Você está na página 1de 43

Socioantropologia

1. A ciência social como construção racional da realidade

O objeto das ciências sociais

Realidade Social, ou seja, o conjunto dos fenómenos que se produzem e reproduzem na sociedade é o objeto
real sobre o qual se debruça, as várias ciências sociais: a Economia, a História, a Demografia, a Geografia, a
Psicologia, a Antropologia e a Sociologia entre outras.
Desta forma, temas como a família, a juventude, a escola, o trabalho, a comunicação social, a violência, a
religião, a participação cívica e política, o desenvolvimento económico, a inclusão social e as práticas culturais
são exemplos, entre inúmeros outros, de realidades que integram a vida das sociedades (ou realidades sociais)
e cujo estudo é efetuado pelas ciências sociais.

A unidade e a complexidade social

A pluralidade dos ramos das ciências sociais não significa que se possa dividir quer a realidade social quer os
seus fenómenos particulares em compartimentos perfeitamente separados: a Economia ocupando-se da
realidade económica (ou dos fenómenos económicos), a História da realidade histórica, a Geografia da realidade
geográfica.
Pelo contrário, a realidade social constitui uma unidade indivisível e complexa, cuja análise pode ser efetuada
segundo perspectivas disciplinares ou “olhares” científicos diferentes.
Assim, um fenómeno como o acesso dos jovens portugueses ao mercado de trabalho, por exemplo, pode ser
estudado tendo em conta a sua evolução histórica, demográfica, a sua distribuição geográfica, a sua importância
económica e as diferenças sociais que o atravessam.
Mas, não obstante estas várias perspetivas analíticas, o fenómeno citado mantém a sua unidade – trata-se
sempre de estudar a relação entre a juventude e o trabalho.
Quando, por isso, os cientistas sociais se referem à análise económica, à análise histórica ou a qualquer outra,
estão apenas a usar um recurso linguístico que visa ajudar a compreender uma realidade vasta, complexa e
pluridimensional, dividindo-a artificialmente de acordo com os seus interesses disciplinares próprios, sem que ,
todavia, se deva confundir essa divisão disciplinar com a realidade social, que é sempre uma.

A interdisciplinaridade

Ao constatarmos a unidade e a complexidade intrínsecas da realidade social, facilmente concluímos que


qualquer tentativa de compreender um fenómeno tomando-o isoladamente, desligando-o dos restantes factos
sociais com os quais interage e do contexto que o envolve e condiciona, está condenada a sofrer graves
limitações.
E isto porque, se assim procedermos, decerto perderemos de vista o conjunto de interdependências deste
fenómeno com as demais dimensões da realidade de que faz parte. Do mesmo modo, o estudo de um
fenómeno por uma dada ciência em exclusivo, pondo de parte os contributos de outras áreas do saber, também
não permitirá a sua compreensão global.
Já será diferente se houver uma investigação conjugada e complementar das várias ciências sociais (ou uma
ação interdisciplinar), opção que se revela mais capaz de produzir conhecimentos integrados, completos e
profundos, isto é, mais próximos da realidade social.
1.2) Construção do conhecimento científico nas Ciências Sociais e Sociologia

Conhecimento científico e conhecimento do senso comum

Desde sempre, o ser humano tenta compreender e interpretar a realidade que o rodeia, procurando explicações
para os diversos fenómenos com que se vê confrontado.
Este esforço constante resultou na construção de um conhecimento prático sobre a realidade, que lhe permite
lidar com os diferentes fenómenos do seu quotidiano e organizar a sua vida pessoal e social.
Este conhecimento prático, ou subjetivo, é designado por conhecimento do senso comum.
O senso comum é, então, “o conhecimento vulgar e prático com que no quotidiano orientamos as nossas ações
e damos sentido à nossa vida”.
Porém, a evolução do conhecimento científico, nomeadamente no que se refere às ciências naturais e exatas,
veio pôr em causa muitas das crenças do senso comum (exemplo: Sol e Terra; relâmpagos são descargas
elétricas e não a fúria dos deuses...).
O conhecimento científico, através da criação e do desenvolvimento de métodos de observação rigorosos e
controlados, permitiu esclarecer as causas de diversos fenómenos naturais e, inclusivamente, prever e controlar
alguns deles. De tal forma que muitas descobertas destas ciências integraram e fazem hoje parte do senso
comum (exemplo: SIDA)

O conhecimento científico nas ciências sociais e na Sociologia

O processo de construção do conhecimento científico é diferente nas ciências sociais, porque, enquanto nas
ciências físicas e naturais os objetos de estudo são parcial ou completamente exteriores ao cientista, nas
ciências sociais o cientista faz parte do objeto de estudo – ele próprio é um ser humano e um ser social. E, tal
como todos os seres sociais, o cientista social tem um conhecimento pessoal e prático de si e da realidade em
que vive: o conhecimento do senso comum.
Assim, é necessário, através dos procedimentos científicos, assegurar a rutura do sociólogo face às suas ideias
preconcebidas, ou seja, às noções que ele tinha no início da pesquisa sobre a realidade a estudar. Ora, é
justamente esta rutura com o senso comum que importa abordar.
Se considerarmos que o conhecimento do senso comum se baseia no aparente, no subjetivo e em explicações
simplistas, facilmente se percebe que qualquer cientista social deve ultrapassar estas noções redutoras e
procurar ver além do óbvio, das suas opiniões pessoais e das ideias preconcebidas que circulam na sociedade
sobre os fenómenos sociais.
Neste sentido, para que o sociólogo possa observar e questionar a realidade social numa perspetiva científica,
não pode deixar de romper com o conhecimento do senso comum. O sociólogo deve, por isso, manter uma
atitude de vigilância constante e relativizar o seu conhecimento prático sobre a realidade durante a produção do
conhecimento científico. Não se trata de uma tarefa fácil, dado que, enquanto atores sociais, todos
necessitamos deste conhecimento prático nas nossas interações. Ele é indispensável à nossa vida pessoal e em
sociedade.
De facto, muito do nosso conhecimento do senso comum é baseado em estudos cujos resultados foram de tal
forma divulgados que passaram a integrar aquele conhecimento. Esta é a razão por que muitas vezes sentimos
que os resultados das pesquisas sociológicas coincidem com as ideias que já tínhamos acerca de determinados
fenómenos sociais.
O que distingue o conhecimento científico do conhecimento do senso comum?

Conhecimento do senso comum

● Subjetivo: é pessoal, baseia-a em opiniões;


● Espontâneo: surge da informação obtida através dos nossos sentidos, do aparente;
● Errático: é constituído aleatoriamente ao longo da vida de cada indivíduo.
● Ingénuo: é assimilado sem sentido crítico;
● Dogmático: acreditamos nele como se tratando de verdades inquestionáveis.

Conhecimento científico

● Objetivo: procura ser universal, válido para todos;


● Sistemático: é construído de forma sistemática e consciente pelos cientistas;
● Metódico: é obtido recorrendo a métodos e técnicas de investigação que asseguram a sua validade;
● Crítico: procura questionar a realidade e questionar-se a si próprio;
● Comprovável/ verificável: pode ser testado a qualquer momento e, assim, confirmado ou infirmado.

Dificuldades da produção do conhecimento científico na Sociologia

➢ São vários os obstáculos que o senso comum coloca ao trabalho científico de um sociólogo:
● Familiaridade com o social;
● Explicações de tipo naturalista;
● Explicações de tipo individualista;
● Explicações de tipo etnocentrista.

Familiaridade com o social


Sendo o sociólogo também um ator social, pode existir uma grande familiaridade com o seu objeto de estudo e
isso pode alterar a forma como ele conduz a sua pesquisa e, consequentemente, os resultados obtidos. Quanto
mais próximo está o sociólogo da realidade que pretende analisar, maior é o risco de enviesamento da pesquisa
e mais difícil é o processo de rutura com as crenças do senso comum, porque mais forte é a ilusão de
transparência do social. A familiaridade com o social dificulta o questionamento e, logo, a sua análise científica,
na medida em que a realidade se nos apresenta de forma ilusoriamente transparente e óbvia.

Explicações de tipo naturalista


Por vezes, tentamos explicar certos fenómenos recorrendo a explicações naturais, ou seja, a fatores de ordem
física ou biológica, o que nos leva a atribuir as suas causas à suposta natureza das coisas: a natureza humana
ou as características de um povo, de uma raça ou de um dos sexos. Ora, tais explicações são perigosas do
ponto de vista científico porque tendem a assumir-se como inquestionáveis e inevitáveis, dispensando um olhar
crítico sobre essas realidades.

Explicações do tipo individualista


Outros recursos que habitualmente utilizamos para explicar os fenómenos sociais são os de ordem individual ou
psicológica. Tal acontece porque as causas sociais dos fenómenos raramente são evidentes, pelo que se torna
mais simples e cómodo recorrer a este tipo de justificações.

Explicações etnocentristas
Já quando olhamos para outras sociedades, outras classes sociais, outros grupos ou outras culturas e tomamos
como referência a nossa própria realidade social e cultural, tendemos a explicar os fenómenos dessas
sociedades, classes, grupos e culturas de uma forma etnocentrista. Tais explicações pressupõem um sentimento
de superioridade e a sobrevalorização da própria cultura, levando à formulação de juízos de valor que
inferiorizam e desvalorizam a especificidade social e cultural da realidade observada, razão pela qual não têm
qualquer valor científico.
A especificidade da Sociologia enquanto disciplina científica

● Uma das especificidades da Sociologia enquanto ciência social prende-se com o facto de procurar
distanciar-se destas conceções do senso comum, imediatas e preconceituosas, e procurar explicar os
fenómenos sociais através de fatores também eles de ordem social. Além disso, a Sociologia não
pretende julgar a realidade mas sim compreendê-la, explicá-la e fundamentar eventuais intervenções
políticas ou institucionais. Quanto melhor conhecermos uma determinada realidade, maior
probabilidade de êxito terão essas intervenções. A Sociologia pode, igualmente, avaliar os resultados
dessas intervenções, analisando o impacto e transformações ocorridas.
● Deste modo, a Sociologia intervém na sociedade na medida em que as suas análises podem influenciar
as ações dos indivíduos e das organizações. As sociedades vivem em permanente mutação e a
Sociologia contribui para a transformação das sociedades que analisa. Uma outra especificidade da
Sociologia é que, ao mesmo tempo que se preocupa em romper com o senso comum, se dedica
também a analisá-lo, utilizando-o enquanto objeto de estudo. A forma como os atores sociais
interpretam a realidade em que se inserem é um importante alvo de pesquisa para esta ciência.
● Constituem, por isso, uma das principais matérias-primas do trabalho sociológico. Importa, pois, à
Sociologia recolhê-las, analisá-las, procurando reconstruir os conjuntos significativos em que se
organizam (as configurações simbólicas ou culturais) e relacionando-as com outros aspetos da textura
social.

Regularidades, particularidades e singularidades sociais

A análise sociológica é despoletada pela identificação de uma regularidade social, um padrão existente na vida
social. A Sociologia procura compreender e explicar essa regularidade ou padrão. Dedica-se também ao estudo
de particularidades sociais, como pequenas comunidades, grupos, bairros…. Preocupa-se também com as
singularidades sociais. Por que razão os processos de desenvolvimento apresentam sempre, em cada país,
especificidades? Por que razão não há duas pessoas iguais? O que faz com que dois irmãos oriundos do
mesmo meio económico, social e cultural tenham atitudes e desempenhos diferentes face à escola? A resposta
reside na singularidade.
Os princípios, normas e valores (regularidades sociais) difundidos pelos agentes de socialização (família, escola,
media, grupos de amigos…) são interpretados de formas diversas pelos indivíduos.

Certamente que muito une as pessoas (nomeadamente os contextos sociais e culturais de origem), caso
contrário a vida em sociedade seria quer impossível quer incompreensível. Mas em cada sujeito os valores, as
normas e princípios dominantes apresentam um certo grau de diferença e de singularidade. Assim, do objeto de
estudo da Sociologia faz parte igualmente a análise de como se produz sociologicamente aquilo que é
específico e único.

Problemas sociais e problemas sociológicos

Um problema social não é necessariamente um problema sociológico. No entanto, pode sê-lo na medida em que
esse problema social seja objeto de análise sociológica. Da mesma forma, um problema sociológico não tem de
ser um problema social, na medida em que a Sociologia se dedica a temas considerados não problemáticos. As
análises sociológicas podem surgir por uma mera curiosidade científica, mas também podem ser solicitadas
especificamente como forma de diagnosticar situações, avaliar impactos e proceder a análises prospetivas.
Noutros casos, a pesquisa sociológica pode ser chamada a desenvolver intervenções na realidade social, tendo
em vista a resolução de um determinado problema que preocupa os seus atores.
1.3) Metodologia de investigação sociológica
Estratégias de investigação

A Sociologia, como qualquer outra ciência, requer procedimentos rigorosos, tanto na elaboração de teorias e
conceitos como na aplicação de métodos e técnicas de investigação.

A teoria

Sem uma teoria, isto é, um ponto de vista sobre a realidade, é impossível captar qualquer fenómeno social. A
teoria é como uma lanterna que desenha um círculo de luz num muro: permite “ver” e “iluminar” a realidade. Na
sua ausência teríamos um “muro escuro”, isto é, a realidade parecia homogénea, indistinta, indiferente. Ao
estudarmos um fenómeno social muito depende da teoria adotada, tal como o foco da lanterna ilumina diferentes
zonas do “muro” consoante a direção que lhe imprimimos. A teoria determina a orientação da pesquisa.

Juventude ou Juventudes

“De acordo com as representações correntes da juventude, os jovens são tomados como fazendo parte de uma
cultura juvenil “unitária”. No entanto, a questão central que se coloca à Sociologia da Juventude é a de explorar
não apenas as possíveis similaridades entre jovens ou grupos de jovens (em termos de situações, expectativas,
aspirações, consumos culturais, por exemplo), mas também – e principalmente – as diferenças sociais que
existem entre eles. A Sociologia da Juventude, ela própria, tem vacilado entre duas tendências: a) numa delas, a
juventude aparece referida como “uma fase da vida”, prevalecendo a buscas dos aspectos mais uniformes e
homogéneos que caracterizam essa fase da vida – aspectos que fariam parte da “cultura juvenil”, específica,
portanto, de uma geração definida em termos etários”; b) noutra tendência, contudo, a juventude é tomada como
um conjunto social necessariamente diversificado”

A Sociologia da Juventude pode partir de duas teorias diferentes nas suas análises:
● A Juventude é uma fase da vida e um grupo essencialmente homogéneo;
● A Juventude é um conjunto social diversificado.

As hipóteses teóricas

Deveremos primeiramente adotar um ponto de vista sobre a realidade, considerando, ainda que
provisoriamente, determinadas hipóteses teóricas. As hipóteses são como que um guião para a pesquisa:
indicam-nos o caminho a seguir – ainda que esse caminho possa provar, precisamente, que as hipótese estão
erradas! Caso se venha a comprovar que de facto as hipóteses teóricas que nos orientaram a pesquisa estavam
erradas – ou seja, se as hipóteses forem infirmadas em vez de confirmadas -, deveremos rever a teoria que
adotámos inicialmente e construir uma nova.
1.4) Metodologia de investigação sociológica
Modos de Produção da Informação

Os Métodos

Em cada pesquisa concreta cabe ao método selecionar as técnicas adequadas, controlar a sua utilização,
integrar os resultados parciais obtidos. Numa pesquisa, devemos, assim, escolher um método que organize todo
o processo de seleção, recolha e tratamento da informação – as técnicas de investigação. A informação que
deveremos recolher para comprovar ou negar as nossas hipóteses teóricas de partida não existe em estado
natural na realidade. Temos de construir essa informação.

Os principais métodos existentes na Sociologia são o extensivo e o intensivo:

● O método extensivo é também apelidado de medida, ao pretender a quantificação de práticas (atitudes,


padrões de comportamento, opiniões, valores...) de populações relativamente numerosas;
● O método intensivo, também chamado de estudos de caso, analisa um determinado fenómeno na sua
especificidade, geralmente uma unidade social bem delimitada (uma turma, uma escola, uma aldeia,
um grupo de jovens, um bairro...). Para tal, aprofunda a informação recolhida e valoriza o sentido que
os agentes sociais conferem à sua própria ação.

Já o método experimental tem reduzida aplicação nas ciências sociais, com exceção de certos ramos da
Psicologia em que é possível isolar algumas variáveis como num laboratório.

O primeiro método valoriza a comparação dos resultados e o seu tratamento estatístico. O segundo realça a
profundidade da observação dos fenómenos sociais. Não se pode considerar que um destes métodos seja
melhor do que o outro, mas sim que existem vantagens e desvantagens na utilização de cada um, dependendo
da realidade que pretendemos estudar.

Vantagens dos métodos Desvantagens dos métodos


Perante vantagens e desvantagens em ambos os métodos mais utilizados na Sociologia, vários autores
defendem a sua combinação, aproveitando as respetivas vantagens e, se possível, eliminando as suas
desvantagens. De facto, em todos os momentos do trabalho de campo deparamos com operações quantitativas
e qualitativas. As primeiras nunca o são inteiramente, já que é necessário selecionar e definir o que vai ser
medido e posteriormente interpretado. Do mesmo modo, as metodologias qualitativas não prescindem, hoje, de
uma contabilização estatística de frequência dos fenómenos que observam.

