ostensivo: Normas e Ambigüidades


Para compreendera lógica e os procedimentos das abordagens policiais é necessário,
antes de mais nada, conhecer as modalidades de policiamento ostensivo previstas nas
atribuições da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
A atuação do policiamento ostensivo se divide em três grandes categorias: ordinário,
complementar e extraordinário, cada um deles podendo englobar uma ou mais
modalidades de intervenção policia.
O Policiamento Ostensivo Ordinário (POO) é aquele realizado rotineiramente pelas
unidades da PM que têm circunscrição territorial e pode ser motorizado, a pé, a cavalo,
ou fixo em cabines, destacamentos e outros, englobando também a patrulha normal do
trânsito.
O Policiamento Ostensivo Complementar (POC) envolve operações planejadas com o
propósito de dinamizar o policiamento ordinário, seja no aspecto preventivo ou
repressivo. As Operações de Ações Preventivas (A-Prev), consiste na intensificação da
presença policial em locais, dias ou horários críticos, visando não só desestimular a
prática de delitos como infundir uma sensação psicológica de segurança na população.
Também se incluem nessas operações a intensificação de orientação do trânsito
urbano (OpTran 1) em momentos especiais, como festas populares, manifestações de
rua, etc. Já o aspecto repressivo do POC é contemplado sobretudo pelas Operações de
Ação Repressiva (A-Rep), que por sua vez, podem ser de quatro tipos: vasculhamento
(A-Rep 1); busca e captura (A-Rep 2); revista (A-Rep 3); cerco (A-Rep 4).
Finalmente, o Policiamento Ostensivo Extraordinário (POE) diz respeito à manutenção
da ordem e da segurança em eventos especiais, jogos esportivos, visita de dignitários,
desfiles cívicos, etc.
As experiências de abordagens vividas pelos cidadãos e registradas nessa pesquisa
correspondem a diferentes tipos de estratégia de policiamento, ainda que as mais
freqüentes se relacionem às operações de ação repressiva 3 (A-Rep 3), as chamadas
blitzes de veículos particulares e coletivos (80% das experiências). 20% dos casos
foram pessoas paradas enquanto andavam a pé na rua.
Nas entrevistas realizadas com 18 policias militares de diferentes unidades, notava-se
certa hesitação ou ambigüidade na definição do objetivo principal das abordagens para
revista de veículo, alguns afirmando que era para aumentar a sensação de segurança
da população, enquanto outros falavam que era para apreender drogas e parar pessoas
suspeitas. Os locais, horários e duração das operações são definidos segundo uma
estratégia de ocupação de vias com maior incidência de crimes.
Além dos diferentes tipos de policiamento ostensivo, é fundamental considerar a
natureza e a qualidade dos contatos entre a polícia e a população, que varia muito não
só entre distintas situações de abordagem (em carro ou a pé, por exemplo), como entre
as áreas da cidade onde essas abordagens se realizam.
Pesquisa feita por Minayo et al. (1999), analisando um grupo focal com policiais civis,
identificou em torno dessa temática um discurso cheio de ambigüidades. Por um lado
os policiais manifestavam profunda hostilidade em relação aos jovens da Zona Sul (“se
você pega um garoto desses e leva pra delegacia, o pai chega lá com dois, três
advogados”, p. 178). Mas, por outro, vendo na violência o resultado de determinantes
sociais, como pobreza e desestruturação familiar, atribuíram aos jovens pobres das
favelas uma “índole” para o crime, o que os tornaria inimigos “naturais” da polícia.
Nessa nossa pesquisa, mais de um entrevistado negou existir tratamento pouco
cuidadoso nas favelas ou hostilidade da população às “entradas” da polícia nos morros.
Entretanto, a menção à favela como uma “área perigosa” ou “de risco” apareceu
numerosas vezes durante as entrevistas, bem como a idéia de que o trabalho de polícia
nessas áreas se caracterizam pelo “combate” aos traficantes de drogas. Um
entrevistado definiu em poucas palavras a premissa que nortearia a atuação da PM em
favelas:
“A diferença é que no morro todos são suspeitos. Até uma menina de 12 anos é
suspeita, pois nós vimos uma portanto um fuzil, mesmo sabendo que tem gente boa lá.”
(Praça de BPM da Zona Sul).
Isso nos remete a um outros aspecto fundamental das relações entre policiais e
cidadãos, examinado aqui do ângulo dos primeiros: que critérios, junto com ou além do
território de atuação, orientam a suspeita policial? Em outras palavras, quem é suspeito
para a polícia e por quê?
As entrevistas revelaram que, para um policial, talvez não haja pergunta mais difícil de
responder do que esta: “O que leva um policial a considerar uma pessoa suspeita?”.
Algumas falas ilustram a dificuldade:
“Vai depender muito da área. São tantos fatores, que não vale a pena enumerar,
porque um fator entra dentro do outro..” (Oficicial da BMP do subúrbio).
“Olha só: a abordagem é uma situação muito discutível porque a abordagem é uma
coisa subjetiva. Às vezes uma coisa pode ser suspeita pra mim, mas pode não ser
suspeita para outra pessoa, vai depender do ponto de vista. Por exemplo, quando se
faz uma abordagem dentro de um ônibus, quais são os elementos que vão levar a
pessoa a ser abordada? A pessoa que está olhando para fora do ônibus, está de
cabeça baixa, fingindo que está dormindo. Na rua, uma camisa grande pode estar
escondendo arma, é uma coisa que já vai chamando a atenção. Aquele policial que
está trabalhando no morro há muito tempo, ele tem mais condições de visualizar
aquilo.” (Oficial de BPM do Centro).
A metáfora do espelho (“a polícia como espelho da sociedade”) é acionada no plano
discursivo toda vez que o policial reconhece que as definições “elemento suspeito”
tendem a coincidir com estereótipos negativos relacionados à idade, gênero, classe
social, raça/cor e local de moradia, sendo a idéia do espelho particularmente cara a um
pensamento progressista dentro da polícia.
A referência à faixa etária – isolada ou combinada com outras variáveis – foi unânime
entre os policiais entrevistados. Sem exceção, todos admitiram que jovens do sexo
masculino, especialmente em grupo, chamam a atenção do policial.
“Depende do local onde está sendo realizada a abordagem. Por exemplo, se eu estou
fazendo uma abordagem dentro de uma comunidade carenta, eu já posso com
tranqüilidade começar a partir dos oito anos. Porque, a partir dos oito anos, eles estão
sendo utilizados...” (Oficial da BPM de subúrbio).
“Geralmente do sexo masculino, pessoas próximas ao local que existe comércio de
drogas. Por exemplo, 3:00 da madrugada, próximo ao morro do Juramento, parado ou
transitando com volume, com uma bolsa, é um suspeito em potencial para a gente. Se
for carro, principalmente se tiverem mais de três num carro. Se tiver um, relativamente
é menos suspeito. Carro novo. Carro novo chama bastante atenção. Ou táxi. Idade
jovial, faixa de 25 anos.” (Praça de BPM de subúrbio).
No esquadrinhamento dos traços que conformam candidatos à suspeita, revela-se que
há baixo índice de abordagem de mulheres e baixíssima freqüência de revistas em
caso de abordagem.
“A gente está até tentando colocar isso como mentalidade de trabalho, a revista aos
pertences da mulher. Não a revista à mulher em si, porque o nosso Código de Processo
Penal diz que a revista na mulher será feita preferencialmente por outra mulher, para
evitar constrangimento. Agora, nada impede que o policial faça a revista dos pertences,
se ele tiver uma fundada suspeita, mas ele não faz.” (Oficial de BPM de subúrbio).
“Veículo com mulheres, principalmente jovens, elas acham engraçado: “ah, meu Deus,
estou tomando uma dura”. “Bom dia, senhorita, queira desembarcar, desligar o veículo,
apresentar sua identidade, CNH...” “O que é CNH?” “Carteira Nacional de Habilitação.”
“O carro é do meu pai.” A gente revista o carro, pede desculpa, ela vai embora
satisfeita, sem problema nenhum.” (Oficial de BPM do subúrbio).
A difusão e a universalidade da norma segundo a qual “um policial não pode revistar
mulher” surpreende num contexto em que os rompimentos de regras e adaptações ao
contexto são consideradas justificáveis pela “guerra contra o tráfico e o crime”.
Em trabalho feito por Minayo et al (1999), foram encontradas evidências de que jovens
do sexo feminino são usualmente desrespeitadas por policias. Mas como, nesse caso,
os depoimentos colhidos eram todos de jovens infratoras, a divergência em relação aos
resultados da nossa pesquisa pode indicar que as mulheres são tratadas
diferencialmente em situações ordinárias de policiamento ostensivo e em contextos
específicos de relação com a polícia, sobretudo quando já estejam marcadas pelos
estigmas de pertencimento ao mundo do desvio ou do crime.
Entre os detalhes que levariam um policial a considerar uma pessoa suspeita surgiram
indícios de que idade, gênero, cor, classe social e geografia se combinam ainda a
outras variáveis – como vestuário, comportamento, situação, etc – gerando apreensões
mais sutis, incorporadas à experiência policial e nem sempre fáceis de descrever.
“Vestimenta é importante, tatuagem não. Por exemplo, tem feito um calor muito grande
esses dias. Por que motivo uma pessoa está dentro de uma loja com casaco?” (Oficial
de BPM de subúrbio).
“Vamos colocar mais aí apresentação pessoal, maneira como a pessoa está vestida, se
condiz com o veículo que está dirigindo, a idade da pessoa que está dirigindo se condiz
com aquele veículo.” (Oficial de BPM da Zona Sul).
Qualquer aproximação ao espinhoso tema do racismo policial esbarra de saída num
paradoxo: a PM, que segundo a opinião popular age de forma discriminatória contra os
negros, é uma instituição com forte presença de negros em seus quadros, não só nos
escalões inferiores (praças) como no oficialato e até em altos postos de comando. Ao
invés de isso abrir uma porta ao debate franco sobre os temas de raça e do racismo,
serve freqüentemente de pretexto para contorná-lo.
Estudos apontam que “a admissão do racismo na prática policial é de tal forma
problemática que chega a ser menos penoso, para alguns oficiais superiores,
reconhecer e enfrentar outros temas tabus, como a homofobia e a misoginia” (Ramos,
2002, p. 8).
“Veja bem, tudo isso é muito conceitual. Em primeiro lugar, a nossa população é
basicamente mestiça. Por exemplo, eu me definira como negro, como pardo ou como
moreno? Vai muito do que as pessoas conceituam como negro ou branco. Por outro
lado a gente já observa o seguinte, isso já é um dado estatístico, as nossas
penitenciárias são predominantemente constituídas de negros. Se isso tem alguma
coisa de cultural, não sei. Mas, com certeza, 90% da massa carcerária é constituída de
negros” (Oficial de BPM de subúrbio).
“Falam assim: ‘O senhor me abordou porque sou preto. Branquinho, lourinho o senhor
não aborda’. Isso já foi mais comum, homem em dia não vejo tanto” (Praça de BPM de
subúrbio).
“Se o suspeito é brando, ele vai ser revistado, se ele é negro vai ser revistado. É muito
comum as pessoas: ‘Só está revistando porque é preto’. Mas, aí quando revista o
brando: ‘Pô, vai me revistar? Tem tanto negão no ônibus’”(Oficial de BPM da Zona Sul).
Não foi possível perceber em nossa pesquisa sequer uma remota conexão entre “cor”
ou “raça” dos policiais entrevistados e suas opiniões sobre os temas raciais levantados
ou sobre outros assuntos, como favelas ou juventude. O que as entrevistas reforçaram
foi a hipótese de que a identidade racial na PM é subalterna à identidade policial, ou
seja, de que a diferença entre “brancos” e “negros” se dissolve em dicotomias
identitárias mais importantes e totalizantes: “policiais” versus “bandidos”, “militares”
versus “civis”, ou mesmo “policiais” versus “não-policiais”.
Ao perguntarmos aos policiais de distintas patentes e de vários batalhões quais eram
as reações da população às abordagens, encontramos tamanha convergência das
respostas que nos pareceu estar ouvindo, não o fruto de experiências pessoas, e sim
um bordão institucional, aprendido e repetido nos cursos de formação.
“A pessoa pára numa operação A-Rep 3, mas ela não quer a polícia para si, ela quer
para os outros. Então, se ela vê uma ou duas pessoas sendo abordadas, com a mão no
muro, ela acha muito bom, mas se mais na frente ela for parada, com certeza, ela vai
execrar aquela atuação policial” (Major de BPM de subúrbio).
Vale notar que os poucos registros de boas lembranças que as pessoas que foram
paradas mencionaram foram educação, gentileza ou profissionalismo dos policiais,
sentimento pessoal de segurança e obtenção de auxílio, conselho ou orientação – o
que também converge com a opinião de alguns policiais de que as abordagens nem
sempre são mal recebidas, podendo se constituir, ao contrário, em ocasiões de contato
positivo entre a polícia e os cidadãos.
Quando os policiais foram perguntados sobre o que mais gostavam numa A-Rep, eles
responderam que afora a gratidão, prevalece o cumprimento das funções específicas
desse tipo de operação: apreensão de armas, drogas e veículos roubados/furtados.

