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A Lei o Juiz o Justo Amilton PDF
A Lei o Juiz o Justo Amilton PDF
O JUSTO
é praticamente idêntico, só difere que fique claro que não existe direito do
num o objeto é móvel, noutro é imó- trabalho. O raciocínio é simples: pa-
vel. Como valoramos mais o imóvel, ra existir direito do trabalho deve ha-
este deveria ser melhor protegido. ver antes direito ao trabalho, o que
Mas não é. A pena daquele é de qua- inexiste. Mais, é direito do trabalha-
tro a dez anos, a deste é de um a dor receber Cz$ 804,00 mensais?
seis meses e multa. Pergunta-se Evidente que não. É direito ( = vanta-
quem comete roubo de relógio? Al- gem) do patrão em pagar tão pouco.
gum latifundiário? Ora, a subtração Mas o que me causa espanto no Ju-
de móvel é crime do pobre, o esbulho diciário trabalhista é a prescrição bie-
possessório é do rico. Logo, as pe- nal. Todos sabemos que existem pa-
nas são diferentes, absurdamente trões que não pagam horas-extras
diferentes. Todavia, como atualmen- aos empregados durante anos. Sa-
te o povo (= pobre) está invadindo bemos que o empregado que exige
terras, aparecem democratas preocu- seu direito é despedido, só reclaman-
pados com a segurança do país e do, pois, quando ocorre a despedi-
propõem a elevação das penas do da. Mas, se trabalhou durante dez
esbulho, o que por certo logo virá; anos e durante todo o tempo fez
d) o pobre que não trabalha é horas-extras, só pode reclamar os
contraventor, pois não coloca no últimos dois. É a prescrição bienal.
mercado de trabalho a sua força O Juiz sabe que acontece isso. Tudo
para ser explorada (art. 59 da LCP). fica provado. Tem ciência da explo-
E o rico? ração. Mas nada pode fazer. É uma
e) note-se que ao Judiciário é da- teratologia jurídica. E o fundamento
do entrar no caminho do criminoso é a segurança, a paz social. Mas que
apenas em parte: a investigação é segurança e paz social que estão
do Executivo; após, o Judiciário de- assentadas no roubo, na exploração?
fine; e a ‘recuperação’ cabe nova- Alguém consegue justificar? E se fica
mente ao Executivo. Dois momen- a explicar a natureza jurídica da pres-
tos vitais: procura e recuperação não crição ...
Ihe pertencem, o Executivo investi- Mas quando vêm leis a serviço
ga quem quer e ‘recupera’ da ma- do oprimido (ver CF, art. 165: I,
neira que Ihe parece melhor (tenha- que garante ao trabalhador salário
se em mente que os pobres é que capaz de satisfazer as necessidades
estão nos presídios). dele e de sua família; XV, que Ihe re-
E no direito do trabalho como são conhece direito a assistência sani-
as coisas? Antes de mais nada que tária, hospitalar e médica preventiva;
A lei. O juíz. O justo/137
do sistema ianque, tido como o mais Doutra banda, figuras não menos
democrático do mundo, onde a Su- brilhantes estão a afirmar que ao Juiz
prema Corte tem o poder de definir é facultado deixar de aplicar a lei
se é ou não legal a própria pena de quando injusta. Autores das mais va-
morte? E nos sistemas aonde vigora riadas correntes filosóficas assim
o precedente? pensam. Vejamos.
Por tudo que se disse anterior- Já a Bíblia, no que se refere aos
mente, penso que não se deve temer deveres dos Juízes, diz: ‘A justiça
que o Judiciário tenha poderes ao seguirás, somente a justiça, para que
ponto de negar a lei quando injusta. vivas, e possuas em herança a terra
O Juiz é escravo da lei? Não é. A que te dá o Senhor teu Deus’
resposta vem de Dallari (ob. cit., p. (Deuteronômio, 16, v. 20, tradução de
61): ‘0 escravo não pensa, o Juiz tem João Ferreira de Almeida).
que pensar. O escravo não é respon- Santo Agostinho, citado por Tomás
sável, o Juiz tem que ser responsável. de Aquino, na Suma Teológica, in
O Juiz é um ser humano dotado de Textos Clássicos de Filosofia do Di-
inteligência e vontade. Ele não pode reito, ed. 1981, p. 21, ensina que se-
ser escravo de ninguém, nem da lei’. quer deve ser considerado lei o que
Deve-se presumir, no mínimo, que o não for justo, mas, sim, corrupção
julgador seja livre, dotado de inteli- dela. Logo, faz parte integrante da
gência e de vontade. conceituação de lei o justo e, se tal
Assim, parece-me que aplicar a lei não ocorre, deixa de ser lei. Noutro
quando injusta passa a ser um ato momento Agostinho afirma: ‘Sem jus-
cômodo no qual o Juiz retira de si, tiça, o que é o Estado senão um ban-
como escravo, toda a responsabili- do de ladrões?’ (A Cidade de Deus,
dade ética pelo julgamento. Ou seja, IV, 4, citação de Dennis Lloyd, ob. cit.,
lamenta a lei ser injusta e afirma que p. 62).