Os métodos podem, também, ser utilizados numa determinada pesquisa de acordo com a perspetiva crítica da
investigação-ação. Esta alia o conhecimento de uma situação à transformação dessa mesma situação a partir
dos resultados da própria pesquisa. É no próprio trabalho de campo que o investigador compreende esta
necessidade de articulação, inclusivamente ao nível das técnicas de investigação utilizadas.

As técnicas
● As técnicas de investigação sociológica são os procedimentos utilizados pelo investigador para
selecionar, recolher e tratar a informação resultante da pesquisa. Essas técnicas são muito diversas e
podem, em geral, ser classificadas como documentais, de inquirição e de observação.

Técnicas documentais
● A análise documental incide sobre:
Fontes primárias: documentos produzidos pelo próprio investigador no decorrer da pesquisa
de acordo com os seus objetivos e hipóteses teóricas (por exemplo, a base de dados que
resulta de um inquérito por questionário construído pelo investigador);
Fontes secundárias: já existentes e concebidas por outras razões que não as da pesquisa.
No caso da análise de conteúdo, o investigador constrói categorias que ajudam a desmontar
um determinado texto ou documento (escrito ou visual), descortinando significados imputáveis
quer ao autor desses documentos quer ao contexto (histórico, geográfico, social...) em que tal
documento foi produzido.

Técnicas de inquirição

● Relativamente à inquirição, importa referir o inquérito por questionário, que assenta na arte de
interrogar populações, geralmente vastas, com o intuito de descobrir regularidades (nos
comportamentos, atitudes e opiniões).
● Compõem-se este instrumento de:
Questões fechadas, que não permitem outras opções além das que estão previamente
definidas no inquérito;
Questões abertas, que conferem à resposta um mais ampla liberdade;
Também são possíveis questões semiabertas ou semifechadas, combinando as duas
anteriores.

Sugestões para a correta construção de um inquérito

No início do questionário, deve existir um pequeno texto explicitando os seus objetivos de forma clara e sucinta,
bem como garantido o anonimato e a confidencialidade dos resultados. As variáveis de caraterização
sociográfica (sexo, idade, nível de instrução, estado civil, nacionalidade, local de residência, profissão, situação
na profissão, condição perante o trabalho...) devem figurar no início ou no final do questionário, numa secção
autónoma. As questões formuladas na negativa devem ser evitadas, uma vez que prejudicam o entendimento.
Não é aconselhável mudar de escala numa mesma questão. Deve evitar-se a proliferação de escalas em que é
possível o posicionamento intermédio, pois este é frequentemente procurado, por comodismo dos respondentes.
É aconselhável utilizar escalas diferentes, para que os respondentes não se habituem a responder sempre no
mesmo sentido Os níveis de linguagem devem ser adequados aos destinatários do inquérito.

Etapas de elaboração de um inquérito por questionário


1. Definição do objetivo do inquérito e das hipóteses de trabalho (referência obrigatória a uma
problemática teórica).
2. Determinação do universo e construção da amostra.
3. Elaboração de um guião do questionário.
4. Aplicação de um pré-teste para detetar eventuais erros.
5. Formação dos inquiridores (caso não seja o próprio investigador a administrar o inquérito; no caso dos
inquéritos online, este passo é dispensável) e aplicação concreta dos questionários.
6. Tratamento da informação recolhida (com a eventual aplicação de medidas e testes estatísticos).
7. Análise das informações.
8. Redação do relatório final.

Já nas entrevistas, outra das técnicas de inquirição, são efetuadas a partir de um guião. Este reflete os objetivos
da pesquisa, ou seja, as questões ou tópicos que ele contém procuram abordar os vários temas que estão em
análise.

As entrevistas podem ser:


● Diretivas, quando o investigador não concede qualquer “margem de manobra” ao entrevistado,
seguindo rigidamente a ordem das perguntas do guião;
● Semidiretivas ou em profundidade, utilizadas mais frequentemente, que traduzem um compromisso
entre a necessidade de abordar o entrevistado sobre determinados temas mas valorizando a
organização relativamente livre do seu discurso.
● Não diretivas ou livres, quando não há propriamente um guião mas sim alguns temas que conduzem a
conversa; este tipo de entrevista é particularmente útil na fase de exploração da pesquisa, em que é
necessário recolher toda a informação disponível.
● Por fim, as histórias de vida consistem numa série de entrevistas de tipo semidiretivo, geralmente
aplicadas em várias sessões, tendo subjacente um guião que procura cruzar dados biográficos e ciclos
de vida pessoais com circunstâncias históricas e sociais.

Técnicas de observação

Quanto à observação, sobressai, antes de mais, a observação participante, muito utilizada na Antropologia mas
também, cada vez mais, na Sociologia. Esta técnica consiste na entrada do investigador num determinado
terreno (uma aldeia, um bairro, uma cadeia, uma escola...) e na sua permanência durante algum tempo (vários
meses, um, dois ou mais anos) nesse terreno, ganhando familiaridade com os observados e interagindo com
eles como se pertencesse ao território e cultura. Habitualmente, designa-se por pesquisa etnográfica ou método
etnográfico e é usada no método intensivo. Esta investigação articula várias técnicas (pequenos inquéritos,
entrevistas, várias observações, fotografias, vídeos) e é geralmente registada através de um diário de campo
escrito pelo próprio investigador.
Por outro lado, a observação direta não requer qualquer ritual de “entrada” do investigador num determinado
campo. Caracteriza-se pelo facto de o investigador ver e ouvir de acordo com uma grelha de observação
preexistente, registando, por exemplo, posturas corporais, indumentárias, conversas, descrições do espaço e da
relação das pessoas com esse espaço, sem entrar em interação verbal com os observados. O observador tenta
ser invisível.

Técnicas de amostragem

Voltando ao inquérito por questionário, é usual inquirir-se apenas uma amostra representativa e não toda a
população que faz parte do nosso universo de análise, em particular quando este universo é vasto. Se
pretendermos, por exemplo, inquirir sobre as práticas religiosas da população portuguesa, não vamos inquirir os
dez milhões de cidadãos (o nosso universo). A amostra diz-se representativa quando os resultados da inquirição
podem ser extensíveis ou generalizáveis, mesmo que com alguma margem de erro, à totalidade do universo de
análise. As amostras podem ser probabilísticas ou aleatórias quando cada um dos elementos da população
tenha a mesma probabilidade conhecida e não nula de ser representado na amostra – no caso mais simples,
cada elemento tem a mesma probabilidade de ser incluído na amostra. As amostras também podem ser não
probabilistas.

Alguns casos:
● Amostra aleatória simples: de urna, por exemplo, onde constam todos os elementos da população ou
universo, vamos retirando aleatoriamente unidades até perfazer a amostra desejada (5% ou 10% do
universo).
● Amostra por quotas: A representatividade procura-se estabelecendo quotas de inquiridos segundo
determinadas caraterísticas predefinidas (por exemplo, idade, sexo, escolaridade, área de
residência...). Estas quotas devem reproduzir em amostra as proporções existentes na população total,
relativamente às caraterísticas consideradas, de onde a necessidade de informação estatística prévia
sobre o universo considerado. A amostra obtida é como um modelo reduzido da população
apresentando a mesma estrutura da população mãe.
● Amostragem por bola de neve: parte-se de uma amostra composta por um número reduzido de
pessoas às quais se vão acrescentando, até a mostra estar completa, pessoas com as quais as
primeiras afirmam estar em relação.
● Amostragem intencional: as unidades da amostra são selecionadas de acordo com critérios teóricos.
Por exemplo, pode interessar-nos, numa dada escola, inquirir apenas os alunos que já reprovaram
mais de duas vezes para aferir as causas do insucesso escolar.

A recusa da neutralidade das técnicas

Apesar de serem meros instrumentos de observação, as técnicas em si mesmas não podem ser consideradas
neutras. Observador e observado são sempre atores sociais e interação, cada um deles com a sua história de
vida, as suas vivências e experiências, o seu posicionamento social e ideológico, os seus valores e
comportamentos, a sua linguagem... As entrevistas, em particular, colocam face a face entrevistador e
entrevistado. Exige-se que o primeiro exercite uma postura de escuta atenta e metódica, sem impor juízos de
valor ou pontos de vista particulares.
Por outro lado, as questões não devem sugerir as respostas nem tão-pouco pressionar o entrevistado em
qualquer sentido. A linguagem e os conceitos utilizados, além do mais, devem adequar-se aos entrevistados,
uma vez que a atitude do investigador terá de ser de ampla compreensão dos valores, comportamentos e
representações do interlocutor. Em suma, as técnicas de investigação são sempre aplicadas em determinadas
situações sociais, constituindo elas próprias relações sociais entre agentes com características diferentes e,
frequentemente, com graus diversos de poder. Esta circunstância obriga o investigador a uma permanente
vigilância sociológica sobre o próprio processo de pesquisa.
1.5) Metodologia de investigação sociológica
Etapas de investigação

No início é a teoria. Não há pesquisa sem um ponto de vista capaz de interrogar a realidade. A elaboração
teórica precede sempre a observação. Sem essa orientação, como saber o que observar?

➔ Pergunta de partida
A Sociologia é, em boa medida, a arte e o ofício de questionar a realidade social. Qualquer trabalho de
investigação deve iniciar-se com uma pergunta simples, concisa e exequível, isto é, capaz de
despoletar um processo de pesquisa concreto e viável de acordo com os recursos existentes (tempo,
espaço, dinheiro, número de investigadores...). Quais as formas de ocupação dos tempos livres dos
jovens do ensino secundário na cidade de Coimbra?

➔ Exploração
Antes de encetar a construção de um modelo de análise, importa conhecer de forma exploratória a
realidade que se pretende estudar. Como fazê-lo? Antes de mais, através de um corpo de leituras
consideradas relevantes e representativas da temática em questão (o chamado “estado da arte”). Mas
também ensaiando uma primeira aproximação ao “terreno”. No exemplo anterior, seria útil consultar
fontes estatísticas (em particular as produzidas pelo Instituto Nacional de Estatística) para se ter uma
ideia das práticas de lazer do grupo etário correspondente aos estudantes do secundário. Mas seria
igualmente estimulante entrevistas a alguns professores, pais e animadores culturais, bem como
estudantes, para obter uma primeira impressão (ainda que pouco rigorosa) sobre a questão.

➔ Problemática teórica
A problemática consiste num conjunto de teorias e conceitos, bem como das relações que entre eles se
estabelecem, tendo em conta quer as leituras feitas quer as informações recolhidas na fase
exploratória. Ainda segundo o mesmo exemplo, tornar-se-ia imprescindível abordar as teorias e os
trabalhos que relacionam as culturas juvenis com a escolaridade e o lazer.

➔ Construção do modelo de análise e elaboração das hipóteses teóricas


Nesta etapa, o investigador cria já um “ponto de vista” sobre a realidade em estudo. Tal ponto de vista
traduzir-se-á num conjunto de hipóteses que mais não é do que um agregado de respostas provisórias
(porque ainda não testadas empiricamente) à pergunta de partida, ou uma espécie de guião que
orienta as seguintes fases de pesquisa. Exemplo: a diversidade de práticas de lazer dos jovens
estudantes do ensino secundário de Coimbra será tanto maior quão mais elevado for o capital
económico, cultural e escolar dos seus pais. Ou a intensidade dessas práticas variará de acordo com a
oferta cultural existente para esta população.

➔ Observação/ Seleção e aplicação dos métodos e técnicas


Nesta altura, seremos já capazes de fazer o desenho metodológico de pesquisa e de “descer” ao
trabalho de terreno ou de campo. No exemplo que temos desenvolvido, seria porventura útil a
combinação do método extensivo/quantitativo (através da aplicação de um inquérito por questionário a
uma amostra representativa dos jovens do ensino secundário da cidade de Coimbra) com o método
intensivo/qualitativo (assente quer em entrevistas a jovens estudantes quer em procedimentos de
observação direta dos espaços-tempos de lazer dessa população).

➔ Análise das informações


Posteriormente à seleção, recolha e tratamento das informações, estas devem ser analisadas tendo em
conta o ponto de vista teórico adotado, testando a validade das hipóteses inicialmente formuladas.

➔ Conclusões
As conclusões a que a pesquisa chegou indicam quais as hipóteses que foram confirmadas e, pelo
contrário, aquelas que foram infirmadas, bem como os pontos-chave de resposta à pergunta de partida,
a par dos contributos para o enriquecimento do conhecimento científico já existente. Caso as hipóteses
sejam infirmadas, o investigador pode reformulá-las e dar início a uma nova pesquisa.

2. Constituição e evolução do pensamento social


2.1) Génese e objeto da Antropologia

2.1. Introdução à antropologia


O que é a Antropologia? Qual é o seu lugar no campo das Ciências Sociais? Qual é a diferença entre
Antropologia e Sociologia? É um saber construído pelo próprio objeto de investigação, ou melhor, pelos próprios
sujeitos pesquisados, a partir da relação que se estabelece no momento da pesquisa entre observador e
observado.

A diversidade é, assim, o principal objeto de reflexão da Antropologia. A experiência de alteridade é uma das
principais ferramentas do pensamento antropológico, e o principal legado que esta disciplina imprime às
Ciências Sociais.

2.2. A construção do pensamento antropológico

O ser humano sempre refletiu sobre si e sobre a sua relação com o outro.
Em muitos agrupamentos sociais encontramos mitos, histórias e narrativas sobre a origem dos seres humanos e
da vida social, como uma espécie de tentativa de fornecer sentido e explicação a questões como:
● “O que é o ser humano?”;
● “Qual a diferença entre o ser humano e os animais?”;
● “Porque os seres humanos vivem em Comunidades?”;
● “Porque as Comunidades se organizam de determinada forma?”.
Neste contexto, a sociedade ocidental moderna elaborou um projeto que se fundamentou numa “ciência do
homem”, uma antropologia, que procura, justamente, sistematizar e organizar os saberes sobre os seres
humanos e as suas diferentes formas de relações sociais.
Foi no final do século XVIII que se começou a constituir este saber que toma o ser humano como objeto de
conhecimento. Pela primeira vez,o próprio ser humano torna-se objeto de estudo

O pensamento antropológico surge com as descobertas de novos territórios e de novos agrupamentos humanos
espalhados pelo globo, descoberta proveniente do período da colonização.
É com o período das Descobertas, e a partir dos relatos dos viajantes que acompanhavam as explorações, que
a Antropologia configurou seu objeto empírico de pesquisa: as sociedades ditas “primitivas” ou “selvagens”,
classificadas assim em contraposição às sociedades civilizadas europeias.
O conhecimento científico, pelo menos neste período, só se legitimava, a partir de uma separação entre o
observador e seu objeto de estudo.
Enquanto esta separação era encontrada em disciplinas como a Física, a Biologia, a Química e até mesmo a
História, em que a distância temporal separa o historiador do período ao qual dedica o seu estudo, a
Antropologia constitui-se como saber científico ao pautar-se na separação geográfica entre o sujeito da pesquisa
e os sujeitos pesquisados.

Porém, no início do século XX, os pesquisadores perceberam que tal objeto estava em vistas de desaparecer. •
Na verdade, o universo das sociedades “primitivas” não resiste aos avanços da colonização e às mudanças
promovidas pela exploração destes territórios.

A Antropologia vê-se, assim, diante de um dilema: o fim das sociedades primitivas significaria o fim da ciência
antropológica? Após intensos debates sobre esta questão, observou-se que as sociedades consideradas
objetos de estudos não deixavam de existir, as transformações que enfrentavam não dizimavam a diversidade
com que se apresentavam, pelo contrário, deixavam-nas ainda mais evidentes, salientando os diferentes modos
de conceber e experienciar a vida social.

Assim, a Antropologia amadurece como ciência ao se dar conta que o seu foco não está nas sociedades não
ocidentais, mas na própria diversidade humana, presente em toda parte, inclusive no interior das sociedades
ocidentais.
A Antropologia não se caracteriza pelo objeto específico de estudo, mas, sim, pelo olhar que imprime aos
fenómenos sociais.
A Antropologia consolida-se como um saber dinâmico, que acompanha as mudanças da/na humanidade. • Na
verdade, o produto do saber antropológico faz-se a partir de uma relação dialógica, intersubjetiva, pautada no
encontro entre sujeito pesquisador e sujeito pesquisado.

A Antropologia percorreu um longo caminho de desenvolvimento, de problematização e de reinvenção de seus


postulados. E se há uma característica que a particulariza no campo das Ciências Sociais, é justamente esta
capacidade de transformação, de problematização dos seus conceitos e métodos de estudo.

A descoberta da diferença

No campo das Ciências Humanas, a Antropologia destaca-se por eleger como objeto de estudo a diversidade
humana nos seus aspetos biológicos, sociais e culturais.
Enquanto a Sociologia dedicava-se à compreensão da sociedade europeia da época, a Antropologia voltava-se
para o estudo dos povos em processo de colonização na África, Ásia e América.

Durante o período compreendido entre os séculos XVI e XIX, período da transição histórica entre o feudalismo e
o capitalismo, produziu-se um grande conjunto de informações e descrições sobre as culturas não europeias,
obtido através de registros levados a cabo por colonizadores, missionários, comerciantes e militares europeus.
Nesse período, interesses económicos e políticos levaram os países exploradores a investir muito nessas
viagens. Estes investimentos de caráter exploratório favoreceram a produção de conhecimentos sobre os povos
nativos que viviam nas áreas colonizadas.
Assim, a Antropologia é uma ciência que se desenvolve desde o século XIX, mas os primeiros “registros
etnográficos” começaram a ser produzidos no século XVI, quando os europeus começaram a viajar para terras
distantes.
A origem do pensamento antropológico resulta da exploração destes novos territórios até então desconhecidos,
e que dá início à elaboração de discursos sobre os habitantes que povoam estes espaços.