- RAMOS, S., MUSUMECI, L. Os jovens e a polícia. In: ______. Elemento suspeito –


abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2005, p. 71-100.

OS JOVENS E A POLÍCIA

Vários estudos com jovens apontam a existência de uma importante tensão na relação
entre juventude e polícia. A pesquisa “Jovens do Rio” com oitocentos indivíduos entre
15 e 24 anos, realizada na cidade em 2001, observou que as violências que os jovens
do sexo masculino mais temem são bala perdida (31,1%), assalto (31,6%) e violência
policial (16,8%). Outra pesquisa, também no Rio, coordenada por Minayo et al (1999),
ouviu 1220 jovens de 14 a 20 anos e concluiu que existe: a) alto grau de medo e
desconfiança dos jovens em relação à polícia, independentemente de classe social e de
local de moradia; b) alto grau de desrespeito, grosseria, humilhação, ameaças de morte
e prática de morte injustificada dos policiais em relação aos jovens; c) experiências de
extorsão de dinheiro e objetos; d) experiência de flagrante forjado; e) avaliação pelos
jovens de que policiais freqüentemente usam álcool e drogas.
Nosso levantamento quantitativo junto à população carioca, realizado em 2003, mostrou
que, de todos os grupos considerados, o segmento jovem é aquele que expressa as
piores avaliações da polícia. Foram registrados nesse segmento as maiores
freqüências de avaliações negativas da PM quanto a respeito ao cidadão, violência,
corrupção e racismo, assim como as menores porcentagens de avaliações positivas
sobre a utilidade ou eficácia das abordagens policiais.
Para essa pesquisa, foram realizados grupos focais com adolescentes – um grupo na
Zona Oeste e um na Zona Sul – e dois grupos com estudantes universitários. No grupo
da Zona Oeste havia predominância de jovens pobres e negros, e no da Zona Sul,
adolescentes brancos e de classe média. Dos grupos universitários, um continha
apenas negros, e outro negros e brancos. No total dos 4 grupos, participaram 24
rapazes e 28 moças.
Para os participantes dos grupos focais, ser jovem é um fator-chave na experiência de
ser considerado suspeito pela polícia. “Juventude” se combina com características que
afetam a probabilidade e a qualidade de uma abordagem policial. Uma delas é o
gênero, pois o fato de ser mulher constitui um atenuante. Em todos os grupos focais foi
identificado um tratamento diferenciado da polícia em relação às jovens. A diferença
mais importante é a revista corporal.
Alguns jovens associam o fato de serem menos parados ao fato de estarem
acompanhados por mulheres, sejam namoradas, amigas ou irmãs, especialmente
quando são abordados em seus carros.
A idade (ter menos de 18 anos, ou mais) foi outro fator identificado como capaz de
alterar a relação com a polícia. As experiências dos jovens de 14 a 18 anos moradores
da Zona Oeste indicam que freqüentemente os policiais, logo no início da abordagem,
perguntam “você é de menor?”, o que talvez indique uma preocupação em não
desrespeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para os moradores das áreas
mais pobres e socialmente consideradas violentas, o “ser de menor” não os isenta da
suspeita de praticar delitos (tráfico, uso de drogas, roubos, pichação), mas pode indicar
aos policiais a necessidade de seguir (ou contornar) certas exigências da lei. Neste
sentido, do ponto de vista dos adolescentes, dizer “sou de menor” aciona uma
estratégia que pode evitar maior violência.
Uma terceira característica apontada como atenuante de risco de abordagem ou capaz
de mudar a qualidade do tratamento da polícia é ser identificado como estudante. Estar
de uniforme, indo ou votando da escola, diminui as chances de ser considerado
suspeito.
Quando questionados sobre o que é mais suspeito, um jovem pobre andando na Zona
Sul ou uma pessoa rica andando perto da favela, os grupos responderam que ambos
são suspeitos, embora por motivos diferentes: um jovem negro e pobre andando a pé
em bairro de classe média é visto pela polícia como provável assaltante ou traficante,
tornando-se candidato a uma abordagem violenta, enquanto um jovem branco com
aparência de classe média, em um carro, dentro ou próximo de uma favela, é visto
como possível usuário adquirindo drogas e torna-se candidato à extorsão.
Quando questionados quais os locais e horários em que um jovem, sobretudo um
jovem negro, é particularmente suspeito, as respostas foram: num ônibus (todos os
grupos); nas agências bancárias (grupo de universitários negros); nos shoppings (grupo
de adolescente das Zonas Oeste e Sul); nos supermercados, principalmente se
estiverem com mochila (grupo de adolescentes da Zona Oeste).
A relação entre ser suspeito e ser negro ocupou boa parte dos debates nos grupos
focais.
“(...) dependendo do jeito que ele está vestido. Se ele está vestido como eu estou
vestido (com uniforme escolar)... por exemplo, eu sou negro, eu estou lá no bairro de
classe médica, estou passando e eles não vão suspeitar nada de mim. Posso ser o filho
da empregada, posso ser alguma coisa de alguém. Agora, se eu estiver todo
esculachado.. aí eles chamam a segurança” (Adolescente da Zona Oeste).
A cor foi uma característica que apareceu em quase todos os desenhos produzidos, e
as experiências de abordagens policiais associadas ao fato de o jovem ser negro foram
abundantes. Diversas vezes a cor foi identificada como a característica “irredutível”
(“que não dá para tirar”) e por isso diferenciada de vestimenta, corte de cabelo, objetos
ou mesmo atitude. Outras vezes o tratamento verbal dispensado pela polícia aos jovens
negros (“vai saindo, negão”; “encosta, negão”) foi visto como óbvio indicador da
existência de racismo na prática policial.
No ranking de classificação de características que levam uma pessoa a ser suspeita
pela polícia, “ser negro” aparece no topo da hierarquia das condições consideradas
mais suspeitas nos dois grupos universitários.
Quando indagados se havia diferenças entre policiais negros e brancos, ou se os
policiais negros eram mais, ou menos, racistas que os policiais brancos, prevaleceu a
opinião de que a cor da polícia não influi no tratamento dispensado numa abordagem.
Para os policiais, segundo esses jovens, mais importante que a cor ou a raça é a
cultura da corporação, que opera como identificador mais forte.
“Acho que não tem nenhuma (entre um policial branco e um policial negro). A dupla que
me abordou era um branco e um negro. Eles agiram exatamente da mesma forma.
Policial é farda. A cor dos caras é a farda. Se tem preconceito, está na farda”
(Adolescente da Zona Sul).
Sobre as abordagens sofridas, os jovens da Zona Sul afirmam que teria como objetivo
principal encontrar drogas e extorquir o dinheiro do usuário, e aquelas que ocorrem
mais frequentemente com jovens pobres, em bairros de periferia ou nas favelas, é
porque o jovem é suspeito de ser traficante ou assaltante e é percebido pelo policial
como potencialmente perigoso, podendo chegar a ser vítima de “esculacho”, isto é, de
violência física e humilhações.
Também surgiu nos grupos a percepção de que os próprios policiais atuantes na Zona
Sul ou em favelas, em bairros ricos ou pobres, teriam características diferentes.
“Não vai botar um (policial) matador no posto e Copacabana. Só vai botar um matador
para trabalhar no Complexo do Alemão” (Jovem do grupo de negros e brancos
universitários).
As avaliações dos contatos com a polícia valem-se ainda de uma memória familiar ou
social, composta de experiências vividas por parentes e outras pessoas conhecidas.
Essa memória traça igualmente uma nítida divisão de classe, reforçando a idéia de que
as pessoas da Zona Sul e de classe média, mesmo que sujeitas à coação e à extorsão,
têm mais chances de se saírem bem nas abordagens policiais.
A força representada pela posso de algum parente rico ou “poderoso” também pode,
eventualmente, ser mobilizada por jovens pobres da Zona Oeste para alterar o curso da
abordagem policial.
Além de idade, gênero, cor e classe social, enfatizaram-se também elementos relativos
à aparência e, secundariamente, à atitude, para explicar as razões de abordagens
freqüentes.
- TAVARES, G. M., SOUZA, L., MENANDRO, P. R. M., TRINDADE, Z. A.
Concepções de Policiais Militares sobre categorias sociais que são alvo do
trabalho policial. Revista de Psicologia UFF, 16 (1), p, 77-95, 2004.