nada pode fazer porque a culpa é do Platão esclarece que ‘a verdadei-
legislador. É o jurisdicionado? ra lei é somente a justa e não a injus-
En passant, é de notar que a ex- ta, ainda que os ignorantes tenham
pressão ‘escravo da lei’ vem de Cí- esta última como lei’ (Da Lei, 317, c).
cero (Pro Cluentio, 53, citado por Cícero diz que ‘é absurdo pensar que
a
Juarez Freitas, Filosofia do Direito, 1 seja justo tudo o que é determinado
ed., p. 139) e não se refere tão-só aos pelos costumes e leis dos povos’ (De
magistrados, mas a todo o povo: ‘En- Legibus, I, 15, 42). Guilherme de
fim, para sermos livres, é necessário Hockham aduz que ‘toda a lei civil
que sejamos escravos da lei’. que contradiz a razão divina ou a
A lei. O juíz. O justo/143
razão revelada, não é lei’, razão por Juiz é o legislador da situação concre-
que não se deve obedecê-la (Goldast, tizada ).
Il/630, todos citados por Juarez Frei- A jurisprudência gaúcha, em inú-
tas, ob. cit., p. 137/139 e 143). meras vezes, tem decidido negando
Na mesma trilha seguem: a) Den- vigência da lei por entender que a
nis Lloyd, ob. cit., p. 95: ‘A lei deve aplicação no caso concreto não é jus-
ser assimilada à justiça’ (...) ‘a lei sem ta. Cito os seguintes exemplos: O
justiça é uma zombaria, senão uma Alçada entendeu que ‘o Estado care-
contradição’; b) Couture: ‘Teu dever ce de autoridade para punir as con-
é lutar pelo direito. Mas, no dia que travenções relacionadas com os jo-
encontrares o direito em conflito com gos que ele tolera ou explora’ para
a justiça, luta pela justiça’; c) Dallari, descriminalizar o jogo do bicho, en-
loc. cit., p. 73: ‘Num conflito entre a sinando que ‘a aplicação da lei não
legalidade e a justiça, eu tenho tran- pode se divorciar da realidade social’
a
qüilidade em afirmar que a justiça (Julgados do TARGS, 45/148); a 5
deve prevalecer’; d) Antônio Carlos Câmara Cível do Tribunal de Justiça
Wolkmer, loc. cit., p. 93: ‘A atitude entendeu que ‘é válido o legado de
do Juiz, em relação à lei, prossegue homem casado à sua concubina’ em
Belaid, não se caracteriza jamais pela afronta ao disposto no art. 1.719, III,
passividade, nem tampouco será a lei do CC. É bem verdade que a funda-
considerada elemento exclusivo na mentação não é explicitamente agres-
busca de soluções justas aos confli- siva ao texto legal, ao que parece, se-
tos; a lei se constitui em um outro ele- guindo a lição de Warat, ob. cit., p.
mento entre tantos que intervêm no 57: ‘O Juiz pode apartar-se da nor-
exercício da função jurisprudencial’; ma sempre que pareça não se apar-
e) José Maria Rosa Tesheiner, Revista tar’, mas no real não aplicou o texto
a
AJURIS, 21/70, que ensina que se legal (RJTJRGS, 115/371); a 1 Câ-
deva fazer justiça apesar da lei; f) por mara Cível do Tribunal de Justiça
outro lado, ilustres Desembargadores outra coisa não fez ao autorizar o
do Tribunal de Justiça gaúcho têm casamento de menor com dezessete
reiterado seu compromisso com anos, explicitando que o fazia ‘sem
o justo no caso concreto (Silvino apego excessivo à literalidade da lei’
Joaquim Lopes Neto, RJTJRGS, (RJTJRGS, 117/387).