De acordo com a reconstituição histórica da disciplina feita por Laplantine, neste período surgem duas ideologias
concorrentes: a do “mau selvagem e bom civilizado” e a do “bom selvagem e mau civilizado”.
A primeira é a recusa do estranho, apreendido a partir da conceção da sua inferioridade e da falta, marcando
uma postura de condescendência e proteção paternalista do outro, assim como a sua exclusão e exploração por
parte dos colonizadores e missionários;
A segunda, a fascinação pelo estranho, cujo corolário é a má consciência que setores intelectuais europeus têm
de si mesmos e da sua sociedade, vislumbrando nas sociedades primitivas uma inocência e um paraíso
perdidos há muito tempo pela civilização.

Essas ideologias, que marcam o início do pensamento antropológico, permanecem vivas até os dias de hoje, já
que estão na base de uma série de estereótipos que impregnam a perspetiva sobre o outro, sobre o não
ocidental.
Vale salientar que, apesar de opostas, tanto a representação do mau selvagem e bom civilizado como a do bom
selvagem e mau civilizado constituem pólos opostos de uma mesma estrutura de pensamento, a saber, a
inferioridade do “outro” em relação ao ocidental, base do pensamento evolucionista que via as sociedades
primitivas como estágios primeiros da humanidade, não desenvolvidas, e os habitantes como ignorantes,
ingénuos, embrutecidos, desprovidos das capacidades cognitivas dos civilizados cidadãos europeus.
Neste contexto, compreender essas ideologias auxilia na compreensão do desenvolvimento do saber
antropológico nos últimos quatro séculos, que ao ultrapassá-las propôs novas perspetivas sobre o “outro”.

O mau selvagem e o bom civilizado

A diversidade das sociedades humanas nem sempre foi aos olhos dos ocidentais um facto a ser valorizado,
mas, como uma aberração da história da humanidade, que caberia ao progresso solucionar.
Já na antiguidade grega, os povos que viviam além dos limites da polis eram chamados “bárbaros”. Os termos
“primitivo” e “selvagem”, utilizados nos séculos XVII a XIX, indicam a distinção e desvalorização do outro,
marcadas acima de tudo pela dicotomia construída entre animalidade (não europeus) e humanidade (europeus)

A oposição natureza X cultura é o fio de raciocínio que expulsa da civilização todos aqueles que não participam
da humanidade que os ocidentais (neste contexto, os europeus) julgam pertencer.
Ao longo do século XVI, os colonizadores eram instruídos a verificar se os indígenas possuíam ou não alma, ou
seja, a julgar se, por exemplo, os índios eram ou não humanos.
Apresentando-se nu ou vestido com pele de animais, utilizando uma língua inteligível, o “selvagem” é visto como
uma espécie sub-humana, a que se somavam ausências: sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem
Estado, sem consciência, sem razão, sem economia, sem passado.

Esta perspetiva de ausência foi o principal argumento para a exploração do território e das populações nativas,
na medida em que os colonizadores acreditavam que era possível fazê-los evoluir, seja através ação
missionária, seja através ação administrativa do Estado colonizador.
Em relatos de viajantes deste período, mostrados por Laplantine, encontramos o do missionário Oviedo, escrito
em 1955, no qual descreve o seguinte sobre a sua experiência na Índia:

As pessoas deste país (...) são tão ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má
condição, mentirosas, de mole constância e firmeza (...) Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abomináveis
pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfície da Terra.

No relato dos viajantes, os habitantes das Américas são descritos como estúpidos, embrutecidos, preguiçosos,
os da Asia não são representados de maneira diferente, mas é sobre os africanos que recaem as piores
representações, imputando aos “negros” a marca de inferioridade em relação aos brancos.
Tal estereótipo é um resquício do absoluto desconhecimento do modo de vida dos nativos retratados pelos
colonizadores europeus.
Atualmente, é muito comum a designação de indígenas como um povo preguiçoso, que não gosta de trabalhar
e/ou é desprovido da mesma capacidade cognitiva dos brancos. Este raciocínio ainda vigora, principalmente,
como argumentações que defendem a exploração das terras indígenas, já que a recusa destes em se
submeterem ao modus operandi do “progresso” ocidental é justificado pela indolência característica dos
indígenas.

O bom selvagem e o mau civilizado

A perspetiva do “mau selvagem” é contrabalançada pelo seu oposto: tudo o que se pensa como ausência, falta,
inferioridade, torna-se pleno, superior. É a ideia do “bom selvagem” e do “mau civilizado”.
Note-se que os termos utilizados são os mesmos da perspectiva apresentada anteriormente: selvagem e
civilizado, animalidade e humanidade, mas com uma inversão de conteúdos: o que era menos, inferior, é visto
como mais e superior.

Apesar da inversão, ambas as perspectivas partilham de uma mesma estrutura de pensamento, fundamentada
na construção estereotipada das populações nativas, radicalizando a diferença entre “nós e os outros” nos
termos de uma oposição entre cultura e natureza. A figura do “bom selvagem” encontra a sua formulação mais
sistemática após o Renascimento, tendo como principal expoente o pensamento do filósofo político Jean
Jacques Rousseau no século XVIII, e, em seguida, no Romantismo e sua ode à natureza, no caso da obra de
Johann Wolfgang Goethe, escritor e estadista alemão.
A ideia nutria-se de um descontentamento com o mundo civilizado. O caráter inferior atribuído às sociedades
além-mares, como as Américas e a África, e a precariedade com que caracterizam o modo de vida europeu, não
era percebido como uma desvantagem, pelo contrário, o “selvagem” era visto como superior ao homem
civilizado. Pela primeira vez, instaura-se uma crítica da civilização ocidental e um elogio ao “estado de natureza”
em que julgam viver as populações nativas.

Assim, a figura do “bom selvagem” surge na filosofia e nas artes exercendo um misto de fascínio e curiosidade.
Neste período, no século XVI, ocorre a exibição de “selvagens” trazidos das Américas para figurar nos salões
das realezas europeias, como se fossem exemplares da diferença, da pureza da condição humana em
detrimento da artificialidade do modo de vida da civilização europeia.
Esta representação das sociedades indígenas como um paraíso perdido, exaltando a ingenuidade e bondade
infinita dos indígenas ainda hoje persiste.

Tal perspectiva vale-se, da mesma forma que a sua simétrica inversa, de um desconhecimento dos modos de
vida das comunidades tradicionais. É como se os indígenas fossem de uma espécie supra-humana, não
tivessem vícios, defeitos, ambições, enfim, fossem desprovidos de afetos e de sensibilidades humanas. Este
imaginário do “bom selvagem” faz agravar a perceção errónea e os mal entendidos dos brancos diante de factos
e acontecimentos que envolvem as populações nativas.

Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI, escreve no livro “Ensaios” uma série de elucubrações sobre
a vida selvagem, em que aponta as disfunções positivas desta em relação à vida na civilização. A motivação
para este testemunho veio da exibição de índios tupinambás trazidos da costa brasileira para a corte francesa,
em 1560. No texto “Dos canibais”, descreve a conversa travada com os tupinambás através de intérpretes, e
conta:

“[...] creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede,
porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade
e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos.
Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas.
Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e
espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso
artifício e desviamos da ordem comum. [...] Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão,
mas não a nós, que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie. A sua guerra é toda nobre e generosa e
tem tanta desculpa e beleza quanta se pode admitir nessa calamidade humana; o seu único fundamento é a
emulação pela virtude. Não lutam para conquistar novas terras, pois ainda desfrutam dessa liberdade natural
que, sem trabalhos nem penas, lhes dá tudo quanto necessitam e em tal abundância que não precisam de
alargar seus limites. Encontram-se ainda nesse estado feliz de não desejar senão o que as suas necessidades
naturais reclamam; o que for além disso é para eles supérfluo.

Vemos que, com estas duas perspectivas desenvolvidas ao longo do século XVIII, a imagem que o ocidente
construiu da diferença oscilava entre fascínio e desprezo, já que pautadas apenas pelos relatos trazidos pelos
viajantes das suas explorações, portanto, pautadas no desconhecimento da vida e das experiências sociais
destes “outros”. Assim, não bastava apenas o recolhimento destes relatos para a antropologia ser reconhecida
como ciência. Tais relatos abriram caminho, mas a sistematização e reflexão destas informações por
determinados intelectuais é que ensejaram as bases do saber antropológico que ganha força a partir do século
XIX.

O evolucionismo social

O saber antropológico passa a ser sistematizado enquanto ciência a partir do recrudescimento da teoria
evolucionista. Esta teoria remonta aos estudos de Charles Darwin, naturalista britânico que revolucionou a
produção do conhecimento no Ocidente ao explicar a evolução a partir da teoria de uma ancestralidade comum
e da seleção natural das espécies. Darwin argumentava que as espécies existentes haviam-se desenvolvido
lentamente a partir de modos de vida anteriores, teoria descrita na obra. A origem das espécies, publicada em
1859.

O evolucionismo influenciou diversas áreas, inclusive as ciências humanas, principalmente a Antropologia. Os


nativos de sociedades colonizadas não eram considerados “selvagens”, como nos séculos XVII e XVIII, mas
“primitivos”, isto é, ancestral do civilizado europeu, como se fossem representantes do primeiro estágio da
humanidade, e que deveriam seguir o curso da evolução da espécie humana até culminar na civilização
europeia, ou então, desaparecer.

Um dos fatores fundamentais para a aceitação da ideia de evolução era a sua associação à ideia de progresso,
ambas pautadas numa hierarquia linear. Os colonizadores eram vistos de maneira positiva, como aqueles que
auxiliariam as “sociedades primitivas” no seu processo de evolução. Com isso, a Antropologia surge como
ciência, com um objetivo bem específico, compreender a origem da humanidade, ou das etapas evolutivas da
humanidade: “a perspectiva antropológica baseava-se num raciocínio fundamental: reduzir as diferenças
culturais a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo”

Ao longo do século XIX, a Antropologia constitui-se como disciplina científica pautada na conceção de que
formas simples de organização social e de mentalidade tenderiam a evoluir para as formas mais complexas das
sociedades ocidentais. Uma visão linear da história que supunha uma mesma rota de desenvolvimento para
todas as sociedades do planeta e que fornecia o quadro epistemológico necessário para a consagração do
caráter científico da disciplina.

A partir disto, cumpria aos antropólogos descrever e analisar cientificamente a sequência dos estágios das
transformações sociais, observando as sociedades primitivas como museus vivos da história da humanidade.
Neste contexto, três intelectuais destacam-se e são considerados os fundadores da Antropologia: Lewis Morgan,
Edward Tylor e James Frazer.

Tylor, antropólogo britânico, destaca-se com a obra Cultura primitiva: pesquisas sobre o desenvolvimento da
mitologia, filosofia, religião, linguagem, arte e costume, publicada em 1891, e na qual se encontra aquela que é
considerada a primeira definição de cultura, a saber, cultura ou civilização, é todo complexo que inclui
conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem na condição de membro da sociedade.
Tylor afirma ser “tanto possível quanto desejável eliminar considerações de variedades hereditárias, ou raças
humanas, e tratar a humanidade como homogénea em natureza, embora situada em diferentes graus de
civilização”.

Já Frazer, antropólogo escocês, destaca-se pela publicação de O ramo de ouro, em 1890, em que realiza uma
obra monumental, 12 volumes, na qual compara mitos e folclores de várias sociedades e levanta a tese de uma
linha evolutiva do pensamento que parte do estágio mágico, passa ao religioso e culmina no científico. Segundo
Frazer, “o selvagem é um documento humano, um registo dos esforços do homem para se elevar acima do nível
da besta [...] um selvagem está para um homem civilizado assim como uma criança está para um adulto”.
Morgan, antropólogo americano, destacou-se com a obra "Sistemas de consanguinidade e afinidade da família
humana, publicada em 1871, e na qual apresenta um estudo do sistema de parentesco em diferentes
comunidades nativas norte-americanas. Para Morgan, a evolução é um caminho natural e necessário, pois,
como a humanidade foi uma só na origem, a sua trajetória tem sido essencialmente uma, seguindo por canais
diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da
humanidade que se encontram no mesmo status do desenvolvimento.

Na medida em que a diferença geográfica permitia uma evolução diferenciada aos grupos humanos, a variedade
resultante era fundamental para a reconstrução dos diferentes estágios do processo evolutivo geral. Aliada a
esta perspetiva, está a ideia de uma unidade cognitiva da espécie humana, ou uma uniformidade de
pensamento. Era isso que permitiu traçar a passagem das sociedades selvagens, para as primitivas, culminando
nas sociedades ocidentais. Assim, o caminho para a compreensão do longo período de evolução cultural
humana, do primitivo ao civilizado, deveria passar pelo método comparativo, aplicando-o a um grande número
de sociedades primitivas.

Nesta primeira etapa do saber antropológico, não havia uma grande preocupação com aspetos específicos e
particulares de cada agrupamento humano, nem com a confiabilidade das descrições dos relatos de viajantes,
que compunham os dados de pesquisa. Conhecida como “antropologia de gabinete”; consistia em recolher o
máximo de relatos possíveis, dos mais variados contextos visitados, submetendo-os a um “teste de recorrência”:

A imagem do antropólogo sentado numa biblioteca era justificada pela tradição da antropologia evolucionista,
tanto pelos objetivos a que se propunha quanto pelos métodos que seguia. Embora o antropólogo devesse
saber reconhecer a diferença entre um relato superficial ou preconceituoso e um relato bem fundamentado e
isento, o resultado final do trabalho prescindia de uma grande atenção ao detalhe etnográfico: procurava-se
compreender, como indicam os Títulos dos livros de Morgan e Frazer, a sociedade antiga a sociedade primitiva.

Assim, a Antropologia surge como ciência ao sistematizar dados, através dos quais construiu a sua base
epistemológica e a elaboração de conceitos; ao construir um saber que não fosse apenas de reflexão, mas de
observação e comparação; e ao definir uma problemática fundamental: a diversidade.
A partir desta base, a Antropologia foi-se desenvolvendo ao longo dos séculos, repensando os postulados
teóricos, problematizando métodos de análise e reflexão, mas com uma base bem determinada, sempre
procurando salientar a diferença, traçando conexões, relações entre diferentes experiências humanas de
sociabilidade.

Etnografia: o método antropológico

A Antropologia consolida-se como disciplina constituinte das Ciências Sociais a partir da definição do objeto de
estudo como a diversidade humana, focando-se nas diferentes formas de experiências e relações sociais.
Assim, a distinção que se estabelece com a Sociologia surge não só pela problemática fundamental, a
diversidade, mas principalmente pela metodologia própria, a saber, a etnografia, ou, o trabalho de campo.

A etnografia define-se como um método de investigação através do qual se apreende a complexidade de


determinada vida social. Esta prática pode ocorrer tanto no “campo” quanto no “gabinete”, mas nunca sem
suscitar a experiência de alteridade, condição fundamental do fazer antropológico. A construção do saber
antropológico passa, necessariamente, pela relação direta travada entre pesquisador e pesquisado. 4

A experiência etnográfica

O antropólogo britânico Bronislaw Malinowski é considerado o grande fundador do método etnográfico,


caracterizado pela incursão e permanência do antropólogo na vida social do grupo que pretende estudar. Até
então, os antropólogos faziam as análises com base nos relatos dos viajantes, ou através de rápidas expedições
às sociedades primitivas, nas quais se limitavam a interrogar apenas alguns informantes.

Malinowski acreditava ser necessário dar um passo em frente, realizar um estudo profundo da vida real dos
nativos, ou seja, das experiências quotidianas.
A ideia de um investigador visitar a sociedade, em vez de ficar sentado no gabinete reorganizando os dados de
outras pessoas, era um tanto revolucionária neste contexto.
O antropólogo deveria ir até a sociedade, observar as cerimónias, encontrar informantes, aprender a língua local
e escrever no seu caderno as anotações dos dados recolhidos no dia a dia.
Com isto, Malinowski ficou conhecido como o precursor da passagem do gabinete para o campo que marcou
definitivamente o fazer antropológico. Na obra Argonautas do Pacífico Ocidental, escreve sobre o método
etnográfico que empregou na realização de sua pesquisa nas Ilhas Trobriand, arquipélago da Nova Guiné, onde
permaneceu entre 1915-1916 e 1917-1918:

Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas do seu equipamento, numa praia tropical próxima de uma aldeia
nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. [...] Suponhamos,
além disso, que seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o
possa auxiliar [...] Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou acompanhado de um guia
branco. Alguns dos nativos reúnem-se em seu redor – principalmente quando sentem cheiro de tabaco. Outros,
os mais velhos e de maior dignidade, continuam sentados onde estão [...]. É enorme a diferença entre
relacionar-se esporadicamente com os nativos e estar efetivamente em contacto com eles. Que significa estar
em contacto? Para o etnógrafo significa que a vida na aldeia, no começo pode ser uma estranha aventura por
vezes desagradável, por vezes interessantíssima e logo assume um caráter natural em plena harmonia com o
ambiente que o rodeia.

A etnografia é um trabalho de imersão total, interiorizando as significações que os próprios sujeitos atribuem aos
seus comportamentos, sentimentos e modos de vida.
Consiste no método de apreensão da sociedade tal como é percebida pelos próprios integrantes, com os quais
mantém uma relação direta. Portanto, o saber que resulta deste tipo de pesquisa faz toda a diferença que
particulariza a Antropologia das demais Ciências Sociais.