CONCEPÇÕES DE POLICIAIS MILITARES SOBRE CATEGORIAS SOCIAIS QUE SÃO ALVO DO TRABALHO POLICIAL

Ao investigar a percepção de Policiais Militares do Estado do ES em relação às


pessoas que são alvo mais freqüente do seu trabalho, na tentativa de conhecer
possíveis diferenças no tratamento adotado em relação a segmentos populacionais
diversos; Menandro et al (2004) conclui que os policiais entrevistados em suas
pesquisas reproduzem a idéia de que o delito é um comportamento característico das
pessoas de baixa renda. Tal estereótipo de criminoso reflete as formas de abordagens
policiais diferenciadas quanto à atuação em bairros de camadas sociais diversas.
Os estereótipos e preconceitos a partir do qual o policial vê os cidadãos também podem
determinar o tratamento dispensado a estes. Cardia (1997) em estudo sobre a imagem
de policias no Rio de Janeiro e São Paulo, verificou a imagem da polícia como negativa,
avaliada como ineficiente, corrupta, violenta e que provoca medo, especialmente, entre
jovens negros. Tal quadro e interpretado pela autora como uma resposta á ação
agressiva freqüente da polícia (dados da pesquisa PNAD, in Cárdia, 1997).
Nesta pesquisa realizada por Cárdia (1997), os resultados com entrevistas coma
comunidade apontam para uma brutalidade maior da polícia dirigida a alguns grupos, o
que é confirmado em entrevistas com os próprios policiais. A autora assinala que para
esses entrevistados, os grupos das camadas empobrecidas da sociedade não possuem
os mesmos direitos das pessoas de classes mais altas, justificando, os maus tratos
como uma adaptação dos policiais a uma exigência do meio.
Interessado em caracterizar a motivação para o ingresso na polícia) e em conhecer
melhor as concepções policiais militares da cidade de Vitória(ES) sobre as relações da
policia com a sociedade; o policiamento diferenciado m função de status sócio-
econômico; as categorias mais frequentemente associadas à suspeição ao crime,
Menandro (Ibid) entrevistou 33 policiais militares do quadro de Praça do 1º Batalhão da
policia Militar do Espírito Santo(PMES) que trabalham no policiamento ostensivo (PO).
A participação na pesquisa foi voluntária, não ocorrendo nenhuma interferência dos
oficiais superiores no processo de escolha dos participantes.
Os resultados da pesquisa indicaram que o fator mais determinante para o ingresso na
PM foi a falta de opção de emprego e/ou vantagens de carreira militar dado que 60%
dos entrevistados deram essa resposta à pergunta. Este resultado, segundo o autor,
em conjunto com a presença da categoria “influência familiar”, suscita a reflexão da
problemática de uma profissão tão particular como a de policial.
Entretanto a presença da categoria “vocação’ e “altruísmo” demonstra também que há
aqueles que optam pela profissão policial por desejo espontâneo ou por acreditarem
que podem ajudar a manter o bem estar social.
Quanto à categoria o policial militar e a sua relação com a sociedade, a grande maioria
dos pesquisados (72,7%) acredita que a sociedade não reconhece a importância do
trabalho da PM. O resultado obtido, em conjunto com a mencionada, “escolha forçada”
da profissão, pode apontar ausência de motivação do policial para o serviço, já que,
além de não ter feito a opção pelo trabalho que de fato gostaria de realizar, também
não a vê reconhecida como importante uma atividade tensa e perigosa. Quando
perguntado acerca de que tipo de pessoa dá mais valor ao trabalho da PM, a resposta
mais freqüente foi “pessoas carentes” (36,4%). É muito provável, segundo Menandro,
que tal resposta relaciona-se com as atividades de prestação de serviços que a PM
realiza, e que atendem, principalmente, aquele segmento populacional.
Na categoria “lugares com maior índice de criminalidade” foram computados respostas
como: “ pessoas com pouca renda”, “baixa são mais violentas”, “maior fluxo de trafico
de drogas”, “prostituição”, “alcoólatras”, “local de maior incidência de fatores
criminógenos”; “maior foco de assaltantes”, “melhor abrigam os delinqüentes”,
“concentração de pessoas de menor poder econômico e menos informadas”, “os
meliantes procuram os bairros carentes para morar”, entre outras.
Para a categoria “questões sócio-econômicas” foram incluídas as respostas que
mencionam fatores tais como desemprego; necessidade de assistência social; falta de
apoio político e de condição de pagar segurança, entre outras. E a categoria
“policiamento maior nos bairros com maior índice de criminalidade abrigou os seguintes
tipos de respostas: nos bairros carentes há uma incidência maior de crime contra
pessoa e nos bairros mais ricos crimes contra o patrimônio”; “bairros carentes onde se
encontra maior número de marginais/bairro ricos: os mais visados, devido ao poder
aquisitivo”.
Nota-se que as respostas demonstram claramente se associar à idéia de que ambos os
bairros devem ser policiados, embora com objetivos muito diferentes: os ricos para
serem protegidos e os pobres para serem vigiados. A partir das respostas expostas
acima é notável a ligação que a maioria dos policiais pesquisados estabelece entre
pobreza e criminalidade.
A polícia representa o resultado da rede de forças políticas existente na própria
sociedade. No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de
sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe
dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante da
classe de excluídos. Historicamente, o modelo de polícia constituído utilizava somente a
força e a coragem irresponsável, condicionando suas práticas sobre o preconceito e o
estigma.
Fragoso (1977) mostrou que apenas as pessoas das classes de baixa renda sofrem a
ação do Direito Penal, através do aparato policial-judiciário, enchendo as prisões e
produzindo, assim, o estereótipo de criminoso primordialmente referenciado nos
habitantes de bairros empobrecidos. O autor aponta, também, que o Direito, tanto como
qualquer outro mecanismo de controle social, é governado por preconceitos e
estereótipos socialmente condicionados.
Thompson (1983) confirmando a tese citada acima, marca o fato das camadas
populares constituírem, invariavelmente o alvo da ação policial, configurando-se como
classe vigiada pela polícia em contraposição com classes de alta renda que constituem
a classe protegida. Assim, a discriminação da justiça penal começa pela sua porta de
entrada: o aparato policial. Segundo DaMatta (1997), para compreender a impunidade
de pessoas de classe alta é importante levar em consideração a reorganização histórica
da vida social brasileira, efetivada no rito do “sabe com quem está falando?”. Este
representa a preocupação do sistema social com o “cada um no seu lugar”, isto é, ele
reproduz a hierarquia e autoridade que atravessa as relações humanas na sociedade
brasileira. Desse modo, o sabe com quem você está falando/ é utilizado no cotidiano
para diferenciar as pessoas quanto à posição social. Na sua atuação, o policial vivencia
tal situação com freqüência e acaba por reproduzí-la, alimentando esteriótipos e
preconceitos gerados na desigualdade características de nossa sociedade.
Todavia, a visão crítica da polícia pôde ser observada em duas respostas à questão
proposta e, ainda, em vários feitos por policiais nos DPMs pesquisados. As afirmações
que aparecem nas entrevistas. As afirmações que aparecem nas entrevistas são:
“nossa policia é uma policia para pobres é uma realidade irrefutável; em bairros pobres
há menor grau de esclarecimento e pessoas mais humildes; em bairros ricos por serem
supostamente mais esclarecidos são mais arrogantes, donos da razão, mas eu queria
dizer também que existe a policia para ricos, mas por conveniência ela não atua como
deve e infelizmente, vejo com muita tristeza e vergonha que a polícia é uma ferramenta
de repressão ao pobre. Só mudaremos este quadro com política séria de educação.

- LEON, R. B., CARNEIRO, L. P., CRUZ, J. M. O apoio dos cidadãos à ação


extrajudicial da polícia no Brasil, em El Salvador e na Venezuela. In: PANDOLFI, D. C.,
CARVALHO, J. M., CARNEIRO, L. P. GRYNSZPAN M. (Orgs.). Cidadania, Justiça e
Violência. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 117-127.

O APOIO DOS CIDADÃOS À AÇÃO EXTRAJUDICIAL DA POLICIA NO BRASIL, EM


EL SALVADOR E NA VENEZUELA

Na pesquisa realizada, em que se procurou conhecer a opinião da população acerca do


respeito à integridade física das pessoas detidas, mais precisamente sobre o uso de
torturas que ameacem esta integridade. Foi feita a pergunta: “Em alguns casos se
justifica que a polícia torture os suspeitos para obter informações?”
Com relação à questão sobre o apoio à ação extrajudicial verifica-se que no Rio de
Janeiro cerca de 14,8% do grupo de entrevistados está “de acordo” que a polícia tem
direito a invadir a casa sem ordem judicial; cerca de 16,5% diz que a polícia tem direito
a deter jovens por seu aspecto físico e cerca de 12,5% diz que a polícia tem direito de
torturar para obter informação. Estão”muito de acordo” com relação à inc]vasão a casa
sem ordem judicial cerca de 7,5%; com relação a deter jovens por seu aspecto físico
cerca de 8,7% e com relação à tortura para obtenção de informação cerca de 4,1%
estão “muito de acordo”.
No Rio de Janeiro a classe média e a classe alta tendem a estar de acordo com esta
medida, enquanto a classe baixa em desacordo. O apoio que uma parte da comunidade
confere às ações extrajudiciais da polícia constitui um questionamento ao estado de
direito muito superior ao representado pela ação extrajudicial propriamente dita. A
polícia pode exceder-se ou atuar fora das atribuições que a lei lhe outorga, mas isto não
representa um risco tão grande à democracia e a legitimidade se não tivesse o apoio
dos cidadãos.
Quando se aborda este tema, pode-se sempre ver surgir a seguinte questão: por que
dar tanta importância aos direitos dos delinqüentes quando estes sistematicamente
violam os direitos do cidadão? A resposta é unívoca do ponto de vista ético, pois são
cidadãos como os outros, não o são menos. Mas há também uma resposta prática: a
violência é interação social. Se a polícia incrementa a violência, a delinqüência fará o
mesmo; se o delinqüente não acreditar que tem uma saída legal e não-violenta, tomará
o caminho de uma violência maior.
A ação extrajudicial pode ser um meio para reforçar o processo de exclusão social.
Deter jovens simplesmente por seu aspecto físico é um mecanismo de estigmatização
social, pois ocorre que os excluídos sociais são considerados delinqüentes pelo simples
fato de serem pobres, mal vestidos, por terem pele escura ou por serem índios.
Ainda não são conhecidas políticas desenhadas com o objetivo de reverter a tendência
ao apoio à ação extrajudicial entre os cidadãos, capazes de lhes mostrar as
conseqüências negativas no curto e no médio prazo. Ao mesmo tempo é inegável a
extrema necessidade de aperfeiçoamento dos sistemas de proteção aos cidadãos, uma
melhor intervenção policial, mais ajustada ao direito, que lhes permita sentirem-se
protegidos.

- BERGONCHEA, J. L. P., GUIMARÃES, L. B., GOMES, M. L., ABREU, S. R. A


transição de uma polícia de controle para uma polícia cidadã. São Paulo em
Perspectiva, 18 (1), p. 119-131, 2004.

A TRANSIÇÃO DE UMA POLÍCIA DE CONTROLE PARA UMA POLÍCIA CIDADÃ

O processo de redemocratização do Brasil, a partir da década de 80, vem provocando


nas instituições públicas, em especial nas corporações policiais, transformações
decorrentes do questionamento da sociedade brasileira sobre a real função pública que
devem assumir diante do Estado Democrático de Direito.
No início dos anos 90, as corporações policiais, cujas práticas históricas foram
enrijecidas pelo período ditatorial, começaram um processo de rompimento do modelo
histórico do sistema policial, em decorrência das transformações em andamento na
sociedade brasileira, em especial o crescimento das práticas democráticas e o
fortalecimento da cidadania. O descompasso entre as mudanças sociais e políticas e a
prática policial produz uma crise nas polícias brasileiras, que não é uma crise de dentro
da corporação para fora, mas sim o inverso, da relação sociedade-Estado, em
conseqüência da falta de sintonia entre o avanço social e a prática policial, ampliada
pela ausência de um processo dinâmico e otimizado que faça funcionar um sistema de
segurança pública para a realidade brasileira.
É possível ter uma polícia diferente numa sociedade democrática? A concretização
dessa possibilidade passa por alguns eixos. Primeiro, por mudanças nas políticas de
qualificação profissional, por um programa de modernização e por processos de
mudanças estruturais e culturais que discutam questões centrais para a polícia: as
relações com a comunidade, contemplando a espacialidade das cidades; a mediação
de conflitos do cotidiano como o principal papel de sua atuação; e o instrumental
técnico e valorativo do uso da força e da arma de fogo. São eixos fundamentais na
revisão da função da polícia. No modelo tradicional, a força tem sido o primeiro e quase
único instrumento de intervenção, sendo usada freqüentemente da forma não
profissional, desqualificada e inconseqüente, não poucas vezes à margem da
legalidade. É possível, portanto, ter um outro modelo de polícia, desde que passe a
centrar sua função na garantia e efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos e
na interação com a comunidade, estabelecendo a mediação e a negociação como
instrumento principal; uma polícia altamente preparada para a eventual utilização da
força e para a decisão de usá-la. Tudo isso tendo como base políticas públicas que
privilegiem investimentos na qualificação, na modernização e nas mudanças estruturais
e culturais adequadas.