102/467; Oswaldo Proença, O magistrado gaúcho Sérgio
RJTJRGS, 110/420; Galeno La- Gischkow Pereira, em dois momen-
cerda, em inúmeras palestras; Cristo- tos, faz coro com Luiz Fernando Coe-
vam Daiello Moreira, para quem o lho, professor das Universidades
144/A lei. O juíz. O justo
fosse. A única forma de uma pessoa y los Jueces italianos durante estos
ser neutra é estar fora do mundo, últimos años, en el sentido de enten-
como se as coisas acontecessem der su función judicial y la realización
abaixo dela. Na verdade ninguém, de la justicia no como una función
nem mesmo o cientista, pode ser neutra, aséptica, que se agotaría to-
neutro. Já se disse antes que o ato talmente en la sola aplicación
sentencial é fruto da ideologia do mecánica de las leyes vigentes sea
julgador (mesmo as da lavra dos cual fuere el contenido de éstas, sino
positivistas — Dennis Lloyd, ob. cit., en el más profundo de llegar a la
p. 183) e todos sabemos que a visão comprensión de que si el Derecho no
de mundo que temos é comprometi- es imparcial y justo, ellos, en el fondo,
da com a nossa história. Ao decidir, no pueden ser tampoco imparciales
ou se está aplicando uma lei que não ni justos: y que entonces su sublime
é neutra, ou se está aplicando uma ministerio no sería realmente el de
justiça que também não o é. Logo, ‘hacer justicia’, sino simplesmente el
não neutra é a decisão. Acresce-se, de convertirse en meros transmisores
ainda, que tal decisão é prolatada a y ejecutores de la voluntad, más o
partir da ideologia do julgador que por menos justa o injusta, que ha logra-
sua vez também não é neutra. do hacerse Derecho’ (Mário Treves,
Algumas citações deixam claro a El Juez y la Sociedad, Edicusa,
impossibilidade da neutralidade do Madrid, 1974, p. 10-11).
Juiz quer na aplicação da lei, quer na Roberto Aguiar, na indispensável
busca do justo. Vejamos. obra O que é Justiça, ed. 1982, p.
‘Não percebiam os próprios magis- 17/18, ensina que ‘... a justiça não é
trados, como até hoje a muitos es- neutra, mas sim comprometida, não
capa, que a preconizada fidelidade à é mediana, mas de extremos. Não há
lei, ou o fetichismo legal, era conduta justiça que paire acima dos conflitos,
traçada no contexto da ideologia só há justiça comprometida com os
institucionalizada’ (Orlando Gomes, conflitos, ou no sentido de manuten-
A Casta dos Juristas). ção ou no sentido de transformação’.
‘A era do Juiz politicamente neu- Assim, o que é justo para uns po-
tro, no sentido liberal da expressão, de ser injusto para outros, basta ver
já foi superada’ (Fábio Konder Com- o atual conflito sobre a reforma agrá-
parato, Revista AJURIS, 37/202). ria: para os sem-terra invadir proprie-
‘En primer lugar, la progressiva dades é justo, porque representa a
toma de conciencia de cada vez más possibilidade de trabalho, de vida
amplios sectores de la magistratura digna; para os donos das terras é
148/A lei. O juíz. O justo
injustiça pois fere o sagrado direito dade é relativo: as de ontem não são
de propriedade. ‘Uma, é a idéia de necessariamente as de hoje. Deve ser
justiça tal e qual entende a classe di- interpretada diante das circunstâncias
rigente. Outra, é o ideal de justiça das e da ideologia de cada um. Inexiste
classes dominadas’ (Júlio César Ta- padrão externo definitivo que possa
deu Barbosa, ob. cit., p. 16). estabelecer o que é ou não verdade:
Que fique claro: o aplicar a lei, depende sempre da finalidade. É ver-
em si, não implica justiça ou in- dade, em princípio, o que favorece o
justiça, o que definirá é a aplicação oprimido. Logo, também nela não há
do fato concreto ante uma postura neutralidade.
ideológica. Vejamos o seguinte exemplo. Na
Importante, diante disso, é que não Alemanha nazista havia muitos reli-
se estabeleçam, a priori, critérios ti- giosos que não mentiam jamais. Eles
dos como definitivos para a aprecia- escondiam judeus que, se desco-
ção do justo. Repito: o justo emerge bertos, seriam mortos em campos de
do caso concreto. concentração. À polícia nazista, que
Dizem uns que a justiça é dar a chegava na casa deles e perguntava
cada um o que é seu, mas Roberto se ali havia judeus, eles eviden-
Aguiar (Direito, Poder e Opressão, p. temente não mentiam e os policiais
XVI) pergunta: o que é o seu de cada levavam-nos à morte. Outras pes-
um? Segundo quais critérios? A res- soas, em igual situação, correndo o
posta é que a definição é vazia, como risco de serem presas, mentiam di-
ele mesmo ensina: diz tudo e não diz zendo que ali não havia judeus e es-
nada. Dependerá, evidentemente, do tes eram salvos. Uns eram menti-
caso que se apresenta e da visão de rosos, outros não. Pergunta-se: qual
mundo de quem aprecia. Lyra Filho, foi o justo, o mentiroso ou o que fa-
a
‘O que é Direito’, 4 ed., p. 28, sobre lou a verdade? Evidente que justo foi
o assunto cita João Mangabeira: ‘Por- o mentiroso.
que, se a justiça consiste em dar a Dirão que tal argumento é ad
cada um o que é seu, dê-se ao pobre terrorem, fere a lógica porque fun-
a pobreza, ao miserável a miséria, ao damentado na exceção. Mas o Judi-
desgraçado a desgraça, que isso é o ciário trabalha em cima da exceção.
que é deles ...’ A regra é não ocorrerem litígios, as
Nem mesmo a verdade pode ser pessoas entenderem-se sem a inter-
princípio definitivo da justiça. Poder- venção estatal. O que é exceção
-se-ia discutir o que vem a ser verda- para o mundo é regra para o Judiciá-
de. Parece-me que o conceito de ver- rio.