O antropólogo evita uma programação estrita da pesquisa, bem como a utilização de protocolos fixos. A
etnografia carrega um caráter um tanto errante, o pesquisador não sabe exatamente o que o espera “no campo”,
quais caminhos que a investigação irá seguir, uma vez que são os sujeitos que irão indicar-lhe as direções a
serem perseguidas e, geralmente, é nos mal-entendidos, nos erros, nas falhas cometidas, nos imponderáveis e
inesperados eventos que o trabalho de campo suscita que o pesquisador recolhe as informações mais
preciosas, que expressam os dados mais relevantes que irão compor o estudo em questão.

O interesse da Antropologia está naquilo que foge à regra, na exceção, no que escapa dos modelos
hegemónicos e padronizados, enfim, a Antropologia detém-se no que se diferencia. A Sociologia dá prioridade à
sociedade e às formas instituídas, deixando a vida quotidiana, os factos não escritos, não formalizados, não
institucionalizados, como uma espécie de resíduos ou consequências de grandes fenómenos. Já a Antropologia
consiste precisamente em dar atenção a estes materiais “residuais” negligenciados.

Como afirma Lévi-Strauss, “os etnólogos interessam-se principalmente pelo que não está escrito, nem tanto
porque os povos que estudam não escrevem, mas porque aquilo que lhes interessa é diferente de tudo o que os
homens geralmente pensam em fixar na pedra ou no papel”. Assim, a diferença entre Sociologia e Antropologia
não está no facto da primeira dedicar-se às sociedades industriais e a segunda às sociedades tradicionais.
A Antropologia não possui um objeto que lhe seja próprio, como pequenas comunidades rurais, indígenas,
tradicionais, mas visa desenvolver uma abordagem, uma metodologia e um enfoque único, que permitem a
construção de um saber sobre a realidade social a partir de outras perspectivas.

Relação entre observador e observado

A neutralidade do pesquisador, exigência que atua como um corolário no campo do saber científico e diz
respeito à imparcialidade, frieza e em não influenciar a pesquisa com convicções, sentimentos e pensamentos
próprios ao pesquisador, na Antropologia torna-se uma questão constantemente problematizada.
Como não se envolver, ou afetar e ser afetado pelos sujeitos da pesquisa, quando se precisa estabelecer um
convívio de maneira próxima e prolongada?

Segundo o antropólogo Márcio Goldman, o saber da Antropologia constrói-se na relação travada entre o
antropólogo e o sujeito da pesquisa.
Como se efetiva essa produção?
Segundo o autor, no trabalho de campo, o saber do antropólogo é sempre diferente do saber do na0vo, e isto
não acontece porque trata-se de um saber mais objetivo, racional, totalizante da realidade, mas, sim, porque o
antropólogo deve conferir o mesmo valor a todas as histórias, explicações e reflexões que ouve através da
“observação participante”.
Assim:
A observação participante que os antropólogos proclamam ser o método por excelência, não consiste apenas
em, de vez em quando, deixar a máquina fotográfica de lado, o lápis e o caderno para participar do que está a
acontecer [...] Na verdade, o que ela operou na antropologia foi um movimento em tudo semelhante ao de Freud
na psiquiatria: em lugar de interrogar histéricas ou nativos, deixá-los falar à vontade. A observação participante
significa, pois, muito mais a possibilidade de captar as ações e os discursos em ato do que uma improvável
metamorfose em nativo.

O saber que resulta da observação participante adotada no trabalho etnográfico, segundo Goldman, insere-se
na “teoria etnográfica”.
Esta teorização tem como objetivo a elaboração de modelos de compreensão de um objeto social que, mesmo
produzido num contexto específico, produza inteligibilidade para compreensão de outros contextos sociais.

O conhecimento antropológico constrói-se a partir da experiência de campo vivenciada pelo antropólogo.


As impressões etnográficas não são formuladas apenas pelo intelecto, de modo racionalista e objetivo, mas
passam por um impacto suscitado em si mesmo, na sua personalidade, resultante da relação entre diferentes
culturas numa mesma pessoa.

O que a Antropologia coloca em perspectiva não são os factos empíricos em si mesmos, recolhidos no campo,
mas as relações que estes factos estabelecem com outros, de outros contextos, que se apresentam sob uma
mesma forma.
“Em suma, as diferenças nunca são dadas, são recolhidas pelo etnólogo, confrontadas umas com as outras, e
aquilo que é finalmente comparado é o sistema das diferenças, isto é, dos conjuntos estruturados”

A Antropologia é suscitada pelo confronto de conceitos e pontos de vistas entre pesquisador e na0vo, por isso
mesmo a pesquisa de campo leva a inevitáveis questionamentos da teoria acumulada da disciplina: na medida
em que se renova através da pesquisa de campo, resiste a modelos rígidos, hegemónicos.
Deste modo, a etnografia não consiste apenas numa técnica de recolha de dados, mas numa abordagem teórica
específica, “no caso da antropologia a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se
desenvolve e se sofistica”

O pesquisador não apenas se depara com a significação operada pelo na0vo, como, ao descrevê-la nos seus
próprios termos, é capaz de apreender esta lógica e incorporá-la de acordo com os padrões do seu próprio
aparato intelectual e até mesmo do seu sistema de valores e percepção, assim:
[...] a etnografia é uma forma especial de operar em que o investigador entra em contato com o universo dos
pesquisados e partilha o seu espaço, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica da sua visão do
mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca, comparar as próprias
teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento.

Problematizações em torno da relação sujeito/objeto, colocar-se ou não no lugar do outro, dar voz ao nativo, os
limites da participação na observação participante, se a autoria do texto etnográfico é do pesquisador ou dos
sujeitos da pesquisa, enfim, estas são algumas das questões levantadas pela própria Antropologia nas
problematizações que suscita em relação à sua própria metodologia.
Isto porque a experiência do encontro com o outro é tão perturbadora para o antropólogo quanto para os
sujeitos pesquisados.

Aquilo que o pesquisador vive na sua relação com os interlocutores é parte integrante de sua pesquisa, e, diante
disso, o antropólogo no campo deve constantemente estar atento para evitar certas armadilhas, como projetar
no outro a imagem que tem de si mesmo, ou seja, colocar-se no lugar do outro a par0r de suas próprias
categorias de pensamento.
O antropólogo deve ser capaz de colocar em suspenso os seus julgamentos a fim de poder apreender os
sentidos e lógicas do pensamento do outro.

Também não se deve “tornar nativo”, como se pudesse apreender totalmente os modos de ser e estar do outro.
Torna-se necessário encontrar uma posição em que se mantenha uma identificação, ao mesmo tempo que
preserve a distinção na relação intersubjetiva travada com os sujeitos pesquisados.
Esta experiência, chamada de alteridade, fundamenta a produção do conhecimento antropológico e consiste
não só em questionar se aquilo que as pessoas fazem e falam lhes é coerente, razoável e lógico, mas até que
ponto é capaz de compreender as práticas e os saberes e, principalmente, como pode promover a própria
transformação a partir da experiência de trabalho de campo, pois, segundo Lévi- Strauss, “é esse efetivamente o
procedimento do etnógrafo quando vai para o campo, pois – por mais escrupuloso e objetivo que queira ser –
nunca é nem ele, nem o outro, que encontra no final de sua investigação”.

Apreender a diversidade, detetar a multiplicidade de modos de ser e estar no mundo, as múltiplas formas de
pensamento e construção de sentido, enfim, valorizar e enfatizar a diferença humana em todas as suas
manifestações, é a principal problematização da Antropologia.

A construção do método etnográfico foi fundamental para possibilitar o encontro com o outro, suscitar
confluências e contradições entre formas de pensar, questionar certezas e postulados hegemónicos, e, com
isso, descobrir alternativas múltiplas de possibilidades de existência.

O lugar da antropologia nas ciências sociais

Em 1954, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, publica o texto “Lugar da Antropologia nas Ciências
Sociais e Problemas Levantados pelo seu Ensino”, em que procura situar a disciplina antropológica face às
demais ciências da sociedade.
A preocupação do autor não foi tanto salientar os limites, mas, sim, os pontos de encontro entre o saber
antropológico, a Sociologia e a Ciência Política.

O que diferencia a Antropologia das demais ciências sociais, portanto, não é seu objeto de estudo, mas o modo
como concebe a realidade social, o modo como questiona, observa, problematiza os fenómenos humanos.
Lévi-Strauss destaca os pontos de diferença metodológicas entre a Antropologia e a Sociologia. Segundo o
autor, a Sociologia permanece estreitamente ligada ao pesquisador, isto é, ao campo social e epistemológico
daquele que realiza a pesquisa.

Os estudos são conduzidos sempre do ponto de vista do observador, e a partir deste é que se realiza as
análises, com base nos postulados teóricos que constituem a sua expertise.
Deste modo, o pesquisador coloca-se como autoridade do saber sobre determinado assunto ou fenómeno
social, são as suas próprias perspectivas históricas e categorias lógicas que aplica ao contexto que quer
estudar. A preocupação do sociólogo é estabelecer um estudo que faça sen0do dentro do quadro teórico da
disciplina.

Já a Antropologia irá esforçar-se por formular um conhecimento que faça sentido tanto para a população nativa
mais remota quanto para os seus pares.
Isto porque o saber antropológico é produzido com base nas lógicas de pensamento e racionalidade do outro.

Com isso, a realidade, as categorias e os fenómenos a serem estudados não constituem algo a priori imputado
pelo pesquisador, pelo contrário, são os próprios sujeitos pesquisados que indicam os fenómenos importantes,
as realidades a serem analisadas e as categorias que devem ser levadas em consideração.
Este é um movimento necessário para se compreender a diversidade de modos de ser, estar e pensar o mundo
e as experiências sociais.

Lévi-Strauss define a diferença entre Sociologia e Antropologia:


Enquanto a Sociologia trata de fazer a ciência social do observador, a Antropologia procura elaborar a ciência
social do observado, não só quando visa atingir, na sua descrição as sociedades exóticas e afastadas, o ponto
de vista do próprio indígena, como quando amplia o objeto incluindo a sociedade do observador, mas, neste
caso, tentando extrair um sistema de referência fundado na experiência etnográfica que seja independente ao
mesmo tempo do observador e de seu objeto.

Para conseguir alcançar esta perspectiva analítica, Lévi-Strauss destaca duas características próprias do saber
antropológico: objetividade e totalidade. Por objetividade não se entende uma atitude de abstração por parte do
investigador das suas próprias crenças, preferências e ideias pré-concebidas, pois esta objetividade está
presente em todas as ciências sociais.
O antropólogo, através da pesquisa, constrói novas categorias mentais, contribui para a apreensão de novas
noções de tempo e espaço, novas oposições e contradições, mesmo que totalmente estranhas às noções
cultivadas pela cultura ocidental.
A realidade social procurada pelo antropólogo é aquela que faz sentido no plano da experiência vivida do
sujeito, na confluência das experiências sensíveis e inteligíveis, na realidade concreta das experiências e
reflexões, sendo necessárias, muitas vezes, torções comunicativas para se buscar palavras para descrever
determinados factos e dizeres sem incorrer no uso de noções abstratas que só fazem sentido à cultura ocidental
e nada dizem respeito ao pensamento nativo.

Por totalidade compreende-se a tendência de observar a realidade e a vida social como um sistema cujos
elementos estão organicamente ligados, entrelaçados.
Isto implica que a pesquisa não deve centrar-se, por exemplo, no entendimento da economia de determinado
contexto apenas com base na organização e/ou no valor dos termos trocados, mas, sim, em como a política, a
estética, as regras de parentesco e aliança, e a educação influenciam e determinam o modo como as trocas são
organizadas e conduzidas.
É claro que para se aprofundar em determinado fenómeno, torna-se necessário desmembrar uma realidade
social nas suas instituições, como faz a Sociologia.
No entanto, o caminho feito pela Antropologia é inverso: em vez de partir de uma totalidade social e a
desmembrar em partes a serem focalizadas pela pesquisa, parte de um aspeto em relevância numa dada
realidade social e procura reconstruir as redes de conexão que permitem apreender as ligações entre esse
aspeto e a totalidade social.

A Antropologia tem sempre como objetivo encontrar as conexões, reconstruir as linhas que permitem observar
um facto como um “facto social total”, ou seja, apreensível na dimensão política, social, económica, estética e
cultural.
Assim, segundo Laplantine, o objeto teórico da Antropologia não está ligado a um espaço geográfico, cultural ou
histórico particular, pois a Antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em estudar o
ser humano na sua totalidade e na sua plena diversidade.
A Antropologia consiste menos no levantamento sistemático de aspectos políticos, económicos, estéticos,
religiosos, simbólicos de um dado agrupamento humano, do que em mostrar a maneira particular com a qual
estes aspectos se relacionam entre si e fornecem a especificidade de uma sociedade.

2.6. A ciência da diversidade

O foco da análise antropológica está nos pontos de encontro e diferença que a humanidade apresenta nas mais
variadas formas de apresentação, nos mais variados contextos. Com isso, aquilo que costumávamos tomar por
natural, inato, resultante da “natureza humana”, aparece-nos como facto culturalmente construído.
Na experiência etnográfica estabelece-se o chamado “estranhamento”, ou a perplexidade provocada pelo
encontro entre a cultura do observador e do observado, encontro que leva a uma modificação do olhar que se
tinha não só sobre o outro, mas principalmente sobre si mesmo. Como bem define Laplantine:

De facto, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da
nossa. (...) O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das
outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas
não a única. Aquilo que, de facto, caracteriza a unidade do homem, de que a Antropologia (...) faz tanta questão,
é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente
diversos (...) aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros,
para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos: pois se
há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é a sua ap3dão pela variação cultural.

Assim, a Antropologia suscita uma verdadeira “revolução epistemológica” que decorre, justamente, de uma
mudança de perspectiva decorrente da rutura com a ideia de que existe um centro ordenador do saber.
Confrontados com a multiplicidade, os antropólogos são levados a romper com a abordagem que opera de
acordo com uma naturalização, por exemplo, da noção de sociedade conforme construída por teóricos e
filósofos ocidentais do século XVIII. 85
Existem tantas diferentes formas de organização social quanto teorizações a respeito da vida coletiva.
A experiência da alteridade é que nos permite procurar as várias conceções de coletividade e não reduzir essas
concepções a uma construção teórica restrita à intelectualidade europeia.

A Antropologia reinventa-se constantemente por conta da autorreflexão sobre questões éticas e morais
implicadas em sua prática de pesquisa.
A posição de autoridade com que o antropólogo se possa colocar diante do saber do nativo é algo
constantemente apontado como atitude a ser evitada no trabalho de campo: pelo histórico atrelado às
perspectivas evolucionistas, dispositivos retóricos que possam (re)atualizar hierarquias entre culturas não
passam despercebidos nos discursos e nas produções textuais dos antropólogos.

Assim, segundo Goldman, atualmente a Antropologia chegou a um ponto crucial: como não reproduzir, na
produção de conhecimento antropológico, as relações de dominação a que os grupos sociais que estuda estão
submetidos?
A relação prática de pesquisa e produção de teoria deve ser problematizada no próprio fazer antropológico. A
saída é tomar as teorias etnográficas como ponto de partida, e não de chegada da prática. Mas como?

O antropólogo deve aceitar que o saber que produz é uma síntese entre teoria científica e teoria nativa, portanto
nunca de autoria apenas dele, podendo, inclusive, ser desconstruído por pesquisas futuras feitas por outros
antropólogos ou pelos próprios nativos, cada vez mais ativos na produção de conhecimento sobre si mesmos.
Nesta perspectiva, a Antropologia está mais preocupada com a prática de pesquisa do que com a teoria que a
fundamenta e esta característica é o modo como sustenta um compromisso crítico com o mundo, mais do que
uma explicação distanciada e determinista do mundo.

A Antropologia situa-se entre uma ciência sobre os outros e um diálogo com os saberes desses outros.
É um saber destinado a pensar a diferença, explicar o outro, o diverso.
No lugar de excluir, interpretar ou apenas aceitar a diferença, a Antropologia imbui-se do compromisso de
valorizar a diversidade, “de apreendê-la sem suprimi-la, pensá-la em si mesma como ponto de apoio para
impulsionar o pensamento, não como objeto a ser simplesmente explicado”, mas como mecanismo capaz de
promover a crítica e a transformação social.

O antropólogo deve estabelecer uma escolha entre dois modos de produzir conhecimento:
um que parte da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto de estudo, ou seja, busca observar como
entidades como parentesco, indivíduo, sociedade, política, economia se apresentam num contexto etnográfico
específico, como se os conteúdos na0vos fossem as variáveis das formas determinadas pela vida ocidental; O
outro parte do pressuposto de que os conhecimentos nativos são conceitualmente da mesma ordem que os do
antropólogo, portanto, com suas próprias lógicas de ordenação e definição.

Neste sentido, a Antropologia deve procurar descrever os problemas postos por cada cultura.
A ideia é que os problemas reflexivos dos nativos são radicalmente distintos dos problemas reflexivos dos
antropólogos.
Não há um problema universal e soluções.
Há que se considerar o nativo como ser pensante, mas que certamente não pensa como o antropólogo.
É estabelecida uma diferença intransponível entre o que o nativo pensa e o que o antropólogo pensa que ele
pensa. A boa etnografia deve descrever, justamente, o embate entre estes dois pensamentos.