O Problema da Segurança Pública e a Insegurança Coletiva: Causas Sociais da


Violência e da Criminalidade
O grande problema é justamente descrever ou conceituar a segurança pública. Hoje a
percepção coletiva considera a segurança pública centrada somente na atividade da
polícia e, por mais que se pretenda montar uma polícia cidadã, somente haverá
sucesso se for redefinida e ampliada a conceituação da segurança pública. A
segurança pública é um processo sistêmico e otimizado que envolve um conjunto de
ações públicas e comunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduo e da
coletividade e a aplicação da justiça na punição, recuperação e tratamento dos que
violam a lei, garantindo direitos e cidadania a todos.
A polícia cidadã, sintonizada e apoiada pelos anseios da comunidade, só terá sucesso
se estiver voltada para a recuperação de quem ela prende, pois, caso contrário, será
simplesmente uma polícia formadora de bandido, quer dizer, ela vai recrutar bandido,
vai marginalizar ainda mais. É necessário incluir, nesta análise, todo o sistema de
persecução penal e de política social. Esta é a tarefa que precisa ser desenvolvida.
Qual é o modelo que a sociedade quer? É uma polícia “linha dura”? É um Judiciário
“duro”, com altas penas? É uma prisão de segurança máxima? Em relação a crianças e
adolescentes também medidas de endurecimento das ações repressivas? Existe, na
verdade, um aumento da criminalidade em todo o mundo, por razões estruturais, assim
como há um senso comum pedindo uma polícia repressiva. A discussão pública e a
tendência política brasileira têm apontado como soluções salvadoras o endurecimento
da repressão, especialmente quando ocorrem crimes violentos, que assumem amplos
espaços na mídia, influenciando a formação da opinião pública. O cidadão faz a
seguinte pergunta: qual é o papel da polícia no momento em que estão em crise o
emprego, a família e a escola? Quer dizer, estão em crise as instituições de controle
social informal que funcionavam há 20 anos: será que a polícia hoje só pode seguir o
modelo de uma polícia, digamos, do tipo tolerância zero? Estaremos condenados a tal?
Ou é possível pensar, em um país como o Brasil, outro tipo de policiamento, outra
técnica policial, outro tipo de trabalho policial? Porque essa é a grande ignorância
vigente na sociedade brasileira: o que significa o trabalho policial?
Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, só trabalha com um instrumento que é a
reação pela força; qualquer conflito e dificuldade são resolvidos pela força. Há muita
dificuldade de trabalhar com as situações cuja responsabilidade e culpabilidade não
estão bem definidas. Geralmente, em todo o conflito em que a polícia intervém, a
tendência é criminalizar a conduta, nem que seja por desacato ou desrespeito,
efetivando a solução pelo uso da força e pela prisão.

A Questão Policial na Agenda Política: O Modelo de Polícia em Discussão


A polícia representa o resultado da correlação de forças políticas existente na própria
sociedade. No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de
sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe
dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante, da
grande classe de excluídos, sendo que foi nessa perspectiva seu desenvolvimento
histórico. Uma polícia para servir de barreira física entre os ditos “bons” e “maus” da
sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor físico e da coragem
inconseqüente; uma polícia que atuava com grande influência de estigmas e de
preconceitos.
Entende-se que o sistema de segurança tem de ser sistêmico, rápido, um processo que
envolva não só atividades preventivas ou de contenção: precisa ter um início, que é a
prevenção, e um final, que é recuperar e tratar os autores do delito, pois, caso contrário,
eles voltarão ao crime, e o objetivo é não dar essa oportunidade de reincidência ou
aliciamento pelo crime. Nesse sistema não apenas a polícia é a responsável, o
Judiciário, o Ministério Público e a sociedade em geral têm que participar do debate
deste tema. É possível ter uma polícia mais eficiente, diferente da atual, que está
repartida ao meio: uma trabalha só com a parte investigativa; outra só com a parte
pericial; outra só com a parte ostensiva, encasteladas em seus corporativismos. É
necessário um trabalho de conjunto e de integração. Há duas dimensões nesta
questão: existe a polícia mais preventiva, que amplia seu campo de atuação, sendo
uma polícia das obrigações positivas; e há, também, a polícia mais de controle social,
com campo de atuação restrito, voltada para obrigações negativas.
O policial precisará ter uma outra visão de seu objeto de trabalho, uma outra
compreensão e, principalmente, ter capacidade e habilidade de estar reconhecendo e
compreendendo a diversidade social. Há muita dificuldade de trabalhar com as
situações hoje, cuja responsabilidade e culpabilidade não estão bem definidas.
Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, algumas vezes trabalha com um
instrumento, que é a ação-reação, utilizando-se da força; qualquer conflito deve ser
resolvido pela força, e isto deve ser questionado.

Dilemas do Ofício de Polícia


O crescente índice de violência e da criminalidade leva, no âmbito das organizações
policiais, a um verdadeiro “jogo de empurra” de responsabilidades. Os dilemas das
polícias fundam-se em uma separação: a polícia de investigação diz que o problema é
da prevenção; a polícia de prevenção diz que o problema é da investigação; uma está
estratificada em relação à outra.
É necessário investir em uma concepção de polícia cidadã, que é um conceito que se
desdobra numa série de dimensões. Por exemplo, a questão da participação
comunitária, que inexiste na polícia tradicional, uma vez que ela não foi concebida para
isto, é um fator permanente na polícia cidadã, pela aproximação de seus integrantes à
população e pelo comprometimento com a segurança pública no local de trabalho,
surgindo aí o policiamento comunitário. No tocante ao uso da arma e da força, a polícia
tradicional age mais no impulso de defesa e reação, tendo alto grau de liberdade para
agir, muitas vezes, sem critérios bem definidos, enquanto na polícia cidadã é preciso ter
um treinamento prático mais apurado, envolvendo emoções e efeitos, que determine
padrões limitados de ação que partem de princípios estabelecidos por normas
internacionais, acordadas entre países.
Uma polícia cidadã tem de estar presente em todos os bairros, na forma real ou
potencial, atuando com ênfase na prevenção dos delitos, especialmente naqueles
locais de maior vulnerabilidade social e de elevado nível de conflitualidade. É claro que
isso é muito complexo e depende da visão de mundo. A polícia tradicional parte do
princípio de que existe dois mundos: o do bem e o do mal. A polícia de controle
(tradicional) parte com essa visão, ou seja, o traficante é o traficante e o cidadão é o
cidadão, por exemplo.

Controle Social Legítimo de uma Polícia Cidadã


Somente nos últimos anos, com casos de violência mais graves, iniciou-se uma
discussão nacional na qual apareceram debates sobre a participação da sociedade,
polícia comunitária, controles sociais. O controle social da polícia é uma garantia
constitucional. A polícia, que tem legalmente o dever do uso da força e das armas,
necessita de um olhar controlador pela sociedade. Isso é o início da passagem da
polícia que controla para a polícia que é controlada. É possível imaginar como deveria
ser a transformação de uma polícia que controla para uma polícia cidadã, em alguns
pontos de sua estrutura e funcionamento: a logística atual da polícia de controle é
pesada, enquanto a da polícia cidadã é leve; a formação da polícia de controle é boa,
mas é etnocêntrica, não integrada, e a da polícia cidadã é mais interativa, unificada; a
disciplina na polícia de controle é autoritária, centrada nas atitudes inadequadas, na
apresentação, na uniformização de policiais, enquanto na polícia cidadã deve estar
baseada na ampla defesa do policial, na possibilidade de ter o contraditório e também
centrada na conduta operacional asséptica à corrupção, por exemplo, a hierarquia, na
primeira, tem muitos graus (soldado, cabo, sargento, subtenente, tenente, capitão,
major, tenente-coronel, coronel), o que, na polícia cidadã, precisa ser adaptado, ou
seja, deveria ter os níveis adequados à ação que produz.
A polícia atual prende para investigar, enquanto a polícia cidadã deveria investigar para
prender, seria uma polícia mais inteligente. A polícia de controle usa técnicas de troca
de favores, de alcagüete, com dinheiro para pagar os informantes, e a polícia cidadã
usa outra tecnologia, como a escuta judicial, técnicas de prova científicas (DNA), que
possibilitam um avanço muito forte na perícia. Os bancos de dados são separados na
atual organização policial. A polícia cidadã teria um banco unificado ou bancos inter-
relacionados. Também sobre essa questão dos bancos de dados e a produção das
estatísticas, na polícia de controle o uso das informações segue a regra do segredo, de
não repassar informações, de deixar escondido, de não ter a transparência. Já a polícia
cidadã colocaria a base de dados disponível, socializada, permitindo o acesso de
estudiosos e pesquisadores. Essa cultura do segredo precisa ser redefinida e instalada
nas organizações a fim de não representar uma dimensão de poder.
Na polícia de controle, a polícia é o poder, enquanto na polícia cidadã, a polícia é
serviço. As políticas de segurança pública, na polícia de controle, são isoladas e o
político não interfere. Portanto, a concepção de que só a polícia tem que resolver a
política de segurança pública e que esse assunto é de responsabilidade dos técnicos
deve perder força para uma nova estratégia, em que a comunidade cada vez mais
assuma sua participação, discutindo o assunto, apropriando-se e exercendo o controle
social sobre as ações públicas de segurança e das políticas de segurança pública.