A lei. O juíz. O justo/149
a a
do o patrão, embora raramente) e a Desembargadores nas 5 e 6 Câma-
partir daí, com desapego à lei ou a ras Cíveis do Tribunal de Justiça ga-
conceitos vagos preestabelecidos, úcho, em dois momentos os orado-
tomar conscientemente o lado do res lembraram da máxima
oprimido, fazendo-lhe justiça, a jus- (RJTJRGS, 111/ 345 e 359).
tiça da libertação. Mas se se quer No entanto, se dizem que o Juiz,
tomar a opção pela justiça do mais como profissional, ao julgar é soli-
forte (a postura ideológica pessoal tário, nada de novo há: é só o profes-
é que define), tranqüilo parece-me sor ao dar aulas; o engenheiro ao fa-
que se deve aplicar silogística e zer cálculos; o advogado ao preparar
mecanicamente o sistema legal vi- suas teses; o cirurgião ao operar; o
gente, o que requer menos trabalho operário ao construir. E todos, inclu-
e não leva ao ‘doloroso e difícil exer- sive o Juiz, nos momentos de dúvi-
cício do pensamento’ ( Rubem A. das buscam socorro na experiência
Alves, A Empresa da Cura Divina: dos outros, seja através de livros,
um Fenômeno Religioso, Coleção como do convívio com os colegas.
Instituto de Pesquisas Especiais, n. Mas sub-repticiamente isso quer
1, cap. IV, p. 116, Ed. Universidade dizer que o magistrado, ao ser só,
Católica), quiçá até perigoso! Já a deve ficar distanciado do povo, por-
opção pelo oprimido requer que se que a massa popular é portadora de
negue a lei com alguma freqüência; doença contagiosa, ou seja, próxi-
o questionamento do sistema como mo do povo o Juiz perceberá com
um todo; a busca no conflito do real clareza a angústia popular e ficará
opressor; exige competência (fácil é contaminado por ela. E perto do opri-
aplicar a lei; difícil é negá-la porque mido, contagiado pelo seu sofri-
demanda estudo profundo, com mento, evidente que tomará opção
conhecimentos sociológicos e filosó- por ele. A solução encontrada é dei-
ficos, sob pena de se receber a pecha xar o Juiz só, fora do mundo, dis-
de irresponsável); que se ouse nos tante dos conflitos sociais, para não
pedidos (advogados) e nas decisões se dar conta do que acontece na his-
(magistrados). tória. Um Juiz desse tipo será, evi-
Mas, acima de tudo, necessário dentemente, um frio aplicador da lei.
que se conheça a realidade social, o A quem ele servirá?
povo. E isso parece ser negado ao A máxima foi elevada à lei tanto
Juiz, tanto que existe uma máxima por que a LOMAN não permite que o Juiz
quase todos aceita: ‘O Juiz é um ho- exerça cargo de direção de socieda-
mem só. Nos discursos de posse de de civil, associação ou fundação,
152/A lei. O juíz. O justo
seja de qual for a natureza ou fina- vontade, mas alheio à realidade so-
lidade (art. 36, Il, da Lei Comple- cial.
mentar n. 35). Um Juiz crítico da lei, próximo do
Então, o Juiz só é um homem ina- povo, comprometido com o justo do
cessível, distante, frio. Ao ponto de o oprimido, e que faça isso de forma
povo ter medo dele, o que é de- responsável e com competência,
nunciado por Dallari, loc. cit., p. fará com que o Judiciário participe
71/72. da história na busca do homem de
Juiz só é aquele do poeta Maia- que trata Maiacovski no poema De-
covski: dicatória:
‘O Equador estremece sob o som ‘Homens!
dos ferros. ‘Amados e não amados,
‘Sem pássaros, sem homens, o ‘Conhecidos e desconhecidos,
Peru está a zero. ‘desfilai por este pórtico num vas-
‘Somente, acocorados com rancor to cortejo!
sob os livros, ‘O homem livre —
‘Ali jazem, deprimidos, os Juízes’. ‘de que vos falo —
Por certo só, também, é o Juiz do ‘Virá,
cineasta Babenco (filme Pixote): um ‘acreditai,
homem honesto com fascinante boa ‘acreditai-me’!