2.8. Antropologia e sua linhagens

Tanto a Antropologia social como a cultural procuram conhecer tudo o que constitui uma sociedade: modos de
produção económica, técnicas, organização política e jurídica, sistemas de parentesco, sistemas de
conhecimentos, crenças, línguas, psicologia, criações artísticas, etc.
Assim, qual seria a distinção entre elas?

À primeira vista, se nos limitarmos à diferença entre os termos “social” e “cultural”, pode parecer que a distinção
entre uma Antropologia e outra é pequena.
A distinção que aparece num primeiro plano refere-se ao contexto de produção antropológica: a Antropologia
cultural surge nos Estados Unidos, já a Antropologia social na Inglaterra.
Deste modo, a adoção de uma destas linhas implica orientações teóricas bem definidas e específicas, em
referência a seus contextos socioculturais de produção.

A noção de cultura é de origem inglesa, sendo atribuída ao antropólogo Tylor, que a define como um conjunto de
crenças, conhecimentos, arte, moral, leis e costumes adquirido pelo homem enquanto membro de uma
sociedade.
No entanto, foi a Antropologia americana que desenvolveu esta definição, e a cultura aparece como técnica ou
modo através da(o) qual a vida social se torna possível.

O ser humano, nesta perspectiva, seria o homo faber, aquele que operacionaliza essas técnicas de acordo com
necessidades dadas.
Neste sentido, a Antropologia cultural procura compreender de que modo o sistema de relações que une todos
os aspetos da vida social, influenciados pela Geografia e pela Psicologia, desempenha um papel fundamental
na transmissão da cultura de geração para geração, apreensível no comportamento e nos hábitos de cada um
dos seus integrantes.
Tudo se passa como se o foco estivesse na relação entre indivíduo e cultura, sendo um conjunto de normas e
regras que rege o comportamento do indivíduo na sociedade.

Já a Antropologia social dedica-se à apreensão da organização social.


A realidade social é complexa, dotada de múltiplos arranjos e conexões que se referem a determinadas
estruturas.
Uma técnica, um comportamento, não possuem apenas um valor utilitário para suprir determinada necessidade,
mas possuem uma função social, e esta, para ser compreendida exige considerações de ordem sociológica, e
não apenas históricas, geográficas ou psicológicas. E é o conjunto das funções sociais que permite apreender
uma estrutura social.

O foco da Antropologia social não é o indivíduo, ou o modo como é determinado pela cultura e como lida com a
vida social, mas sim o grupo, o social, ou seja, o conjunto de formas de relações que permite ao grupo fundar e
ordenar a coletividade.

Se a Antropologia cultural busca estudar os factos sociais como coisas, a Antropologia social procura apreender
de que modo coisas são factos sociais. Conforme Lévi-Strauss:

● [...] a Antropologia cultural e a Antropologia social cobrem exatamente o mesmo programa, uma
partindo das técnicas e objetos para chegar à ‘super técnica’ que é a atividade social e política, que
possibilita e condiciona a vida em sociedade, e a outra partindo da vida social, para descer até as
coisas às quais ela imprime a sua marca, e às atividades através das quais ela se manifesta. Ambas
compreendem os mesmos capítulos, talvez dispostos em ordens diferentes, e com um número variável
de páginas dedicado a cada um deles.
● quer seja cultural, quer seja social, a Antropologia sempre aspira ao conhecimento do homem na sua
totalidade, considerado a partir das suas produções, representações e relações.

2.9. Génese e objeto da Sociologia

A formação da Sociologia

O surgimento histórico da Sociologia como disciplina científica foi inicialmente impulsionado pelas profundas
transformações ocorridas na sociedade europeia, em resultado da chamada “dupla revolução”, no final do século
XVIII: a Revolução Industrial (de origem britânica), com implicações, sobretudo, na organização
económica dos países, e a Revolução Francesa de 1789, cujos principais efeitos se fizeram sentir a nível político
e social.
Estes dois processos revolucionários operaram uma rutura radical com os modos de vida característicos das
sociedades anteriores (o Antigo Regime) fundando uma nova ordem social – o mundo contemporâneo.

A Revolução Francesa de 1789 representou o triunfo das ideias e valores seculares, como a liberdade e a
igualdade, sobre a ordem social tradicional.
Foi o início de um movimento dinâmico e intenso que a partir de então se espalhou pelo globo, tornando-se algo
inerente ao mundo moderno.

A Revolução Industrial, iniciada na Grã Bretanha, depois em outros países da Europa e na América do Norte,
promoveu um conjunto amplo de transformações económicas e sociais que acompanharam o surgimento de
avanços tecnológicos como a máquina a vapor e a mecanização.
O surgimento da indústria conduziu a uma migração em grande escala de camponeses, que deixaram as suas
terras e se transformaram em trabalhadores industriais em fábricas, o que causou uma rápida expansão das
áreas urbanas e introduziu novas formas de relacionamento social.

Os pioneiros da Sociologia confrontaram-se com os eventos que acompanharam essas revoluções, tentando
compreender tanto as razões da sua emergência como as suas consequências.
Datam de então os trabalhos pioneiros do francês Auguste Comte – que criou o termo “sociologia” -, do alemão
Karl Marx e do inglês Herbert Spencer, os quais produziram algumas das mais importantes análises científicas
da sociedade do seu tempo, tendo sido percursores da Sociologia tal como hoje a conhecemos.

A passagem do século XIX para o século XX assinala o início da consolidação da Sociologia enquanto forma de
conhecimento científico, integrando os programas universitários, expandindo temas perspetivas de análise e
diversificando correntes teóricas (positivismo, marxismo, evolucionismo, funcionalismo, sociologia
compreensiva...).
São os sociólogos Émile Durkheim, em França, e Max Weber, na Alemanha, que se destacam como fundadores
dos alicerces teóricos fundamentais da disciplina, influenciando de modo decisivo, as gerações vindouras de
sociólogos.

Os factos sociais como objeto da Sociologia

A realidade social, entendida como um conjunto de fenómenos ou factos particulares, constitui objeto real da
Sociologia, tal como para as demais ciências sociais.
Do mesmo modo Émile Durkheim entendia que os factos sociais forneciam a matéria prima da Sociologia.
Definiu-os como “as maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder
coercivo em virtude do qual se lhe impõem”.
Aqui estão, com efeito, enunciadas as duas características principais do facto social segundo Durkheim: a de
que as condutas individuais são determinadas pelos factos sociais que envolvem os indivíduos (são-lhes
exteriores), não dependendo da vontade (são coercivos).
Tais maneiras de agir, pensar, sentir, porém, não devem ser entendidas como imutáveis no espaço e no tempo –
pelo contrário, são relativas, variando consoante as sociedades ou ao longo do tempo dentro da mesma
sociedade.

O Suicídio (1897)

Nesta obra, Durkheim encontrou significativas regularidades sociais a partir da comparação de várias séries de
dados estatísticos, relacionando-as com outros aspetos da sociedade: constatou, assim, que o suicídio é mais
frequente nas pessoas solteiras do que nas casadas, nos protestantes do que nos católicos, nas sociedades
industriais modernas do que nas sociedades tradicionais, em períodos de crise política ou económica...
Deste modo, Durkheim chegou à conclusão de que existem forças sociais externas ao indivíduo que influenciam
as taxas de suicídio (principalmente o grau de integração dos indivíduos na sociedade), o que faz delas factos
sociais – ou seja, são produto de uma totalidade social e não se reduzem a atos meramente individuais.

Pensemos, nesta perspectiva de totalidade social.


Integramos uma família com uma história que nos precede e que nos transmitiu um sistema de valores e de
normas; uma sociedade cujo funcionamento assenta na partilha de regras de conduta, formas de pensamento e
modelos culturais entre os seus membros; ao longo do nosso percurso escolar fomos interiorizando valores,
normas e comportamentos... – processo de socialização: como nos transformamos em seres sociais
São aspetos profundamente enraizados na estrutura social interna da sociedade (sendo, portanto, externos ao
indivíduo), e que, em princípio, escapam ao nosso controlo individual (impõem-se coercivamente, diria
Durkheim).
Além disso, estes aspetos (os factos sociais) também são relativos, isto é, a sua configuração muda
substancialmente se os situarmos em Portugal ou num país oriental, nos dias de hoje ou há um século, - em
suma, eles não são indiferentes aos contextos sócio-históricos em que se inserem.

Estrutura social e ação social

Já Max Weber, colocando-se num plano distinto do de Durkheim, alargou a perspectiva sociológica ao introduzir
o conceito de ação social.
Designando a Sociologia como uma ciência compreensiva e interpretativa, deu primazia à dimensão individual
da realidade social através da análise do sentido que os indivíduos atribuem às suas ações, acentuando o seu
caráter intencional.

Enquanto Durkheim privilegiava as regularidades duradouras que se verificam nos fenómenos sociais, Weber
afirmou o caráter singular e único desses fenómenos, empenhando-se em compreender e interpretar o sentido
da ação social através, designadamente, das suas configurações históricas.
Se o estudo sobre o Suicídio tivesse sido conduzido por Weber, não poria de parte aanálise das cartas deixadas
pelos suicidas, das suas histórias de vida e dos testemunhos familiares – em suma, de tudo o que permitisse
compreender os motivos da ação individual no seu contexto social.

Ao contrário, Durkheim entendeu que tais documentos resvalavam para a subjetividade e contrariavam a
exterioridade e coercividade dos factos sociais, pelo que se recusou a analisá-los.
Podemos aplicar a perspectiva weberiana sem entrar em contradição com o que dissemos antes sobre a forte
influência exercida pela estrutura social nos nossos atos e disposições mentais. Na verdade, não deixamos de
ser indivíduos relativamente autónomos: fazemos escolhas acerca das nossas condutas, refletimos criticamente
sobre as regras que a sociedade tende a impor-nos, adaptamos e modificamos as normas e os valores
interiorizados em função de circunstâncias concretas, ou seja, atribuímos um certo sentido às nossas ações
individuais, que desencadeamos intencionalmente.

2.10. As Teorias Sociológicas

As teorias e correntes agrupam-se em duas tendências maiores de análise social: a macrossociologia e a


microssociologia.
A diferença entre uma perspetiva e outra reside sobretudo no plano que serve de campo de estudo. Enquanto a
primeira tendência prima por uma abordagem que valoriza a sociedade como um todo (holismo) a segunda,
parte das relações entre os sujeitos e daí extrapola para o grupo e, finalmente, para a sociedade.

A Macrossociologia

Os seus pressupostos assentam na primazia da estrutura social sobre o indivíduo (estruturalismo).


O estruturalismo refere-se a todas as formas de análise sociológica que vejam a sociedade como um todo e que
estudem a forma como esse todo é estruturado.
Retirando importância à vontade e arbitrariedade que compõem as motivações próprias dos sujeitos, defende
que existe um sistema de valores central que, através do constrangimento ou do consenso prescreve e sanciona
as atitudes e os comportamentos dos sujeitos.
A pedra de toque desta teoria prende-se com o facto de que, em sociedade, o sujeito não tem vontade pura,
emanada de si próprio.
A subjugação do indivíduo à sociedade é um ponto fundamental nesta abordagem.
Por sua vez, a sociedade é vista como um objeto existente e verificável. Ela é entendida como uma “coisa” e não
como um conceito abstrato.

Esta atitude seria, mais tarde, severamente criticada, especialmente pelos sociólogos que apregoaram a
perspectiva microssociológica.
De acordo com esta última, o estruturalismo reifica a sociedade (de res –“coisa”), enquadrando o indivíduo numa
posição de apatia natural, destituído de poder decisório sobre os seus próprios atos.
A atitude ou corrente estruturalista subdivide-se em dois tipos de abordagens, às quais se chamou teoria do
consenso e teoria do conflito.
Lembremo-nos que ambas estas teorias têm uma visão holista da sociedade.

Teorias do Consenso

As teorias do consenso social baseiam-se no princípio segundo o qual os elementos de uma sociedade têm
tendência a organizar-se, mesmo que não existam formas expressas que a isso obriguem. Por exemplo, é
costume, em espera, as pessoas formarem filas.
Essa atitude, segundo os estruturalistas, é automática e baseia-se no instinto de organização.
Aparte esta organização primária, todos os comportamentos tomados em grupo são definidos a partir do
nascimento do indivíduo - socialização.

Socialização: processo de internalização ou incorporação das referências sociais promulgado pelas instituições
que acompanham a inserção do indivíduo na sociedade.
Estas instituições organizam de forma a nortear as suas estratégias de socialização de acordo com os valores
entendidos como princípios orientadores do modo de estar no mundo.

O consenso parte, então, da tomada de consciência de princípios reguladores que pretendem levar à prática a
verdade dos valores aceites pela sociedade como certos e verdadeiros (convenções).
A aceitação desses valores pressupõe, portanto, a sua apropriação por parte tanto da sociedade como do
sujeito.
É aliás com base nesta ideia de “valores apropriados” que se define o lugar de cada indivíduo no sistema
social.
Os papéis sociais que cada indivíduo cumpre asseguram, assim, a continuidade de uma sociedade estável,
integrada e regulada.

Teorias do Conflito

As teorias do conflito partem do princípio base de que todas as sociedades são estratificadas (organizadas em
classes sociais).
Todas as sociedades são hierarquizadas e estas hierarquias estão assentes na dominação de uma classe sobre
outras.
De acordo com estes pressupostos, o estudo social deveria ser centrado na influência dos conflitos sociais no
processo de continuidade e/ou mudança das sociedades.

Assim, a relação básica entre a classe dominante e a dominada regula-se de acordo com a primazia técnica e
económica da classe dominante sobre a dominada, esta última constituindo apenas a força primária de trabalho.
Uma das mais importantes críticas feitas aos teóricos do consenso reside no facto de que os valores que estão
na base da socialização são “trabalhados” de acordo com a permanente dominação de uns modos de pensar
sobre outros.

Em termos sintéticos, quem socializa é o dominador e a imposição dos valores dos grupos dominantes é capaz
de sustentar uma estrutura social que favoreça a sua própria posição na sociedade.
Assim, a mudança social não deve resultar da evolução mas sim da revolução.
Dentro desta lógica de raciocínio, a teoria que mais se destacou foi o marxismo.
De tal forma a sua influência na história foi importante que serviu de inspiração a ideologias políticas e a
profundas reflexões sobre a história humana, visíveis, ademais, em praticamente todos os movimentos
reivindicativos.

Marxismo

(1818-1883)
A sua tese partia do princípio que o conflito social era omnipresente, visto que, sendo a economia a base da
sociedade e da estrutura social, haveria sempre lugar à apropriação por parte da classe dominante (a que
definha os processo de produção) do trabalho da classe trabalhadora, valorizando-o através da capitalização e
pagando apenas um valor nominal (e não real) ao trabalhador.

O proletariado estava assim submetido à burguesia. Este facto histórico levava a que se passasse das meras
relações de produção para as relações de classe.
A ideia é sustentada pelo facto de os indivíduos participarem em relações cujo significado não existe (as
relações são valorizadas de acordo com as intenções de enriquecimento do patronato, sendo o trabalhador
apenas uma peça do conjunto dos sistemas de produção, que apenas tem uma função operativa).

Por outras palavras, o trabalhador é destituído da sua natureza humana e tornado apenas num número cuja
validade se encontra na sua potência para trabalhar. Mais, a parte de humanidade que o trabalhador transmite
para o objeto ou ação que realiza, o seu cunho pessoal e emotivo, não é valorizada nos salários. Essa parte é
aquela que permite ao patrão exigir um preço maior no mercado (não sendo o trabalhador compensado por esse
valor).

Assim, o trabalhador é alienado da sua verdadeira função no sistema de produção, sendo reduzida a sua função
àquilo que é visível pelo objeto ou serviço.
Através da formação do conceito de trabalho humano, Marx estabeleceu um plano de comparação para todos os
Tipos de trabalho específico e portanto uma forma de uniformizar o valor do esforço do trabalhador.

Segundo Marx, o trabalho humano é impagável (por exemplo, é impossível medir em termos económicos o
sacrifício do trabalhador, ou o seu empenho na elaboração dos objetos), o que se paga é apenas o trabalho
específico que adquire o tal valor nominal, longe da verdade do real valor do trabalho. A mais-valia que o patrão
vai buscar com a venda dos produtos é acumulada para seu proveito ou é investida ou tornada em capital, o que
em nada ajuda o trabalhador.

Pelo contrário, se a mais-valia for investida na forma de máquinas, o trabalhador acaba por ser, a médio prazo,
prejudicado, pois que vai ver diminuir cada vez mais a importância da sua função. Paradoxalmente, o
trabalhador permite ao patrão melhorar a vida à medida que piora a sua.
Finalmente, a classe economicamente dominante é capaz de dominar outras esferas do sistema social, da
política à religião, criando uma ideologia que esconde a verdadeira natureza das relações sociais da classe
dominada. Esta só tem uma forma de se defender: revolucionando-se (através de uma crítica práti), após ter
analisado os seus problemas e constatado as fontes dos mesmos (crítica teórica).

Vejamos, então, no que é que as teorias do consenso e do conflito nos podem ajudar no conhecimento da
sociedade:
Ambas enfatizam o processo de socialização e ignoram a individualidade e a influência dos indivíduos no
processo de mudança social. Enquanto a teoria do consenso vê o indivíduo como um mero robô que reduz a
variedade dos seus comportamentos aos comportamentos-padrão da sociedade, a teoria do conflito vê os
indivíduos como elementos subordinados por regras e valores da classe dominante;

Reificam a sociedade: esta é apenas regulada pela consciência social. Os seus constituintes são produtos da
racionalidade/ ideologia, menosprezando-se a emoção e as motivações individuais;
Usam de uma perspectiva a-histórica, ignorando o desenvolvimento da sociedade e minimizando o envolvimento
humano no desenvolvimento estrutural das sociedades;
Tendem a situar os comportamentos desviantes como anómalos;
Omitem a importância do contexto em que se insere a sociedade; embora as teorias do conflito, especialmente o
marxismo inicial, se situe num espaço histórico concreto, a tendência do neomarxismo é prolongar esse contexto
para além do seu surgimento.