A Construção de uma Polícia Cidadã


A polícia cidadã é uma concepção de polícia que problematiza a segurança, discute sua
complexidade e divide responsabilidades. O consumo e o tráfico da droga são práticas
comuns de todas as classes sociais e, portanto, é falsa a divisão entre o bem e o mal.
Não pode-se dizer: “olha, eu estou do lado dos de bem”, como se os homens de bem
não fossem o lado mal da sociedade também, como se a sociedade tivesse isolado os
de bem de um lado e os de mal do outro. A sociedade é complexa, e a ilegalidade ou
infração é perpassada por todas as classes e os níveis. Na preparação de uma aula
para Guarda Municipal, o capitão afirmou: “não, a gente faz abordagem e hoje a gente
tem que abordar também os caras de colarinho, de gravata, eles assaltam bancos
também”. Então, o que ele quer dizer com isso? Ele quer dizer que tem uma cultura que
precisa ser mudada, ou seja, que bandido não é só o cara que está mal arrumado, o
negro, o homossexual ou travesti ou o cara de vila ou o que está com a roupa suja. É
preciso ter interdisciplinaridade, multiagencialidade, visão solidária de
responsabilidades, bem como visão da própria competência das polícias, que precisam
ser solidárias e compartilhadas e não divididas.
O modelo atual é, ainda predominantemente intimidatório e carregado de proteção
corporativa. Parte do processo de compreensão dos policiais é o reconhecimento de
que intervir no movimento social não é o mesmo que estar intervindo na criminalidade.
A partir desse entendimento, a polícia terá uma perspectiva de que ela precisa
reestabelecer a ordem e cumprir a ordem judicial, mas tem de preservar as pessoas
que estão ali e reconhecer que o movimento possui certa legitimidade, fazendo o
processo de mediação. Se fizermos isto, estaremos encaminhando soluções que trarão
menos processos de enfrentamento ou de violência. Com este objetivo, passou-se para
um procedimento de negociação e mediação do conflito com os movimentos sociais. Os
processos de mediação exigem maior tempo para sua implementação. É possível uma
polícia tratar da questão dos movimentos sociais de uma forma diferente, e nisso, a
Brigada Militar agregou muito nos quatro últimos anos.
Há experiências promissoras e apropriadas na polícia. A Brigada Militar começou um
processo interno de formação, tanto operacional como técnico, que sedimentou
conteúdos, para além de mudanças de governos políticos. Do ponto de vista da
democracia, é importante no sentido que estamos conseguindo verificar que existe a
constituição de um corpo de funcionários do Estado e não apenas de funcionários de
Governo. Hoje a Brigada tem como padrão de referência, na ação policial dos
movimentos sociais, o acompanhamento, a negociação e a mediação. Existe, ainda,
envolvimento da Justiça, do Ministério Público e de todos os outros setores, para que
eles também participem na resolução do problema. Os conceitos estão mudando.
A relação com a comunidade precisa ser trabalhada em todas as variáveis, trabalhar a
mobilização comunitária, outros processos de intervenções nas áreas sociais que
venham interferir na melhoria da vida em coletividade. A própria gestão e o sistema
precisam ser sincronizados, quer dizer, não se compreende mais, no atual modelo, que
as polícias tenham um banco de dados cada uma e que um não conversa com o outro
e não conseguem se complementar. Outro obstáculo consiste na inexistência de áreas
de responsabilidades que sejam coincidentes para todos os organismos do sistema de
persecução penal e também para a divisão política e comunitária dos municípios.
Defendemos a construção de um aparelho policial completo, que tenha suas divisões
investigativa, pericial e ostensiva, além de forças especiais para atuar somente nos
momentos de crise; também uma polícia municipal para aumentar os efetivos de
patrulhamento comunitário e determinar responsabilidades ao Executivo municipal na
segurança de sua comunidade. A polícia estadual, do jeito que está retratada, só
incentiva o corporativismo, a corrupção, a omissão, a falta de responsabilidade com o
local de trabalho e as dificuldades na elucidação dos ilícitos. Temos uma polícia
investigativa que, apesar de trabalhar a civil, está sendo empregada ostensivamente
com fardamento preto e viaturas padronizadas, enquanto a outra, que deveria ser
preventiva, continua atuando dentro de estratégias militares e ações puramente
repressivas.

- AMADOR, F. S., SPODE, C. B. Por um programa preventivo em saúde mental do


trabalhador na Brigada Militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 22 (3), p. 54-61, 2002.

POR UM PROGRAMA PREVENTIVO EM SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR NA


BRIGADA MILITAR

As pesquisas sobre as relações saúde mental e trabalho junto a diferentes categorias


profissionais são bastante recentes no cenário científico. Em nível mundial, a França,
um dos países precursores no tema, vem, desde o final da II Guerra Mundial,
desenvolvendo projetos nesse sentido, sobretudo a partir das contribuições da
chamada “psiquiatria social” (Lima, 1998a), enquanto no Brasil, apenas a partir dos
anos 80 tais estudos vêm tomando impulso. Conseqüentemente, os programas
preventivos e promotores de saúde mental dos trabalhadores em nosso país são, pode-
se dizer, ainda incipientes.
Dejours (1999) discute a questão relativa às práticas discursivas do neoliberalismo, e
esclarece que o objetivo principal, então, não é mais promover a direção e a gestão,
mas desqualificar as preocupações com o trabalho, tanto no plano econômico, quanto
nos planos social e psicológico. Tal desqualificação encontra-se estreitamente
vinculada à indiferença pelo sofrimento psíquico dos que trabalham, abrindo caminho à
falta de reação coletiva diante da adversidade social.
Dadas as características das práticas discursivas vigentes na esfera empresarial, os
projetos abordando as relações saúde mental e trabalho vêm sendo desenvolvidos
principalmente nas universidades, nos sindicatos e nos diferentes espaços construídos
no seio dos movimentos sociais. São ações que visam desde a desenvolver recursos
para melhor lidar com o estresse até programas de pesquisa-ação que se centram na
compreensão, com o grupo de trabalhadores, do impacto do trabalho na subjetividade e
na constituição de seu sofrimento psíquico.
Quando se trata do trabalho policial, especialmente na esfera da Brigada Militar, vemo-
nos diante de algumas considerações a fazer, já que no presente artigo argumentamos
sobre a importância de um programa preventivo em saúde mental junto a essa
categoria, bem como tecemos considerações a respeito dos caminhos a percorrer para
consolidar uma prática nesse sentido. Para tanto, fundamentamo-nos em nossa
experiência junto à Brigada Militar, construída a partir de nossa vivência enquanto
grupo de pesquisadoras na Universidade de Santa Cruz do Sul/RS. 1
 
Por onde vem sendo estudada a relação trabalho-saúde junto às polícias
O tema trabalho e saúde entre policiais vem ocupando lugar de destaque tanto no
âmbito da organização policial quanto das universidades brasileiras. De um lado,
movido pela peculiaridade da função, a qual possui uma série de características
evidentemente “perigosas” do ponto de vista da saúde física e psíquica, tal como o
contexto diário de risco; de outro, pelo momento histórico vivido pela sociedade a partir
do chamado período de abertura democrática, no qual se coloca em discussão a prática
das polícias, entre outros assuntos, antes condenados ao silêncio.
Também em outros países, o tema das polícias tem despertado interesse. Pelacchi
(1999), policial argentino, ao abordar as estratégias policiais nas sociedades
contemporâneas afirma que o problema da segurança pública é de todos os setores
comprometidos, incluindo a polícia e demais segmentos correlatos. A polícia é
resultante de uma série de normas que dão sustentação à sua existência, sendo
importante para seu bom funcionamento fazer adequações na legislação penal,
processual e contravencional, assim como implementar serviços ou programas sociais,
de saúde e educacionais. O autor argumenta sobre a importância de os policiais terem
adequadas condições de trabalho e equipamentos, sobre a importância de um bom
recrutamento e boa educação e formação posterior assim como de uma boa
remuneração e plano de carreira confiável.
Vários estudos a partir da perspectiva do estresse vêm sendo realizados, analisando os
impactos do trabalho sobre a saúde dos policiais. O conteúdo violento do trabalho
policial, o contato rotineiro com a morte e a violência e a constante pressão das
responsabilidades são considerados elementos do cotidiano de trabalho causadores de
danos à saúde dos policiais (Amir, 1995). Da mesma forma, também vêm sendo
estudadas as diferenças de gênero nas exposição das fontes de estresse ocupacional
entre policiais, revelando que as mulheres sofrem estressores adicionais no trabalho
(Brown & Fielding, 1993).
Outros estudos se dedicam ao comportamento violento dos policiais relacionado a
situações de trabalho sem, no entanto, se ocuparem dos aspectos psicodinâmicos
implicados. Pesquisas baseadas nas teorias que prevêem a formação de grupos como
elemento diminuidor da inibição dos membros e do aumento da probabilidade de
agressão destacam que o nível de violência individual dos policiais em atividades
específicas varia de acordo com a natureza da atividade, o grau de ansiedade
associado a essa atividade, o índice de policiais presentes e o número de espectadores
(Wilson & Brewer, 1993).
Propõe que os casos de violência policial, entre outras transgressões disciplinares, de
adoecimento físico e psíquico e até mesmo de suicídio, sejam analisados não somente
desde o ponto de vista quantitativo, mas também desde a perspectiva qualitativa, ou
seja, que tais fatos, além de contabilizados, possam ser interpretados. Tal
interpretação, segundo a autora, deve ser promovida, acima de tudo, entre os próprios
policiais, para que estes possam, através da inteligibilidade de seu sofrimento no
trabalho, chegar à transformação de seu fazer na permanente busca de uma polícia de
qualidade.
Na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), com bastante freqüência constata-se
comportamento explosivo entre policiais, como um sintoma de fundo nos mais variados
quadros clínicos. Em decorrência, a Diretoria de Saúde realizou uma pesquisa
documental na Junta Central de Saúde da PMMG sobre os motivos que levam à
reforma de policiais, com o objetivo de obter indicadores epidemiológicos sobre a saúde
mental na instituição.
Averiguou-se que, no período compreendido entre janeiro de 1994 e novembro de
1996, os transtornos mentais (notadamente as psicoses e o alcoolismo) constituíram o
principal fator causal, seguidos por lesões e envenenamentos, e, na terceira posição
por doenças do aparelho circulatório (hipertensão e suas conseqüências) e doenças do
sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos. Além disso, foi constatada a presença
pequena, mas constante, dos diagnósticos de Transtorno Explosivo da Personalidade e
de Transtorno da Personalidade Emocionalmente Instável como causas de reforma.
Ao ingressarem na polícia militar, os sujeitos são concitados a se destituírem de valores
e crenças para incorporarem os valores preconizados pelos regulamentos da
instituição. Inicialmente, sentem o impacto das regras na convivência social intramuros,
onde as relações perdem a naturalidade e se revestem de medo, de receio do erro e de
tudo que ele pode acarretar. Sustentam as autoras que a formação do policial militar é
perpassada por um ideal de homem, que, por conseguinte, se estrutura em princípios
rígidos. Além dos ideais difundidos, a padronização das condutas, comportamentos,
atos e fardamentos tende a dificultar a expressão do que é individual e singular.
Apontam ainda para o fato de que estudos vêm demonstrando a ação intimidativa que o
grupo exerce sobre os indivíduos, sendo a limitação da liberdade um dos principais
fenômenos verificados. No caso dos policiais militares, existe uma pressão muito
grande sobre o indivíduo visando à coesão do grupo, sendo o Regulamento Disciplinar,
o Código Penal Militar e todos os documentos doutrinários e normativos os principais
meios para tal.
Segundo as autoras, estudos apontam para a significativa incidência de suicídio entre
os componentes de corporações militares, mostrando índices diferenciados e maiores
do que os apresentados pela população civil. Ao analisar essa situação, apontam como
uma das possíveis causas o fato de que a morte faz parte do cotidiano do policial
militar, o que pode levar à sua banalização. Dessa forma, ao banalizá-la, colocam a
possibilidade de que o indivíduo, frente a situações de perda ou que envolvam
sofrimento, a veja como uma saída rápida para a infelicidade. Um outro fator estaria
relacionado às questões relativas ao funcionamento grupal, uma vez que este faz com
que os interesses individuais raramente sejam considerados, produzindo efeitos na vida
mental do indivíduo, colocando em questão o valor relativo de cada um.
As conclusões do estudo apontam para a existência de pressões e desafios nas esferas
da organização prescrita do trabalho policial e do trabalho policial no cotidiano.
Pressões e desafios que impõem rigorosos limites à expressão da subjetividade dos
policiais no trabalho, oferecendo-lhes escassas possibilidades para encaminhar seu
sofrimento de forma criativa2 . Conforme a autora, como tentativas de gerenciamento do
sofrimento psíquico decorrente da experiência laboral, os policiais, coletivamente,
recorrem a mecanismos defensivos, visando à tentativa de clivagem entre corpo,
pensamento e psiquismo, de maneira a continuar trabalhando nos limites entre a
descompensação psíquica e a saúde mental. A violência policial aparece como parte
desses mecanismos, expressando o sofrimento psíquico dos policiais, constituído no
território de violência da organização do trabalho.