Microssociologia

Contrariamente à visão holista e reificante da sociedade, a visão microssociológica dá muita importância às


trajetórias dos indivíduos na sociedade e às formas como estes se agregam e formam grupos, que, no seu
conjunto formam a sociedade.
Por oposição ao método dedutivo apregoado pelos teóricos da macrossociologia, os teóricos da
microssociologia primam pelo emprego do método indutivo (partindo do indivíduo e progredindo para a
sociedade ou, o mesmo é dizer, da parte para o todo).

Assim, estas teorias procuram valorizar a ação do sujeito e as implicações da sua arbitrariedade (fruto das suas
paixões) na trajetória geral da sociedade.
A constatação da importância da ação dos sujeitos deu-se à medida que se verificava que a força de certos
grupos, unidos por determinadas causas, era preponderante na alteração da ordem social tradicional.
As “revoluções” tendiam mais a ser de âmbito cultural (de informação) e conseguiam alterar princípios e valores
residentes ou mesmo criar novos (por exemplo, dos movimentos migratórios vieram trazer alterações à estrutura
social que nenhuma instituição conseguia prever).

Valorizar os modos como os atores sociais se relacionam e se deparam com os constrangimentos formalizados
pelas teorias macrossociológicas.
Este é, aliás, o objetivo comum às duas maiores teorias que intentaram valorizar o papel dos sujeitos no que
concerne à persistência e à mudança sociais – a teoria da ação social (Weber) e a teoria do interacionismo
simbólico.

Teoria da ação social

Através da aplicação do conceito “verstehen” (compreensão), Weber estipula como base da sua teoria a ideia de
que a ação ou comportamento depende do que o sujeito compreende da ação do(s) outro(s) indivíduo(s).
Defende que o indivíduo desempenha um papel criativo no desenvolvimento da sociedade.

Para que a sociedade e a cultura se desenvolvam é necessária a socialização, mas as regras e os valores que
são internalizados não são nem estáticos nem determinados pela sociedade, estão sempre a ser mudados e
adaptados pelas ações e decisões dos indivíduos que a compõem.

Influenciado por Mead e Goffman (interacionistas simbólicos) e por Norbert Elias (configuracionista), Weber crê
que as ciências sociais não são ciências mono-causais – os seus fenómenos têm várias causas e não apenas
uma (pluricausalidade).
Esta pluricausalidade permite par0r das realidades sociais fragmentadas e das motivações, intenções e
significados dos atores sociais, sem deixar de encadeá-los e articulá-los com diversos fatores e
constrangimentos, de modo a obter regularidades probabilísticas e explicações causais dos fenómenos sociais.
Todavia, apesar de múltiplas, as causas dos factos sociais, (entenda-se, os comportamentos próprios, dos
sujeitos), inscrevem-se em esquemas de comportamentos que constituem ideais-tipo de ação social.
Estes ideais-tipo resultam da acentuação de um determinado fenómeno comparando-o com outros fenómenos
doutros tempos e realidades de forma a procurar a lógica interna presente nas situações.

Weber não entende a sociedade como um fenómeno não distinto, mas sim formada por indivíduos que se
compreendem.
Mais, a ação ou comportamento depende do que o sujeito compreende da ação dos outros indivíduos.
O indivíduo desempenha um papel criativo no desenvolvimento da sociedade.

Para que esta se desenvolva é necessária a socialização, mas as regras e os valores que são internalizados
não são nem estáticos nem determinados pela sociedade.
Os indivíduos podem mudar e adaptar o seu comportamento através da negociação dos papéis.
Assim sendo, as regras e os valores estão sempre a ser mudados e adaptados pelas ações e decisões dos
indivíduos que compõem a sociedade.
Teoria do interacionismo simbólico

A teoria do interacionismo simbólico assenta na compreensão e na interrelação entre o indivíduo e a estrutura.


Começa-se a procurar as razões dos próprios comportamentos, procura-se também o que atrai os sujeitos e o
que é valorizado no todo da interação.
Mais do que internalizar as regras sociais, os indivíduos são capazes de analisar e adaptar o seu próprio
comportamento ao das outras pessoas.

Goffman no estudo sobre asilos e hospícios provou que os sujeitos, embora sendo todos “self’s” diferentes, eram
moldados e determinados pelas regras rígidas das instituições desse tipo.
Assim nasceu o conceito de “instituição total”. De acordo com esta ideia, o indivíduo é totalmente plasmado
pelas regras da instituição, não tendo lugar para manifestar a sua criatividade e para exprimir a sua
individualidade.
O indivíduo ficaria assim “despido” da sua personalidade e não teria espaço próprio.

Em condições sociais normais, os indivíduos apresentam uma imagem que os distingue e os situa em termos de
identidade.
Esta figuração é tudo aquilo que a pessoa empreende para não “perder a face”.
É uma tentativa de padronização da sua personalidade e de classificação de características que pretende tornar
visíveis aos outros.

O interacionismo simbólico sustenta que as pessoas se colocam no ponto de vista dos outros e dispõem de
representações sobre si mesmos e sobre os outros, i. e., tomam o papel dos outros (“role taking”) e realizam a
sua própria autoimagem (“role-making”);
O interacionismo simbólico atende ao comportamento do papel efetivo e ao modo como cada um o constrói em
relação às expectativas próprias e dos outros. Existe sempre um processo de negociação;

No interacionismo simbólico as organizações não são construídas para realizar as necessidades do sistema,
mas para realizar intenções, motivações e objetivos das pessoas. Não há uma organização estática do sistema
mas sim uma tomada de posição a favor dos indivíduos;

A polémica que tem aquecido o debate entre a macro e a microssociologia assenta na dicotomia
sujeito-estrutura – ou agency-structure .
Uma tentativa de superação dessa dicotomia foi encetada por Anthony Giddens que, através do conceito de
dupla estruturação, procurou provar a indissociabilidade entre o sujeito e a estrutura.
Este conceito foi também utilizado na antropologia por Clifford Geertz, na sua teoria interpretativista e por Pierre
Bourdieu que, entre outras asserções, defendia que os sujeitos estruturam a estrutura e esta estrutura os
sujeitos, através de um processo contínuo de incorporação da realidade social que se manifesta nos hábitos e
no hexis corporal.

3. Sociedade, Cultura e Identidade


3.1. Cultura de Diversidade Cultural

1. Conceito de Cultura

● A palavra “cultura” é pluridimensional e pode significar:


● Terra trabalhada para produzir vegetais;
● Desenvolvimento do espírito;
● Civilização (conhecimentos, crenças religiosas, arte, moral, costumes, capacidades e hábitos);
● Desenvolvimento material e técnico;
● Património social;
● Modo de vida de um povo.

A cultura é um fenómeno exclusivo do ser humano e representa tudo o que nele não é inato, não é natural.
Assim, sabemos que os atos de comer, beber, dormir, reproduzir-se e morrer são naturais no Homem, mas que
a forma como o pratica ou organiza no seu quotidiano, no seu grupo, é cultural.
A cultura representa, pois, as várias formas que o ser humano encontrou de se relacionar com a Natureza,
inclusive com a sua própria natureza, e de a compreender, organizar e manipular em seu proveito e para a sua
própria organização.

Os instrumentos de trabalho e de produção, os rituais, as crenças, o vestuário, as regras de comportamento, as


formas de comunicação, a culinária, a arte, a arquitetura, as relações sociais e familiares, a educação, a
conceção de bem e de mal ou de certo e de errado, a hierarquização das necessidades, a religião, a política, as
instituições e as expectativas em relação ao futuro são fenómenos culturais.
A cultura organiza e dá sentido à vida dos grupos e das sociedades e é, simultaneamente, o resultado dessa
mesma organização.
Na Sociologia, a cultura é analisada na perspetiva da sua dimensão social.

A cultura é aprendida e não herdada geneticamente. Ao contrário dos outros animais, o ser humano tem de
aprender tudo sobre a vida em sociedade.
Por exemplo, os animais procuram alimento quando têm fome e sabem instintivamente o que comer e como o
obter.
O ser humano aprende desde a infância que a alimentação é sujeita a horários e à utilização de instrumentos
adequados, que há determinados alimentos que se podem comer e outros que não são permitidos, que há
regras de cortesia e de boa educação durante as refeições.

Os elementos culturais são partilhados por um determinado número de pessoas, as quais, ao fazê-lo,
constituem-se como uma comunidade distinta das demais.
A cultura tem, assim, a função social de organizar a interação dos indivíduos, de lhes atribuir significado e de
facilitar a vida em conjunto.
O termo cultura pode ser aplicado a uma sociedade global (por exemplo, a chamada “cultura ocidental” da qual
fazemos parte) mas também a grupos mais pequenos (a subcultura punk, por exemplo).
A cultura concretiza-se num determinado modo de vida que engloba maneiras de pensar, de agir e de sentir. Ou
seja, a cultura determina os valores e as crenças dos indivíduos (o seu pensamento), os seus comportamentos
(condicionados precisamente por esses valores e essas crenças) e os seus sentimentos.

Ao conjunto de normas e símbolos que regem e unificam, numa dada cultura, as maneiras de agir, pensar e
sentir dos seus membros (ou seja, as práticas e comportamentos) chamamos padrão de cultura.
Por exemplo, a forma como nos vestimos, cumprimentamos e interagimos nos locais públicos corresponde a
comportamentos padronizados, dos quais nem sempre nos apercebemos mas que nos permitem saber como
agir e o que esperar dos outros em cada situação.
Esta possibilidade é, contudo, fundamental para a manutenção da coesão social, pois gera nos indivíduos um
sentimento de segurança do qual só se apercebem quando são confrontados com algo diferente, inesperado ou
bizarro (uma situação, um comportamento, uma imagem...).

Os elementos materiais e imateriais da cultura

Podemos considerar como elementos imateriais (ou intangíveis) de uma cultura, os seus valores, as suas
crenças, as suas normas, a sua linguagem e os seus ideais de bem e mal, do justo e do injusto, da beleza, da
liberdade, entre outros
Já os elementos materiais (ou tangíveis) de uma cultura podem ser encontrados, por exemplo, nos seus
monumentos, na sua arte, nos seus rituais e nos seus instrumentos de trabalho – em suma, nas suas
concretizações objetivas.
Apesar desta distinção, os aspectos materiais e imateriais da cultura não devem ser encarados separadamente.
Eles influenciam-se mutuamente.

Na cultura hindu, a vaca é considerada um animal sagrado e, por isso, a sua carne é rejeitada na alimentação.
Neste exemplo, o imaterial condiciona o material, a crença dita o comportamento.
Inversamente, graças à proliferação do uso da informática e do telemóvel, os postais de boas festas enviados
pelo correio foram largamente substituídos pelas mensagens de correio eletrónico e nas redes sociais e pelos
SMS. Aqui o material condicionou o imaterial, a tecnologia modificou a tradição.

Paralelamente à influência recíproca entre elementos materiais e imateriais de cada cultura, que conduz à sua
evolução ao longo do tempo, o próprio ser humano é um agente dos produtos de cultura.
Cada indivíduo herda o património cultural dos seus antepassados, aprende-o desde que nasce, mas esse
património não é absorvido passivamente nem é imutável.
Cada vez mais o ser humano acrescenta elementos novos à sua cultura e fá-la evoluir, transformando-a, por seu
turno, a herança a transmitir aos seus descendentes.
O ser humano é um produto da cultura em que nasce e, simultaneamente, produtor de cultura.

Os valores

Os valores são um elemento imaterial ou intangível da cultura.


Um valor é algo que, numa determinada cultura, se considera ideal ou desejável.
Além disso, os valores concretizam-se por intermédio das regras e das normas que, por sua vez, condicionam
os comportamentos.

“As ideias que definem o que é importante, útil ou desejável são fundamentais em todas as culturas. Essas
ideias abstratas, ou valores, atribuem significado e orientam os seres humanos na sua interação com o mundo
social. A monogamia – a fidelidade a um único parceiro sexual – é um exemplo de um valor proeminente na
maioria das sociedades ocidentais. As normas são as regras de comportamento que refletem ou incorporam os
valores de uma cultura. As normas e os valores determinam entre si a forma como os membros de uma
determinada cultura se comportam”.

O exemplo apresentado no texto anterior refere o valor da monogamia como sendo dominante nas sociedades
ocidentais.
Este valor é materializado, em cada país, num conjunto de normas – as leis – que definem as formas possíveis
de casamento entre indivíduos, os direitos e deveres que cada uma dessas formas implica e o enquadramento
da sua dissolução. São estas leis que, por sua vez, vão condicionar a vida e os comportamentos dos indivíduos
que por elas se regem.

Recentemente, foi aprovada em Portugal uma lei que criminaliza os maus tratos a animais. Há muito que
diversas organizações defensoras dos direitos dos animais vêm fazendo campanhas de sensibilização contra o
abandono e os maus-tratos exercidos sobre animais e apelando aos governantes que legislassem sobre esta
matéria.
Este é um exemplo de como o ser humano é um agente produtor de cultura e de como um elemento material da
cultura – uma lei – pode provocar a evolução dos hábitos culturais dos países.
Os valores predominantes numa dada cultura podem estar descritos formalmente, nomeadamente em textos
institucionais, como as leis de cada país. Outros não estão formalizados mas apenas inscritos na mente de cada
indivíduo – são, por isso, informais -, não deixando de condicionar fortemente as suas ações.
A liberdade, por exemplo, é considerada um valor essencial em Portugal e, desde o 25 de Abril de 1974, está
consagrado e regulamentado nos textos jurídicos: a liberdade de opinião, de expressão, de voto e de
associação.
Já a amizade, por seu turno, é um valor também globalmente aceite mas não está formalizado.
A amizade pressupõe uma série de regras implícitas, como o dever de lealdade e o companheirismo, e
concretiza-se em comportamentos mais ou menos comuns, como a comunicação sob variadas formas, o
convívio e a partilha.

Uma das características principais dos valores é o facto de orientarem (ou mesmo determinarem) as ações das
pessoas e dos grupos. Os grupos sociais, com efeito, não pensam, avaliam, decidem e escolhem no vazio –
fazem-no, sim, pautados por um sistema de referências em que acreditam e que consideram desejável.

Outra caraterística é a relatividade espacial e temporal. Os valores são sempre específicos de uma sociedade
particular, que os moldou e adotou.
Por essa razão, os valores não só variam de cultura para cultura como igualmente dentro da mesma cultura,
entre vários grupos que a constituem, e ao longo do tempo.

Hoje em dia, por exemplo, a infância é extremamente valorizada na cultura ocidental.


Porém, há apenas dois séculos as crianças eram consideradas adultos pequenos e nem sempre recebiam os
cuidados básicos e de afetividade que hoje são considerados fundamentais, nem sequer a sua escolarização
era considerada necessária na grande maioria dos casos.
A infância enquanto categoria etária e social é, por conseguinte, um conceito historicamente muito recente na
nossa cultura.

A Sociologia tem como função analisar os valores de um determinado grupo ou sociedade sem emitir juízos de
valor.
Este processo exige uma atitude de rutura com o senso comum e com os seus obstáculos, nomeadamente as
opiniões e pré-conceitos do investigador.
Sociologicamente, não há valores certos nem errados, apenas os valores vigentes na cultura a analisar.

A diversidade cultural
A diversidade de culturas traduz-se na diversidade de valores e de comportamentos.
Existem variadíssimas culturas em todo o mundo.
Existem grupos mais restritos, dentro de cada sociedade, culturalmente distintos.

Por exemplo, em Portugal encontramos traços culturais característicos das várias regiões, tão diferentes entre
si, e mesmo dentro de cada região, de cidade para cidade ou de aldeia para aldeia.
Numa grande cidade, podem coexistir subgrupos com culturas igualmente distintas.
Existem também as chamadas culturas de classe, em que as diferentes classes sociais defendem valores
próprios, o que origina comportamentos também diferentes.

No entanto, os hábitos culturais distintos não estão tão distantes uns dos outros como poderia parecer. As
grandes capitais europeias, por exemplo, são cada vez mais multiculturais, em resultado dos movimentos
migratórios globais e da sua própria história expansionista.
Pessoas de diferentes origens étnicas, com idiomas e hábitos culturais distintos, cruzam-se diariamente nas
mesmas cidades, nos mesmos bairros e nos mesmos locais de trabalho.
A diversidade é uma realidade incontornável.

“ a maioria das sociedades industrializadas (...) é culturalmente cada vez mais diversificada, ou mul>cultural (...)
processos como a escravidão, o colonialismo, a guerra, a migração ou a globalização contemporânea, levaram a
que populações iniciassem processos de migração e se instalassem em novas localizações. Tal conduziu à
emergência de sociedades que são culturalmente mistas, ou seja, a sua população é constituída por um
determinado número de grupos de diferentes origens culturais, étnicas, linguísCcas”.
Se partirmos do princípio de que os nossos valores, os nossos hábitos e os nossos comportamentos são os
“normais”, assumimos então que todos os outros, diferentes dos nossos, são inferiores e/ou condenáveis.
Etnocentrismo: julgarmos as outras culturas tendo como ponto de referência a nossa própria cultura.
Tal atitude gera fenómenos de rejeição e, eventualmente, de conflito entre indivíduos portadores de culturas
diferentes.

A diversidade cultural é uma realidade, nomeadamente em locais como a Europa e os Estados Unidos da
América, mas esse facto nem sempre é pacífico e bem aceite.
A cada passo ouvimos falar de manifestações de intolerância, nomeadamente sob a forma de racismo – ou seja,
de rejeição de indivíduos de raça ou etnia diferente – e de xenofobia – rejeição de indivíduos de nacionalidade
diferente.

No entanto, o ser humano sempre foi migrante e muitas das sociedades desenvolvidas atuais resultam de
processos históricos que envolveram o encontro e a convivência (por vezes até a miscigenação) de diferentes
povos.
Por isso, a aceitação e a gestão da multiculturalidade nas sociedades atuais tornaram-se fundamentais para a
coabitação pacífica dos vários grupos étnicos, sendo que a interação entre eles pode até revelar-se
enriquecedora para todos.

3.2. Socialização: o conceito, os processos e os resultados

O conceito de Socialização

A socialização consiste na interiorização que cada indivíduo faz, desde que nasce e ao longo de toda a sua vida,
das normas e valores da sociedade em que está inserido e dos seus modelos de comportamento.
Socializar é, portanto, inculcar no indivíduo os modos de pensar, de sentir e de agir do grupo em que está
integrado.

Este condicionamento permite a integração dos indivíduos na sociedade. Estes aprendem os modelos culturais
vigentes, assimilam-nos e depois adotam-nos como seus, tornando-se seres sociais.
A interiorização de normas e valores comuns faz aumentar a solidariedade entre os membros do grupo e, por
isso, a socialização é determinante para a integração social.
A socialização acontece ao longo da vida embora com intensidades e em contextos diferentes.
Durante a infância ocorre a chamada socialização primária. Nesta fase, a criança é socializada sobretudo pela
família e as aprendizagens são mais intensas e marcantes, porque biologicamente a criança está preparada
para receber e assimilar grandes doses de informação e porque existe uma forte ligação emocional e afetiva
com os seus agentes de socialização.
Ao longo deste período, são aprendidas e interiorizadas coisas tão determinantes quanto a linguagem, as regras
básicas da sociedade, a moral e os modelos comportamentais do grupo a que se pertence.
Os contos tradicionais infantis constituem formas lúdicas de fazer compreender às crianças a diferença entre o
bem e o mal, por exemplo, incutindo-lhes princípios morais básicos que as condicionam a “portar-se bem”,
segundo os parâmetros adultos.

Já a socialização secundária é todo e qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado
em novos setores da sua sociedade.
Acontece a partir da infância e em cada nova situação com que nos deparamos ao longo da vida: na escola, nos
grupos de amigos, no trabalho, nas atividades de lazer, nos países que visitamos ou para onde emigramos.

Em cada novo papel que assumimos – aluno, amigo, colega, profissional, turista, pai/mãe, avô/avó, reformado –
existe uma aprendizagem das expectativas que a sociedade ou o grupo depositam em nós relativamente ao
nosso desempenho, assim como dos novos papéis que vamos assumindo nos vários grupos a que vamos
pertencendo e nas várias situações em que somos colocados.

A socialização primária tem um valor primordial para o indivíduo e deixa marcas muito profundas em toda a sua
vida. Na socialização primária constrói-se o primeiro mundo do indivíduo. A criança confia nos adultos que são
importantes para si e nas situações que estes lhes proporcionam.
A socialização secundária assenta, portanto, na socialização primária.

“A socialização secundária é a interiorização de “submundos” institucionais ou baseado em instituições. O


número e o tipo destes submundos é determinado pela complexidade da sociedade. A socialização secundária é
a aquisição do conhecimento de funções específicas, de condutas de rotina próprias às instituições. Os
submundos interiorizados na socialização secundária são geralmente parciais, em contraste com o “mundo
básico” adquirido na socialização primária. Contudo, eles também são realidades mais ou menos coerentes,
caracterizadas por componentes normativos e afetivos”

“A socialização secundária pressupõe a socialização primária, ou seja, acontece com um indivíduo com uma
personalidade já formada e um mundo já interiorizado. Isto pode ser um problema, uma vez que a realidade já
interiorizada tem tendência a persistir. Os novos conteúdos devem sobrepor se à realidade já presente, e pode
haver problemas de coerência entre as interiorizações primárias e as novas.”

A socialização acontece através de três mecanismos distintos, mas interligados:

● Aprendizagem – como o próprio conceito indica, aprendemos desde cedo, porque tal nos é inculcado,
os valores e as regras sociais considerados corretos e os modelos de comportamentos do grupo a que
pertencemos: o que podemos e o que não podemos fazer, o certo e o errado.
Aprendemos igualmente a ler, a escrever, a raciocinar dentro de determinados moldes, e toda uma
série de competências, das mais básicas (as boas maneiras à mesa, como atravessar a rua) às mais
elaboradas (a linguagem, uma profissão).
A aprendizagem pressupõe a interiorização e a aquisição de automatismos de comportamentos
variados.

● Imitação – muitas das atitudes e comportamentos que vemos nas crianças são fruto das suas
observações e posterior imitação. Mesmo na idade adulta, muito frequentemente, e por vezes sem nos
apercebermos, tendemos a imitar os comportamentos, os gestos, as expressões que observamos, na
tentativa de nos integrarmos mais facilmente nas várias situações do nosso quotidiano.

● Identificação – a criança identifica-se com pessoas que desempenham determinados papéis na sua
vida e essa identificação faz com que adquira progressivamente os comportamentos inerentes a esses
mesmos papéis. Ao longo da vida podemos identificar-nos com atores de cinema, estrelas de música
ou alguém que conhecemos pessoalmente e que, de alguma forma, nos pode influenciar na nossa
forma de agir, de pensar ou de sentir.

Nem sempre é fácil distinguir que mecanismos de socialização estão presentes em cada situação. Por exemplo,
uma menina identifica-se com a mãe e imita-a nos seus comportamentos, brincando com as suas bonecas e
assumindo perante elas o papel de mãe; desta forma, ela aprende o papel social de mãe e alguns dos
comportamentos a ele inerentes

Os agentes de socialização

Todos os grupos a que pertencemos são agentes de socialização na medida em que nos obrigam a interiorizar
um determinado papel social, seja por aprendizagem, por imitação ou por identificação.
No entanto, existem alguns agentes socializadores especialmente importantes pela forma como influenciam a
nossa vida.

➔ Família
Nos últimos séculos, as funções da família têm sofrido transformações, nomeadamente a que se refere
à educação. Antes, era a instituição responsável não só pela socialização primária como pela
socialização secundária do indivíduo, na medida em que muitas vezes a criança aprendia um ofício que
constituía a principal atividade da família e com ela permanecia durante a vida adulta.

O desenvolvimento socioeconómico e tecnológico transferiu funções educativas da família para a


escola, nomeadamente a preparação técnico profissional, mas a primeira continua a ter um papel
fundamental na formação de atitudes sociais e valores próprios do grupo social de pertença, bem como
modelos de comportamento, não necessariamente de forma intencional: é na família que aprendemos
(ou não) as regras básicas de boa educação, os hábitos de higiene e de alimentação, a falar e a
exprimir-mo-nos, a ouvir música e a ler...

➔ Escola
Quando chega à escola, a criança já teve contacto com a realidade social e cultural que a envolve:
família, vizinhos, amigos, meios de comunicação...
Aqui as crianças aprendem a comportar-se na sala de aula, a ser pontuais, a cumprir determinadas
regras de disciplina. Têm de aceitar e responder à autoridade dos professores. Além disso, existe um
currículo definido relativamente aos assuntos que vão sendo aprendidos, bem como um conjunto
complexo de aprendizagens que são acrescentadas à socialização proporcionada pela família.

A criança vê-se confrontada com novos tipos de autoridade, de relações, de pessoas, e com a
necessidade de adquirir um conjunto de conhecimentos substancialmente diferentes dos adquiridos até
aí. • Na família e na escola existe uma hierarquia das relações interpessoais, mas junto dos colegas – o
grupo de pares – ela aprende o que significa ser igual – ou par – e como cooperar, conquistar
autoridade ou obter o que pretende nessa situação.

➔ Meios de comunicação social


De uma maneira geral, os jornais, as revistas, a rádio, o cinema, a televisão, a música, a Internet, as
redes sociais e os telemóveis fazem parte do nosso quotidiano e, apesar de nem sempre nos
apercebemos disso, influenciam-nos fortemente.
Com efeito, os media dão acesso a conhecimentos de que dependem muitas das nossas atividades
sociais. Além de veículos de informação, são também veículos de valores que, de forma consciente ou
inconsciente, moldam a nossa forma de pensar, de sentir e de agir, o que os torna importantes agentes
de socialização.
Nos jornais, nas revistas e, em geral, nos serviços noticiosos de televisão, da rádio e da Internet, por
exemplo, as notícias que são veiculadas (e as que não são), o modo como são apresentadas e o
destaque que lhes é dado (ou a ausência dele) influenciam as nossas opiniões individuais e a opinião
pública.
Os hábitos de consumo também são fortemente influenciados pelos media, tendo a Internet e as redes
sociais vindo a ganhar destaque na visibilidade dos produtos e das marcas que consumimos. 60

Além dos agentes de socialização atrás referidos, a rua pode ser também, sobretudo em pequenas
comunidades, um importante espaço de aprendizagem onde as crianças ampliam e diversificam o conhecimento
sobre a realidade em que vivem, deixando de o limitar à esfera doméstica e à instituição escolar.
3.3. Dimensões e consequências da Globalização

O fenómeno da globalização

Globalização: fenómeno da atualidade que melhor traduz a ideia de mudança social.


Este é o termo genericamente utilizado para identificar as profundas transformações operadas nas sociedades e
na economia internacional em resultado do aumento das relações de interdependência – a nível económico mas
também político, social e cultural – entre as pessoas e os países à escala mundial.

Se bem que os primórdios deste processo de integração recuem há muito na História (vários autores
consideram mesmo os Descobrimentos dos séculos XV e XVI, empreendidos por Portugal e Espanha, o início
da globalização), o período subsequente à Segunda Guerra Mundial pode ser considerado o ponto de viragem
para uma nova ordem mundial.
Desde então, o desenvolvimento das redes mundiais conheceu uma aceleração vertiginosa, levantando
problemas aos quais as sociedades contemporâneas vão procurando adaptar-se.

A relação entre global e local


A globalização exerce impactos diretos e sensíveis sobre a vida quotidiana dos indivíduos.
Com efeito, sempre que assistimos a um grande torneio desportivo na televisão, escolhemos roupa numa cadeia
internacional, fazemos compras num hipermercado, vemos um filme no cinema ou comunicamos através da
Internet com amigos de outros países, damo-nos conta de que a globalização é um fenómeno com uma
acentuada incidência local.
Globalismo e localismo são, assim, duas escalas interdependentes de análise dos processos de mudança
social.

Fatores e dimensões da globalização

Apesar da tendência para se reduzir a globalização à sua dimensão económica – destacando, sobretudo, o
papel catalisador das empresas multinacionais, da integração dos mercados financeiros e da expansão do
comércio mundial-, o fenómeno é bastante mais vasto e complexo, resultando da conjugação de fatores
tecnológicos, económicos, políticos, sociais e culturais.

Fatores tecnológicos

A globalização tem sido especialmente impulsionada, nas últimas décadas, pelas inovações tecnológicas, em
particular nos domínios dos transportes e das comunicações.
Com efeito, pessoas e bens são hoje deslocados diariamente, com enorme rapidez, custos reduzidos e para
qualquer destino do mundo, graças ao desenvolvimento de meios de transporte como o comboio de alta
velocidade, o avião a jato e o navio transatlântico, entre outros.

A melhoria dos meios de transporte trouxe, desde logo, óbvias vantagens para a internacionalização de diversas
atividades económicas, tais como o turismo, o comércio e os negócios em geral.
Também a nível das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) a rapidez dos fluxos aumentou
significativamente, permitindo que as relações interpessoais sejam instantâneas independentemente da
distância física que separa os indivíduos.
O sistema mundial de satélite, os telefones móveis e a Internet, em particular, ilustram bem esta nova realidade,
que se manifesta tanto nos lares como nos locais de trabalho dos países mais desenvolvidos.

Fatores económicos e financeiros

Outra das dimensões fundamentais que contribuem para o avanço da globalização é a integração da economia
mundial.
No passado, a produção económica dos países baseava-se na agricultura ou na indústria. Mas hoje, graças ao
desenvolvimento constante das tecnologias da informação e da comunicação e à existência de inúmeros
consumidores ávidos das últimas novidades tecnológicas, a economia global passou a assentar em atividades
imateriais e em produtos como o software informático, os suportes multimédia e os serviços online.

Este novo tipo de contexto socioeconómico pode, assim, ser designado por “sociedade pós-industrial” ou
“sociedade da informação”, expressões que acentuam a emergência da informação e do conhecimento como os
fatores produtivos mais importantes da economia contemporânea.
Por outro lado, e tal como sucede com os sistemas de informação e comunicação, também na atividade
económica a diluição das fronteiras nacionais tornou-se uma realidade, tendo sido substituídas por redes
internacionais de distribuição dos produtos que concorrem entre si em mercados sujeitos a mudanças rápidas.
Assiste-se hoje, pois, a uma forte expansão da quantidade e variedade dos bens e serviços comercializados
entre as diferentes regiões do planeta, facto que tem originado a formação de um sistema de comércio mundial.

O exemplo típico desta economia-mundo – e uma das suas grandes forças motrizes – são as empresas
multinacionais (também designadas transnacionais ou globais), cuja sede se situa num dado país mas cuja
atividade se estende a mais do que um território e, no caso das maiores, a vários continentes.
Estas empresas assumem uma importância central no processo de globalização económica, já que representam
cerca de dois terços de todo o comércio mundial, difundem novas tecnologias para diversos países e têm um
peso decisivo nos mercados financeiros internacionais.

Por estas razões, as multinacionais atingem uma dimensão económica superior à de muitos países,
influenciando mesmo as decisões políticas dos Estados.
Outra faceta da globalização consiste, justamente, na integração à escala mundial dos mercados financeiros

O seu funcionamento assenta em mecanismos eletrónicos que permitem que um cada vez maior volume de
capitais seja transacionado, com rapidez e comodidade, a partir de um qualquer terminal de computador, seja
por investidores a título pessoal, gestores de fundos, bancos ou empresas.
Além disso, a interdependência destes mercados origina que qualquer variação (positiva ou negativa) se
processe em “dominó”, isto é, tenha reflexos na globalidade do sistema (veja-se como a subida ou a descida dos
índices de cotação da bolsa de Nova Iorque, por exemplo, influencia o desempenho das respetivas bolsas
mundiais).

Fatores políticos

No plano político, uma das mudanças responsáveis pela aceleração da globalização nos anos mais recentes –
e, simultaneamente, uma consequência dessa mesma globalização – consiste no colapso dos regimes
comunistas e no subsequente fim da Guerra Fria.
Tal sucedeu quer na Europa de Leste, a partir da queda do Muro de Berlin, em 1989, quer na própria ex-União
Soviética, em 1991 (culminando num processo de reestruturação económica que ficou conhecido como
Perestroika).
Os países comunistas, até então parte integrante do “bloco soviético” – caracterizado, em síntese, por sistemas
políticos de partido único, o Partido Comunista, e por economias dirigidas pelo Estado -, efetuaram depois um
percurso de aproximação ao modelo político e económico ocidental (a chamada “democracia liberal”),
abandonando o isolamento em que se encontravam face à maioria da comunidade internacional.

A seguir à implosão da União Soviética, outros processos de democratização estenderam-se a várias regiões do
mundo. Em alguns países, a democracia substituiu mesmo os regimes autoritários que aí vigoravam (Angola,
Moçambique, Indonésia...); noutros, a mudança não foi total ou processa-se mais lentamente (casos da China,
de Cuba ou do Irão). Apesar destas dinâmicas desiguais, a “globalização da democracia” parece persistir como
uma tendência política à escala mundial.

Em segundo lugar, os sistemas internacionais de governo também têm ajudado a impulsionar a globalização
política. Estes sistemas são originados pela crescente tomada de consciência de que as respostas dadas pelos
Estados aos problemas transnacionais (do ambiente, do clima, da saúde, da economia...), cujos impactos
extravasam as fronteiras nacionais, se revelam insuficientes.
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia são exemplos atuais deste esforço de agregação
dos Estados em plataformas comuns, seja para regular os conflitos internacionais e manter a paz (no caso da
ONU e dos seus vários departamentos e agências, como a UNESCO, a UNICEF e o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados), seja visando a integração económica e política dos países-membros (como
na União Europeia).

Por último, deve referir-se o importante papel desempenhado pelas organizações não governamentais (ONG)
no avanço da globalização.
Com efeito, embora independentes do poder político, as ONG procuram colaborar (e, muitas vezes, contrariar)
com o governo dos vários países onde operam na definição de polí>cas em áreas com relevância internacional,
de que são exemplos a proteção do ambiente (Greenpeace), a ajuda humanitária (Cruz Vermelha Internacional)
ou a defesa dos direitos humanos (Amnistia Internacional).