Desafios para a consolidação de um Programa Sistemático de Prevenção e de


Promoção de Saúde Mental do Trabalhador na Brigada Militar
A seguir, propomos alguns caminhos na intenção de contribuir para a consolidação de
programas preventivos e promotores de saúde mental do trabalhador – com base na
Psicodinâmica do Trabalho - no âmbito das polícias.
Inicialmente destacamos que o caminho metodológico abordado implica um
deslocamento: centrar-se na normalidade e não na loucura e abordar, mais
precisamente, o que se define como normalidade sofrente (Dejours, 1996). Tal
deslocamento impõe, como conseqüência, uma reviravolta nos pressupostos médico-
psiquiátricos ainda bastante vigentes nas ações empreendidas pelos profissionais de
saúde no que se refere às questões da saúde dos trabalhadores.
Além disto, para desenvolver ações em saúde do trabalhador na perspectiva da
Psicodinâmica do Trabalho, é preciso aceitar a dimensão do sofrimento humano dos
policiais e abordá-la cotidianamente criando um espaço no qual são expressas as
fragilidades humanas dos agentes da Segurança Pública. Essa não parece ser uma
tarefa fácil para nenhuma categoria profissional exatamente pela utilização dos
mecanismos defensivos construídos coletivamente pelos trabalhadores para
conjurarem seu sofrimento, os quais, conforme Dejours (1999), favorecem a alienação.
Tratando-se da categoria dos policiais, outro aspecto parece ainda reforçar essa
dificuldade: trata-se do discurso viril e da construção imaginária de figuras
superpoderosas (Amador, 1999a), amparo permanente das estratégias defensivas
dessa categoria que acaba por descartar, freqüentemente, toda a possibilidade de
reconhecimento de dificuldades tanto no plano da saúde física como, e sobretudo, da
saúde psíquica.
Um segundo aspecto importante a considerar é o fato de que o sofrimento psíquico é o
objeto da pesquisa-ação em saúde, proposta em Psicodinâmica do Trabalho.
Sofrimento este que, para ser transformado, pressupõe que os sujeitos elaborem suas
vivências laborais para, desse modo, propor e conduzir transformações na esfera da
organização do trabalho.
Assim, entendendo que a metodologia em questão implica que os policiais possam
pensar sua situação em relação ao trabalho negociando com seu universo prescritivo
de maneira a “subvertê-lo” criativa e saudavelmente, parece-nos que a prescrição
minuciosa, característica da organização do trabalho policial, representa, em certa
medida, um obstáculo a esta proposta. Minuciosidade esta cujo cumprimento se
ampara em um extenso e rigoroso Regulamento Disciplinar.
O que se visa é a possibilidade de os trabalhadores pensarem sua situação em relação
ao trabalho e as conseqüências dessa relação fora do espaço laboral, tendo na palavra
o mediador privilegiado das relações intersubjetivas (Dejours, 1988), é pela
possibilidade de seu exercício que se configura a chance de inteligibilidade do
sofrimento. Para tanto, faz-se necessário repensar a estrutura que cinde os que
pensam dos que executam, no trabalho, ainda fortemente presente na organização
policial apesar dos movimentos em direção à democratização do espaço policial.
Inicialmente, chamamos a atenção para a importância de reconhecer que o trabalho
tanto pode conduzir as pessoas à saúde como à doença e além disso, que o
sofrimento, enquanto categoria interme-diária entre as duas, é condição inexorável dos
sujeitos que trabalham, exigindo não que se busque eliminá-lo, mas sim, transformá-lo.
Como conseqüência, é necessário admitir que tal sofrimento está diretamente
relacionado ao fazer da polícia e, portanto, à qualidade que esse fazer apresenta.
Partindo do exposto, é necessário que a Organização da Polícia Militar encare a sua
responsabilidade com a saúde dos policiais-trabalhadores, já que se trata de uma
importante questão de saúde pública, não apenas porque o sofrimento psíquico
decorrente do exercício laboral atinge uma categoria profissional inteira, como também
porque seus efeitos atingem ampla e gravemente toda a sociedade.
Assim, entendemos que são necessários esforços no sentido de garantir a viabilidade
de ações promotoras e preventivas em saúde mental do trabalhador na Brigada Militar
mediante algumas iniciativas: a primeira que destacamos refere-se a dar continuidade
ao processo de democratização na Polícia Militar, o qual, para ser verdadeiramente
efetivo, pressupõe a restauração do direito à palavra no contexto do trabalho; a
segunda diz respeito ao investimento na contratação de profissionais das áreas das
ciências humanas e da saúde que possam atuar junto às Companhias aproximando-se,
desse modo, do cotidiano dos policiais e, por fim, chamamos a atenção para a
importância do estabelecimento de políticas públicas em saúde e segurança que
amparem programas sistemáticos em saúde do trabalhador junto aos espaços de
trabalho policial, oportunizando o repensar permanente dos agentes da segurança
pública acerca de sua relação com o trabalho.

- SPODE, C. B., MERLO, A. R. C. Trabalho Policial e Saúde Mental: Uma Pesquisa


junto aos capitães da Polícia Militar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (3), p. 362-370,
2006.

TRABALHO POLICIAL E SAÚDE MENTAL: UMA PESQUISA JUNTO AOS


CAPITÃES DA POLÍCIA MILITAR

Freqüentemente podemos ver a atuação dos policiais sendo veiculada pela mídia, ora
mostrando ações de combate ao crime – colocando-os no lugar de heróis – ora
mostrando-os como vilões, que se corrompem ou matam inocentes. O trabalho policial
ocupa, portanto, um território de controvérsias, no qual se engendra uma realidade
ainda pouco conhecida pela sociedade: a do policial trabalhador, cuja função é conter a
violência, mas que, ao mesmo tempo, corre o risco de reproduzi-la e/ou de ser vítima
dela.
Pensando o ofício policial a partir dessa perspectiva, não é difícil deduzir que se trata
de uma categoria profissional bastante vulnerável à produção de sofrimento psíquico,
uma vez que o exercício do trabalho é marcado por um cotidiano em que a tensão e os
perigos estão sempre presentes.
Em se tratando especificamente dos trabalhadores da Polícia Militar, às exigências do
contexto de risco permanente vivido nas ruas, somam-se àquelas relacionadas à forma
como o trabalho está organizado, marcado por um alto rigor prescritivo e alicerçado em
um sistema de disciplina e vigilância também permanentes.
No presente artigo relatamos pesquisa na qual buscou-se compreender as relações
entre o trabalho dos Capitães da Brigada Militar – denominação que recebe a Polícia
Militar no Estado do Rio Grande do Sul /Brasil – e a sua saúde mental. A escolha dos
Capitães como sujeitos relaciona-se com a especificidade dos posto que ocupam, uma
vez que na escala hierárquica situam-se como Oficiais Intermediários, o que significa
que exercem funções de comando em relação aos Praças e Oficiais Subalternos
(Tenentes) e estão, concomitantemente, subordinados aos Oficiais Superiores (Major,
Tenente Coronel e Coronel).
Levando-se em conta que a realização das atividades não pode nunca estar separada
dos aspectos relacionais imbricados na organização do trabalho, estar nesta posição de
comando intermediário implica a configuração de uma série de situações nas quais as
relações no trabalho exigem elaborações, arranjos, acordo, etc. Assim, na articulação
entre a gestão da defasagem existente entre o prescrito e o real e as relações
intersubjetivas no trabalho, emerge uma série de aspectos que podem ser tanto fonte
de prazer, quanto fonte de sofrimento para esses sujeitos.
A saúde e o prazer no trabalho estão, dentro desta abordagem, justamente na
possibilidade de que os sujeitos negociem com a organização prescrita do trabalho sua
inscrição no domínio do trabalho real, ou seja, na possibilidade de criar. Isto porque,
para Dejours (1997, p. 40), o real do trabalho é “aquilo que se faz conhecer por sua
resistência ao domínio técnico e ao conhecimento científico”. Ele é aquilo que “escapa”
e se torna um enigma a decifrar, sendo apreendido inicialmente sob a forma de uma
experiência vivida. É a partir do desafio colocado pelo real do trabalho, que o sujeito
acrescenta algo de inédito ao trabalho, algo de sua autoria, por intermédio de sua ação
singular sobre a tarefa e sobre as rotinas já dadas pela organização prescrita. No
entanto, é importante salientar que a inserção do sujeito entre o trabalho prescrito e o
real é sempre conflitiva, e não se dá fora do contexto das relações sociais no trabalho.
É nesse ponto que aparece outro elemento fundamental para que o sofrimento no
trabalho ganhe sentido e se transforme em prazer e saúde: o reconhecimento.
Quando a organização do trabalho tornase rígida, dificultando ou barrando a expressão
criativa e autonomia dos sujeitos, ou ainda, quando o reconhecimento não se faz
presente, emerge o chamado sofrimento patogênico (Dejours, 1994). A Psicodinâmica
do Trabalho, portanto, situa o trabalho como um território que tanto pode dar origem a
processos de alienação e mesmo de descompensação psíquica, como pode ser fonte
de saúde. Nesse sentido, muito mais do que a aplicação de conhecimento técnico, o
trabalho implica mobilização subjetiva, a qual se compõe e encontra ressonância em
sua inserção no coletivo de trabalho.