Os meios de comunicação social

Constatámos já que as novas tecnologias da informação e da comunicação alteraram a forma como se


processam as relações interpessoais, quer a nível da natureza dos meios utilizados quer da velocidade dos
fluxos.
Os dispositivos móveis e a Internet, principalmente, tornaram-se instrumentos indispensáveis para um número
massivo de utilizadores, facilitando a comunicação e a troca de dados entre pessoas de diferentes pontos do
planeta.

Ora, sob a designação de meios de comunicação social incluem-se formas tão amplas como a televisão, os
jornais, as revistas, a rádio, o cinema, a publicidade, os livros, os jogos de vídeo, os CD, os DVD, o multimédia e
os meios online, entre outros.

A sua caraterística comum é a de atingirem uma enorme quantidade de pessoas à escala global, revelando-se,
nessa medida, um poderoso agente de difusão cultural (ou seja, de propagação de valores, comportamentos,
ideias, estilos de vida, ...) Além disso, os meios de comunicação social estão presentes em quase todos os
domínios da nossa vida social, tornando-se praticamente inevitáveis: vemos televisão em casa, lemos uma
revista na biblioteca da escola, acedemos à internet no emprego, assistimos a um filme no cinema, observamos
um painel publicitário na rua...
Por estas e outras razões, os mass media desempenham um papel central nas sociedades contemporâneas,
sendo responsáveis por verdadeiras revoluções sociais – foi o caso da popularização da rádio na década de 30,
da televisão na década de 60 e da Internet desde os anos 90 do século XX.
Tal centralidade pode ser aferida a partir das principais funções exercidas pelos mass media: função de
informação, função de educação, função de socialização, função de entretenimento.

A função de informação, que assenta na recolha, análise e difusão de dados e que garante a liberdade de
expressão, a transparência dos processos sociais e o conhecimento sobre o mundo em geral;
A função de educação, que consiste na transmissão da herança social e cultural dos povos para as gerações
seguintes;
A função de socialização, que permite a participação dos indivíduos e dos grupos na vida pública e a tomada de
decisões sobre aspetos comuns, promovendo a sua cidadania;
A função de entretenimento, ligada ao preenchimento do tempo de lazer e à melhoria da qualidade de vida.

Como parece evidente, a comunicação social de âmbito internacional – principalmente a televisão por satélite ou
cabo, o cinema e os meios eletrónicos – representa um forte contributo para o avanço da globalização.
Desde logo porque estes media difundem informação permanentemente atualizada sobre os principais
acontecimentos políticos, sociais, económicos e culturais para os lares de todo o mundo, representando canais
abertos e diretos para o exterior.

Mas, pelo facto de atraírem audiências globais de muitos milhões de pessoas (números válidos tanto para um
campeonato mundial de futebol ou uma cerimónia de entrega dos Óscares como para catástrofes naturais ou
eleições políticas), os mass media também ajudam a reorientar o modo de pensar dos indivíduos, que já não se
limitam a considerar a dimensão nacional dos acontecimentos mas igualmente os seus impactos globais – assim
se evoluindo para uma consciência global acerca do estado do mundo.

No início da década de 60 do século XX, o sociólogo Marshall McLuhan (1911- 1980) criou o conceito de “aldeia
global” para referir-se ao fenómeno do derrube das barreiras espaciotemporais proporcionado pelos meios de
comunicação social eletrónicos. Tomando a televisão como paradigma (à época, media emergente e
revolucionário), este autor considerava que o planeta se havia transformado numa pequena aldeia, fruto do
aumento das interações sociais à escala global.

Mais recentemente, porém, a expressão “aldeia global” passou a servir de metáfora para descrever os impactos
e as mudanças sociais causados pela Internet, a qual tem vindo gradualmente a substituir a televisão como um
meio de comunicação mais poderoso da atualidade.

A aculturação

Um dos aspetos associados à globalização sobre o qual as posições dos sociólogos e outros cientistas sociais
divergem substancialmente é o dos seus impactos sobre a cultura dos povos. • Dito de outro modo: a
globalização cultural, entendida como a difusão e a partilha à escala planetária de imagens, sons, produtos,
ideias, costumes e estilos, conduz à homogeneização ou à diferenciação das culturas nacionais?

O debate mantém-se em aberto, sem respostas definitivas.


Certo é que a aculturação – ou a absorção, total ou parcial, de uma cultura por outra através de contactos
diretos e contínuos, dando origem a uma cultura nova ou a uma síntese híbrida das duas – se tornou uma das
preocupações fundamentais das sociedades do presente.
Certos autores defendem que, devido à rapidez da comunicação entre os diferentes países do Globo, os traços
originais das culturas nacionais tendem a enfraquecer ou mesmo a perder-se, em favor de culturas estrangeiras
com maior poder de atração (efeito de homogeneização cultural).
Em reforço desta tese, apontam como paradigma a expansão dos bens e valores culturais do mundo ocidental
(representado principalmente pelos Estados Unidos da América mas também da Europa) para as restantes
regiões do planeta, processo que designam por ocidentalização.

Nesta aceção, a globalização equivale a um poderoso instrumento de imperialismo cultural, cujos agentes
pretendem impor uma cultura mundialmente uniforme (a ocidental) à custa da aniquilação dos hábitos e
tradições de outros povos.
Os programas televisivos de entretenimento, os blogues de opinião e debate existentes na Internet, as imagens
sedutoras da publicidade e os filmes de grande audiência no cinema são, neste contexto, alguns dos mais
eficazes veículos de difusão dos modelos culturais de matriz ocidental.

Outros autores, porém, encaram a globalização como um processo que conduz a uma crescente diferenciação
cultural.
O mundo contemporâneo caracteriza-se, segundo esta perspetiva, pela coexistência de uma ampla variedade
de culturas, dando a todos os indivíduos a oportunidade de escolher e combinar formas culturais nacionais e
estrangeiras.
Contrariamente, pois, à tese de homogeneização, os adeptos da diferenciação cultural consideram que a
globalização aumenta a diversidade, fragmenta as formas culturais e gera identidades culturais híbridas (isto é,
compostas quer por traços nacionais quer por influências estrangeiras).

Consumo e estilos de vida

O mundo em que vivemos “encolheu”: as fronteiras nacionais diluíram-se, as distâncias encurtaram-se, a


velocidade da comunicação acelerou, as pessoas circulam por diferentes países, os bens de consumo tendem a
universalizar-se, os estilos transformaram-se.
Vamos analisar duas expressões inter-relacionadas deste processo de globalização: o consumo e os estilos de
vida.

Por consumo entende-se a utilização de bens, serviços, energia e recursos por parte de pessoas, organizações
ou sociedades. Este fenómeno conheceu um expressivo crescimento nos países industrializados, sobretudo ao
longo da segunda metade do século XX, fruto do desenvolvimento económico que se verificou nessas regiões
do mundo.
A expressão sociedade de consumo (ou o “tempo dos objetos”, na terminologia do sociólogo francês Jean
Baudrillard) refere-se, assim, a esta nova realidade, caracterizada pela abundância e circulação massiva de
bens que moldam a existência humana.

Numa aceção positiva do consumo, o seu aumento massivo tem como consequência a melhoria das condições
materiais de vida e o grau de satisfação das populações.
Às famílias, hoje mais do que no passado, sobra uma maior fatia do seu orçamento para adquirir bens
alimentares, vestuário, automóveis, férias, viagens e uma multiplicidade de outros artigos.
Mas, por outro lado, o consumo desregrado à escala global acarreta a destruição dos recursos naturais e
acentua a clivagem entre países ricos e pobres.
Por isso, paralelamente aos impactos positivos que descrevemos, a globalização também gera – ou pelo menos
reforça – desigualdade e exclusão.

A publicidade, o marketing e outras técnicas comerciais desempenham , neste contexto, uma importância
central. O seu objetivo consiste em incentivar o aumento da procura de bens e serviços, de modo a elevar
continuamente o nível das necessidades dos consumidores.
Tal é especialmente notório em períodos de crescimento económico, pelo que a evolução do consumo tende a
acompanhar os ciclos da economia.

Esta aliança entre consumo e economia é assim descrita, de modo irónico, por Jean Baudrillard: “Era uma vez
um Homem que vivia na Raridade. Depois de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciência
Económica, encontrou a Sociedade da Abundância. Casaram-se e vieram muitas necessidades”.
Por outro lado, a ampliação destas técnicas comerciais à escala mundial, em estreita articulação com os mass
media permite promover o mesmo produto simultaneamente em vários países, facto que tem acentuado a
tendência para a uniformização global dos padrões de consumo (tipologias de consumo comuns a determinados
grupos sociais).
É hoje vulgar, de resto, encontrarem-se pessoas de diferentes nacionalidades vestidas e penteadas da mesma
forma, ouvindo as mesmas músicas, vendo os mesmos filmes, frequentando as mesmas cadeias de
restaurantes e, em geral, adotando idênticos comportamentos consumistas (ou estilos de vida).

Ora, às formas tradicionais de comércio, que implicam a deslocação física aos locais de consumo (como sucede
com mercados, armazéns, lojas, supermercados, hipermercados e centros comerciais), veio juntar-se uma nova
modalidade em franca expansão mundial, o comércio eletrónico.

Com efeito, um número cada vez maior de pessoas passou a fazer as suas compras através da Internet,
selecionando os artigos desejados entre a multiplicidade de lojas virtuais disponíveis no ciberespaço,
pagando-os por meios eletrónicos e, por fim, recebendo a encomenda comodamente em sua casa.

Os estilos de vida

Trata-se de “práticas quotidianas e formas de consumo que envolvem escolhas particulares e identitárias em
domínios tão distintos como a habitação, a alimentação, os usos do corpo, o vestuário, a aparência, os hábitos
de trabalho, o lazer, a religião, a arte, a organização do espaço e do tempo ou o convívio com os outros atores
sociais”

Os estilos de vida refletem, pois, a especificidade dos valores, atitudes e comportamentos dos indivíduos e dos
grupos, contribuindo para a construção das identidades pessoais e coletivas e ligando-se, por isso, às diversas
subculturas.
Deste modo, a adoção de um determinado estilo de vida pressupõe a escolha de uma gama particular de
comportamentos, em detrimento de outras gamas possíveis (vegetarianos). Esta multiplicação das
possibilidades de escolha, por sua vez, é permitida pela expansão dos bens e serviços postos à disposição dos
atores sociais no mundo atual – ou seja, é potenciada pela globalização e pela sociedade de consumo.

Porém, nem sempre a liberdade de escolha é total e isenta de condicionalismos. Na base de muitas destas
“opções” estão fatores como a classe social e o nível económico dos indivíduos, os quais influenciam
fortemente, embora de modo inconsciente, aquilo que aparentemente são atos livres e indeterminados.
Às diferentes condições sociais correspondem, assim, diferentes estilos de vida, segundo um processo
complexo de ajustamento das escolhas quotidianas dos indivíduos às suas posições e trajetórias sociais.

Outras vezes, porém, as pessoas não se limitam a aderir a modelos preexistentes e padronizados, antes
constroem e individualizam o seu próprio estilo de vida, seguindo uma combinação de diferentes referências
culturais, dando origem a estilos de vida alternativos.
A subjetividade dos atores sociais sai, assim, reforçada, funcionando como uma forma de resistência perante as
pressões homogeneizadoras da sociedade global.
Da mesma forma que o consumo, também os diversos es>los de vida são difundidos pelos meios de
comunicação de massas e pelo marketing, responsáveis pela criação de fenómenos de moda (entendida, neste
contexto, como usos e costumes que se convertem em modelos sociais e adquirem valor normativo durante um
período de tempo relativamente curto.
Novos estilos de vida – denominador comum dimensão cultural do corpo (ginásios, alimentação bio, moda
desportiva, tatuagem e piercings...)
Ambiente: riscos e incertezas

A globalização é um fenómeno extensivo a praticamente todas as dimensões da vida social, influenciando-as de


modo profundo. Além disso, é um processo em permanente desenvolvimento, atravessado por forças
contraditórias e, como tal, de consequências imprevisíveis.
Por estes motivos, as tentativas de regulação e controlo dos fenómenos globais, com o objetivo de diminuir os
riscos que lhe são inerentes, são extremamente complexas.
O risco refere-se às situações em que predominam a incerteza e a probabilidade, próprias de sociedades em
mutação acelerada.
Giddens define o risco da seguinte forma: “são os perigos calculados em função de possibilidades futuras”. E
acrescenta: “O risco é a dinâmica estimuladora de uma sociedade empenhada na mudança, apostada em
determinar o seu próprio futuro, em vez de depender da religião, da tradição ou dos caprichos da Natureza”,
como acontecia nas sociedades agrícolas e rurais do passado.

O mesmo autor distingue, ainda, dois tipos de risco.


Um, o risco externo, resulta das determinações da Natureza, podendo assumir a forma de secas, inundações,
epidemias, pragas e outros fenómenos alheios à iniciativa dos seres humanos.
O outro, o risco manufaturado, advém do impacto do desenvolvimento científico e tecnológico sobre o ambiente,
ou seja, ressalta o modo como a ação humana influencia o mundo natural (ao inverso do risco exterior, em que é
a Natureza que comanda a vida humana).

Graças aos processos mundiais de interdependência e integração, os riscos adquiriram, também, uma dimensão
global, afetando potencialmente todas as populações do planeta – algo que o sociólogo alemão Ulrich Beck
(1944- 2015) designa por sociedade de risco.
Com efeito, nas sociedades atuais, sobretudo as mais industrializadas e dependentes da inovação científica e
tecnológica, a natureza dos riscos modificou-se, tornando-os mais complexos, incertos e difíceis de
compreender e gerir.

Os riscos ambientais

A intervenção humana na Natureza tem aumentado de intensidade ao longo dos últimos séculos, ao ponto de já
poucos ecossistemas poderem ser considerados “puros” e imunes aos efeitos da humanização.
Tal é visível em aspetos como a urbanização e a industrialização de áreas outrora rurais, as grandes
explorações agrícolas, a construção de barragens hidroelétricas e de parques eólicos e as várias formas de
poluição, entre outros.
Esta utilização intensiva dos recursos naturais – sobretudo dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás
natural) mas também do solo, da água e da floresta – deve-se, por um lado, ao desenvolvimento contínuo das
a>vidades económicas (especialmente a indústria, a agricultura e o turismo); e, por outro, ao aumento do
consumo de bens e serviços, originado pelo crescimento da população mundial e pela elevação do seu poder de
compra.
Todavia, as reservas mundiais de matérias-primas e de recursos energéticos são sensíveis, escassas e, em
alguns casos, ameaçam esgotar-se dentro de prazos relativamente curtos se se mantiveram os atuais padrões
de consumo.
É o que sucede, nomeadamente, com a floresta, o petróleo e mesmo a água, todos essenciais para a
sobrevivência da espécie humana.
Os riscos manufaturados que pairam sobre o ambiente são de diferentes espécies. Um primeiro grupo de riscos
– como sejam a poluição do ar e da água (por contaminação química) e a deposição de resíduos sólidos no
ambiente (com origem industrial ou doméstica) – tem como efeito a progressiva destruição dos recursos
naturais.
Já o segundo grupo – onde se incluem, entre outros riscos, a escassez de água potável (especialmente nas
zonas mais quentes do planeta, como o continente africano), a desertificação dos solos (causada pelas secas ou
pela exploração intensiva) e a desflorestação (devida à extração de madeira ou aos incêndios) – pode conduzir,
a prazo, ao esgotamento desses recursos.
Dada a origem difusa de muitos destes riscos ambientais, torna-se difícil determinar com exatidão quer as suas
causas e responsabilidades quer as suas consequências e soluções (exemplo, incêndios).

Aquecimento global

“Chama-se aquecimento global ao aumento gradual da temperatura média da Terra devido às mudanças na
composição química da atmosfera. Acredita-se que o aquecimento global seja causado em grande medida pelos
seres humanos, pois os gases que se acumularam e alteraram a atmosfera são produzidos em grande
quantidade pelas atividades humanas. O processo de aquecimento global está diretamente relacionado com o
efeito de estufa – a acumulação na atmosfera de gases que “agarram” o calor, atuando como uma estufa. A
maioria dos cientistas está de acordo em atribuir o grande aumento de dióxido de carbono na atmosfera ao facto
de se queimarem combustíveis fósseis e a outras atividades humanas, como a produção industrial, a agricultura
intensiva, a desflorestação, a extração de minério, os aterros e as emissões de gases pelos veículos”

Alguns dos efeitos potencialmente prejudiciais do aquecimento global incluem:

● O aumento do nível dos oceanos;


● A desertificação;
● A propagação de doenças;
● Más colheitas
● Mudança dos padrões climáticos.

Os riscos para a saúde

A saúde humana tem vindo a ocupar um lugar cada vez mais central nas preocupações das sociedades
desenvolvidas, motivando sucessivas campanhas mediáticas que alertam para a necessidade de prevenir
diversos tipos de risco (SIDA, hepatites, meningites e outras doenças contagiosas, cancros, tabagismo,
obesidade...).

Porém, a alimentação constitui um campo onde os riscos manufaturados ligados à saúde mais se fazem sentir.
A modernização científica e tecnológica da agricultura – uso de pesticidas químicos, herbicidas, fertilizantes
artificiais – trouxe diversas vantagens mas também sérios perigos, havendo quem questione a segurança
alimentar dos consumidores.
Do mesmo modo, os estilos de vida dominantes nas sociedades mais desenvolvidas, principalmente nas
grandes cidades, têm favorecido a adoção de determinados hábitos alimentares atrativos para largas camadas
da população – casos da fast food e de toda uma gama de produtos congelados e pré-cozinhados. Estes
alimentos são acusados de provocar doenças.

Você também pode gostar