Resultados e Discussão
Foi possível identificar, a partir da análise documental, uma gama de prescrições e um
sistema de punições e recompensas que incidem diretamente na execução do trabalho,
nas relações que se estabelecem entre os policiais e também, de forma mais ampla,
aos princípios que devem pautar a conduta destes, mesmo fora do ambiente de
trabalho. O documento que se ocupa mais diretamente das questões
relativas ao cumprimento das prescrições e manutenção dos princípios da hierarquia e
da disciplina é o Regulamento Disciplinar dos Servidores Militares (Decreto nº 41.067,
2001), e nele podemos encontrar 94 (noventa e quatro) tipos de transgressão, que
estão classificadas quanto à sua natureza em leves, médias e graves, sendo todas
passíveis de sanção disciplinar, variando seu grau de acordo com a natureza das faltas
cometidas.
Em relação às prescrições para as relações entre os policiais, destaca-se que todo
policial militar deve, segundo os preceitos da ética e do dever policial militar (Lei
Complementar n. 10.990, 1997), cumprir rigorosamente as obrigações e as ordens;
praticar a camaradagem e desenvolver permanentemente o espírito de cooperação;
tratar os subordinados com dignidade e urbanidade; zelar pelo preparo moral,
intelectual e físico, próprio e dos subordinados, tendo em vista o cumprimento da
missão comum e ser justo e
imparcial no julgamento dos atos e na apreciação do mérito dos subordinados (Arts. 25
e 29). Estará incorrendo em transgressão todo subordinado que deixar de
cumprimentar seu superior, ou deixar de prestar-lhe homenagem ou sinais
regulamentares de consideração e respeito; assim como o superior hierárquico
incorrerá, caso não responda ao cumprimento. Também poderá ser punido o policial
militar que responder de maneira desrespeitosa, ofender, provocar ou desafiar com
palavras, gestos ou ações ou travar luta corporal com seu superior, igual ou
subordinado e ainda, o policial militar que censurar publicamente decisão legal tomada
por superior hierárquico ou procurar desconsiderá-la (Decreto nº 41.067, 2001).
Após esta breve descrição do trabalho prescrito, apresentaremos a seguir alguns dos
principais aspectos do trabalho cotidiano dos Capitães, juntamente com a análise dos
elementos apontados pelos entrevistados como geradores de sofrimento e prazer no
trabalho. Atividade Administrativa: Carga Excessiva de Trabalho, Responsabilidade e
Autonomia Os Capitães participantes da pesquisa, como comandantes de Companhias
ou Pelotões, tinham sob responsabilidade um efetivo que pode variar de 25 a 75
policiais. A atribuição de planejamento de policiamento desdobra-se em uma série de
atividades, dentre elas, a realização de estatísticas para averiguar os locais mais
propensos a ocorrências e o planejamento de cada um dos postos de policiamento da
subárea sob seu comando. Em relação à gestão de recursos humanos, dentre as
atividades envolvidas, está o planejamento das escalas de trabalho dos Praças para os
quatro turnos de trabalho, a concessão de licenças e o gerenciamento das folgas e
férias de seus subordinados.
Os Capitães também se envolvem com o controle, manutenção e distribuição e dos
equipamentos de trabalho. Dentre as atividades administrativas, ganha destaque a
presidência dos chamados Procedimentos, processos que visam investigar possíveis
infrações disciplinares cometidas por policiais militares, e que englobam Inquéritos
Técnicos, Sindicâncias Administrativas, Inquéritos Policiais Militares e Procedimentos
Administrativos Disciplinares, cada um dos quais com formato e prazos são específico.
Desde a elaboração até a conclusão dos Procedimentos, existe um formalismo
bastante minucioso a ser cumprido. Por tratarem- se de processos oficiais, é necessária
muita atenção para evitar erros ou omissão de dados, a qual, pode, inclusive, ser
classificada como transgressão disciplinar e resultar em punição. Além disso, a
condução de cada um dos Procedimentos exige que diversas atividades sejam
executadas, tais como: encaminhamento de perícias junto aos setores competentes nos
casos de Inquéritos Técnicos, envio de ofícios solicitando a presença dos acusados ou
das testemunhas para serem ouvidos e a tomada dos depoimentos dos envolvidos.
Neste sentido, a presidência dos Procedimentos, foi considerada unanimemente pelos
entrevistados, como a “a parte ruim e chata do trabalho”. As deficiências das condições
de trabalho e o fato de dependerem de outras pessoas para realizá-los, como peritos
(que muitas vezes demoram a entregar os laudos necessários ao andamento dos
processos) e depoentes (que não raras vezes, deixam de comparecer no dia e horário
estipulados) são fonte de pressão, visto que o atraso na entrega pode resultar em
punição, pois dentre as transgressões de natureza média, listadas no RDSM, consta
“deixar de encaminhar documentos no prazo legal”. Nas palavras de um Capitão: Não
gosto de fazer sindicância, não gosto de fazer inquérito, não gosto de ouvir as pessoas
em inquérito e sindicância. Por quê? Porque é um problema, porque ou não tem o
computador, ou tu não tem horário, ou a pessoa que tu chamava não vem, aí... Sabe?
E isso, junto com a parte operacional e até mesmo com outras questões
administrativas, isso me causa um estresse tremendo. Eu não gosto de fazer
procedimento. Não gosto mesmo. Assim, o grande número de atribuições no âmbito
administrativo, sobretudo em função dos Procedimentos, faz com que, regularmente, os
Capitães tenham que iniciar mais cedo ou estender o horário de trabalho para além das
seis horas diárias estipuladas. Neste sentido, os entrevistados atribuem a elevada
carga de trabalho o fato de tornar a sua profissão desgastante. A essa questão associa-
se a disponibilidade permanente demandada pelo trabalho, em função das
responsabilidades do cargo, sobretudo no que tange à execução do policiamento nas
subáreas que estão sob comando dos Capitães. Trata-se de uma responsabilidade que
não cessa mesmo quando eles não estão em horário de trabalho, a qual os faz não
poderem “desligar nunca”, engendrando um estado de preocupação constante.
No entanto, é preciso lembrar que estes aspectos nem sempre são incompatíveis com
o prazer que é obtido na relação estabelecida com o trabalho (Dejours & Jayet, 1994).
Nesse sentido, os Capitães afirmam também que encontram grande satisfação na
profissão de policiais militares, e mais especificamente no posto que ocupam. Dentre os
fatores que trazem satisfação, está a percepção que têm da importância social do
trabalho, a despeito das inúmeras críticas feitas em relação à atuação da polícia: Só
nosso trabalho em si já é uma coisa gratificante, é um serviço que a gente ta prestando
pra comunidade. Pensa bem, uma cidade sem policiamento, por exemplo? Se com
policiamento já acontece muita coisa, então o nosso serviço é muito importante pra
sociedade. Então só de a gente se sentir necessário, já e uma coisa gratificante pra
gente. Esse “sentir-se útil”, se está vinculado ao objetivo mais amplo do trabalho, qual
seja, a preservação da segurança pública, remete também à participação de cada um
dos Capitães nesse processo, pelas atividades de concepção.
Lembramos que do ponto de vista da saúde mental, o engajamento subjetivo, pela
mobilização da inteligência e da inventividade no trabalho é um aspecto de suma
importância para garantir que este seja fonte de prazer (Dejours, 1992, 1997; Merlo,
2002). Ao mesmo tempo, ainda que muitas determinações que tenham de ser
cumpridas, existe um espaço de autonomia que permite adapta-las e decidir sobre
como serão realizadas, como pode ser visto na fala a seguir: Cada Oficial tem uma
maneira de ser, uma maneira de tu levar. É como um dirigente, o treinador e os
jogadores. Tem o dirigente que contrata o treinador, eu sou o treinador. Ele quer que o
time atue de determinada forma e o treinador vai dar o seu toque pessoal e o soldado
dentro de campo, o jogador. Tu chega e verifica qual a melhor maneira de tu fazer
aquilo que foi solicitado pra ti fazer.
Assim, ainda que o trabalho dos Capitães seja permeado de pressões, é fonte de
prazer, por ser tributário de uma utilidade social que lhe atribui um sentido e pela
possibilidade de singularização no espaço de autonomia e criação que proporciona.
Atividade Operacional: Risco, Sofrimento e Prazer A presença dos Capitães
diretamente na atividade de policiamento se dá basicamente de duas formas: quando
saem às ruas para coordenar, fiscalizar e suplementar efetivo do Policiamento
Ostensivo, durante o turno diário de trabalho, ou então, para realização dos Serviços
Externos de doze horas, que podem acontecer durante o dia, das sete da manhã às
sete da noite, ou das sete da noite às sete da manhã. O trabalho nas ruas é referido
pelos Capitães como uma “caixa de surpresas”, pois nunca sabem com que tipo de
situações irão se deparar e neste sentido, afirmam que precisam estar preparados para
as ocorrências mediante o conhecimento da legislação e dos procedimentos prescritos
para serem adotados frente a elas. No entanto, afirmam que todas as ocorrências são
diferentes. Em geral, trata-se de situações tensas e nas quais estão em jogo segurança
e não raramente a vida de pessoas: a sua, a dos subordinados e da dos civis
envolvidos, como na experiência relatada por um dos entrevistados: Foi quando eles
(assaltantes que mantinham reféns) me exigiram eu entrar desarmado, o que eu fiz. Foi
uma decisão que eu tive que tomar no momento. E na hora a gente quer resolver o
problema, a gente tá preocupado com a vida das pessoas. Foi uma decisão que eu tive
que tomar, simplesmente tirei minha arma da cintura, entreguei pro PM e entrei. Assim,
as decisões tomadas não decorrem estritamente da execução de determinados
procedimentos e não são os resultados de um diagnóstico exato sobre uma situação –
o qual não pode ser obtido até mesmo em função do tempo mínimo em que têm de ser
tomadas. São decisões que em muitos casos antecipam-se à racionalização, tomadas a
partir da mobilização da subjetividade frente ao imprevisto e ao incerto (Dejours, 1997).
As Relações de Trabalho: Um Território de Contradições, a organização prescrita do
trabalho policial militar com seu sistema de punições e recompensas tem no
disciplinamento o seu elemento central. Assim, analisar as relações que se produzem
entre trabalhadores nesta instituição exige levar em consideração que estas estão
sempre permeadas pela hierarquia, pela disciplina e pelos mecanismos utilizados para
sua produção e manutenção. Os Capitães, por ocuparem o posto de Oficial
Intermediário, estão, concomitantemente, expostos a tais mecanismos e têm a
incumbência e de fazê-los funcionar na convivência com seus subordinados. Cabe-lhes,
além do planejamento e gestão, o papel de “olhar hierárquico” (Foucault, 2002, p. 143)
sobre seus subordinados, fazendo a vigilância e a fiscalização do trabalho e da
disciplina, sob pena de que eles próprios sejam punidos, caso deixem de comunicar
quaisquer atos contrários a esta, deixem de tomar as providências cabíveis para que
sejam investigados ou deixem de punir, dentro de sua competência, os transgressores.
É importante destacar que a vigilância da disciplina, apesar do componente hierárquico
em função da organização piramidal, é prescrita entre todos os policiais, fazendo dos
Capitães “fiscais perpetuamente fiscalizados” (Foucault, 2002, p. 148). A disciplina,
portanto, constitui-se, tal como afirma Foucault (2002), em um poder múltiplo, que atua
formando uma rede que controla continuamente também os que estão encarregados de
controlar. Temos assim, uma polícia que atua como polícia de si mesma, mediante a
prescrição para a denúncia. Embora não possamos esquecer que estamos nos
reportando a trabalhadores que atuam na segurança pública e que, neste sentido, a
vigilância objetiva o impedimento de transgressões que podem ser a prática de atos
ilícitos e/ou criminosos, claramente incompatíveis com o trabalho na policial, é preciso
lembrar também que este controle atua diretamente sobre o vínculo de confiança entre
os trabalhadores.

- SOUZA, E. R., MINAYO, M. C. S. Policial, risco como profissão:


morbimortalidade vinculada ao trabalho. Ciência e Saúde Coletiva, 10 (4), 917-
928, 2005.
POLICIAL, RISCO COMO PROFISSÃO: MORBIMORTALIDADE VINCULADA AO
TRABALHO

Conceitos e contexto
As instituições policiais brasileiras (civis e militares), de um lado, derivam das
corporações modernas da Europa Ocidental, forjadas na idéia de segurança pública
como um serviço essencial prestado pelo Estado, concernente à garantia de direitos e
ao assentamento da autoridade. De outro, foram criadas para controlar uma sociedade
escravocrata, extremamente hierárquica e elitista. Desta forma, ao lado de seu papel
modernizador que tirava o monopólio da violência da mão dos soberanos portugueses,
sua existência efetivou a força repressora do Estado contra os escravos, os pobres
livres e a população em geral. Sua atuação histórica acabou por instituir uma ética
discriminatória na prática dos deveres estabelecidos pela autoridade das leis. Em
resposta, a história mostra que, desde a origem, se explicitou uma aversão dos
brasileiros às atividades policiais, aversão que permanece. Até hoje, o serviço de
segurança pública no Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população em geral e
por motivos diversos: os cidadãos das classes média e abastada reclamam da
insegurança e da ineficiência, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos
policiais em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros
periféricos sente-se discriminada e maltratada por eles; e os delinqüentes os tratam
como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo confrontá-los,
escudados exatamente na "má fama" que os acompanha.
A opinião pública negativa faz parte do ônus do trabalho policial, e em estudos recentes
alguns autores mostram como esses servidores apresentam elevado grau de
sofrimento no trabalho pela falta de reconhecimento social. O conceito negativo emitido
sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e
naturaliza a violência que os vitima muito mais do que a qualquer trabalhador, durante a
jornada de trabalho ou nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as
ocorrências de lesões e traumas.
Todas as categorias aqui estudadas, policiais civis, militares e guardas municipais,
atuam no conceito de Segurança Pública que abrange a garantia que o Estado oferece
aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que possa afetar
a ordem social, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade. A
segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Embora seu
conceito seja muito mais complexo do que o de policiamento, a segurança é
transformada em mandato à instituição policial, de tal forma que a produção e a
manutenção da ordem constituem a essência de sua missão e de seu processo de
trabalho.
Os policiais e os guardas municipais do Rio de Janeiro são tratados como categorias
que atuam sob elevado risco, entendendo-se essa noção sob as abordagens
epidemiológica e social. Ou seja, essa noção diz respeito, ao mesmo tempo, à
probabilidade das ocorrências de lesões, traumas e mortes e ao significado da escolha
profissional que traz intrínseca o gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção e
não como destino. Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais
para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam. Eles vivem o que se denomina de "risco de alta
conseqüência". O exercício do trabalho de elevado risco se comprova pelas taxas de
mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora das
corporações, taxas essas muito mais elevadas que as da população em geral.  
Sobre a Guarda Municipal
A Guarda Municipal, em sua curta história, passou por um período de crescimento da
vitimização, principalmente em 2003, de seus agentes que coincide com o acirramento
de conflitos e turbulência envolvendo algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro. Entre
os eventos que redundaram em vitimização estão os conflitos com camelôs que
negociam produtos contrabandeados e cargas roubadas. A omissão das autoridades
quanto a ações para a contenção ou proibição da circulação de mercadorias ilegais por
um lado, e por outro, a pressão da Guarda Municipal contra as infrações no comércio,
fizeram crescer a resistência dos comerciantes informais. Contudo, os confrontos
sempre encontraram os guardas despreparados e mal equipados, usando
equipamentos de proteção apenas para a cabeça e o corpo. As ocorrências de
vitimização evidenciaram a necessidade de protegê-los com colete, caneleira, joelheira
e munhequeira.
No período de 1994 a 2004, morreram por todas as causas (doenças e causas
externas) 65 (5,3%) guardas municipais e 1.150 (94,7%) foram feridos em acidentes
típicos de trabalho. O número de feridos não letais aqui analisado representa o dos
servidores em serviço. As agressões representaram 30,3% de todos os ferimentos
decorrentes dos acidentes típicos de trabalho ou 26,6% de guardas feridos em relação
ao total das vítimas. O acirramento dos conflitos teve um papel importante no
crescimento da vitimização não letal, mas não em relação às mortes nas atividades
profissionais. No período, a maioria dos óbitos ocorreu em folga (89,2%) e apenas
10,8% aconteceram em serviço.
Cerca de 29,5% do total dos guardas municipais, correspondendo a 10 mortos por
projéteis de arma de fogo e 348 agredidos por pedras, paus e luta corporal, foram
vitimados por causas externas no período. Do efetivo médio de guardas no período de
2001/2004, 1.110 (21,1%) entraram em benefício por acidente de trabalho e 2.347
(44,7%), por doença. Analisando as características de vitimização desses servidores
nos anos de 1994 e 1995, Muniz & Soares (1998) identificaram como principais
circunstâncias das lesões, traumas e mortes, a dinâmica conflituosa (60,5%), a
dinâmica criminal (16,3%) e o acidente de trânsito (9,3%). A primeira correspondeu a
79,3% da vitimização em serviço: em 51,7% dos casos, os agentes encontravam-se em
operação especial e, em 20,6%, estavam de sentinela ou fazendo policiamento.
Sobre os policiais militares
Observa-se que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5% no período,
enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças com
agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de oficiais, representando
cerca de 96% das LTS no período. São os praças que estão na linha de frente nos
confrontos.
Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias no
que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio
de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de oficiais, passando a
ser 16.8 vezes em 2004. Os praças configuram 93% dos incapacitados físicos retirados
dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de 1997,
50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS e
16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em
ambos os casos ressaltam-se os riscos e o estresse vivido no trabalho.
Dos 4.518 policias mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1% foram
vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação violenta
representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu
nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em 2003 e
2004, respectivamente.
Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando mortos em
serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os dados
mostram um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em serviço por
ação violenta, passando de 75% para 88%. O número de policiais que perderam a vida
em serviço foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.
Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais - de todas as três categorias -
também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número de
ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em 2004.
Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de 5.054
para 5.286.
É importante também destacar que no conjunto dos óbitos por ação violenta morrem
2.8 vezes mais policiais militares em folga do que os que se encontram em serviço. No
entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses
últimos (ela representa 83,2% dos policiais que morreram em serviço, comparados aos
68,5% dos que morreram em folga).
Dos 3.760 policiais militares feridos (em serviço e em folga) 48,1% (ou 1.809 policiais)
estavam em serviço. Desses que se encontravam em serviço, 1.054 (58,3%) foram
atingidos em ação violenta, o que representa uma proporção maior do que a de 50,5%
de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto, a ação violenta tem
crescido proporcionalmente vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004
ela é responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento de policiais.
Em 2002 esse percentual era de cerca de 39%.
No Rio de Janeiro, dos policiais militares que morreram em serviço, 55,3% estavam
trabalhando em policiamento geral, dos quais 41,4% faziam patrulhamento motorizado
e de rotina; 29,2% exerciam policiamento dirigido (13,1% de radiopatrulha e de
atendimento aos cidadãos e 12%, em operações especiais); 2,9% efetuavam
investigação e diligência; 12,7% atuavam em outros tipos de serviços; e 10,4% estavam
de sentinela ou plantão.
Sobre os policiais civis
As informações sobre a polícia civil dizem respeito às mortes e aos eventos não fatais
causados por todas as condições e agravos, incluindo-se as doenças, os acidentes e as
violências. Essas informações diferem das apresentadas sobre as duas outras
categorias, por dificuldades objetivas de se obterem dados desagregados sobre causas
externas para esse grupo.
No período de 1994 a 2004 foram aposentados por laudo médico 594 policiais civis,
envolvendo todas as causas geradoras de invalidez temporária e permanente,
incluindo-se doenças e lesões provocadas por acidentes e violência.
Pelos motivos aludidos, as informações aqui analisadas não permitem a comparação
entre as categorias. Morreram, por todas as causas, 147 policiais civis no período de
1998 a 2004, dos quais a grande maioria (120 policiais) encontrava-se de folga.
O ponto mais relevante das informações trazidas é a elevação das taxas de morte de
policiais nos dois últimos anos, principalmente quando em folga. Para a cidade do Rio
de Janeiro indicaram para os anos de 1994 e 1995 taxas de vitimização de 20,8 e 17,5
por mil policiais, respectivamente. Grande parte das informações estava classificada
numa categoria denominada "ofensas". Em 1994 a taxa total de vitimização (mortos +
feridos) foi de 20,8 por mil policiais civis, enquanto apenas a de ofensas não letais foi
de 16,6/1.000. Em 1995 o valor encontrado para a taxa total de vitimização foi de
17,5/1.000 e de 14/1.000 para as lesões não letais. Nesses mesmos anos, a maior
parcela dos óbitos correspondeu à de policiais em folga. Dentre os vitimados 53,1%
eram detetives; 10,9% carcereiros; 18% não foram especificados quanto à função; 5%
eram escrivães, 3,8% delegados e 8,4% exerciam outras funções. As circunstâncias da
vitimização em serviço corresponderam à dinâmica criminal em 52% dos casos, sendo
13,3 por ação armada de suspeitos. Os acidentes de trânsito responderam por 22,7%, e
a dinâmica conflituosa, a 18,7% dos traumas e lesões. As circunstâncias da vitimização
dos que estavam em folga foram: dinâmica criminal (33,3% dos casos, sendo 28,8% a
assaltos); acidentes de trânsito (28,8%) e dinâmica conflituosa (25,5%).

Conclusões
Durante a série estudada houve crescimento da vitimização nas três categorias
estudadas, sobretudo considerando-se as lesões não fatais nos primeiros anos deste
século, com relevância para 2003 e 2004. As principais causas de morte, lesões e
traumas se devem a agressões e a acidentes de trânsito, o que coincide hoje com
informações sobre a vitimização das populações trabalhadoras no Brasil na conjuntura
atual. Porém, isso ocorre de forma muito mais insidiosa entre guardas municipais e
policiais civis e militares do Rio de Janeiro.
Embora os servidores das três corporações conformem uma categoria específica de
trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes,
existem diferenciações internas entre os três grupos, o que corresponde, dentre outros
motivos, ao processo de trabalho de cada um.
Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em
acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências
podem ser ressaltadas. Uma delas, contraditoriamente, se deve também ao trabalho.
Elevado percentual de policiais tem um segundo emprego na área de segurança
privada, continuando assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado
risco. Outro motivo se deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de
conflitos em bairros, em bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam
se envolvendo. Muitos, também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse
último motivo leva a que seja comum o fato de os policiais esconderem seus distintivos
e profissão, visando diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve
ser descartado também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses
agentes desfrutem de maior proteção grupal e de atenção e cuidados muito mais
estruturados e padronizados tecnicamente.
Fica patente que, dentre os três grupos, a Polícia Militar é a que mais sofre agressões,
apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas. Esse privilégio
negativo pode ser constatado, comparativamente, com dados para o ano de 2000. No
Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral foi de 26,7 por 100 mil
habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na capital do Rio de
Janeiro, os dados são mais elevados: 49,5/100.000 na população geral e 97,6/100.0000
na população masculina. As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito
entre agentes da segurança pública (das três categorias) são mais elevadas, menos na
Guarda Municipal. Nessa, em 2001, a taxa de mortalidade foi de 55,31/100.000
guardas, abaixo da média masculina da população do Rio de Janeiro. No entanto, na
Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por agressões chegou a 356,23/100.000.
Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas as causas, no mesmo ano foi de
206,80/100.000.
Portanto, comparativamente, a Polícia Militar apresenta taxas de mortalidade por
violência 3.65 vezes maiores do que a da população masculina da cidade do Rio de
Janeiro e 7.2 vezes a da população geral da cidade. Comparando-se com o Brasil, as
taxas são 7,17 vezes as da população masculina e 13.34 vezes as da população geral.
O risco de morte entre Policiais Militares é também maior do que entre os agentes dos
outros órgãos de segurança aqui analisados: chega a ser 6.44 vezes o da Guarda
Municipal e 1.72 vezes o da Polícia Civil.
Sob a perspectiva das internações hospitalares motivadas por agressão, em 2000
observou-se a taxa de 0,10/1.000 habitantes na população geral e 0,34/1.000 na
população masculina do país. As taxas de lesões e traumas por agressões não fatais
foram de 4,49/1.000 para a Guarda Municipal e de 9,29 para a Polícia Militar, nesse
mesmo ano. Comparados com dados do Rio de Janeiro, a taxa de morbidade hospitalar
da Polícia Militar em 2000 foi 92,90 vezes maior que a da população geral da cidade e
27.32 vezes a da população masculina do Brasil. Foi ainda 2.07 vezes maior do que a
taxa da Guarda Municipal.
Encerrando esta reflexão, chama-se atenção para a necessidade de estudos e,
principalmente, de propostas de ação que sejam efetivas e tornem os trabalhadores da
segurança pública menos vulneráveis. A maioria das medidas para diminuir a
vitimização passa por propostas de modernização dos seus processos de trabalho, das
estratégias de sua atuação e dos equipamentos de produção dos serviços. Mas
referem-se também a políticas que promovam a diminuição da criminalidade e a
mudanças na cultura de oposição entre policiais e cidadãos. O campo de saúde do
trabalhador hoje, para ser coerente com a realidade do mundo do trabalho, não pode se
omitir de pensar nas categorias que atuam na segurança pública, um dos segmentos
mais vulneráveis aos acidentes e à morte no trabalho.

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